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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ABC Relatório Final do grupo Gênero e Violência na América Latina Matheus Graciosi Pinto RA 21030515 Gabriel Marques RA 21055715 Ana Clara Tomaz Carneiro RA 21054115 Camila Brito RA 21016012 Políticas Públicas Sul-Americanas Professora Dra. Andrea Paula São Bernardo do Campo - SP 2016 Introdução Atualmente, se estrutura de forma incisiva, um discurso sobre gênero baseado em uma herança judaico-cristã eurocêntrica, encabeçada, no Brasil, pela bancada evangélica. Para esses “representantes” políticos só existe o homem e a mulher, mesmo que haja evidências de configurações de sexo-gênero que fogem desse padrão binário na história. Ao mesmo tempo, estudos pós-coloniais sobre o tema, despontam na indicação de uma reflexão, aqui apresentada de forma simplista, de gênero como construção social. (Vale ressaltar que existe todo um debate acerca dessas afirmações, no qual diversas vertentes de movimentos que estudam sexo-gênero - principalmente movimentos feministas contemporâneos - divergem teóricamente a respeito). Mesmo com a instituição desse debate, há um consenso acerca do sexo/gênero não ser algo inato do ser humano, e muito menos algo estritamente binário. Nesse sentido, percebe-se como o gênero se torna um campo de disputa contemporâneo e pela presença de seus traços em toda história da humanidade (mesmo com diferentes leituras), motiva nosso trabalho. A partir da disciplina Políticas Públicas Sul-americanas, que trouxe reflexões acerca da constituição de etnias indígenas que habitavam o continente Americano antes mesmo dele ser “descoberto” e aparecer nos livros de história, decidimos fazer o recorte de gênero. Além disso, a partir do fio lógico estabelecido, passando desse primeiro momento para o estudo da colonização, escravidão, independência e políticas públicas atuais no que tange o recorte Sul-Americano, percebemos que a discussão sobre gênero se faz muito presente em todos esses tópicos. Gênero no período pré-Inca e colonização Estudos recentes a respeito de gênero no período pré-Inca são bem restritos. Por conta do pouco tempo que o grupo teve para realizar pesquisas mais profundas, o material encontrado foi quase nulo - inclusive de cunho strito sensu científico, um artigo ou paper a respeito, não foi localizado pelo grupo. Contamos então com algumas informações apresentadas em sites de notícias tal como o Geledés - Instituto da Mulher Negra. Para Francine Oliveira (2016) “É importante notar como a diversidade sexual e de gênero já estava presente em múltiplos territórios pelo mundo, o que sugere como o pensamento europeu cristão foi responsável pela imposição de uma moral que não tem relação alguma com "naturalidade". Em vários momentos ela pontua, a partir de diversas fontes como o site Indian Country Today, especializado em notícias sobre povos indígenas diferentes concepções tanto de gênero quanto de sexualidade. Para exemplificar um pouco, pegamos três casos em que se estruturam visões divergentes da hegemônica e binária (homem e mulher): A sociedade Warao reconhece indivíduos que não seriam nem homens nem mulheres, chamadas tida wena. São indivíduos que nascem biologicamente com o "sexo masculino" e assumem, desde jovens, funções tradicionalmente femininas da comunidade. Algumas, por conta de seu poder espiritual, realizam cerimônias xamãnicas, uma vez que, possuidoras de dois espíritos, têm maior proximidade com os espíritos ancestrais da selva. Segundo o site Indian Country Today, especializado em notícias sobre povos indígenas, entre os norte-americanos eram reconhecidos 5 gêneros diferentes: masculino, feminino, dois-espíritos masculino, dois-espíritos feminino e o que hoje chamaríamos de transgênero. As nomenclaturas são diferentes para cada tribo, de acordo com os dialetos, mas referem-se a identidades de gênero semelhantes. Entre os Guaicurus e Xamicos, é possível encontrar relatos sobre os kudína ou cudinhos, homens castrados que passavam a se vestir como mulheres e a executar tarefas femininas, como a tecelagem. Eles também se casavam com outros homens e assumiam o papel sexual das mulheres. Entre os Kadiwéu, o hábito da pintura corporal é reconhecido como uma arte feminina. Os complexos padrões