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Transcrição

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC
Relatório Final do grupo Gênero e Violência na América Latina
Matheus Graciosi Pinto RA 21030515
Gabriel Marques RA 21055715
Ana Clara Tomaz Carneiro RA 21054115
Camila Brito RA 21016012
Políticas Públicas Sul-Americanas
Professora Dra. Andrea Paula
São Bernardo do Campo - SP
2016
Introdução
Atualmente, se estrutura de forma incisiva, um discurso sobre gênero baseado em uma
herança judaico-cristã eurocêntrica, encabeçada, no Brasil, pela bancada evangélica.
Para esses “representantes” políticos só existe o homem e a mulher, mesmo que haja
evidências de configurações de sexo-gênero que fogem desse padrão binário na
história.
Ao mesmo tempo, estudos pós-coloniais sobre o tema, despontam na indicação de
uma reflexão, aqui apresentada de forma simplista, de gênero como construção social.
(Vale ressaltar que existe todo um debate acerca dessas afirmações, no qual diversas
vertentes de movimentos que estudam sexo-gênero - principalmente movimentos
feministas contemporâneos - divergem teóricamente a respeito).
Mesmo com a instituição desse debate, há um consenso acerca do sexo/gênero não
ser algo inato do ser humano, e muito menos algo estritamente binário.
Nesse sentido, percebe-se como o gênero se torna um campo de disputa
contemporâneo e pela presença de seus traços em toda história da humanidade
(mesmo com diferentes leituras), motiva nosso trabalho.
A partir da disciplina Políticas Públicas Sul-americanas, que trouxe reflexões acerca da
constituição de etnias indígenas que habitavam o continente Americano antes mesmo
dele ser “descoberto” e aparecer nos livros de história, decidimos fazer o recorte de
gênero. Além disso, a partir do fio lógico estabelecido, passando desse primeiro
momento para o estudo da colonização, escravidão, independência e políticas públicas
atuais no que tange o recorte Sul-Americano, percebemos que a discussão sobre
gênero se faz muito presente em todos esses tópicos.
Gênero no período pré-Inca e colonização
Estudos recentes a respeito de gênero no período pré-Inca são bem restritos.
Por conta do pouco tempo que o grupo teve para realizar pesquisas mais profundas, o
material encontrado foi quase nulo - inclusive de cunho strito sensu científico, um artigo
ou paper a respeito, não foi localizado pelo grupo. Contamos então com algumas
informações apresentadas em sites de notícias tal como o Geledés - Instituto da Mulher
Negra.
Para Francine Oliveira (2016) “É importante notar como a diversidade sexual e
de gênero já estava presente em múltiplos territórios pelo mundo, o que sugere como o
pensamento europeu cristão foi responsável pela imposição de uma moral que não tem
relação alguma com "naturalidade".
Em vários momentos ela pontua, a partir de diversas fontes como o site Indian
Country Today, especializado em notícias sobre povos indígenas diferentes
concepções tanto de gênero quanto de sexualidade.
Para exemplificar um pouco, pegamos três casos em que se estruturam visões
divergentes da hegemônica e binária (homem e mulher):
A sociedade Warao reconhece indivíduos que não seriam nem homens nem
mulheres, chamadas tida wena. São indivíduos que nascem biologicamente com o
"sexo masculino" e assumem, desde jovens, funções tradicionalmente femininas da
comunidade. Algumas, por conta de seu poder espiritual, realizam cerimônias
xamãnicas, uma vez que, possuidoras de dois espíritos, têm maior proximidade com os
espíritos ancestrais da selva.
Segundo o site Indian Country Today, especializado em notícias sobre povos
indígenas, entre os norte-americanos eram reconhecidos 5 gêneros diferentes:
masculino, feminino, dois-espíritos masculino, dois-espíritos feminino e o que hoje
chamaríamos de transgênero. As nomenclaturas são diferentes para cada tribo, de
acordo com os dialetos, mas referem-se a identidades de gênero semelhantes.
Entre os Guaicurus e Xamicos, é possível encontrar relatos sobre os kudína ou
cudinhos, homens castrados que passavam a se vestir como mulheres e a executar
tarefas femininas, como a tecelagem. Eles também se casavam com outros homens e
assumiam o papel sexual das mulheres. Entre os Kadiwéu, o hábito da pintura corporal
é reconhecido como uma arte feminina. Os complexos padrões da tribo são pintados
pelas mulheres mais velhas e pelos kudína, homens afeminados que incorporavam
todos os atributos da mulher e assumiam papéis femininos naquela sociedade.
