Anais2snml

Transcrição

Anais2snml
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Realização:
Núcleo de Pesquisa Marxista (NPM / UEG)
Grupo de Pesquisa Dialética e Sociedade (GPDS/ UFG)
Núcleo de Pesquisa e Ação Cultural (NUPAC)
ISSN:
Diagramação:
Mateus Vieira Orio
Capa:
Adriana Mendonça
Todos os textos são de exclusiva responsabilidade dos autores.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
2
Luta de Classes e Contemporaneidade
Comissão Organizadora:
Adriano José Faria Borges
Cleito Pereira dos Santos
Diego Marques Pereira dos Anjos
Edmilson Ferreira Marques
Erisvaldo Souza
Hugo Leonardo Cassimiro
Jaciara Reis Veiga
João Gabriel da Fonseca Mateus
José Santana da Silva
Lisandro Braga
Lucas Maia
Marcos Augusto Marques Ataídes
Marcus Vinícius Costa da Conceição
Mateus Vieira Orio
Nerivaldo Pimenta
Nildo Viana
Veralucia Pinheiro
3
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Sumário
Apresentação...................................................................................................................................................7
Programação ...................................................................................................................................................8
Simpósio Temático 1: A educação, a luta de classes e a violência na sociedade
contemporânea ........................................................................................................................................... 10
Pedagogia Libertadora: o discurso ideológico de Paulo Freire – Eliane Maria de Jesus ................. 11
Reformismo ou revolução? Leninismo na ciência brasileira, na perspectiva da educação –
Marcello Cavalcanti Barra .............................................................................................................................................. 21
A condiç~o “des-humana” da mulher na sociedade de classes – Gerusa de A. Ribeiro Oliveira .... 39
Identidade política e luta de classes no âmbito da educação – Kamylla Pereira Borges.................. 45
Educação superior no Brasil uma retrospectiva – Francielly Cristina Moreira de Oliveira............. 55
Reestruturação produtiva e trabalho docente – Renato Gomes Vieira .................................................. 62
As pesquisas sobre o infanticídio no Brasil e a questão da categoria de análise classe social –
Veralúcia Pinheiro ...................................................................................................................................................... 63
Políticas e reformas da educação no Brasil – Rafael Moreira do Carmo .................................................. 70
Educação contra a barbárie: Reflexões acerca de Adorno sobre a autonomia no ensino na
Sociedade Contemporânea – Alberto Alves Silva ............................................................................................ 78
Trajetória individual: Movimento estudantil e capital cultural – Maria Angélica Peixoto............. 79
Simpósio Temático 2: Emancipação humana e as articulações entre as lutas sociais ....... 90
A territorialização dos indivíduos no local de trabalho: um estudo de caso da empresa casas
bahia s/a – Natália C. dos Santos Pessoni e Vinicius de Souza Ribeiro ....................................................... 91
Lutas sociais e políticas públicas de saúde – Roseli M. Tristão Maciel .................................................101
Cidadania ou emancipação social? – José Santana da Silva ......................................................................107
As consequências do Estado de bem-estar social para o movimento dos trabalhadores na
luta pela emancipação humana: elementos para o debate – Fernando Araújo Bizerra ................108
Crise de acumulação e movimentos sociais: insurreições a partir da década de 1960 e crise
do regime de acumulação intensivo-extensivo – Mateus Vieira Orio ...................................................119
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
4
Luta de Classes e Contemporaneidade
Trabalhadoras domésticas: desrespeito social e luta por reconhecimento – Élen Cristiane
Schneider......................................................................................................................................................................127
Impactos das populações tradicionais sobre a expansão territorial do capital: resistências e
lutas sociais na Amazônia – Naurinete Fernandes Inácio Reis e Genivaldo Fernandes Inácio ..... 136
Simpósio Temático 3: Marxismo e cultura ......................................................................................145
A essência contrarrevolucionária do pós-estruturalismo – Nildo Viana.............................................. 146
Cultura e combatividade nos artigos de Leandro Konder no Jornal do Brasil (2002-2009)–
João Paulo de Oliveira Moreira .................................................................................................................................. 156
Lukács e o Expressionismo: apontamentos sobre alguns problemas de estética marxista –
Alberto Luis Cordeiro de Farias ................................................................................................................................. 164
Cinema e Lutas Culturais: As críticas sociais nas mensagens fílmicas do documentário
contemporâneo Da servidão moderna – Jean Isídio dos Santos ................................................................ 170
Rádio e Cultura – Edmílson Marques.................................................................................................................171
Utopia, imanência e teleologia no pensamento marxista. – Álvaro Ribeiro Regiani ....................... 172
Revitalização autônoma? O significado da arte em grafite nas paisagens do bairro do Recife
em Recife – PE – Thiago Santa Rosa de Moura ..............................................................................................181
Simpósio Temático 4: Anarquismo: prática e teoria ....................................................................191
O Coletivismo na Primeira Associação Internacional dos Trabalhadores: Para Que Serve o
Estado? – Erisvaldo Souza ........................................................................................................................................... 192
Élisée Reclus e o conceito de “evoluç~o”: margens para uma (re) interpretaç~o – João
Gabriel da Fonseca Mateus .......................................................................................................................................... 203
A importância da organização: Errico Malatesta e seu programa revolucionário – Deivid
Carneiro Ribeiro ........................................................................................................................................................212
Abordagens do anarquismo: mediando a realidade no século XXI – Bruno Augusto de Souza . 213
Marx Anarquista? – reflexões sobre as possibilidades de um Marxismo Libertário - Mariana
Affonso Penna .............................................................................................................................................................222
Considerações do princípio anarquista de Kropotkin, até os dias de hoje - Aroldo Pedreira
Barbosa da Silva ............................................................................................................................................................... 223
Lumpemproletarização e Luta de Classes na Argentina – Lisandro Braga ......................................... 229
A teoria do valor-trabalho e a constituição do valor: as classes sociais na teoria de Marx –
Lucas Maia...................................................................................................................................................................246
5
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
O Estado na perspectiva de Kropotkim – Marcos Augusto Marques Ataides ...................................... 254
Simpósio Temático 5: As classes sociais na modernidade tardia: abordagens
empíricas e proposições teóricas........................................................................................................255
O surgimento das classes sociais e as consequências maléficas na sociedade capitalista –
Ednahn Veríssimo Andrade Silva .............................................................................................................................. 256
O fio de Ariadne: Cultura e classes sociais no labirinto da pós-modernidade – Glauber Lopes
Xavier ............................................................................................................................................................................262
Minaçu-GO: uma cidade para o capital no olho do furacão – Fábio de Macedo Tristão
Barbosa................................................................................................................................................................................. 272
Perspectivas anarquistas na abordagem da natureza no século XXI – Rubens Elias Santana
Morais.................................................................................................................................................................................... 282
Simpósio Temático 6: Marxismos e cristianismos da libertação na América Latina ........288
O conceito “opç~o preferencial pelos pobres” nas teologias de libertaç~o da América Latina
– Helio Aparecido Teixeira ........................................................................................................................................... 289
A juventude da Teologia da Libertação – Flávio Munhoz Sofiati .............................................................. 300
A Teologia da Libertação e sua teoria marxista na insurgência armada colombiana –
Mauricio José Avilez Alvarez ......................................................................................................................................................... 322
Masculinidade e corporeidade a partir de uma perspectiva teológica – Ezequiel de Souza ....... 333
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
6
Luta de Classes e Contemporaneidade
Apresentação
Em sua segunda edição, o Simpósio Nacional Marxismo Libertário discutirá a temática
das lutas de classe e contemporaneidade. Trata-se de um esforço teórico e metodológico
daqueles que se posicionam no campo do marxismo original, em contraposição ao leninismo e
seus derivados – stalinismo, trotskismo, maoísmo, etc. - resgatando autores tais como
Pannekoek, Korsch, Ruhle, Mattick, Gorter, dentre tantos outros, que colaboraram e
permanecem atuais ao debate acerca do capitalismo, da exploração, das lutas operárias, dos
conselhos operários, da luta pela emancipação, da autogestão social etc.
Ao contrário de determinadas ideologias que apontam para o fim da história e o
desaparecimento das lutas de classes, verifica-se nas últimas décadas o ressurgimento do
marxismo libertário como teoria capaz de contribuir para a compreensão das mudanças
recentes do capitalismo e das lutas de classes no seu interior. Nesse sentido, o II Simpósio
Nacional Marxismo Libertário se apresenta como um espaço de debates, crítica, alternativas
ao estabelecido. Os temas recorrentes na contemporaneidade, o capitalismo e suas
contradições, as lutas de classes e suas ambigüidades; esperamos que os diversos temas que
perpassam a realidade social das sociedades atuais sejam discutidos nos seminários
temáticos, nos minicursos e debates.
7
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Programação
Dia 09:
08:00 - 11:00:
Conferência de abertura:
Acumulação Integral e Luta de Classes
Nildo Viana/UFG.
14:00 - 18:00:
Seminários Temáticos.
Dia 10:
08:00 - 11:00:
Mesa Redonda:
Limites e Pontencialidades das Lutas Sociais Contemporâneas:
José Santana/UEG
José Carlos Mendonça/UFSC
Alexandre Samis/Colégio Pedro II – RJ
14:00-18:00:
Minicursos.
Dia 11:
08:00-11:00:
Conferência de encerramento:
A Luta de Classes na Argentina Contemporânea
Adrián Lopez/Universidade de Salta/Argentina
14:00 - 16:00:
A perspectiva do evento:
Tendências Libertárias: Breves Exposições.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
8
Luta de Classes e Contemporaneidade
16:00 - 18:00:
Debate aberto:
Relatos e experiências da luta de classes.
18:00:
Confraternização.
9
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
SIMPÓSIO TEMÁTICO 1
A EDUCAÇÃO, A LUTA DE CLASSES E A VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA
Coordenadoras:
Veralúcia Pinheiro
Doutora em Educação/Unicamp e professora na UEG.
Dulce Portilho
Doutora em História/UFF e professora na UEG.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
10
Luta de Classes e Contemporaneidade
Pedagogia Libertadora: o discurso ideológico de Paulo Freire
Eliane Maria de Jesus1
Resumo: A presente proposta tem como objetivo apresentar a proposta pedagógica de Paulo
Freire visto e chamado por muitos de “o educador popular”, mostrando que este possui em
suas obras um discurso emancipatório, onde enquanto participante do movimento de
educação popular, este defendia a alfabetização das massas, por acreditar que por meio do
processo de alfabetização estes poderiam se libertar. De forma que Freire cria a ideia de que
depois de alfabetizados poderia ser garantido o acesso de todos à educação, onde os
indivíduos teriam a oportunidade de se tornarem cidadãos participativos o que para Freire
era um passo fundamental para a transformação social. Este estudo pretende mostrar que na
verdade a proposta pedagógica de Freire apenas possibilitava aos indivíduos uma adequação
a realidade existente, integrando-os simplesmente a presente sociedade.
Palavras-chave: Pedagogia libertadora, alfabetização e transformação social.
Não se tem aqui a pretensão de neutralidade quanto a esta análise, uma vez que, a
própria ideia de neutralidade é em si uma ideologia2, já que sua execução é impossível, pois
quem analisa o faz sob determinado olhar, e neste trabalho não seria diferente. Partimos de
uma perspectiva, ou seja, de uma escolha metodológica, portanto, a análise da proposta
pedagógica de Paulo Freire será realizada à luz desta perspectiva.
Utilizou-se aqui o método Materialismo Histórico-dialético. Enquanto teoria este busca
analisar os fatos partindo de um ponto de vista, que é o que utilizamos aqui, ou seja, o ponto
de vista do proletariado, que é a classe que possui o interesse de revelar a exploração e
efetivar a transformação social. Entendendo que existe uma classe que tem como interesse
ocultar a exploração, ou seja, a classe burguesa, enquanto a classe que é vitima dessa opressão
tem o interesse de revelá-la, que é o proletariado, a classe revolucionária.
Este ponto de vista, é que permite flexibilidade no desenvolvimento deste trabalho,
submetendo o objeto a ser pesquisado, a uma análise que busca revelar aquilo que não está
em evidência. Sem aceitar as informações por elas mesmas, mas questionando sempre aquilo
que é dado como verdadeiro, tornando possível então explicar o existente, ou seja, busca
compreender a realidade.
1Graduada
em Pedagogia pela Universidade Estadual de Goiás (UEG-Uruaçu).
A ideologia pode ser definida resumidamente como falsa consciência sistemática. Ela é falsa consciência por
estar ligada aos interesses da classe dominante, que não pode revelar a verdade, deve ocultá-la. A classe
dominante não pode revelar seus interesses, a exploração, a dominação [...] (VIANA, 2010, p. 23).
2
11
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
A divulgaç~o do “Método Paulo Freire” de alfabetizaç~o, seu sucesso e apoio recebido
do governo populista3 da época, não pode ser visto como um fato qualquer. Toda ação
pressupõe certa intencionalidade. Existe aquela intenção declarada, e existem aquelas que
somente com uma análise aprofundada, podem ser percebida, o que poderá dizer quais das
intenções prevalece. Certo é que, o simples fato de ter intenções não reveladas, já nos remete
à possibilidade de algo ser ocultado, ou distorcido, por ter em si, valores que não devem
aparecer, exceto, para aqueles a quem essas concepções interessam, e que apóiam a
disseminação de certas ideias, cabendo então aqueles que de fato, possuem interesse na
verdade, revelá-la.
Desde o início de sua aparição no campo da educação, Freire mostrou-se preocupado
com a situação das massas, tendo em seu método de alfabetização de adultos a solução para
que essas massas excluídas participem das decisões da sociedade. Assim, o educador
pernambucano entendia o processo de alfabetizar como necessário para inserir o povo em
uma realidade, que já o havia antes excluído.
“[...] era urgente uma educaç~o que fosse capaz de contribuir para aquela
inserção a que tanto temos nos referido. Inserção que, apanhando o povo da
emers~o que fizera com a “rachadura da sociedade”, fosse capaz de promovêlo da transitividade ingênua a crítica. Somente assim evitaríamos a sua
massificaç~o” (FREIRE, 2007, p. 115, grifo nosso).
Observa-se que sua proposta era de inserir o povo na sociedade, que ele entendia como
sendo um instrumento necessário para passá-lo de uma situação de ingenuidade para uma
posição crítica. É interessante observar, que quando se fala em inserção, se refere, a inserir
algo que estava fora, a um determinado contexto ou lugar. Uma vez que Freire fala de inserir
esses grupos na sociedade, ele está justamente dizendo sobre a importância de inserir estes
na sociedade capitalista, que é a sociedade existente, adequando os sujeitos às condições da
mesma.
O fundamental nessa sociedade é o modo de produção, por isso o que se espera, é que
os indivíduos nela inseridos, produzam, para que os capitalistas apropriem dessa produção
que acaba por enriquecer os capitalistas, levando a população a níveis cada vez mais intensos
O governo da época era um governo populista, o que também caracterizava esse período era o surgimento dos
movimentos de educaç~o popular. Segundo Freire “[...] antes do golpe de 64 havia uma presença popular que
inclusive explicava e justificava os governos populistas que tivemos” (FREIRE, 1998, p. 63).
3
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
12
Luta de Classes e Contemporaneidade
de exploração. O que ocorre é que no processo de produção e consumo, existem aqueles que
ficam fora deste círculo. Nesse sentido, uma das necessidades premente do capitalismo é que
estes devem, portanto, serem inseridos nessa dinâmica, ou seja, ser encaixados dentro da
sociedade capitalista, onde cada qual ocupa um lugar específico, de acordo com as posições
que possuem que é, uma posição de classe.
Freire trata da questão das classes sociais4, apontando a classe oprimida e classe
opressora, contudo, não expressa o fato de que essas classes vivem em conflito, contrário a
isso sugere alianças entre esses dois grupos, como se fosse possível aquele que é oprimido se
aliar aquele que o oprime. Ao fazê-lo oculta a verdadeira intenção dos opressores, e o papel
dos dominados na luta, delegando esse papel a liderança revolucionária.
Portanto, quando se argumenta a necessidade de inserção, nessa sociedade, o que de
fato ocorre, mas, que o discurso não diz, é a necessidade de buscar adequar esses sujeitos as
às condições de exploração dessa sociedade, ou seja, inserir aqueles que estão fora das
relações de produção. Trata-se justamente, da dinâmica de funcionamento do modo de
produção capitalista, onde existe uma minoria que domina, e uma grande maioria que é por
ela dominada.
Para Freire (1997) uma das tarefas fundamentais da educação popular que fosse
também progressista, era de inserir os grupos populares no movimento de superação do
senso comum. Cabe aqui um questionamento: se o objetivo da educação era inserção, onde
estaria a transformação social tão defendida por Freire. Pensar inserir as classes excluídas
não resolveria os problemas dessa classe, já que conscientizar o povo da realidade em que se
encontravam, apesar de um passo importante, não era suficiente se estes permanecessem em
uma situação de miséria.
É interessante observar que a educação popular refere-se a uma educação para o povo,
voltada diretamente para os grupos excluídos da sociedade, mas, apesar de ser uma educação
dirigida ao povo, não muda o fato de que independente da denominação, a educação nesta
sociedade dá-se de maneira desigual. A questão é que os educadores, sendo os que educam,
foram, eles mesmos, formados com a inculcação de determinados valores desta sociedade e
reproduzirão estes mesmos valores na prática educativa.
Refere-se aqui as classes fundamentais do capitalismo: burguesia e proletariado. Para uma leitura mais
detalhada de classes sociais, ler “As classes sociais em O Capital” de Lucas Maia.
4
13
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Os valores dominantes são aqueles valores que correspondem aos interesses
da classe dominante e, portanto, servem para regularizar as relações sociais.
Eles “transformam em virtude” aquilo que é, para a reproduç~o de uma
determinada sociedade de classes, uma necessidade. Sendo assim, estes
valores são particularistas, históricos, transitórios, inautênticos. Eles são
históricos e transitórios porque tão logo ocorra uma transformação social são
substituídos por outros valores (sejam eles dominantes – ou seja,
fundamentados em uma nova forma de dominação de classe – ou não). Eles
são particulares devido ao fato de que representam os interesses particulares
da classe dominante (VIANA, 2007, p. 34).
O autor coloca que os valores dominantes, são os valores das classes dominantes.
Assim, uma vez que os educadores também foram educados nesta e para esta sociedade, em
sua maioria, buscarão reproduzir estes valores. Assim, no processo educativo das classes
oprimidas, tendem a inculcar neles estes valores, logo, constrangendo-os a aceitar esta
sociedade e não pensar na transformação social.
Sobre isso Rossi afirma que é papel da escola no capitalismo:
[...] fornecer a todos os indivíduos informações suficiente para orientarem seu
comportamento na sociedade [...] aos jovens das classes “subalternas”, caberlhe-á para ter garantido sucesso (escolar inicialmente, e social depois) repetir,
receber e preservar a cultura e os valores da sociedade, dos quais, depois de
“culto”, se tornar|, a partir do lugar que lhe couber na ordem social, um dos
depositários (ROSSI, 1980, p. 26-27).
Como colocado por Rossi na citação acima, as escolas vêm para conduzir os indivíduos,
inserindo-os na sociedade. Com o discurso de formar indivíduos críticos, o que ela faz na
verdade é inculcar nos educandos, a cultura, a ideologia, enfim, os valores dominantes5, sendo
este processo, exatamente o que determinará o lugar destes nesta sociedade, lugar este, ao
qual eles são conduzidos através da educação.
Dentro do capitalismo, abaixo do discurso de educação para todos, para
conscientização, ou libertação, repousa a verdadeira intenção da escola, que com seu caráter
de seletividade, acaba por determinar o lugar que cada indivíduo deve ocupar dentro da
sociedade. Submetendo-os ao seu julgamento, os conduz, cada qual ao seu lugar:
A escola pretende fragmentar a aprendizagem em matérias, construir dentro
do aluno um currículo feito desses blocos pré-fabricados e avaliar o resultado
em âmbito internacional. As pessoas que se submetem ao padrão dos outros
para medir seu crescimento pessoal próprio, cedo aplicarão a mesma pauta a
Para uma leitura mais detalhada sobre os valores nesta sociedade, ler o livro “Os valores na sociedade moderna”
de autoria de Nildo Viana.
5
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
14
Luta de Classes e Contemporaneidade
si próprios. Não mais precisarão ser colocados em seu lugar, elas mesmas se
colocarão nos cantinhos indicados; tanto se espremerão até caberem no
nicho que lhes foi ensinado a procurar e, neste mesmo processo, colocarão
seus companheiros também em seus lugares, até que tudo e todos estejam
acomodados (ILLICH, 1973, p. 77).
O papel da educação enquanto reprodutora do ideal burguês é tão forte que acaba por
convencer aqueles que a ela tem acesso, de que este é o melhor, senão o mais eficaz modelo de
educação, o que reflete a ideologia que esta reproduz. E enquanto aparecem intelectuais, com
o discurso de que a educação forma para a conscientização, bem como para a transformação
social, o que percebemos é que na verdade as escolas:
[...] instrumentam a dominação e exploração da classe trabalhadora pela
classe dominante, contribuindo, quer a um nível concreto, quer a um nível
ideológico, para a manutenção, expansão e reprodução das relações sociais de
produção capitalista (ROSSI, 1980, p. 24).
Entende-se aqui que a educação na sociedade capitalista, serve à reprodução constante
de valores, cultura, modo de ser, dessa sociedade. O que contrapõe com os objetivos que os
profissionais da educação declaram almejar através da escola, bem como, com as ideologias
de alguns ideólogos sobre ela quanto a um espaço de transformação social, discurso que
perpetua, o “falso princípio da educaç~o” no capitalismo, no qual o discurso é um e na pr|tica
as coisas são totalmente diferentes. Insiste-se no discurso de que a escola é o espaço mais
importante para a obtenção de conhecimentos, sobre isso Illich afirma que:
A maior parte dos nossos conhecimentos adquirimo-los fora da escola. Os
alunos realizam a maior parte de sua aprendizagem sem os, ou muitas vezes,
apesar dos professores. Mais trágico ainda é o fato de que a maioria das
pessoas recebe o ensino da escola, sem nunca ir à escola (ILLICH, 1973, p. 62).
A própria ideia de senso comum, presente na citação de Freire, expressa o seu
interesse enquanto ideólogo, em desprezar o pensamento daqueles que não estão inseridos
nas relações de produção para o processo de transformação social. O senso comum pressupõe
aquelas pessoas, cujo pensamento, destoa ou não compartilha dos saberes existentes na
academia ou na escola. E nesse sentido, evitarão falar de classes sociais, transformação social,
exploração, opressão etc. Observa-se que os momentos em que Paulo Freire faz esta
discussão, o faz a partir da ideologia do partido, no sentido que a classe explorada, pelo fato
de não possuírem uma consciência revolucionária, é preciso alguém, um partido, para lhe
inculcar esta consciência.
15
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Dessa forma, a oposição entre ciência e senso comum serve, em primeiro lugar
[...] para legitimar o saber científico, dotá-lo de status de superioridade sobre
o saber popular. O saber verdadeiro é produzido pelas camadas intelectuais
em nossa sociedade. Ao legitimar o saber científico, deslegitima-se o saber
popular (VIANA, 2008, p. 18, grifo do autor).
Por isso o discurso ideológico que prevê a inserção do povo na sociedade capitalista,
declara que buscava aí uma superação do senso comum. Este ponto de vista nada mais está
querendo expressar do que a ideia que o saber popular não tem valor nenhum para a
sociedade burguesa, e deve aderir ao verdadeiro saber, ou seja, o saber burguês, sendo o
conhecimento popular, portanto, desqualificado, e em substituição propõe o conhecimento
repassado pela escola. No capitalismo o saber que deve prevalecer é aquele adotado pela
classe dominante, cujo objetivo é conformar a classe dominada à condição de dominação que
lhe é determinada.
Nesta perspectiva, o inserir o povo, apontado por Freire como sendo fundamental,
demonstrava sua íntima ligação com a sociedade burguesa como, por exemplo, a ideia de
inserção através do direito ao voto6, uma vez que após alfabetizados estes teriam direito de
votar. Nesse sentido, através de seu método de educação seriam formados novos eleitores,
que teriam o direito de escolha de seus representantes, o que explica o apoio recebido pelo
governo da época, que apóia a criação de vários programas de alfabetização como apontado
no capítulo anterior.
A luta pela extensão do direito de voto e a ampliação gradual deste direito
ocorreu simultaneamente com a formação dos partidos políticos. Na verdade,
a classe dominante não permitiria uma extensão do direito de voto sem uma
garantia de que esse direito adquirido não pudesse subverter a ordem. Desta
forma, o sistema eleitoral expandiu o direito de voto mas, ao mesmo tempo,
criou novas instituições “representativas” para realizar uma mediaç~o
burocrática entre eleitores e estado (VIANA, 2003, p. 50).
Como observado por Viana, o direito ao voto não se deu ocasionalmente. A classe
dominante procurou manter a ordem por meio dos partidos políticos, e a ordem da qual
estamos nos referindo é a ordem burguesa, tendo instituições para mediar o diálogo entre
eleitores e o estado. O voto é uma estratégia do estado para amortecer a luta de classes, no
sentido de levar a população a delegar a outro o controle de sua vida, a organização social etc.
É possível registrar numerosos procedimentos de natureza política, social e cultural de mobilização e de
conscientização de massas, a partir da crescente participação popular por meio do voto (participação geralmente
dirigida pelos líderes populistas) até o movimento de cultura popular organizado pelos estudantes (FREIRE,
1980, p. 17).
6
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
16
Luta de Classes e Contemporaneidade
Depois de eleito, o candidato se distancia do eleitor e toma as decisões de acordo com seus
interesses, sem consulta ao povo, nem mesmo sem o seu consentimento.
Freire afirma que, o formar eleitores, não era o único objetivo, nem tampouco o
principal, e sim, que com a alfabetização das massas seria dado a elas o direito de participação
na democracia, que Freire considerava como sendo essencial. Para Freire (1997, p. 74) “a
democracia demanda estruturas democratizantes e não estruturas inibidoras da presença
participativa da sociedade civil [...].”
[...] de acordo com a pedagogia da liberdade, preparar para a democracia não
pode significar somente converter o analfabeto em eleitor, condicionando-o às
alternativas de um esquema de poder já existente. Uma educação deve
preparar ao mesmo tempo para um juízo crítico das alternativas propostas
pela elite, e dar a possibilidade de escolher o próprio caminho (FREIRE,
1980, p. 20, grifo nosso).
Freire entende que o processo de alfabetização é essencial, por inserir o povo nesta
sociedade e dar a ele o direito à democracia, e reforça que esta não pode ser desvinculada de
uma aç~o que se diga revolucion|ria. “Eu sonho que aprendamos, sobretudo a esquerda
brasileira, a assumir democraticamente a transformação deste país, sem medo de usar a
express~o “democraticamente”. A n~o dissociar transformaç~o revolucion|ria de democracia,
por exemplo” (FREIRE, 1998, p. 94).
A ideia de democracia defendida por Freire, onde mostra a impossibilidade de se
pensar uma revolução, sem que esta esteja associada à democracia, se mostra problemática, e
traz consigo determinados valores, ideologias. O que ocorre é que,
A democracia é um regime político onde se permite uma participação restrita
das classes sociais e frações de classes na constituição das políticas estatais,
sob formas que variam historicamente. O que fica subentendido nesta
definição é que a democracia sendo um regime político e, portanto, uma forma
de relação do estado (que é o poder coletivo da classe dominante) com as
classes sociais, é uma forma de dominação de classe7 (VIANA, 2003, p. 45).
Percebe-se aqui que, sendo uma forma de manifestar a dominação de uma classe sobre
a outra, a democracia acaba por representar os interesses da classe dominante, restringindo
assim a participação dos grupos dominados. Ao utilizar a ideia de democracia, Freire faz com
que esta pareça dar ao povo, mais direitos do que possui na realidade, já que aquele que já
Segundo Viana (2003, p. 46) neste sentido “democratizar significa ampliar a participação restrita (que continua
restrita, ou seja, não ultrapassa os limites intransponíveis do regime democrático-burguês) das classes sociais,
principalmente das classes sociais subalternas e exploradas”.
7
17
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
tinha pouca ou nenhuma participação, por se encontrar excluído do direito ao voto, agora com
a alfabetização, e concomitante, com o acesso à democracia terá alguma, só que de forma
restrita, o que constitui este acesso pouco significativo para esta classe, uma vez que esta é
uma democracia burguesa8.
Freire continua fornecendo elementos de como seria esse processo de inserç~o: “[...] a
alfabetização tem que ver com a identidade individual e de classe, que ela tem que ver com a
formação da cidadania [...]” (FREIRE, 1997, p. 58, grifo nosso). Nesta afirmação o autor
mostra que o processo de alfabetizar tem sua relevância em formar a cidadania desses
indivíduos, ou seja, formar cidadãos para essa sociedade.
O cidadão, enfim, é um indivíduo que cumpre com seus deveres e direitos, ou seja, é
aquele que respeita a propriedade privada, a liberdade de imprensa, etc., paga os impostos,
legitima o estado capitalista reconhecendo o processo eleitoral, etc. (VIANA, 2003, p. 69). Vale
ressaltar que o cidadão nesta sociedade, nada mais é do que um indivíduo que tem acesso a
determinados direitos e cumpre a deveres também determinados, o que remete a ideia de
participaç~o. “Conseqüentemente, a cidadania é o reconhecimento destes direitos, mas um
reconhecimento de fato, ou seja, a cidadania é a concretização destes direitos e deveres”
(VIANA, 2003, p. 67).
Se atentarmos para o fato de que os direitos nessa sociedade são direitos burgueses,
perceberemos que se existe um discurso que diz que todos são iguais perante a lei, porém, não
consegue esconder o fato de que socialmente somos desiguais. “A cidadania, por conseguinte,
é a concretização dos direitos do cidadão, e, portanto significa a integração do indivíduo na
sociedade burguesa por intermédio do estado” (VIANA, 2003, p. 69, grifo nosso).
Percebe-se que assim como a ideia de democracia, a ideia de cidadania é uma concepão
burguesa, no sentido de que sendo a burguesia a classe que domina nessa sociedade, as
concepções que prevalecerão serão as suas. Como observado na citação acima, aqueles que
defendem a ideia de cidadania, nada mais buscam do que integrar o indivíduo nessa
sociedade, por meio da ação do estado9.
A democracia burguesa é uma das formas como o estado capitalista se relaciona com as classes sociais isto é, é
um regime político burguês – caracterizado por uma participação restrita das classes sociais (VIANA, 2003, p.
48).
9 “O estado é um produto social e histórico, cuja raz~o de ser é reproduzir a dominaç~o de classe, a exploraç~o e a
opress~o” (VIANA, 2003, p. 11).
8
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
18
Luta de Classes e Contemporaneidade
A ideia de cidadania como já foi mostrado, pressupõe a existência de direitos e deveres.
Na questão do direito, diz que todos são iguais perante a lei, cabendo aqui citar quais são estes
direitos e deveres:
Hoje se concorda que estes direitos são os direitos civis, políticos e sociais. Os
direitos civis são aqueles referentes à liberdade individual, tal como a
liberdade de ir e vir, de imprensa, de pensamento etc.; os direitos políticos são
aqueles referentes ao direito de votar e ser votado, entre outros; os direitos
sociais são aqueles referentes ao bem-estar físico e mental, tal como o direito à
saúde, educação, habitação etc. os deveres são os deveres para com o estado:
pagar impostos, votar etc (VIANA, 2003, p. 67).
Esse são os direitos garantidos pela cidadania no plano do discurso, o que faz com que
a ideia defendida por Freire, de dar ao povo excluído o acesso à cidadania, pareça uma posição
coerente e justa, afinal, com a garantia de todos esses direitos, teríamos o chamado “cidad~o
pleno”. Contudo, ao voltarmos para o real, ao concreto, percebemos que cidadania não
significa apenas isso, mas, esse conceito oculta, procura ocultar a realidade dos fatos.
Quando volta-se para a realidade, percebemos que a cidadania não passa de uma
ideologia, os chamados “direitos” n~o s~o concretizados, nem mesmo os direitos essenciais
que se esperava, não são garantidos pelo estado: direito à saúde, educação, moradia. Ou seja, o
discurso de igualdade oculta uma realidade desigual, onde os direitos que de fato são
garantidos no capitalismo é o direito do burguês em explorar os oprimidos. Sobre isso Viana
reconhece que, nessa sociedade,
O cidadão é o indivíduo conservador, o indivíduo que aceita o mundo
existente, ou seja, a sociedade burguesa (modo de produção capitalista e
formas de regularização não-estatais) e o estado capitalista. A cidadania, por
conseguinte, é a concretização dos direitos do cidadão, e, portanto, significa a
integração do indivíduo na sociedade burguesa por intermédio do estado
(VIANA, 2003, p. 69).
Ser cidadão nessa sociedade, nada mais é do que ser aquele que aceita a realidade que
aí está, que concorda em submeter-se à exploração, à opressão, enfim, a todo o tipo de
autoritarismo burguês. Se as palavras democracia e cidadania, são relacionadas pelo próprio
Freire ao seu método, que ressalta a importância desses conceitos para alfabetização, são tão
fundamentais, encontramos aqui elementos para compreender como ele de fato pensa esse
processo. Uma vez que, o autor da pedagogia do oprimido, tido por muitos como
revolucionário, defende os conceitos acima colocados, que expressam ideias contrárias ao que
19
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
de fato são, portanto, ideológicas10 podemos afirmar que ele acaba auxiliando o estado,
embora não deixe isso claro em suas obras. Desta forma, se Paulo Freire auxilia o estado,
criando ideologias que o legitimam, compreende-se que ele acaba por representar os
interesses da classe dominante e não os interesses dos dominados11 como se quer parecer em
suas obras.
Referências
FREIRE, Paulo. Conscientização – Teoria e prática da Libertação: Uma Introdução ao
Pensamento de Paulo Freire. 3ª ed. São Paulo: Centauro, 1980.
_____________. Educação como prática da liberdade. 30ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2007.
_____________. Política e educação. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 1997.
FREIRE; BETTO. Essa escola chamada vida: Depoimentos ao repórter Ricardo Kotscho. 9ª ed.
São Paulo: Editora Ática, 1998.
ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. São Paulo: Editora Vozes, 1973.
MAIA, Lucas. As classes sociais em O Capital. Pará de Minas: Virtual Books, 2011.
ROSSI, Wagner G.. Capitalismo e Educação. 2ª ed. São Paulo: Moraes, 1980.
VIANA, Nildo. A Consciência da História: Ensaios sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
_____________. Cérebro e ideologia: uma crítica ao determinismo cerebral. São Paulo: Paco
Editorial, 2010.
_____________. Estado, Democracia e Cidadania – A Dinâmica da Política Institucional no
Capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.
_____________. O Que São Partidos Políticos?. Goiânia: Edições Germinal, 2003.
_____________. Os valores na sociedade moderna. Brasília: Thesaurus, 2007.
_____________. Senso comum, representações sociais e representações cotidianas. São Paulo: Edusc,
2008.
Refere-se aqui as ideias no sentido definido no primeiro capítulo desse trabalho: “ideologias”.
Entendemos como classe dominante e dominada as classes fundamentais do capitalismo, sobre isso consultar
o conceito de classes sociais, discutido no I capítulo deste trabalho.
10
11
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
20
Luta de Classes e Contemporaneidade
Reformismo ou revolução? Leninismo na ciência brasileira, na perspectiva
da educação
Marcello Cavalcanti Barra
“A escola de educação comunista (...) irrompe como o local onde as crianças cantam livres
sobre os muros e ensinam o amor a quem não soube amar ninguém!” – Taiguara apud Freitas,
2005, p. 295.
"As crianças devem fazer a educação dos pais" – Marx apud Dommanget, 1974, p. 338.
O artigo apresenta teses e dissertações produzidas no Brasil entre 1992 e 2011 que
relacionam Lenin e educação. Os eixos temáticos do artigo são desenvolvimento, educação,
emancipação e política pública. O teórico revolucionário passa por um resgate, de natureza
histórica, primeiro pelo que fez o stalinismo ao cristalizá-lo e transformá-lo em objeto de
culto, idolatria, transformando-o em peça de mausoléu. Segundo, pelo controle, difusão e
proibição da publicação da obra dinâmica e ágil de Lenin (Service, 2007, p. 552), para não
falar sobre a qualidade das traduções de sua obra pelos Partidos Comunistas, que mesmo o
deformam e deturpam. Essa foi a segunda morte de Lenin, operada pelo stalinismo: o
assassinato de suas ideias, tão necessárias para a atual época histórica.
O período em que viveu Vladímir Ilich Uliánov, o Lenin, foi de ascenso de lutas sociais,
que culminaram com a Revolução de Outubro (1917), após o ensaio geral da revolução
fracassada de 1905. A atual quadra da história também é de ascensão das lutas sociais, com o
giro da situação histórica a partir da crise de 2007/2008 (Robaina, 2009). Apesar de o
continente latino-americano já viver este período de negação do neoliberalismo como um
movimento de massas a partir da primeira década do século XXI, é apenas em 2011 que o
processo ganha um alcance mundial, com as revoluções árabes.
Do ponto de vista societal, até então a mobilização era tida como de resistência
ao capitalismo, tanto que se resumia a lutar por uma “outra globalizaç~o” (Santos, 2004), por
uma alternativa, um outro mundo. Bensaid (2010a; 2010b) aponta a fragilidade dessas
consignas pela falta de concretude das propostas. Lenin agora se torna ainda mais relevante,
pois é o líder político da primeira e mais importante revolução socialista, aquele que primeiro
realizou a teoria de Marx e Engels, mostrando a validade praxiológica das ideias deles e a
21
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
força da classe trabalhadora “mobilizada e com clareza dos seus objetivos históricos” (Freitas,
2009, p. 187). Tanta força, que leva à união da classe burguesa em todo o mundo para derrotála, culminando no nazifascismo alemão. Portanto, estudar Lenin está relacionado à
necessidade de construção de alternativas concretas. Como escreve Žižek: “’Lenin’ representa
a liberdade imperativa de suspender as deterioradas coordenadas (pós-) ideológicas
existentes, a debilitante Denkverbot (proibição de pensar) na qual vivemos – simplesmente
significa que temos permiss~o para pensar novamente” (2005, p. 15-16) (grifo do original).
Lenin é discriminado nas universidades brasileiras (Freitas, 2005, p. 258 passim;
Robaina, 2011a). Como pode um revolucionário socialista que, com sua obra científica, é
usado como referência para a política da direita (Sarney apud Agência Senado, 2011), ter seu
acesso e debate negligenciado, praticamente negado na universidade pública (Freitas, id.)?
Portanto, resgatar Lenin e o leninismo, além de um ato político, é ação científica, de
valorização de um pensador fundamental para a política e sociedade.
Em suma, trata-se de superar a “estranha inexistência” de Lenin nas disciplinas da
academia brasileira (ibid., p. 252, 258-260; Robaina, 2011a) e de colocá-lo no lugar que
sempre mereceu estar, de estrategista da política, ao lado de gênios como Maquiavel, mas
indo além, como a encarnação do revolucionário completo, que integra ação e reflexão.
Apropriar-se do marxismo-leninismo na atual conjuntura histórica significa “desenvolver a
teoria e a pr|tica marxista revolucion|ria”, que sustenta uma “velha m|xima: sem teoria
revolucion|ria n~o h| pr|tica revolucion|ria” (Robaina, 2011b, p. 23).
E qual a importância de Lenin para a educação? Obra sobre pedagogos socialistas
destaca Lenin como uma dos principais educadores (Dommanget, id., p. 503). Nesta pesquisa,
das 16 teses e dissertações que têm Lenin como referência, sete são relacionadas à educação.
Isso revela que há uma centralidade da educação na abordagem de Lenin no Brasil, denotando
a relevância do tema para as teses leninistas brasileiras.
Como foi feita a pesquisa? Recorreu-se à Biblioteca Digital Brasileira de Teses e
Dissertações (BDTD), mantida pelo Instituto Brasileiro de Ciência e Tecnologia, do Ministério
da Ciência e Tecnologia (Ibict/MCT). Essa biblioteca integra os sistemas de teses e
dissertações brasileiras (Ibict, 2011)1. Foram levantadas todas as teses relacionadas a Lenin,
É possível verificar que a BDTD não contém todas as teses e dissertações produzidas no Brasil. Por outro lado,
ela permite uma amostra importante, apesar de não exaustiva e completa, dos trabalhos produzidos pela
1
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
22
Luta de Classes e Contemporaneidade
que totalizaram 16, já excluídos autores homônimos, bem como membros de bancas e
agradecimentos a pessoas com o mesmo nome. Em seguida, foram pesquisados os temas
Lenin e educaç~o, com as buscas “lenin educacao” e “lenin educaç~o”. Ao final, verificando-se
uma a uma, chegou-se ao total de sete teses e dissertações sobre Lenin e educação. Em
seguida, analisou-se o conteúdo desses trabalhos, a partir de uma leitura seletiva,
privilegiando-se os temas desenvolvimento, educação, autonomia/emancipação e políticas
públicas.
Onde foram produzidos os trabalhos acadêmicos sobre Lenin e educação? Três foram
feitos no estado de São Paulo, sendo duas teses em Campinas, na Unicamp, e uma dissertação
na capital, na PUC-SP. As quatro restantes são todas dissertações, produzidas em
universidades públicas, onde uma era estadual, a Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(Unioeste), em Cascavel, e três federais: UFBA, UFMG e UFPA, respectivamente em Salvador,
Belo Horizonte e Belém. Portanto, percebe-se o interesse por Lenin em diferentes regiões
brasileiras, mormente na universidade pública, mas com ocorrência também na privada.
Alguns dados sobre a produção acadêmica leninista em educação:

Uma mulher é autora de dissertação, três são orientadoras e uma co-orientadora. As
mulheres predominam nas bancas de defesa dos trabalhos;

Seis trabalhos pertencem ao campo da educação e um ao da história;

Todos os orientadores são professores doutores.
A Tabela I, abaixo, traz uma sinopse da produção leninista relacionada à educação:
TABELA I: Referências sócio-institucionais do leninismo em educação
Título
Educação,
trabalho e tecnologia
Lenin e
a
educação
política:
domesticação
impossível,
resgate
necessário
O
Escolanovismo
e
a
Pedagogia Soviética: as
Auto
r – Obtenção
do grau
Orie
ntador
Camp
o acadêmico –
Conceito CAPES
New
ton A. Paciulli
BRYAN
–
Doutorado
Fran
cisco Máuri de
Carvalho
FREITAS
–
Doutorado
Ceza
r Ricardo de
FREITAS
-
New
ton
César
BALZAN
Educaç
ão – não existia
Silvi
o
Oliveira
Donizetti
GALLO
Ireni
Marilene Zago
FIGUEIREDO
992
A
In
stituição de
Ensino
superior
(IES)
1
U
NICAMP
005
2
U
NICAMP
009
2
U
NIOESTE
no
Educaç
ão – 5
ão - 3
Educaç
Se
xo de
membros
da banca
N
ão
disponível
N
ão
disponível
minino: 3
Fe
M
universidade brasileira. Deve-se considerar que a pesquisa está sujeita ao método de classificação e indexação de
teses e dissertações desenvolvido pelo Ibict, além das contribuições das universidades e dos autores desses
trabalhos.
23
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
concepções de Educação
Integral e Integrada
A concepção
de educação politécnica
em Moçambique
Mestrado
A valorização
do
profissional
da
educação e a carreira
docente: a experiência
do governo de frente
popular em Belém do
Pará
Crítica
ontológica à teoria da
democracia como valor
universal
de
Carlos
Nelson Coutinho
Contribuições
Teóricas
para
a
Formação de Professores
do Campo
Sílvi
a
Letícia
D’Oliveira da
LUZ - Mestrado
Antó
nio
Cipriano
Parafino
GONÇALVES Mestrado
Felip
e
Toledo
MAGANE
Mestrado
Paul
o
Riela
TRANZILO
Mestrado
asculino: 1
Mari
a de Lourdes
de
Lima
ROCHA.
Coorientadora:
Rosemary Dore
HEYJMANS
Olgaí
ses
Cabral
MAUÉS
nio
FILHO
Antô
RAGO
Pedr
o
Rodolpho
Jungers ABIB
ão – 7
ão - 4
Educaç
Educaç
005
2
MG
UF
008
2
PA
UF
2
C-SP
PU
007
008
2
BA
UF
Históri
a-5
ão – 4
Educaç
minino: 3
Fe
M
asculino: 1
minino: 2
Fe
M
asculino: 1
Fe
minino: 2
M
asculino: 2
minino: 2
Fe
M
asculino: 1
O quadro histórico que as teses e dissertações leninistas refletem é, em resumo, o da
força e contradições do sistema capitalista, a luta de classes, a revolução socialista (fundada
na ideologia marxista-leninista), a contra-revolução e a disseminação dos Partidos
Comunistas (PCs). Estes se disseminaram pelo mundo e, centralizados pelo PC soviético,
pactuaram com o imperialismo, culminando na participação em governos burgueses,
convertendo-se em “partidos da ordem” (Magane, 2007, p. 139). O stalinismo, com a ideologia
do “comunismo em um só país”, configura-se como contra-revolucionário e acaba se
constituindo finalmente como reformismo, traindo a revolução e as ideias de Lenin, para
quem a Revolução era um processo ininterrupto. Trotsky (2005), já em 1936, previra a
restauração do capitalismo na União Soviética, dada a vitória dos contra-revolucionários.
Doravante, as teses e dissertações objeto deste artigo serão sinteticamente chamadas de teses.
1. Qual desenvolvimento?
O capitalismo é um modo de produção que subsiste com relações sociais em que o
“homem é o lobo do homem”, variando em maior ou menor profundidade no tempo e espaço.
O socialismo representa uma forma de luta pela superação do estado de natureza. O
desemprego, a mendicância, a pobreza e o empobrecimento, a exploração, a corrupção são
partes funcionais do modo de vida engendrado pelo sistema capitalista. Assim ressalta
Francisco Freitas, “miséria e abundância são como irmãs siamesas, uma não vive sem a outra
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
24
Luta de Classes e Contemporaneidade
e toda separação possível levará, naturalmente, a morte da segunda, a abund}ncia” (2005, p.
274).
As misérias e agruras humanas são tidas como naturais no capitalismo, ou seja, há uma
naturalização do sofrimento e da própria vida, graças à ideologia envolvendo a rationale dos
indivíduos, que é base da falsa consciência. O pensamento nutrido no regime do capital é o
“que vença o melhor” ou o “the fittest, the winner”2, justamente uma lei natural darwinista. É
na configuração do capitalismo, de fato, como um sistema, ou seja, de algo que opera como se
n~o houvesse saída para além do próprio sistema, que se aponta a “inexorabilidade do modo
de produç~o capitalista” (ibid., p. 294).
O desenvolvimento de países com industrialização tardia se insere nesse contexto mais
amplo do regime do capital globalizado. “Sociedades mais desenvolvidas”, isto é, com maior
divisão do trabalho, maior especialização da produção, maior grau de escolaridade, maior
produção científica e tecnológica, produção com maior valor agregado, e assim por diante,
têm um modo de vida diferente daquelas “sociedades mais atrasadas” (isso considerado
dentro da lógica sistêmica do capital).
As sociedades do “Terceiro mundo” têm um desenvolvimento mais recente do
capitalismo. É na relaç~o sistêmica, e naturalizada, entre as nações e os povos que os “países
desenvolvidos” s~o apontados como exemplos para as pessoas e metas para os “países
subdesenvolvidos”, reforçando-se o sistema, a ideologia do liberalismo, o individualismo, a
síndrome de inferioridade, os preconceitos, a naturalização da vida e dos sofrimentos. Eis uma
contradição elementar do sistema – fulcro do combate a ele: como expressa a lei histórica do
desenvolvimento desigual e combinado (Novack, 2008; Trotsky apud ibid., p. 22-23), é
impossível o capitalismo se reproduzir da mesma maneira em todos os lugares, por isso há
uma contradição entre discurso (aparência, imagem, forma e ideologia) e a vida real. O
desenvolvimento do capitalismo para cada um e para todos é uma falácia na sociedade
burguesa, que se conforma como mito da sociedade sem conflito.
Socialismo é Revolução. O conceito marxista de Revoluç~o significa “uma transformaç~o
radical tanto do homem como da sociedade” (Bottomore apud Freitas, 2009, p. 84). A resposta
concreta { desumanizaç~o da humanidade, ao ‘homem lobo do homem’ é a Revoluç~o. O
resultado do caminho reformista, contrário à Revolução, já é visto em diferentes países
2
Numa traduç~o ao português, corresponde a “o mais apto é o vencedor”.
25
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
europeus, como Grécia, Espanha, Itália, Portugal, Irlanda, Islândia, avançando por Inglaterra,
França e até Alemanha, e mesmo nas principais cidades norte-americanas, Nova York, São
Francisco, Wisconsi, Los Angeles, Detroit, que têm direitos trabalhistas, empregatícios, sociais,
políticos sendo cortados para se pagarem juros aos bancos, condenando o presente e o futuro
dos ex-cidadãos em nome do capital.
Por que Revolução? Esta necessidade se vale de um princípio básico da sociedade de
classes: nenhum grupo cede gratuita e pacificamente os benefícios e vantagens que usufrui. A
própria burguesia se valeu da revolução para se tornar classe dominante, vejam-se os casos
de França, Inglaterra, Estados Unidos, na história. Portanto, a revolução é necessária para uma
classe dominada libertar-se daqueles que a oprimem. Freitas (2005, p. 263) escreve:
O comunista deve levar a sério a tese segundo a qual não se trata de saber se é
desejável ou não a revolução, não se trata de maneira nenhuma de saber se ela
produzir-se-á pacífica e legalmente, mas limitar-se a predicar ‘a impossibilidade
histórica de uma viragem radical sem uma nova revoluç~o’ (apud Lenin, 1985, t. 34, p.
133).
A luta de classes é categoria central no marxismo. Por isso a questão do sujeito político
e social da Revolução e da Contra-Revolução se reveste de importância. Lenin explicita a
necessária ação dos trabalhadores:
Nenhuma clemência para com os inimigos do povo (os ricos e seus apaniguados, e os
larápios, parasitas e vadios), para com os inimigos do socialismo, para com os
inimigos dos trabalhadores! Guerra aos ricos e seus apaniguados, aos intelectuais
burgueses; guerra aos velhacos, aos meliantes! Uns e outros, os primeiros e os últimos,
são irmãos carnais, são engendros do capitalismo, meninos mimados da sociedade
senhorial e burguesa; dessa sociedade em que um punhado de homens espolia o povo
e se mofa dele; dessa sociedade em que a miséria e a necessidade empurram milhares
e milhares de homens e mulheres ao caminho da ladroagem (ociosidade e vadiagem),
da corrupção, da patifaria e do olvidar a dignidade humana; dessa sociedade que
inculca inevitavelmente nos trabalhadores o desejo de evitar a exploração, ainda que
seja com enganos; livrar-se, desfazer-se, ainda que seja só por um instante, de um
trabalho odioso; procurar um pedaço de pão de qualquer modo, a qualquer preço,
para não passar fome nem ver famintos seus familiares. Os ricos e os meliantes são as
duas caras de uma mesmo medalha; são as duas categorias principais de parasitas
nutridos pelo capitalismo; são os inimigos principais do socialismo. (...) Toda
debilidade, vacilação e sentimentalismo [para com eles] constituirão, neste aspecto,
crime contra o socialismo (apud Freitas, id., p. 273) (grifo do original).