da tribo são pintados pelas mulheres mais velhas e pelos kudína, homens afeminados que incorporavam todos os atributos da mulher e assumiam papéis femininos naquela sociedade. A partir dos exemplos apresentados, nossa intenção não é fazer uma análise anacrônica sobre o entendimento de sexo/gênero daquela época, ou seja, olhar com os nossos conceitos e avaliar se está correto ou errado (isso se pudermos colocar um fator de correção em uma questão tão ampla). Pretendemos mostrar que as dinâmicas sociais existentes eram diversificadas, de modo que algum processo interferiu na maneira como essas dinâmicas se comportavam. Gênero e Sexualidade no Período da Escravidão Em 1492 iniciou-se um dos períodos mais devastadores da história da América Latina, a invasão e dominação exercida pelos europeus causou danos permanentes ao continente americano, como a escravidão, que durou, oficialmente, até o século XIX mas que ainda deixa suas heranças até os dias de hoje. Durante esta fase cerca de 14 milhões de pessoas escravizadas foram trazidas para a américa, sendo homens, mulheres, crianças. Os homens, em sua maioria, realizavam trabalhos que exerciam força física, enquanto as mulheres, além de outras tarefas manuais, também serviam como servas das famílias nas Casas Grandes. Na grande maioria das vezes estas mulheres escravizadas que frequentavam a Casa Grande exerciam as funções de cozinhar, limpar a casa, lavar as roupas e, além disso, eram violentadas fisicamente, mentalmente e, principalmente, sexualmente pelos senhores com certa frequência. Em muitas ocasiões as escravizadas chegavam a engravidar dos senhores, que nunca assumiam os filhos deste relacionamento. Estas escravizadas também acabavam por sofrer violência sexual dos filhos dos senhores que, na adolescência, tinham sua primeira relação sexual com elas. Sendo assim, estas mulheres viviam numa situação de completa submissão, não só pela sua escravidão mas também pelo seu papel de mulher perante o homem que a oprimia e abusava sem que ela pudesse fazer nada. Com isso, podemos ver uma das fases da construção da sociedade machista e patriarcal brasileira, na qual a mulher, principalmente a negra, é objetificada e estigmatizada de forma sexual. Como já chamava atenção Frantz Fanon, esse contexto de opressão causou danos psicológicos profundos ao povo negro como um todo. A desculturação ocorrida na época da escravidão faz com que haja uma quebra de vínculo histórico dos negros, que veem seu primeiro e mais destacado registro na história no momento em que são escravizados, deixando de lado todo o passado e presente extremamente rico, seja cultural, tecnológico, etc. Segundo Fanon, nesse sistema, o negro se vê numa posição em que só pode ser completo ocupando o lugar do branco, a partir disso, o mesmo rejeita sua própria existência e condição, o que o coloca num confronto psíquico criando um “complexo de inferioridade”. Este “complexo de inferioridade” nasce já na infância quando a criança vê os heróis, a história, os líderes, os personagens de desenho, dos filmes, quase que exclusivamente representados por brancos, enquanto o vilão é representado pelo negro ou pelo indígena. Além disso, fazendo o recorte de gênero, as mulheres negras são ainda mais invisibilizadas em todas as situações. Com isso, fica evidente o sistema de violência que é, até mesmo, institucionalizado e naturalizado no nosso dia a dia, tanto que usamos com frequência termos totalmente pejorativos e não nos damos conta. Por isso, vivemos com o “mito da democracia racial” no qual aparentemente o racismo não existe, todos estão em pé de igualdade e, se o povo negro não consegue ascender socialmente, é por pura falta de capacidade. Portanto, trazendo o debate para os dias atuais, fica ainda mais escancarada a necessidade de se implantar políticas públicas que deem conta de, ao menos, tentar minimizar com o passar do tempo as desigualdades construídas históricamente. O que nos falta ainda é produzir políticas que foquem mais na independência e empoderamento da mulher negra, que segue subalterna na nossa sociedade racista, machista e patriarcal. Ótica indígena sobre a natureza – os Astecas A sociedade Asteca, que se estabeleceu na Mesoamérica, apresentava uma estrutura social separada em classes cuja atividade mais