A partir dos exemplos apresentados, nossa intenção não é fazer uma análise
anacrônica sobre o entendimento de sexo/gênero daquela época, ou seja, olhar com os
nossos conceitos e avaliar se está correto ou errado (isso se pudermos colocar um
fator de correção em uma questão tão ampla). Pretendemos mostrar que as dinâmicas
sociais existentes eram diversificadas, de modo que algum processo interferiu na
maneira como essas dinâmicas se comportavam.
Gênero e Sexualidade no Período da Escravidão
Em 1492 iniciou-se um dos períodos mais devastadores da história da América
Latina, a invasão e dominação exercida pelos europeus causou danos permanentes ao
continente americano, como a escravidão, que durou, oficialmente, até o século XIX
mas que ainda deixa suas heranças até os dias de hoje.
Durante esta fase cerca de 14 milhões de pessoas escravizadas foram trazidas
para a américa, sendo homens, mulheres, crianças. Os homens, em sua maioria,
realizavam trabalhos que exerciam força física, enquanto as mulheres, além de outras
tarefas manuais, também serviam como servas das famílias nas Casas Grandes.
Na grande maioria das vezes estas mulheres escravizadas que frequentavam a
Casa Grande exerciam as funções de cozinhar, limpar a casa, lavar as roupas e, além
disso, eram violentadas fisicamente, mentalmente e, principalmente, sexualmente pelos
senhores com certa frequência. Em muitas ocasiões as escravizadas chegavam a
engravidar dos senhores, que nunca assumiam os filhos deste relacionamento. Estas
escravizadas também acabavam por sofrer violência sexual dos filhos dos senhores
que, na adolescência, tinham sua primeira relação sexual com elas.
Sendo assim, estas mulheres viviam numa situação de completa submissão,
não só pela sua escravidão mas também pelo seu papel de mulher perante o homem
que a oprimia e abusava sem que ela pudesse fazer nada. Com isso, podemos ver
uma das fases da construção da sociedade machista e patriarcal brasileira, na qual a
mulher, principalmente a negra, é objetificada e estigmatizada de forma sexual.
Como já chamava atenção Frantz Fanon, esse contexto de opressão causou
danos psicológicos profundos ao povo negro como um todo. A desculturação ocorrida
na época da escravidão faz com que haja uma quebra de vínculo histórico dos negros,
que veem seu primeiro e mais destacado registro na história no momento em que são
escravizados, deixando de lado todo o passado e presente extremamente rico, seja
cultural, tecnológico, etc.
Segundo Fanon, nesse sistema, o negro se vê numa posição em que só pode
ser completo ocupando o lugar do branco, a partir disso, o mesmo rejeita sua própria
existência e condição, o que o coloca num confronto psíquico criando um “complexo de
inferioridade”.
Este “complexo de inferioridade” nasce já na infância quando a criança vê os
heróis, a história, os líderes, os personagens de desenho, dos filmes, quase que
exclusivamente representados por brancos, enquanto o vilão é representado pelo
negro ou pelo indígena. Além disso, fazendo o recorte de gênero, as mulheres negras
são ainda mais invisibilizadas em todas as situações.
Com isso, fica evidente o sistema de violência que é, até mesmo,
institucionalizado e naturalizado no nosso dia a dia, tanto que usamos com frequência
termos totalmente pejorativos e não nos damos conta. Por isso, vivemos com o “mito
da democracia racial” no qual aparentemente o racismo não existe, todos estão em pé
de igualdade e, se o povo negro não consegue ascender socialmente, é por pura falta
de capacidade.
Portanto, trazendo o debate para os dias atuais, fica ainda mais escancarada a
necessidade de se implantar políticas públicas que deem conta de, ao menos, tentar
minimizar com o passar do tempo as desigualdades construídas históricamente. O que
nos falta ainda é produzir políticas que foquem mais na independência e
empoderamento da mulher negra, que segue subalterna na nossa sociedade racista,
machista e patriarcal.