Qual o papel dos intelectuais e cientistas nesse processo? O saber do processo
produtivo é fundamental para o trabalhador se tornar “o mais r|pido possível capaz de gerir a
produç~o, afastando a presença dos capitalistas” concebendo “daqui por diante a
possibilidade de fazer por si mesm[o] e de fazer bem” (Gramsci apud Magane, id., p. 141). Essa
é a célula da auto-organização, da superação do capital expropriador da classe trabalhadora:
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
26
Luta de Classes e Contemporaneidade
os organizadores de talento, abundantes no interior da classe operária e dos
camponeses, conscientes de seu valor, despertam e se sentem atraídos pelo grande
trabalho vivo e criador, eles empreenderão por si mesmos a edificação da sociedade
socialista (Lenin apud Freitas, id., p. 272).
Os intelectuais burgueses, como escreve Francisco Freitas, “se decepcionariam por
verem [que] o proletariado poderia deles prescindir” (ibid., p. 272). Quanto ao conhecimento
humano acumulado, a tese histórica de Newton Paciulli Bryan, defendida em 1992, ajuda a
compreender a questão, ao reconstituir o processo de avanço da tecnologia, afetando o modo
de produção. O autor estuda o desenvolvimento do taylorismo. Identifica esse sistema como
sendo “um projeto de desenvolvimento capitalista para enfrentar as crises criadas pelo
próprio desenvolvimento capitalista” (Bryan, 1992, p. 501). Dado o est|gio de evoluç~o do
capitalismo (industrialização tardia) na Rússia, quando da Revolução, seguido pela guerra
civil e ataque contra-revolucionário das potências capitalistas, aliados à burguesia, fazia-se
necessário incorporar o taylorismo – assim como instituir uma nova política econômica, a
NEP, que permitisse avançar as forças produtivas na Rússia (Service, id., p. 475 passim;
Freitas, 2009, p. 183) – para fazer frente à conjuntura colocada. Portanto, nesse contexto, o
sistema de Taylor “poderia ser uma forma de evitar o desperdício e de aumentar a produção
de riquezas que seriam distribuídas seguindo critérios mais humanos” (Bryan, id., p. 503).
Freitas completa tal interpretação:
Os autores soviéticos defendiam que a produção deveria se pautar sob os critérios de
eficiência, de otimização dos recursos e de habilidades dos trabalhadores para
aumentar a produtividade, ou seja, a produção de riquezas para satisfazer as
necessidades humanas e, portanto, visando superar o mérito individual como
condição para a sua realização (id., p. 183).
A interpretação e defesa que Lenin e Krupskaia fizeram do taylorismo como tecnologia
contribuiria para concretizar a proposta de ensino tecnológico formulada por Marx (Bryan,
id., 504). E é nesse conjunto explicativo que continua Freitas: “A ciência moderna era
referência na medida em que, como expressão do domínio humano sobre a natureza, era
respons|vel, também, pelo aumento da riqueza material produzida” (id., p. 183).
Grande formulador e líder da Revolução, Lenin era a expressão máxima do intelectual
militante revolucion|rio, tendo n~o apenas teorizado o processo, mas participado “dos novos
problemas impostos a todo momento pelas circunst}ncias reais” (ibid., p. 187). É baseado
nesse líder que o leninismo de Freitas constrói a figura do intelectual marxista:
27
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Diante do irrefutável quotidiano onde princípios foram deixados à margem da estrada
como se arroubos de neófitos fossem, retomo três teses implícitas na obra de Lenin:
Primeira, só é marxista o intelectual que compreende o ambiente social para o qual
projeta seus programas (intitulados públicos) como um ambiente burguês e que, por
isto mesmo, todas as melhorias realizadas no seu âmbito significam progresso para a
burguesia, melhora da situação da minoria, ao passo com a proletarização e
empobrecimento da maioria. Segunda, só é marxista o intelectual que entende o
Estado ao qual dirige seus projetos (de políticas públicas e/ou para todos!) como
Estado bourgeois, gerente dos interesses da burguesia e guardião e policial usado para
desmontar a movimentação sediciosa do proletariado. Terceira, só é marxista o
intelectual que entende o ‘regime popular e democr|tico’ n~o como antítese do
capitalismo, mas sua continuação direta, mais próxima e imediata, um aspecto
populista do seu desenvolvimento. Quarto, retomando Lenin (1981, t. 7, p. 210), o
marxismo “é a doutrina de luta contra toda a opress~o, contra toda depredaç~o, contra
toda injustiça. Só é verdadeiro marxista quem, conhecendo as causas da opressão, luta
durante toda sua vida contra todos os casos em que se manifesta” (Freitas, 2005, p.
275).
O stalinismo
O stalinismo representou a vitória da contra-revolução. No caso da primeira e mais
importante revolução socialista, a russa, a vitória contra-revolucionária se tornou cabal em
1929, com a expulsão da esquerda do PC soviético. O resultado desse processo trouxe
impactos na organização operária em todo o mundo, nas revoluções nacionais e na
conformação de partidos comunistas como aparelhos do PC soviético. O caso que as teses
brasileiras abordam é o de Moçambique e dará concretude para maior compreensão do
stalinismo.
Gonçalves identifica a contradição entre o discurso e a prática da FRELIMO – a “Frente
de Libertaç~o de Moçambique”. Enquanto dizia defender o socialismo, na pr|tica o faziam
“nos moldes burgueses e ditatoriais” (ibid., p. 218). Se no discurso apoiava a educação
politécnica, o poder de modo burocr|tico no Estado era usado para aprofundar “a divis~o
técnica e social do trabalho” (ibid., p. 225) Portanto, continuavam com a prática da sociedade
burguesa de separar atividade manual e física (inferior – membros) de intelectual (superior cabeça), contrariando os princípios da educação politécnica proposta por Marx (1992, p. 60) e
defendida por Lenin e Krupskaia. Assim Gonçalves escreveu:
A qualificação dos trabalhadores ocorria no subsistema de educação técnicoprofissional, frequentado pelos filhos dos camponeses e operários, cujo ingresso era
feito após conclusão dos sete anos de escolaridade básica obrigatória, pois eram as
direções distritais e provinciais de educação que estipulavam quem deveria
frequentar o nível seguinte de ensino. Contudo, numa situaç~o de privilégios, “os
filhos das elites dirigentes e de certas elites bem conceituadas”, segundo refere
Mazula, a partir da influência e intervenções dos pais no partido e no Estado, não eram
afetos ao ensino técnico-profissional. Continuavam os seus estudos no ensino
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
28
Luta de Classes e Contemporaneidade
secundário geral que dava o acesso à Universidade, principalmente nos cursos de
medicina, engenharia e direito. Às maiorias sociais, em nome da revolução, além do
ensino técnico-profissional, também eram encaminhadas para os cursos de magistério
(id., p. 225-226).
As práticas totalitárias que se auto-proclamavam como “organizações democr|ticas de
massas" chegavam a anunciar totalitariamente que “ser moçambicano implicava ser da
FRELIMO” (ibid., p. 220). Ademais, “a promulgaç~o da lei de pena de morte e de chicotadas”
(ibid.) mostraram que o discurso de liberdade da FRELIMO era completamente contraditório
com sua prática, revelando a falsa consciência dos líderes stalinistas, característica, aliás, dos
burgueses.
Ao final das contas, a historiografia, que é sempre a história pela ótica da classe
dominante, consagrou {s pr|ticas stalinistas o nome de “socialismo real”. Quem questiona se o
que se viveu na URSS, na China ou em Moçambique foi o socialismo? Como se pode imputar
um
conceito
supostamente
acadêmico,
“socialismo
real”,
sem
problematizá-lo
cientificamente? Já passados 20 anos da queda da União Soviética, para os trabalhadores se
torna ainda mais importante a tarefa de reconstruir na própria classe o ideal socialista, de que
ele é possível, e não aquilo que se auto-proclamou como socialismo ou comunismo, mas que
foi o stalinismo, sob o domínio da burocracia.
O reformismo
O reformismo é parte da dialética do processo da luta de classes na história entre
capitalismo, revolução socialista e a contra-revolução stalinista. Dentre outras formas, o
reformismo assumiu os nomes de “eurocomunismo” (Magane, 2007, p. 14 passim; Mészáros
apud ibid., p. 143-144), “socializaç~o da política”, “reformismo revolucion|rio” (Coutinho apud
ibid., p. 138) e assim por diante. O modelo clássico do reformismo é o welfare states e foi
construído pela social-democracia europeia, tendo os comunistas como aliados, na política
denominada como “frente ampla”.
O reformismo é o braço europeu ocidental do stalinismo - no desenvolvimento desigual
e combinado da história humana, o reformismo é a planta que surge e se expande do solo
europeu, com resultados, ao final e ao cabo, nefastos para o proletariado. Como aponta
Magane (id., p. 139), a derrota do “eurocomunismo” significou a ascens~o “parlamentar da
extrema-direita, (...) sob a direç~o do neofascista Silvio Berlusconi”.
29
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Teses leninistas defendidas no Brasil raciocinam sobre a teoria do reformismo e seus
desdobramentos no país. O teórico do reformismo no Brasil é personificado nessas teses por
Carlos Nelson Coutinho, com a grande influência que tem sobre a intelectualidade de
esquerda, ao ponto de Magane (ibid.) arguir que Coutinho é autor de uma virada na história
política brasileira ao defender, no final da ditadura militar, a “democracia como valor
universal”. A tese de Magane escreve:
Nas Teses de Feuerbach, Marx assinalou que “o ponto de vista do velho materialismo é
o da sociedade civil; o ponto de vista do novo materialismo é a sociedade
humanizada”. Ou seja, a perspectiva do “eurocomunismo”, a mesma de Coutinho, é a
perspectiva do velho materialismo, da sociedade de classes, do “fortalecimento da
sociedade civil”, o que significa dizer o fortalecimento das instituições políticas, como
o parlamento, os partidos, e, no plano do metabolismo sociais, as classes sociais (ibid.,
p. 141).
A ideologia reformista (social-democrata) procura fazer crer em um governante
benevolente e de uma classe que prefere dar a receber, em plena realidade de crise capitalista,
extrema escassez, concentração de riqueza e poder, proliferação do fetichismo em novas
mercadorias e a crescente coisificação humana, com a solidão, individualismo, suicídio.
Mézs|ros escreve: “O capital é irreformável porque pela sua própria natureza, como totalidade
reguladora sistem|tica, é totalmente incorrigível” (2005, p. 27) (grifo nosso).
De PCs stalinistas para reformistas, qual o resultado para a classe expropriada?
Magane responde: “A ades~o dos partidos comunistas à ideia da democracia como valor
universal, abandonando as teses marxistas e leninianas, convertendo-os em ‘partidos da
ordem’, n~o fez avançar o movimento oper|rio na direç~o de sua emancipaç~o econômica”
(id., p. 139).
Foi o reformismo social-democrata de matiz europeia que nutriu o governo Lula,
recodificado, no capitalismo de industrialização tardia, em social-liberalismo (Lowy, Bensaid
& Louça, 2005). No processo histórico, são os governos subnacionais – nas esferas estadual e
municipal - que formam o substrato para o governo maior, de Lula. O governo da cidade de
Belém se tornou profícuo para a abordagem leninista. Não se tratava de um governo de classe,
como deve ser na esquerda da classe trabalhadora, mas um chamado “governo de todos”, que
tinha como mote a “participaç~o popular” (Luz, 2008, p. 179) e que se auto-proclamava
governo do povo. A autora continua:
E essa é uma característica que poderá ser atribuída a um governo que tem tendência,
segundo Harnecker (2000), a ocupar passivamente as instituições existentes, sem
lutar para modificá-las e alterar as regras do jogo, estabelecendo uma lógica de não-
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
30
Luta de Classes e Contemporaneidade
conflitualidade, mas de diálogo, de paz, em lugar da lógica de mudanças que é
característica da esquerda (ibid., 180).
Por sua vez, o reformismo é observado além do lócus citadino, setorialmente. Na
questão agrária e da educação no campo, Tranzilo identifica a “miscel}nea” (id., p. 127) da
formulação teórica empreendida pelo MST e seus intelectuais, com contradições teóricas das
categorias utilizadas (ibid., p. 125): ao invés da “consolidaç~o da teoria revolucion|ria capaz
de armar prolet|rios e camponeses para a unidade necess|ria para revoluç~o mundial” (ibid.,
p. 127). O reformismo é o coroamento do neoliberalismo que reforça os mitos da educação
para o desenvolvimento. Como escreve Figueiredo:
O sucesso do discurso ideológico da educação como suposto agente do
desenvolvimento e da redução da pobreza, por exemplo, reside justamente na sua
capacidade de dissimular a sua função e aparentar independência em relação às
condições contextuais a que serve. Portanto, a crença no caráter redentor da
educação, alimentada pelo discurso dominante, em âmbito nacional e internacional,
dissimula as contradições e as relações internas de dominação, próprias ao modo de
produção capitalista, e alimenta o mito do crescimento econômico e desenvolvimento
social (apud Freitas, 2009, p. 192-193).
2. Educação e emancipação
As teses apontam duas contradições iniciais. Uma contradição do capitalismo é pregar
educação para o desenvolvimento, mas quando os capitalistas são obrigados a educarem seus
trabalhadores, burlam a legislação (Bryan, id., p. 497). Outra contradição é que na sociedade
burguesa há diferenças entre a esquerda real – com defesa intransigente e sem tréguas da
classe trabalhadora – e aqueles que se auto-proclamam como esquerdistas.
Diante de um quadro de contradições no tipo de sociedade atual, as perguntas
concretas são: qual é o objetivo da escola? A escola serve à manutenção ou à transformação?
Nas sociedades capitalistas, as teorias modais da educação apresentam o Estado como
situado acima das classes e por isto mesmo capaz de prestar uma ajuda séria e
honesta à população explorada, extorquida, famélica, descamisada. Elas não
compreendem a necessidade de uma luta decidida levada a cabo pelos próprios
operários e camponeses pobres, sem-terra, para sua emancipação intelectual e
liberdade econômica. (...) Diante deste quadro, o papel social da educação política à
transformação revolucionária desta sociedade, consiste em apresentar objetivamente
a luta popular como produto de um determinado sistema de relações de produção, é
compreender a necessidade desta luta, seu conteúdo, o curso e as condições do seu
desenvolvimento. É imprescindível não perder de vista o caráter geral do seu real
objetivo: a destruição completa e definitiva de toda exploração e de toda opressão
venha de onde vier, esteja onde estiver (Freitas, 2005, p. 276-277).
31
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Qual educação? Para que serve a educação na sociedade atual? São perguntas que se
sucedem em exigirem resposta. Leher aponta o papel da escola como disciplinadora e na
imposiç~o “de ideias, valores, e de um modo de ser e de viver” (Leher apud Freitas, 2009, p.
191), no sentido de uma coesão social num sentido determinado, alienante.
Política educacional, para qual educação? Na atualidade, a educação escolar assume um
destaque cada vez mais enfático nos discursos tanto governamentais, quanto da “sociedade
civil”, traduzindo-se em políticas educacionais. Sobre esta última questão, merecem atenção
os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs, onde a educação é concebida como fator de
coes~o social, desde que tenha como princípio o “respeito { diversidade” e { especificidade
dos homens. Os temas transversais contêm mais objetivos morais do que cognitivos, que
apagam as contradições sociais e estabelecem os rumos que “possibilitariam a construç~o da
sociedade inclusiva” (Barbosa apud ibid., p. 190).
É nesse contexto que se reforçam mitos “da educaç~o como ‘panaceia’ (...) [e] o
discurso de uma educaç~o emancipadora” (ibid., p. 192). E que “sustenta o mito da inclus~o
social via educação, onde a pobreza, ao representar uma ameaça ao capitalismo, necessita de
sustentação ideológica (ibid., p. 190). Assim que a educação destaca-se na agenda pública e é
traduzida em política privatizante que privilegia o repasse de recursos públicos para
instituições privadas. Isso se viu na privatização da educação superior, muito fortalecida no
governo FHC, após sucateamento e criação de fundações nos governos anteriores, e acentuada
no governo Lula via ProUni. O processo de privatização da educação continua, seja através de
ONGs, associações, bancos, capital internacional e é agravada com a crise mundial do
capitalismo - mas que encontra resistências, como a da juventude chilena.
Qual educação comunista?
O objetivo principal da educação comunista é que o homem assuma as rédeas de seu
destino, que, de posse de uma consciência avançada e de sua sociedade, e da inter-relação do
sofrimento pessoal com o social, liberte-se e se emancipe, construindo - este Novo Homem seu futuro.
Como disse Marx, é o saber que possibilitar| “ao trabalhador o controle de todo o
processo produtivo” (apud Magane, id., p.182). Nesta escola que prepare a humanidade para ir
além do capital, é fundamental, além do conhecimento, que a classe trabalhadora se sinta
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
32
Luta de Classes e Contemporaneidade
capaz e seja de fato capaz de assumir a administração do Estado, para que os recursos sejam
voltados para seus interesses, e não para os da burguesia. Freitas aponta que é a escola da luta
que amadurecerá o proletariado para o poder (ibid., p. 270). Assim escreve:
Estendo para a educação política uma questão simples embora complexa, ainda hoje
negada pela educação oficial: é indispensável convencer o proletariado, como um
todo, a lutar contra o diversionismo ideológico no bojo do qual está explícito que
apenas a burguesia é capaz de administrar a máquina do Estado (ibid., p. 267).
Magane e Francisco Freitas discorrem sobre a educação politécnica e a escola
comunista. O primeiro ressalta que teóricos socialistas como Lenin, Krupskaia, Pistrak e
Makarenko incorporam “o trabalho como elemento fundamental em suas concepções de
educação Integral, o que fizeram a partir das preocupações de Marx, buscando desenvolver
um ensino tecnológico ou politécnico” (Magane, id., p. 183). O segundo ressalta a educação
politécnica como eminentemente conectada { “emancipaç~o intelectual, liberdade econômica
e edificação da sociedade comunista resultado das transformações sociais, econômicas e
culturais decorrentes da luta dos povos pela construção de um mundo realmente justo, onde o
homem é o amigo do homem” (Freitas, id., p. 294). Já a educação política é arrolada na escola
comunista:
A base dessa moral predicada pela educação política é a luta por afiançar e culminar a
sociedade sem classes, por isto, o ensino não pode ficar encerrado nos estreitos
limites escolares e separado da vida agitada. Assim, uma escola comunista deve (i)
oferecer aos jovens fundamentos da filosofia, das ciências e das artes, tanto teóricos
quanto práticos, quer dizer, deve conjugar a educação intelectual, a educação para o
trabalho e a educação física; (ii) buscar forjar a consciência socialista; (iii) e fazer dos
jovens, homens e mulheres cultos, emancipados intelectualmente. Urgia impulsionar a
instrução pública sem a qual seria impossível edificar a sociedade socialista. Enfim, o
professor haveria de ser colocado numa condição na qual jamais pensara estar. Essa
condição para a qual deveriam ser guindados os docentes, inerente ao processo de
educação politécnica, era uma verdade que não necessitava de demonstração ou de
maiores esclarecimentos (ibid., p. 293).
3. “Políticas públicas”
As teses em tela abordam dois casos de “políticas públicas”: para professores da cidade
de Belém e para a questão agrária. Sílvia Luz estudou o caso dos professores no bojo daquilo
que os reformistas reivindicam como um suposto programa de transição do capitalismo para
o socialismo, que chamam de “democr|tico-popular”. Dentre as conclusões sobre a “política
pública” empreendida, Luz escreve:
O não-cumprimento do Estatuto do Magistério potencializou a desvalorização dos
salários, da organização e de direitos sagrados à vida profissional, favorecendo o
33
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
estranhamento do trabalho, o desânimo e o descrédito político num projeto de
esquerda que dignificasse a ação docente enquanto categoria organizada (id., p. 178).
A política reformista do governo “democr|tico e popular” foi a de agir em relaç~o {s
demandas imediatas, preferindo-as em relação às questões estruturais (ibid., p. 181). Por
dirigentes sindicais e governantes terem a mesma origem sindical e partidária, foi necessário
que a classe se organizasse a partir da base, pressionando o sindicato (ibid., p. 185); o
governo, então, jogava a responsabilidade para cima, sobre o governo federal, naquilo que
ficou conhecido como “jogo de empurra”, que pode ser traduzido como omiss~o do Poder.
Apesar de se ter como resultado que o nome e o ideal da esquerda foram jogados na vala
comum - com o mote “todos os governantes s~o iguais” –, reforçou-se na classe trabalhadora a
consciência da necessidade de organização permanente e crescente, sob qualquer governo. O
programa “democr|tico e popular”, para arrematar o resultado do reformismo sobre a classe
trabalhadora, “significou uma perda salarial de proporções alarmantes” e “precariedade de
seus espaços de trabalho” (ibid., p. 184). Em última inst}ncia, o governo “democráticopopular” n~o chegou nem mesmo a ser republicano, por descumprir a própria lei. Vê-se na
prática como o reformismo representa uma traição à classe trabalhadora.
Tranzilo estudou a questão agrária e diagnosticou que Lula (governo PT) continuou a
mesma linha do governo anterior, de FHC (governo PSDB), e, pode-se dizer, de todos os
anteriores, j| que foram governos de uma classe, a burguesa. Assim o autor escreve: “O
aumento do financiamento necessário para superar a situação drástica e desigual da educação
do campo não ocorreu, visto que a política atual do governo continua a mesma: obedecendo
aos ditames do imperialismo” (id., p. 125).
Então se pergunta, mas qual política é necessária? Efetivamente, defender os
camponeses, os “sem-terra”, a pequena agricultura é defender o serviço público, a educaç~o
pública, a universidade pública e também uma ciência pública. A “política pública” para o
movimento campesino (MST e outras organizações) deveria negar a sua institucionalização
(por exemplo, fóruns e conferências propostos por governos e instituições multilaterais), que
serve de freio para a luta (ibid., p. 124). Ao contrário, deve priorizar
o combate vital de reivindicações que permitiriam um verdadeiro avanço na educação
do campo (...) negar as parcerias com organismos do imperialismo e a dita “sociedade
civil” (...) buscar intelectuais e conferências sustentadas financeiramente e
politicamente pelo próprio esforço coletivo do movimento (ibid., p. 126).
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
34
Luta de Classes e Contemporaneidade
O autor tem clareza de que é impossível ser parceiro de órgãos como ONU, UNESCO,
pois esses são agentes do imperialismo e
não querem uma educação do campo massiva, não querem os trabalhadores
conhecendo a teoria revolucionária. Pelo contrário, os órgãos do imperialismo buscam
exatamente o contrário: políticas que impeçam essa organização revolucionária, uma
formação que misture as diversas teorias do conhecimento, sem objetivo claro nem
horizonte revolucionário. Para o imperialismo é preciso confundir e dividir a classe
organizada no Brasil inclusive no âmbito da educação e da formação de professores
(ibid.,p. 124).
O leninismo de Tranzilo reitera a democracia atual como falácia e que o discurso que
recorre a uma pretensa “sociedade civil” é inconsequente e reformista (ibid., p. 126-127).
O problema da educação só pode ser resolvido no socialismo. E não qualquer
socialismo, mas um tipo avançado organizativamente, dadas a quantidade de pessoas
envolvidas com o sistema educacional e a complexidade de tal sistema.
E o que fazer com o Estado burguês, produtor da falsa política pública? Em outras
palavras, como ter uma verdadeira política pública? Uma política só será verdadeiramente
pública e social com o fim do Estado burguês: “O proletariado, para construir um novo poder,
deve destruir pela raiz velhos aparatos ideológicos e repressivos do Estado e edificar novos
com os quais iniciar| uma nova etapa histórica” (Freitas, id., p. 264).
4. Considerações finais
Nas teses que abordam Lenin no Brasil, a proeminência da educação no conjunto dos
temas mostra que esse é um campo acadêmico avançado para os proletários em relação a
outros campos. Há motivo: uma educação que de fato eduque, isto é, liberte, emancipe – e não
apenas prepare, qualifique, adestre para servir de “m~o-de-obra”, funcionalmente atendendo
ao interesse do capital como uma mercadoria – somente ocorrerá para a maioria dos seres
humanos numa sociedade socialista. Parafraseando Mézsáros (ibid.), uma educação que vá
além do capital é apenas possível no socialismo.
As ruas e praças em 2011 presenciaram algo que não se via há muito tempo. Foram
ocupadas por protestos multitudinários contra o sistema capitalista. Uma síntese dessas
manifestações é “somos 99%”. A conclus~o leninista para o tema proposto por este artigo é
que o desenvolvimento, as políticas públicas e a educação sejam para os 99% de seres
humanos oprimidos – e não para o 1% que detém a riqueza.
35
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Bibliografia
AGÊNCIA SENADO. Sarney aceita indicação do PMDB para disputar Presidência do Senado.
Brasília:
Senado
Federal,
2011.
Disponível
em:
<http://www.senado.gov.br/noticias/Especiais/possesenadores2011/noticias/sarneyaceita-indicaao-do-pmdb-para-disputar-presidncia-do-senado.aspx>. Acesso em 15 dez. 2011.
BENSAID, Daniel. Interview - “It’s time to define the strategy” (2 october 2009). Londres,
International
viewpoint,
out.
2010a.
Disponível
em:
<http://www.marxists.org/archive/bensaid/2009/10/strategy.htm>. Acesso em: 25 nov
2011.
_______. The powers of communism. Londres, International viewpoint, n. 420, jan. 2010b.
BRYAN, Newton A. Paciulli. Educação, trabalho e tecnologia. Tese (Doutorado em Educação) –
Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, Faculdade de Educação, Programa de PósGraduação
em
Educação,
Campinas,
1992.
Disponível
em:
<http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=vtls000050738&idsf=>. Acesso
em: 22 nov. 2011.
DOMMANGET, Maurice. Os grandes socialistas e a educação: de Platão a Lenine. Braga:
Publicações Europa-América, 1974.
FREITAS, Francisco Máuri de Carvalho. Lenin e a educação política: domesticação impossível,
resgate necessário. Tese (doutorado) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de
Campinas
Unicamp,
Campinas,
2005.
Disponível
em:
<http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=vtls000349343&idsf=>. Acesso
em: 22 nov. 2011.
FREITAS, Cezar Ricardo de. O Escolanovismo e a Pedagogia Soviética: as concepções de
Educação Integral e Integrada. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual
do Oeste do Paraná - Unioeste, Centro de Educação, Comunicação e Artes, Programa de PósGraduação Stricto Sensu em Educação, Cascavel-PR, 2009. Disponível em:
<http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/FAEC85EKMP/1/dissertacao.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2011.
GONÇALVES, António Cipriano Parafino. A concepção de educação politécnica em
Moçambique. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais,
Faculdade
de
Educação,
Belo
Horizonte
–
MG,
2005.
Disponível
em:
<http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/FAEC85EKMP/1/dissertacao.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2011.
INSTITUTO BRASILEIRO DE INFORMAÇÃO EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA (IBICT). Ministério da
Ciência e Tecnologia. O que é a BDTD. Brasília: IBICT, 2011. Disponível em:
<http://bdtd.ibict.br/pt/a-bdtd.html>. Acesso em: 24 nov. 2011.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
36
Luta de Classes e Contemporaneidade
LOWY, Michael; BENSAÏD, Daniel; LOUÇA, Francisco. Letter to the comrades of the Democracia
socialista (DS-PT), Brazil (January 2005). Paris, January 2005. Disponível em:
<http://www.marxists.org/archive/bensaid/2005/01/dspt-brazil.htm>. Acesso em: 25 nov.
2011.
LUZ, Sílvia Letícia D’Oliveira da. A valorizaç~o do profissional da educaç~o e a carreira
docente: a experiência do governo de frente popular em Belém do Pará. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Educação,
Programa de Pós-Graduação em Educação, Belém, 2008. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp079631.pdf>. Acesso em: 22 nov.
2011.
MAGANE, Felipe Toledo. Crítica ontológica à teoria da democracia como valor universal de
Carlos Nelson Coutinho. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Estudos PósGraduados em História, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2007. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp030748.pdf>. Acesso em: 22 nov.
2011.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Textos sobre educação e ensino. 2. ed. São Paulo: Moraes, 1992.
MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.
NOVACK, George. O desenvolvimento desigual e combinado na história. São Paulo: Instituto José
Luís e Rosa Sundermann, 2008.
ROBAINA, Roberto. Um giro histórico na situação mundial. Rio de Janeiro: Fundação Lauro
Campos,
2009.
Disponível
em:
<http://www.socialismo.org.br/portal/images/stories/documentos/Um_giro_histrico_na_sit
uao_mundial.pdf>. Acesso em: 1 nov. 2011.
_______. Em defesa do leninismo: algumas considerações sobre a teoria da revolução em Lenin.
Rio
de
Janeiro:
Fundação
Lauro
Campos,
2011a.
Disponível
em:
<http://www.socialismo.org.br/portal/filosofia/155-artigo/2157-em-defesa-do-leninismo>.
Acesso em: 22 nov. 2011.
________. Heranças do marxismo: uma tradição internacionalista e história de combates. In:
Economia e dialética: seleção de textos marxistas. Rio de Janeiro: Fundação Lauro Campos,
2011b.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal.
11. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004.
SERVICE, Robert. Lenin: a biografia definitiva. 2. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2007.
TRANZILO, Paulo Riela. Contribuições Teóricas para a Formação de Professores do Campo.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação
37
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
em Educação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008. Disponível em:
<http://www.gepec.ufscar.br/textos-1/teses-dissertacoes-e-tccs/contribuicoes-teoricaspara-a-formacao-de-professores-do-campo/at_download/file>. Acesso em: 22 nov. 2011.
TROTSKY, Leon. A revolução traída. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2005.
ŽIŽEK, Slavoj. Prefácio: entre as duas revoluções. In: LENIN, V. I. Às portas da revolução:
escritos de Lenin de 1917. São Paulo: Boitempo, 2005.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
38
Luta de Classes e Contemporaneidade
A condição “des-humana” da mulher na sociedade de classes
Gerusa de A. Ribeiro Oliveira
Resumo: O objetivo deste trabalho é discutir e apresentar dados parciais da pesquisa: O
infanticídio na sociedade brasileira: um estudo das dimensões social, histórica e cultural, que
estamos desenvolvendo na UEG, sob a perspectiva do materialismo histórico dialético. Nossa
perspectiva de análise refere-se às condições sociais e econômicas das mulheres que
cometeram esta modalidade de crime. Os processos inicialmente identificados apontam para
uma realidade dramática das mulheres que mataram seus filhos, todas elas vivendo em estado
de pobreza, abandono e muitas vezes de violência. Tais características não costumam fazer
parte das reflexões realizadas pelos profissionais das áreas médicas e jurídicas que, quase
sempre tecem argumentos voltados para a “naturalizaç~o” da mulher, buscando apresent|-la
como instintivamente maternal, submissa, frágil ou naturalmente maligna.
Palavras-chave: infanticídio, materialismo histórico, violência.
Buscamos neste estudo sobre o infanticídio discutir a questão da mulher pelo viés da
maternidade. Para isto buscamos a partir da história das mulheres do passado elementos que
possam elucidar os motivos que subjazem a prática do infanticídio no presente. O código
penal brasileiro na contemporaneidade vincula a violência do infanticídio ao estado
puerperal, ou seja, a mulher que o comete, estaria totalmente desequilibrada emocionalmente,
incapaz de agir com racionalidade. Todavia, essa forma de pensar, pressupõe uma “natureza
feminina” um instinto maternal presente em todas as mulheres, tese que segundo Badinter
(1985), não se sustenta. De acordo com a autora, o amor materno não é inato, ao invés disso,
ele é adquirido ao longo dos dias passados ao lado do filho, e por ocasião dos cuidados que lhe
dispensamos.
Além disso, Badinter (1985) nos mostra que o amor em geral, antes da metade do
século XVIII, não tinha a posição e a importância que hoje lhe são conferidos. A despeito das
pesquisas realizadas por historiadores dos costumes, no Brasil, mantém-se a ideologia de que

Bolsista do CNPQ, aluna do 3º ano de História da Universidade Estadual de Goiás – UnUCSEH, pesquisadora de
Iniciação Científica no Projeto: Infanticídio na sociedade brasileira: um estudo das dimensões, social, histórica e
cultural, sob orientação da Profa. Dra. Veralúcia Pinheiro.
39
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
a maternidade é um objetivo sagrado das mulheres. Essa ideologia fez parte de um projeto
colonizador desenvolvido entre os séculos XVI e XVIII, executado por padres, governantes e
cientistas, em total acordo com as determinações impostas pela empresa portuguesa.
Del Priore (1993), afirma que nesse projeto todas as mulheres participariam do
preenchimento dos espaços vazios da terra recém - descoberta. A Igreja cumpriu com o seu
papel de transportar os valores da metrópole para a colônia. A mentalidade colonial aos
poucos foi absorvendo as regras de conduta moral introduzidas pelo discurso normatizador
estabelecido pelos moralistas, pregadores e confessores. Adestrar a mulher fazia parte do
processo civilizatório no Brasil colônia.
Ainda segundo Del Priore (1993), o discurso normativo médico foi um instrumento
fundamental na domesticação feminina. Suas considerações acerca do funcionamento do
corpo da mulher sustentavam implicitamente o discurso religioso na medida em que afirmava
com bases “científicas” que a funç~o natural da mulher era a procriaç~o. Apesar do empenho
do Estado, da Igreja e da Ciência, em transformar a mulher em agente exclusivo do lar,
responsável pela casa, família, bem estar do marido e da prole, a história aponta para práticas
que demonstram inadequação a essa proposta. Entre essas práticas, o infanticídio.
Nossa perspectiva de análise leva em conta as condições sociais e econômicas das
mulheres que cometeram esta modalidade de crime, ao contrário das análises dos operadores
do direito, que tendem a discutir uma mulher ideal, abstrata. Partimos do pressuposto de que
as condições materiais das mulheres pesquisadas influenciaram diretamente no conjunto de
fatores que as levaram à prática do infanticídio. Acreditamos, portanto, que a violência na
sociedade capitalista constitui-se como pano de fundo para práticas que reproduzem
violência estrutural deste modelo de sociedade, como nos mostra Piazzeta (2005, p. 36):
O infanticídio é, principalmente e antes de tudo, um delito social, praticado na quase
totalidade dos casos, por mães solteiras ou mulheres abandonadas pelos maridos, por
mulheres pobres e/ou com prole numerosa. Raríssimas vezes, para não dizer
nenhuma, têm sido acusadas desses crimes mulheres casadas e felizes, as quais, via de
regra, dão à luz cercadas do amparo do marido e do apoio moral dos familiares.
(PIAZZETA, 2005, p. 36)
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
40
Luta de Classes e Contemporaneidade
Neste estudo, analisamos 15 processos, localizados em diferentes regiões do país:
Minas Gerais (01), Distrito Federal (02), Paraná (03), Rio Grande do Sul (06), São Paulo (02) e
01 do Tribunal do Estado de Goiás. Pretendíamos inicialmente analisar somente os crimes de
infanticídio julgados pelo Tribunal de Justiça de Goiás, porém nos deparamos com a pouca
freqüência dessa modalidade de crime e também com a dificuldade em acessar os processos
no Fórum de Goiás. Nos processos analisados foi possível conhecer parcialmente as
motivações das mulheres e os meandros que configuram a experiência de infanticídio, assim
como a atuação dos operadores do direito.
Em geral, as mulheres acusadas de matar seus filhos trazem exemplos que denunciam
a situação bárbara em meio à miséria, ao abandono, e à violência em que sobrevivem. Em
nenhum dos casos que integram nosso corpus de pesquisa encontramos mulheres com
autonomia profissional e financeira. Ao contrário, nove delas possuíam vínculos de trabalho
precários, relações familiares marcadas também pela precariedade. Nos demais processos, ou
seja, seis, os dados disponíveis não foram suficientes para conhecermos a condição financeira
das mulheres envolvidas.
Um dos aspectos que nos chama a atenção nos processos é a condição de isolamento
em que ocorrem os partos dessas mulheres, sem nenhum apoio familiar ou conjugal. Todas
elas fizeram seus partos sozinhas. Sendo que das 15 mulheres dos processos analisados, nove
esconderam a gravidez. Essa ocultação da gravidez, segundo elas próprias, se dá por vergonha
ou medo. Vergonha de pais severos. Medo de punição dos pais, de perder o emprego e até
mesmo por receio de perder o namorado.
Em geral os “operadores do direito” (juízes e promotores), acatam os pedidos de
classificaç~o do crime como infanticídio, que pressupõe o “estado pueperal1. Em todos os
casos analisados a defesa das mulheres solicitou enquadramento nesta modalidade. Tal
solicitação se justifica frente às penas significativamente menores que as rés recebem nesses
casos, diferente do que se fossem julgadas como homicidas. Porém, como a definição de
Estado puerperal é bastante ampla e controversa, sempre dependendo de interpretações e
laudos periciais, algumas das mulheres n~o receberam esse “benefício”, e foram a júri popular.
Os dados contidos nos processos não foram suficientes para que pudéssemos associar algum
Segundo a língua portuguesa o voc|bulo puerpério, de origem latina “puerperiu”, significa o “período que segue
ao parto até que os órgãos genitais e o estado geral da mulher retornem à normalidade. (FERREIRA, 1986, p.
1415).
1
41
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
padr~o de comportamento utilizado pelos “operadores do direito” para tal classificaç~o. A
condição social de todas as mulheres nos processos analisados é difícil, penosa e as
repercussões do crime causam sempre repúdio na população. No entanto, o julgamento das
mulheres não é sempre igual.
Dessa forma, até agora pudemos observar, pela análise dos casos, que a prática do
infanticídio se dá com mulheres com estrutura social debilitada. Tanto os recursos humanos
quanto materiais são inacessíveis às infanticidas. A falta de apoio familiar e conjugal é tão
visível que muitas das narrativas nos processos, dão conta de situações em que as mulheres
passaram toda a gravidez em casa e mesmo assim, suas famílias não perceberam sua gravidez,
só se dando conta depois que a morte do bebê tornou-se pública.
Inferimos, portanto, que nessa condição de invisibilidade e de isolamento social e
afetivo, o infanticídio então pode aparecer como uma saída viável, já que a mulher não teria
com quem contar. Além disso, ela espera que, como não perceberam a gravidez, também não
perceberão o fim dela.
Os processos trazem casos exemplares, como o filho de Jeane (Tribunal de Justiça do
Paraná) que só foi descoberto pelos catadores de lixo. Também o filho de Antônia (Tribunal de
Justiça do Distrito Federal) que foi encontrado no lixo, por um vizinho. Tudo isso, nos faz
refletir sobre a possibilidade de existirem um número muito maior de casos de infanticídio.
Muitas mulheres, provavelmente engravidam e já que são invisíveis para a sociedade, a morte
da criança também continua invisível.
A falta de recursos materiais envolve ainda maiores dramas. A dependência financeira
das mulheres as coloca em condições de submissão aos pais ou namorados. No processo de
Juliana (Tribunal de Justiça de Minas Gerais), o motivo para o infanticídio, segundo ela, foi
acreditar que uma pessoa a mais para sua mãe sustentar seria um peso insuportável. Já
Cleonice (Tribunal de Justiça de São Paulo) e Lidiane (Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul) tiveram medo de perder o emprego e por isso esconderam a gravidez dos patrões. Elas
sabiam perfeitamente que poderiam perder seus empregos devido à gravidez, pois não
poderiam continuar a executar as tarefas de rotina.
Percebemos, portanto, que a precariedade das relações de trabalho, a falta de instrução
ou educação formal das mulheres, algumas ainda adolescentes fazem parte do contexto das
mulheres autoras de infanticídio. Além disso, a ausência de acompanhamento médico neo-
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
42
Luta de Classes e Contemporaneidade
natal e no momento do parto, fato verificado em todos os casos, também concorre para a
prática do infanticídio, já que colabora para que não se crie uma expectativa em relação à
chegada da criança. Por fim, toda essa precariedade financeira, a qual seria ainda mais
exacerbada pela chegada de mais um dependente, colabora para criar uma tensão nas
mulheres grávidas que as deixa emocionalmente fragilizadas.
Dessa forma, pelo que percebemos até o presente momento da pesquisa, o estado
puerperal é muitas vezes considerado como justificativa para o crime de infanticídio, de
acordo com o entendimento dos operadores do direito. Essa opinião corrobora a tese de
naturalização da mulher, por considerar que o instinto materno é natural e dessa forma, todas
as mulheres seriam instintivamente voltadas à proteção de suas crias. Desse modo, na
concepção do direito, a mulher que pratica o infanticídio sofre de uma profunda perturbação
fisiológica que lhe oblitera o raciocínio. Porém, nos processos judiciais, as razões que levam as
mulheres a sofrer essa espécie de depressão pós-parto, são quase sempre ignoradas, em
nenhum momento se ressalta a condição miserável dessas mulheres.
Obviamente inúmeros outros fatores devem influenciar nessa prática, já que o
infanticídio, mesmo em localidades pobres, não é generalizado. A análise dessas razões foge
dos objetivos desse trabalho. De resto, nos parece óbvio que se a prática do infanticídio
decorresse somente do estado puerperal, e se esse estado fosse próprio do gênero feminino,
como um todo, deveria haver incidências dessa prática em todos os meios, o que não se
verifica até o estágio atual da nossa pesquisa.
Referências
PIAZZETA, Naele Ochoa. Aspectos polêmicos do delito de infanticídio. Revista Justiça e.
Cidadania, Rio de Janeiro, v. 56, p. 36, mar. 2005.
DEL PRIORE, Mary. AO SUL DO CORPO: Condição feminina, maternidades e mentalidades no
Brasil colônia. Rio de Janeiro: Ed. Olympio, RJ, 1993.
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. 6ª. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985.
43
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
SAFIOTTI, Heleieth Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2ª. ed.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1979.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
44
Luta de Classes e Contemporaneidade
Identidade política e luta de classes no âmbito da educação
BORGES, Kamylla Pereira1
Resumo: Historicamente a educação institucionalizada sempre esteve atrelada aos
antagonismos das classes sociais. Dessa forma, nesse estudo buscamos discutir a questão da
identidade política e de classe dos professores como um importante elemento de contraposição a
ideologia educacional capitalista e construção de um novo conceito de educação. Para tanto,
partimos do concreto pensando por estes professores através da coleta de dados empíricos por
meio de uma entrevista realizada com docentes do ensino básico da cidade de Jaraguá-GO. Esses
dados foram analisados a luz dos princípios do Materialismo Histórico Dialético. Ao analisar os
dados, de acordo com os referenciais adotados, entendemos que a superação dos limites
existentes na educação pública passa pela constituição de uma identidade política e de classe por
parte dos docentes.
Palavras Chave: Educação, trabalho, trabalhador, classe social
Introdução
A relação entre trabalho e educação tem sido marcada pelos antagonismos das classes
sociais, de forma que as demandas econômicas resultantes da reorganização do sistema
capitalista, trouxeram várias repercussões sobre as políticas educacionais, que se
fundamentaram na crença de que a educação é o elemento primordial no desenvolvimento
econômico e social de uma nação. Essa premissa culminou por vincular as ações educativas
aos princípios utilitaristas e pragmáticos do mercado, deformando o conceito de educação que
passou a ser tratada como mercadoria, responsável pela qualificação da mão de obra para
inserção nos moldes produtivos voltados para acumulação e expansão do capital.
Dentro dessa lógica os processos educativos institucionalizados tem contribuído para
continuidade do sistema de exploração da sociedade capitalista. Dessa forma, o presente
artigo busca discutir a questão da identidade política e de classe dos professores como um
importante elemento de contraposição a ideologia educacional capitalista e construção de um
novo conceito de educação. Para tanto, buscamos apreender e compreender as concepções
acerca do trabalho de um grupo de professores duas instituições públicas da cidade de
Jaraguá-Go, uma da rede estadual e outra da rede municipal.
Foram utilizados três critérios básicos para a escolha das instituições escolares: maior
abrangência das modalidades de ensino, maior número de professores concursados, maior
1
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Goiás, Docente da UEG - Unidade Universitária de Jaraguá
45
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
quantitativo de alunos matriculados. A amostra da pesquisa foi composta por uma seleção
aleatória que contemplou vinte e oito docentes ( quatorze da escola municipal e quatorze da
estadual ) que efetivamente estavam em exercício pedagógico em sala de aula e que possuíam
vínculo empregatício efetivo com o estado ou município
Utilizamos como instrumento de coleta de dados a entrevista semi-estruturada
organizada a partir das concepções e percepções dos docentes em relação a sua vinculação a
classe trabalhadora. Esses dados foram analisados a luz dos princípios do Materialismo
Histórico Dialético, fundamentados principalmente em Marx, Mészáros, Mascarenhas,
Frigotto, Saviani e Paro.
Conceito de Trabalho e Educação
O trabalho é na maioria das vezes, visto como sinônimo de dor, sofrimento, desgaste
físico e mental, mas na perspectiva marxiana, o trabalho é humanização, criação, recriação; é
transformação dos elementos da natureza ao redor. Para Marx (2001), o que distingue o ser
humano dos outros seres é sua capacidade de ação transformadora consciente - a práxis. E o
trabalho é, justamente, a manifestação da práxis.
Mas, para trabalhar é necessário que o homem tenha conhecimento suficiente sobre a
sua forma de produção, É preciso que se aprenda como trabalhar e aqui nos deparamos com
outro aspecto fundamentalmente humano, a educação. Ao trabalhar, o homem se torna
histórico, pois constrói sua própria historia através da produção de sua cultura, a qual é feita
através do próprio trabalho. Dessa forma para se tornar homem, ele precisa apropriar-se da
cultura historicamente produzida e é justamente a educaç~o que realiza esse papel. “É pela
apropriação dos elementos culturais que passam a constituir sua personalidade viva, que o
homem se fez humano-histórico”. ( PARO, 2010, p.25)
A divisão do trabalho, o avanço das técnicas de produção e a surgimento da
propriedade privada propiciaram uma nova configuração da sociedade, que passou a ser
composta basicamente por duas classes distintas: os proprietários e os não proprietários.
Nesse contexto era preciso instituir um novo tipo de educação que passaria a ser apreciada
como fonte de poder e domínio, fortemente atrelada aos antagonismos das classes sociais.
(PONCE, 1986; SAVIANI, 2007).
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
46
Luta de Classes e Contemporaneidade
Com a instauração desse novo sistema societal, era necessário também uma nova
forma de educação que forjasse uma nova concepção de mundo compatível com a ideologia
capitalista. Era preciso a disseminação de uma moderna educação institucionalizada que
levasse os sujeitos a assimilar atitudes, condutas e saberes que contribuíssem para
manutenção e perpetuação desse sistema. Por conseguinte, escola está calcada sobre a base
das contradições da produção das relações sociais do sistema societal do capital e devido a
isso possui vários limites que impedem o avanço da socialização de um conhecimento que
forneça ao individuo uma autonomia intelectual, cultural e uma consciência política
(MÉSZÁROS, 2005).
Mészáros (2005) salienta que para avançarmos em direção a uma educação para além
do capital é preciso desconstruir e reconstruir a escola e a sociedade simultaneamente.
Dentro dessa lógica de avanço para uma nova sociedade e consequentemente uma nova
educação, não podemos negligenciar o papel fundamental dos sujeitos sociais envolvidos no
trabalho educativo das instituições escolares, dos quais destaco os trabalhadores docentes, os
quais dia após dia lutam para sobreviver e contribuir para a difusão do conhecimento para a
humanidade, seja ele sob os moldes da ideologia capitalista ou não. Nessa perspectiva, é
preciso compreender o trabalho docente com um dos determinantes centrais para o avanço
da construção de um novo sistema educacional, que contribua para o fim da desigualdade e
exploração humana propiciada pelo modo de produção capitalista.
Um dos elementos fundamentais para reconstrução da educação e da escola pública é a
organização política, pois através da organização política pode se construir uma crítica
contundente a sociedade existente, apontando elementos que favoreçam a transformação
histórica da mesma. No entanto, nos últimos anos o sistema societal do capital sofreu muitas
reviravoltas que repercutiram em todas as formas de trabalho assalariado dessa sociedade. Os
trabalhadores, cada vez mais explorados e desumanizados, encontram-se perdidos em meio
ás ideologias da sociedade capitalista, o que dificulta o desenvolvimento da consciência de
classe e sem esta, não há como os trabalhadores se organizarem politicamente de forma
consciente.
47
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
As Transformações do Sistema Capitalista, Educação e a Identidade Política
O final do século XX e início do século XXI vêm marcados por intensas alterações
econômicas, socioculturais, políticas e ideológicas resultantes da crise estrutural do sistema
capitalista. Esta crise gerou a necessidade da reformulação de um novo ciclo de acumulação,
no qual mecanismos de mercado balizados pela doutrina do neoliberalismo foram retomados.
Diversos conceitos foram elaborados ou re-elaborados na tentativa de se justificar a
necessidade das reformas do aparelho do Estado e as significativas alterações na relação
capital/trabalho. Dentre estes se destacam termos como globalização, reestruturação
produtiva, estado mínimo, qualidade total etc. Nesse sentido era necessário ajustar a educação
escolar às exigências da nova divisão internacional do trabalho (FRIGOTTO E CIAVATTA,
2003, p. 108).
Assim sendo, a definição e concepção de qualidade educacional passaram a ser
influenciada por diversas agências multilaterais e fundações vinculadas a grandes grupos
empresariais. Com destaque para os organismos internacionais (Banco Mundial, FMI, OCDE,
UNESCO, entre outras) que entram em cena para mediar os ajustes necessários para que os
sistemas educacionais atendessem as demandas da nova ordem do capital. (FRIGOTTO E
CIAVATTA, 2003, OLIVEIRA, 2000; FONSECA, 1998, ENGUITA, 1994)
A interferência dessas agências no fomento de políticas sociais e econômicas do país
abriu margem para a difusão do conceito de educação como mercadoria. De forma que
também surge um novo conceito de qualidade para essa educação oferecida, que passa a ser
vista apenas como a prestação de um serviço, seja público ou privado.
A concepção de educação como uma mercadoria torna a relação custo/benefício o
principal determinante de sua qualidade, as demais categorias constituintes das ações
educacionais são desconsideradas ou relegadas ao segundo plano. O que interessa é o retorno
econômico, a educação como um direito, como constituinte da humanização e da consciência
política autônoma dos sujeitos, não é interessante. Assim sendo, a educação está entre as
políticas públicas cujo processo de mercantilização está ocorrendo de forma mais acelerada, o
que acarreta prejuízos para a sociedade como um todo, desde os trabalhadores docentes,
gestores educacionais até pais e alunos, que sem saber, são submetidos a uma educação
alienante e desprovida de qualquer ética ou crítica.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
48
Luta de Classes e Contemporaneidade
Nesta perspectiva o que se oferece aos alunos é uma educação deformada, fetichizada e
alienada, que nem mesmo tem conseguido seu objetivo primeiro que é preparar para o tão
sonhado mercado de trabalho. Desconsidera-se a totalidade do contexto social, político,
cultural e econômico dos sujeitos inseridos na realidade das instituições públicas de ensino e
a ênfase recai sobre projetos orientados pelas necessidades de acumulação e expansão
capitalista, cuja qualidade se torna resultado de uma competitividade e uma boa avaliação nos
padrões que são considerados aceitáveis por grupos empresariais nacionais e internacionais e
agências multilaterais.