prestigiada era relacionada à guerra, sendo esta restrita aos membros masculinos da nobreza, a base de sustentação do Império estava no trabalho do povo incluindo mulheres e homens, porém o trabalho reprodutivo era entendido como um trabalho estritamente feminino. No processo de dominação do Vale de Anahuac, local anteriormente controlado pelos toltecas, as mulheres desempenharam um papel central na política de alianças entre os povos, chegando a participarem em combates até o século XI. As mulheres da família real estabeleciam essas alianças pelo casamento, porém foram perdendo relevância nessa estrutura social pela recorrente prática da poligamia permitida apenas aos homens e pelo papel destes nas guerras, relegando à mulher apenas papéis secundários segundo o prestígio social, minimizando as mulheres nobres apenas ao papel reprodutivo e de cuidados maternos. Uma mulher da nobreza asteca deveria aprender fiar e tecer, além de nutrir e cuidar de seus filhos. Para as mulheres de classes inferiores estava designado o trato com as ervas e a venda de madeira e pimentas, sal ou demais produtos. O status de uma mulher não era reconhecido até que tivesse concebido ao menos quatro filhos e mulheres inférteis poderiam ser repudiadas e ter o divórcio. A distinção entre homens e mulheres ocorria até no momento da morte, enquanto os homens guerreiros eram queimados em piras com seus escravos, as mulheres eram queimadas com seus instrumentos de tecelagem, Marysa Navarro aponta que tal tradição carrega uma carga simbólica de subordinação e humildade (NAVARRO, 1999, p. 12). As mulheres das classes populares poderiam escolher ser curandeiras, parteiras, vendedoras de rua e outras exercer outras profissões, exceto certas atividades restritas aos homens de classe baixa. Conforme o Frei Bernardino de Sahagún, no livro General History of the Things of New Spain escrito no início do século XVI, para as mulheres haviam 15 opções “profissionais” e para os homens 35, contudo muitas das ocupações femininas eram passadas despercebidas pelo autor na medida em que seus critérios para determinar uma ocupação profissional eram muitos restritos, pautados em sua experiência europeia. Outro aspecto central na sociedade asteca era o âmbito religioso que mesclava em suas divindades aspectos do feminino e do masculino em consonância com os elementos da natureza. O calendário dos astecas era em grande parte dedicado a deusas, em sua maioria estavam relacionadas à fertilidade, nutrição e agricultura; possivelmente relacionado ao passado no qual o status das mulheres era mais elevado num sistema baseado no equilíbrio entre “luz e escuridão”, “feminino e masculino”, “vida e morte”, nesse sistema há a mãe Terra que deu luz a tudo o que existe no mundo, sendo a mãe dos próprios deuses. Antes, sem as recorrentes guerras, os massivos sacrifícios humanos e a ausência nas crenças locais da deidade masculina sedenta de sangue, Huitzilopochtli, haviam nas crenças equilíbrio entre os gêneros na questão da representatividade e no poder relativo ao feminino e ao masculino, em decorrência, um maior equilíbrio na estrutura social quanto aos papéis de gênero. Observando os astecas, um dos muitos povos indígenas da América Latina, pode-se notar o forte vínculo entre essas sociedades e a natureza, principalmente a figura da mulher nessa conexão com o meio, seu papel como curandeira, tecelã e conhecedora dos ciclos de colheita, que remetem a uma compreensão holística dos processos sociais que são compreendidos sob um viés biocêntrico ao invés do dominante olhar antropocêntrico. Para os povos indígenas a natureza é fonte de seus viveres e saberes, toda a sua cosmologia se pauta nos fenômenos naturais e o olhar para o meio se pauta numa relação de interdependência com este, toda a etno-história dos povos pré-colombianos está permeada pela simbiose com as singularidades locais. Ótica europeia sobre a Natureza As nações europeias, desde o início da colonização da América, buscaram coletar e mapear as potencialidades locais e os conhecimentos indígenas, através de empreendimentos individuais e Expedições Científicas, visando explorar a Natureza e subtrair dela um excedente produtivo que seria enviado às suas respectivas metrópoles. No princípio da era moderna, segundo Keith Thomas (1988, p. 