Ótica indígena sobre a natureza – os Astecas
A sociedade Asteca, que se estabeleceu na Mesoamérica, apresentava uma
estrutura social separada em classes cuja atividade mais prestigiada era
relacionada à guerra, sendo esta restrita aos membros masculinos da nobreza, a
base de sustentação do Império estava no trabalho do povo incluindo mulheres e
homens, porém o trabalho reprodutivo era entendido como um trabalho estritamente
feminino.
No processo de dominação do Vale de Anahuac, local anteriormente controlado
pelos toltecas, as mulheres desempenharam um papel central na política de
alianças entre os povos, chegando a participarem em combates até o século XI. As
mulheres da família real estabeleciam essas alianças pelo casamento, porém foram
perdendo relevância nessa estrutura social pela recorrente prática da poligamia
permitida apenas aos homens e pelo papel destes nas guerras, relegando à mulher
apenas papéis secundários segundo o prestígio social, minimizando as mulheres
nobres apenas ao papel reprodutivo e de cuidados maternos. Uma mulher da
nobreza asteca deveria aprender fiar e tecer, além de nutrir e cuidar de seus filhos.
Para as mulheres de classes inferiores estava designado o trato com as ervas e a
venda de madeira e pimentas, sal ou demais produtos.
O status de uma mulher não era reconhecido até que tivesse concebido ao
menos quatro filhos e mulheres inférteis poderiam ser repudiadas e ter o divórcio. A
distinção entre homens e mulheres ocorria até no momento da morte, enquanto os
homens guerreiros eram queimados em piras com seus escravos, as mulheres
eram queimadas com seus instrumentos de tecelagem, Marysa Navarro aponta que
tal tradição carrega uma carga simbólica de subordinação e humildade (NAVARRO,
1999, p. 12).
As mulheres das classes populares poderiam escolher ser curandeiras,
parteiras, vendedoras de rua e outras exercer outras profissões, exceto certas
atividades restritas aos homens de classe baixa. Conforme o Frei Bernardino de
Sahagún, no livro General History of the Things of New Spain escrito no início do
século XVI, para as mulheres haviam 15 opções “profissionais” e para os homens
35, contudo muitas das ocupações femininas eram passadas despercebidas pelo
autor na medida em que seus critérios para determinar uma ocupação profissional
eram muitos restritos, pautados em sua experiência europeia. Outro aspecto central
na sociedade asteca era o âmbito religioso que mesclava em suas divindades
aspectos do feminino e do masculino em consonância com os elementos da
natureza.
O calendário dos astecas era em grande parte dedicado a deusas, em sua
maioria estavam relacionadas à fertilidade, nutrição e agricultura; possivelmente
relacionado ao passado no qual o status das mulheres era mais elevado num
sistema baseado no equilíbrio entre “luz e escuridão”, “feminino e masculino”, “vida
e morte”, nesse sistema há a mãe Terra que deu luz a tudo o que existe no mundo,
sendo a mãe dos próprios deuses. Antes, sem as recorrentes guerras, os massivos
sacrifícios humanos e a ausência nas crenças locais da deidade masculina sedenta
de sangue, Huitzilopochtli, haviam nas crenças equilíbrio entre os gêneros na
questão da representatividade e no poder relativo ao feminino e ao masculino, em
decorrência, um maior equilíbrio na estrutura social quanto aos papéis de gênero.
Observando os astecas, um dos muitos povos indígenas da América Latina,
pode-se notar o forte vínculo entre essas sociedades e a natureza, principalmente a
figura da mulher nessa conexão com o meio, seu papel como curandeira, tecelã e
conhecedora dos ciclos de colheita, que remetem a uma compreensão holística dos
processos sociais que são compreendidos sob um viés biocêntrico ao invés do
dominante olhar antropocêntrico. Para os povos indígenas a natureza é fonte de
seus viveres e saberes, toda a sua cosmologia se pauta nos fenômenos naturais e
o olhar para o meio se pauta numa relação de interdependência com este, toda a
etno-história dos povos pré-colombianos está permeada pela simbiose com as
singularidades locais.
Ótica europeia sobre a Natureza
As nações europeias, desde o início da colonização da América, buscaram
coletar e mapear as potencialidades locais e os conhecimentos indígenas, através
de empreendimentos individuais e Expedições Científicas, visando explorar a
Natureza e subtrair dela um excedente produtivo que seria enviado às suas
respectivas metrópoles.