A deturpação da educação chegou a tal ponto que deturpa a própria escola e os
trabalhadores nela inseridos, os espaços para conscientização, desenvolvimento de uma
autonomia intelectual, para crítica e criação de uma identidade política e de classe estão cada
vez mais se extinguindo. O que tem sobrevivido no ambiente escolar, e de forma predatória
tem caçado e tentado aniquilar todas as outras concepções, sejam educacionais ou até mesmo
visões de mundo, é a reprodução acrítica e a-histórica dos discursos enfatizados e
disseminados pelo estado e por seus agentes. O que gera uma gama de multiplicadores de
suas premissas, legitimando as ações excludentes e exploratórias do poder público,
transformando as escolas públicas em um ambiente cada vez mais marcado pelas
desigualdades, de raça, gênero e econômico-sociais, pela competição e por diversos conflitos
entre professores, gestores e alunos.
Nesse contexto, Meszáros (2004, p.50) salienta que outro mundo é sim possível e
também necessário. E para o sucesso dessa tarefa, o autor deixa claro que é necessário
compreender que n~o existe um sujeito da emancipaç~o predefinido, mas abrange “a
totalidade dos grupos sociológicos capazes de se aglutinar em uma força transformadora
efetiva no }mbito de um quadro de orientaç~o estratégica adequado”. Ou seja, os mais
diversos grupos sociais de trabalhadores devem desenvolver a consciência de que possuem
um interesse comum objetivo que é instituir a “alternativa hegemônica do trabalho { ordem
social do capital”. Nesse processo, os conflitos e interesse opostos desses grupos seriam
rearticulados, combinando essa variabilidade em um único sujeito social emancipador: a
abrangente gama de todos os trabalhadores do sistema societal do capital.
Por conseguinte, antes de lutar por melhores condições de vida e trabalho e por um
novo conceito de educação, os professores devem ter clareza da classe social a que pertencem,
49
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
se identifiquem com essa classe e construam uma identidade política. Pois a luta dos docentes
está contida em uma ação muito maior, que é a transformação da sociedade como um todo.
Nesse aspecto, Meszáros (2004, p.52) enfatiza que o papel da participação - como “exercício
criativo, em benefício de todos, dos poderes de tomada de decis~o adquiridos” - e a
solidariedade são requisitos fundamentais para êxito da emancipação da sociedade. De acordo
com o autor:
[...] sem desenvolver e aprofundar a solidariedade entre as forças que lutam pela
concretização de uma ordem alternativa, seus esforços - por mais dedicadas que sejam
as pessoas que participam de lutas particulares, dispostas a sofrer privação e fazer os
sacrifícios necessários no caso de uma greve que durou um ano- não terão sucesso.
(MESZÁROS, 2004, p.53)
Angela Mascarenhas (2002) salienta que os desafios impostos à classe trabalhadora
nesta sociedade exigem mais do que nunca o desenvolvimento de uma identidade política,
como elemento constitutivo da consciência de classe na contraposição ao processo de
expansão e acumulação do capital. De acordo com a autora (p.15), a identidade política pode
ser conceituada como:
Processo de configuração da auto-consciência de um grupo, em que ele elabora sua
posição e ação diante dos conflitos sociais e relações de poder. A identidade é um
modo específico de articulação do grupo. É um fato de consciência significando uma
auto-representação ou auto-definição, manifestada tanto no comportamento como no
discurso. É um jogo dialético entre o mesmo e o diverso. O conflito e a
heterogeneidade constituem terreno propício à formulação da autoconsciência.
A construção da identidade é um processo contínuo, fundamentado nas relações que o
sujeito estabelece com os outros, de acordo com um determinado projeto político. É o
reconhecimento e afirmação do papel do indivíduo como agente histórico, consciente e
atuante na elaboração de um novo projeto social, antagônico ao modelo existente. Constituir
uma identidade política é se posicionar, lutar, resistir as imposições do sistema
sociometábolico do capital, reconhecer-se permanentemente ligado a uma determinada classe
social e articular os interesses dessa classe.(SILVA, H.L.F, 2006)
Os docentes, pertencem a classe trabalhadora, no entanto, não são uma classe em si,
pois não se reconhecem como parte da imensa gama de trabalhadores que são explorados
pelos ditames do capital. A caracterização de uma classe social não é algo simples, pois mais
que identificação das pessoas umas com as outras formando um grupo é necessário um
posicionamento político por parte desse grupo. Pois, à medida que, existe apenas uma ligação
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
50
Luta de Classes e Contemporaneidade
local através de condições econômicas, modo de vida ou cultura sem uma organização política
não há efetivação da classe social (MARX, 1997)
Por conseguinte, a deficiência na percepção e consciência dos docentes em relação a
sua classe social é um dos fatores que contribui para a manutenção das relações de exploração
em seu ambiente de trabalho e consequentemente na manutenção e disseminação do conceito
de educação como mercadoria. Isso porque ser trabalhador é se reconhecer como sujeito
histórico da mudança, da transformação da sociedade, sem essa identidade e colaboração com
os outros grupos sociais trabalhadores não há como transformar verdadeiramente suas a
educação pública.
Assim sendo, na constituição de uma identidade política e de classe é necessário que as
contradições, conflitos e relações de poder existentes na relação entre educação e trabalho
sejam desvendados. É preciso que os educadores elucidem os processos de alienação do
sistema capitalista, compreendendo o porquê do trabalho, nessa sociedade, ser visto como
sinônimo de tortura, dor e sofrimento, ocasionando, muitas vezes, problemas de saúde nos
trabalhadores. E é somente através da articulação entre política, educação e trabalho que
essas questões podem ser descortinadas. (MASCARENHAS, A; 2005)
No entanto, os discursos ideológicos presentes no meio educacional como:
profissionais competentes, meritocracia e profissionalismo tem afastado cada vez mais os
educadores do sentimento de pertencimento a classe trabalhadora. Há um forte preconceito e
rejeiç~o ao próprio termo “trabalhador” que é visto como algo que desqualifica, que
empobrece o desenvolvimento de seu trabalho e desmerece todo o esforço empreendido para
aperfeiçoamento de sua função pedagógica.
Na presente pesquisa, 79% dos trabalhadores docentes entrevistados se consideraram
profissionais, rejeitando sua inserção na classe trabalhadora. A busca incessante por
qualificação e aperfeiçoamento foram os motivos mais citados como justificativa para repudio
de sua identidade como trabalhador, seguido pelo “amor” e “dedicaç~o” devotados a profiss~o.
Quando você fala assim, eu sou uma profissional da educação ( ênfase em profissional)
então você executa seu trabalho bem, então se for nesse sentido aí, eu prefiro ser
chamada de profissional da educação porque a minha profissão é a educação, você
tem que ta trabalhando com amor, com dedicação e não deixando esse princípio.
(Professora 15- rede estadual)
Ah eu me considero uma profissional da educação né, e é o que eu quero ser, o que eu
pretendo ser, se ...quando eu escolhi essa profissão era porque eu queria ser uma boa
professora, senão não teria nem começado nessa área. Mas assim, trabalhadora é
51
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
quando você simplesmente ta lá pra receber o seu salário né, e você só trabalha em
prol disso, do seu sustento próprio, como profissional, eu vejo assim como forma de
procurar uma melhoria para minha vida e para vida dos meus alunos. ( Professora 17
– rede estadual)
O restante que se considerou parte da classe trabalhadora também não o fez devido a
construção de uma identidade política, mas devido a leitura deturpada de trabalho e
trabalhador pela ótica da exploração do capital. Isto é, os docentes se consideraram
trabalhadores, devido principalmente a falta de reconhecimento “profissional” e as péssimas
condições de trabalho como: baixos salários, descaso do estado, salas super lotadas, entre
outros.
Eu me considero uma trabalhadora da educação, porque não está sendo fácil. Acho
que o profissional é aquele que ta lá no trabalho e pronto, saiu do trabalho não pensa
em mais nada em relação a ele, e a gente não é assim. A gente vai pra casa, a gente leva
material, a gente sai com a vida dos alunos nas mãos, o tempo todo. ( Professora 17 –
rede estadual)
Trabalhador porque eu trabalho além do que as vezes eu suporto. Né, eu acho assim
porque a carga horária do professor hoje ela é muito pesada. Tá porque não é só a
gente chegar na sala de aula e dar aula acaba as atividades na sala de aula, a gente tá
cansada, estressada, chega em casa e tem outras atividades além da documentação,
ainda tem a familia em casa, então é uma carga horária muito pesada. ( Professora 1 –
rede municipal)
A negação de sua classe social dificulta a elaboração de uma práxis que permita a
construção de um fazer pedagógico voltado para emancipação e desenvolvimento de uma
autonomia intelectual nos estudantes, pois os próprios docentes não conseguem realizar uma
leitura clara do verdadeiro contexto em que estão inseridos, o que dificulta sua opção política,
permanecendo presos a teia ideológica e alienante da educação-mercadoria. Além disso, na
perspectiva de serem profissionais competentes, os educadores passam a estranhar os
próprios companheiros de classe, passando enxergá-los como concorrentes, pautando suas
relações sociais em critérios competitivos e individualistas.
A falta de uma identidade política reflete na ausência de uma perspectiva crítica, que
favoreça uma visão completa dos múltiplos determinantes que afetam o trabalho docente. Os
professores reconhecem as condições indignas de trabalho a que são submetidos, mas sua
interpretação desses dados muitas vezes é reduzida a apenas a sua situação imediata de
trabalho, eles não conseguem avançar
além das aparências imediatas. É uma crítica
superficial, pois desconsidera as contradições do modo de produção capitalista, os processos
de alienação e os conseqüentes antagonismos de classe por ele gestados.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
52
Luta de Classes e Contemporaneidade
Uma educação pública de qualidade só se efetivará mediante a articulação de seus
trabalhadores em prol
da apropriação e difusão dos conhecimentos escolares para
contraposição ao sistema societal do capital. Cultivando a consciência política e de classe
cotidianamente, educando a todos de forma criativa e criadora, tendo como princípio
educativo o trabalho. O trabalho como princípio educativo é aqui entendido não como a
preparação para inserção no mercado capitalista, mas sim de uma formação que favoreça a
inserção do indivíduo no mundo, de forma criativa, realizadora e transformadora.
(MASCARENHAS, A; 2005, p. 162)
Nessa perspectiva, a construção de uma identidade política poderá contribuir para
associação entre teoria e prática, entre ação política e ação pedagógica, culminando na
politização das questões cotidianas. Nesse processo, novas posturas e comportamentos
poderão surgir contribuindo para crítica e a revelação do caráter ideológico e alienante dos
vários elementos que constituem o trabalho docente, o que poderá trazer contundentes
contribuições para a desconstrução dessa educação-mercadoria doente e dessa escola pública
doente.
Considerações Finais
Apesar de explorados e muitas vezes subjugados, muito mais que vítimas, os
trabalhadores docentes são sujeitos sociais, que assim como os demais trabalhadores do
modo de produção capitalista, possuem em suas mãos a potencialidade para a transformação
da sociedade, a qual poderá se efetivar mediante a construção de sua identidade política,
favorecendo ações para a resistência contra as imposições desse sistema que deforma a
educação, a escola e seus trabalhadores.
Portanto, a luta em prol de uma educação pública de qualidade e contra a exploração
do trabalho docente, passa necessariamente pela constituição de um novo conceito da própria
qualidade educacional, um conceito pautado na construção da autonomia intelectual dos
alunos, contribuindo para formação onilateral do indivíduo. Uma qualidade que seja pautada
não apenas em aspectos técnicos, no saber-fazer, mas fundamentalmente na constituição de
uma identidade política, tanto por parte dos educadores como dos estudantes, capaz de
desvendar os processos de alienação do modo de produção capitalista, partindo da
compreensão de que o trabalho é fundante da própria humanização dos indivíduos. A partir
53
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
de então, os trabalhadores docentes poderão realmente contribuir para construção de uma
nova sociedade, assumindo seu papel de sujeito histórico, delineando uma nova concepção de
educação, que vá além dos limites impostos pelo capital e que traga
autonomia,
conscientização e uma verdadeira realização para os professores.
Referências
ENGUITA, Mariano Fernández. O discurso da qualidade e a qualidade do discurso.
In:GENTILLI, Pablo A.A.; SILVA, Tomaz Tadeu da (org). Neoliberalismo, qualidade total e
educação. Petropólis, RJ: Vozes, 1994, p.93-110.
FONSECA, Marília. Banco Mundial como referência para a justiça social no mundo: evidências
do caso brasileiro. In: Revista de Educação da USP, vol.24, jan/jun, 1998.
FRIGOTTO, G; CIAVATTA, M. Educação Básica no Brasil na década de 1990: subordinação
ativa e consentida a lógica do mercado. Educ.soc., Campinas, v.24, n.82,p. 93-130, abril, 2003.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo:Martin Claret, 2001. 198p
______. O 18 brumário e cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
MASCARENHAS, Angela.C.B. O trabalhador e a identidade política da classe trabalhadora.
Goiânia: Alternativa. 2002.
_______. Educação e trabalho na sociedade capitalista: reprodução e contraposição: Goiânia:
Editora da UCG, 2005.
MESZÁROS, Istvan. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.
_________. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
OLIVEIRA, D.A. Educação básica. Gestão do trabalho e da pobreza. Petrópolis: Vozes, 2000.
PARO, Vitor Henrique. Educação como exercício de poder: crítica ao senso comum em
educação. 2º ed. São Paulo: Cortez, 2010.
PONCE, Aníbal. Escola e Luta de Classes.São Paulo; Cortez, 1986.
SAVIANI, D. Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos. Revista brasileira de
Educação (12), 34. Jan/abril 2007.
SILVA, H.L.F da. As trabalhadoras da educação infantil e a construção de uma identidade
política. 2006. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Educação, Universidade Federal de
Goiás.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
54
Luta de Classes e Contemporaneidade
Educação superior no Brasil uma retrospectiva
Francielly Cristina Moreira de Oliveira1
[email protected]
Resumo: Este trabalho tem por objetivo fazer uma analise da educação superior no
Brasil, para tal, utiliza - se as acepções contidas no artigo de Ristoff (2008) “Educação
Superior no Brasil – 10 anos pós - LDB: da expans~o { democratizaç~o”, quer-se mostrar como
a Universidade que tem como objetivo, ensino, pesquisa e extensão, em um sistema social
capitalista, dita ser uma educação para todos. Portanto, através de números pode-se
identificar que essa não seria bem a realidade e que a cada dia as instituições de ensino
superior tem se tornado excludente. Nesse sentido procura-se um diálogo com o autor
Montesquieu que em sua obra “Do Espírito das leis” apresenta uma an|lise dos três tipos de
governo: Republicano, Monárquico e Despótico, referindo que em cada tipo de governo as leis
da educação serão diferentes.
Palavras-chaves: exclusão; expansão; democratização.
Este trabalho tem por objetivo fazer uma analise da educação superior no Brasil e para
tal, apresenta-se as acepções contidas no artigo de Ristoff (2008) “Educação Superior no
Brasil – 10 anos pós - LDB: da expans~o { democratizaç~o”. Diante dessa perspectiva o autor
diz que os primeiros passos da educação após aprovação da LDB (Lei n. 9.394/1996) e as
transformações que conduziram o ensino superior para um processo de elitização e
privatização.
Contudo o autor afirma que a educação ainda permanece excludente e
inacessível. Através de gráficos identifica - se as características básicas da educação superior,
que são sintetizadas em dez itens. Vejamos a seguir.
Vários pontos podem ser visualizados no gráfico, tais como; Expansão: crescimento
expressivo do sistema. Instituições matriculas 120%. Graduação presencial 180% .
Privatização.
Graduada em História pela UEG - Anápolis e acadêmica do curso de Pós – Graduação - Docência Universitária UEG Laranjeiras
1
55
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Gráfico 1 - Percentual de instituições, cursos e matriculas em 2004
O gráfico mostra que a educação permanece excludente e inacessível, pois expandir
não significa democratizar, criar condições de permanência para alunos ingressos nas
universidades.
Ristoff aborda os conceitos “diversificação” e “privatização”, para tratar da perda de
centralidade por parte das universidades. O primeiro conceito refere-se a universidade pela
constituição de 1988 – instituição autônoma de ensino, pesquisa e extensão. Muitas vezes
confundida no imaginário popular como centros universitários e pequenas faculdades. O
Segundo de sistema regulatório da Educação Superior em que 93% das IES dependem da
União para autorizar, reconhecer, renovar reconhecimentos, credenciar, recredenciar e
avaliar.
O autor trabalha outros conceitos, tais como: Centralização: refere-se principalmente
ao sistema regulatório da educação superior do país. Desequilíbrio regional: cerca da
metade das instituições, cursos e matriculas do Brasil estão no Sudeste. Ampliação do
acesso: houve ampliação de oportunidade de acesso para setores da classe média até então
excluídos pelas Universidades públicas. Desequilíbrio de oferta: a maioria das IES oferece
poucos e mesmos cursos (administração, direito e pedagogia). Entre outros conceitos, tais
como; Corrida por Titulação, Lento incremento na taxa de escolarização superior.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
56
Luta de Classes e Contemporaneidade
Gráfico 2 – Percentual de vagas
Gráfico 3 – Meta e realidade
-Corrida por titulação: deve-se em boa parte ás exigências estabelecidas na LDB
(lei n. 9.394/1996) para as Universidades.
-Incremento na taxa de escolarização superior: O PNE traçou meta para a
educação de jovens entre 18 e 24 anos, mas a realidade é bem diferente.
Ratifica Ristoff: “É fundamental perceber que a expansão dos últimos anos ocorreu
principalmente pelo setor privado, mas quando esse setor deixa quase metade de suas vagas
ociosas, quando índices alarmantes de inadimplência o desestabilizam e quando a evasão
ameaça inviabilizar mesmo cursos de altíssima demanda, fica evidente que a sua capacidade
de expans~o est| próxima do limite”
Referente à educação2, vale ressaltar as idéias de Montesquieu quanto à natureza das
leis positivas próprias do homem que seria assegurada pela forma de governo e de acordo
com o tipo de governo, em que educação correlacionaria às leis próprias de cada governo.
Montesquieu em sua obra “Do Espírito das leis” tem como an|lise os três tipos de
governo: Republicano, Monárquico e Despótico, segundo seu pensamento “em cada tipo de
2OLIVEIRA,
Francielly. A EDUCAÇÃO A PARTIR DA VISÃO DE MONTESQUIEU: REGIME MILITAR (1964-
1985). Trabalho apresentado na IX Semana de História: Ensino de História- Nova Perspectiva e Novas
Abordagens – ANAIS – UEG, 2010. Disponível em: http://www.youblisher.com/p/67033-ANAIS-DA-IX-SEMANADE-HISTORIA-UEG-2010/ Acesso: 03/01/2012.
57
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
governo as leis da educação serão diferentes. Nas monarquias, terão por objeto a honra; nas
repúblicas, a virtude; no despotismo, o medo...” (MONTESQUIEU, 1979 p. 18).
Nota-se que, nos três tipos de governo, a educação é vista como um conjunto de leis
que primeiro nos ensinam e que segundo Montesquieu é de fundamental importância no
desenvolvimento de qualquer governo. De acordo com Montesquieu, quanto às leis da
educação, afirma serem as primeiras que recebemos e que nos preparam para sermos
cidadão. Nesse sentido, as leis da educação devem ser relativas aos princípios do governo, e
que, portanto, cada família particular deve ser governada em conformidade com o plano da
grande família. Deste modo as leis da educação em cada espécie de governo serão diferentes
Nesse sentido, é valida uma exposição inicial das concepções de Montesquieu sobre a
educação, para uma melhor compreensão dos aspectos que interessam nessa analise.
As leis da educação, segundo Montesquieu, derivam da espécie de governo e que a
família tem um papel importante nesta formação. Para Montesquieu a educação nas
Monarquias encontra-se fundamentada na honra. Este mestre universal que deve conduzirnos em todos os lugares. Não é nas escolas públicas em que a infância é instruída, é no mundo
que a educação começa. Ratifica o autor:
“... A educaç~o nas monarquias exige nas maneiras certa polidez. Os homens, nascidos
para viverem unidos, também nasceram para agradar uns aos outros; e aquele que
não observasse as conveniências, chocando todos aqueles com os quais vive, seria
desacreditado a tal ponto que se tornaria incapaz de fazer algum bem...” (idem, 1979,
p. 18)
A polidez aqui é caracterizada por um sentimento de distinção e superioridade. A
polidez está naturalizada na corte. Distinguindo aqueles que são polidos daqueles com quem
somos polidos. Esta distinção demonstra que somos da corte ou que somos dignos de sê-lo:“...
É por orgulho que somos polidos: sentimo-nos lisonjeados de termos maneiras que provem
que não estamos na baixeza e que não vivemos com esse tipo de gente que foi deixada de lado
em todas as épocas...” (MONTESQUIEU, 1979, p. 18). A educaç~o visa essa polidez no intuito
de fazer o que se chama de homem de bem, que possua todas as qualidades e todas as
virtudes requeridas neste governo. Salienta o autor:
“... a honra, imiscuindo-se em tudo, invade todos os modos de pensar e todos os modos
de sentir e dirige até mesmo os princípios...” (idem, 1979 p. 19)
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
58
Luta de Classes e Contemporaneidade
Portanto, cada governo tem suas próprias regras e a educação deve ser orientada por
elas. Essas regras são colocadas da seguinte forma por Montesquieu:
“... As principais s~o: é-nos permitido dar certa importância a nossa riqueza, mas é-nos
soberanamente proibido dar qualquer importância a nossa vida. A segunda é que, uma
vez que tivermos ocupado alguma posição, não deveremos fazer nem tolerar nada que
mostre que somos inferiores àquela posição. A terceira, que as coisas que a honra
proíbe são ainda mais rigorosamente proibidas quando as leis não as proscrevem, e
aquelas que ela erige são ainda mais fortemente exigidas quando as leis não as
requerem...” ( 1979, p. 19)
Apresentada as regras no governo Monárquico, é chegada hora de falar da educação no
governo Despótico, que seria caracterizada por uma educação servil, segundo Montesquieu,
ninguém é tirano sem ser ao mesmo tempo escravo, diz o autor:
“... A extrema obediência supõe ignor}ncia naquele que obedece; supõe-na também
naquele que ordena; ele não precisa deliberar duvidar ou raciocinar; só precisa
querer...” (idem, 1979 p. 19)
A educação nos Estados despóticos reduz-se a introduzir o temor no coração e dar ao
espírito o conhecimento de alguns princípios muito simples de religião. O saber aqui é visto
como perigoso e baste limitado: “... Assim, a educação é ali por assim dizer nula. Precisa-se
tirar tudo para dar alguma coisa, e começar por fazer um mal súdito, para fazer um bom
escravo...” (MONTESQUIEU, 1979 p. 19).
Depois de abordar a educação no governo Despótico, Montesquieu nos apresenta a
concepção de governo Republicano, que seria importante para essa analise, já que o referente
artigo direciona sua analise a uma educação no governo federativo.
Para essa analise Montesquieu no capitulo V de sua obra “Do Espírito das Leis” diz que
a educação no governo republicano é muito importante, já que o temor nos governos
despótico nasce espontaneamente entre as ameaças e os castigos, a honra das monarquias
seria favorecido pelas paixões, o que na República a virtude política é uma renuncia a si
mesmo. Essa virtude pode ser definida como o amor às leis e à pátria. Renunciar a si mesmo é
algo muito difícil, nesse governo exige que se prefira continuamente o interesse público ao seu
próprio interesse. Esse amor esta ligado às democracias. Assim, em uma República é
necessário esse amor à pátria, para conservar o governo. Logo, na República, a educação fazse necessária, pois tudo depende de introduzir o amor à pátria. A responsabilidade dos pais na
59
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
educação dos filhos no estado Republicano é importante, os pais têm o poder de transmitirlhes todas as paixões. Se caso isso não ocorra, é porque o que foi feito na casa paterna foi
destruído pelas impressões de fora: “... N~o é a nova geraç~o que degenera; ela só se perde
quando os adultos j| est~o...” (MONTESQUIEU, 1979 p. 20).
Por convicção, Montesquieu refere-se que a igualdade é um estado natural do homem
na democracia. Afirma que quando se perde o espírito de igualdade, corrompe o princípio da
Democracia. O espírito democrático na monarquia ou no despotismo para que se mantenha ou
se sustente não é necessária muita probidade. No entanto, no Estado popular, é preciso uma
força a mais: a virtude. A virtude no governo republicano é importante, pois quando esta
desaparece, a ambição e a avareza penetram no coração de todos. E nesse sentido que a
educação deve ser mantida, com a função de introduzir o amor à pátria.
Apreciação quando se fala educação democrática, segundo as argumentações de
Ristoff, que há milhões de estudantes do ensino médio tão pobre que mesmo a educação
superior sendo pública e gratuita terão dificuldades de se manterem no campus. Cabe
questionar a respeito dessa iniqüidade, em um país que reivindica os princípios de igualdade,
fraternidade e liberdade, já que falar de uma educação democrática em meio as desigualdades
sociais requer muita inteireza do assunto, pois o que se presencia seria uma educação que
enfrenta sérios problemas quando se fala em direitos sociais, político e econômico.
Ristoff chega a abordar a universalização da educação básica, dizendo que esse
processo acabaria levando exercito de carentes às portas do campus nos próximos anos,
sendo a expansão insuficiente. Percebe também que o PROUNI apenas fez com que o
vestibular deixasse de ser um trauma para pais e filhos, que ainda continua sendo um
processo excludente, os alunos n~o consegue se manter nos campus. Segundo SILVA (2000) “a
escola ao invés de democratizar, seria sua função reproduzir hábitos de classe, a maneira de
se comportar e pensar de um grupo social, representado pelo capital cultural. Portanto, a
escolarização condena aqueles que carecem de capital cultural ao fracasso social, ou seja,
estes n~o adquiriram os instrumentos necess|rios para “vencer” na vida gerando a idéia de
fracasso “(p.33).
Segundo Ristoff se a palavra de ordem da década passada foi expandir, a desta década
precisa ser democratizar. E isto significa criar oportunidades para que os milhares de jovens
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
60
Luta de Classes e Contemporaneidade
de classe baixa, pobres, filhos da classe trabalhadora e estudantes das escolas públicas
tenham acesso à educação superior.
Desse modo, não basta expandir o setor privado – as vagas continuarão ociosas; não
basta aumentar as vagas no setor público – elas apenas facilitarão o acesso e a transferência
dos mais aquinhoados. A democratização, para acontecer de fato, precisa de ações mais
radicais – ações que afirmem os direitos dos historicamente excluídos, que assegurem o
acesso e a permanência a todos os que seriamente procuram a educação superior,
desprivatizando e democratizando o campus público.
Referências
OLIVEIRA, Francielly. A EDUCAÇÃO A PARTIR DA VISÃO DE MONTESQUIEU: REGIME
MILITAR (1964-1985). Trabalho apresentado na IX Semana de História: Ensino de HistóriaNova Perspectiva e Novas Abordagens – ANAIS – UEG, 2010. Disponível em:
http://www.youblisher.com/p/67033-ANAIS-DA-IX-SEMANA-DE-HISTORIA-UEG-2010/
Acesso: 03/01/2012.
RISTOFF, Dilvo. Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB: da expansão à
democratização. In Educação Superior no Brasil – 10 anos pós-LDB / Mariluce Bittar, João
Ferreira de Oliveira, Marília Morosini (orgs). – Brasília: Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas
Educacionais
Anísio
Teixeira,
2008
Disponível
em:
http://www.oei.es/pdf2/educacao-superior-brasil-10-anos.pdf
SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de Identidade: uma introdução as teorias do currículo.
Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
61
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Reestruturação produtiva e trabalho docente
Renato Gomes Vieira
[email protected]
Resumo: Este estudo procura investigar as condições de trabalho docente frente às mudanças
da esfera produtiva que notadamente alteraram em grande medida o mundo do trabalho, com
a penetração de novos métodos de produção, destacando-se o toyotismo. Busca compreender
então como se configura o trabalho docente na educação básica pelas vertentes da
intensificação, precarização, a flexibilização e o controle sobre a atividade docente, que
acabam acarretado uma proletarização do professor.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
62
Luta de Classes e Contemporaneidade
As pesquisas sobre o infanticídio no Brasil e a questão da categoria
de análise classe social
Veralúcia Pinheiro
Resumo: O objetivo deste texto é discutir o crime de infanticídio no Brasil, na perspectiva de
compreender as raízes históricas da maternidade e da violência, intrinsecamente relacionado
com as classes sociais, uma vez que os dados apontam para o fato de que, as mulheres
envolvidas com esta modalidade de crime, pertencem majoritariamente às camadas
populares. Apresentaremos dados parciais da pesquisa: O infanticídio na sociedade brasileira:
um estudo das dimensões social, histórica e cultural, que estamos desenvolvendo na UEG, sob a
perspectiva do materialismo histórico dialético. Em geral, os estudos sobre gênero realizado
no âmbito acadêmico, publicados em revistas e periódicos científicos, em anais de congressos
têm apresentado um debate sobre a condição da mulher na sociedade brasileira sem
considerar sua perspectiva de classe social. Assim, as mulheres são retratadas como seres
apolíticos, irreais que tendem para um processo de naturalização, retomando a crença na
mística da natureza feminina.
Palavras Chaves: Infanticídio, Mulher, Classe Social.
Pensar a questão da mulher no Brasil em uma perspectiva histórica, que leve em conta
o conjunto das relações sociais, necessário se faz partir do contexto da sociedade de classes
que certamente nos levará aos remotos tempos da colonização em que a escravidão aqui
estabelecida teve como objetivo favorecer os interesses do florescente capitalismo mercantil
europeu. Não cabe, portanto, abstrações que tendem a apresentar a mulher em geral e de
formo homogênea, como “vítima” de uma dominaç~o masculina, cuja principal característica
seria a opressão e a exploração de todas elas. Na sociedade colonial essa igualdade não existia
nem mesmo do ponto de vista jurídico, posto que o processo original de acumulação do
capital impôs a força de trabalho escrava, como meio adequado a esse fim. Desse modo,
homens e mulheres estavam separados pela sua condição de escravo ou de proprietário de
escravos e de terras. O homem livre e pobre que não possuía propriedades, embora livre
formalmente encontrava-se totalmente à margem daquela sociedade.

Doutora em educação pela Unicamp, professora da Universidade Estadual de Goiás – Unidade de Ciências Sócio
– Econômicas e Humanas. Coordenadora do Projeto de Pesquisa: O infanticídio na sociedade brasileira: um
estudo das dimensões social, histórica e cultural.
63
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
O modelo imposto pela estrutura internacional de poder na formação econômico-social
capitalista no Brasil se constituiu de forma dependente. A realização dos objetivos deste
sistema nos níveis alcançados pelas sociedades de consumo de massas, constitui o ponto
inicial para compreendermos os papéis sociais que homens e mulheres historicamente
desempenharam na sociedade brasileira desde seus primórdios. A fim de exemplificar a
primazia do caráter econômico e de classe ao invés de racial que marcavam as relações
durante o período da colonização, Saffioti (1979) afirma que apesar da rígida assimetria que
caracterizava as relações senhor - escravo, o fundamento pecuniário da escravidão e a
miscigenação constituíam-se em fatores de perturbações daquelas relações. Assim, a maneira
meramente formal, mediante a qual a camada dominante resguardava seu domínio,
impedindo casamentos inter – raciais, mas não impedindo a miscigenação, deixava
transparecer que o econômico, e não o racial era o verdadeiro fundamento da divisão da
população em castas. A inexistência de repugnância mútua entre as camadas constituintes da
sociedade escravocrata configuraria uma especial estratificação em castas em que a raça
desempenharia meramente a função de símbolo da condição econômica dos indivíduos. No
que refere aos papéis femininos, essa inconsistência cultural do sistema de castas no Brasil
teve consquências de ordem diversas.
Para Saffioti (1979) a mais importante inconsistência, aparece quando examinamos os
papéis a cujo desempenho estava sujeita a mulher negra. Pois, cabia à escrava, além de uma
função no sistema produtivo de bens e serviços, um papel sexual, via de uma maior reificação
e, simultaneamente, linha condutora do desvendamento do verdadeiro fundamento da
sociedade de castas. Se, por um lado a função da negra escrava, enquanto mero instrumento
de prazer sexual de seu senhor, não indica que, nesta relação as partes envolvidas tenham
superado o nível primário e puramente animal do contacto sexual, por outro, o produto desta
relação assume, na pessoal do mestiço, a forma de um foco dinâmico de tensões sociais e
culturais.
Assim, na medida em que a exploração econômica da escrava, consideravelmente mais
elevada que a do escravo, por ser a negra utilizada como trabalhadora como mulher e como
reprodutora de força de trabalho, se fazia também por meio de seu sexo, a mulher escrava
constituía no instrumento inconsciente que, paulatinamente, minava a ordem estabelecida,
quer na sua dimensão econômica, que na sua dimensão familiar. Ao se constituir como objeto
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
64
Luta de Classes e Contemporaneidade
de desejo do homem branco a mulher negra, por um lado levava o senhor a adotar
comportamentos antieconômicos, tais como a venda e a tortura de negros com os quais
aquele competia no terreno sexual. Por outro lado, as relações sexuais entre senhores e
escravas desencadeavam, por mais primárias e animais que fossem, processos de interação
social incongruentes com as expectativas de comportamento, que presidiam à estratificação
em castas. Por isso, não apenas homens brancos e negros se tornavam concorrentes na
disputa das negras, mas também mulheres brancas e negras disputavam as atenções do
homem branco. Evidentemente a rivalidade entre brancas e negras não se configurava como
uma típica competição, posto que pelo sistema de castas os fins a que se destinavam umas e
outras eram completamente diferentes.
O marco dessa diferença é bastante evidente se observarmos o papel da mulher branca
na casa grande. Ela desempenhava, na maioria das vezes, um importante papel no comando e
supervisão das atividades realizadas no lar. Ainda de acordo com Saffioti (1979), a senhora
não dirigia apenas o trabalho da escravaria na cozinha, mas também na fiação, na tecelagem,
na costura, supervisionava a confecção de rendas e o bordado, a feitura da comida dos
escravos, os serviços do pomar e do jardim, o cuidado das crianças e dos animais domésticos,
providenciava tudo para o sucesso dos encontros
comemorativos, que reuniam toda a
parentela. Tudo isso, que constituía o domínio próprio, o universo social e cultural da mulher,
dificilmente permitiria às mães a indolência e a passividade atribuída a elas. Em quase todo o
país a vida era dura para a maioria e da mulher esperava-se que desempenhasse seu papel de
forma impecável. Desse modo, não são raros os casos em que as viúvas tomaram a direção dos
negócios da família com energia e sucesso, revelando-se líderes competentes, mas também
casos em que a esposa de um homem incapaz ou incapacitado tomou seu lugar na chefia da
família.
Essa breve contextualização da mulher no Brasil Colônia tem o intuito de contribuir
para desmistificar a crença de que as mulheres são e foram igualmente submetidas a um
mesmo processo de exploração e dominação. A condição da mulher escrava e também da
mulher livre e pobre era completamente diferente da condição assumida pela senhora
“esposa” do grande senhor escravocrata.
Muitos são os mitos que sobrevivem mesmo no âmbito da academia sobre a questão da
mulher. No presente, tem sido comum professores e outros profissionais da educação básica,
65
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
aflitos com a crescente onda de violência e indisciplina na escola, buscar explicações para o
fenômeno vinculando-o a inserção da mulher no mercado de trabalho. Argumentam nesse
sentido, que esse foi o fato desencadeador para quase todos os problemas relacionados com a
“desestruturaç~o
familiar”,
desestruturaç~o
que,
por
sua
vez
teria
provocado
comportamentos violentos na criança e consequentemente um baixo rendimento na escola.
Para os que defendem essa idéia teria existido no passado uma mulher exclusivamente
dedicada aos afazeres de mãe e dona-de-casa em contraposição à mulher que agora trabalha
fora do lar e que provocou uma crise na família, na escola e na sociedade. Todavia, a mulher,
especialmente a mulher pobre, seja nos tempos da colonização, do império ou da república
sempre esteve submetida ao mundo do trabalho e a condição desse trabalho nunca foi e não é
igual para todas as mulheres.
Mas, interessa nos aqui, discutir especialmente o mito do amor materno. Concebido
como um instinto natural de todas as mulheres, este argumento é largamente utilizados pelos
“operadores do direito” quando se deparam com o crime de infanticídio. Contrapondo-se a
ele, Badinter (1985, p. 1), nos mostra dados sobre a maternidade na França do século XVI e
XVII que comprovam a indiferença da mulher diante da maternidade. Segundo o relatório de
polícia citado pela autora em 1780
Das 21 mil crianças que nascem anualmente em Paris, apenas mil são amamentadas
pela mãe. Outras mil, privilegiadas, são amamentadas por amas-de-leite residentes.
Todas as outras deixam o seio materno para serem criadas no domicilio mais ou
menos distante de uma ama mercenária. São numerosas as crianças que morrerão
sem ter jamais conhecido o olhar da mãe [...].
A partir destes e de outros dados, Badinter (op.cit), apresenta uma realidade onde o
interesse das mães pelos filhos, até o século XVIII, era bastante reduzido, o que a faz
considerar que o amor materno é apenas um sentimento humano. E como todo sentimento, é
incerto, frágil e imperfeito. Assim, ao observar a evolução das atitudes maternas, constata-se
que o interesse e a dedicação à criança se manifestam ou não se manifestam, o afeto existe ou
não existe. As diferentes maneiras de expressar o amor materno vão do mais ao mais ou
menos, passando pelo nada, ou o quase nada.
Acreditamos que essas diferentes maneiras de desenvolver e expressar o amor
materno decorre quase sempre do apoio e afeto que essa mulher possui ou não em sua rede
de relações familiares ou de amizade, durante a gravidez e depois dela. No entanto, esse
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
66
Luta de Classes e Contemporaneidade
aspecto ou mesmo a não autonomia profissional e econômica das mulheres acusadas do crime
de infanticídio n~o consta dos debates que os “operadores do direito”. Ao invés disso, tais
operadores, associam o infanticídio à noção de loucura puerperal, uma categoria que tem
origem na medicina.
Foram 15 os processos analisados neste estudo e em todos eles, as mulheres que
praticaram o crime de infanticídio encontravam-se isoladas, submetidas a trabalhos
precarizadas e relações familiares repressivas e autoritárias. Nesse sentido é emblemático o
caso de Lidiane de Oliveira Ludke, que teve seu julgamento realizado pelo Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, em 05 de maio de 2010.
De início, Lidiane foi denunciada pelo crime de homicídio, constante art. 121, § 2º,
incisos I e III c/c art. 121, § 4º, in fine, e art. 61, inciso II, alínea e (descendente), todos do
Código Penal, No entanto, a magistrada, responsável pelo caso, considerou que a existência do
fato (materialidade) não foi comprovada e por isso, impronunciou a ré em relação às
acusações feitas pelo Ministério Público, que então, recorreu dessa decisão. O novo
julgamento concedeu parcial provimento ao apelo do Ministério Público e julgou Lidiane
culpada de infanticídio (art. 123 do Código Penal).
Apesar da linguagem técnica e burocrática do Relatório elaborado pelo Desembargador
Marcel Hoppe, sobre o crime praticado por Lidiane pode-se extrair algumas informações que
retratam a dramaticidade dessa mulher.
Nesse documento, o delegado responsável pela denúncia afirma que Lidiane escondeu
a gestação das pessoas do seu círculo familiar e quando estava no período previsto para dar a
luz à criança, trancafiou-se no banheiro de sua residência, local onde deu início o trabalho de
parto. Em seguida, após a criança ter nascido com vida, segundo a denúncia, Lidiane, de forma
não precisamente apurada, asfixiou o bebê que depois foi encontrado, já sem vida no interior
de um tanque de acrílico coberto por panos.
Ao ser interrogada, Lidiane, afirmou que escondeu de todos sua gravidez porque temia
ser repudiada por seus pais, que s~o muito “rígidos”. Narra ainda que sua situação tornou-se
ainda mais delicada porque o pai da criança “sumiu” logo após saber da notícia de sua
gravidez.
67
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
O isolamento e a falta de apoio institucional são visíveis. Lidiane conta que não fez
nenhum exame pré-natal e mesmo no dia em que entrou em trabalho de parto, estava em seu
emprego (empregada doméstica) e sua patroa apenas “desconfiou”, mas como negou que
estivesse grávida, a patroa nada fez. Para aliviar as fortes dores do parto, Lidiane tomou
vários banhos, no último começou a ficar tonta e quando já não estava mais suportando a dor,
“sentiu que algo caiu” e, em seguida desmaiou.
Quando acordou, Lidiane estava em uma poça de sangue e não sabia o que fazer. Relata
que olhou para o chão e a criança estava lá, pegou no colo, mas continuou sem saber o que
fazer. A criança, segundo ela, não se mexia e continuava com os olhos fechados, então,
amedrontada e insegura pensou que naquelas condições em que ocorreu o parto, a criança já
devia estar morta. A única alternativa que conseguiu pensar naquele momento foi deixar a
criança ali mesmo, ao lado, dentro de um tanque vazio, sem água em seu interior.
Logo depois, o bebê foi encontrado sem vida e o segredo guardado durante nove meses
foi descoberto. Percebendo, então seu estado lastimável a patroa levou Lidiane ao hospital
que só então, confessou que se sentia rejeitada e discriminada pelos pais adotivos, pois
sempre percebeu que os irmãos brancos e filhos biológicos eram preferidos pelos pais
adotivos.
A dramática situação de Lidiane em nada sensibiliza os operadores do direito, neste
caso específico, o Ministério Público reiteradamente procurou mostrar a crueldade da mulher,
buscando acusá-la de homicídio e não infanticídio.
Todavia o Desembargador, relator do processo argumentou que existiam indícios de
autoria do crime, porém, não poderia classificá-lo como homicídio e sim infanticídio, previsto
no art. 123 do Código Penal, que ocorre quando a mulher mata o próprio filho, durante o parto
ou logo após, sob a influência do estado puerperal.1
A partir dessa classificação, o relator do processo, procura brevemente esclarecer o
significado do estado puerperal, deixando claro que são perturbações de ordem física e
psicológica decorrentes do parto que acometem as mulheres. Acrescenta ainda que tais
transtornos produzem sentimentos de angústia, ódio, desespero, levando a mãe a eliminar o
próprio filho.
“Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena detenç~o, de dois a seis anos”.
1
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
68
Luta de Classes e Contemporaneidade
O que se destaca nesse documento é o car|ter abstrato do “estado puerperal”. É como
se qualquer mulher em qualquer situação pudesse, logo após o parto ser sua vítima. O
discurso do magistrado sobre os sentimentos de angústia, ódio e desespero das mães em
“estado puerperal”, reforça essa idéia da determinaç~o biológica. Em nenhum momento se faz
menção ao fato de que o desespero, a angústia, o medo das mulheres foram forjados antes do
parto, provavelmente durante toda a gravidez e até mesmo antes dela, decorrentes de
relações familiares conflituosas, violentas e condições de vida miseráveis. Tudo isso, não faz
parte do objetivo dos debates travados pelo poder judiciário. Em relação ao infanticídio,
justiça e medicina se uniram para oferecer explicações para o crime sem, contudo, elaborar
nenhuma crítica a esse modelo de sociedade, cuja violência lhe é intrínseca.
Referências
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. 6ª. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1985.
SAFIOTTI, Heleieth Iara Bongiovani. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 2ª. ed.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1979.
PRESIDENCIA DA REPÚBLICA. Decreto-Lei Nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Rio de
Janeiro, 1940.
69
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Políticas e reformas da educação no Brasil
Rafael Moreira do Carmo1
Resumo: As mudanças em curso evidenciadas pelas políticas públicas na educação do Brasil
como um todo, e do Estado de Goiás em particular, fazem parte de um amplo processo de
organizaç~o e reorientaç~o do papel do Estado como provedor deste “direito”. Neste sentido,
o presente texto busca analisar detidamente o significado das atuais políticas em um contexto
de reestruturação produtiva num processo crescente de crise estrutural do capital. Esta
analise centra-se no papel reformador destas políticas que visam garantir a conformidade
social no âmbito dos limites estabelecidos pelo Estado, neste sentido, estas políticas possuem
avanços e retrocessos compatíveis com as contradições que envolvem o processo de
proposição e efetivação destas propostas que esbarram nos limites intransponíveis da
consciência burguesa.
Palavras-chave: Educação; Políticas Públicas; Capital; Crise; Estado.
Da educação escolarizada aos processos sociais amplos
O campo educacional nas últimas décadas vem sofrendo com as mais variadas formas
de intervenção política e econômica. Globalização, reestruturação produtiva, acumulação
flexível e declínio do welfare state são apenas algumas das principais variáveis que exercem,
na atualidade, pressão sobre os sistemas nacionais de educação.
Embora estes processos se apresentem de forma corriqueira e naturalizada possuem
uma visão de mercado deliberada que busca, acima de tudo, garantir uma formação flexível
para um mercado que se tornou fortemente flexível e instável, sobretudo, a partir da grande
crise do petróleo em 1973 (Cf., HARVEY, p. 135).
Os processos ora em prática levaram a uma grande revalorização da educação
moderna, esta passou a ser um instrumento viabilizador da competitividade em um mundo
globalizado. Do ponto de vista do mercado busca-se uma formação de base sólida e voltada
aos valores que interessam à produção, ou seja, uma educação perpassada por um viés
ideológico implícito em que o indivíduo esteja livre de compromissos políticos, sociais e
éticos, portando apenas habilidades necessárias aos processos modernos de trabalho.
Em conformidade com estes processos o Estado brasileiro instituiu nos últimos anos
um conjunto de intervenções na área educacional com o objetivo de atingir os índices de
Mestrando em Sociologia – Faculdade de Ciências Sociais (UFG)
Contato: [email protected]
1
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
70
Luta de Classes e Contemporaneidade
escolaridade dos países membros da Organização Para o Desenvolvimento Econômico
(OCDE)2 modificando, desta maneira, a concepção de ensino básico de nossas escolas. Dentre
as iniciativas de organizar o sistema educacional, sobretudo no que tange o ensino médio,
surgem, no Ministério da Educação (MEC) algumas ações fundamentais com o intuito de
repensar a organização escolar.
Estas modificações, em princípio, já presentes na própria promulgação da Constituição
Federal em 1988 e na Lei 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
tomam corpo, sobretudo, no governo Fernando Henrique Cardoso com um conjunto de
modificações substanciais na organização do sistema nacional de ensino. Conforme Moraes,
Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), Parecer CNE/CEB 15/98 e a Resolução CNE/CBE
03/98 fazem parte do marco institucional da chamada “Reforma do Ensino Médio” (2009, p.
343).
Na esteira dessas discussões as políticas educacionais até então vigentes para a
educação pública são colocadas em evidência e questionadas em sua eficiência e
obsolescência. Em outros termos, a própria disposição do ensino médio e repensada, surgindo
assim alguns programas estatais que visam na aparência, por intermédio de reformas
gradativas, à solução e superação das principais falhas e contradições de nosso sistema de
ensino.
Por outro lado, as modificações e reformas constantes em nossas políticas educacionais
são objeto de estudos de vários campos científicos, porém, curiosamente, a ligação destas
políticas aos processos estruturais globais do capitalismo contemporâneo, é negligenciada
pela maioria dos teóricos e pesquisadores. Em contraposição a esta tendência, o presente
trabalho objetiva explicitar, levando em consideração as reformas da educação básica
realizada pelo Estado brasileiro, quais determinações são centrais em um contexto de crise
estrutural do capital. Esta análise centra-se, fundamentalmente, na identificação das
determinações reprodutivas da ordem capitalista presentes nas seguintes políticas
educacionais: em nível federal, Ensino Médio Inovador e Sistema de Avaliação da Educação
Básica (SAEB); em nível Estadual, no âmbito do Estado de Goiás, Ressignificação do Ensino
Médio e Pacto Pela Educação.
2Sigla
em inglês.
71
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Tal objetivo centra-se na necessidade, apontada por István Mészáros, de evidenciar a
íntima ligação entre os processos educacionais gerais e os processos sociais mais abrangentes
de reprodução do capital. Busca-se, com a explicitação desta ligação fundamental, apontar os
limites das “reformas” propostas, uma vez que, segundo Mész|ros, “[...] uma reformulaç~o
significativa da educação é inconcebível sem a correspondente transformação do quadro
social no qual as práticas educacionais da sociedade devem cumprir as suas vitais e
historicamente importantes funções de mudança” (2005, p. 25). Sem as quais as modificações
mais significativas propostas para a educação pública esbarram no Estado sob a forma de
limites intransponíveis da consciência burguesa.
A oficiosa reforma oficial do Ensino Médio
A formaçao dos sistemas nacionais de educaçao na America Latina deu-se no momento
em que na Europa estes ja estavam consolidados e possuíam uma ampla tradiçao de
incorporaçao das praticas administrativas fabris em suas políticas educacionais. Encontramos
historicamente uma relaçao direta entre o fortalecimento da ideia de eficiencia nas fabricas e
a adoçao de princípios da administraçao científica nas funçoes declaradas das escolas. Em
outras palavras, nos sistemas educacionais a propria funçao escolar e pensada e organizada de
acordo com os princípios gerais do mercado, a este respeito escreve Apple: “E uma funçao que
esta engastada na dependencia da area em procedimentos e tecnicas tomados de emprestimos
a grandes empresas” (1982, p. 122).
Seguindo a mesma tradiçao, o sistema educacional brasileiro nas ultimas decadas vem
sofrendo com as mais variadas formas de intervençoes política e economica pautadas nas
necessidades do mercado. Assim, com vistas a garantir melhorias na qualidade do ensino
medio o Ministerio da Educaçao (MEC) lança em setembro de 2009 o programa “Ensino Medio
Inovador”. Trata-se de um conjunto de diretrizes, pensadas e discutidas em seminarios e
consultas publicas desde o ano anterior, que objetivam instituir mudanças significativas nesta
fase de ensino, buscando entre outras metas, “(...) o desenvolvimento de projetos que visem o
aprimoramento de propostas curriculares para o ensino medio, capazes de disseminar nos
respectivos sistemas a cultura de um currículo dinamico, flexível e compatível com as
exigencias da sociedade contemporanea” (BRASIL, 2009, p. 3).
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
72
Luta de Classes e Contemporaneidade
Por outro lado, o sistema de educaçao nacional com sua divisao de responsabilidade
entre as unidades administrativas – Governo Federal, Governos Estaduais, Distrito Federal e
Governos Municipais –, outorga a prerrogativa de propor diretrizes educacionais ao Governo
Federal e Estadual, mas permite apenas a este ultimo a possibilidade de aplicaçao efetiva nos
sistemas de ensino locais. Em outras palavras, sempre que uma mudança significativa e
proposta pelo Governo Federal, sob a forma de diretrizes, cabe aos Estados, munidos do
princípio constitucional da autonomia administrativa, estabelecer o formato e ritmo de tal
mudança.