44), na Inglaterra, atribuía-se à Natureza, como um todo, um valor inferior ao do homem (especialmente em relação aos animais). Por exemplo, os homens ditos civilizados buscavam elevar-se diante dos animais, através da educação erudita, “civilidade” e refinamento (incluindo regras de etiqueta como forma diferenciação). O valor de inferioridade dado à Natureza pelo homem europeu chega à América sob a forma de uma exploração massiva, vasto desmatamento e dizimação de espécies. A superioridade atribuída à espécie humana fazia com que os estudos das ciências naturais e físicas ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII estivessem subordinados aos desejos e necessidades do homem, ou seja, a Natureza era serva das exigências humanas; neste período não se pautava a discussão contemporânea de desenvolvimento sustentável. Além disso, no mundo ocidental, por detrás de todos os costumes e crenças, estava a Igreja estabelecendo através da Bíblia, as condutas e intermediando as relações humanas; a Igreja utilizava-se das escrituras sagradas para fazer do homem a criação superior e mais importante dentre a criação, contribuindo para o sentimento de que o mundo físico e os demais seres viventes teriam de ser sujeitos ao homem. (CAMENIETZKI, 2000, p. 91-92). Colombo dizia ser ordenado de Deus para cumprir o seu propósito de propagar o “santo nome de Deus” e o Seu evangelho em todo o universo, mas o objetivo não era puramente religioso pois havia uma ligação entre a expansão espiritual e a conquista material e para que isso fosse possível, várias medidas foram tomadas pela Igreja para legitimar tais ações (TODOROV, 1987). Como exemplo disso tomemos Hernán Cortés que considerava de vital importância que os índios se submetessem não somente ao trono espanhol, mas também aos mistérios de Cristo, pois isso legitimava tanto a guerra como a escravidão para grupos que não aceitassem o cristianismo. O processo de colonização e conquista ampliou o conhecimento europeu sobre a Natureza americana, o que se refletiu nos estudos científicos: O contato com o Novo Mundo possibilitou o confronto entre o saber tradicional e as novidades que vinham sendo observadas pelos viajantes ou pelos homens que, mesmo sem sair da Europa, podiam obter informações, as quais os antigos não tiveram acesso. (GESTEIRA, 2004, p. 73) Como a ciência não deixa de ser uma forma de expressão da cultura de uma sociedade, a partir do momento em que se estabelece uma hierarquia no fazer ciência e surge a ideia de que há a uma ciência verdadeira, a sociedade que fosse detentora dessa forma “verdadeira” de ciência se imporia sobre as demais. Assim, a forma que o saber científico foi trazido para a América e estabelecido aqui reflete tal pensamento de superioridade, só que agora, não mais em relação à superioridade do homem frente a Natureza; mas sim, se trata da hierarquização dos colonizadores em relação às sociedades e culturas dos colonizados. O outro / O exótico O modelo do patriarcalismo esteve presente nas bases de todas as sociedades contemporâneas, formando suas estruturas. Muitos aspectos sociais podem ser entendidos através dele, pois esse modelo é determinado pela figura central do patriarca e pela relação de dominação do homem sobre a mulher e filhos dentro da família, unidade social básica, impondo sua autoridade. Essa é a base que orienta a administração econômica, política e de procriação. No período colonial, a miscigenação foi um grande tema, fruto de uma relação assimétrica na qual o colonizador se utilizava de seu poder simbólico e material para violentar as mulheres nativas, conforme o relato na colônia portuguesa: “Os homens portugueses, frente à escassez de mulheres portuguesas, mantiveram relações sexuais com as indígenas e mulheres africanas que eram vistas como trabalhadoras e como objetos sexuais” (BARRETO, 2004, p.66). A mulher, assim como os indígenas, por sua anatomia e configuração biológica, era vista como “o outro”, enquanto o homem “o Absoluto”. Esse tipo de hierarquia acontece quando um lado se coloca como modelo a ser seguido e o outro como falha ou negação. “Para os habitantes de uma aldeia, todas as pessoas que não pertencem ao mesmo lugarejo são "outros"' e suspeitos; para os habitantes de um país, os habitantes de outro país são