No princípio da era moderna, segundo Keith Thomas (1988, p. 44), na
Inglaterra, atribuía-se à Natureza, como um todo, um valor inferior ao do homem
(especialmente em relação aos animais). Por exemplo, os homens ditos civilizados
buscavam elevar-se diante dos animais, através da educação erudita, “civilidade” e
refinamento (incluindo regras de etiqueta como forma diferenciação).
O valor de inferioridade dado à Natureza pelo homem europeu chega à América
sob a forma de uma exploração massiva, vasto desmatamento e dizimação de
espécies. A superioridade atribuída à espécie humana fazia com que os estudos
das ciências naturais e físicas ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII estivessem
subordinados aos desejos e necessidades do homem, ou seja, a Natureza era
serva das exigências humanas; neste período não se pautava a discussão
contemporânea de desenvolvimento sustentável. Além disso, no mundo ocidental,
por detrás de todos os costumes e crenças, estava a Igreja estabelecendo através
da Bíblia, as condutas e intermediando as relações humanas; a Igreja utilizava-se
das escrituras sagradas para fazer do homem a criação superior e mais importante
dentre a criação, contribuindo para o sentimento de que o mundo físico e os demais
seres viventes teriam de ser sujeitos ao homem. (CAMENIETZKI, 2000, p. 91-92).
Colombo dizia ser ordenado de Deus para cumprir o seu propósito de propagar o
“santo nome de Deus” e o Seu evangelho em todo o universo, mas o objetivo não
era puramente religioso pois havia uma ligação entre a expansão espiritual e a
conquista material e para que isso fosse possível, várias medidas foram tomadas
pela Igreja para legitimar tais ações (TODOROV, 1987). Como exemplo disso
tomemos Hernán Cortés que considerava de vital importância que os índios se
submetessem não somente ao trono espanhol, mas também aos mistérios de
Cristo, pois isso legitimava tanto a guerra como a escravidão para grupos que não
aceitassem o cristianismo.
O processo de colonização e conquista ampliou o conhecimento europeu sobre
a Natureza americana, o que se refletiu nos estudos científicos: O contato com o
Novo Mundo possibilitou o confronto entre o saber tradicional e as novidades que
vinham sendo observadas pelos viajantes ou pelos homens que, mesmo sem sair
da Europa, podiam obter informações, as quais os antigos não tiveram acesso.
(GESTEIRA, 2004, p. 73)
Como a ciência não deixa de ser uma forma de expressão da cultura de uma
sociedade, a partir do momento em que se estabelece uma hierarquia no fazer
ciência e surge a ideia de que há a uma ciência verdadeira, a sociedade que fosse
detentora dessa forma “verdadeira” de ciência se imporia sobre as demais. Assim, a
forma que o saber científico foi trazido para a América e estabelecido aqui reflete tal
pensamento de superioridade, só que agora, não mais em relação à superioridade
do homem frente a Natureza; mas sim, se trata da hierarquização dos colonizadores
em relação às sociedades e culturas dos colonizados.
O outro / O exótico
O modelo do patriarcalismo esteve presente nas bases de todas as sociedades
contemporâneas, formando suas estruturas. Muitos aspectos sociais podem ser
entendidos através dele, pois esse modelo é determinado pela figura central do
patriarca e pela relação de dominação do homem sobre a mulher e filhos dentro da
família, unidade social básica, impondo sua autoridade.
Essa é a base que orienta a administração econômica, política e de procriação.
No período colonial, a miscigenação foi um grande tema, fruto de uma relação
assimétrica na qual o colonizador se utilizava de seu poder simbólico e material
para violentar as mulheres nativas, conforme o relato na colônia portuguesa: “Os
homens portugueses, frente à escassez de mulheres portuguesas, mantiveram
relações sexuais com as indígenas e mulheres africanas que eram vistas como
trabalhadoras e como objetos sexuais” (BARRETO, 2004, p.66).
A mulher, assim como os indígenas, por sua anatomia e configuração biológica,
era vista como “o outro”, enquanto o homem “o Absoluto”. Esse tipo de hierarquia
acontece quando um lado se coloca como modelo a ser seguido e o outro como
falha ou negação. “Para os habitantes de uma aldeia, todas as pessoas que não
pertencem ao mesmo lugarejo são "outros"' e suspeitos; para os habitantes de um
país, os habitantes de outro país são considerados "estrangeiros". Os judeus são
"outros" para o anti-semita, os negros para os racistas norte-americanos, os
indígenas para os colonos, os proletários para as classes dos proprietários. ” (de
BEAUVOIR, 1970, p.11).