E no pleno exercício deste princípio, em concordancia com o Governo Federal e seu
Ensino Medio Inovador, que o Governo do Estado de Goias realiza uma serie de modificaçoes
em seu ensino com o objetivo de dinamizar a formaçao publica oferecida. Estas modificaçoes
recebem o nome de “Ressignificaçao do Ensino Medio” que em linhas gerais e pautado pelo
seguinte entendimento: “(...) E preciso ressignificar o ato de ensinar e aprender, o ato de gerir
a instituiçao e o conhecimento, as regras de convivencia entre os sujeitos, em outras palavras,
e ressignificar o ambiente escolar: espaço de aprendizagem cognitiva, social, emocional,
afetiva” (GOIAS, 2009, p. 14).
Por outro lado, o pano de fundo destas políticas educacionais e a necessidade de
equiparaçao da educaçao nacional aos índices de qualidade dos países membros da OCDE.
Portanto, na busca da obtençao do padrao de qualidade internacional foi criado o plano
“Todos Pela Educaçao” cuja principal inovaçao e o Sistema de Avaliaçao da Educaçao Basica
(SAEB). Este, por sua vez, possuí como principal índice de aferiçao de serviços o Indice de
Desenvolvimento da Educaçao Basica (IDEB).
Oficialmente, o IDEB se apresenta na forma de um indicador ligado diretamente a um
projeto de longo prazo para as escolas brasileiras. Ele nasce, nos discursos oficiais, como
condutor de política publica pela melhoria da qualidade da educaçao, tanto no ambito
nacional, como nos estados, municípios e escolas. Portanto, de acordo com as aspiraçoes
estatais, sua composiçao possibilita nao apenas o diagnostico atualizado da situaçao
educacional em todas essas esferas, mas tambem a projeçao de metas individuais
intermediarias rumo ao incremento da qualidade do ensino.
Embora a primeira vista, ou no nível da particularidade aparente, estas políticas
publicas pouco apresentam de substancial. Uma analise das determinaçoes fundamentais
73
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
pautadas pela apreensao das principais categorias que, nas palavras de Marx, se apresentam
como formas de ser, determinaçao da existencia, nos permitem transitar desta aparente
particularidade para a singularidade fenomenica e desta, para a universalidade essencial. Em
outras palavras, e com uso do metodo de apreensao da realidade tal qual exposto por Karl
Marx no corpo de suas formulaçoes teoricas que aquele sentido de ligaçao entre os processos
educacionais amplos e os processos sociais reprodutivos do capitalismo vigente e apreendido
nas políticas reformistas propostas pelo Estado. Para tanto, faz-se necessaria uma analise
historica, ainda que breve, dos processos fundamentais sofridos pelo capitalismo no ultimo
seculo.
Sistema produtivo e as modificações estruturais do capital
Ao longo do século XX podemos apontar o fordismo e o taylorismo como os principais
fatores de consolidação da indústria e dos processos de trabalho. Segundo Antunes, seus
elementos constitutivos básicos eram dados pela produção em massa, através da linha de
montagem e de produtos mais homogêneos; através do controle dos tempos e movimento
pelo cronômetro fordista. (1995, p. 17). Embora este processo, baseado em termos
econômicos pelo modelo Laissez-faire, sofra sua primeira crise superprodutiva em 1929 e,
após a segunda guerra mundial, o Japão, inicie as primeiras inovações em sua incipiente
planta produtiva destruída pela guerra, o binômio fordismo-taylorismo manteve-se
dominante e estruturalmente consolidado até pelo menos 1973, ano em que a crise do
petróleo e as tentativas de garantir a reprodução do sistema capitalista profundamente
abalado por crises estruturais contínuas lançam ao mundo o modelo japonês intitulado
toyotismo.
Entretanto, para tratarmos das questões relativas ao toyotismo e sua inserção nas
relações capitalistas atuais, necessitamos nos posicionar ante ao debate existente na
literatura. Temos de um lado, autores que explicam as novas relações de mercado –
reestruturação produtiva, especialização flexível, flexibilização das leis trabalhistas, terceiro
setor etc. – pela substituição do fordismo ante ao toyotismo e, por outro, um grupo que parte
do reconhecimento da fusão entre os vários modelos de organização – pautados
fundamentalmente pelo fordismo, taylorismo e toyotismo – nos processos de trabalho
existentes. Adotamos, no presente trabalho, a segunda tese uma vez que: “A insistência de
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
74
Luta de Classes e Contemporaneidade
que não há nada de essencialmente novo no impulso para a flexibilidade e de que o
capitalismo segue periodicamente esses tipos de caminhos é por certo correta (uma leitura
cuidadosa de O Capital de Marx sustenta essa afirmaç~o)” (HARVEY, 2008, p. 178).
Neste sentido, segundo Antunes, o toyotismo dialeticamente se mescla e se diferencia
do fordismo-taylorismo pelos seguintes motivos:
Ao contrário da verticalização fordista, de que são exemplo as fabricas dos EUA, onde
ocorreu uma integração vertical, à medida que as montadoras ampliaram as áreas de
atuação produtiva, no toyotismo tem-se uma horizontalização, reduzindo-se o âmbito
de produção da montadora e estendendo-se as subcontratadas, as “terceiras”, a
produção de elementos básicos, que no fordismo, são atributos das montadoras. Essa
horizontalização acarreta também, no toyotismo, a expansão desses métodos e
procedimentos para toda a rede de fornecedores. Desse modo, o kanban, Just in time,
flexibilização, terceirização, subcontratação, CCQ, controle de qualidade total,
eliminaç~o do desperdício, “gerência participativa”, sindicalismo de empresa, entre
tantos outros elementos, propagam-se intensamente. (1995, p. 27)
Além desta diferenciação/integração, estrutura e organizacionalmente evidente, entre
fordismo-taylorismo e toyotismo. Do ponto de vista da organização do trabalho e do papel do
trabalhador outras modificações substanciais se apresentam. Se antes o trabalhador fordista
era especialista em uma função previamente delimitada e a formação se dava na própria
planta produtiva, com o toyotismo, devido a necessidade de manter altos padrões de
qualidade durante todo o processo de produção por intermédio dos ciclos do Controle de
Qualidade Total (CCQs), surgem inovações fundamentais que permitem ao capital a
apropriação inclusiva, principalmente nos ambientes destinados a educação formal, de todo
saber do trabalhador. “Este, na lógica da integraç~o toyotista, deve pensar e agir para o
capital, para a produtividade, sob a aparência da eliminação efetiva do fosso existente entre
elaboração e execução no processo de trabalho” (ANTUNES, 1995, p. 34).
Neste sentido, o trabalhador é incluído como supervisor, responsável e colaborador
com o bom andamento de todo o processo de produç~o: “H| em v|rios setores (...) um
processo de intelectualização do trabalho industrial (o trabalhador como “supervisor e
regulador do processo de produç~o”, conforme a antecipaç~o genial de Marx nos Grundrisse)”
(ANTUNES, 1995, p. 150).
Por fim, estes processos de reorganização estrutural presentes no capitalismo
contemporâneo se articulam com processos organizacionais diretamente ligados a reforma do
sistema de ensino brasileiro. Porém, para apreender os verdadeiros sentidos deste conjunto
75
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
de transformações na educação nacional e relacioná-los a processos sociais mais amplos,
deve-se ter uma sensibilidade peculiarmente marxista diante do presente como história.
Neste sentido, cumpre relacionar todo o conjunto de determinações ora presentes em nossa
realidade concreta a fim de reconstruir os sentidos verdadeiramente arraigados de nossas
políticas educacionais.
Capital e educação
A disseminação dos princípios do toyotismo e sua influência no ambiente escolar não
s~o evidentes a primeira vista. Portanto, para apreendermos as principais “contribuições” e
interferências do sistema produtivo na educação formal é necessário relacionar os principais
pilares toyotista às inovações presentes no processo de proposição e efetivação do conjunto
de modificações no sistema educacional brasileiro convencionalmente intitulado “Reforma do
Ensino Médio”.
O fundamento implícito deste conjunto de reformas consiste na necessidade de
adequação da educação nacional aos princípios estabelecidos por órgão internacionais. Neste
sentido o IDEB, presente nas principais etapas da educação básica, apresenta-se como
incorporação do sistema de controle de qualidade total na educação formal.
Esta incorporação justifica-se com a necessidade, por parte do sistema produtivo, de
uma formação que contemple ao máximo os novos padrões de trabalho exigidos pelo
mercado. Neste sentido, a educação formal apresenta-se como constituída e constituinte do
sistema capitalista, fornecendo mão de obra semiqualificada e dócil às exigências arbitrárias
da produção. Em outras palavras, de possibilidade de uma formação socialmente relevante a
educação passa a garantir formação voltada as necessidades do mercado. Isto se dá por meio
de políticas educacionais subservientes a ordem vigente provocando, enfim, uma inversão nas
potencialidades e possibilidades emancipadoras da formaç~o humana. “Antes disso, educaç~o
significa o processo de “interiorizaç~o” das condições de legitimidade do sistema que explora
o trabalho como mercadoria, para induzi-los a aceitaç~o passiva” (MÉSZÁROS, 2005, p. 17).
Ao relacionarmos estes diferentes condicionantes percebemos que as modificações
propostas pelo Governo Federal por meio do Ensino Médio Inovador, e pelo estado de Goiás
por meio da Ressignificação do Ensino Médio e Pacto pela Educação, atendem perfeitamente
as necessidades do mercado. Se levarmos em consideração que o eixo norteador destas
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
76
Luta de Classes e Contemporaneidade
políticas educacionais é a formação dinâmica, flexível e volta as exigências da sociedade,
percebemos a determinação do mercado agindo por meio da criação de necessidades num
ciclo ininterrupto de reafirmação do capital. Como em última instância a execução das
políticas educacionais fica a cargo do Estado, percebemos na educação moderna os
verdadeiros sentidos das celebres palavras de Marx “O executivo no Estado moderno n~o é
sen~o um comitê para gerir os negócios comuns a toda a classe burguesa” (2005, p. 42).
Referências
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do
mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 1995.
APPLE, Michael. Ideologia e Currículo. São Paulo: Brasiliense, 1982.
BRASIL. Lei do Piso Salarial. Lei nº 11.738, de 16 de junho de 2008. Institui o piso salarial
profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica. Brasília,
DF, 2008.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Ensino Médio Inovador –
Documento Orientador. Brasília, DF, 2009.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2008.
MARX, Karl, FRIEDRICH, Engels. O Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2005.
MÉSZÁROS, István. Educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.
MOREIRA, Marcos Elias. Ressignificação: Ensino médio em travessia. Goiânia: Kelps, 2009.
MORAES, Amaury C., TOMAZI, Nelson D., GUIMARÃES, Elisabeth F. Análise
crítica das DCN e PCN. In Seminário Orientações Curriculares do Ensino Médio.
Brasília: MEC – SEB, v. 1, p. 343-372, 2004.
77
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Educação contra a barbárie: Reflexões acerca de Adorno sobre a autonomia no ensino
na Sociedade Contemporânea.
Alberto Alves Silva
albertosilva.histó[email protected]
Resumo: O presente estudo tem como proposta analisar o breve relato produzido por
Adorno em seu livro: Educação e Emancipação, cuja sua base conceitual se perpetua em
chamar a atenção da sociedade contemporânea para o perigo da volta a barbárie. Em sua tese
o autor defende a necessidade de uma educação emancipatória. Entende-se como
emancipação o processo de aquisição de uma mentalidade crítica-reflexiva que leve as
pessoas a promoverem uma ação política transformadora no contexto social onde são
subjugadas. Em outras palavras esta tendência de ensino promove o distanciamento dos
indíviduos para com os instrumentos de represssão e violência que servem para legitimizar o
controle da classe dominante e acentuar mais a divisão social, graves paradigmas que hoje são
encontrados infelizmente no sistema capitalista. Desse modo a educação emancipatória
defendida por Adorno pode contribuir para a construção de uma sociedade autogestionada
baseada no livre desenvolvimento das forças produtivas do homem em relação ao trabalho,
proporcionando a interação social e autonomia de cidadões que desempenham desta maneira
a verdadeira democracia tão necessária e infelizmente ilusória na socidade contemporânea.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
78
Luta de Classes e Contemporaneidade
Trajetória individual:
Movimento estudantil e capital cultural
Maria Angélica Peixoto*
Resumo: O tema da presente comunicação busca analisar a relação entre movimento
estudantil e trajetória individual no interior da universidade no sentido da aquisição de saber.
Este tema é um tema pouco abordado pela sociologia da educação, o que expressa uma lacuna
nesta sociologia especial. A importância de nosso tema está em analisar os fatores que
possibilitam que alguns indivíduos provenientes das classes desprivilegiadas consigam
sucesso acadêmico. O movimento estudantil acaba sendo uma instância socializadora de
grande parte dos estudantes universitários. Daí o problema de pesquisa que levantamos: qual
é o papel do movimento estudantil no processo de socialização de indivíduos provenientes
das classes desprivilegiadas que conseguem relativo sucesso acadêmico?
O tema do presente trabalho é a relação entre movimento estudantil e trajetória
individual no interior da universidade no sentido da aquisição de saber. Este tema é um tema
pouco abordado pela sociologia da educação, o que expressa uma lacuna nesta sociologia
especial. O processo de formação profissional e acadêmica ocorre no interior da universidade,
mas somado a ela existe outra instância de socialização, que é o movimento estudantil que
propicia um conjunto de desafios que permite aos indivíduos oriundos das classes
culturalmente desfavorecidas aprimorarem os processos de aquisição de saber. Este é o caso
de indivíduos provenientes de famílias pobres e de baixo “capital cultural”. Apesar disso,
muitos conseguem superar esta determinação negativa, o que revela a importância de nosso
tema: analisar os fatores que possibilitam que alguns indivíduos provenientes das classes
desprivilegiadas consigam sucesso acadêmico. O movimento estudantil acaba sendo uma
instância socializadora de grande parte dos estudantes universitários. Daí o problema de
pesquisa que levantamos: qual é o papel do movimento estudantil no processo de socialização
de indivíduos provenientes das classes desprivilegiadas que conseguem relativo sucesso
acadêmico? Desta forma, o tema é relevante, atual, e um problema de pesquisa cuja resposta
contribui com a sociologia da educação e com os processos de compreensão da universidade
na nossa sociedade, e um dos seus aspectos mais importantes e esquecidos, o da ação de
elementos extra-acadêmicos na formação acadêmica.
*
Professora do INSTITUTO FEDERAL DE GOIÁS – Campus INHUMAS.
79
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Capital cultural, fracasso e sucesso acadêmico
A problemática do presente artigo visa buscar elementos para a compreensão de um
fenômeno presente no campo acadêmico. Alguns estudantes conseguem, a despeito de sua
origem desprivilegiada, ou seja, estudantes que vieram de “famílias culturalmente
desfavorecidas” (Bourdieu, 1998), uma relativa inserç~o no campo acadêmico. Tal inserç~o
produz as possibilidades de um aprimoramento do capital cultural, o que contribui para
alterar a situação originária de classe destes estudantes. Assim, apesar da instância primária –
a família – não ter proporcionado um capital cultural suficiente para estes indivíduos, estes
conseguem relativo sucesso na instância secundária, a escola/universidade.
A explicação deste processo é o problema central de nosso artigo. Esta defasagem entre
instância primária e secundária significa ou que a sociologia da educação de Bourdieu é
equivocada ou incompleta. Sendo incompleta, é preciso descobrir o que explica esta
defasagem. Qual a lacuna que explica estas trajetórias individuais ausentes na sociologia da
educação de Bourdieu?
Partindo da percepção de que existem estudantes oriundos de famílias portadoras de
baixo capital cultural e que conseguem relativo sucesso acadêmico, é preciso explicar as
razões da ocorrência deste fenômeno. São, pois, trajetos individuais que conseguem um
relativo sucesso no meio universitário, mesmo não sendo oriundos das classes privilegiadas.
Em outras palavras, são estudantes cuja origem de classe é desprivilegiada, mas que devido a
uma trajetória singular conseguem burlar as condições inscritas objetivamente na estrutura
de classe à qual pertencem. São poucos, segundo Bourdieu, que conseguem “driblar a
estrutura social e transformar sua perspectiva de mobilidade social individualmente por meio
de um processo de aculturação onde a negação de sua cultura e modo de vida é uma das
maneiras de subverter a ordem de classes” (Queirós, 2001: 58-59).
A quantidade de informação que o indivíduo retém determina, pois, as chances de se
realizar com relativo sucesso no meio acadêmico. Mas como então, entendermos que
determinados estudantes conseguem fazer a inversão e apropriarem-se com sucesso de
conteúdos que não tinham nenhuma relação direta com os seus universos culturais, ou seja,
conteúdos que não são familiares às suas classes de origem?
A sociologia reprodutivista (Bourdieu, Passeron, Baudelot, Establet, Althusser) aponta
a pequena probabilidade de tal inserção. A sociologia de Bourdieu, ao trabalhar com o
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
80
Luta de Classes e Contemporaneidade
conceito de capital cultural – quantum de informação social –, explica como é dificultado este
processo de mobilidade. Ele coloca que o que favorece a inserção em dado campo, ou seja, em
certo espaço onde se travam lutas por posições, é justamente a quantidade de informação que
os atores retêm – como o seu capital lingüístico, que tende a acirrar a disputa e determinar as
posições dos atores.
Vamos a seguir, lançar mão das teorias de Bourdieu e Passeron para mostrar como se
dá a reprodução no campo educacional e a partir desta análise elucidar as possibilidades que
certas trajetórias individuais abrem ao serem consideradas na sua especificidade: a
reestruturação do habitus, a reformulação do capital cultural “nativo” e a reformulaç~o do
capital lingüístico, são importantes elementos no processo de mudança.
O ponto de partida destes autores é a afirmação de que toda ação pedagógica é uma
violência simbólica, pois impõe um arbitrário cultural e esta imposição mascara, oculta as
relações de força, que est~o na base do poder que a engendra. Sendo assim, “as ações sociais
são concretamente realizadas pelos indivíduos, mas as chances de efetivá-las se encontram
objetivamente estruturadas no interior da sociedade global” (Ortiz,1994:15). A aç~o
pedagógica é uma ação objetivamente estruturada e é uma violência simbólica porque impõe
um arbitrário cultural, ou seja, impõe uma concepção cultural de grupos e classes dominantes
e esta imposição garantirá a reprodução da estrutura de classe e da cultura instituída.
A pedagogia, neste sentido, é inculcação de valores e normas de um dado grupo ou
classe a outros grupos ou classes. Podemos reafirmar então, que a ação pedagógica é violência
simbólica e impõe uma relação de comunicação, pois tem por objetivo aplicar sanções, impor
um arbitr|rio cultural. Bourdieu ent~o, através do estudo da “distribuiç~o estatística dos
produtos pedagógicos segundo as diferentes camadas e classes” chega { seguinte conclus~o: a
chance de cada indivíduo é determinada pela sua posição dentro do sistema de estratificação
e, partindo da análise específica do campo educacional, ele demonstra que esta tem uma dupla
função: a reprodução da cultura e da estrutura de classes como já havíamos apontado antes.
O acima exposto recoloca a questão da ação pedagógica: toda ação pedagógica requer
uma autoridade pedagógica para que ocorra a inculcaç~o de um arbitr|rio cultural. “A aç~o
pedagógica se realiza através do trabalho pedagógico que são atividades contínuas e
sistemáticas de inculcação dos princípios culturais que devem persistir após a cessação da
aç~o pedagógica” (Cunha, 1979:86). O trabalho pedagógico operado pelo sistema de ensino
81
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
conduz os estudantes pouco a pouco a irem interiorizando “certos códigos de normas e
valores”. Bourdieu, enfatiza a import}ncia de se estudar o modo de estruturaç~o do habitus
através das instituições de socialização, ou seja, a escola como instituição socializadora tende
por meio do trabalho pedagógico a estruturar o habitus (“predisposições dos agentes agirem
segundo um certo código de normas e valores que os caracterizam como pertencentes a um
grupo ou classe”) ou mais, os estudantes tendem a reproduzirem as mesmas condições da
classe de origem o que via de regra dificulta a inserção de estudantes cuja origem de classe é
desfavorecida culturalmente.
Outro aspecto que adquire importância para Bourdieu se refere à questão da língua,
pois
esta
é
considerada
não
somente
um
importante
instrumento
de
comunicação/conhecimento, mas acima de tudo um importante veículo de poder (Bourdieu,
1994) e que, portanto, é um instrumento de manipulação. Dependendo da posição do
estudante no sistema de estratificação social, a possibilidade de mobilidade social se restringe
demasiadamente. Quando o capital lingüístico é diminuto, restrito, há uma restrição na
inserção de certos estudantes no campo acadêmico, pois são carentes do capital lingüístico
necessário para a permanência no campo acadêmico e, assim, não conseguem nem sequer
garantir uma posição marginal no mesmo.
Há outro elemento relevante para a análise de Bourdieu, o conceito de capital cultural,
que anteriormente elucidamos e agora tentaremos especificar mais detalhadamente. Cada
indivíduo recebe um quantum social de informações desde o nascimento, e a família é
determinante na definição deste capital cultural, pois o capital cultural já encerra ou abre as
possibilidades de inserção numa dada classe ou grupo social. Em outras palavras, quando os
estudantes “chegam” nos meios acadêmicos trazem um certo quantum de capital cultural e
uma tendência para aprovar todo o conjunto de significações que especificam o meio
acadêmico (desde a indumentária até os símbolos mais sutis: os exames e outros), ou seja,
estes estudantes já se encontram predispostos a legitimar o meio acadêmico. Aqueles
oriundos das classes e grupos privilegiados (classes e grupos que elaboram os conteúdos
científicos) já se encontram em vantagem em relação aos demais no processo de seleção, e
serão os primeiros a serem selecionados, enquanto que os outros, por serem oriundos de
grupos e classes desprivilegiados tendem a ser excluídos. Mas observamos que alguns
estudantes conseguem burlar as condições objetivamente traçadas pela classe a qual
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
82
Luta de Classes e Contemporaneidade
pertence, porque se inserem em práticas nos meios universitários que acabam por contribuir
com a alteração das condições outrora inscritas no seu limitado capital cultural e lingüístico.
Então podemos supor, que os espaços propiciadores destes novos conteúdos (que
expressam conteúdos das classes privilegiadas) são espaços específicos, singulares que
impõem determinadas exigências que uma vez satisfeitas facilitam a movimentação destes
estudantes a um relativo sucesso acadêmico. Apontamos como um destes espaços o
movimento estudantil. Segundo Bertaux (1979, p. 312), “o fluxo de mobilidade social que leva
os filhos saídos do povo para lugares de agentes do enquadramento através do sucesso
escolar foi caracterizado não como um signo de abertura que contradiga o caráter de classe da
estrutura social, mas como um fluxo que contribui, ao contrário, para a conservação da ordem
de classe instituída”.
O que reforça ainda mais a leitura contida na Reprodução de Pierre Bourdieu, pois esta
obra coloca elementos que possibilitam a percepção do quanto a escola moderna mantém
inalterada a estrutura de classes existentes em nossa sociedade. A compreensão deste
processo contribui para desmistificar o mito da escolarização, que aponta a escola como o
caminho para a resolução dos problemas individuais e ascensão social. Tal análise abre
brechas também para entendermos que determinadas trajetórias individuais superam as
adversidades e passam a ocupar posições privilegiadas no universo acadêmico e que elas não
s~o mais que a confirmaç~o de que n~o basta “estar” na universidade. Assim, descobrir como
estas trajetórias individuais são formadas assume grande importância para a compreensão da
universidade na sociedade contemporânea. O campo científico é perpassado, segundo
Bourdieu (1994), por lutas e os atores pertencentes às famílias culturalemente desfavorecidas
s~o os “excluídos do interior” (Bourdieu, 1998).
Assim, estar na universidade requer um aprimoramento do capital cultural e
lingüístico, bem como predisposição para mudar o habitus. Neste sentido, as outras instâncias
socializadoras serão determinantes no processo de reestruturação do habitus. Daí a
importância de entendermos as trajetórias individuais de alunos provenientes das famílias
culturalmente desfavorecidas que atuaram ou atuam no movimento estudantil e que tiveram
relativo sucesso acadêmico.
A nossa hipótese, partindo dessa discussão teórica, é a de que o movimento estudantil
contribui com uma aquisição de um maior capital cultural e, desta forma, possibilita aos
83
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
indivíduos provenientes das classes exploradas um maior acesso a um relativo sucesso
acadêmico. Entenda-se por “relativo sucesso acadêmico” a conclus~o de um curso e seu
prosseguimento, seja no mercado de trabalho ou a entrada em etapas posteriores do processo
educacional (pós-graduação). Desta forma, o movimento estudantil seria um meio de auxílio
de aquisição do capital cultural que permitiria aos indivíduos provenientes de classes
desprivilegiadas uma melhor condição para conquistar um relativo sucesso acadêmico.
Material informativo e a trajetória individual
O universo de nossa pesquisa da qual resultou o presente artigo é composto pelos
estudantes universitários oriundos de famílias de baixo capital cultural e por indivíduos que
conquistaram relativo sucesso no campo acadêmico que atuaram no movimento estudantil
com famílias oriundas também de classes culturalmente desfavorecidas. Assim, realizamos
um recorte de duas gerações, uma que ainda estava vivendo o processo de formação
universitária e outra que já havia passado por este processo.
No primeiro caso, nosso objetivo foi ver como ocorreu a inserção dos estudantes no
movimento estudantil e se isso contribuiu para o desenvolvimento de um determinado capital
cultural; no segundo caso, observamos a trajetória de indivíduos que já haviam passado pelo
estágio de formação universitária e conseguiram relativo sucesso no campo acadêmico1.
Para concretizar isto, delimitamos o espaço social dos estudantes atuais, selecionando
estudantes que estavam estudando em universidades de Goiânia e que eram provenientes de
famílias culturalmente desfavorecidas e possuíam alguma relação com o movimento
estudantil universitário. Mas o foco foi em torno dos locais onde o movimento estudantil é
mais estruturado, e como a força deste movimento é mais perceptível na Universidade
Federal de Goiás e na Universidade Católica de Goiás, então efetuamos a pesquisa com
estudantes destas universidades. Entendemos por movimento estudantil todas as ações
1
Os índices para ver isto variam, pois alguns alcançam um sucesso maior e, outros, menor, mas o elemento
básico será a conclusão do curso de graduação e a inserção no mercado de trabalho na prática profissional ou na
pós-graduação. Isto é, incluiremos professores universitários, e profissionais que exercem suas profissões de
formação, e outros itens avaliados é a pós-graduação, entre outros elementos que demonstram tal sucesso.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
84
Luta de Classes e Contemporaneidade
coletivas dos estudantes universitários que tenham conteúdo e objetivos voltados para a
universidade, o que inclui as ações que ocorrem nas variadas esferas de organização
estudantil (Centros Acadêmicos, Diretórios Centrais de Estudantes, Casa de estudantes, etc.) e
outras formas, como ações coletivas de estudantes negros, organização por curso, etc.
No que diz respeito ao espaço social daqueles que já obtiveram relativo sucesso no
campo acadêmico, selecionamos os profissionais que tiveram sua formação nas universidades
de Goiânia, e que hoje atuam profissionalmente ou demonstram qualquer outro elemento que
revele seu sucesso acadêmico (tal como conclusão de cursos de pós-graduação strictu sensu),
provenientes de famílias culturalmente desfavorecidas e que tiveram alguma atuação no
movimento estudantil, visando descobrir sua trajetória individual e os reflexos desta atuação
no seu sucesso.
Devido à peculiaridade da pesquisa, não a delimitamos temporalmente, pois os
profissionais selecionados eram de diferentes épocas (no que se refere aos anos de estudos),
enquanto que os estudantes que atuavam na época do desenvolvimento desta pesquisa ainda
estavam atuantes e estudantes.
Entrevistamos estudantes que estavam atuando no movimento estudantil - época em
que foi desenvolvida a pesquisa – e, profissionais que atuaram neste mesmo movimento,
sendo que em ambos os casos tais indivíduos são provenientes de famílias culturalmente
desfavorecidas. Utilizamos complementarmente uma investigação documental, buscando nos
documentos do movimento estudantil (jornais, panfletos, ofícios, entre outros documentos)
analisar o quantum e o tipo de capital cultural que veiculam, para comparar com o capital
cultural escolar e verificar se existe uma correspondência que justificaria se pensar numa
contribuição do movimento estudantil ao sucesso acadêmico dos indivíduos que atuam nele.
Como se tratava de uma pesquisa de caráter qualitativo, não foi delimitado um número muito
extenso de entrevistados: sendo um total de 6 estudantes e 4 profissionais.
Entrevistamos 6 estudantes que militantes e atuantes no movimento estudantil, sendo
que selecionamos 4 que militavam no movimento estudantil da UFG – Universidade Federal
de Goiás, especialmente nos Centro Acadêmicos dos cursos da área de Ciências Humanas, no
qual existia uma forte mobilização estudantil aliado a nível de renda inferior de uma boa parte
dos alunos. Estes alunos se envolveram no movimento estudantil não apenas nos Centros
Acadêmicos, mas também no DCE – Diretório Central dos Estudantes, como oposição ou
85
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
situação, dependendo do ano, e em outras atividades culturais e participação/envolvimento
com outras organizações políticas ou movimentos sociais, tal como partidos, CMI – Centro de
Mídia Independente, MST, etc. Os outros 2 entrevistados foram da UCG – Universidade
Católica de Goiás, onde geralmente os alunos possuíam nível de renda inferior aos estudantes
da UFG e menor mobilização estudantil.
Quanto aos profissionais, entrevistamos professores universitários e pós-graduados
que atuaram na UFG e UCG, durante o final dos anos 1980 e início dos anos 90. Entrevistamos
3 profissionais que militaram no movimento estudantil da UFG e 1 que atuou no movimento
estudantil da UCG. Contatamos preliminarmente os seguintes profissionais: 1) um profissional
que atuou como professor universitário e estava terminando doutorado em Sociologia, e que
militou no movimento estudantil da UFG nos final dos anos 1980 e início dos anos 1990; 2)
um professor universitário e doutor em Sociologia, que militou no movimento estudantil a
partir do final dos anos 1980 e início dos anos 1990; 3) Um professor universitário com
mestrado em Filosofia, que militou no movimento estudantil na UFG durante a década de
1990; 4) Um Professor universitário que militou no movimento estudantil da UCG nos anos
1990.
Além de entrevistar os indivíduos integrantes do segundo grupo de entrevistados,
solicitamos e conseguimos com eles alguns documentos que são de muita importância para
nosso processo de pesquisa, pois é a parte complementar que vai além das entrevistas, a
investigação documental, que serve para conseguir mais material informativo e, além disso,
para comparar com os discursos feitos pelos entrevistados.
Realizamos as entrevistas previstas e a partir delas efetuamos um conjunto de análises,
sendo que o mesmo procedimento foi realizado com os documentos que tivemos acesso. As
entrevistas com os profissionais iniciavam com perguntas relativas ao seu passado, visando
descobrir a origem de classe e comprovar que eram oriundos das classes desprivilegiadas. Os
resultados confirmaram aquilo que já tínhamos certo conhecimento, pois sem este seria
impossível fazer a seleção dos entrevistados. O mesmo procedimento foi realizado com os
estudantes que atuavam no movimento estudantil na época em que desenvolvemos esta
pesquisa e o resultado foi o mesmo. Outras informações pessoais complementares foram
solicitadas nas entrevistas para conseguir fornecer um quadro mais amplo de
contextualização dos entrevistados em ambos os casos. Este primeiro bloco de informações
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
86
Luta de Classes e Contemporaneidade
serviu para confirmar e contextualizar os entrevistados.
Posteriormente, realizamos questões mais voltadas para nosso interesse direto, ou
seja, sobre a participação no movimento estudantil e sua relação com o processo acadêmico e
de estudos. Neste caso, houve respostas que apontavam para situações e concepções
semelhantes, mas com níveis de complexidade diferentes. Algumas questões eram
informativas (quanto tempo militava ou milita no movimento estudantil) e outras mais
subjetivas, tal como se a prática militante contribuía ou dificultava os estudos e leituras.
Das entrevistas e dos documentos conseguimos extrair alguns pontos fundamentais: a)
os entrevistados eram realmente oriundos das classes desprivilegiadas (em graus distintos,
tal como entre um que vinha de família pobre do interior e outro que vinha de família mais
pobre ainda, mas da capital); b) todos os militantes – atuantes ou do passado, ainda
estudantes ou já profissionais – se envolveram, com graus diferenciados, com leituras e
práticas no movimento estudantil que se relacionava com a formação acadêmica; c) os
documentos e as entrevistas mostraram que as leituras e estudos relacionados ao movimento
estudantil revertiam para a formação acadêmica mais do que esta para aquele.
As entrevistas confirmam a importância do movimento estudantil na formação dos
estudantes que posteriormente tiveram sucesso profissional e daqueles que ainda estavam
estudando. O benefício do movimento estudantil reside em contatos, acesso a informações,
textos e bibliografias, prática da reflexão e escrita, ou seja, ferramentas intelectuais que
colaboram com a formação intelectual do indivíduo. Além disso, o interesse que o movimento
estudantil desperta é outro fator extremamente relevante.
Um artigo publicado por um dos entrevistados profissionais tematiza a relação entre
“espaço e poder”, analisando o processo de divis~o social do espaço constituído por relações
de poder, e relacionando isso com a moradia das classes “subalternas” e a localizaç~o da
universidade, afastada do centro urbano. A temática e abordagem deste artigo revelam uma
preocupação pessoal (já que era o caso deste profissional quando estudante) e política,
atingindo questões sociais e também acadêmicas. A razão do artigo, sem dúvida, foi o duplo
interesse pessoal e político, incentivado pela participação política no movimento estudantil e
pela situação de classe.
Os entrevistados responderam questões que perguntava sobre haver alguma relação
entre movimento estudantil e leitura e algumas respostas ilustram o vínculo entre ambos:
87
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
“Sim, principalmente textos anarquistas, o que me levou a uma bolsa de iniciação
científica sobre Proudhon” (Estudante 1).
“As literaturas que propõem um outro tipo de sociedade diferente dessa. Como por
exemplo, Bakunin, e a literatura anarquista em geral (pedagogia libertária). Poderiam
influenciar, mas no meu caso, por desacreditar do conhecimento acadêmico, não
influenciaram os estudos” (Estudante 4).
“Sim. As leituras que eu faço est~o basicamente relacionadas a tentativa de explicar e
buscar um melhor caminho para as nossas contradições sociais, ou seja, de não
aceitação da ordem social atual. As obras são de Karl Marx, e de outros
contemporâneos como Karl Korsch, Georg Luckás, João Bernardo, Lucien Goldman,
Francisco Martins Rodrigues, Georg Orwell etc e exercem sim influência não só em
meus estudos mas em minha vida” (Estudante 5).
“Sim, sobre raça, racismo, elas determinaram meu objeto de pesquisa” (Estudante 3).
“Na milit}ncia tive contato com uma literatura que estava { margem nas disciplinas
acadêmicas. Meu interesse pela leitura dos textos de Marx e dos marxistas se
aprofundou e durante a militância pude entrar em contato com diversos indivíduos e
publicações. Assim, as leituras foram principalmente de autores como Marx, Fromm e
outros marxistas, além das leituras das disciplinas do curso de Ciências Sociais
(Weber, Durkheim, etc) e de Economia (Marx, Jevons, Stuart Mill, Smith, Ricardo, etc)”
(Profissional 4).
Estas informações mostram leituras que são de caráter apenas acadêmico, mas que
contribui com a militância, como outras de caráter político, que, no entanto, também tem
circulação acadêmica e em alguns casos se tornam objetos de estudo, tal como o anarquismo,
a obra do filósofo Karl Korsch, entre outros exemplos possíveis. Um dos entrevistados
apresentou uma longa lista de autores que leu enquanto estudante, mostrando uma grande
leitura do anarquismo, comunismo de conselhos, Rosa Luxemburgo, Marx, autores que
abordam o fenômeno educacional (Ivan Illich, Maurício Tragtenberg, Freinet, Ferrer), filósofos
e teóricos políticos (Ernst Bloch, Daniel Guérin, Barrot, Michels, Pannekoek, Korsch, entre
outros). Outros dois entrevistados também apresentaram uma lista de autores que pela
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
88
Luta de Classes e Contemporaneidade
quantidade é acima da média dos profissionais atuais, tal como se vê no caso do Profissional 4
e Estudante 5 acima citados.
Isto demonstra que a militância estudantil provoca leituras, tanto sobre educação e
universidade, quanto sobre política, tal como este entrevistado que afirmou que devido aos
embates políticos acabou lendo autores que discordava para poder debater (Lênin, Lukács,
Gramsci, etc.). Assim, o capital cultural de origem foi superado pela inserção no movimento
estudantil e outras ações políticas. Os documentos analisados também reforçam esta
conclusão. Neste sentido, concluímos confirmando a hipótese inicial, segundo a qual o
movimento estudantil é uma instância de socialização que atinge os indivíduos provenientes
de classes exploradas e colabora com o processo de formação e, assim, reverte a situação de
precariedade determinada pelo baixo capital cultural e permite um relativo sucesso
acadêmico, apesar das condições adversas da situação de classe e do baixo capital cultural
derivado dela.
Referências
BERTAUX, Daniel. Destinos Pessoais e Estrutura de Classe Para uma Crítica da Antroponomia
Política. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
BOURDIEU, Pierre & PASSERON, Jean-Claude. A Reprodução: Elementos para uma Teoria do
Sistema de Ensino. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves: 1982.
BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
CUNHA, Luiz Antonio. “Notas Para Uma Leitura da Teoria da Violência Simbólica”. Educação &
Sociedade. Ano 1, no 4, Setembro de 1979.
ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu. Coleção Grandes Cientistas Sociais. 2ª ed. São Paulo:
Ática, 1994.
89
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
SIMPÓSIO TEMÁTICO 2
EMANCIPAÇÃO HUMANA E AS ARTICULAÇÕES ENTRE AS LUTAS SOCIAIS
Coordenadores:
Hugo Leonnardo Cassimiro
Mestre em Sociologia/UFG.
Mateus Vieira Orio
Graduado em Ciências Sociais/UFG e mestrando em Sociologia/UFG.
Adriano José
Graduado em História/UEG.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
90
Luta de Classes e Contemporaneidade
A territorialização dos indivíduos no local de trabalho: um estudo de caso
da empresa casas bahia s/a.1
Natália C. dos Santos Pessoni2
Vinicius de Souza Ribeiro3
Resumo: A observação dos mecanismos sob os quais o trabalho pode ser instrumento de
alienação do trabalhador na sociedade contemporânea nos leva a pensar acerca das formas
mediantes as quais essa alienação pode se dar nos diversos setores da mesma. No entanto
para que se evite generalizações é necessário realizar alguns recortes. Este trabalho, que tem
um campo delimitado, através de um breve estudo de caso da Empresa Casas Bahia S/A,
procura analisar como nessa empresa, aqui compreendida como um “ambiente de trabalho”,
esses processos de alienação se desenvolvem sendo mesmo um dos mecanismos de
“territorializaç~o” dos “colaboradores”. Com esse intuito faz-se necessário lançar mão de
conceitos que abrangem mesmo temáticas de outras áreas do conhecimento científico, como a
Geografia, na medida em que ela auxilia na compreensão das várias nuances do conceito de
território e da relação deste com a organização da sociedade. Percebe-se que no ambiente de
trabalho referido acima os desdobramentos do conceito de alienação, apresentados pelo
próprio Marx em seus Manuscritos Econômicos Filosóficos, se caracterizam de forma
complexa, identificando-se positivamente com os processos de dominação dos indivíduos pela
empresa ao ponto de eles, imperceptivelmente, se tornarem, muitas vezes, reprodutores do
discurso da empresa, que se vale disso no sentido de ampliar suas áreas de abrangência no
mercado, ao mesmo tempo em que o trabalhador, peça importante desse processo, não
participa ativamente dos benefícios que isso traz para a empresa.
Introdução
O presente texto integra um artigo apresentado { disciplina de “Territorio política e
sociedade no Brasil do curso de Licenciatura em História do IFG. Tal texto busca analisar a
relação entre os conceitos de Territorialização, disciplinarização e alienação a partir de um
estudo de caso no qual se observou alguns aspectos da empresa Casas Bahia s/a,
principalmente a relação do funcionário com as suas atividades profissionais na referida
empresa.
Artigo apresentado à disciplina de Território, Política e Sociedade no Brasil, sob a orientação da Proª. Mss. Lídia
Milhomem.
2 Bacharel em História pela Universidade Federal de Goiás, Licencianda em História pelo Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás.
3 Licenciando em História pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás.
1
91
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
O conceito de alienação nesse estudo de caso surge de forma central, pois se torna um
dos determinantes da territorialização do indivíduo na empresa. Não se busca, aqui discutir
profundamente sobre o conceito de territorialização ou mesmo acerca do conceito de
alienação, no entanto se delineará um breve panorama da noção de território e
territorialização que será utilizada e ainda diante da complexidade e das múltiplas definições
que o conceito de alienação assume dentro das próprias ideias dos pensadores marxistas em
geral assim como nos escritos do próprio Marx, delimitar-se-á aqui quais leituras de alienação
serão utilizadas como sendo as que são apresentadas nos Manuscritos Econômicos
Filosóficos.
Delimitando o conceito de território
Quando se propõe a pensar a possibilidade da territorialização dos indivíduos no local
de trabalho e os mecanismos sob os quais essa territorialização se dá, deve-se ter o cuidado de
não incorrer em algumas generalizações. De forma bem específica, através da análise da
empresa Casas Bahia S/A e estabelecendo um diálogo com alguns autores como Rogério
Haesbaert, Karl Marx, propõe-se pensar como se faz possível essa modalidade de
territorializaç~o e como os mecanismos de “alienaç~o do trabalho” colaboram com esse
processo.
Nesse sentido torna-se necessário esclarecer previamente os conceitos que serão
trabalhados como, por exemplo, qual noção de território está se utilizando assim como as
ideias de alienaç~o, claramente definidas por Marx nos “Manuscritos”.
Compreende-se a ideia de território como um conceito amplo e em muitas vezes
complexo. Portanto se adotará o conceito que aborda a temática escolhida à definição de
território por uma perspectiva cultural como defende Haesbaert (2004).
Segundo Haesbaert, a vertente
[...] cultural (muitas vezes culturalista) ou simbólico-cultural prioriza a dimensão
simbólica e mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo, como produto da
apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido.
(HAESBAERT, 2004, p. 40)
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
92
Luta de Classes e Contemporaneidade
Para a estruturação dessa noção, Haesbaert se apóia ainda nas reflexões de Guattari e
Rolnik, onde:
A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso
que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo
territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos
cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema
percebido no seio da qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de
apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e
representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de
comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais,
estéticos, cognitivos (GUATTARI e ROLNIK, 1986:323, apud HAESBAERT, 2004, p.
121-122).
Embora Haesbaert, enquanto geógrafo, não deixe de trabalhar essa noção de território
vinculada a dimens~o espacial, é nessa perspectiva “cultural” que se procurar| perceber
como, na relação entre indivíduos e/ou grupos com um certo espaço vivido e compartilhado
(neste caso a Empresa Casas Bahia S/A como um local de trabalho), outras relações se
constroem possibilitando que esse território interpenetre num nível mesmo subjetivo esses
indivíduos. Promovendo, além das modificações naturais decorrentes das exigências de um
emprego, mudanças no sentido de levar mesmo a padronização da aparência e de ações que
leve a pensar nos mecanismos sob os quais essa “territorializaç~o” se opera.
Para isso, é necessário que se esclareça bem a ideia de território que se procurará
trabalhar aqui. Sua característica desvinculada da noção estrita de espaço, assim, concorda-se
com Oliveira que afirma que:
Território é o produto histórico do trabalho humano, que resulta na construção de um
domínio ou de uma delimitação do vivido territorial, assumindo múltiplas formas e
determinações: econômica, administrativa, bélica, cultural e jurídica. O território é
uma área demarcada onde um indivíduo, ou alguns indivíduos ou ainda uma
coletividade exercem o seu poder. (OLIVEIRA, 2010, p. 3)
Para fazer tal afirmação, Oliveira ao citar Raffestin ressalta a diferença marcante que as
novas tendências da geografia vêm estabelecendo entre esses dois conceitos.
Espaço e território não são termos equivalentes (...). É essencial compreender bem
que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é
resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um
programa) em qualquer nível. (RAFFESTN, 1980, p. 143 apud OLIVEIRA, 2010, p.3)
93
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
É a partir dessa diferenciação que se permite pensar na possibilidade de um processo
de territorialização do sujeito no sentido de interiorizar nele alguns aspectos de uma
determinada cultura a partir das relações de trabalho.
A técnica de pesquisa empreendida para o levantamento dos dados compôs-se da
observação participante, também conhecida por observação ativa, por entender que
A observação participante possibilita ao pesquisador a vivência, participando
intensamente do cotidiano dos grupos em estudo, observando todas as manifestações
presentes na cultura material do grupo, bem como as reações psicológicas de seus
membros, seu sistema de valores e seu mecanismo de adaptação. (MICHALISZYN e
TOMASINI, 2009, p.55)
Segundo Michaliszyn e Tomasini (2009, p.54), esta técnica foi “introduzida nas ciências
sociais a partir dos estudos antropológicos [...] desenvolvidos por Franz Boas e Bronislaw
Malinwski”. E, dentre as vantagens e desvantagens dessa técnica, apontam que:
[...] permite tomar nota do comportamento de uma pessoa ao mesmo tempo em que
essa atua espontaneamente; independe da capacidade ou vontade do sujeito de
fornecer a informação de que se precisa; [...] As limitações principais são: [...] não
existem controles efetivos para as observações na maioria dos casos; há pouca
possibilidade de padronização. (MICHALISZYN e TOMASINI, 2009, p.52-53)
Contudo, além da técnica empreendida na realização da pesquisa, os pesquisadores se
valeram de um exemplar do Código de Conduta da empresa que, segundo consta no mesmo,
trata-se de um documento oficial da empresa, sendo assim, válido para todas as divisões da
mesma, que se compõe das marcas: Bartira; CB Contact Center; Casas Bahia S/A.
Foram visitadas cinco filiais da empresa Casas Bahia S/A, durante o período de sete de
janeiro a sete de fevereiro de 2012. Sendo, três delas na região da grande Goiânia, uma no
Buriti Shopping, em Aparecida de Goiânia e, por último, a filial que está montada no Salvador
Shopping, na cidade de Salvador (BA).
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
94
Luta de Classes e Contemporaneidade
A abrangência da empresa no cenário nacional
Com o intuito de apresentar alguns dados estatísticos, oferecendo uma noção geral da
abrangência dessa empresa em nosso país buscamos as seguintes informações oferecidas pela
própria empresa:
Com 59 anos de atuação no mercado nacional, a Casas Bahia, com mais de 56 mil
colaboradores, tem mais de 500 filais e presença em 12 Estados nas regiões Sul,
Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste (SP, RJ, MG, GO, PR, SC, MS, MT, ES, BA, SE e CE),
além do Distrito Federal4.
Além do mais, partindo de dados ainda no sentido da divulgação da marca, segundo a
própria empresa:
A Casas Bahia é constantemente citada em pesquisas de lembrança de marca como a
mais presente na mente dos brasileiros, abrangendo 55,3 milhões de lares (99,74%
do total Brasil), anunciando em 379 emissoras de TV aberta e, também, em 19 canais
por assinatura, cobrindo 5,5 milhões de lares. Além disso, complementam e reforçam
o seu plano de mídia outras 335 emissoras de rádio, 84 jornais, 5 principais revistas
semanais de interesse geral e diversas modalidades de mídia out-of-home (outdoor e
painel, em locais de grande visibilidade, monitores em elevador, metrô e ônibus
urbanos)5.
Além da abrangência que essa empresa atingiu no mercado de eletrodomésticos no
cenário nacional, o que já pode ser considerado um exemplo patente de territorialização no
sentido econômico, pretende-se observar de que forma certa ideologia comum se
territorializa em relação às pessoas que compõe o quadro de funcionários dessa empresa em
nível nacional como podemos observar no texto a seguir, extraído do Código de conduta da
empresa.
Os padrões de conduta descritos neste documento aplicam-se a todos os
colaboradores das empresas Casas Bahia, Bartira, CB Contact Center e qualquer outra
que faça parte da organização. É necessário para aquele que representa a empresa em
qualquer atividade, posição hierárquica ou situação, que as suas ações sejam
orientadas por eles.6
Essa ideologia se manifesta através de um padrão de comportamentos que são
esperados de forma a construir uma identidade para esses indivíduos. A partir de então,
Disponível em: <http://institucional.casasbahia.com.br/empresa/empresa/nossa-historia/> Acesso em: 05 de
Fevereiro de 2012.
5 Disponível em: <http://institucional.casasbahia.com.br/empresa/empresa/nossa-historia/> Acesso em: 05 de
Fevereiro de 2012.
6 Extraído do Código de Conduta da Casas Bahia S/A.
4
95
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
procurar-se-á discutir como a construção de um padrão, criando indivíduos territorializados,
pode se apoiar em outros mecanismos.
A alienação do trabalho e um possível vínculo com a territorialização
Um dos teóricos que em sua análise, provavelmente, mais deu ênfase para a função do
trabalho no desenvolvimento de uma sociedade foi Marx. No entanto, Marx não usa o termo
desterritorialização, ele procura avaliar como o trabalho, considerado algo externo ao ser
humano, coisifica o indivíduo a partir da afirmação de que:
O Trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se também a si mesmo e ao
trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção com que
produz bens. Tal fato implica apenas que o objeto produzido pelo trabalho, o seu
produto, opõe-se a ele como ser estranho, como um poder independente do produtor.
(MARX, 2001, p.111)
A partir disso, nota-se que Marx trata o processo de alienação do trabalhador em três
níveis: o primeiro diz respeito ao estranhamento do trabalhador com relação aos produtos do
seu trabalho que, para Marx
[...] significa não só que o trabalho se transforma em objeto assume uma existência
externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um
poder autônomo em oposição a ele; que a vida que deu ao objeto se torna uma força
hostil e antagônica. (MARX, 2001, p.112)
O segundo âmbito em que se dá a alienação está ligado ao ato da produção dentro do
trabalho que, segundo Marx (2001, p.115) “[...] é a relaç~o do trabalhador com a própria
atividade assim como com alguma coisa estranha, que não lhe pertence, a atividade como
sofrimento (passividade)”. Nesta abordagem, Marx aponta que o trabalho é algo exterior ao
indivíduo, desta forma, trata-se de uma característica que n~o o pertence, algo no qual “[...] ele
não se afirma [...], mas nega-se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve
livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito”.