considerados "estrangeiros". Os judeus são "outros" para o anti-semita, os negros para os racistas norte-americanos, os indígenas para os colonos, os proletários para as classes dos proprietários. ” (de BEAUVOIR, 1970, p.11). Ainda sobre a visão do outro é clara a influência da religião católica no que se diz a respeito a opressão sofrida por mulheres indígenas e negras, em que a igreja católica se porta como instituição que detém o monopólio ideológico e religioso para que processe a organização da nova sociedade. Dentre as ações desempenhadas pela igreja católica pode-se elencar a organização familiar patriarcal, severa vigilância e controle pela observação doutrinal – confissões, sermões e pela inquisição. Trazendo a perspectiva da sociedade indígenas brasileiras e o processo de dominação colonial pelos portugueses observa-se uma forte influência católica na questão do combate de três aspectos: nudez; poligamia; antropofagia. Sobre a nudez é perceptível uma incessante opressão, vista também nas representações artísticas, em que há uma preocupação em cobrir os corpos nus das mulheres indígenas, enraizado no controle e ocultamento do corpo feminino. Outro aspecto que causou estranhamento ao estilo de vida europeu foi a divisão do trabalho, cabendo as mulheres as atividades agrícolas, demonstrando a percepção indígena de que as mulheres como únicas provedoras da vida, seriam melhores em prover o alimento, pelo contato sagrado com a terra e questão da fertilidade. A poligamia também era condenada, visto que a poligamia masculina era aceita como normal e curiosa, entretanto a poligamia feminina era cruelmente repudiada e condenada. Em relação a antropofagia, era papel das mulheres cuidar e tratar dos prisioneiros a serem executados e servidos como refeições. Ato totalmente condenado pela igreja católica e pelos seus discípulos. Essa visão ressalta a estranheza frente ao que é diferente, a mesma relação que os ibéricos mantiveram com os povos nativos e com a natureza. Ao não reconhecer alguém como igual, o dominante se vê no direito de controlar “o outro” e fazer o que lhe convém, fato esse que se aplica às mulheres, sempre subordinadas ao homem e vistas como um simples complemento e não como fator central. Outro estranhamento era o da finalidade da “entrega das mulheres indígenas para os estrangeiros” em que a real finalidade era a de ampliar a população masculina, pois o homem que morava na casa dos pais da mulher, e dessa forma o homem responsável pela caça, pesca e busca de alimentos tinha o dever em mimar a esposa e em consequência a família da mesma, inclusive o pai. A sociedade indígena era caracterizada pela reciprocidade de bens, dons, de entrega de si. Uma sociedade marcada pelo bem mutuo, pela igualdade de representações. Tal forma de sociedade escapava ao entendimento europeu, calcado nas concepções positivistas, marcadas, principalmente pela escravidão e total retirada da natureza. Até metade do século XX, os filósofos e grande parte das pessoas, não se incomodavam com o uso do “homem” para fazer referência a todos os humanos. No entanto, esse uso não é tão inocente, pois ressalta o modelo masculino pensado por homens, no qual a mulher surge como diferente, inessencial e exótica. Quando se fala na dicotomia homem/mulher é tratada a parte biológica, diferentemente do masculino/feminino, que apresenta uma carga cultural elevada, ligada a ideologias e representações dos papéis de gênero. A visão europeia remonta a uma tradição ocidental de pensamento que tem suas origens na filosofia grega, nesta pode-se observar a anulação ou inferiorização da mulher como ocorre nas obras de Aristóteles e Platão. Nessa estrutura a mulher é analisada face a um padrão masculino, pois o masculino representa o humano e a mulher por divergir é considerada inferior. Um outro exemplo dessa herança seria Freud que em seus escritos mostra como o filão platônico e aristotélico se preservou; em uma de suas obras, Novas Conferências sobre a Psicanálise (1932-1936), analisa como a libido age de uma forma diferente em homens e mulheres, explorando as características do ser feminino. Este enxerga na mulher o desejo de ser amada, vaidade com o corpo, narcisismo e um menor sentido de justiça. Ou seja, a mulher tem menos interesse social, menor propensão