Ainda sobre a visão do outro é clara a influência da religião católica no que se
diz a respeito a opressão sofrida por mulheres indígenas e negras, em que a igreja
católica se porta como instituição que detém o monopólio ideológico e religioso para
que processe a organização da nova sociedade. Dentre as ações desempenhadas
pela igreja católica pode-se elencar a organização familiar patriarcal, severa
vigilância e controle pela observação doutrinal – confissões, sermões e pela
inquisição.
Trazendo a perspectiva da sociedade indígenas brasileiras e o processo de
dominação colonial pelos portugueses observa-se uma forte influência católica na
questão do combate de três aspectos: nudez; poligamia; antropofagia.
Sobre a nudez é perceptível uma incessante opressão, vista também nas
representações artísticas, em que há uma preocupação em cobrir os corpos nus
das mulheres indígenas, enraizado no controle e ocultamento do corpo feminino.
Outro aspecto que causou estranhamento ao estilo de vida europeu foi a divisão
do trabalho, cabendo as mulheres as atividades agrícolas, demonstrando a
percepção indígena de que as mulheres como únicas provedoras da vida, seriam
melhores em prover o alimento, pelo contato sagrado com a terra e questão da
fertilidade.
A poligamia também era condenada, visto que a poligamia masculina era aceita
como normal e curiosa, entretanto a poligamia feminina era cruelmente repudiada e
condenada.
Em relação a antropofagia, era papel das mulheres cuidar e tratar dos
prisioneiros a serem executados e servidos como refeições. Ato totalmente
condenado pela igreja católica e pelos seus discípulos.
Essa visão ressalta a estranheza frente ao que é diferente, a mesma relação que
os ibéricos mantiveram com os povos nativos e com a natureza. Ao não reconhecer
alguém como igual, o dominante se vê no direito de controlar “o outro” e fazer o que
lhe convém, fato esse que se aplica às mulheres, sempre subordinadas ao homem
e vistas como um simples complemento e não como fator central.
Outro estranhamento era o da finalidade da “entrega das mulheres indígenas
para os estrangeiros” em que a real finalidade era a de ampliar a população
masculina, pois o homem que morava na casa dos pais da mulher, e dessa forma o
homem responsável pela caça, pesca e busca de alimentos tinha o dever em mimar
a esposa e em consequência a família da mesma, inclusive o pai.
A sociedade indígena era caracterizada pela reciprocidade de bens, dons, de
entrega de si. Uma sociedade marcada pelo bem mutuo, pela igualdade de
representações. Tal forma de sociedade escapava ao entendimento europeu,
calcado nas concepções positivistas, marcadas, principalmente pela escravidão e
total retirada da natureza.
Até metade do século XX, os filósofos e grande parte das pessoas, não se
incomodavam com o uso do “homem” para fazer referência a todos os humanos. No
entanto, esse uso não é tão inocente, pois ressalta o modelo masculino pensado
por homens, no qual a mulher surge como diferente, inessencial e exótica. Quando
se fala na dicotomia homem/mulher é tratada a parte biológica, diferentemente do
masculino/feminino, que apresenta uma carga cultural elevada, ligada a ideologias e
representações dos papéis de gênero. A visão europeia remonta a uma tradição
ocidental de pensamento que tem suas origens na filosofia grega, nesta pode-se
observar a anulação ou inferiorização da mulher como ocorre nas obras de
Aristóteles e Platão. Nessa estrutura a mulher é analisada face a um padrão
masculino, pois o masculino representa o humano e a mulher por divergir é
considerada inferior.
Um outro exemplo dessa herança seria Freud que em seus escritos mostra
como o filão platônico e aristotélico se preservou; em uma de suas obras, Novas
Conferências sobre a Psicanálise (1932-1936), analisa como a libido age de uma
forma diferente em homens e mulheres, explorando as características do ser
feminino. Este enxerga na mulher o desejo de ser amada, vaidade com o corpo,
narcisismo e um menor sentido de justiça. Ou seja, a mulher tem menos interesse
social, menor propensão ao engrandecimento e sua evolução acaba mais cedo.
A retomada da concepção de feminino sagrado através da relação direta entre
mulher e natureza: o Ecofeminismo na América Latina.