(MARX, 2001, p.114)
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
96
Luta de Classes e Contemporaneidade
O terceiro grau em que o processo de alienação se desenvolve diz respeito a sua vida
genérica. Para Marx, a principal diferença entre os seres humanos e os animais, é que aqueles
possuem consciência de si mesmo e de duas atividades, desta forma, de acordo com Marx, é
somente por esse motivo que o ser humano pode ser considerado um ser genérico7. Neste
ponto, Marx indica que a alienação que origina nos dois primeiros pontos, culmina neste
terceiro, produzindo um estado de estranheza do indivíduo quanto { “natureza do homem,
aliena o homem de si mesmo, o seu papel ativo, a sua atividade fundamental, aliena do mesmo
modo o homem a respeito da espécie”. (MARX, 2001, p.116)
Segundo Marx, o processo no qual o trabalhador encontra-se submetido, em
decorrência do trabalho alienado, causa transformações em sua vida atingindo sua vida
genérica, produz alienação do indivíduo quanto ao seu próprio corpo. Contudo, conforme
aponta Marx, tais mudanças atingem as características externas e também, a vida intelectual
do sujeito.
Antes de se aplicar a teoria marxista da alienação à empresa observada faz-se
necessário que se observe as diferenças conjunturais entre os grupos observados por Marx ao
desenvolver as ideias de alienação apresentadas aqui e o grupo que é objeto da presente
análise, com o objetivo de que a análise não caia em um anacronismo displicente.
Sendo assim, é a partir das ideias apresentadas por Marx, que nota-se como o trabalho
“molda” alguns indivíduos. E, embora Marx n~o tenha utilizado o termo territorializaç~o,
percebe-se que o modo como as empresas exigem que seus funcionários estejam vestidos, a
forma como devem se comunicar no ambiente de trabalho, as exigências quanto aos horários
que devem ser cumpridas pelo empregado, até mesmo a postura corporal, etc., são hábitos
que, possivelmente, não faziam parte de suas vidas e diante da necessidade de um emprego, o
indivíduo não leva em consideração tais questões e acaba por se submeter às imposições do
mercado. Esse estranhamento a si mesmo, sofrido pelas imposições da empresa, seja em
relação à aparência, seja as exigências de rendimento comercial nos moldes da empresa,
subtraindo do indivíduo seu potencial criativo pode ser indicado como a prática de um dos
tipos de alienação cunhados por Marx.
7 Para Marx, o conceito de “ser genérico” refere-se à atuação autêntica do homem como um ser social. (MARX,
2001, p.22)
97
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Durante a observação que foi executada no contexto da empresa Casas Bahia s/a,
percebeu-se que há uma preocupação constante com a forma como os empregados devem se
portar, a ponto de haver um código de conduta (cada funcionário recebe um exemplar assim
que começa suas atividades na empresa) em que estão propostos os procedimentos básicos
que cada empregado deve tomar nas mais diversas circunstâncias, sendo que, o não
cumprimento das normas incorre em uma possível “puniç~o”, que depender| da gravidade da
ação cometida.
[...] Estamos chamando esse modelo de “DNA Casas Bahia”, pois ele é um verdadeiro
código genético que traduz o nosso jeito de ser e de atuar.
O “DNA Casas Bahia” é feito de miss~o, de vis~o, de valores e da nossa conduta. E este
código foi criado para que tudo isto possa ser preservado.
Após a leitura, você vai perceber que ele nada mais é do que a transferência para o
papel do nosso jeito natural de ser. Mas, devido ao fantástico crescimento da empresa
e do numero de colaboradores, foi importante montar um guia que possibilite uma
atuação uniforme e cada vez mais eficiente em todas as empresas e filiais,
independente de região, cultura ou mercado.8 (grifos nossos)
Nota-se também, que alguns jargões da empresa, como o “DNA Casas Bahia”, que
envolve um discurso de valores como honestidade, trabalho em equipe, fidelidade, etc.,
funcionam como algo que desenvolve um sentimento de pertencimento ao ambiente de
trabalho. Santos denomina esse fenômeno como sendo a “psicosfera”, segundo ele
[...] A psicosfera, reino das ideias, crenças, paixões e lugar da produção de sentido,
também faz parte desse meio ambiente, [...], fornecendo regras à racionalidade ou
estimulando o imaginário. (SANTOS, 2002, p. 256)
Embora se reconheça alguma relaç~o entre esse discurso que envolve a “psicosfera” e o
empenho do empregado no desenvolvimento de suas funções, com o fim de aumentar os
rendimentos da empresa, não se sabe ao certo, até que ponto isso tem a ver ou não com o
crescimento nos lucros da empresa, até por que esse não é o objetivo da pesquisa. Mas,
verifica-se que há uma relação com a territorialização do funcionário, principalmente, à
medida que o discurso da empresa se torna o seu discurso.
Avaliar o processo de territorialização na tentativa de se fazer uma relação com a
concepção marxista de trabalho alienado, remeterá a uma concepção diferenciada das
8
Extraído do Código de Conduta da Casas Bahia S/A.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
98
Luta de Classes e Contemporaneidade
questões que tangem o simbólico-cultural e que esteja ligado ao âmbito econômico, conforme
aponta Haesbaert (2006. p.40) tal concepç~o “[...] enfatiza a dimens~o espacial das relações
econômicas, o território como fonte de recursos e/ou incorporado no embate entre classes
sociais e na relação capital-trabalho”. Deve-se conceber as diferenças existentes entre um
trabalhador do século XIX (observado por Marx) e um do século XXI, visto que as conquistas
trabalhistas mudaram o cenário do trabalhador. No entanto, embora haja discrepâncias
(carga-horária; os direitos que os trabalhadores atuais possuem em detrimentos daqueles do
século XIX; a atividade desenvolvida, etc.) as relações de trabalho estão vinculadas a questão
econômica, tanto do trabalhador quanto da empresa. Criam-se, portanto, presentemente,
outros meios de garantir que o trabalhador se envolva na teia alienante criada pelos vínculos
estabelecidos entre trabalhador e empresa e ratificados pelo modelo de sociedade atual.
Portanto, no caso observado, o processo de territorialização se desenrola fazendo com
que se forje um vínculo identitário, artificial, do trabalhador com a ideologia da empresa, com
o intuito de obter maior rendimento do funcion|rio. Isso se d|, ao ponto de o “colaborador”
tomar como seu o discurso da empresa e que beneficia exclusivamente a empresa num
sentido econômico.
Considerações finais
O desenvolvimento desta pesquisa, desde a escolha do tema e da técnica de observação
permitiu a constatação de que os processos de territorialização estão mais próximos da
realidade cotidiana que normalmente é percebido. Ou seja, nas maiores relações entre estados
quanto nas menores entre indivíduos pode-se perceber o quanto as lógicas de dominação, que
em grande medida se aproximam das ideias de territorialização, se concretizam.
Normalmente não se procura pensar sobre essas personagens e ações do dia a dia.
Principalmente para quem está fora dessas empresas, a população em geral, essas relações de
poder que permitem a territorialização dos indivíduos não são problematizadas, e são vistas
como algo natural.
No entanto, a partir da realização desse trabalho foi perceptível como, longe de serem
naturais, esses processos são construídos mediante as relações de trabalho, onde o
99
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
trabalhador se aliena na medida em que sofre um processo de disciplinarização orientado
pela empresa.
Embora desde o início desse trabalho, tenha sido uma preocupação evitar as
generalizações, torna-se curioso o fato de que ao observar as demais empresas seja possível
identificar algumas características comuns em relação às Casas Bahia S/A, tanto em relação à
alienação do colaborador em relação ao trabalho, quanto em relação à disciplinarização
imposta.
Referências
COSTA, Rogério Haesbaert. O Mito da Desterritorialização; do “fim dos territórios” à
multiterritorialidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
MARX, Karl. Manuscritos Econômicos Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2001.
MICHALISZYN, Mario Sergio; TOMASINI, Ricardo. Pesquisa: orientação e normas para
elaboração de projetos, monografias e artigos científicos. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
OLIVEIRA, Luciana de Fátima. O conceito de território e o primeiro processo de
territorialização do Estado do Maranhão e Grão-Pará – século XVII. Disponível em:
<www.cdn.ueg.br/arquivos/revista_geth/.../artigo3_luciana-PRONTO.pdf> Acesso em: 01 de
Fevereiro de 2012.
INSTITUCIONAL
CASAS
BAHIA.
Disponível
em:
<http://institucional.casasbahia.com.br/empresa/empresa/nossa-historia/> Acesso em: 05
de Fevereiro de 2012.
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo; Razão e Emoção. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2002.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
100
Luta de Classes e Contemporaneidade
Lutas sociais e políticas públicas de saúde
Roseli M. Tristão Maciel1
Resumo: Este trabalho é um ensaio cuja proposta consiste em uma breve exposição histórica
das lutas dos trabalhadores no sentido da implantação de algumas políticas de saúde na
sociedade capitalista, contrapondo a visão dominante de que, os mesmos, são benefícios
concedidos espontaneamente pela governança através do Estado. Para tanto, analisaremos o
conflito entre os, distintos, grupos de interesse ou segmentos de classe pelo controle dos
organismos do Estado de modo a identificar neles, os projetos e demandas específicos de
saúde. Considerando que política pública, da perspectiva aqui adotada, é o embate entre
projetos formulados por frações da classe dominante institucionalizadas no âmbito da
sociedade civil, uma vez que de sua dinâmica e capacidade organizacional, decorre o menor ou
maior poder de barganha em prol de seus interesses junto às mais variadas agências do poder
público.
Palavras-chave: Lutas sociais; políticas públicas; saúde.
Introdução
Uma definição de política pública bem atual e aceita no meio acadêmico é dada por
Celina Sousa: “A formulaç~o de políticas públicas constitui-se no estágio em que os governos
democráticos traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que
produzir~o resultados ou mudanças no mundo real” (Souza, 2006, p. 7).
Política Pública, no entanto, será aqui definida segundo nosso entendimento, qual seja
como as possibilidades de intervenção estatal nas várias dimensões da vida social que não
implica alterações de âmbito estrutural. Trata-se de uma imposição via a ação do Estado, das
prioridades que a serem institucionalizadas e veiculadas como sendo de interesse geral,
porém, que na verdade, atenderão a demandas específicas de grupos ou indivíduos que
tiveram mais força para colocá-las na pauta da agenda do governo.
O Estado nesse contexto é um espaço de luta e não um ente neutro, que está acima das
contradições que constituem a sociedade, é um lugar de domínio e de lutas, contraditório em
sua própria natureza. É importante destacar que o Estado capitalista, além de concentrar o
Professora da UEG; doutoranda em Políticas Públicas e Governança pela UFRJ/UEG, sob orientação da Dra
Mônica Desidério; Bolsista da FAPEG.
1
101
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
monopólio da força material através do poder, pelo uso real ou pela ameaça da força física,
através das políticas públicas, abre espaço para a aceitação de reivindicações das classes
sociais, desde que essas não coloquem em risco a manutenção do sistema vigente.
A luta pelas condições de saúde no Capitalismo
De uma forma geral os estudos sobre saúde e economia capitalista e, por conseguinte
sobre políticas públicas de saúde daí resultantes costumam situar o problema como questão
“naturalizada”, que toma o Estado como entidade em si mesma, sem qualquer questionamento
mais profundo acerca de seu caráter enquanto relação social. Essa modalidade de abordagem
pende mais para uma ênfase política, consistindo nos mecanismos da dita dominação
burguesa, do sistema capitalista ou mesmo dos processos políticos, deles derivando, quase
que “automaticamente” as determinações dos interesses a serem contemplados pelas políticas
de saúde.
Essa questão tem sido enquadrada pela historiografia de forma indireta e através,
principalmente, das análises da Revolução Industrial. Inúmeros debates são suscitados,
embora, quase que a maioria deles, tem colocado no foco das demandas e soluções
relacionadas à saúde, como sendo ações derivadas exclusivamente, das frações da classe
hegemônica da sociedade capitalista.
Para o conjunto dessas análises o que teria havido no processo histórico, seriam,
portanto, políticas públicas de saúde de caráter eminentemente pontual, quanto políticas de
saúde “estatizantes”, no sentido do envolvimento do Estado com a implantaç~o de sistemas de
saúde pública, mediante sua intervenção direta à medida que ia sendo implantado o sistema
capitalista de produção.
Na grande maioria das análises, mais difundidas, um dado emerge de forma
inequívoca: as relações de poder responsáveis pela implantação das políticas de saúde são
secundarizadas ou ignoradas pela historiografia. Outrossim, está quase que totalmente
apagada da história oficial, a memória das camadas subalternas, suas lutas, reivindicações e
conquistas por melhores condições de vida, quando isto implica o acesso aos serviços de
saúde.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
102
Luta de Classes e Contemporaneidade
Neste trabalho buscaremos abordar a questão dentro de uma visão dialética, qual seja,
do materialismo histórico que considera as necessidades e posições dos diferentes sujeitos em
suas relações antagônicas, no contexto das mudanças provenientes da produção capitalista.
Considerando que todas as formas possíveis de manifestações e ações ocorridas, em
uma dada sociedade, estão relacionadas às condições econômicas, aos conhecimentos
técnicos e às relações sociais, a questão da saúde e suas políticas públicas podem ser
analisadas sob a ótica da relação entre saúde e sociedade capitalista. Isto porque todos os
problemas sociais decorrentes do contexto dessa lógica econômica, são resolvidos no nível
político: seja por conquistas, a partir da luta dos movimentos sociais, seja pela
implementação de políticas públicas, acompanhadas de uma ideologia, em nível das classes
dominantes, que as incorporam e fundamentam nos preceitos dos direitos sociais (Braga e
Paula, 1986).
Sob esta perspectiva a questão da saúde, na sociedade capitalista, é um fenômeno que
constitui manifestação concreta das formas através das quais se reproduzem as relações
sociais de produção. Como outros problemas sociais, ela manifesta-se nas práticas políticas e
ideológicas e acaba por constituir-se em objeto de atenção e de políticas do Estado.
A saúde emerge como problema social ligada à formação do mercado de trabalho no
interior das economias capitalistas e às atividades urbanas industriais. Portanto, o
desenvolvimento capitalista conferiu um caráter social à saúde em função do avanço da
divisão social do trabalho e de seu assalariamento, quando a posição existencial dos
indivíduos, dos grupos e classes viram-se oprimidas frente suas condições de trabalho e de
sobrevivência.
Na Inglaterra de 1833, por exemplo, o Estado se viu obrigado a agir diretamente,
resultando na votação do Factory Act que marcou o início da legislação fabril inglesa, dado que
as condições de vida da população trabalhadora atingiram um estágio tal de deterioração que
o perigo de disseminação de epidemias entre as classes dominantes e as pressões políticas
dos trabalhadores obrigara o Estado a criar medidas para diminuição de doenças e de
mortalidade. Além disto, os níveis de morbidade e de mortalidades ameaçavam o próprio
processo de acumulação de capital (Merhy, 1987, p.34).
103
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
A análise do surgimento das questões de saúde tem na Inglaterra um objeto
privilegiado para estudo.2 É, também o fato de que nesse país, no século XIX, a nova situação
social se expressou de forma bem definida uma vez que ele foi o pólo hegemônico do
desenvolvimento capitalista.
Os trabalhadores e suas lutas tiveram participação importante para o surgimento das
instituições de saúde desde o início do século XIX. O nível de organização e mobilização desses
seguimentos e sua força política determinaram o grau de participação na formulação das
políticas sociais do Estado. Foi em parte, graças à luta dos trabalhadores que as políticas de
saúde foram planejadas e implantadas. Elas surgiram, prioritariamente, para resolver
questões relacionadas à saúde do componente fundamental para promoção, expansão e
reprodução do modo de produção capitalista.
As políticas de saúde implantadas ao longo dos séculos XIX e XX, nas várias sociedades
capitalistas, pelos diferentes atores que ocupavam o poder e pela elite econômica estavam em
sincronia com as políticas de trabalho conquistadas a partir da luta e dos movimentos sociais
promovidos pelos trabalhadores.
As doenças não colaboram com o processo capitalista. Sendo assim, a questão da saúde,
deve ser compreendida enquanto problema social no quadro de determinações e das
condições do processo de trabalho. Porque quando as relações de produção capitalistas se
cristalizaram foi que o “corpo” se tornou quest~o social, na forma de aç~o de grupos sociais
específicos.
No ambiente, de industrialização e urbanização do século XIX foi que ocorreu a
“medicalizaç~o da sociedade” (Idem, 1987, p.34) aquilo que Rosen afirma ser o projeto de
Reforma Social.
No momento em que o processo de acumulação capitalista ultrapassou seus próprios
limites, isto é, quando ocorreu a acelerada urbanização e desenvolvimento industrial,
juntamente com surgimento de grandes instituições leigas de saúde, as doenças passaram a
compor o quadro mórbido fundamental da atenção pública.
A medicina, por isto, tornou-se parte dos interesses do Estado – poder político – em
função das circunstâncias históricas específicas que caracterizam as sociedades de produção
A seguinte passagem pode justificar o porquê disto: “...Nesta obra, o que tenho de pesquisar é o modo de
produção capitalista e as correspondentes relações de produção e de circulação. Até agora, a Inglaterra é o
campo cl|ssico dessa produç~o...”. (Marx, 1971, p. 4 3 5).
2
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
104
Luta de Classes e Contemporaneidade
capitalista. O conhecimento médico coaduna e favorece a implantação de suas propostas de
modernização, urbanização e desenvolvimento.
Para Cecília Donnangelo a medicina social surge concomitantemente ao processo de
industrialização e modernização capitalista e suas práticas são modalidades particulares de
articulação entre as diferentes instâncias de poder, agências e instituições encarregadas das
questões sociais, bem como, com os grupos sociais alijados de poder e, para os quais, essas
práticas são destinadas, no sentido de manutenção do status quo. Para esta autora, o médico
na época contemporânea, pertence a uma das categorias profissionais que se definem no
espaço organizacional de trabalho e que estão direta e estreitamente relacionadas ao contexto
econômico, social e político (Donnangelo, 1976).
Conclusão
A saúde, na sociedade capitalista, é uma questão social que está no bojo das relações
de poder. O Estado que é o espaço onde essas relações, de lutas, acordos e barganhas se dão,
responde concentrando decisões e adotando medidas visando atender os grupos de maior
força dentro dessas relações, garantindo assim, sua própria sobrevivência.
A conservação e reparação da saúde, para o sistema capitalista, está
subordinada a determinações econômicas mais amplas, isto é, está diretamente ligada ao
fenômeno de reprodução e manutenção do próprio sistema, efetivado a partir das relações de
poder. Historicamente, as políticas públicas de saúde originaram-se da sociedade capitalista e
industrial.
Assim, não apenas os trabalhadores mas a própria medicina e seus profissionais
tornaram-se alvo de interesse do poder político a partir da Revolução Industrial, uma vez que
a reivindicação fundamental dos trabalhadores, além do salário, da redução da jornada e da
melhoria das condições de trabalho era a garantia de sobrevivência. Pressionado
politicamente, o Estado foi obrigado a agir diretamente e uma das formas de intervenção
ocorreu através das políticas públicas que são, aqui definidas, como as ações sociais dadas
pelas relações de poder político, econômico-social e intelectual. As políticas públicas de
105
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
saúde3 decorrem da negociação para o controle dos conflitos decorrentes das diferenças
sociais hierarquizadas, para garantir o cumprimento do status quo.
Referências
BRAGA, José Carlos de Souza e PAULA, Sérgio Góes de. Saúde e Previdência Estudos de política
social. São Paulo: HUCITE, 1986.
DONNANGELO, Maria Cecília. Saúde e Sociedade. São Paulo: Duas Cidades, 1976.
HOBSBAWM, Eric J. Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1983.
KARL, Marx. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
MERHY, Emerson Elias. O Capitalismo e a Saúde Pública. Campinas: Papirus, 1987.
SOUZA, Celina. “Políticas Públicas uma revis~o da literatura”. Sociologias. Porto Alegre, ano 8,
n. 16, jul/dez, 2006, p. 20-45.
O conceito de saúde pública utilizado nesta proposta de pesquisa é o desenvolvido por Maria Cecília
Donnangelo em sua tese de doutorado: Medicina e Sociedade.
3
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
106
Luta de Classes e Contemporaneidade
Cidadania ou emancipação social?
José Santana da Silva
[email protected]
Resumo: A abordagem ideológica da realidade não constitui apenas um erro metodológico,
mais do que isso, é uma forma deliberada dos ideólogos ou intelectuais da classe dominante
de evitar a compreensão coerente da realidade por parte das classes subalternas. Isso é o que
ocorre com a noç~o de “cidadania”. Modernamente, a burguesia concebeu a cidadania como
igualdade jurídica ou igualdade de direitos. Isso inclui o direito de pleitear direitos, o que
significa que tal igualdade nunca atinge sua plenitude. Numa definição mais abstrata, T. H.
Marshall afirma que a cidadania “é um status concedido àqueles que são membros integrais de
uma comunidade” (1967, p. 76). Expressando a tendência burguesa de tudo fragmentar e
mercantilizar, Marshall divide os direitos de cidadania em civis, políticos e sociais, mantendo a
concepção formal da igualdade. Neste trabalho, defendo a tese de que o sentido último da luta
da classe trabalhadora é pela sua autoemancipação e não pela igualdade jurídica ou por
cidadania. Dessa perspectiva, procuro demonstrar o caráter ideológico da noção de cidadania
e o seu efeito amortecedor da luta emancipatória das classes dominadas na sociedade
capitalista.
107
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
As consequências do Estado de bem-estar social para o movimento dos
trabalhadores na luta pela emancipação humana: elementos para o debate
Fernando de Araújo Bizerra1
Resumo: O ensaio que ora apresentamos versa sobre as consequências do Estado de BemEstar Social sobre o movimento dos trabalhadores no século XX na luta pela emancipação
humana. Resultante de uma pesquisa bibliográfica, orientada à luz da tradição marxista,
objetiva analisar como se configurou essa forma de intervenção do Estado, característica
durante os “anos dourados” do capitalismo contempor}neo, e seus rebatimentos na
construção histórica da consciência revolucionária do proletariado. Explicitamos a
determinação objetiva da reconfiguração do Estado no período pós-crise de 1929, a partir das
transformações ocorridas na esfera produtiva, e sua funcionalidade para a reprodução do
capital, bem como as implicações que daí decorre, no campo político-ideológico, para a luta
dos trabalhadores em torno da construção de uma sociabilidade emancipada dos grilhões
capitalistas.
Palavras-chave: Estado de Bem-Estar Social; Reprodução do capital; Movimento dos
trabalhadores.
I – Introdução
O “breve século XX”, assim definido por Hobsbawm (1995), demonstrou ser mais
duradouro do que apontavam as perspectivas do historiador inglês. Tal século foi marcado
pelo avesso do que vinha sendo construído historicamente durante o século XIX pela luta
proletária. Os cem anos seguintes, apesar dos levantes revolucionários nele desencadeados,
n~o foram palco de uma virada histórica.
Os diversos acontecimentos “catastróficos”
(Hobsbawm, 1995) serviram como um freio ao movimento revolucionário do proletariado.
Nesse século, cen|rio de vertiginosa disseminaç~o das ideias democr|ticas, “surgem
alternativas históricas de lutas com vínculo na centralidade política, transformando o
Parlamento e outros espaços do aparelho do Estado em loci privilegiados para conduzir a
transiç~o para o socialismo” (Tonet e Nascimento, 2009, p.41). Passa-se a atribuir um papel
revolucionário ao Estado enquanto mediação para o fim das desigualdades e uma sociedade
emancipada, transferindo a centralidade do trabalho para a centralidade da política, com
todos os nós problemáticos aí existentes.
1
Assistente Social, mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social (PPGSSO-FSSO/UFAL).
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
108
Luta de Classes e Contemporaneidade
Num contexto ideológico de “democratizaç~o do Estado”, v|rias teses vêm sendo
propaladas acerca do Estado de Bem-Estar Social como sendo uma expressão da vitória do
movimento dos trabalhadores na luta contra a dominação estrutural do capital. Na sua
aparência imediata, tais teses entendem que na aliança pactuada entre capital e trabalho,
sobretudo a partir dos anos pós-1945, o Estado teria “ampliado” sua aç~o, passando a atender
as demandas da classe trabalhadora e tornando-se o eixo mediador para a emancipação
humana e para a construção do socialismo. Ou seja, postula-se que a “democratizaç~o da
sociedade capitalista” e as novas funções social-democratas assumidas pelo Estado no século
XX converter-se-ia na primeira fase do socialismo. Assim, a afirmação célebre de Marx e
Engels (1998) de que o Estado é o comitê executivo dos interesses da burguesia estaria
limitada, pois, nesse novo contexto, o Estado incorpora os ideais social-democratas e,
consequentemente, torna-se uma instituiç~o “neutra” e “livre” que atenderia aos interesses
dos trabalhadores. Isso se converte aparentemente e, só em sua imediaticidade, numa vitória
do movimento operário. Estaria, pois, a humanidade, caminhando para o fim da sociedade de
classes sociais a partir de modificações no interior do próprio sistema sócio-metabólico do
capital? Segundo esse pensamento que passa a predominar na sociedade, “a passagem do
capitalismo para o socialismo [é entendida] como um processo histórico contínuo” (Tonet e
Nascimento, 2009, p. 63).
Diante dessa breve contextualização, pretendemos, aqui, elencar alguns aspectos
decisivos para o entendimento acerca dessa problemática que se converte no argumento
empírico de que, no segundo pós-guerra a sociabilidade burguesa estaria adentrando num
novo estágio de desenvolvimento, o qual seria marcado, fundamentalmente, por significativas
mudanças na esfera produtiva, constituindo-se enquanto “ponto de partida” para o fim
decisivo das fronteiras de classe e para a construção do socialismo.
II – Estado de bem-estar social e movimento dos trabalhadores: que relação?
No capitalismo monopolista, iniciado em 1870, devido ao intenso desenvolvimento das
forças produtivas e das mudanças ocorridas na economia, acentuam-se a anarquia da
produção e a concorrência entre os setores do mercado. O estágio monopolista não
apresentou nenhuma solução para as contradições presentes na evolução anterior do modo
109
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
de produção capitalista. Ao contrário, as contradições sociais elevaram-se ao seu nível
máximo (Netto e Braz, 2009, p. 203). Para administrá-las, esse novo estágio do capitalismo
requereu a consolidação de um Estado que fosse além da garantia das condições externas da
produção e da acumulação capitalista. Exigiu, sobretudo, um Estado “comprador”
(principalmente do complexo industrial-militar, com tudo o que ele apresenta de alienação;
convertendo-o no setor mais importante da economia mundial2) e “interventor”. Não mais um
Estado que se sustentasse unicamente sob os princípios liberais, mas sim um Estado que
assumisse “aparentemente” uma nova configuraç~o, dessa vez, mais social, incorporando as
orientações social-democratas. Neste contexto socioeconômico e político, o Estado assumia
ainda uma nova função na esfera econômica, a qual contribuiu para avançar o sistema de
acumulação do capital. Tratou-se de que:
[...] No capitalismo concorrencial, a intervenção estatal sobre as seqüelas da
exploração da força de trabalho respondia básica e coercitivamente às lutas das
massas exploradas ou à necessidade de preservar o conjunto de relações pertinentes à
propriedade privada burguesa como um todo – ou, ainda, à combinação desses
vetores; no capitalismo monopolista, a preservação e o controle contínuos da força de
trabalho, ocupada e excedente, é uma função estatal de primeira ordem: não está
condicionada apenas àqueles dois vetores, mas às enormes dificuldades que a
produção capitalista encontra na malha de óbices à valorização do capital no marco do
monopólio (NETTO, 1992, p. 22).
A nova forma de Estado surge no contexto das mudanças do capitalismo, e passa a
intervir na economia conforme as necessidades de reprodução do capital. O Estado viu-se
obrigado a reorientar sua ação e tomar medidas de caráter social protetor frente ao forte
movimento operário e sindical, fortalecido pelos partidos comunistas e socialistas; e ainda,
frente ao receio burguês das experiências socialistas e das idéias democráticas que
revigoravam em resistência ao nazi-fascismo3. Dessa forma, para que o Estado, a serviço dos
monopólios, se legitimasse, foi necessário reconhecer os direitos sociais, sem colocar em
xeque os fundamentos do capitalismo4. Foi preciso também intervir na economia de forma
com que os trabalhadores se tornassem consumidores das mercadorias por eles produzidas.
O complexo industrial-militar absorveu, no século XX, “mais do dobro de que tudo o que foi gasto para manter
os carros andando, de petroquímica a ferros-velhos, de estradas, ruas e garagens a siderurgia, etc.” (LESSA, 2008,
p. 3).
3 O século XX assistiu ao surgimento, consolidação, ascensão e queda de Estados totalitários os mais diversos, a
exemplo do III Reich hitlerista, do gigante soviético de Stalin e da Itália fascista de Mussolini.
4 Isso se deve ao fato de que, “num marco democrático, para servir ao monopólio, o Estado deve incorporar outros
interesses sociais; ele não pode ser, simplesmente, um instrumento de coerção – deve desenvolver mecanismos de
coesão social” (NETTO e BRAZ, 2009, p.205).
2
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
110
Luta de Classes e Contemporaneidade
Os trabalhadores são empurrados para as vias do mercado como uma estratégia de aumentar
o consumo (seja ele produtivo ou destrutivo, conforme define Mészáros (2002)) e fazer fluí-lo
de forma que intensifique a produtividade, escoe a abundância das mercadorias e gere
incansavelmente mais-valia; maximizando os superlucros para o capital monopolista. Dessa
forma, buscou-se aumentar a composição orgânica do capital e intensificar a exploração dos
trabalhadores como estratégia de expansão.
Nos anos que marcaram a vigência do Estado de Bem-Estar Social, no capitalismo dos
monopólios, são identificadas diversas mudanças na configuração do Estado e na dinâmica da
sociedade que proporcionaram desastrosos impactos para a organização da classe
trabalhadora e, consequentemente, para o mundo do trabalho. Esse período é caracterizado
pela emergência do modelo taylorista/fordista5 de produção e de novas estratégias de
intervenção do Estado na economia, configurando uma resposta à crise que se deslancha a
partir da Primeira Guerra Mundial, explicitamente na Grande Depressão de 1929, e às
problemáticas socioeconômicas geradas pela II Guerra Mundial. Tal contexto requereu uma
maior racionalizaç~o da produç~o capitalista, onde se erigiu um sistema de “compromisso”
entre capital x trabalho administrado pela política keynesiana, e uma “regulaç~o” que,
analisada do ponto de vista da classe trabalhadora, apresentou-se enquanto uma ilusão de
que o sistema capitalista pudesse ser definitivamente regulado e controlado por ela, fato esse,
impossível, segundo Mészáros (2002), dada a natureza incontrolável do sistema de
reprodução do capital. Nessas condições, o “compromisso” mediado pelo Estado buscou
delimitar o campo da luta de classes através da adesão dos trabalhadores e do movimento
operário às premissas estruturais do capital, quando então se garantiu direitos e benefícios
sociais aos trabalhadores que, por tempo limitado, suavizou os conflitos inerentes à relação
capital-trabalho.
A intervenção estatal passou a garantir, além das condições externas, as condições
gerais para a reprodução e acumulação do capital mediante as exigências econômicas que se
A essência do padrão produtivo taylorista-fordista consistia na gerência científica e na separação autoritária do
processo de trabalho entre concepção e execução. O modelo taylorista é uma forma de organização do trabalho
humano baseado na ciência, que tem como base o parcelamento extensivo das atividades e tarefas, formas de
supervisão e controle despóticas, além da desqualificação da força de trabalho pela extrema separação entre as
tarefas de planejamento e de execução. Já o fordismo se apoiou nas seguintes transformações: 1) produção em
massa para estimular o consumo em massa, 2) parcelamento das tarefas, 3) criação da linha de montagem, 4)
padronização das peças, 5) automatização das fabricas (GOUNET, 1999).
5
111
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
apresentavam. Isso acontece num contexto sociopolítico marcado pelo alto nível de
organização e combatividade de amplos setores operários na Europa, demonstrando maior
poder coletivo entre os operários. O modus operandi das ações do Estado pautaram-se,
conforme salienta Netto e Braz (2009), na regulação das relações sociais e econômicas, no
reconhecimento dos direitos sociais e na formulação e implementação de políticas sociais
orientadas pela lógica do seguro social. Configurou-se, portanto, um conjunto de instituições
que deu forma a diversos modelos de Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), em alguns
países capitalistas avançados, especialmente na Europa; que contribuiu significativamente
para ocultar as contradições de classe, os conflitos sociais e refrear as lutas operárias pelo viés
do consenso.
O Estado passa a ser considerado o lugar “natural” de resoluç~o das contradições
conflituosas existentes entre os interesses de classe. Torna-se plausível a reprodução da ideia
de que a solução dos problemas encontrados pelo proletariado e até mesmo sua emancipação,
enquanto classe, dos grilhões capitalistas, seria encontrada no âmbito da esfera estatal. Assim,
no século XX, os movimentos operários empenharam-se em dar forma política - ou melhor,
estatal6 - a essa luta, buscando sempre vinculá-la ao Estado, refreando seu movimento
mediante as concessões do Estado de Bem-Estar Social. Daí vem decorrendo que, “o
proletariado renunciou { “aventura histórica” em troca da sua seguridade social” (Bihr, 1998,
p.37), abdicando, portanto, do seu projeto específico de classe, da luta pela transformação
comunista da sociedade. Nos termos do sociólogo francês Alain Bihr:
Renunciar | “aventura histórica”? É renunciar { luta revolucion|ria, { luta pela
transformação comunista da sociedade; renunciar à contestação à legitimidade do
poder da classe dominante sobre a sociedade, especialmente sua apropriação dos
meios sociais de produção e as finalidades assim impostas às forças produtivas. É, ao
mesmo tempo, aceitar novas formas capitalistas de dominação que vão se desenvolver
pós-guerra, ou seja, o conjunto de transformações das condições de trabalho e, em
sentido mais amplo, de existência que o desenvolvimento do capitalismo vai impor ao
proletariado [a partir desse] momento (1998, p. 37).
Esse fato não é algo novo na história do movimento operário, visto que já no século XIX, os primeiros
movimentos organizativos do proletariado estabeleceram aliança com a burguesia e com o Estado na busca de
atingir seus objetivos. Lembremos dos movimentos luddista e cartista, os quais foram importantes para a
organização política da classe operária e para a sua atuação em face das determinações histórico-sociais do
desenvolvimento capitalista. Porém, limitaram suas ações no campo das causas imediatas, não transcendendo as
limitações imposta pela burguesia e a imediaticidade das lutas políticas. O que passa a atrair a atenção especial
nesta aliança entre movimento dos trabalhadores e Estado nos anos do Estado de Bem-Estar é a forma com que
ela se estabelece cada vez mais crescente.
6
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
112
Luta de Classes e Contemporaneidade
A ação do movimento operário centrou-se apenas na busca pela satisfação de seus
interesses de classe mais efêmeros, passando a não se confrontar de forma unificada contra a
burguesia e a substituir o “internacionalismo” da luta oper|ria, até ent~o característica
marcante do seu movimento, pela retórica do “patriotismo” conservador. É nesse horizonte de luta setorial - que a construção de uma alternativa hegemônica que se contraponha ao
modo de controle e reprodução societária do capital foi sendo posta num segundo plano
estratégico, pois, conforme os apontamentos de Mészáros,
[...] a posição defensiva do movimento, explícita ou tacitamente, aceitou tratar a
ordem socioeconômica e política estabelecida como estrutura e pré-requisito
necessários de tudo o que se poderia considerar “realisticamente vi|vel” dentre as
exigências apresentadas, demarcando ao mesmo tempo a única forma legítima de
resolver os conflitos que poderiam resultar de reivindicações rivais dos
interlocutores. Para júbilo das personificações do capital, isso foi o equivalente a uma
espécie de autocensura. Representou uma autocensura anestesiante que resultou
numa inatividade estratégica que continua ainda hoje a paralisar até mesmo o
resquício mais radical da esquerda histórica, sem falar nos seus elementos antes
genuinamente reformistas, hoje totalmente domesticados e integrados (2003, p.93).
Suas reivindicações estiveram presas aos limites dos direitos (ao voto, à fixação da
jornada de trabalho, a férias, ao aumento dos salários7, a participação nas decisões dos postos
de trabalho, etc.) e às causas imediatas ligadas à melhoria nas condições de vida e de trabalho,
as quais são importantes e fundamentais na medida em que expressam reivindicações do
mundo do trabalho. Porém, as ações encabeçadas pelos trabalhadores durante os “anos
dourados” do capitalismo n~o s~o direcionadas contra o trabalho assalariado e pela
construção de uma nova sociabilidade antagônica à capitalista, restringe-se aos entraves da
ordem burguesa e às conquistas parciais disponibilizadas pela burguesia diante da
generalização da pobreza e da consolidação das desigualdades sociais em seus mais diversos
níveis; cristalizando sua ação político-ideológica no “aqui e agora” (Mész|ros apud Lessa,
2001, p. 12). Portanto, a classe operária estabeleceu uma aliança com a burguesia e, através
do Estado e do parlamento, acreditou na resolução da problemática social a que estava
submetida.
O período de vigência do Estado de Bem-Estar Social foi marcado pela instituição de
práticas e procedimentos de “negociaç~o coletiva” (Bihr, 1998, p. 38) como forma de
minimizar os conflitos de classe. Assim, o Estado, por via da burocracia à qual aderiram o
Nem mesmo o aumento pontual dos salários, pauta do movimento dos trabalhadores, pode ser entendido como
uma vitória do trabalho sobre o capital, ao contrário, a burguesia viu, estrategicamente, no aumento dos salários,
mais um eficiente mecanismo de extrair mais-valia. A esse respeito, ver Paniago (2003).
7
113
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
sindicalismo de colarinho branco e a aristocracia operária, converteu o consenso8 e a
negociação
em
finalidade
exclusiva
da
prática
organizacional
do
proletariado,
instrumentalizando-a, para ser convertida, unicamente, em engrenagem do domínio do capital
sobre o trabalho. Ilusoriamente, o movimento operário foi solapado e passou a reforçar a
legitimidade do estatismo através dos efeitos fetichistas do Estado, na medida em que
ampliava sua dependência prática e ideológica, fazendo deste o instituidor e a garantia da sua
seguridade social.
O Estado tornou-se o verdadeiro “mestre-de-obras” (Bihr, 1998) do processo de
reprodução do capital, assumindo tarefas diversificadas que contribuíram para esse processo,
bem como para o recrudescimento do movimento operário. O Estado passa a proporcionar a
satisfação imediata do proletariado e sustenta algumas de suas reivindicações na medida em
que isso permite melhor integrá-lo na sociedade civil. Ou seja, passou a exercer o controle
sobre suas ações, “domesticando” suas lutas e pondo as grandes organizações sindicais sob
sua tutela, o que contribuiu, diretamente, para um refluxo da construção histórica da
consciência revolucionária do proletariado.
Emoldurados na lógica estatal, os trabalhadores são educados a lutar orientados pela
ótica do reformismo, refluindo sua consciência revolucionária a aspectos meramente
economicistas9 na medida em que os ideais de democracia passam a substituir a busca pelo
comunismo. Estiveram, mediante essas circunstâncias, presos unicamente aos limites da
emancipação política, pois o que se verificou foi uma ação aquém dos limites da lógica de
acumulaç~o e valorizaç~o do capital e a concretizaç~o da figura do “cidadão”, operando assim
a consolidação da emancipação política, de um estágio que, compatível com as determinações
da sociedade burguesa,“ hoje, j| n~o representa um progresso, mas tão-somente a reiteração
“Para o trabalho, a gestão do consenso manifesta uma nova forma de alienação que encobre as desigualdades
entre as classes, fragmenta o movimento de resistência ao capital e amplia a exploração da força de trabalho,
tanto tecnicamente – intensidade do trabalho alcançada pela rigidez da produção –, quanto ideologicamente pelo
fetiche criado em torno da conquista de benefícios e direitos sociais alcançados com a vigência do Estado de
bem-estar social” (CARNEIRO, 2006, p. 101).
9 “Entende-se que é minada a resistência das classes trabalhadoras e o caráter emancipatório de suas lutas, na
medida em que a conquista e a manutenção de direitos vai tornando-se o ideário do movimento dos
trabalhadores. O capital consegue promover o consenso entre as classes através de formas de controle que
passam a atuar sobre a dimensão ideológica, mistificando a exploração do trabalho, as contradições entre as
classes e, constituindo uma nova cultura que tem no consentimento do trabalho uma das formas de dominação.
Esse é o solo fértil para que o controle do capital, nos processos de organização do trabalho posteriores,
encontre, também, na persuas~o, a base para se reproduzir” (CARNEIRO, 2006, p. 102).
8
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
114
Luta de Classes e Contemporaneidade
da limitaç~o, um entrave que a humanidade aceda a um nível superior de autoedificaç~o”
(Tonet, p. 04 10).
O objetivo das ações dirigidas pelo Estado de Bem-Estar Social para o movimento dos
trabalhadores foi fomentar um pacto, uma crescente aliança entre as classes pela “linha de
menor resistência” (Mész|ros, 2003, p. 94), o que contribuiu para disseminar a idéia de
“homogeneizaç~o” de classes, como se as fronteiras entre as classes tivessem sido eliminadas,
fato esse que está longe de ser, puramente verdadeiro. Esta aliança se fez presente nos
partidos de esquerda e de direita, mediante o estabelecimento de compromissos para a
aprovaç~o de uma legislaç~o social que transformou as organizações oper|rias em “c~es de
guarda” do capital (Bihr, 1998, p.37). N~o obstante, dissemina-se historicamente a formação
de um acordo entre capital e trabalho, aonde as lideranças sindicais vão sendo
crescentemente incorporadas na estrutura do governo; fato que provoca sérias consequências
para a luta de classes, naquele momento, bem como para a organização operária na
atualidade. Tal acordo vem configurando os últimos cinquenta anos “contrarrevolucion|rios”
que a humanidade vivenciou; período este considerado o mais duradouro desde a Revolução
Francesa de 1789. Como pode então ser o Estado de Bem-Estar Social uma vitória do
movimento dos trabalhadores?
Nesse universo, a ação do movimento operário, por via dos seus frágeis instrumentos
de organização, tende a ser cada vez mais presa ao ide|rio do “patriotismo conservador”,
centrando-se na setorialidade e nas “armadilhas” da luta parcial desenvolvida nos limites das
premissas estruturais do sistema do capital. A luta do movimento operário vem perdendo,
ante as estratégias de controle e cooptaç~o do capital, a sua dimens~o de totalidade; “sem uma
solidariedade internacional dirigida para a criaç~o de uma ordem de igualdade substantiva”
(Mészáros, 2003, p. 83). Isso elucida, em termos mais gerais, a passividade dos trabalhadores
no período de transição do fordismo ao toyotismo, do Estado de Bem-Estar Social à avalanche
do Estado neoliberal no movimento das últimas décadas do século XX.
Disponível em: http://www.ivotonet.xpg.com.br/arquivos/revolucao_francesa.pdf. Acesso em 12 de setembro
de 2011.
10
115
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
III – A modo de conclusão
Foi no contexto pós-crise de 1929 que o capital buscou reorganizar o seu ciclo de
reprodução e reascender seus aspectos essenciais para intensificar o processo de
desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, o binômio dominação/exploração da força de
trabalho. Para isso, vimos que o Estado, a partir das alterações das necessidades do capital,
passa a desempenhar novas funções no processo de regulação das relações sociais, as quais se
direcionaram para ocultar boa parte dos conflitos de classe e das lutas do proletariado,
acarretando na fragilização das suas redes de solidariedade de classe e suas antigas
referências ideológicas. Neste sentido, longe de ser uma expressão vitoriosa da luta dos
trabalhadores, como defendem os teóricos burgueses; o Estado de Bem-Estar Social foi
essencialmente correspondente aos mecanismos que intensificam a reprodução do capital e
às premissas da classe burguesa, buscando reativar seu clico reprodutivo e velar as
contradições conflituosas de classes. O Estado de Bem-Estar Social tendeu a intensificar os
antagonismos de classe e manteve acesa a chama que suporta sua plêiade. Essa experiência
história demonstra, para o conjunto da humanidade, que não há como propor e construir o
socialismo e o ser social livre tendo como mediação um complexo social cuja função
sociogenética é destinada a perpetuar a dominação de classe. Destituído deste papel, a ação
reguladora do Estado burguês, independente da forma por ele assumida no desenvolvimento
do capitalismo, não possui natureza revolucionária, sendo, portanto, por sua funcionalidade à
reproduç~o da dominaç~o de classes, impotente para “alterar a sociedade civil” (Marx, 1995)
e levar a cabo a emancipação dos indivíduos.
Entendemos que a aliança do movimento operário com os setores da classe dominante,
por via do Estado, não foi um fator meramente subjetivo dos trabalhadores. Ao contrário, foi
resultante das condições objetivas daquele contexto histórico, fruto de um processo social
interno que vem corroborando para o desarmamento político e ideológico que orientava o
movimento oposicionista dos trabalhadores e para um refluxo na formação histórica da sua
consciência revolucionária, haja vista que o movimento operário soçobrou o ideal de
construção de uma nova ordem societária que possibilite o expressar da verdadeira essência
humana em troca da alienante negociaç~o democr|tica com o “patronato”, estruturada,
essencialmente, nos moldes microscómicos imediatos da empresa ou dos locais de trabalho.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
116
Luta de Classes e Contemporaneidade
O Estado de Bem-Estar Social restringiu a capacidade de resistência dos trabalhadores
aos processos alienantes do capital, configurando alterações voltadas para a supremacia do
capital, para mais uma vitória da burguesia sobre os trabalhadores, do capital sobre o
trabalho. Trouxe consequências imediatas que incidiram sobre a classe trabalhadora,
contribuindo para sua heterogeneização e fragmentação frente o processo de reativação do
capital. Por fim, promoveu a destruição contínua do sindicalismo de classe e da consciência
revolucionária do movimento operário que se opõe à dominação econômica do capital.
Referências
BIHR, Alain. Da grande noite à alternativa. O movimento operário europeu em crise. São
Paulo: Boitempo, 1998.
CARNEIRO, Reivan M. de Souza. CONTROLE DE QUALIDADE E QUALIDADE DE VIDA: atuais
formas de controle do capital sobre o trabalho na reestruturação empresarial
brasileira nos anos de 1990. (Tese de doutorado – UFPE) Recife/ PE, 2006.
GOUNET, Thomas. Fordismo e Toyotismo na civilização do automóvel. Tradução Bernardo
Joffili. São Paulo: Boitempo Editorial, 1999.
HOBSBAWM. Eric J. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução Marcos
Santarrita. São Paulo: Companhia das letras; 1995.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Prólogo de José Paulo
Netto. São Paulo: Cortez Editora; 1998.
MARX, Karl. Glosas Críticas Marginais ao artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social. De
um prussiano”. In: Rev. Práxis nº 05, 1995, Belo Horizonte/ MG.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Tradução Paulo Cesar Castanheira e Sergio Lessa.
São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
_________________. O século XXI: socialismo ou barbárie? São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
NETTO, José P. Capitalismo monopolista e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1992.
NETTO, José P. e BRAZ, Marcelo. Economia Política: uma introdução crítica. São Paulo:
Cortez, 2009.
117
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
LESSA, Sérgio. Contra-revolução, trabalho e classes sociais. Disponível em:
http://www.sergiolessa.com/artigos_97_01/contrarevol_trab_classes_2001.pdf. Acesso em:
26 de setembro de 2011.
_______________. Trabalho e sujeito revolucionário: a classe operária. Disponível em:
http://sergiolessa.com/CapLivros08_09/Fiocruz2008_site.pdf. Acesso em 12 de setembro de
2011.
TONET, Ivo; NASCIMENTO, Adriano. Descaminhos da Esquerda: da centralidade do trabalho
à centralidade da política. São Paulo: Editora Alfa-Omega LTDA, 2009.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
118
Luta de Classes e Contemporaneidade
Crise de acumulação e movimentos sociais: insurreições a partir da década
de 1960 e crise do regime de acumulação intensivo-extensivo1
Mateus Vieira Orio2
Resumo: Este estudo se empenha em fazer uma breve análise dos movimentos sociais que
emergiram durante a crise do regime de acumulação intensivo-extensivo, principalmente a
insurreição de Maio de 68 em Paris, contribuindo assim com uma compreensão da concretude
deste movimento como a síntese de múltiplas determinações e, portanto, relacioná-los à
determinação fundamental da sociedade, ou seja, o modo de produção. E assim contrapor ao
paradigma dos Novos Movimentos Sociais e principalmente aos ideólogos intitulados pósmodernos, reafirmando a luta contra a degradação da vida na sociedade burguesa.
Palavras chave: Movimentos Sociais, Maio de 68, crise de acumulação.
Os movimentos sociais iniciados no final da década de 1960 e que se seguiram nas
décadas seguintes tiveram grande relevância social e grande repercussão nos debates
acadêmicos que se desenvolvem até os dias atuais. Tamanha foi a repercussão nos círculos
acadêmicos que os respectivos movimentos foram atribuídos como uma nova maneira de
realizar protestos assim como inauguraram um novo paradigma científico de análise de
movimentos sociais e até da sociedade como um todo: o paradigma dos Novos Movimentos
Sociais.
O que instiga ao presente estudo é a compreensão destes movimentos, em especial o
Maio de 68, no interior da totalidade das relações sociais, ou seja, buscar a compreensão da
concretude destes fenômenos como a síntese de múltiplas determinações e, portanto,
relacioná-los à determinação fundamental da sociedade, ou seja, o modo como os seres
humanos produzem e reproduzem suas condições materiais de existência: o modo de
produção. Por isso consideramos a crise de acumulação do modo de produção capitalista
como estritamente relacionada com as lutas sociais delimitando enfim o tema desta pesquisa
em: Crise de acumulação e movimentos sociais: insurreições a partir da década de 1960 e
crise do regime de acumulação intensivo-extensivo.
Texto referente { apresentaç~o de comunicaç~o no Semin|rio Tem|tico nº 7: “Emancipação humana e as
articulações entre as lutas sociais” do II Simpósio Nacional Marxismo Libert|rio a se realizar de 9 a 11 de maio de
2012 na Universidade Federal de Goiás.
2 Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás e mestrando em Sociologia pelo Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás com apoio financeiro da CAPES.
1
119
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Este estudo tem como objetivo fazer uma breve análise dos movimentos sociais que
emergiram durante a crise do regime de acumulação intensivo-extensivo, principalmente a
insurreição de Maio de 68 em Paris, contribuindo assim com uma compreensão mais
aprofundada da análise de movimentos sociais em contraposição ao paradigma dos Novos
Movimentos Sociais e principalmente aos ideólogos intitulados pós-modernos.
Partindo entao da definiçao de Nildo Viana (2009) podemos definir regime de acumulaçao como:
[...] um determinado estagio do desenvolvimento capitalista, marcado por
determinada forma de organizaçao do trabalho (processo de valorizaçao),
determinada forma estatal e determinada forma de exploraçao internacional.
(Viana, 2009, p. 29-30).
Desta forma, um regime de acumulação específico é expressão da luta de classes
contemporânea em uma correlação relativamente estável seja no âmbito da organização da
produção ou mediada pelos Estados Nacionais de modo a influenciar as relações
internacionais. Além disso, a mudança no regime de acumulação provoca mudanças gerais na
sociedade, pois a cada novo regime de acumulação surgem diferentes expressões culturais,
ideológicas, etc. (Viana, 2009).