ao engrandecimento e sua evolução acaba mais cedo. A retomada da concepção de feminino sagrado através da relação direta entre mulher e natureza: o Ecofeminismo na América Latina. Transportando-nos para uma história mais recente, nasce na década de 1970 dentre as diversas correntes feministas surgidas no século XX - o movimento ecofeminista, que tem como objeto principal de crítica a atuação das estruturas do patriarcado como impositoras de uma relação de subordinação não apenas da mulher, mas também da natureza e dos recursos naturais perante ao homem, sob um ideal de progresso que se vale necessariamente da dominação. O movimento pretende, assim, colocar os seres viventes em pé de igualdade e dignos de igual respeito à vida, ou seja, uma visão de reciprocidade entre os seres, e para isso tanto o feminismo como a ecologia se fazem necessários pois foram a mulher e a natureza, de acordo com essa visão, os que mais sofreram com os impactos do patriarcado. O Ecofeminismo se divide em diferentes correntes, e ganha espaço na América Latina a partir da década de 1990 através de uma corrente denominada “espiritualista”, dado que ela primeiramente se propaga nesse espaço através de mulheres oriundas de movimentos político-teológico-sociais como a Teologia da Libertação, que trazia fortemente a questão da luta de classes para o campo teológico. Essa associação permitiu que a abordagem feminista se adequasse a um ambiente com contexto e reivindicações diferentes das colocadas pelas linhas feministas do Norte, e inclusive permitindo que a crítica seja feita a nível mais amplo, visto que as relações de dominação entre Norte e Sul globais também podem ser enquadradas num contexto patriarcal. Além disso, o ecofeminismo ao nascer no seio da Teoria da Libertação dá margem a uma reflexão sobre como atua a estrutura patriarcal também nas ideologias de esquerda e cristãs. Um dos pilares do ecofeminismo na América Latina é então, trazer à tona uma nova cosmologia, baseada em geral na “Hipótese Gaia”, de que a Terra é um ser vivo, com seus próprios ciclos e alterações. Dessa forma, com a imposição de um modelo androcêntrico de organização de sociedade, além da marginalização da mulher está a marginalização das antigas divindades femininas e a dessacralização da natureza, promovendo uma quebra na relação simbiótica e de respeito entre a sociedade e a natureza, que antes era tida em sociedades como a Inca, por exemplo, como a “Grande Mãe” (Pachamama), doadora da vida, personificada em diversas figuras de deusas cultuadas em culturas ancestrais. O ecofeminismo promove, então, um retorno a essa ideia de natureza sagrada a partir da própria corporalidade e genitalidade da mulher como sagradas, visto que há a concepção de igualdade e interdependência entre todos os seres e, portanto, sendo necessário um resgate da valorização do corpo feminino como doador da vida, bem como a Terra, livre de objetificações, culpabilização ou mesmo perseguição. A vida em sua totalidade e diversidade seria vista então como “um único corpo sagrado” (MENDOZA). Partiria então das mulheres uma desconstrução de papéis socialmente impostos a elas pelo patriarcado, o que diz respeito diretamente a sua corporalidade e consequente sexualidade, assim como a construção de uma nova concepção de corpo feminino capaz de ser curadora e doadora de vida não só no sentido tradicional da concepção. Isso leva a uma retirada do corpo feminino de um terreno obscuro onde o prazer e a sexualidade feminina são condenados, e coloca-o em um ambiente de autoconhecimento e integrado à esfera espiritual. Tornam-se indissociáveis na expressão dessa corrente na América Latina a relação entre natureza, sociedade e o sagrado - uma nova maneira que relaciona atualidade e ancestralidade, e por isso vai além das formas de teologia tradicionais, que muitas vezes mantém estruturas de dominação. Na última década vem ganhando ainda mais força um movimento de preceitos alinhados com o ecofeminismo chamado comumente de “Sagrado Feminino”. Dentre as práticas utilizadas para a retomada desse sentido sagrado do próprio corpo e sua relação com a natureza, está o estudo da ginecologia natural, de métodos naturais de cura e de contracepção, o resgate do estudo dos ciclos menstruais alinhados com ciclos lunares, tendo