Transportando-nos para uma história mais recente, nasce na década de 1970 dentre as diversas correntes feministas surgidas no século XX - o movimento
ecofeminista, que tem como objeto principal de crítica a atuação das estruturas do
patriarcado como impositoras de uma relação de subordinação não apenas da
mulher, mas também da natureza e dos recursos naturais perante ao homem, sob
um ideal de progresso que se vale necessariamente da dominação.
O movimento pretende, assim, colocar os seres viventes em pé de igualdade e
dignos de igual respeito à vida, ou seja, uma visão de reciprocidade entre os seres,
e para isso tanto o feminismo como a ecologia se fazem necessários pois foram a
mulher e a natureza, de acordo com essa visão, os que mais sofreram com os
impactos do patriarcado. O Ecofeminismo se divide em diferentes correntes, e
ganha espaço na América Latina a partir da década de 1990 através de uma
corrente denominada “espiritualista”, dado que ela primeiramente se propaga nesse
espaço através de mulheres oriundas de movimentos político-teológico-sociais
como a Teologia da Libertação, que trazia fortemente a questão da luta de classes
para o campo teológico.
Essa associação permitiu que a abordagem feminista se adequasse a um
ambiente com contexto e reivindicações diferentes das colocadas pelas linhas
feministas do Norte, e inclusive permitindo que a crítica seja feita a nível mais
amplo, visto que as relações de dominação entre Norte e Sul globais também
podem ser enquadradas num contexto patriarcal.
Além disso, o ecofeminismo ao nascer no seio da Teoria da Libertação dá
margem a uma reflexão sobre como atua a estrutura patriarcal também nas
ideologias de esquerda e cristãs. Um dos pilares do ecofeminismo na América
Latina é então, trazer à tona uma nova cosmologia, baseada em geral na “Hipótese
Gaia”, de que a Terra é um ser vivo, com seus próprios ciclos e alterações. Dessa
forma, com a imposição de um modelo androcêntrico de organização de sociedade,
além da marginalização da mulher está a marginalização das antigas divindades
femininas e a dessacralização da natureza, promovendo uma quebra na relação
simbiótica e de respeito entre a sociedade e a natureza, que antes era tida em
sociedades como a Inca, por exemplo, como a “Grande Mãe” (Pachamama),
doadora da vida, personificada em diversas figuras de deusas cultuadas em
culturas ancestrais.
O ecofeminismo promove, então, um retorno a essa ideia de natureza sagrada a
partir da própria corporalidade e genitalidade da mulher como sagradas, visto que
há a concepção de igualdade e interdependência entre todos os seres e, portanto,
sendo necessário um resgate da valorização do corpo feminino como doador da
vida, bem como a Terra, livre de objetificações, culpabilização ou mesmo
perseguição. A vida em sua totalidade e diversidade seria vista então como “um
único corpo sagrado” (MENDOZA).
Partiria então das mulheres uma desconstrução de papéis socialmente impostos
a elas pelo patriarcado, o que diz respeito diretamente a sua corporalidade e
consequente sexualidade, assim como a construção de uma nova concepção de
corpo feminino capaz de ser curadora e doadora de vida não só no sentido
tradicional da concepção. Isso leva a uma retirada do corpo feminino de um terreno
obscuro onde o prazer e a sexualidade feminina são condenados, e coloca-o em um
ambiente de autoconhecimento e integrado à esfera espiritual. Tornam-se
indissociáveis na expressão dessa corrente na América Latina a relação entre
natureza, sociedade e o sagrado - uma nova maneira que relaciona atualidade e
ancestralidade, e por isso vai além das formas de teologia tradicionais, que muitas
vezes mantém estruturas de dominação. Na última década vem ganhando ainda
mais força um movimento de preceitos alinhados com o ecofeminismo chamado
comumente de “Sagrado Feminino”.
Dentre as práticas utilizadas para a retomada desse sentido sagrado do próprio
corpo e sua relação com a natureza, está o estudo da ginecologia natural, de
métodos naturais de cura e de contracepção, o resgate do estudo dos ciclos
menstruais alinhados com ciclos lunares, tendo esse movimento contido em si não
só um impulso pela maior integração com os ciclos de Gaia, mas também uma
crítica ao consumismo exacerbado e a industrialização que também prejudica a
saúde das mulheres através de alimentos, medicamentos, produtos de higiene
básica e cosméticos.