Após a acumulação primitiva de capital inicia-se o primeiro regime de acumulação
propriamente capitalista: o regime de acumulação extensivo, caracterizado, grosso modo, pela
extração de mais-valor absoluto, o estado liberal e o colonialismo. Então inicia-se, após a crise
do primeiro, no final do século 19, o regime de acumulação intensivo que, em linhas gerais,
trazia o taylorismo e a ampliação do mais-valor relativo, o estado liberal-democrático e o
neocolonialismo. E o regime de acumulação intensivo-extensivo se inicia após a Segunda
Guerra Mundial. (Viana, 2009).
É importante ressaltar que o que move a sucessão de regimes de acumulação, ou seja, o
que movimenta o capitalismo é a luta de classes. E para cada regime de acumulação
correspondem lutas específicas envolvendo principalmente as classes fundamentais:
burguesia e proletariado, e também as demais classes. Estas duas classes são fundamentais,
porque, como dito anteriormente, o modo de produção da vida material é fundamental na
existência humana, afinal não é possível sobreviver sem satisfazer as necessidades básicas
como comer, vestir e se abrigar. E o ser humano só é humano em relação (Marx, 1984), para
produzir e reproduzir sua vida ele precisa transformar a natureza e por isso o trabalho é a
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
120
Luta de Classes e Contemporaneidade
condição de mediação entre homem e natureza. O que acontece no modo de produção
capitalista é que os seres humanos que produzem os bens materiais necessários para a
reprodução da vida não têm a posse dos meios para o fazê-lo (ferramentas, matérias primas,
etc.) e nem, tampouco, ficam com o que produzem, pois seus produtos pertencem aos seres
humanos que têm a posse dos meios de produção e vendem os produtos no mercado de uma
maneira que é peculiar ao capitalismo. Os primeiros seres humanos aludidos acima
constituem a classe proletária e os últimos a classe burguesa, as demais classes gravitam em
torno da produção se apropriando de parte dela para sobreviverem e isso se dá de diversas
formas as quais não entraremos aqui. E por agora basta dizer que estas duas classes são
fundamentais por estarem no seio da produção da vida.
Enfim, o regime de acumulação intensivo-extensivo é marcado pela extensão do
capitalismo a quase totalidade do globo terrestre, o surgimento das multinacionais, o
chamado Estado de Bem-Estar Social e o imperialismo oligopolista. O mais-valor é extraído de
maneira extensa e intensificada: marcadamente mais-valor relativo nos países desenvolvidos
e mais-valor absoluto nos países subordinados. Surge então a resistência a este regime:
Na esfera da produção, a resistência ao fordismo é ampla nos países imperialistas,
desde o absenteísmo, às greves, até as revoluções e experiências revolucionárias
demonstram isso. O maio de 1968 francês e alemão, as greves selvagens na Itália no
início da década de 1970 são exemplos extremos. Na esfera da sociedade civil, a
expressão de organizações e concepções revolucionárias ganham força e amplitude. O
autonomismo, situacionismo, anarquismo, conselhismo etc. crescem e se espalham
por toda a Europa e Estados Unidos. Os movimentos contra a Guerra do Vietnam nos
EUA, os movimentos pacifistas, anti-nuclear e também o movimento ecológico ou
ambientalista [...] se espalham por quase todos os países da Europa, Estados Unidos e
também em alguns países periféricos. (Maia, 2011).
O Maio de 68 se destaca então como um grande expoente dos movimentos sociais do
período da crise do regime de acumulação intensivo-extensivo. Neste movimento estudantes e
trabalhadores reivindicavam desde reformas integradas, limitadas ao modo de produção
capitalista e à sociedade capitalista chegando até a preceitos revolucionários que
consideravam que a própria sociedade moderna deveria ser rejeitada. A radicalidade do
121
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
movimento – é importante ressaltar – é tamanha a ponto de que as exigências mais profundas,
aquelas revolucionárias, foram espontaneamente majoritárias (Solidarity, 2003).
Os avanços que este movimento trouxe são vários e precisam ser aqui relembrados. Os
estudantes manifestantes compreendiam a necessidade da expansão do movimento aos
setores populares, principalmente aos trabalhadores, pois eles tinham a consciência – de um
tipo espontâneo, advindo da própria luta presente – do papel essencial dos trabalhadores na
sociedade. Ainda que algumas minorias interesseiras utilizassem disso para descreditar a
ação estudantil (Solidarity, 2003).
Neste movimento, inúmeras vezes, partidários foram chamados de oportunistas por
conta da contradição, que então se tornara evidente, entre suas posturas contemporâneas e
suas atitudes anteriores no âmbito governamental. O movimento foi uma prova de que os
trabalhadores não eram interessados somente em futebol, televisão e corrida de cavalos
(Solidarity, 2003), mas que poderiam reconhecer e usar a sua força. A luta revolucionária
evidencia – e neste caso de maneira profunda – a falta de sentido da vida moderna, evidencia
que na degradação da vida moderna só a luta faz sentido. A percepção de que só a frente
sindical é que pode aglutinar trabalhadores individuais é solapada, a crença de que os
partidos são os únicos veículos de ação política é derrubada na prática.
A ocupação da Sorbonne e do Censier representaram uma verdadeira explosão
intelectual de cunho revolucionário em que os mais diversos assuntos da vida cotidiana
(desde as maneiras de ensino na Universidade até a repressão sexual e formas políticas de
organização) e as respectivas categorias que tradicionalmente os explicavam/ justificavam
foram postos em questão em acalorados grupos de discussão. As expressões artísticas
floresciam em meio a incansáveis avanços políticos. E isso tudo representou um grande
volume de compreensão da sociedade burguesa e suas mistificações, assim como deu vazão a
diversos anseios de indivíduos reprimidos, que até então não haviam tido oportunidade de se
manifestar, alimentando assim o fogo oculto da revolução social. (Solidarity, 2003).
A clareza política (a clareza do discurso com relação ao que acontecia na prática), a
clareza democrática (o respeito às concepções do outro) e, além disso, a clareza de
organização das Assembles Générales3 impedia que qualquer discurso dogmático se
impusesse sobre o coletivo de manifestantes, favorecendo à resolução de questões práticas e
3
Assembleias Gerais.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
122
Luta de Classes e Contemporaneidade
ao avanço da consciência revolucionária. E por isso, as minorias revolucionárias, ainda que
importantes para os debates, não procuraram e nem puderam impor suas vontades.
(Solidarity, 2003).
A necessidade de produzir informações sobre o que estava acontecendo fez os
manifestantes superarem suas diferenças políticas em virtude das ações práticas. As ideias
dos manifestantes eram algumas poucas proposições direcionadas ao rápido e autônomo
desenvolvimento da luta da classe trabalhadora, consistiam em
[...] uma campanha pelo constante controle da luta de baixo para cima, pela
autodefesa, pela gestão operária da produção, pela popularização da concepção de
conselhos operários, e que explicava a todos a enorme importância, em uma situação
revolucionária, das exigências revolucionárias, da atividade auto-organizada, da
autoconfiança coletiva. (Solidarity, 2003, p. 72).
“Praticamente todos os setores da sociedade francesa se envolveram em certa
medida.” (Solidarity, 2003, p.104). Todos os princípios hier|rquicos foram questionados,
afirmaram a possibilidade da autogestão democrática, denunciaram o monopólio da
informação e criticaram os pilares da civilização: a divisão entre trabalho intelectual e manual,
a sociedade do consumo, a fetichização da universidade e da ciência. Foi um movimento que
trouxe à tona o potencial criativo, em que houve uma tomada de consciência muito célere e
vasta. Um momento de radicalização, crítica profunda e abalo das mistificações. Um
movimento que buscou extirpar as formas obsoletas de organização da luta. Foi um
movimento que denunciou as organizações burocráticas como aparelhos mantenedores, até
as últimas consequências, do atual regime.
O paradigma de análise sociológica dos novos movimentos sociais surge, segundo Gonh
(1997), a partir da alegação de que o paradigma marxista (chamado clássico ou ortodoxo) é
inadequado para explicar os movimentos sociais a partir da década de 1960 na Europa. Isso se
deve porque segundo os ideólogos dos novos movimentos sociais o marxismo privilegiaria as
explicações macrossociais desprivilegiando os domínios da política e da cultura em prol da
economia.
O referido paradigma é um modelo teórico baseado na cultura que nega a visão
funcionalista e rejeita o conceito de Marx de ideologia como falsa consciência. Além disso, este
123
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
paradigma nega a vanguarda partidária em favor do coletivo difuso, vendo os participantes de
ações coletivas como atores sociais, privilegiando an|lises “microssociais” e compreendendo o
poder para além da esfera do Estado. A recusa de partidos e sindicatos se daria devido à crise
dos canais tradicionais de participação da democracia ocidental. Nesta análise ações coletivas,
interação social e atores sociais são categorias centrais, além de cultura e identidade. (Gohn,
1997)
Conforme Viana (2009) com as mutações nos regimes de acumulação e com as
mudanças culturais que surgem neste processo, são criadas novas ideologias. A partir disso
afirmamos que o paradigma sociológico dos novos movimentos sociais é uma destas
ideologias que surgem no regime de acumulação intensivo-extensivo:
[...] a essência do modo de produção capitalista não muda com os regimes de
acumulação, pois estes são formas de manifestação histórico-concreta daquele. No
entanto, a mudança do regime de acumulação promoveu, por exemplo, mudanças
culturais que atingiram até a interpretação do pensamento de Marx. (Viana, 2009, p.
128)
E isso quer dizer que as mudanças culturais influenciam na forma como interpretamos
as ideias e também na forma como as ideias influenciam as ações. Por isso concluímos que o
surgimento do paradigma dos novos movimentos sociais é uma ideologia que se constrói a
partir da crítica de interpretações do pensamento de Marx e da atribuição de ideias ao
marxismo. Nestes termos, indo adiante na crítica, podemos considerar que o paradigma dos
novos movimentos sociais é uma nova linguagem que amortece o impacto da realidade
ocultando o aumento da exploração e da miséria que ocorre a partir do final da década de
1960 durante a crise do regime de acumulação intensivo-extensivo.
Karl Jensen (1996) se propõe a desenvolver uma definição precisa de movimentos
sociais considerando que a questão da definição era até então o grande problema teórico da
análise dos movimentos sociais. Segundo Jensen o que se movimenta na sociedade são grupos
sociais e a alteração que sofrem é histórica. Para este autor é preciso entender a constituição
dos grupos sociais para compreender a causa dos respectivos movimentos sociais. Estes
surgem, segundo o autor, no interior de determinadas relações sociais onde se origina a
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
124
Luta de Classes e Contemporaneidade
necessidade de uma ação coletiva por parte de um conjunto de pessoas que possuem aspectos
em comum. Estes aspectos podem ser biológicos, culturais / ideológicos, condição social, etc.
Um movimento social causa mudanças tanto no grupo social que lhe dá origem
(consciência, experiência) como no conjunto da sociedade (mudança social), assim como no
próprio desenvolvimento do movimento. Jensen diz ainda que para haver movimentos sociais
é preciso haver uma complexa divisão social do trabalho a ponto de criar grupos sociais
diversos com interesses diversos e elevada consciência social. E que para haver movimento
social é preciso ter uma consciência coletiva e ações coletivas regulares. O autor conclui então
que as condições para a existência de movimentos sociais se situam na sociedade capitalista e
que eles não existem antes dela. (Jensen, 1996).
De acordo com Jensen a pesquisa sociológica sobre os movimentos sociais é ideológica,
nela os movimentos sociais são definidos pelos seus objetivos. Os grupos sociais de origem
são esquecidos, obscurecendo as especificidades dos movimentos. Por fim ele afirma que os
movimentos sociais surgem graças à alienação generalizada do ser humano no modo de
produção capitalista e as respectivas questões só poderão ser resolvidas efetivamente –
excetuando os movimentos sociais burgueses – na luta aliada ao proletariado contra o
capitalismo, essencial para a vitória do processo revolucionário.
Assim como Karl Jensen, consideramos que todo movimento social é derivado da luta
de classes e por isso o paradigma dos novos movimentos sociais tem o objetivo de deslocar a
visão da luta de classes para situar-se em torno de uma pluralidade de agentes com
características diversas e ideias autônomas, ocultando assim o acirramento da luta de classes
no período observado.
É possível até mesmo relacionar a reação do Partido Comunista Francês no Maio de 68
com a reação dos ideólogos ditos pós-modernos (grandes influenciadores do paradigma dos
Novos Movimentos Sociais). O discurso – devido a falta de uma análise que compreenda as
múltiplas determinações dos movimentos sociais, de maneira a abranger a totalidade da
sociedade – defende a reforma em detrimento da revolução, defende a impossibilidade de se
fazer revolução, nestes discursos a revolução não existe, a baderna é condenável, o trauma da
revolução implica que não se deve fazer revolução, não desta forma, a revolução é algo que
deve vir passivamente, um processo longo.
125
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Por isso, para concluir, reafirmamos os avanços que ocorreram em Paris no Maio de
1968, avanços estes que foram esquecidos após a derrota da insurreição, apontando para um
longo período de refluxo. É preciso, pois, superar as concepções ideológicas que obscurecem a
realidade opressora da nova forma de acumulação capitalista e trazer de volta os avanços
daquele movimento, que compreendem uma forma de reafirmar a vida em detrimento da
degradação da vida na sociedade burguesa.
Referências
GOHN, Maria da Glória. O paradigma dos novos movimentos sociais In: ______. Teoria dos
movimentos sociais: Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997.
JENSEN, Karl. Teses Sobre os Movimentos Sociais. Revista Ruptura, Goiânia v. 3, n. 4, jan.
1996.
MAIA, Lucas. Crise de acumulação e ideologia: a emergência da questão ambiental. Estácio de
Sá – Ciências Humanas, Goiânia v. 2, n, 5, p. 99-115, 2011.
MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1985.
SOLIDARITY. Paris: Maio de 68. São Paulo: Conrad Livros. 2003.
VIANA, Nildo. O capitalismo na era da acumulação integral. Aparecida, SP: Idéias & Letras,
2009.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
126
Luta de Classes e Contemporaneidade
Trabalhadoras domésticas: desrespeito social e luta por
reconhecimento
Élen Cristiane Schneider1
Resumo: A pesquisa propõe realizar uma reconstituição das esferas de luta por
reconhecimento de trabalhadoras domésticas. Para tanto, propõe-se investigar o movimento
nacional de trabalhadoras domésticas, formado desde meados de 1936 e o processo de
inclusão das suas reivindicações por justiça na agenda pública nacional. O quatro teórico tem
dois prismas da teoria critica: a Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth e a teoria
feminista a respeito da Divisão Sexual do Trabalho. Busca-se averiguar como as experiências
de desrespeito social, definidas por Honneth, podem ser o substrato motivacional para a luta
por reconhecimento, travada pelas empregadas domésticas, seja ela em contextos de nível
micro, desde seus cotidianos, ou macro, em sindicatos, movimentos e federações.
Trabalhadoras domésticas e a constituição de uma agenda pública de
reivindicações
As trabalhadoras domésticas já são sujeitos de pesquisas na sociologia do trabalho e
figuram o termo: “trabalhadoras em domicílio”. A legislaç~o trabalhista no Brasil tem
reconhecido desde 2006 direitos para a categoria de ‘trabalhadores domésticos’, tais como
férias, licença maternidade e fundo de garantia (FGTS), opcional. O governo considera como
trabalhadores domésticos:
Considera-se empregado(a) doméstico(a) aquele(a) maior de 16 anos que presta
serviços de natureza contínua (freqüente, constante) e de finalidade não-lucrativa à
pessoa ou à família, no âmbito residencial destas.
Assim, o traço diferenciador do emprego doméstico é o caráter não-econômico da
atividade exercida no âmbito residencial do(a) empregador(a). Nesses termos,
integram a categoria os(as) seguintes trabalhadores(as): cozinheiro(a), governanta,
babá, lavadeira, faxineiro(a), vigia, motorista particular, jardineiro(a), acompanhante
de idosos(as), entre outras. O(a) caseiro(a) também é considerado(a) empregado(a)
doméstico(a), quando o sítio ou local onde exerce a sua atividade não possui
finalidade lucrativa. (MTE, 2007: )
Atualmente a trabalhadora doméstica possui direitos como: Carteira de Trabalho e
Previdência Social, devidamente anotada; salário mínimo fixado em lei; irredutibilidade
1
Doutoranda em Sociologia - Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Bolsista Capes.
127
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
salarial; 13º (décimo terceiro) salário; descanso semanal preferencialmente aos domingos;
feriados civis e religiosos; férias remuneradas de trinta dias; férias proporcionais, no término
do contrato de trabalho; estabilidade no emprego em razão da gravidez; licença à gestante,
sem prejuízo do emprego e do salário; licença-paternidade de 5 dias corridos; auxílio-doença
pago pelo INSS; aviso prévio de, no mínimo, 30 dias; aposentadoria; integração à Previdência
Social; vale-transporte; Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), como benefício
opcional; seguro-desemprego concedido,exclusivamente, ao (à) empregado(a) incluído(a) no
FGTS. Desde agosto de 2011 está tramitando em votação no Senado brasileiro a garantia de
seguro desemprego, parcela única, tendo o(a) empregada(a) quinze meses de serviço
comprovados em carteira mesmo também para àqueles que não possuem FGTS.
Alguns destes direitos foram regulamentados com a edição da Lei n.º 11.324, de 19 de
julho de 2006, que alterou artigos da Lei n.º 5.859, de 11 de dezembro de 1972, os
trabalhadores domésticos firmaram direito a férias de 30 dias, obtiveram a estabilidade para
gestantes, direito aos feriados civis e religiosos, além da proibição de descontos de moradia,
alimentação e produtos de higiene pessoal utilizados no local de trabalho.
Trabalhadores domésticos ainda não tem acesso à benefícios concedidos à outras
categorias de trabalhadores(as), tais como: recebimento do abono salarial e rendimentos
relativos ao Programa de Integração Social (PIS), em virtude de não ser o(a) empregador(a)
contribuinte desse programa; salário-família; benefícios por acidente de trabalho (ocorrendo
acidente e necessitando de afastamento, o benefício será auxílio-doença); adicional de
periculosidade e insalubridade; horas extras; jornada de trabalho fixada em lei e adicional
noturno.
A categoria de trabalhadora doméstica que se pretende estudar é a de empregada
doméstica, que conforme definições sindicais: “exercem praticamente a mesma funç~o do
faxineiro, no entanto prestam serviços de natureza contínua, num ambiente familiar”.
Esta categoria de trabalho tem suas origens culturais fora das formalidades hoje
almejadas, no trabalho escravo. Até a atualidade mulheres e negras são maioria nesta
categoria. Estima-se que há 7,2 milhões de trabalhadores domésticos no Brasil2, entre os quais
cerca de cem mil estão sindicalizadas. Houve um crescimento de 9% na comparação com
Dados da PNAD 2009 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística).
2
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
128
Luta de Classes e Contemporaneidade
2008. As pesquisas indicam que 93% são mulheres e 61,6% mulheres negras. No mesmo
período, o salário médio de uma trabalhadora doméstica brasileira era de R$ 386,45.
As reivindicações públicas das empregadas domésticas e a criação de um movimento
nacional iniciam no Brasil por volta de 1936, com os primeiros movimentos de Laudelina de
Campos Melo (1901-1991), que tinha ligações com o movimento negro e o comunismo.
Laudelina fundou a primeira associação brasileira de Empregadas Domésticas, em Santos, SP,
no dia 08 de julho de 1936. Iniciativas da Juventude Operária Católica (JOC) também
figuraram raízes do movimento das trabalhadoras domésticas3.
Através dos movimentos que existem ha pelo menos setenta anos as trabalhadoras
começaram a denunciar situações de injustiça social e construir reivindicações de direitos
sociais, pressionando o Estado para incorporar a categoria nas legislações trabalhistas. Com o
processo de sindicalização dos anos 1960-70, algumas associações são transformadas em
sindicatos. O movimento feminista começa a pautar conjuntamente reivindicações,
juntamente com o movimento negro.
Neste contexto são realizadas conferências nacionais das trabalhadoras domésticas e é
criada em 1997 a Federação Nacional dos Trabalhadores Domésticos, FENATRAD4. Esta
federação passa a fazer parte da Confederación Latinoamericana y del Caribe de Trabajadoras
Del Hogar, CONLACTRAHO, criada em 1983, na qual participam também Argentina, Chile,
Bolívia, Costa Rica, México e República Dominicana.
No ano de 2010, por deliberação da 99ª Conferência Internacional do Trabalho, a OIT
elaborou um documento consolidando a posição das delegações tripartites, formada por
empregadores, governo e trabalhadoras domésticas. O documento abordou o trabalho
doméstico na perspectiva do trabalho decente e foi novamente submetido à manifestação dos
países acerca da regulamentação do trabalho doméstico. Essas consultas subsidiaram a
Santos, Judith Karine Cavalcanti. Quebrando Correntes invisíveis: uma análise crítica do trabalho doméstico no
Brasil. Dissertação de Mestrado em Direito UNB, 2010.
3
A Fenatrad tem como objetivos: equiparação dos direitos das trabalhadoras domesticas, intervir nas Politicas
Publicas, como moradia, saúde, qualificação profissional, elevação de escolaridade, representação politicas. São
as suas estratégias de atuação: Participação ativa nos movimentos sindicais, movimentos sociais, movimento
negro e demais parceiros, buscando apoio na valorização da auto-estima das trabalhadoras a nível nacional e
internacional. Informações coletadas em: http://conlactraho.org/page1/page15/page15.html
4
129
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
construção de uma proposta de convenção e recomendação, que foi discutida NA 100ª
Conferência Internacional do Trabalho5.
Nos últimos anos a categoria ganha, no Brasil, uma repercussão internacional. No ano
de 2011 o movimento brasileiro participou da 100ª Conferência Internacional do Trabalho,
em Genebra.
A Valoração Social do Trabalho Doméstico e o Movimento de Trabalhadoras
Domésticas
Entende-se que há uma estreita ligação do trabalho doméstico com as normas éticas
que regulam o sistema de valoração social de classe, gênero e etnia. As origens culturais desta
profissão, de servidão e escravatura, originam no Brasil as desigualdades históricas que esta
profissão possui, além das atribuições de papéis de gênero, ou seja, da divisão sexual do
trabalho.
A gênese do conceito de divisão sexual do trabalho é segundo Hirata e Kergoat (2008),
a de ser uma forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os
sexos. O conceito analisa como, historicamente, funções do trabalho social foram incumbidas
aos homens e às mulheres, norteando-se pelo conceito de patriarcado.
O trabalho tem uma função de integração social na sociedade segundo Honneth e,
portanto, é possuidor de uma dimensão moral. Para o autor, o trabalho social não deveria
mais ser elevado a um processo de formação de consciência emancipadora, como assim o foi
na tradição marxista. Mas, por outro lado, deve permanecer inserido nas relações de
experiências morais em um grau tal que sua importância para a obtenção de reconhecimento
social não possa se perder de vista (Honneth, 2009: 268).
A categoria de trabalho social tem um papel importante para o desenvolvimento da
teoria crítica, mais do que aquele outorgado pela teoria da ação comunicativa de Habermas
(2009: 267). Segundo postula o autor, determinadas zonas da crítica pré-científica se
percebem somente na medida em que são analisadas a luz de um conceito de trabalho que
Informações do site: http://www.seppir.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2011/06/trabalhadoras-domesticasbrasileiras-participam-desde-ontem-1-6-a-17-de-junho-da-100a-conferencia-internacional-do-trabalho-emgenebra.
5
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
130
Luta de Classes e Contemporaneidade
incorpora, de modo categorial, a dependência individual do reconhecimento social de
atividade própria (2009: 269).
A organização e a evolução do trabalho social desempenham papel central para a
estrutura de reconhecimento de uma sociedade segundo o autor, visto que a definição cultural
da hierarquia das tarefas de ação estabelece o grau de valorização social que o indivíduo
poderá obter por sua atividade e as propriedades associadas a esta. Segundo o autor, as
propriedades de formação da identidade individual através da experiência de reconhecimento
dependem de forma direta da disposição e atribuição social do trabalho (HONNETH, 2009:
270). Neste sentido o autor posiciona sua tese:
Sin embargo, lo que abre la perspectiva hacia esta zona precientifica de
reconocimiento y desprecio no es sino un concepto de trabajo que en términos
normativos es concebido todavía en forma lo sufientemente ambiciosa como para
poder incorporar la dependencia de la confirmación social de los proprios logros y las
propiedades en general. (HONNETH, 2009: 270)
Honneth aponta para traçar uma análise futura da conexão que reside entre trabalho e
reconhecimento há um debate importante que está se desenvolvendo em conexão com o
feminismo, sobre o problema do trabalho doméstico não remunerado. No transcurso deste
debate tem ficado evidente, através de duas vertentes da organização do trabalho social, que
este está ligado de maneira muito estreita com as respectivas normas éticas que regulam o
sistema de valoração social:
[...] bajo perspectivas históricas, El hecho de que La educación de los hijos y el trabajo
doméstico no hayan sido valorados como tipos de trabajo social perfectamente válidos
y necesarios para la reproducción no puede explicarse sino señalando el menosprecio
social a que se han visto expuestos en el marco de una cultura dominada por valores
masculinos; bajo criterios psicológicos, deriva de la misma circubstancia que, con un
reparto tradicional de roles, las mujeres podían contar sólo con escasas oportunidades
de encontrar en la sociedad el grado de respecto social que constituye la condición
necesaria para una autocomprensión positiva. (HONNETH, 2009: 270)
Portanto, pode-se perceber a partir da contribuição teórica de Honneth que certas
categorias de trabalho possuem pouca valoração social, principalmente quando são
associadas ao contexto histórico e social das relações intersubjetivas. Se as pessoas inseridas
131
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
nesta categoria percebem a situação de injustiça social que se encontram, poderão articular-se
em uma luta por reconhecimento social.
As Patologias Geradas pelo Capitalismo e a Luta pelo Reconhecimento
Honneth elabora uma teoria social onde o que está em jogo são as condições
patológicas de representação e as lutas sociais por reconhecimento. Sua teoria, de certa forma,
é uma sociologia que se emprenha em reconstruir as experiências de lesão. Para o autor, o
capitalismo produz sistematicamente patologias que se expressam no sofrimento humano e
em experiências de lesões às identidades. A experiência que mobiliza os atores sociais
envolvidos em uma esfera de luta é a de injustiça social, originadas através da vivência de
sentimentos de desprezo e desrespeito social, ou seja, negação do reconhecimento.
A experiência de reconhecimento possui três esferas ou padrões de relação social
recíproca. A esfera básica do reconhecimento para Honneth é a do amor. Para o autor, esta é o
cerne de toda a moralidade. Este tipo de reconhecimento é responsável tanto pela construção
intersubjetiva do auto-respeito quanto na construção dos alicerces da autonomia necessária
para a interação com a vida pública. A segunda esfera é a do direito, que contempla as
capacidades abstratas de orientação moral e as capacidades necessárias para que possa haver
uma existência digna, criando assim condições de desenvolvimento do auto-respeito.
A terceira esfera, da solidariedade ou valoração social está estreitamente ligada à vida
em comunidade e caracteriza a estima social, desenvolvida intersubjetivamente. Saavedra e
Sobottka apontam que esta terceira esfera do reconhecimento “[...] deveria ser vista como um
meio social a partir do qual as propriedades diferenciais dos seres humanos venham à tona de
forma genérica, vinculativa e intersubjetiva” (2008: 13). Segundo os autores:
No nível de integração social encontram-se valores e objetivos que funcionam como
um sistema de referência para a avaliação moral das propriedades pessoais dos seres
humanos e cuja totalidade constitui a autocompreensão cultural de uma sociedade. A
avaliação social de valores estaria permanentemente determinada pelo sistema moral
dado por esta autocompreensão social. (SAAVEDRA; SOBOTTKA, 2008: 13)
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
132
Luta de Classes e Contemporaneidade
Para cada esfera de reconhecimento, Honneth constrói uma dimensão experiência do
desrespeito social6. Estas configuram as experiências de reconhecimento recusado
(HONNETH, 2003: 213). Honneth atribui a esta experiência de desrespeito social o impulso
motivacional para uma luta por reconhecimento, através das reações emocionais dadas com a
vergonha social, que atingem os ideais do ego de um sujeito (p. 223). Assim, quando há
disponível um “meio de articulaç~o” (HONNETH, 2003: 224) o desrespeito pode tornar-se
uma fonte de motivação para ações de resistência política.
Para a esfera do amor, o desrespeito seria a “violaç~o” (p. 215), a experiência física de
uma situação de maus tratos que teria como consequência a perda duradoura de confiança
social e da autoconfiança. Na esfera do direito, o desrespeito seria a “privaç~o de direitos” (p.
216) ou a exclusão social que resulta em lesão ao auto-respeito e uma sensação de não
possuir o mesmo status de um parceiro de interação. Na esfera da solidariedade o desrespeito
se d| quando uma pessoa experimenta uma “degradaç~o moral” (p. 217), experimentando
uma desvalorização social e perdendo assim a possibilidade de atribuir um valor social as
suas próprias capacidades.
O autor explora desta maneira uma dimensão ainda não trabalhada por seus
antecedentes, qual seja a de responder “como a experiência de desrespeito est| ancorada nas
vivências afetivas dos sujeitos humanos, de modo que possa dar, no plano motivacional, o
impulso de resistência social e para o conflito, mais precisamente, para uma luta por
reconhecimento” (HONNETH, 2003: 214).
Pretende-se entender, portanto, de que maneira as experiências de desrespeito social
podem ser, assim como Honneth aponta, motores impulsionadores de uma luta por
reconhecimento a partir de suas profissões e contextos de trabalho a fim de concebê-lo como
um trabalho socialmente e economicamente útil e capaz de contribuir socialmente.
As trabalhadoras, que, como já abordado, são em maioria mulheres, negras e em
posições econômicas mais baixas, contêm nas suas identidades as marcas das desigualdades
de gênero e étnicas, nas quais estão construídos os papéis sociais que as diferenciam de
outras (os) profissionais. Cabe verificar os momentos em que as empregadas reivindicam sua
6
Outras traduções são encontradas: desprezo social, desestima social, desapreço social.
133
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
identidade e capacidade de contribuir socialmente e quais as situações impulsionadoras
destes levantes.
Considerações Finais
A teoria social da tradição de Frankfurt se distingue de todas as outras correntes ou
vertentes de critica social por sua forma específica de crítica, segundo Honneth. Atualmente, a
essência deste enfoque consiste no desenvolvimento de uma circunstância social a qual
Honneth chama de “din}mica social do desrespeito” (2009: 249).
A busca, ainda inconclusa desta pesquisa é aprofundar este debate estabelecido pelo
autor a partir do trabalho doméstico, que apesar de sua desvalorização social histórica,
construída através das marcas do patriarcado, foi capaz de constituir uma agenda pública
nacional de reivindicações.
Atualmente, Honneth entende que as experiências morais, que os sujeitos fazem
quando são desrespeitadas suas reclamações de identidade, são capazes de construir uma
instância pré-científica que permite demonstrar que uma crítica das relações de comunicação
social não carece totalmente de um suporte na realidade social. As situações de desprezo
social e de sofrimento seriam algo moralmente bom, visto que impulsionariam atitudes de
luta por reconhecimento.
Sendo assim, os indivíduos através da própria experiência do sentimento de injustiça
social, vivenciariam a realidade social da maneira em que a teoria mesmo a descreveria.
Assim, Honneth entende que uma Teoria Critica da sociedade, de tradição marxista, continua
em elaboração, contrariando as concepções de que esta estaria estacionada.
Referências
GUIMARÃES, Nadya. Caminhos Cruzados. Estratégias de empresas e trajetórias de
trabalhadores. São Paulo: USP 34, 2004.
HIRATA, Helena; KERGOAT, Daniéle. Divisão Sexual do trabalho profissional e doméstico:
Brasil, França, Japão. In: BUSCHINI, Cristina et.al. Mercado de Trabalho e Gênero:
comparações internacionais. Rio de Janeiro: FGV, 2008.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
134
Luta de Classes e Contemporaneidade
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo:
34, 2003.
______. Crítica Del agravio moral: Patologias de La sodiedad contemporánea. 1ª ed. Buenos
Aires: Fondo de Cultura Económica: Universidad Autónoma Metropolitana, 2009.
______. Trabalho e reconhecimento: tentativa de uma redefinição. Revista Civitas: Porto Alegre,
v.8 n.1, jan-abril, 2008; p. 46-67.
MORI, Natalia et.al. (org). Tensões e experiências: um retrato das trabalhadoras domésticas de
Brasília e Salvador. Brasília: CFEMEA: MDG3 Fund, 2011.
MTE, Ministério Trabalho e Emprego. Trabalho doméstico: direitos e deveres: orientações. 3ª
Ed. Brasília: MTE, SIT, 2007.
POCHMANN, Marcio. O emprego na globalização: a nova divisão internacional do trabalho e os
caminhos que o Brasil escolheu. São Paulo: Boitempo, 2001.
SAAVEDRA Giovani Agostini; SOBOTTKA, Emil Albert. Introdução à teoria do reconhecimento
de Axel Honneth. Revista Civitas: Porto Alegre, v.8 n.1, jan-abril, 2008; p. 9-18.
SANTOS, Ely Souto dos. As Domésticas: um estudo interdisciplinar da realidade social, política,
econômica e jurídica. Porto Alegre: Ed Da Universidade, UFRGS, 1983.
SANTOS, Judith Karine Cavalcanti. Quebrando Correntes invisíveis: uma análise crítica do
trabalho doméstico no Brasil. Dissertação de Mestrado em Direito UNB, 2010
SOUZA, Jessé. Uma Teoria Crítica do Reconhecimento. Revista Lua Nova nº50, 2000; p. 133158.
135
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Impactos das populações tradicionais sobre a expansão territorial do
capital: resistências e lutas sociais na Amazônia
Naurinete Fernandes Inácio Reis1
Genivaldo Fernandes Inácio2
Resumo: As transformações ocorridas na região amazônica brasileira em decorrência da
expansão territorial do capital, realizadas de forma autoritária, têm forjado a necessidade de
organização de movimentos sociais visando o enfrentamento dos problemas sociais e
fundiários que têm intensificado os conflitos agrários na região. Dessa forma, a presente
comunicação faz uma reflexão sobre os impactos das populações tradicionais sobre a
implantação e desenvolvimento de ações políticas e econômicas de cunho neoliberal na
Amazônia. Os movimentos sociais de resistência criam barreiras sociais e ideológicas à
implantação de grandes projetos, dentre os quais, hidrelétricas e siderurgias. Nessa
perspectiva, este ensaio visa identificar e compreender com maior clareza, as lutas, os
enfrentamentos, as dinâmicas sócio-econômicas e políticas, nas quais as populações
tradicionais da Amazônia estão inseridas, bem como as formas de organização das mesmas.
As organizações camponesas, indígenas, ribeirinhas, entre outras, funcionam como
instrumentos de luta na defesa e conquista de direitos, na luta pela posse e permanência na
terra e também na luta por um modo específico de vida.
Palavras-chave: Amazônia, populações tradicionais, grandes projetos, movimentos sociais de
resistências.
A região Amazônica foi e continua sendo marcada por intensos conflitos sociais e
fundiários, os quais podem ser melhor compreendidos se analisarmos o processo de
ocupação/colonização da região. Se levarmos em consideração as frentes migratórias, frentes
de expansão do capitalismo, poderemos identificar, segundo Hébette, duas formas principais
de ocupação: a colonização espontânea e a colonização dirigida. Sobre essas formas de
colonização o autor destaca que,
a colonização é dita dirigida quando há interferência direta e orientação
formal, na fase inicial do processo e na própria implantação, ou seja,
1
2
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFG. Bolsista CAPES.
Graduado em Geografia pelo Instituto de Estudos Sócio-Ambientais - IESA / UFG.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
136
Luta de Classes e Contemporaneidade
quando há iniciativa externa aos colonos nesta fase primordial
(momento). É o caso da Transamazônica. Essa iniciativa, geralmente, é
voltada para abertura de uma região, a escolha da área dos lotes, a
seleção dos indivíduos ou dos grupos que vão se assentar, o local das
moradias, o tipo de exploração econômica. (...). A colonização é
“espont}nea” quando as decisões iniciais relativas a esses diversos
aspectos não sofrem imposições sistemática ou orientação positiva, mas
são deixadas a critérios dos indivíduos ou grupos colonizadores; a
interferência organizada de um poder externo se faz de modo
progressivo e por passos (momentos) e de maneira formalmente menos
impositiva (intensidade) (Hébette, 2004, p. 42).
O governo brasileiro, no início dos anos 60, iniciou vários projetos visando promover o
desenvolvimento do país. Para tanto era necessário eliminar os problemas considerados
obst|culos: “insuficiência de capitais para criar novos negócios, e de infra-estruturas capazes
de pôr em marcha os novos investimentos que seriam atraídos para a regi~o” (Loureiro, 2002,
p. 74). Nessa perspectiva, Amazônia e o Nordeste, na década de 1970, foram considerados um
impasse ao desenvolvimento, o que levou o governo incentivar e isentar de impostos as
indústrias que se estabelecessem no Nordeste e construir a estrada Transamazônica e a
Cuiabá-Santarém, com o objetivo de abrir e integrar a região amazônica, sob promoção do
Programa de Integração Nacional (PIN).
A construção da Belém–Brasília efetivou o início dessa idéia, e durante os governos
militares essa integração aumentou devido à construção de outras estradas nacionais, como a
Pará–Maranhão, Santarém-Cuiabá e a Brasília-Acre e, no caso do sudeste do Pará, abertura da
estrada BR-230, a Transamazônica, iniciada desde os anos 50.
Com o início da construção da Belém-Brasília, as terras começam a ser compradas e
apropriadas por empresários de outras regiões com interesses especulativos, e também o
governo, respaldado pela Lei Estadual n 913, de 04 de dezembro de 1954 3, transferiu os
castanhais da região para a classe rica local e políticos influentes, através do aforamento
3
Ver em Violeta Loureiro (2002:61)
137
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
perpétuo, promovendo o aumento da concentração do poder econômico e político nas mãos
de uma pequena elite local, enquanto tirava um dos poucos meios de sobrevivência da
população que trabalhavam diretamente nesses castanhais, expropriando-os, assim, de seus
meios de trabalhos definitivamente.
Com relação à Amazônia, os planejadores visualizavam alguns motivos para integrá-la
ao resto do país e desenvolver a economia regional, entre os quais Loureiro destaca,
a necessidade de abrir novos mercados consumidores dos produtos industrializados
de Centro-Sul do país; necessidade de criar novas oportunidades de trabalhos para os
nordestinos que passavam dificuldades com a seca, falta de terras e pela pobreza da
agricultura; intenção de aproveitar o potencial minerador, madeireiro e pesqueiro da
Amazônia, com vistas à exportação para o estrangeiro; procura de novas terras por
investidores do sul e interesse especulativo de investidores internacionais pelas
terras amazônicas; e o que os militares chamavam de “segurança nacional”, pois
temiam que os trabalhadores rurais do nordeste se revoltassem mais ainda e
possibilitasse o desenvolvimento de guerrilha rural, por isso preferiram atrair os
nordestinos para Amazônia (Loureiro, 2002, p. 71).
Através da construção da transamazônica o governo visava promover a colonização de
forma dirigida da região, transferindo trabalhadores rurais sem terra do Nordeste e do Sul do
Brasil para a Amazônia. Nesse período, o processo de ocupação da Amazônia teve um
acelerado aumento, devido à valorização das terras que ficavam ás margens das rodovias. A
maioria dessas terras pertencia aos Estados e a União, as quais passaram a ser vendidas ou
concedidas entre os 1964 e 1985, causando uma série de conflitos na região, tendo em vista
que esse modelo de integração nacional privilegiava uma minoria aliada do governo federal.
A implantação do Programa de Integração Nacional resultou na intensificação da
migração camponesa para a Amazônia e também no aumento do deslocamento compulsório,
remanejamento e expulsão das famílias que já habitavam a região; aumentou os conflitos
sociais e fundi|rios, envolvendo as “comunidades tradicionais” (agricultores, índios,
pescadores, populações quilombolas, seringueiros, etc.) que lutam para permanecer nos
territórios por elas historicamente ocupados.
Os planos e projetos de modernização conservadora do governo federal ignoravam as
populações naturais da Amazônia, se referindo { mesma como uma regi~o despovoada, “terra
sem gente”, ou até mesmo “vazio demogr|fico”. Assim, os conflitos foram intensificados
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
138
Luta de Classes e Contemporaneidade
devido à expansão territorial do capital na região, através da construção de usinas de ferrogusa, carvoarias, siderúrgicas, mineradoras, madeireiras, hidrelétricas etc., e devido ao fato
dos habitantes resistirem ao processo de expulsão de suas terras, das quais não tinham o
título, mas tinham o direito de posse.
Nas décadas de 1970 e 1980 essa resistência começa a ter forma organizada com
apoio de vários instituições e Organizações não Governamentais (ONG´s). Com o auxílio dos
partidos políticos de esquerda e da Igreja Católica, através da Comissão Pastoral da Terra
(CPT) e das Comunidades Eclesiais de Bases (CEB`s), os camponeses iniciaram os movimentos
sociais e as organizações sindicais, inicialmente com a formação de delegacias sindicais,
tornando essas organizações as principais ferramentas de luta e de resistência nos conflitos
decorrentes da forma de concentração fundiária e das relações de trabalho baseada nas
relações de dominação/subordinação.
Os conflitos causados pelo processo de modernização da Amazônia, através da
expansão da fronteira demográfica e econômica, forjaram a necessidade de organizações por
parte das populações tradicionais. No final da década de 1980 começa a surgir vários novos
sujeitos políticos, os quais se organizam enquanto movimentos sociais, reivindicando direitos
associados às comunidades das quais pertencem.
Segundo
Gonçalves,
as
reivindicações
das
populações
da
Amazônia
eram
intermediadas por vários movimentos sociais ou ONGs:
“É a Amazônia o laboratório social de onde emerge a CPT (Comissão Pastoral da
Terra) ou o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) ambos vinculados à Igreja
Católica que, por meio das Comissões Eclesiais de Base (Cebs), deu um enorme
impulso à organização da sociedade civil na Amazônia. A Contag (Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) assim como a Central Única dos
Trabalhadores (CUT) também se fizeram presentes no apoio a esses movimentos que
emanavam em diversos pontos da Amazônia” (Gonçalves, 2001, p. 128).
O autor enfatiza que as organizações de movimentos sociais ligados {s “comunidades
tradicionais” visando garantir suas reivindicações, através de novas formas de lutas políticas:
“S~o novas identidades coletivas surgidas do léxico político brasileiro emanando ou de
velhas condições sociais, étnicas, como é o caso das populações indígenas ou negras,
ou remetendo-se a uma determinada relação com a natureza (seringueiro,
castanheiro, pescador, mulher quebradeira de coco) ou, ainda, expressando uma
condição derivada da própria ação dos projetos recém-implantados (“Atingido”,
“Assentado”, “Deslocado”, ou “Pela Sobrevivência na Transamazônica”). (Gonçalves,
2001, p. 128).
139
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
As comunidades tradicionais sentiram a necessidade de se organizarem em torno de
interesses comuns, seja na luta pela conquista e garantia da terra, seja na luta pela defesa de
seus direitos, isto é, créditos, estradas, escolas, entre outros. Dessa forma, os grupos se
definiram e criaram seus mecanismos de inclusão/exclusão e de pertencimentos, suas
estratégias de lutas e enfrentamentos, fortalecendo, assim, a categoria enquanto um grupo
com capacidade de mobilização e organização, reivindicando também uma identidade social
constituída coletivamente.
Segundo Gonçalves,
emergem vários movimentos sociais que, pelas próprias identidades reivindicadas,
indicam que novos sujeitos sociais estão entrando em cena. A partir de meados dos
anos 80, vários encontros reúnem na Amazônia pescadores, seringueiros, populações
remanescentes de quilombolas, ou ainda atingidos por barragens, quebradeiras de
coco babaçu, comunidades indígenas e assentados, além de garimpeiros. À exceção
deste último, os demais apontam claramente no sentido da autonomia em relação às
tradicionais classes dominantes regionais na mediação dos seus interesses com o
Estado (Gonçalves, 2001, p. 130).
Nesses espaços homens e mulheres debatem sobre suas demandas e carências, lutam
por melhores condições de vida ou pela manutenção de um determinado modo de vida,
reivindicam seus direitos coletivamente e fortalecem suas identidades. Para Maria da Glória
Gohn os movimentos sociais
são ações coletivas de caráter sociopolítico, construídas por atores sociais
pertencentes a diferentes classes e camadas sociais. Eles politizam suas demandas e
criam um campo político de força social na sociedade civil. Suas ações estruturam-se a
partir de repertórios criados sobre temas e problemas em situações de: conflitos,
litígios e disputas. As ações desenvolvem um processo social e político-cultural que
cria uma identidade coletiva ao movimento, a partir de interesses em comum. Esta
identidade decorre da força do princípio da solidariedade e é construída a partir da
base referencial de valores culturais e políticos compartilhados pelo grupo (Gohn,
1995, p. 44).
Essas novas formas de organizações demonstram o caráter emancipatório das lutas
dessas populações, as quais politizam suas ações, na luta por projetos alternativos de
produção e organização comunitária, bem como de afirmação e participação política (Cruz,
2007). As lideranças populares, com capacidade organizativa e representativa, apresentam
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
140
Luta de Classes e Contemporaneidade
suas demandas e questionam o modelo de desenvolvimento promovido pelo Estado, bem
como estabelecem contatos e alianças com movimentos da sociedade civil organizada.
Dentre as diversas formas de organizações sociais vinculadas as populações
tradicionais pode-se destacar: a Coordenação Indígena da Amazônia Brasileira – Coiab; o
Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco-Babaçu – MIQCB, o Conselho Nacional
dos Seringueiros, o Movimento Nacional dos Pescadores – Monape, o Movimento dos
Atingidos de Barragens – MAB, a Associação Nacional das Comunidades Remanescentes de
Quilombo e a Associação dos Ribeirinhos da Amazônia.
Perceber-se, dessa forma, a crescente organização e mobilização das chamadas
“comunidades tradicionais” na luta pelo reconhecimento dos seus direitos políticos,
territoriais, culturais e étnicos. Os movimentos sociais de resistência “n~o só lutam para
resistir contra os que matam e desmatam, mas por uma determinada forma de existência, um
determinado modo de vida e de produç~o, por modos diferenciados de sentir, agir e pensar”
(Gonçalves, 2001, p. 130). Esses novos movimentos sociais procuram superar as
representações e pr|ticas sociais que consideram as “populações tradicionais” como um
obstáculo à modernização da Amazônia.
A resistência ao processo de expansão territorial do capital na Amazônia está
relacionada com o processo de afirmação de identidades e territorialidades por parte dos
movimentos sociais. Segundo Almeida,
São os seringueiros que estão construindo o território em que a ação em defesa dos
seringais se realiza. São os atingidos por barragens e os ribeirinhos que estão
defendendo a preservação dos rios, igarapés e lagos. E assim sucessivamente: os
castanheiros defendendo os castanhais, as quebradeiras, os babaçuais, os pescadores,
os mananciais e os cursos d’|gua piscosos, as cooperativas, seus métodos de
processamento da matéria-prima coletada. De igual modo, os pajés, curandeiros e
benzedores acham-se mobilizados na defesa das ervas medicinais e dos saberes que
as transformam (Almeida, 2004, p. 48-49).
Neste sentido, as reivindicações das “comunidades tradicionais” expressam interesses
contrários aos interesses do Estado e dos capitalistas presentes na região, pois apresentam
propostas alternativas às estratégias de racionalidades econômicas, ambientais e jurídicas
implementadas na região. Assim, os conflitos se intensificam e se tornam mais complexos na
região, pois esses movimentos reivindicam também direito à territorialidade, bem como
buscam afirmação de suas identidades coletivas.
141
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Nesse contexto vem ocorrendo a constituição de novos sujeitos políticos e a
emergências de “novas” identidades territoriais construídas pelas populações
“tradicionais” nas lutas sociais pela afirmaç~o material e simbólica dos seus modos de
vida. Essas identidades emergem na Amazônia, construídas pelos diferentes
movimentos sociais (índios, ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros,
varzeiros, castanheiros, populações quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc.),
estão orientadas no sentido da superação de velhas identidades ligadas a um discurso
moderno/colonial que se fundamentava na invisibilização, na romantização e, em
especial, na estigmatizaç~o e no estereótipo do “caboclo” para (des)qualificar as
populações como “atrasadas” “ignorantes” “indolentes”, considerando tais populações
como um obstáculo a um projeto moderno-industrial para a Amazônia (Cruz, 2007,
pp. 95- 96).
As “comunidades tradicionais” resistem {s v|rias manifestações da política
governamental e às agressões dos grandes projetos na Amazônia, uma vez que os
empreendimentos que visam modernizar a região, através de políticas de desenvolvimento
regional e de integração nacional, na maioria das vezes, excluem as populações locais das
decisões sobre o destino de seus territórios, dos quais são deslocadas compulsoriamente,
impossibilitando a continuidade de seus hábitos e modos de vida.
No mês de abril de 2012, por exemplo, os índios caiapós manifestaram-se em frente ao
Palácio do Planalto, em BRASÍLIA, contra as obras da usina hidrelétrica de Belo Monte no Rio
Xingu-PA. Denunciaram a ameaça da usina às aldeias que ficam às margens do Rio Xingu e
reclamaram que não foram ouvidos pelo governo na fase de elaboração do projeto.
Frente aos problemas criados pelo projeto neodesenvolvimentista pensado para o
Brasil e para a Amazônia, notadamente, centrado em grandes projetos, os dirigentes das
principais organizações sociais do campo, durante o Seminário Nacional de Organizações
Sociais do Campo, realizado em Brasília em Fevereiro de 2012, discutiram a necessidade de
construção e realização de um processo de luta unificada em defesa da Reforma Agrária
comqualidade, dos direitos territoriais e da produção de alimentos saudáveis.
Várias entidades, dentre as quais: Associação dos Povos Indígenas do Brasil - APIB,
CÁRITAS brasileira, Conselho Indigenista Missionário - CIMI, Comissão Pastoral da Terra CPT, Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura - CONTAG, Movimento dos
Atingidos por Barragens - MAB, Movimento de Mulheres Camponesas - MMC, Movimento dos
Pequenos Agricultores - MPA e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST,
mesmo reconhecendo a diversidade política, apontaram a necessidade de se unirem em um
processo nacional de luta articulada, enfatizando a importância da construção da unidade na
busca de conquistas concretas para as diversas populações.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
142
Luta de Classes e Contemporaneidade
Nessa perspectiva, Hébette enfatiza: “o grande capital penetrou nas terras indígenas,
cortou as reservas, lavrou o subsolo, alagou as aldeias; a cultura tradicional dos índios foi
ferida, a sua liberdade ancestral ameaçada. O latifúndio engole as roças, mas o camponês
resiste { expuls~o, recusa a proletarizaç~o, luta contra o cativeiro e defende sua autonomia”
(Hébette, 2004, p. 24).