esse movimento contido em si não só um impulso pela maior integração com os ciclos de Gaia, mas também uma crítica ao consumismo exacerbado e a industrialização que também prejudica a saúde das mulheres através de alimentos, medicamentos, produtos de higiene básica e cosméticos. As políticas públicas sul-americanas e o empoderamento feminino “As desigualdades econômicas, sociais e culturais, as exclusões econômicas, políticas e sociais, o autoritarismo que regula todas as relações sociais, a corrupção como forma de funcionamento das instituições, o racismo, o sexismo, as intolerâncias religiosa, sexual e política não são consideradas formas de violência, isto é, a sociedade brasileira não é percebida como estruturalmente violenta e por isso a violência aparece como um fato esporádico de superfície” (CHAUI, 1998) E pensar que em pleno século XXI a discussão sobre o papel da mulher reflete uma posição de luta pela igualdade... E pensar que o feminismo AINDA é necessário... É nesse contexto-histórico apresentado em que se faz necessário pensar, criar e agir em prol dos direitos das mulheres. As políticas públicas são um dos aportes políticos possíveis que tentam equacionar os problemas estruturais incrustado numa sociedade baseada fortemente pelo papel de dominação e poder do homem. Basta olhar ao redor e perceber a assustadora realidade que afasta os sexos em quaisquer que sejam as dimensões. Trate-se de uma questão cultural, construída socialmente e historicamente, da qual vem sendo replicada e modificada, cada qual para seu grupo indenitário. Apesar de as mudanças e avanços, no que tange o papel da mulher na sociedade contemporânea, de fato acontecerem, longo e árduo é o caminho para designação de equidade e igualdade social. No caso dos países latino-americanos, uma série de indicações e sugestões foram apresentadas, porém pouco vem sendo feito. As incorporações das políticas assumidas nos últimos tempos, apesar de poucas, surtem grande efeito na população feminina, pois representa uma forma de contestação e passos lentos para a tentativa de mudança. Entretanto, as poucas políticas públicas ainda comportam-se de maneira setorial ou se restringe a cada país, passam longe o aspecto integrador e regional que viria a fortalecer a questão. Até mesmo quando se procura literatura no âmbito da academia, pouco se encontra a escala latino-americana. Contudo, há casos e experiências que podem ser levantados. Uma delas foi a chamada Convenção do Belém do Pará, que ocorreu em 1994 no Brasil. Trate-se de um tratado internacional adotado pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, que tem por objetivo o combate da violência doméstica contra a mulher. Apesar de não estabelecer uma lei direta em materia de direito, constitui e cria reais condições para o rompimento dessa estrutura pautada na violência em todo mundo, servindo de base para as leis específicas sancionadas em cada país posteriormente, sobretudo nos países latino americanos (Convenções e Tratados Internacionais, 2012; CIDH, 199?) O documento conta com cinto capítulos da qual vale ressaltar o artigo primeiro: “Entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada” (CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ, 1994) É interessante notar como a questão da violência não mais se restringe ao contato físico, mas entende-se a complexidade da questão alargando conceitos para uma ideia mais completa. O encontro ocorre um ano após a Conferencia Mundial dos Direitos Humanos realizado em Viena, da qual a questão de gênero fora amplamente discutida e considerada. A partir da Convenção de 94, o consórcio de Organizações Não Governamentais (ONGs) feministas e a Secretaria de Política para as Mulheres (SPM), conjuntamente propuseram a Lei, que ficou popularmente conhecida como Maria da Penha, aprovada em 2006, no Brasil (BANDEIRA & ALMEIRA, 2015). Segundo Bandeira e Almeida (2015), no ano de 2007 o Comitê Cedaw “prescreveu o dever da República Federativa do Brasil de estruturar os juizados especializados no combate à violência contra a mulher, preconizados pela LMP, em todos os estados e no Distrito Federal”. Apesar da aprovação da lei em 2006, o retrospecto político- institucional não era dos melhores. O Brasil, dentre os 16 signatários da Convenção de Belém do