As políticas públicas sul-americanas e o empoderamento feminino
“As desigualdades econômicas, sociais e culturais, as exclusões econômicas,
políticas e sociais, o autoritarismo que regula todas as relações sociais, a corrupção
como forma de funcionamento das instituições, o racismo, o sexismo, as intolerâncias
religiosa, sexual e política não são consideradas formas de violência, isto é, a
sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta e por isso a
violência aparece como um fato esporádico de superfície” (CHAUI, 1998)
E pensar que em pleno século XXI a discussão sobre o papel da mulher reflete
uma posição de luta pela igualdade... E pensar que o feminismo AINDA é necessário...
É nesse contexto-histórico apresentado em que se faz necessário pensar, criar e
agir em prol dos direitos das mulheres. As políticas públicas são um dos aportes
políticos possíveis que tentam equacionar os problemas estruturais incrustado numa
sociedade baseada fortemente pelo papel de dominação e poder do homem. Basta
olhar ao redor e perceber a assustadora realidade que afasta os sexos em quaisquer
que sejam as dimensões. Trate-se de uma questão cultural, construída socialmente e
historicamente, da qual vem sendo replicada e modificada, cada qual para seu grupo
indenitário.
Apesar de as mudanças e avanços, no que tange o papel da mulher na sociedade
contemporânea, de fato acontecerem, longo e árduo é o caminho para designação de
equidade e igualdade social. No caso dos países latino-americanos, uma série de
indicações e sugestões foram apresentadas, porém pouco vem sendo feito.
As incorporações das políticas assumidas nos últimos tempos, apesar de poucas,
surtem grande efeito na população feminina, pois representa uma forma de
contestação e passos lentos para a tentativa de mudança.
Entretanto, as poucas políticas públicas ainda comportam-se de maneira setorial ou
se restringe a cada país, passam longe o aspecto integrador e regional que viria a
fortalecer a questão. Até mesmo quando se procura literatura no âmbito da academia,
pouco se encontra a escala latino-americana.
Contudo, há casos e experiências que podem ser levantados. Uma delas foi a
chamada Convenção do Belém do Pará, que ocorreu em 1994 no Brasil. Trate-se de
um tratado internacional adotado pela Assembleia Geral da Organização dos Estados
Americanos, que tem por objetivo o combate da violência doméstica contra a mulher.
Apesar de não estabelecer uma lei direta em materia de direito, constitui e cria reais
condições para o rompimento dessa estrutura pautada na violência em todo mundo,
servindo de base para as leis específicas sancionadas em cada país posteriormente,
sobretudo nos países latino americanos (Convenções e Tratados Internacionais, 2012;
CIDH, 199?)
O documento conta com cinto capítulos da qual vale ressaltar o artigo primeiro:
“Entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato
ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na
esfera pública como na esfera privada” (CONVENÇÃO DE
BELÉM DO PARÁ, 1994)
É interessante notar como a questão da violência não mais se restringe ao contato
físico, mas entende-se a complexidade da questão alargando conceitos para uma ideia
mais completa.
O encontro ocorre um ano após a Conferencia Mundial dos Direitos Humanos
realizado em Viena, da qual a questão de gênero fora amplamente discutida e
considerada.
A partir da Convenção de 94, o consórcio de Organizações Não Governamentais
(ONGs) feministas e a Secretaria de Política para as Mulheres (SPM), conjuntamente
propuseram a Lei, que ficou popularmente conhecida como Maria da Penha, aprovada
em 2006, no Brasil (BANDEIRA & ALMEIRA, 2015).
Segundo Bandeira e Almeida (2015), no ano de 2007 o Comitê Cedaw
“prescreveu o dever da República Federativa do Brasil de estruturar os juizados
especializados no combate à violência contra a mulher, preconizados pela LMP, em
todos os estados e no Distrito Federal”.
Apesar da aprovação da lei em 2006, o retrospecto político- institucional não era
dos melhores. O Brasil, dentre os 16 signatários da Convenção de Belém do Pará, era
um dois e únicos países que não aprovaram alguma lei específica de combate à
violência doméstica contra as mulheres, ainda que a o evento tenha tido como sede o
país (ANDRADE, 2003).
Os demais países latino-americanos avançaram em dispositivos legais não
apenas com relação a problemática da mulher, mas também na violação contra
crianças e idosos e no tocante as questões de gênero. Todas estimuladas e ratificadas
a partir da Convenção.