Ao se referir à invasão dos Grandes Projetos na Amazônia como “a chegada do
estranho”, Hébette argumenta:
Embora nem sempre o percebam com clareza, índios e camponeses travam uma luta
comum, exercendo uma resistência solidária ao estranho, com graus diversos de
mobilização e organização. Alguns planejam e preparam sua resistência como os
Gavião, os Parakanã, os camponeses do Tocantins-Araguaia. Outros explodem e
castigam os intrusos como os Urueuwauwau; outros ainda se sentem esmagados e
procuram onde se esconder, como os povos isolados do Polonoroeste. Há, inclusive, os
que, bem ou mal, sucedem em algum projeto privilegiado de colonização como Ouro
Preto, em Rondônia. Mas a resistência é presente em toda a Amazônia, do Carajás à
Calha Norte, passando pelo Polonoroeste (Hébette, 2004, p. 24).
Dessa forma, as “populações tradicionais” questionam os projetos hegemônicos do
capital, bem como defendem projetos alternativos, reivindicando o direito de definir a própria
existência e possíveis projetos a serem elaborados futuramente. Os movimentos sociais de
resistência criam barreiras sociais e ideológicas à implantação e desenvolvimento dos grandes
projetos na Amazônia, pois constroem condições de possibilidade de ampliação das pautas
reivindicatórias e de criação de novas agendas políticas. As organizações camponesas,
indígenas, ribeirinhas, entre outras, funcionam como instrumentos de luta na defesa e
conquista de direitos; na luta contra a desigualdade, a violência e a exclusão social, mas
também na luta pelo reconhecimento e manutenção dos diferentes modos de vidas e pela
posse e permanência na terra.
143
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Referências
ALMEIDA, Alfredo Wagner B. Amazônia: a dimensão política dos “conhecimentos
tradicionais”. In: ACSELRAD, H. Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume
Dumará: Fundação Heinrich Boll, 2004.
CRUZ, V. C. Territórios, identidades e lutas sociais na Amazônia. In: ARAÚJO, F.G;
HAESBAERT, R. Identidades e territórios: Questões e Olhares contemporâneos. Rio de Janeiro:
ACCESS, 2007.
EMMI, Marília Ferreira. A oligarquia do Tocantins e domínio dos castanhais. Belém:
UFPA/NAEA. 1999.
GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Amazônia, Amazônias. São Paulo: Contexto, 2001.
GOHN, Maria Glória. Teoria dos movimentos
contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
sociais:
paradigmas
clássicos e
GOHN, Maria da Glória. Movimentos e lutas sociais na história do Brasil. São Paulo: Loyola,
1995.
HALL, Anthony L. Amazônia: Desenvolvimento para quem? Rio de Janeiro: Zahar, 1989.
HEBETTE, Jean. Cruzando a fronteira: 30 anos de estudo do campesinato na Amazônia. Vol.
I; Belém: EDUFPA, 2004.
HEBETTE, Jean. Cruzando a fronteira: 30 anos de estudo do campesinato na Amazônia. Vol.
III; Belém: EDUFPA, 2004.
LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Amazônia: história e análise de problemas (do período da
borracha aos dias atuais). Belém: Distribel, 2002.
MARTINS, José de Souza. Os camponeses e a política no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1981.
VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo autoritário e campesinato. São Paulo: DIFEL, 1979
VELHO, Otávio Guilherme. Frente de Expansão e Estrutura Agrária: Estudo do Processo
de Penetração numa área da Transamazônica. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
144
Luta de Classes e Contemporaneidade
SIMPÓSIO TEMÁTICO 3
MARXISMO E CULTURA
Coordenador:
Edmílson Marques
Doutorando em História/UFG e professor na UEG.
145
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
A essência contrarrevolucionária do pós-estruturalismo
Nildo Viana*
Resumo: o pós-estruturalismo é formado por um conjunto de ideologias distintas e isso gera
uma grande dificuldade em defini-lo. Mas é possível encontrar semelhanças no interior das
diferenças, o universal no meio do diverso. A sua essência é derivada do seu papel histórico:
realizar uma contrarrevolução cultural preventiva numa época de mutação no capitalismo,
marcado pela crise de um regime de acumulação e substituição por outro que aumenta o
processo de exploração, miséria, repressão e conflitos. Essa essência revela uma ideologia
homotópica dissimulada por uma autoimagem ideológica, cujo procedimento fundamental é
produzir concepções contrarrevolucionárias com uma roupagem aparentemente progressista,
crítica, revolucion|ria, “pós-moderna”. Elas, supostamente, superariam o modernismo e
criariam uma alternativa ao marxismo e à teoria da revolução social, através da recusa da
totalidade, da teoria, entre outras formas, e assim formam várias tendências, tais como o pósestruturalismo conservador, crítico e eclético.
Palavras-chave: homotopia, ideologia, contrarrevolução cultural, pós-estruturalismo.
As análises do pós-estruturalismo s~o ideológicas (a começar pelo nome “pósmodernismo” pelo qual é hegemonicamente denominado), j| que invertem a realidade, caindo
num descritivismo que nada acrescenta e se ilude com a aparência do fenômeno ou tomando o
discurso pós-estruturalista como verdadeiro ou, ainda, fazendo uma crítica superficial sem
analisar tal fenômeno ideológico em sua totalidade e suas determinações. Logo, é necessário
compreender a gênese e o significado do pós-estruturalismo e para isso é imprescindível
analisar sua essência.
A
essência
do
pós-estruturalismo
é
que
ele
é
um
projeto
intelectual
contrarrevolucion|rio, inclusive em suas tendências “críticas”. Ele surge num determinado
momento histórico e não pode ser visto de forma a-histórica, através de aspectos isolados e
sem inserção num determinado contexto histórico-social. Ele surge como resposta do
capitalismo às lutas sociais do final dos anos 1960 e se caracteriza por buscar ser uma
alternativa para o marxismo revolucionário (Viana, 2009a), consolidando-se com a
instauração do regime de acumulação integral. Desta forma, além de analisar o seu amplo
mosaico de ideologias distintas (Baudrillard, Foucault, Negri, Lyotard, Deleuze, Guattari, etc.)
é necessário abordar o que é essencial e comum a todas essas manifestações ideológicas e
Professor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG - Universidade Federal de Goiás, e doutor em Sociologia pela
UnB – Universidade de Brasília.
*
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
146
Luta de Classes e Contemporaneidade
mostrar seu caráter não apenas falso, mas também seus vínculos sociais e políticos, seu
caráter politicamente conservador e intelectualmente retrógado.
No presente texto, pretendemos tão-somente resumir o processo de origem histórica
do pós-estruturalismo e, depois disso, desenvolver uma análise mais profunda da essência do
pós-estruturalismo. Já abordamos a origem histórica do pós-estruturalismo (Viana, 2009a;
Viana, 2010) e por isso seremos breve nesse aspecto. O pós-estruturalismo começa a emergir
a partir de 1969 e vai se constituindo nos anos 1970 e ganha notabilidade a partir dos anos
1980, tornando-se, paulatinamente, ideologia dominante nos meios acadêmicos e,
posteriormente, exercendo influência nos meios políticos. Sem dúvida, alguns encontram
“pós-modernismo” em períodos anteriores (Anderson, 1999; Huyssen, 1992), quando surge a
palavra “pós-moderno” ou ent~o devido a semelhanças entre algum elemento de alguma
ideologia pós-estruturalista ou pós-vanguardista1 com alguma produção intelectual ou
artística do passado remoto (tal como Nietzsche, Simmel, etc.). Contudo, além de não ser um
procedimento embasado no materialismo histórico, por partir de discursos e tomá-los como
verdades, também é metodologicamente não-dialético, pois ao invés de analisar a totalidade
do fenômeno, se limita a observar semelhanças secundárias ou meramente formais e daí
encontrar “pós-modernismo” onde ele n~o existia e nem poderia existir.
A express~o “pós-moderno” é um equívoco por considerar que o moderno – o
capitalismo – tenha sido substituído por algo inexistente e que nem nome tem (Viana, 2009a),
além de apresentar algo que é moderno (o irracionalismo, por exemplo) como sendo seu
substituto. Isso é possível pela concepção de moderno dos ideólogos pós-estruturalistas, que o
considera algo homogêneo e o identifica com o racionalismo, por exemplo, enquanto que
Nietzsche e todos os irracionalistas são tão modernos quanto Descartes, Hegel, Kant,
Durkheim, Saussure, Lévi-Strauss, entre outros. Esse é um truque ideológico do pósestruturalismo: criar uma imagem falsa e homogênea do modernismo, que é complementado
pelo truque de transformar o suposto “pós-modernismo” em algo também falso, homogêneo e,
principalmente, substituto vitorioso e definitivo do seu adversário. As diversas concepções do
dito “modernismo” continuam existindo e atuando (com maior ou menor força em
Preferimos substituir o construto “pós-modernismo”, aplicado indistintamente tanto na esfera artística quanto
na esfera acadêmica, por pós-estruturalismo, na esfera acadêmica, e pós-vanguardismo, na esfera artística. Sobre
o pós-vanguardismo, mais especificamente, há uma breve discussão em O Capitalismo na Era da Acumulação
Integral (Viana, 2009a).
1
147
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
determinados setores do saber, o que não altera muito o quadro), desde o positivismo clássico
até o pseudomarxismo em suas diversas variantes (o leninismo e derivados, entre outras
formas)2.
O pós-estruturalismo tem que ser entendido como uma totalidade. Contudo, é uma
totalidade de manifestações ideológicas, com alguns elementos em comum e outros distintos.
Por isso é difícil entender o que é mais exatamente o pós-estruturalismo e isso justificaria, até
certo ponto, as indefinições do mesmo. Contudo, no meio das diferenças é possível encontrar
o que é essencial no pós-estruturalismo. E isso é inseparável de seu processo de
engendramento histórico. Ele surge a partir das derrotas das lutas operárias e estudantis do
final dos anos 1960, especialmente o maio de 1968 em Paris3. A classe dominante (e seus
aparatos estatais, entre outros) inicia uma contrarrevolução preventiva (Marcuse, 1971)
desde esse ano e percorre os anos 1970, tentando manter o capitalismo ainda sob hegemonia
do regime de acumulação conjugado (intensivo-extensivo). Essa solução para a crise do
regime de acumulação sem mudar de regime se manifesta insuficiente e já esboça elementos
do regime de acumulação que lhe sucede, o regime de acumulação integral (Viana, 2009a;
Viana, 2003). Por isso, nos anos 1980 começa a ser constituído um novo regime de
acumulaç~o, através, inicialmente, do neoliberalismo e da chamada “reestruturação
produtiva” e, posteriormente, do neoimperialismo (Viana, 2009a; Viana, 2003).
Assim, é nesse contexto de crise de regime de acumulação conjugado, manifesto no
declínio da taxa de lucro médio (Harvey, 1992; Viana, 2009a) e pela ascensão das lutas sociais
no final dos anos 1960 e do seu desdobramento, ou seja, as derrotas do movimento operário e
do movimento estudantil (Viana, 2003; Viana, 2009a), é que há uma ofensiva burguesa no
O marxismo autêntico – expresso por Marx, Korsch, Pannekoek, etc. – n~o pode ser considerado “modernismo”,
a não ser no reino nebuloso da ideologia. No fundo, essa concepção é antimodernista, pois anticapitalista. Claro
que a confus~o é reforçada pelo pseudomarxismo, e n~o é difícil ver obras “marxistas” condenando o “pósmodernismo” para defender o “modernismo” e suas teses, o que significa, no fundo, defender algumas teses
modernistas ao invés de outras, mas que são dominantes. Nesse sentido, no caso da oposição binária entre duas
ideologias burguesas, os pseudomarxistas geralmente tomam partido de uma delas e afirmam que isso é
“marxismo” e, assim, além de revelar seu vínculo com as ideologias burguesas e seu caráter de classe nãoprolet|rio, prestam o serviço de defender concepções burguesas como “determinismo”, “iluminismo”,
“racionalismo” em contraposiç~o aos seus pares burgueses opostos, “indeterminismo”, “romantismo”,
“irracionalismo”.
3 Esse foi o movimento mais radical e significativo, mas as lutas sociais em outros países, como Alemanha e Itália,
também assumiram radicalidade e estavam no bojo da crise do regime de acumulação conjugado (intensivoextensivo) desse período. Outras lutas em diversos países, com maior ou menor radicalidade, também foram
derrotadas. Apesar das lutas ainda mantiverem certa radicalidade em alguns lugares, como na Itália, Portugal e a
revolução dos cravos, até chegar no caso da Polônia em 1980, já não era um processo que atingia o capitalismo
mundial.
2
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
148
Luta de Classes e Contemporaneidade
sentido de restaurar a estabilidade do capitalismo. No plano social geral, a Comissão Trilateral
foi a grande estratégia, tentando, no interior do regime de acumulação conjugado, resolver o
problema da crise. No plano ideológico, isso é realizado através da emergência do pósestruturalismo (e no plano da arte, do pós-vanguardismo, do qual não trataremos). Na esfera
acadêmica, novas ideologias começam a ser gestadas desde a derrota do Maio de 1968,
principalmente na França e, logo após, nos Estados Unidos e demais países europeus. Em
1969 surge, no plano da historiografia, a terceira geração da Escola dos Anales (Viana, 2007),
o conjunto de ideólogos estruturalistas começa a adotar novas ideologias em contraposição ao
estruturalismo que haviam defendido quando era moda4 (Foucault, Baudrillard, Derrida, etc.),
assim como outros e com o passar do tempo, nos anos 1980, há uma adesão ainda maior de
uma
diversidade
de
origens
intelectuais
(incluindo
ex-autonomistas,
anarquistas,
pseudomarxistas, etc.). O nome pós-estruturalista se justifica por vir depois do modismo
estruturalista e substituí-lo como ideologia dominante e, ao mesmo tempo, não ser um todo
homogêneo.
Isso nos leva a discutir a essência do pós-estruturalismo. Ao fazer parte da
contrarrevolução burguesa, ele se caracteriza por ser uma contrarrevolução intelectual
preventiva. Na verdade, os movimentos radicais dos anos 1960 (juntamente com os
reformistas) foram derrotados, mas ainda existiam indivíduos, ideias, grupos, que mantinham
a mesma posição. Da mesma forma, as condições de reprodução do capitalismo não eram
estáveis. Logo, era fundamental combater uma das determinações do processo de
radicalização das lutas nos anos 1960: a cultura contestadora da época (em suas diversas
formas). Assim, tanto as tendências relativamente críticas oriundas da Escola de Frankfurt,
quanto as concepções expressas em agrupamentos políticos e obras teóricas, tal como
Socialismo ou Barbárie, mas de forma mais radical e profunda na Internacional Situacionista,
até intelectuais isolados que realizam críticas à sociedade burguesa da época (Sartre,
O processo de hipermercantilização da cultura que ocorre a partir do regime de acumulação integral também é
uma das determinações do pós-estruturalismo: “o debate pós-moderno pode ser visto como um processo
intelectual-discursivo que, num só movimento, multiplica opções críticas e as aprisiona em formas reconhecíveis
e dissemin|veis, ou, como diz Dana Polan, de maneira ainda mais sombria, ‘estrutura intensamente o discurso
crítico como uma espécie de combinatoire mecanicista em que tudo é dado de antemão, em que não pode haver
prática, mas a interminável recombinação de peças fixas da máquina gerativa. Visão um tanto distinta, mais
próxima da ênfase proposta neste estudo, evidencia-se na descriç~o de John Rajchman do “mercado mundial de
ideias” que a teoria pós-moderna institui e do qual participa: ‘é como o Toyota do pensamento: produzido e
montado em v|rios lugares diferentes e vendido em toda parte” (Connor, 1992, p. 23-24).
4
149
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Lefebvre, Guérin, Gorz, etc.), havia um amplo espectro intelectual contestador (em alguns
casos revolucionário) que fazia parte de uma ampla cultura contestadora (a contracultura
sendo uma de suas manifestações). A contrarrevolução cultural preventiva visava superar
essa cultura contestadora, integrando temas e aspectos da cultura contestadora anterior
(Viana, 2009a; Viana, 2009b10), e criando um processo de despolitização, visando assim
retirar sua radicalidade. Essa despolitização foi realizada, principalmente, através da recusa
da totalidade (presente nas discussões dos situacionistas, Lefebvre, Sartre, etc.), isolando
fenômenos, lutas, etc.
Nesse contexto, emerge um conjunto de ideologias, a que chamamos pósestruturalismo. A dificuldade em definir o pós-estruturalismo reside, por um lado, na sua não
uniformidade5 e, por outro, em sua autoimagem ideológica. A sua autoimagem ideológica já foi
refutada (Viana, 2009a), resta então entender a possibilidade de definição de um conjunto de
ideologias que possuem diferenças, mas que cumprem o mesmo papel contrarrevolucionário,
pois é aí que podemos entender sua essência e, portanto, sua definição.
A
essência
do
pós-estruturalismo
é
a
contrarrevolução
intelectual.
Essa
contrarrevolução se fundamenta na autoimagem ideológica de ruptura com o modernismo, o
que realiza, em parte (com algumas tendências modernistas, tal como o estruturalismo, mas
ao mesmo tempo retoma elementos das abordagens aparentemente superadas), mas,
principalmente, com uma oposição frontal à cultura contestadora que esteve presente no
processo das lutas sociais da época, especialmente o marxismo. A ideia de abandono das
metanarrativas (em termos mais exatos, da categoria dialética da totalidade), defendida por
Lyotard e repetida dezena de vezes por outros ideólogos pós-estruturalistas, tal como a
condenação da teoria (Foucault, 1989; Castoriadis, 1987) não são apenas questões
metodológicas ou racionais, são questões políticas.
A recusa da totalidade é a porta de entrada para a despolitização das questões sociais e
do cotidiano. A recusa da teoria (ou da razão em geral) é outro elemento dessa despolitização.
A despolitização metodológica e intelectual – na qual o pesquisador, pensador, cientista,
filósofo, etc., deve abandonar a análise totalizante, é complementada pela despolitização
Em um dos melhores livros sobre a ideologia pós-estruturalista, é possível encontrar esse entendimento: “o
pós-modernismo constitui um fenômeno tão híbrido, que qualquer afirmação sobre um aspecto dele quase com
certeza n~o se aplicar| a outro” (Eagleton, 1998, p. 8). Contudo, se n~o houver algo essencial como a tudo que é
denominado como “pós-moderno”, ou melhor, pós-estruturalismo, então o plural deveria ser utilizado. Não é
nossa essa posição, como mostraremos a seguir.
5
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
150
Luta de Classes e Contemporaneidade
teórica ao pregar o abandono da teoria (por ser totalizante, como diria Foucault), que
interpretaria esta totalidade na realidade concreta. Contudo, embora haja uma recusa da
totalidade em geral, em algumas manifestações específicas o que ocorre é recusa da totalidade
numa perspectiva dialética, ou seja, da totalidade concreta (apresentando ou não uma
concepção totalizante, mesmo que metafísica). Essa concepção de totalidade, ao contrário das
concepções metafísicas e racionalistas (com a qual é muitas vezes confundida, seja por má fé
ou por ignorância) remete ao concreto e sua determinação fundamental, bem como suas
múltiplas determinações.
Isso, por sua vez, gera a recusa da revolução proletária e da transformação do modo de
produção capitalista, pois ou o capitalismo já foi superado pela sociedade pós-moderna ou
não é necessário nenhuma transformação radical da sociedade (pós-estruturalismo
conservador) ou a transformaç~o é proporcionada por múltiplos “sujeitos”, pulverizando as
lutas e ao mesmo tempo retirando sua articulação com o movimento operário (pósestruturalismo crítico), gerando um microrreformismo e “políticas de identidade”. Por outro
lado, alguns buscam unir a concepção pós-estruturalista e o marxismo (como é o caso de Toni
Negri e seu uso ideológico do pensamento de Marx ao lado de Foucault, Daniel Bell e outros
ideólogos, bem como elogio do trabalho imaterial em substituição ao trabalho material, que
seria do proletariado), criando um pós-estruturalismo eclético.
A recusa da totalidade concreta significa recusa da revolução social, transformação
social total. Significa, também, recusa de todos os projetos revolucionários (marxismo e
anarquismo revolucionários). Desta forma, o pós-estruturalismo é uma ideologia
contrarrevolucionária, substituindo o projeto revolucionário por uma alternativa nãorevolucionária, seja pela apologia da sociedade atual, por uma tese evolucionista, por um
programa reformista (principalmente microrreformista) ou por considerar desnecessária
qualquer transformação social. No sentido de sustentar tal posicionamento, apela para a
negação da totalidade, da razão, da teoria, do proletariado como sujeito revolucionário, etc. e
afirmação do irracionalismo, relativismo, romantismo, culturalismo, etc.
Assim, trata-se de um amplo espectro de ideologias que tem no seu caráter
contrarrevolucionário sua unidade essencial e que assume variações, criando tendências
distintas no seu interior, tais como o pós-estruturalismo conservador, o pós-estruturalismo
crítico e pós-estruturalismo eclético (Viana, 2009a). O pós-estruturalismo conservador de
151
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Richard Rorty, Jean Baudrillard, Alain Touraine, expressa uma vertente que recusa qualquer
compromisso com a crítica da realidade contemporânea e serve apenas para eternos
discursos acadêmicos vazios de significado e recheados de “códigos de n~o-leitura do real”6,
se tornaram decalque do capital. O pós-estruturalismo crítico de Foucault, Deleuze, Guattari,
entre outros, por sua vez, apresenta uma crítica da sociedade contemporânea que se revela
uma pseudocrítica, pelo menos no sentido dialético da palavra, pois não há rupturas e nem
transformaç~o radical, superaç~o, o novo fica ausente e assim temos o “eterno retorno do
mesmo”. O seu papel é mais nefasto, pois seu car|ter aparentemente crítico – e realmente faz
críticas localizadas – apontam para a fragmentação das lutas e recusa da constituição de uma
nova cultura contestadora e totalizante que permitiria uma articulação das lutas e avanço no
sentido da transformação social. Daí sua maior influência em certos setores da sociedade e
nos movimentos sociais, em tendências distintas, apontando para um microrreformismo, lutas
localizadas, políticas de identidade, uma reprodução do mundo atual mudando a aparência7
ou pequenos detalhes ou, ainda, com pequenas reformas que beneficiam setores privilegiados
de grupos oprimidos que assim são cooptados e fazem o discurso pós-estruturalista e
microrreformista. O pós-estruturalismo eclético de Negri, Castoriadis, e diversos outros,
realiza um processo de mesclar teses e concepções pós-estruturalistas com concepções
revolucionárias, como o marxismo e o anarquismo revolucionários, retirando-lhe o caráter
Os chamados “códigos de leitura” seriam produtos das ciências humanas, onde cada ciência particular cria o seu
próprio código para ler o real. O pós-estruturalismo conservador, no entanto, cria um código que produz uma
ininteligibilidade do real, através das especulações metafísicas que beiram ao absurdo, apesar das diferenças
internas em seus representantes (isso é mais aplicável a Baudrillard e Touraine, por exemplo).
7 Essa mudança de aparência sem mudar a essência ou a existência é uma mera mudança discursiva que pensa
que assim muda as relações sociais reais, concretas. Um exemplo disso é que – ao reconhecer a opressão
feminina e seus vínculos linguísticos, o que já havia sido feito muito antes do pós-estruturalismo – alguns
pensam que trocar a letra “o” pela arroba (@) abole tal opress~o ou que significa sua superaç~o parcial. Ledo
engano, pois tanto faz isso, já que a gênese e essência do processo foram produtos de um longo processo
histórico e vinculado a relações sociais concretas que a mera troca de nomes ou aspectos da linguagem não
altera, pelo contrário, reforçam a opressão ao ilusoriamente parecer que elas foram superadas (total ou
parcialmente), já que o idioma e seu sexismo, produto histórico social, não foram alterados. Obviamente que
ninguém ainda propôs trocar o uso do sobrenome pelo nome, já que no primeiro não há identificação de sexo e
reproduz uma manifestação da autoridade masculina derivada do processo da herança e transmissão da
propriedade privada, aspecto fundamental do direito burguês. Obviamente que os marxistas se tornariam
“karlistas” e os weberianos seriam doravante chamados de “maxistas”, e nada mudaria, a n~o ser que a relaç~o
real de herança e propriedade fosse superada (e junto com ela os “karlistas/marxistas”,
“wladimiristas/leninistas”. “davidistas/durkheimianos”, “mikhailistas/bakuninistas”, “adolfistas/hitleristas”,
“rosistas/luxemburguistas” e milhões de outros “istas”, j| que a divis~o de classes e suas divisões e subdivisões
intelectuais deixariam de existir). Na verdade, são mudanças superficiais e artificiais que servem apenas para
tornar a opressão mais confortável e menos visível, mas não menos real. Somente mudanças profundas e reais no
conjunto das relações sociais permitiriam, por exemplo, uma mutação linguística que tornará possível uma
transformação mais radical ao invés do paliativo da arroba.
6
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
152
Luta de Classes e Contemporaneidade
revolucionário. Essa forma de pós-estruturalismo funciona como a água quando atinge o fogo.
O resultado disso é o mesmo do microrreformismo ou outra forma de reformismo, ou então, a
formação de uma concepção pseudorrevolucionária que troca a análise da realidade concreta
por abstrações metafísicas. Nesse caso, temos uma proposta de transformação social que não
apresenta nada de concreto (nem tendências, nem agentes – seja o proletariado ou qualquer
outro – nem forças sociais ou políticas, nem projetos, etc.), e que portanto não gera ou
provoca nenhuma prática ou ação, sendo, pois, mero mecanismo discursivo desmobilizador e
aparentemente revolucionário. Eis o caso de Castoriadis:
Enquanto instituinte e enquanto instituída, a sociedade é intrinsecamente história –
ou seja, autoalteração. A sociedade instituída não se opõe à sociedade instituinte como
um produto morto a uma atividade que o originou; ela representa a
fixidez/estabilidade relativa e transitória das formas-figuras instituídas em e pelas
quais somente o imaginário radical pode ser e se fazer ser como social-histórico. A
autoalteração perpétua da sociedade é seu próprio ser, que se manifesta pela
colocação formas-figuras relativamente fixas e estáveis e pela explosão dessas formasfiguras que só pode ser sempre posição-criação de outras formas-figuras. Cada
sociedade faz ser também seu próprio modo de autoalteração, que podemos também
denominar sua temporalidade – isto é, se faz ser também como modo de ser. A história
é gênese ontológica não como produção de diferentes instâncias da essência
sociedade, mas como criação em e por cada sociedade, de um outro tipo (forma-figura
– aspecto-sentido: eidos) do ser-sociedade, que é ao mesmo tempo criação de tipos
novos de entidades social-históricas (objetos, indivíduos, ideias, instituições, etc.) em
todos os níveis e em níveis que são eles-próprios estabelecidos-criados pela sociedade
e por tal sociedade” (Castoriadis, 1986, p. 416).
Desta forma, o abandono do sujeito revolucionário8 significa o abandono da revolução,
que se torna, nesse caso, um processo sem sujeito, puramente “imagin|rio”, para usar um
trocadilho. O revolucionarismo aparente presente nos pós-estruturalismo eclético, bem como
em sua versão crítica, é apenas uma forma de canalizar o descontentamento de setores
intelectualizados (que possuem influência social, além da sua própria ação que é afetada por
tais ideologias) e de outros setores da população, substituindo uma práxis revolucionária por
um não-agir, ou por um reboquismo ou microrreformismo que, nas relações sociais concretas,
reforçam tais relações ao invés de miná-las. O pós-estruturalismo conservador faz isso de bom
grado e é relativamente fácil perceber isso. O que resta saber é que as metamorfoses do pósestruturalismo e seus vínculos com o poder e com o capitalismo, desde os interesses pessoais
envolvidos nos meios acadêmicos, mercado editorial e instituições (governos, universidades,
“... o pós-modernismo não é liberal nem conservador, mas libertário, embora estranhamente (...) de um
libertarismo sem um sujeito para se libertar” (Eagleton, 1998, p. 117).
8
153
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
etc.)9 até a sobrevivência ideológica e os valores dominantes, se entrelaçam e reforçam
reciprocamente, criando uma teia que envolve qualquer tentativa de sair do mundo
concentracionário do capitalismo a partir de uma concepção realmente revolucionária.
Em síntese, a essência do pós-estruturalismo – que perpassa todas as suas tendências –
é ser uma alternativa intelectual contrarrevolucionária que busca superar ou integrar a teoria
da revolução social expressa pelo marxismo através da dissimulação expressa em sua
autoimagem ideológica. A sua grande ambição é justamente superar ou integrar o marxismo,
seja criticando-o seja englobando-o num discurso ideológico que lhe faz perder a radicalidade
revolucion|ria. Por isso é “pós” e o “estruturalismo” é apenas uma delimitaç~o temporal por
ter sido a ideologia substituta da anterior, cujo alvo fundamental é outro. A ideologia
acadêmica dominante que vem após o estruturalismo (e não por ter nascido para combater
esta, apenas a substitui, o seu combate verdadeiro e fundamental é com o marxismo autêntico,
que confunde com o pseudomarxismo). Em outras palavras, o pós-estruturalismo é
essencialmente uma ideologia homotópica10 dissimuladamente superadora do que é moderno
(seja do pensamento moderno ou da sociedade moderna, ou ambos) e principalmente da
crítica da modernidade, criando uma autoimagem ideológica, cuja tarefa é realizar uma
contrarrevolução cultural preventiva. Isso é comum ao conjunto de ideologias pósestruturalistas que usam os mais variados artifícios ideológicos para efetivar sua dissimulação
e projeto contrarrevolucionário, com destaque para a recusa da totalidade, a crítica da razão e
da teoria, etc.
O pós-estruturalismo, enquanto manifestação ideológica do capitalismo durante o
regime de acumulação integral, é algo tão limitado e passageiro quanto o capitalismo e que
O caso de Foucault é exemplar nesse sentido (Mandosio, 2011).
A palavra homotopia existe em topologia, significando uma deformação de uma aplicação entre espaços
topológicos. No sentido que aqui utilizamos é um neologismo, sendo que homotopia é não sair do mesmo lugar,
uma concepção que nega a transformação social radical, a revolução social, a possibilidade de superação do
capitalismo. Sem dúvida, nesse sentido, existem outras homotopias e todas elas são conservadoras e ideológicas,
ou seja, são reprodutoras do existente e sistemas de pensamento ilusórios. O que distingue o pós-estruturalismo
é sua dissimulação de superação do mundo moderno e da crítica da modernidade (confundido com o discurso da
modernidade), isto é, se apresentar como um pensamento “pós-moderno” (ou afirmar a existência de uma
sociedade pós-moderna), ou então defender que a realiza uma crítica da modernidade enquanto, na verdade,
reproduz e defende essa mesma sociedade ou, ainda, pode até defender uma transformação social, que, no fundo,
não transforma nada. O que difere o pós-estruturalismo de outras ideologias homotópicas é essa dissimulação,
tentando convencer que é algo que não é. Isso é derivado de seu objetivo de produzir uma contrarrevolução
cultural preventiva, a tarefa posta para as ideologias da classe dominante após a crise do regime de acumulação
conjugado e após a emergência de um novo regime de acumulação que aumenta a exploração, a miséria e os
conflitos sociais.
9
10
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
154
Luta de Classes e Contemporaneidade
não o ultrapassa no discurso por não pretender ultrapassá-lo na prática. É algo datado,
limitado, conservador, e medíocre, pois não apresenta nenhuma grande contribuição para
pensar a sociedade, o capitalismo, as lutas de classes, a cultura, etc. Apenas reproduz
ideologias misturadas, faz abstrações metafísicas desligadas da realidade concreta, faz
proliferar discursos, termos, concepções que não são expressões da realidade e por isso não
possuem capacidade explicativa sobre a realidade.
Referências
ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999.
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. 2ª edição, Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986.
CASTORIADIS, Cornelius. As Encruzilhadas do Labirinto. Vol. 2. Os Domínios do Homem. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1987.
CONNOR, Steven. Cultura Pós-Moderna. Introdução às Teorias do Contemporâneo. São Paulo:
Edições Loyola, 1992.
EAGLETON, Terry. As Ilusões do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 8ª edição, Rio de Janeiro, Graal, 1989.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
HUYSSEN, Andreas. Mapeando o Pós-Moderno. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque (org.). PósModernismo e Política. 2ª edição, Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
MANDOSIO, Jean-Marc. A Longevidade de uma Impostura: Michel Foucault. Rio de Janeiro:
Achiamé, 2011.
MARCUSE, Herbert. Contra-Revolução e Revolta. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
VIANA, Nildo. “Historiografia, Totalidade e Fragmentaç~o”. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v.
17, n. 5, p. 865-879, 2007.
VIANA, Nildo. “Modernidade e Pós-Modernidade”. Revista Enfrentamento. Ano 04, num. 06,
Jan./Jun. de 2009b.
VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no
Capitalismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo, Idéias e Letras, 2009a.
155
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Cultura e combatividade nos artigos de Leandro Konder no Jornal do
Brasil (2002-2009)
João Paulo de Oliveira Moreira11
Resumo: Esta comunicação tem a proposta de fazer uma breve análise de alguns dos escritos
sobre cultura do filósofo Leandro Konder, presente em suas colunas (Caderno “B” e Idéias e
Livros) no Jornal do Brasil durante os anos de 2002-2009. Assim, as temáticas abordadas no
jornal serão associadas com algumas outras obras publicadas pelo autor, bem como com a sua
trajetória militante e combativa. O período estudado nos permite uma ampla reflexão acerca
desta militância e do engajamento do filósofo marxista, que abordou a cultura na sua
totalidade e de maneira a interpretá-la como uma forma de luta. Suas idéias foram veiculadas
em um jornal de ampla circulação, com o traço marcante de cotejar as diferentes temáticas à
luz do marxismo.
Palavras-Chave: Cultura, Marxismo, Engajamento e Jornal do Brasil.
1. Cultura e Marxismo:
A Cultura é um tema muito caro a literatura marxista, haja vista as inúmeras acusações
por parte dos seus críticos acerca do car|ter “economicista” da teoria da pr|xis, supostamente
deixando para uma esfera super-estrutural e de menor importância as manifestações
culturais.
A despeito de Marx e Engels de fato terem tido preocupações com o desenvolvimento
da arte e da cultura, é no decorrer do século XX que os estudos culturais se alavancam à luz do
materialismo histórico.
Nomes como Gramsci, Walter Benjamin, Edward Palmer Thompson, Raymond
Williams, entre outros, desenvolveram com afinco as noções de um materialismo cultural,
privilegiando a Cultura enquanto “relaç~o” com o restante da sociedade,ou seja, foi promovida
uma junção entre a infra-estrutura e a super-estrutura para os autores supra-citados.
Segundo o marxista galês Raymond Williams, a elaboração de um materialismo
cultural enquanto teoria marxista deve buscar as especificidades da produção cultural e
material de um dado tempo (Williams, p.12, 1977). A cultura para o autor é histórica, ou seja,
interage com a experiência e as transformações dos indivíduos.
11
Mestrando em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
156
Luta de Classes e Contemporaneidade
Nesse caso, a categoria trabalhada é entendida como um processo geral, que deve
compreender os “modos de vida em sua totalidade” e criando as suas próprias relações,
portanto cultura e vida social material estão interligadas.
Em sua obra “Política do Modernismo” (2011), Williams contextualiza as relações de
produção das quais participavam os artistas estudados (no caso da sua obra, os modernistas).
Contudo, é em “Cultura e Sociedade” (1958) que o autor defende que a cultura,
principalmente na sua forma literária, não paira acima dos conflitos sociais, pelo contrário, ela
está inserida nos mesmos, organizando simbolicamente os significados e os valores de uma
determinada sociedade, devendo assim ser interpretada em sua relação com os modos de
produção.
Outro marxista fundamental para compreendermos a noção estudada é Edward
Palmer Thompson, propondo que “cada teoria da cultura deva incluir o conceito de interaç~o
dialética entre cultura e algo que n~o é cultura” (Mattos, 2006, disponível em:
www.unicamp.br/cemarx), o que foi definido por Thompson como “experiência.
Já o marxista sardo Antonio Gramsci, pensando no caráter organizacional da cultura,
propõe que a mesma pode ter uma função educacional-nacional (Gramsci, 2006, p.40),
elaborando os sentimentos populares. Gramsci enxergava a cultura como uma forma orgânica
de junção do povo com os produtores de arte e, fundamentalmente propunha que o povo
produzisse uma “nova cultura”.
A noção de cultura, na concepção dos autores supra-citados, se aproxima do que foi
praticado por Leandro Konder em seus artigos no Jornal do Brasil (2002-2009), em que o
filósofo brasileiro, não apenas avaliava obras ou decidia quais deveriam ser disseminadas,mas
sim analisava como as mesmas interpretavam a realidade sócio-histórica em que estavam
imersas e como interagiam no seio da produção cultural geral.
2. Apresentação do tema de pesquisa:
Leandro Augusto Marques Coelho Konder nasceu em Petrópolis (RJ), em 1936.
Filho de um importante dirigente comunista brasileiro, o medico sanitarista Valério
Konder, aderiu muito cedo ao comunismo como escolha política e ao marxismo como seu
paradigma teórico, que o orientou e orienta até hoje na sua produção.
157
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Em 1958, formou-se em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
atuando, assim, como advogado criminalista e trabalhista entre 1958-196412, e depois como
revisor, junto com Ênio Silveira, na editora Civilização Brasileira, até 1972, ano em que partiu
para o exílio.
Foi morar na Alemanha, onde trabalhou na Universidade de Bonn, e retornou ao Brasil
em 1978, doutorando-se em filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em
1986. Foi professor do Departamento de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF)
e da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro13.
Segundo Carlos Nelson Coutinho14, a obra de Leandro Konder constitui um dos
capítulos mais significativos da história do marxismo no Brasil. Sua obra é diversificada,
tratando de temas teoricamente difíceis.
Devemos a Konder, a apresentação de Lukács e Gramsci ao público brasileiro, com a
tradução da coletânea Ensaios sobre literatura, do marxista húngaro e dos Cadernos do Cárcere
do marxista sardo15. Se hoje é comum percebermos tais autores nas estantes das livrarias e
em citações de trabalhos acadêmicos, nos anos 1960-1970 era algo extremamente radical e,
isso segundo Coutinho, “representou uma inflex~o no pensamento marxista brasileiro” 16.
O filósofo possui mais de 30 livros editados, sendo a maioria ligada a temas
considerados bastante heterodoxos no seio da crítica marxista, sempre evitando o
esquematismo doutrinário e abstrato de seu tempo7. Neste caso, também seria importante
comentar sobre a atividade político-partidária do filósofo, tanto no PCB, PT e atualmente no
PSOL, bem como sua atuação como professor.
Entrevista concedida a revista eletrônica humanas do IFCS, ver: http://www.ifcs.ufrj.br/humanas/0007.htm
acessado em 10/12/2011
13 Referências retiradas do Currículo Lattes do filósofo. Ver: < http://lattes.cnpq.br/2417231282295802> acessado em
12
10/12/2011
14Coutinho,
Carlos Nelson. Um filósofo democrático, 1998, In: www.acessa.net acessado em 10/12/2011
Para melhor leitura sobre a primeira edição da obra de Gramsci no Brasil, ver: Coutinho, Carlos Nelson.
“Introduç~o”. In: Gramsci, Antonio. Cadernos do cárcere. V.1, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 2006,
p.32-38.
16 Idem, ibidem.
7 Coutinho,Carlos Nelson. Um filósofo democrático, 1998. In: www.acessa.net acessado em 10/12/2011
8 Aqui se entende “Hegemonia”, como uma operaç~o em que as atividades e iniciativas de uma ampla rede de
organizações culturais, movimentos políticos e instituições educacionais, difundem suas concepções de mundo e
seus valores capilarmente pela sociedade, sendo assim uma relação educacional. Ver: Buttigieg,Joseph.
“Educaç~o e Hegemonia”, p.39-49, In: Carlos Nelson Coutinho (Org.). Ler Gramsci, entender a realidade, Editora
Civilização Brasileira, 2003.
15
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
158
Luta de Classes e Contemporaneidade
Ciente de que a batalha das idéias desempenha papel fundamental na disputa pela
hegemonia8, Konder sempre buscou conciliar suas reflexões acadêmicas com a intervenção
em jornais e revistas de maior circulação, conferindo, assim, maior dimensão política às suas
atividades, bem como ao próprio marxismo.
O aspecto da sua produção cultural e política que será ressaltado na presente
comunicação é, justamente, sua atividade como jornalista, que se inicia nos semanários
comunistas Novos Rumos e Folha da Semana (órgãos do PCB) nos anos 60, passando pelo
periódico Voz Operária, nos anos 70, os jornais Correio Braziliense, O Globo e o Diário de
Goiânia nos anos 80 e 90 e, finalmente, pelo Jornal do Brasil (cujos artigos serão objeto deste
estudo) entre os anos de 2002 e 2009.
A escolha das colunas no Jornal do Brasil se deve a três motivos fundamentais: o
primeiro, é a quantidade enorme de artigos escritos pelo autor no decorrer destes 7 anos
como articulista, cerca de 150 artigos9, em colunas que se iniciam semanais, tornando-se
quinzenais e por fim mensais; o segundo motivo diz respeito à grande circulação do jornal
que, no período citado, representava um importante formador de opiniões; e o terceiro
motivo refere-se às importantes temáticas abordadas por Konder, como a cultura e os
assuntos que estavam na ordem do dia como as eleições de 2002, 2004, 2006 e 2008 que
foram comentadas pelo filósofo, sem omissão e sem poupar críticas ao seu antigo partido,
então no governo, o PT.
Sua coluna fixa começa no Caderno B em 22/06/2002, com o artigo intitulado “O ´risco’
Estados Unidos”, em que, combatendo com bom humor as críticas { possível eleiç~o de Lula, o
filósofo apresenta como pobres intelectualmente, determinadas personalidades políticas no
decurso da história, como Tatcher, Reagan, Bush (pai) e Bush (filho), rechaçando, assim, as
críticas dos conservadores no que tange à falta de formação formal de Luis Inácio.
Ao analisar os artigos referentes à Cultura, pode-se propor a hipótese de que a mesma,
para o autor, aprofunda o diálogo com os diferentes e nos permite conhecermo-nos melhor,
ou seja, nos dá um sentido de alteridade e aprofunda a tolerância, tal como o marxista sardo
Antonio Gramsci nos propôs:
9O
acervo do Jornal do Brasil se encontra disponibilizado em micro-filmes na Biblioteca Nacional, local onde foi
feita esta pesquisa.
159
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Os componentes da coletividade devem, portanto, colocar-se de acordo entre si,
discutir entre si. Por meio da discussão, deve acontecer uma fusão das almas e das
vontades. Cada elemento de verdade que cada um pode trazer deve sintetizar-se na
verdade complexa e deve ser a expressão integral da razão. Para que isso aconteça,
para que a discussão seja plena e sincera, é necessária a máxima tolerância. Todos
devem estar convencidos de que aquela é a verdade e que, portanto, é preciso realizála. No momento da ação todos devem ser concordes e solidários, porque no fluir da
discussão foi se formando um acordo tácito e todos se tornaram responsáveis pelo
insucesso. Só se pode ser intransigente na ação se na discussão se foi tolerante e os
mais preparados ajudaram os menos preparados a acolher a verdade, e as
experiências individuais foram colocadas em comum, e todos os aspectos do problema
foram
examinados,
e
nenhuma
ilus~o
foi
criada...”
(Gramsci,
Antonio.
“Intransigência/toler}ncia. Intoler}ncia/transigência. Il Grido del Popolo, Itália, 8 de
dezembro de 1917, na rubrica “Definizioni” Apud: www.insrolux.org)
Nesse caso, um artigo que reflete essa hipótese foi A importância do chorinho, de
29/03/2003, em que não é apenas discutida a qualidade musical deste importante gênero
para a cultura popular brasileira, mas também um tema muito caro aos marxistas, que é a
associação entre o universal e a singularidade. Konder nos diz:
Se a minha criação artística chega ao outro, eu consegui transformar a minha
experiência em arte. Se n~o chega (se n~o se “universaliza”), é sinal de que eu talvez
tenha falhado (...) O chorinho nos confirma na nossa convicção de que é assumindo a
síntese peculiar das nossas culturas (e nunca as renegando) que podemos crescer
culturalmente. (Konder, Leandro. “A import}ncia do chorinho”, Jornal do Brasil,
29/03/2003)
A cultura, segundo o pensador, incorpora as dimensões essenciais das relações
humanas, de modo que a ela não faltaria às dimensões do conflito, o que nos possibilitaria
compreender o outro e fazer-se compreender em uma batalha que não termina nunca18. Esta
questão realmente é importante nos seus artigos, pois com a atual lógica cultural do
capitalismo, torna-se cada vez mais difícil o autêntico diálogo e conseqüentemente as
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
160
Luta de Classes e Contemporaneidade
transformações, a importância da troca de conhecimento fica clara quando o autor afirma que
“É o di|logo, o interc}mbio, a necessidade de entender os outros e de se fazer entender por
eles que abre a cabeça dos indivíduos” (Konder, Leandro. “Um toque de brasilidade nas
traduções”, Caderno B, Jornal do Brasil, 2004.
Konder colocou sua erudição a serviço da discussão de grandes temas durante o
período no qual escreveu em que, na maioria das vezes, propunha o diálogo, a tolerância, a
busca pelo autoconhecimento, o bom-humor, sempre com combatividade e alto teor de
indignação frente às mazelas.
3. Discussão Teórica:
O presente trabalho busca inserir-se no debate acerca da vasta obra do filósofo
Leandro Konder e do tema da cultura tantas vezes por ele abordado, bem como por outros
pensadores da vertente marxista. Um primeiro passo dado, no sentido de discutir sua obra, foi
à realização da VI Jornada de Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista em que o
autor foi homenageado em 1998.
Na jornada citada, seu amigo Carlos Nelson Coutinho, ao fazer um balanço da atividade
intelectual, política, jornalística e engajada de Konder, o define como um “filósofo
democr|tico”, ou seja, um homem que “socializou verdades j| descobertas”, auxiliando nas
bases de transformação do real.
O conceito de “filósofo democr|tico” se enquadra na definiç~o de “engajamento”,
trabalhada por Eric Hobsbawm em Sobre História, onde a militância e o engajamento
aparecem como um mecanismo de gerar novas idéias, perguntas e desafios.
Nesse caso, o argumento utilizado pelo historiador em favor do engajamento é o de que
o pesquisador deve ter como principais objetivos fazer a ciência avançar, mesmo que para isto
custe fazer descobertas que sejam benéficas paras aqueles a quem se deseja combater. Para
Hobsbawm, o engajamento deve respeitar os padrões de plausibilidade da ciência, e isso
Leandro Konder fez sem ser pernóstico durante sua atividade jornalística.
3. Metodologia utilizada na pesquisa:
O método para a análise do engajamento e da abordagem da cultura nos artigos de
Leandro Konder partiu primeiro do estudo de todos os seus artigos no Jornal do Brasil, entre
161
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
os anos de 2002-2009 (O periódico encontra-se disponível em micro-filmes na Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, local onde foi feita a pesquisa), para então depois estudar
especificamente os temas: humor e cultura, haja vista a recorrência dos mesmos.
Isso porque se pensa que sua obra deva ser compreendida dentro das relações sociais
em que o mesmo vivia na época das suas colunas, chegando-se assim a uma idéia total da sua
atuação como jornalista.
A sequência proposta para o estudo pode ser resumida da seguinte forma: estudo da
sua vida e obra, estudo do seu papel engajado na batalha das idéias, estudo da sua abordagem
acerca da cultura à luz do marxismo e, por fim, o estudo da relação entre o filósofo e os seus
principais interlocutores.
4. Hipóteses:
 A concepção de cultura para o autor é a de que a mesma aprofunda o diálogo com os
diferentes e nos permite conhecermo-nos melhor, ou seja, nos dá um sentido de
alteridade e aprofunda a tolerância tal como o marxista sardo Antonio Gramsci nos
propôs.
 O engajamento de Leandro Konder se enquadra na definição trabalhada por Eric
Hobsbawm em Sobre História, onde a militância e o engajamento aparecem como um
mecanismo de gerar novas idéias, perguntas e desafios.
Referências
ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradução de Guido
Antonio de Almeida. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985
BAKTHIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François
Rabelais. São Paulo, Editora Hucitec, 2000
BUTTIGIEG, Joseph. “Educaç~o e Hegemonia”. In: Carlos Nelson Coutinho (Org.). Ler Gramsci,
entender a realidade. Editora Civilização Brasileira, 2003.
CAMARGO, Sílvio César. “Adorno e pós-modernidade em Fredric Jameson”, Revista Barbarói.
Santa Cruz do Sul, nº 30, jan/jul 2009.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
162
Luta de Classes e Contemporaneidade
COUTINHO, Carlos Nelson. “Um filósofo democr|tico”, 1998. In: www.acessa.net acessado em
10/12/2011.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. v.I, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira,
2006.
________________ Il Grido del Popolo, 8 de dezembro de 1917, na rubrica “Definizioni”
APUD: www.insrolux.org acessado em 10/12/2011.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1998.
KONDER, Leandro. A Questão da Ideologia. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.
________________ Barão de Itararé, o humorista da democracia, Editora Brasiliense, 1982.
________________ O que é a dialética?, Editora Brasiliense, 1998.
________________ “O ´risco’ Estados Unidos”, Jornal do Brasil, Caderno B, 22/06/2002.
________________ “O ´Curriculo mortis’”, Jornal do Brasil, Caderno B, 13/07/2002.
________________ “O humor e a Cultura”, Jornal do Brasil, Caderno B, 14/09/2002.
________________ “A import}ncia do chorinho”, Jornal do Brasil, Caderno “B” 29/03/2003.
________________ “Linguagem e ideal”, Idéias e Livros, em 17/05/2008, In: Jornal do Brasil
________________ “Um toque de brasilidade nas traduções”, Jornal do Brasil, Caderno “B”,
03/04/2004.
_______________ Entrevista concedida { revista eletrônica “Humanas” do Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ (IFCS), ver: http://www.ifcs.ufrj.br/humanas/0007.htm
acessado em 10/12/2011.
1958.
LUKÁCS, Georg. Ensaios sobre literatura. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira,
MATTOS, Marcelo Badaró de. E.P.Thompson no Brasil. www.unicamp.br/cemarx
WILLIAMS, Raymond. Cultura e Sociedade. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1958
____________________Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro, Editora Zahar, 1977
____________________Política do Modernismo. São Paulo, Editora UNESP, 2011
163
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Lukács e o Expressionismo: apontamentos sobre alguns problemas
de estética marxista
Alberto Luis Cordeiro de Farias1
Resumo: O propósito do presente trabalho é discutir alguns problemas de estética marxista a
partir das elaborações de George Lukács, marxista húngaro que se ocupou extensamente de
questões relativas { estética, no contexto do chamado “debate sobre o Expressionismo”, que
nos anos 30 do século passado envolveu um grupo de emigrados alemães – dentre eles
Lukács, Brecht, Benjamin e Bloch – em um dos mais profícuos debates culturais do século. O
trabalho se ocupa fundamentalmente de alguns aspectos da crítica de Lukács ao movimento
expressionista que considero relevantes para a reflexão sobre uma estética marxista,
principalmente aqueles presentes no artigo “Trata-se do Realismo”. A primeira parte do
trabalho é uma contextualização histórica do tema, com o fito de explicitar os elementos
políticos que orientam a estética em cada situação ou caso discutido. Em um segundo
momento aborda os pressupostos estético-filosóficos imediatamente antecedentes às críticas
de Lukács ao movimento expressionista. Por fim, proceder-se-a a uma análise crítica das
posições do referido autor no debate sobre o expressionismo, concentrado a atenção nas
formulações lukacsianas de decadência artística e social e na sua identificação entre arte e
realismo. Aponto com isso, outra via de solução para problemas da estética marxista como a
essência do estético, as relações entre arte e realidade e a perdurabilidade da obra artística.