Pará, era um dois e únicos países que não aprovaram alguma lei específica de combate à violência doméstica contra as mulheres, ainda que a o evento tenha tido como sede o país (ANDRADE, 2003). Os demais países latino-americanos avançaram em dispositivos legais não apenas com relação a problemática da mulher, mas também na violação contra crianças e idosos e no tocante as questões de gênero. Todas estimuladas e ratificadas a partir da Convenção. Deste modo, a Andrade (2003) expõe essa ocorrência como uma dívida até pouco tempo não paga, visto que muito foi dito e pouco foi posto em prática. Mas talvez a maior expressão de esforço voltado para a defesa da mulher, em âmbito regional, seja a criação de um grupo no MERCOSUL. No Final de 2011, foi criado a Reunião de Ministras e Altas Autoridades da Mulher do MERCOSUL (RMAAM). Duas vezes ao ano, o grupo composto pelas representantes dos Estados membros do MERCOSUL encontram-se para discutir medidas pela promoção da igualdade de gênero, tendo um aspecto marcante o fortalecimento das mulheres nos organismos públicos que discute e tentam maximizar as políticas direcionadas ao público feminino. Em relação à estrutura da RMAAM, são compostas por dois grupos de trabalho: a Mesa Técnica sobre Violência de Gênero e a Mesa Técnica sobre Gênero, Trabalho e Integração Econômica. Entre os anos de 2009 e 2012, inicia-se a execução do “Fortalecimento da Institucionalidade e da Perspectiva de Gênero no MERCOSUL”, projeto financiado pela Agencia Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento. O projeto busca a democratização do processo de integração regional, após as discussões realizadas pelas ministras durante as reuniões do RMAAM e através dos grupos de trabalhos citados (SANTOS, 2012). Em 2015, durante o 6º encontro, realizado no Brasil, novamente a autoridades inovam ao aprovarem recomendações sobre gênero e educação não sexista, que tem por ideia, na área educacional, aumentar a participação dos cursos de exatas, tecnologia e de inovação nessas questões, na tentativa de aumentar e disseminar o direito ao conhecimento sobre este tópico (PORTAL BRASIL, 2015). Além das ações no meio político formal, algumas celebrações também marcam o interesse do enfrentamento da mulher no dia a dia. No dia 25 de julho ocorre o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, criado em 1992 na República Dominicana. A data é considerada um marco internacional da luta e resistência da mulher negra nos países da América Latina. Caracteriza-se como umA forma de empoderamento feminino na atual sociedade, a partir do avanço na participação das mulheres em postos altos do país. A data foi celebrada e confirmada a durante o primeiro Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-caribenha (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2013). Como se pode perceber, de fato houve uma ampliação do entendimento e da problemática da posição das mulheres no que tange direitos sociais, políticos e econômicos. Todavia, apesar das melhorias encontradas em vários países da América Latina, a realidade demonstra como o aporte político e institucional ainda é frágil e fragmentado. Além de ser considerado “pequeno” se comparado às dimensões do enfrentamento da discriminação e do sexismo. Há muito que evoluir. Ampliar parcerias é um dos passos que levam à visibilidade da questão. Entretanto, há de se esforçar mais para as recomendações entrarem no plano da ação e execução. As políticas públicas ainda são poucas, e devem ser julgadas sobre sua eficácia e eficiência. Devem chegar às áreas remotas e ser difundida em mesmo grau para as todas as regiões, sejam elas centrais, sejam elas periferias. E uma das questões mais importantes, deve ser publicizada para que todas e todos tenham conhecimento do debate sobre gênero. Para que a opressão, seja ela de gênero, racial ou étnica, deixe de ser tida como normal. REFERÊNCIAS BIBILIOGRÁFICAS ANDRADE, A. (2003) Violência doméstica contra crianças e adolescentes. Prevenção, repressão e proteção à vítima no âmbito brasileiro e latino-americano. Revista de Informação Legislativa, n. 160, Distrito Federal. BANDEIRA, L.; ALMEIRA, T. (2015) Vinte anos da Convenção de Belém do Pará e a Lei Maria da Penha. Rev. Estud. 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