Deste modo, a Andrade (2003) expõe essa ocorrência como uma dívida até
pouco tempo não paga, visto que muito foi dito e pouco foi posto em prática.
Mas talvez a maior expressão de esforço voltado para a defesa da mulher, em
âmbito regional, seja a criação de um grupo no MERCOSUL.
No Final de 2011, foi criado a Reunião de Ministras e Altas Autoridades da
Mulher do MERCOSUL (RMAAM). Duas vezes ao ano, o grupo composto pelas
representantes dos Estados membros do MERCOSUL encontram-se para discutir
medidas pela promoção da igualdade de gênero, tendo um aspecto marcante o
fortalecimento das mulheres nos organismos públicos que discute e tentam maximizar
as políticas direcionadas ao público feminino.
Em relação à estrutura da RMAAM, são compostas por dois grupos de trabalho:
a Mesa Técnica sobre Violência de Gênero e a Mesa Técnica sobre Gênero, Trabalho
e Integração Econômica.
Entre os anos de 2009 e 2012, inicia-se a execução do “Fortalecimento da
Institucionalidade e da Perspectiva de Gênero no MERCOSUL”, projeto financiado pela
Agencia Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento. O projeto
busca a democratização do processo de integração regional, após as discussões
realizadas pelas ministras durante as reuniões do RMAAM e através dos grupos de
trabalhos citados (SANTOS, 2012).
Em 2015, durante o 6º encontro, realizado no Brasil, novamente a autoridades
inovam ao aprovarem recomendações sobre gênero e educação não sexista, que tem
por ideia, na área educacional, aumentar a participação dos cursos de exatas,
tecnologia e de inovação nessas questões, na tentativa de aumentar e disseminar o
direito ao conhecimento sobre este tópico (PORTAL BRASIL, 2015).
Além das ações no meio político formal, algumas celebrações também marcam o
interesse do enfrentamento da mulher no dia a dia. No dia 25 de julho ocorre o Dia
Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, criado em 1992 na
República Dominicana. A data é considerada um marco internacional da luta e
resistência da mulher negra nos países da América Latina. Caracteriza-se como umA
forma de empoderamento feminino na atual sociedade, a partir do avanço na
participação das mulheres em postos altos do país. A data foi celebrada e confirmada a
durante o primeiro Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-caribenha
(PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2013).
Como se pode perceber, de fato houve uma ampliação do entendimento e da
problemática da posição das mulheres no que tange direitos sociais, políticos e
econômicos. Todavia, apesar das melhorias encontradas em vários países da América
Latina, a realidade demonstra como o aporte político e institucional ainda é frágil e
fragmentado. Além de ser considerado “pequeno” se comparado às dimensões do
enfrentamento da discriminação e do sexismo. Há muito que evoluir. Ampliar parcerias
é um dos passos que levam à visibilidade da questão. Entretanto, há de se esforçar
mais para as recomendações entrarem no plano da ação e execução. As políticas
públicas ainda são poucas, e devem ser julgadas sobre sua eficácia e eficiência.
Devem chegar às áreas remotas e ser difundida em mesmo grau para as todas as
regiões, sejam elas centrais, sejam elas periferias. E uma das questões mais
importantes, deve ser publicizada para que todas e todos tenham conhecimento do
debate sobre gênero. Para que a opressão, seja ela de gênero, racial ou étnica, deixe
de ser tida como normal.
REFERÊNCIAS BIBILIOGRÁFICAS
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Na Venezuela, mulheres trans são parte da cultura da tribo Warao, desde a era précolonial. Disponível em: <http://br.blastingnews.com/mundo/2016/07/na-venezuelamulheres-trans-sao-parte-da-cultura-da-tribo-warao-desde-a-era-pre-colonial001006921.html > Acesso em jul/2016.
Índios brasileiros reconheciam outras formas de sexualidade e gênero antes da
colonização. Disponível em: <http://br.blastingnews.com/cultura/2016/06/indiosbrasileiros-reconheciam-outras-formas-de-sexualidade-e-genero-antes-da-colonizacao00988767.html> Acesso jul/2016.
Antes da chegada dos cristãos europeus, nativos norte-americanos reconheciam 5
gêneros. Disponível em:
<http://www.geledes.org.br/antes-da-chegada-dos-cristaos-europeus-nativos-norteamericanos-reconheciam-5-generos/> Acesso jul/2016

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