Palavras-Chaves: Marxismo. Estética. Expressionismo. Lukács.
Introdução
Os problemas estéticos estiveram nas décadas de 30 e 40 do século passado, no centro
dos debates travados entre os marxistas ocidentais. A complexidade das questões suscitadas,
da natureza do estético às determinações da relação entre arte e realidade, gerou um
caleidoscópio de proposições, uma pluralidade de posições estéticas dentro do próprio
marxismo. Um tema, em particular, mobilizou os críticos marxistas: o das vanguardas
artísticas das primeiras décadas do século XX, em especial o expressionismo.
O expressionismo foi um movimento de vanguarda, o primeiro a usar a deformação da
realidade para dar vazão á subjetividade do artista. Surgiu como um protesto contra o
impressionismo (e a tendência naturalista cada vez mais forte de seus principais expoentes
Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bolsista do Programa de
Educação Tutorial (PET) de Ciências Sociais. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Marxista (GEPMARX) da
UFPE.
1
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
164
Luta de Classes e Contemporaneidade
em fins do século XIX) e apoiado em tendências filosóficas subjetivistas e relativistas2.
Desenvolveu-se, sobretudo na Alemanha, de 1910 ao fim da Primeira Guerra Mundial, em
campos tão diversos quanto a música, a pintura, a literatura e o cinema. Influenciou os
desenvolvimentos posteriores das vanguardas artísticas do século XX, do Surrealismo ao
Cubismo.
As inovações que o movimento promoveu no campo formal, principalmente na pintura
e no cinema, configuraram uma verdadeira ruptura com os padrões estéticos vigentes desde a
época renascentista. Todas as mudanças no campo da arte até então haviam preservado a
tradição do naturalismo, deixando-a basicamente intacta como afirma Arnold Hauser:
[...] Sempre houve uma oscilação entre formalismo e não formalismo, mas a função da
arte como verdade com relação à vida e fidelidade à natureza nunca havia sido posta
em questão em princípio desde a Idade Média. [...] O Impressionismo, foi o clímax e o
término de um desenvolvimento que durou mais de quatrocentos anos [...] (HAUSER,
1971, p. 41).
O expressionismo teve seu clímax na Alemanha na segunda década do século,
alcançando a República de Weimar. A ascensão do Nacional-Socialismo pôs fim ao movimento.
Em meados da década de 30, ressurge no contexto das discussões culturais e políticas da
resistência antifascista, tomando corpo, sobretudo nas páginas da revista Das Wort3 de
emigrados alemães, onde se refletia sobre a natureza do movimento fundante das vanguardas
artísticas do século XX.
Uma das vozes mais obstinadas no combate aos padrões estéticos e aos fundamentos
filosóficos em que se inspirava o movimento expressionista foi a do húngaro George Lukács.
Contra ele, mas com leituras diversas do fenômeno, estavam Bertolt Brecht, Walter Benjamin
e Ernest Bloch4. Lukács inaugurou sua participação no debate em 1934 com o artigo
“Grandeza e decadência do Expressionismo”, no que foi contestado por Bloch em “Discussões
É nesse contexto que surgem a teoria da relatividade de Einstein, a Psicanálise de Freud e em que revigoram as
filosofias niilistas de Shopenhauer e Nietzsche. Essas teorias científicas e filosóficas levaram por parte do artista
a um questionamento da objetividade do mundo e da crença na sua perfeita apreensão pelo sujeito.
3 Editada em Moscou de 1936 a 1939, revista de intelectuais alemães exilados.
4 Direta ou indiretamente ainda participaram da polêmica Hans Eisler e Ana Sebhers. Brecht não participou
diretamente do debate, pois temia que o mesmo minasse a unidade das forças antifascistas. Por isso escreveu
sem publicar entre 1934-41 mais de vinte artigos sobre o tema que só posteriormente vieram a se tornar
públicos.
2
165
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
sobre o Expressionismo”, ao qual Luk|cs treplicou com o artigo “Trata-se do Realismo”
(1938).
O trabalho põe em questão alguns pressupostos lukacsianos nesse debate,
principalmente aqueles que fundamentam o artigo “Trata-se do Realismo”, buscando quando
necessário articulá-los com suas concepções estéticas mais gerais.
Metodologia
As posições de Lukács no campo da Estética constituem uma das mais ricas
contribuições individuais do século XX advindas do campo do marxismo. Dadas a
complexidade e as dimensões enciclopédicas dos seus escritos nesse âmbito - que remontam a
sua condição de intelectual pré-marxista da década de 10 e se desenvolvem num contínuo
repensar-se até a sua morte nos anos 70 - me limitarei aqui a uma discussão das suas posições
frente ao expressionismo (que podem ser, com alguma cautela, generalizadas a outros
movimentos de vanguarda do século – Surrealismo, Dadaísmo, Abstracionismo e etc) e
expressas no artigo “Trata-se do Realismo”, de 1938. Proceder-se-á a um levantamento das
posições fundamentais do autor e suas conexões com as suas concepções estéticas mais
gerais, tal como as encontramos em meados dos anos 30.
A metodologia, de base bibliográfica, em um primeiro momento, compreendeu a leitura
de textos sobre as vanguardas históricas e sobre o expressionismo em particular. Em ambos
os casos, me apoiei principalmente no livro As vanguardas Artísticas, da Mario de Micheli. Em
um segundo momento, debrucei-me sobre textos de e sobre Lukács: Lukács – Um clássico do
século XX, de Celso Frederico; As ideias estéticas de Marx, de Adolfo Sánchez Vázquez; Debate
sobre o Expressionismo, de Carlos J. Machado; e, por fim, os textos de Lukács que compõe a
polêmica sobre o expressionismo.
Discussão e resultados
Uma análise das críticas de Lukács ao expressionismo deve necessariamente vir
precedida de alguns esclarecimentos sobre a natureza de suas concepções políticas e
estéticas. No plano político, trata-se de desvencilhar sua crítica cultural da política cultural do
período stalinista, com a qual muitas vezes têm sido equivocadamente identificada. No plano
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
166
Luta de Classes e Contemporaneidade
estético, de diferenciar seu antivanguardismo da doutrina do realismo socialista, em favor de
um realismo crítico e de uma concepção baseada na ideia de autonomia do estético.
Apesar de ter se inclinado, desde suas primeiras produções teóricas para questões
estético-culturais, no contexto ora atentado, a estética e a arte em particular não são o centro
das preocupações de Lukács. Em 1930, afastado da vida política interna do Partido Comunista
de Viena, Lukács é designado para auxiliar David Riazanov nos trabalhos do Marx-Engels
Institut. Nessa época tem acesso em primeira mão aos Manuscritos Econômico-filosóficos de
Marx e aos Cadernos de Filosofia de Lênin. O contato com esses manuscritos levou a uma
reviravolta no pensamento do filósofo que procedeu a uma reformulação e a um
aprofundamento das suas concepções sobre a relação Hegel-Marx (Machado, 1998, p. 24).
Lukács se esforçará a partir daí na elaboração de uma ontologia para o marxismo. Mas
uma ontologia em outras bases, em bases materialistas e antropológicas em oposição às
ontologias clássicas desde Aristóteles. A ontologia que propunha Lukács era uma ontologia do
ser social centrada no paradigma do trabalho. Do seu caminho intelectual que tinha como
objetivo a elaboração dessa ontologia materialista, Lukács chegou a suas elaborações de uma
teoria estética em bases marxistas, no período analisado.
O trabalho é para Lukács a categoria fundante do ser social, e das suas formas de
objetivação. Com efeito, a estética e a arte em particular não são algo inerentes ao homem,
mas desenvolvimentos do ser social a partir do trabalho: o trabalho é a forma inicial da
relação entre o homem e o mundo (sujeito-objeto) e serve como base a todas as formas de
consciência que vêm depois dele. A arte surge e se diferencia das outras formas de consciência
(religião, ciência e etc) no desenvolvimento do ser social, primeiro afastando da religião 5,
depois da ciência6.
Ambas, arte e religião são para Lukács criações espirituais referidas ao mundo dos homens. Mas a religião é
uma objetivação que confia na veracidade da sua criação, do seu objeto, os deuses. Além disso, considera a esfera
transcendente uma realidade mais efetiva do que a vida terrena, a vida cotidiana. Caracteriza-se assim pela sua
tendência ao transcendente. A arte, pelo contrário, se sabe imaginária e se recusa a transcendência. Se a religião
transcende a vida terrena, empobrecendo-a e reduzindo-a, a arte a ela retorna enriquecendo a percepção do
homem sobre o mundo.
6 A ciência e a arte se diferenciam primeiro pelas formas de conhecimento que lhes são próprias, e segundo pelas
suas relações com as categorias de universalidade e particularidade. A forma de conhecimento própria a ciência
é aquela que busca reproduzir conceitualmente o em si da realidade objetiva, isto é, da realidade que existe
independentemente da consciência humana. A arte também procura o em si da realidade, mas o em se
humanizado, referido a uma realidade criada pelo próprio homem.
5
167
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Entendendo a estética como um ramo da filosofia e coerente com o seu ponto de vista
marxista, Lukacs irá estudá-la tendo como referência a teoria marxista do conhecimento.
Segundo essa perspectiva a positividade dos fatos é algo aparente que deve ser tomada como
ponto de partida do processo de conhecimento e logo depois dialeticamente ultrapassada em
seu ser tal como se nos apresenta. O exemplo clássico de aplicação desse método está no
primeiro capítulo de O Capital, na análise da mercadoria, onde Marx partindo da aparência, da
imediatez do produto do trabalho busca revelar a sua essência, o seu não-ser. Uma das
características básicas da sociedade capitalista daí decorrente é a forma invertida como os
fenômenos se apresentam ao homem comum produzindo a ilusão de um mundo controlado e
criado por forças alheias aos próprios homens (FREDERICO, 1997, p. 32).
É nesse contexto, para Lukács, que a arte se defronta com um desafio: o de
desfetichizar e desreificar as relações humanas. Nesse instante entra em contradição aberta
com a sociedade capitalista. Para alcançar esse objetivo de em sua obra refletir a condição
humana e as contradições sociais, o artista deverá assumir uma postura realista. Realismo
para Lukács não se confunde com um estilo literário, uma escola ou uma tendência artística,
mas se constitui em um método, em um caminho para se alcançar um quadro fiel da realidade.
O modelo de realismo para Lukács eram as obras de Tolstói e Balzac (FREDERICO, 1997, p.
34).
No “debate sobre o expressionismo” Luk|cs se posicionou contra esse movimento
afirmando seu caráter abstrato e sua fuga da realidade. Assim como no romantismo, os
artistas expressionistas, afirma Lukács, respondiam à miséria do mundo com uma revolta
espiritual referenciada em um homem abstrato, portanto, transcendente. Lukács, como
destacado, concebia a arte como uma objetivação humana por excelência e, portanto,
imanente, condenando com isso à tendência expressionista a transcendência típica da religião.
Além disso, essa revolta espiritual era concebida pelos artistas expressionistas,
segundo Lukács, como um niilismo. Esse, por sua vez, se constituía em uma marca da filosofia
decadente, base do irracionalismo que Lukács identificava como a base ideológica do
Fascismo. O expressionismo era associado por Lukács ao irracionalismo pequeno burguês
horizonte teórico do Fascismo.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
168
Luta de Classes e Contemporaneidade
Duas críticas podem ser feitas a perspectiva Lukacsiana de arte no “debate sobre o
Expressionismo”: uma primeira, { sua idéia de decadência artística e cultural aplicada ao
expressionismo; uma segunda, a sua identificação virtual entre arte e realismo.
No primeiro caso, é preciso atentar para possíveis simplificações na formulação
lukacsiana que passa de um plano para outro (do social ao artístico ou do político ao artístico)
sem levar em conta mediações importantes entre as esferas ideológicas e suas determinações
particulares. Afinal, decadência social é sinônimo de decadência artística? Em muitos casos,
uma sociedade decadente pode inspirar criações artísticas. Conforme atenta Sanchez Vásquez,
Lukács corre o risco em uma associação como essa em cair no erro sociologista por ele
combatido (VÀSQUEZ, 2011, p. 28).
No segundo caso, acredito que o que está por trás da posição lukacsiana é uma
perspectiva da arte como forma de conhecimento (função cognoscitiva). A identificação entre
arte e realismo levou Lukács a descartar os elementos inovadores e progressistas inclusive do
ponto de vista formal, presentes na arte expressionista. Além disso, fechou a estética marxista
em si mesma tornando-se normativa.
Referências
FREDERICO, Celso. Lukács, um clássico do século XX. SP: Moderna, 1997.
HAUSER, Arnold. A era do filme. In.: VELHO, Gilberto (Org). Sociologia da arte. RJ: Zahar
Editores, 1971.
LUKÀCS, George. Trata-se do realismo! In.: MACHADO, Carlos J. Um capítulo da história da
modernidade estética: debate sobre o expressionismo. SP: Editora Unesp, 1998.
MACHADO, Carlos J. Um capítulo da história da modernidade estética: debate sobre o
expressionismo. SP: Editora Unesp, 1998.
DE MICHELI, Mario. As vanguardas artísticas. São Paulo: Martins Fontes, 1991
VÁZQUEZ, Adolfo Sanchéz. As ideias estéticas de Marx. SP: Editora Expressão Popular, 2011.
169
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Cinema e Lutas Culturais: As críticas sociais nas mensagens fílmicas
do documentário contemporâneo Da servidão moderna
Jean Isidio dos Santos
[email protected]
Resumo: É fato que os meios de comunicação são utilizados a serviço do capitalismo,
servindo como instrumentos de auxílio e difusão de valores de mundo (ideologias) por parte
daqueles que produzem os bens culturais, mas não podemos deixar de enfatizar que no
capitalismo existem lacunas, brechas, fissuras, pois, o capitalismo não é capaz de controlar ou
censurar toda a produção cultural. Nosso objetivo é entender os meios de comunicação como
veículos persuasivos, que procuram interferir na vida social, no intuito de criar
representações sociais ligadas a contextos históricos específicos em que à obra de arte é
produzida, além disso, procuraremos analisar o cinema enquanto meio de comunicação que
contribui para as lutas culturais. Nosso foco é procurar entender os processos produtivos e as
mensagens fílmicas críticas contidas no documentário contemporâneo Da Servidão Moderna.
A análise das mensagens é de extrema importância na análise fílmica, visto que elas
representam a visão de mundo por parte dos produtores que conceberam a obra. O
documentário contemporâneo Da Servidão Moderna ressalta diversos aspectos do nosso
cotidiano, dentre eles, a alienação da religião na vida social, os aspectos da economia, do
consumo, dos jogos, da depressão, da exploração no mundo do trabalho, dentre outros temas
de extrema relevância para a reflexão da sociedade capitalista. Sendo assim, a análise da
produção fílmica e das mensagens vinculadas nesta película é vital para uma melhor
compreensão dos processos sociais e das lutas culturais que perpassam a vida moderna.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
170
Luta de Classes e Contemporaneidade
Rádio e Cultura
Edmilson Marques
[email protected]
Resumo: O surgimento do rádio na história da humanidade significou uma profunda
alteração no modo de comunicação humana. As interações interpessoais sofreram ampla
interferência deste meio de comunicação, que, ao mesmo tempo que ampliava a comunicação,
estabelecia uma comunicação unilateral, submetendo a comunicação aos interesses daqueles
que criavam e dirigiam emissoras de rádio. Essa foi uma das invenções que foi apropriada
pelo capitalismo e convertida num meio de ampliação e reprodução de seus interesses, o que
pode ser notado pela dominação do capital comunicacional na comunicação radiofônica. Essa
dominação do capital comunicação é o que vai determinar as produções culturais divulgadas
pelo rádio e vai perpassar da sua origem à atualidade em todos os cantos do globo terrestre. A
comunicação realizada através de emissoras radiofônicas em Goiás, não será diferente. A
origem do rádio em Goiás é demarcada pelo domínio do capital comunicacional, contudo, é
algo que não está claro na história deste meio de comunicação neste estado. É no sentido de
contribuir com a compreensão das expressões culturais divulgadas pelo rádio goiano, que
propomos esta comunicação.
171
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Utopia, imanência e teleologia no pensamento marxista.
Álvaro Ribeiro Regiani1
Resumo: A contingência histórica, era enfaticamente negada por Karl Marx, havia em seu
pensamento apenas uma trama teleológica, definido de forma a priori, em uma unidade do
tempo regida por uma continuidade meta-histórica, que desenvolve através de um
“movimento” e de um “repouso”. Marx refletia essa sistematizaç~o através de uma dialética
classista, em um processo absoluto que rege a continuidade das estruturas sociais. Assim, de
forma crítica e imbuído pela perspectiva teórica de Hannah Arendt, pretende-se situar as
ideias de Marx em um momento intelectual de conexão do pensamento clássico ao mundo do
aço industrial para assim vislumbrar a “imanência política” e a “imprevisibilidade da aç~o”
como categorias que rejeitam alguns pilares socialistas como a teleologia e o absoluto na
história, evocando neste sentido a pluralidade e o consenso como emergência de outras visões
para a política e a utopia.
A contingência histórica, era enfaticamente negada por Karl Marx, havia em seu
pensamento apenas uma trama teleológica, definido de forma a priori, em uma unidade do
tempo regida por uma continuidade meta-histórica, que se desenvolve através de um
“movimento” (revoluç~o) e de um “repouso” (sociedade sem classes). Marx refletia essa
permanência do movimento através de uma dialética classista, como um saber absoluto que
rege a sequência das estruturas sociais e temporais. O tempo era compreendido com um
desdobrar de uma “lei histórica”, um caminhar movido pelo télos, que governava a razão e a
aç~o humana, uma vez que, “a história de toda sociedade até nossos dias é a história da luta de
classes” (Marx & Engels, 2001, p. 23). O fatalismo, ou a contingência, eram negados, pois
partiam do princípio da ação indeterminada, contrariando assim um vislumbre de conceber o
mundo como um todo orgânico. Marx pressupunha uma condição determinada para a ação
social,
Ao passo que o homem produz universalmente; produz apenas sob o domínio da
necessidade física imediata, ao passo que o homem produz mesmo livre da
necessidade física imediata e só produz verdadeiramente sendo livre da mesma; só
produz a si mesmo, ao passo que o homem reproduz a natureza inteira; o seu produto
pertence imediatamente ao seu corpo físico, ao passo que o homem se defronta livre
com o seu produto. (Marx, 1983, pp. 156-157)
Especialista em filosofia e mestrando em filosofia política pela Universidade de Brasília (UnB) e professor
titular da Universidade Estadual de Goiás (UEG).
1
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
172
Luta de Classes e Contemporaneidade
Assim, a essência humana estava inserida em um holismo, que conectava o trabalho
humano (ação) como condição de emancipação às leis históricas (télos). Ao condicionar a ação
humana ao movimento dialético, Marx, pressupõe a existência de uma consciência que produz
os modos de vida e estes condicionados a materialidade que os circunda. E de uma forma
determinada pelos meios e pelos modos os homens por sua consciência “coincide[m],
portanto com a sua produção, tanto com o que produzem quanto também com o como
produzem. Portanto, o que os indivíduos são depende das condições materiais da sua
produç~o.” (Marx, 1983, p. 187) Assim, os homens ao produzirem os meios, também
produzem as relações de produção, a sua essência e a produção de sua história.
Nessa construção holística, no qual o homo economicus, participa como agente e
produtor de um universo material é que se desdobra a possibilidade para a utopia no
pensamento marxista, a superação da contradição inerente ao modo de produção capitalista,
no qual, pela técnica geradora de uma produtividade autossuficiente extinguirá o trabalho e
consequentemente propiciar| uma “comunidade socializada” que reproduz a natureza do
“trabalho” (ou de sua ausência), emancipa as capacidades, físicas e mentais do ser humano
para uma igualdade socialista. Mesmo que Marx, não contemplasse a utopia como construto
do seu ideário, este previa uma comunidade como um único meio para obtenção da
emancipação:
O desenvolvimento de toda a capacidade dos indivíduos enquanto tais, porque
somente em comunidade com os demais cada indivíduo consegue os meios para
cultivar seus próprios dons em todas as direções; só em comunidade, portanto é
possível a liberdade pessoal (Berman, 1986, p. 96).
Marx rejeita o devir utópico, preferia conceber a atualização dialética condicionando a
uma materialidade teleológica através do conceito de revolução. Neste âmbito, o conceito de
revolução seria um curso externo e evidente através dos modos de produção, obrigando os
sujeitos envolvidos a partilhar de um movimento inexorável da História. Uma etapa
necessária para o progresso foi compreendido como uma realidade ao passo que a utopia era
meramente uma ilusão. O do conceito de revolução de Marx observado pela filosofa Hannah
Arendt, se insere em uma teleologia transcendental:
Se o novo conteúdo metafórico da palavra “revoluç~o” proveio diretamente das
experiências daqueles que primeiro fizeram e depois decretaram a Revolução em
França, é óbvio que isso teve ainda maior verossimilhança para aqueles que
173
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
observaram o seu rumo, como espetáculo, do exterior. O que parecia mais evidente
neste espetáculo era o fato de que nenhum dos seus atores podia dominar o curso dos
acontecimentos, de que este curso tomara uma direção que pouco ou nada tinha que
ver com as intenções e objetivos voluntários dos homens que, pelo contrário, se viam
obrigados a submeter a sua vontade e objetivos à força anônima da revolução, se é que
queriam realmente sobreviver. (Arendt, 2001, p. 42)
Hannah Arendt explora uma evidente corroboração da fusão da política às categorias
meta-históricas, diminuindo a importância desta em prol da emancipação humana, tornando a
perspectiva de Marx como oposta a utopia, bem como queria o filosofo dos oitocentos.
Segundo Arendt, as ideias de Marx criavam uma ponte entre a tradição política grega e a
antecipação teleológica dos modernos:
[Marx] inverteu a tradicional hierarquia entre pensamento e ação, contemplação e
trabalho, e Filosofia e Política, o início feito por Platão e Aristóteles demonstra sua
vitalidade, ao conduzir Marx a firmações flagrantemente contraditórias,
principalmente na parte de seus ensinamentos usualmente chamada utópica. As mais
importantes s~o suas predições de que, sob as condições de uma “humanidade
socializada”, o “Estado desaparecer|”, e de que a produtividade do trabalho tornar-seá tão grande que o trabalho, de alguma forma, abolirá a si mesmo, garantindo assim
uma quantidade quase ilimitada de tempo e lazer a cada membro da sociedade. Essas
afirmações, além de serem predições, evidentemente contêm o ideal de Marx da
melhor forma da sociedade. Como tal, não são utópicas, reproduzindo antes as
condições políticas e sociais da mesma cidade-estado ateniense que foi o modelo da
experiência para Platão e Aristóteles e, portanto, o fundamento sobre o qual se
alicerça nossa tradição.(Arendt, 2005, p. 45)
Para Hannah Arendt situar posições de K. Marx como um encontro entre a tradição e a
modernidade permite conceber o projeto de revolução marxista como sinônimo de uma ideia
progressista de história. O futuro seria uma resignificação da liberdade encontrada na polis
ateniense, contudo, sistematicamente provida pela inexorável dialética classista retomaria as
condições de contemplação dos antigos. Esta perspectiva possibilita um leque de
interpretações sobre as obras do intelectual comunista, e a induz como sendo apolítica.
O ideal utópico de uma sociedade sem classes, sem Estado e sem trabalho nasceu da
reunião de dois elementos inteiramente não-utópicos: a percepção de certas
tendências no presente que não mais podiam ser compreendidas dentro do quadro de
referência da tradição, e os conceitos e ideais tradicionais através dos quais o próprio
Marx as compreendeu e integrou. (Arendt, 2005, p. 47)
Seguindo essa lógica discursiva, Marx, compreende a modernidade a partir de duas
condições, que a era industrial não pode ser mais concebida segundo a tradição política e de
que seu projeto libertário é um retorno a comunidade clássica. O choque entre o antigo e o
novo, mesclados em duas noções temporais, a da revolução (movimento moderno) e do
comunismo (retorno ao clássico), remete ao determinismo da predição. O tempo em Marx é a
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
174
Luta de Classes e Contemporaneidade
unç~o da “realidade” ao “devir”, em uma relaç~o de ser e de possibilidade em um logos
revolucionário, assim a contingência, não se configura como categoria inesperada, mas a um
propósito engajado em um sentido de realização, uma vez que a revolução é condicionada
pelos modos e não pelas ações.
A emergência de uma filosofia do progresso condicionou, epistemologicamente, a
definição do homem, principalmente, por suas condições históricas. Contudo pensar a história
como um movimento sistemático, definidas por um télos dialético, sucinta várias questões, e
este é um ponto importante para a filosofia de Hannah Arendt, encontrar um caminho inverso
à teleologia-histórica, por isso o entendimento sobre o desdobrar histórico e suas predições
adquirem outros significados.
Eventos, por definição, são ocorrências que interrompem processos e procedimentos
de rotina; apenas em um mundo em que nada de importante acontece poderia tornarse real o sonho dos futurologistas. Previsões do futuro nunca são mais do que
projeções de processos e procedimentos automáticos do presente, isto é, de
ocorrências que possivelmente advirão se os homens não agirem e se nada de
inesperado acontecer; toda ação, para melhor e para pior, e todo acidente destroem,
necessariamente, todo o modelo em cuja estrutura move-se a previsão e no qual ela
encontra sua evidência. (Arendt, 2010, p. 45)
Nos eventos delimitados pelas estruturas teleológicas as cronologias estabelecem
condições e limites para as ações futuras. É neste ponto que reside à contradição, entre a
afirmação de um modelo e a contingência do fenômeno de possibilidade geracional do novo.
Por isso as “escatologias modernas”, que alimentaram as ideias marxistas, projetaram uma
condição temporal reificada, diminuindo a importância da imprevisibilidade e da política,
como observa Hannah Arendt.
Certamente, a garantia de que no fim a análise apóia-se em pouco mais que uma
metáfora não é a base mais sólida onde erigir uma doutrina, mas isso, infelizmente, o
marxismo compartilha com muitas outras doutrinas filosóficas. A sua grande
vantagem torna-se clara tão logo seja comparada a outros conceitos da História tais
como “eternas repetições de acontecimentos”, o crescimento e a queda dos impérios, a
sequência casual de acontecimentos essencialmente desconexos – todos eles podendo
ser igualmente documentados e justificados, porém nenhum é capaz de garantir uma
continuidade de tempo linear e progresso contínuo na História. E o único conceito
alternativo nesse campo, a antiga noção de uma Era de Ouro no princípio, da qual tudo
se teria originado, implica na desagradável certeza de um contínuo declínio.
Certamente, há alguns efeitos melancólicos na reconfortante ideia de que precisamos
apenas de caminhar em direção ao futuro, o que não nos é dado evitar, de todo modo,
para que encontremos um mundo melhor. Há em primeiro lugar o simples fato de que
o futuro da humanidade em geral nada tem a oferecer à vida individual cuja única
certeza é a morte. E se não se levar isso em conta, se só se pensar em generalidades, há
o argumento óbvio contra o progresso que, de acordo com as palavras de Herzen: “O
desenvolvimento humano é uma forma de injustiça cronológica, uma vez que aos
retardatários é dado tirar proveito do trabalho de seus predecessores sem pagar o
175
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
mesmo preço”. Ou nas palavras de Kant: “Ser| sempre intrigante (...) que as gerações
anteriores pareçam levar adiante a sua tarefa somente em benefício do próximo (...) e
que somente a última tenha a boa sorte de habitar a obra j| terminada”. (Arendt,
2005, pp. 43-45)
Ao se abandonar a sistematização holística da história com a inferência que toda
predição é posta à prova pela contingência, à estruturação marxista desaba como castelos de
areia. Mas ao se abandonar tais teses e compreender a utopia inserida em um campo de
experiência estritamente político e condicionando a noção a um elemento, cuja, predição é
posta como um planejamento reflexivo, que se modifica ao longo do próprio planejar, dada a
imprevisibilidade das ações humanas, a utopia adquire uma nova semântica, a de um
horizonte de possibilidades, projetados por um espaço de experiências contido na percepção
do presente em direç~o ao futuro, pois, “o objetivo n~o est| contido na própria aç~o, mas, ao
contrário dos fins, também não se situa no futuro. Para ser realizável, ele deve estar sempre
no presente, precisamente durante todo o tempo em que ainda n~o foi realizado” (Arendt,
2008, p. 263).
De certa forma o prognóstico utópico encontra seu apoio em estruturas humanas,
como a própria condição do espaço político, de modo a projetar respostas a questões futuras,
a partir da premissa que a ação política é capaz de produção de novas experiências. A utopiapolítica pode auxiliar as predições de eventos concretos e singulares, como questões práticas
e éticas para o atual modelo de gestão e não apenas pensar nas condições de um determinado
futuro possível. Pois ao se pensar a heterogeneidade dos fins da ação, em oposição ao telos
estrutural, se introduz um fator de constante incerteza conservando a potência dos
prognósticos utópicos, como objetivos a serem realizados na arena política. Ao concordar com
esta tese, a utopia seria um objetivo, tal qual se esperava da ação política, em sintonia com a
perspectiva de Hannah Arendt:
Em caso de revolução, o fim pode ser a destruição, ou mesmo a restauração, da velha
ordem política ou a construção de uma nova. Esses fins não são o mesmo que
objetivos, que é o que a ação política sempre busca; os objetivos da política nunca são
mais do que diretrizes e diretivas pelas quais nos orientamos e que, como tais, não são
inflexíveis, dado que as condições de sua concretização mudam constantemente por
lidarmos com outros indivíduos que tem seus próprios objetivos. (Arendt, 2008, p.
257)
Em encontro a essa expectativa política o devir utópico condiciona a “aç~o” a
capacidade de planejar, sempre mediante referências, tipologias e figurações, transformandoa (ou substituindo-a) como normas constitutivas de uma ética a realizar-se. Assim, a utopia
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
176
Luta de Classes e Contemporaneidade
poderia ser concebida aos moldes de uma “consciência antecipadora” para a liberdade como
objetou Ernest Bloch:
A utopia (...) dever ser igualmente rigorosa contra si mesma, desenvolvendo uma
consciência de suas próprias fronteiras (...) Uma utopia que vai se dissolvendo à
medida que se realiza, poderia fazer surgir uma situação que escape, por princípio, à
previsão utópica: novos obstáculos, novas dificuldades, novos ônus poderiam
apresentar-se, que difiriam completamente de tudo quando conhecemos (...) A utopia
realizada seria ‘outra’.(Habermas, 1993, p. 53)
Pensar a utopia na semelhança aos objetivos políticos reintroduz o significado das
reconstruções na esfera pública no campo da imanência das ações e possibilita posicionar o
horizonte da reflexão utópico no tempo presente dessas discussões, porém se mantendo a
distância das considerações reguladoras do messianismo da técnica (proposto por Marx).
Assim o fim inevitável da política, com a ausência da luta de classes, é uma mera aporia, pois o
fim da política é a própria política. A utopia poderia ser restituída como uma antecipação
necessária às condições atuais em que se encontra a esfera política. Em lugar de defender
enfaticamente a utopia como um messias, procura-se reduzir a obediência ao espírito da
razão e procurar no momento presente à antecipação utópica na construção de uma moradia,
próximo ao conceito de promessa na política proposto por H. Arendt.
Promessa é o modo exclusivamente humano de ordenar o futuro, tornando-o
previsível e seguro até onde seja humanamente possível. E uma vez que a
previsibilidade do futuro nunca é absoluta, as promessas são restringidas por duas
limitações essenciais. Estamos obrigados a cumprir nossas promessas enquanto não
surgir alguma circunstância inesperada, e enquanto a reciprocidade inerente a toda a
promessa não for rompida. Existem inúmeras circunstâncias que podem levar ao
rompimento da promessa, sendo a mais importante delas, no nosso contexto, a
circunstância geral da mudança. (Arendt, 2004, pp. 82-83)
O homem enquanto animal político (zôon politikon) e não enquanto homo economicus
encontra no espaço social, o outro limite a sua existência, porém essa extra-vida na era do
consumo massivo não encontra configurações políticas e culturais que possibilitem a
segurança, o ar e o alimento, o estranho distanciar dos consumidores da política
aparentemente condicionam uma ruptura impossível, pois irromper com esse mundo é
alienar-se, ou seja, não são apenas as relações econômicas que produzem o distanciamento do
ser à produção, mas também o impedimento da participação nas arenas públicas. Com o
alheamento da política como potência necessária para concretização das mudanças, os
homens se tornam intimistas, procurando no conforto do lar e nas eleições democráticas as
motivações para continuar a viver, por isso a afirmação do espaço público como ferramenta
177
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
necessária a compreensão de nós mesmos no mundo inverte o jogo das sociedades massivas e
do preconceito político, bem como instiga o olhar utópico ao campo da imanência:
O que torna o homem um ser político é sua faculdade de agir; esta lhe possibilita
reunir-se aos seus pares, agir de comum acordo e buscar objetivos e empresas que
jamais teria em mente; e que muito menos desejaria, se não lhe houvesse sido
outorgada essa faculdade: a de dedicar-se a alguma coisa nova. Falando do ponto de
vista filosófico, agir é a resposta humana à condição de natalidade. Já que todos nós
viemos ao mundo em virtude do nascimento, como recém-chegados e iniciantes,
somos capazes de começar algo de novo; sem o fato do nascimento não saberíamos
nem mesmo o que é a novidade, toda ação seria ou pura forma de comportamento ou
de preservação. Nenhuma outra faculdade exceto a linguagem, nem a razão e nem a
consciência, nos distingue de forma tão radical de todas as espécies animais. Agir e
começar não se tratam da mesma coisa, mas são atividades estreitamente
relacionadas. (Arendt, 2010, p. 102)
Na antiga definição aristotélica sobre as esferas da política, como condição humana
para a gestão e organização do bem comum a vida doméstica tinha tanta importância quanto à
ação publica. Na antiguidade o espaço privado e público não haviam se fundido por completo,
sobrava alguns resquícios que a política ainda era considerada uma instância elevada. Ao
longo da modernidade essas esferas se confundiram, ao tentar separá-los, Hannah Arendt
propõe uma compreensão da política como emanações éticas próprias dos indivíduos e
inseridas na circularidade do domínio público.
Consequentemente, “é muito melhor estar em desacordo com o mundo inteiro do que,
sendo um, estar em desacordo comigo mesmo”. A ética, n~o menos do que a lógica,
tem sua origem nessa afirmação, pois a consciência em seu sentido mais geral também
se baseia no fato de que eu posso estar de acordo ou em desacordo comigo mesmo, e
isso significa que não apenas apareço aos outros, mas que apareço também para mim
mesmo. Essa possibilidade é da maior relevância para a política compreendermos
(como os gregos compreendiam) a polis como a esfera público-política na qual os
homens realizam a sua plena humanidade, a sua plena realidade como homens, não
apenas porque são (como na privacidade da vida familiar), mas também porque
aparecem (Arendt, 2008, p. 64)
O domínio público deveria confrontar o privado, priorizando apenas a defesa ao direito
do indivíduo, na construção de uma deliberação política mediadas por convenções com força a
anular sanções por estes definidos, por isso o caminho da antecipação se insere como molde
para esses espaços. O aristotelismo, como articulado por Hannah Arendt, serve como balança
para confrontar, pela tradição, esse esvaziamento da estima política, porém no momento
originário da definição do zôon politikon na polis, esta já estava em declínio. A inserção do
homem político como projeto consolida-se como um devir aproximando as expectativas
utópicas com o pensamento arendtiano.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
178
Luta de Classes e Contemporaneidade
Assim a arena pública ganha contornos dinâmicos alimentados pela própria
experiência política no tempo presente, por isso o “cuidado” com as questões da “consciência”
e do “mundo”, que fazem presentes tanto no pensamento de Arendt quanto como categorias
da utopia, uma vez que: “em isolamento, indivíduo algum jamais é livre; ele só pode se tornar
livre quando adentrar a polis e l| entra em aç~o” (Arendt, 2008, p. 231). De acordo com
Habermas, Hannah Arendt “retrocede (...) até a tradiç~o do direito natural” (Habermas, 1993,
p. 118), por estar “vinculada { constelaç~o histórica e conceitual do pensamento aristotélico”
(Habermas, 1993, p. 104). Segundo André Duarte, o retorno à tradição política é a
possibilidade de confrontação entre o passado e o presente para assim resignificar a
construção de uma vitaliciedade política:
Retornar a esse núcleo originário da experiência política ocidental não significa
pretender repetir no presente um conjunto de acontecimentos pretéritos, mas visar
no passado àquilo que nele é ainda novo para o presente, verdadeiro manancial de
possibilidades políticas encobertas e não transmitidas pela filosofia política. (Arendt,
2010, p. 140)
Posto neste âmbito a procura de uma orientação em uma filosofia política não tão
distanciada de questões práticas, remete a uma antecipação própria das categorias utópicas. A
utopia que esta no horizonte assemelha-se a promessa que pertence ao campo da política, ao
aproximar o pensamento de Arendt à noção utópica, procura-se encontrar no consenso entre
os homens a própria esfera do poder em sua relação com o mundo por estes habitados. O
sentido é que a procura de outras formas políticas ainda estão em consonância com as
expectativas de mudança e como consequência rompe com a nostalgia e a decepção das
antigas profecias marxistas pela necessidade de um substituto, bem como o norte do
pensamento político de Hannah Arendt, alterar as formas de governo pelo presente:
No centro da política jaz a preocupação com o mundo, não com o homem – com um
mundo, na verdade, constituído dessa ou daquela maneira, sem o qual aqueles que são
ao mesmo tempo preocupados e políticos não achariam que a vida é digna de ser
vivida. E não podemos mudar o mundo mudando as pessoas que vivem nele – à parte
a total impossibilidade prática de tal empresa – tanto quanto não podemos mudar
uma organização ou um clube tentando, de alguma forma, influenciar seus membros.
Se queremos mudar uma instituição, uma organização, uma entidade pública qualquer
existente no mundo, tudo que podemos fazer é rever sua constituição, suas leis, seus
estatutos e esperar que o resto cuide de si mesmo. (Arendt, 2008, p. 159)
Se as utopias podem ser concebidas como uma hierarquização de valores que
condicionam os horizontes humanos a uma variedade de novos valores, esses podem ser
articulados na construção de um caminhar do presente para o futuro, revisitando as
179
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
constituições das instituições e dos Estados para assim esperar a mudança. Compreender a
utopia como um “horizonte reflexivo”, um desenho arquitetônico para possibilitar uma
antecipação à compreensão da ética no campo político, passa necessariamente, pela crítica as
atuais instituições públicas, suas legislações, bem como projetar uma nova esfera para a
construção do espaço público.
Por isso, vislumbrar a imanência política e como rejeição de alguns pilares da
teleologia comunista permite a inserção de uma discussão que rejeita a sistematização do
absoluto na história evocando neste sentido a pluralidade e o consenso como emergência de
outras perspectivas políticas e utópicas, a saber, a consciência e o pensar político ao invés de
uma necessidade totalizante que se desdobra no tempo.
Referências:
ARENDT, Hannah. A promessa da política. Organização e introdução de Jerome Kohn;
Tradução Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: DIFEL, 2008.
_______________. Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
_______________. Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 2004 (Debates; 85/ Dirigida por J.
Guinsburg)
_______________. Sobre a Revolução. Tradução de I. Morais. Lisboa: Antropos, 2001.
_______________. Sobre a violência. Tradução de André Duarte. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade.
Tradução Carlos Felipe Moisés, Ana Maria Louraitti. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
HABERMAS, Jurgen. Coleção Grandes Cientistas Sociais, nº 15. São Paulo: Ática, 1980.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Porto Alegre: L&PM,
2001.
_____________________________. História, Coleção Grandes Cientistas Sociais, vol. 36 (Florestan
Fernandes, org.), São Paulo, Ática, 1983.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
180
Luta de Classes e Contemporaneidade
Revitalização autônoma? O significado da arte em grafite nas
paisagens do bairro do Recife em Recife – PE
Thiago Santa Rosa de Moura1
Resumo: O bairro do Recife teve sua formação ligada aos negócios açucareiros e ao Porto do
Recife. Sofreu reformas que estruturavam, nos objetos, as ações econômicas das elites locais.
Dinâmicas sociais não hegemônicas contribuíram para períodos de decadência entre as
décadas de 1940 e 1970. Recentes revitalizações que inserem o bairro e seu entorno na
perspectiva de uma nova modernidade a partir da implementação na área de investimentos
para a produção de tecnologia e reprodução do consumo: construção shoppings, torres
residenciais de alto luxo. No âmbito das ações não hegemônicas, atualmente observa-se,
também, a apropriação espacial dos antigos edifícios por artistas do grafite, produzindo
paisagens que reinvidicam identidades e revitalizações autônomas nas formas impostas pelas
ações historicamente predominantes.
Palavras Chave: bairro do Recife; grafite; hegemônicas; revitalizações autônomas.
Introdução
O estudo resulta de um esforço de reflexão sobre as inovações e permanências nas
dinâmicas sócio-espaciais do bairro do Recife em Recife – PE. Por isso, são retomadas as
discussões realizadas por trabalhos de autores que se debruçaram sobre a história do bairro
de modo a buscar uma plena compreensão da formação do recorte espacial estudado através
das reformas e processos de revitalização sofridos pelo bairro.
Também é levada em conta a importância das elites locais no processo de produção
espacial, assim como a negligência das mesmas às relações não hegemônicas pela população
local. Essas foram responsáveis, no cotidiano do bairro, por imprimir significados que
contribuíram fortemente na transgressão do status previamente atribuído a área e que
deveria servir de ferramenta ao controle das relações sociais no local.
Nos dias atuais, dentre as diversas atividades realizadas, considera-se a arte em grafite
como um importante fator de transformação das paisagens da área e através disso, de
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia – Universidade Federal de Pernambuco
Bolsista – PPGEO/CNPq
1
181
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
redefinição dos significados atribuídos ao espaço. É objetivo deste trabalho a análise da
produção arte em grafite como uma ação autônoma de revitalização do bairro do Recife,
atribuindo ao mesmo identidades urbanas que fogem da lógica dominante da produção
espacial imposta pelas elites que ali atuam.
Trata-se de uma análise empírica da realidade, pautada em observações realizadas em
visitas de campo na área estudada e revisão bibliográfica de textos que alimentam debates
importantes a serem realizados sobre o bairro. É com base neles que se constrói a
argumentação e análise dos grafites como realidade espacial da área portuária do Recife,
compreendendo a importância de dar visibilidade científica à dinâmicas não hegemônicas
que, de modo criativo e autônomo, produzem, em suas significações nas paisagens, o espaço
geográfico.
Resultados e conclusões:
Bairro do Recife: produção e contradições socio-espaciais
O bairro do Recife mantém, em grande parte, nas suas formas espaciais, as marcas de
um desenvolvimento histórico próspero à burguesia comercial, aos negócios açucareiros e as
importantes atividades do Porto do Recife. Cara à estrutura econômica pautada nas relações
comerciais entre a colônia e às metrópoles portuguesa e holandesa, desde o século XVI esta
área possui função fundamental à vida econômica e social da capital pernambucana.
A origem mesmo da cidade, hoje capital do estado de Pernambuco, está diretamente
ligada às atividades do porto. Lubambo chama a atenção para o início da formação do Recife:
Desde que se iniciou a colonização da Capitania de Pernambuco, em meados do século
XVI, o Recife surgiu como um porto de exportação do açúcar, transformou-se,
rapidamente, em um dos principais núcleos portuários do país. O centro urbano da
capitania era Olinda, [...]. A Saída para o mar ficava mais ao sul, um “ancoradouro
natural”: o porto do Recife. Ali constituiu-se um povoado, em função das atividades de
exportação; este fator, vital na formação da cidade, perdurou por grande parte da sua
história. Foi, então, sob a égide do comércio marítimo, que surgiu o bairro do porto, na
atual ilha do Recife. (LUBAMBO, 1988, p.26)
O Recife e seu bairro portuário surgem, assim, como ferramentas, objetos de
reprodução das ações necessárias à manutenção do comercio entre Pernambuco e demais
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
182
Luta de Classes e Contemporaneidade
espaços do mundo através do açúcar. Segundo Lubambo (1988, p.26-30) o Recife sofreu um
tímido desenvolvimento urbano entre 1536 a 1630. No período holandês é realizada uma
produção espacial oposta. É posto em prática um plano urbanístico para a cidade, aterros aos
manguezais e construção de pontes que davam suporte às estruturas do mercado exportador.
A partir do século XIX, as exigências impostas por uma estrutura econômica fundada
no capital industrial internacional, as “transformações importantes em decorrência da
substituiç~o dos antigos engenhos pela usina” (LEITE, 2006, p. 117) e o apogeu da cultura
algodoeira no Nordeste, que transformou o porto num importante polo de exportação de
algodão, trouxeram ao mesmo e ao bairro uma maior intensidade no processo de reprodução
das funções econômicas e, consequentemente, a transformação das formas espaciais a fim de
abrigar, de modo eficiente, as demandas que eram atribuídas ao bairro portuário.
A chegada da família real ao Brasil e a abertura dos portos ao mercado externo trazem
uma nova din}mica econômica ao Recife. Com a entrada do “capital brit}nico no comércio
local [...] a questão da modernização e melhoramento das instalações do porto e dos
equipamentos urbanos começou a tomar parte nos debates locais, de ent~o”. (LUBAMBO,
1988, p. 29) Também a necessidade de dar ares de modernidade ao Recife, partia da
existência de uma competitividade interna entre as elites locais e as elites ascendentes,
produtoras de café, do Sudeste do país.
“A transformaç~o do antigo bairro em um centro moderno foi entendida, como um
projeto de fortes grupos particulares locais, comerciais e financeiros, unidos a grupos
estrangeiros [...] destinado a fortalecer-se frente às elites sociais que se consolidavam
no poder da república. Era necessária, segundo a ótica das elites locais, uma nova
imagem para a cidade” (LUBAMBO, 1988, p. 20).
No âmbito da reforma urbana no Bairro do Recife, a hegemonia econômica europeia
agiu em uníssono à hegemonia de valores culturais, partindo do pressuposto de que ambas
s~o interdependentes. As transformações urbanas de “car|ter Haussmanniano” (BIONE, 1999,
p. 36) no recorte estudado demonstraram a fácil assimilação das elites pernambucanas aos
valores estrangeiros quanto ao planejamento urbano. Esta pode ser justificada, por uma
coerência ideológica em relação à necessidade de crescimento econômico, competitividade
interna, mas também pelo caráter simbólico representado por tais intervenções urbanas e
paisagens por elas produzidas.
O Bairro tem, nesse período, grande parte de seu patrimônio construído demolido,
dando lugar a largas avenidas e novos prédios produzidos pela iniciativa privada. “Perde-se,
183
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
também, com a reforma a existência de um número elevado de atividades voltadas ao
consumo imediato da população, especialmente as do comércio varejista, da pequena
produç~o mercantil e dos serviços pessoais” (BIONE, 1999, p. 36)
A preservação do patrimônio edificado do Bairro não foi considerada pelos
empreendedores da ampliação do porto, resultando na transformação do tecido
urbano. Naquele momento, acreditava-se que as ampliações do porto significavam
atração de recursos que promovessem o desenvolvimento do porto e da cidade.
(BIONE, 1999, p. 37)
O conjunto das formas que a partir dessa fase passaram a compor as paisagens do
Bairro do Recife, em grande parte inspiradas em modelos arquitetônicos europeus,
abrigaram, de início, as atividades comerciais e moradores da elite econômica recifense.
Entretanto as influências das atividades portuárias eram as principais responsáveis pela vida
social do bairro que passou a ser territorializado por prostitutas e trabalhadores da estiva.
Ao redor do porto instalava-se uma série de atividades de comércio e serviços
destinados à satisfação dos seus empregados – estivadores, carregadores, etc. – e dos
marinheiros vindos com os navios. Disso são exemplos os cabarés, a prostituição,
certos serviços pessoais, alimentação barata, e outros. Assim, formou-se um conflito
entre o “status” de bairro nobre, adquirido com a reforma, e a imagem de um bairro
“marginal”, consequência do uso predominante no Bairro. (BIONE, 1999, p. 39-
40)
É perceptível na retórica de Bione (1999, p. 39-40) a referência aos significados que
toma o espaço do recorte estudado. Mesmo tendo sido atribuído, em seu planejamento, uma
função ideológica de representação do poder hegemônico e da prosperidade econômica das
elites pernambucanas, o bairro ganha valores diferentes dos esperados. Em seu cotidiano,
mostram-se as necessidades, relações mínimas da população. Essas, apesar de ligadas às
atividades do porto, contradizem as ações hegemônicas, visto que não se encontravam nos
planos de valorização da área e contribuíram para o chamado processo de decadência do
bairro. É assim que, mesmo com as fortes influências das atividades portuárias, entre as
décadas de 1940 e 1970 o bairro portuário torna-se um reduto boêmio.
Segundo Campos (1999, p. 131) e Lacerda (2007, p. 623) a partir da década de 1970,
em função da transferência de atividades de comércio e serviços de áreas centrais para
bairros tradicionais como Espinheiro, Graças, dentre outros, em função de um adensamento
populacional seguido de investimentos do setor imobiliário e a consequente verticalização
dessas áreas, o Bairro do Recife perde, de maneira considerável, sua importância na
concentraç~o de atividades importantes { din}mica econômica da cidade. “Na verdade, a área
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
184
Luta de Classes e Contemporaneidade
que conformava o centro histórico, particularmente o Bairro do Recife, entrou, na década de
1970, em um ritmo acelerado de degradação ambiental, passando a ser uma “periferia” da
cidade.” (LACERDA, p. 624)
No fim do ultimo século, o Bairro do Recife encontra-se ocioso. Suas formas já não
atendem, neste período, “{s necessidades atuais da sociedade” (SANTOS, 2008, p. 104). O
bairro, ent~o “caracterizado pela baixa rentabilidade, [...] desvalorizaç~o da riqueza
construída, pública e privada” (LACERDA, p. 624), do ponto de vista da reproduç~o das
atividades econômicas, passa a apresentar-se, em grande parte, mais como paisagem que
como espaço. “A paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as
heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O
espaço s~o essas formas mais a vida que as anima.” (SANTOS, 2008, p. 103).
Considera-se, neste período, o Bairro do Recife como uma |rea “degradada” (CAMPOS,
1999, p. 132). É a partir da década de 1980, que o poder público municipal passa a voltar suas
atenções ao local. A década de 1990 vê serem materializadas as propostas de transformação
do bairro inicialmente “em 1992 [...] o Plano de Revitalização do Bairro do Recife, uma das
propostas para compor o Programa Integrado de Desenvolvimento do Turismo do Nordeste
(Prodetur)” (LACERDA, 2007, p. 625). Esses projetos foram respons|veis, segundo a mesma
autora, por investimentos em infraestrutura e recuperação de edifícios de importante valor
histórico, a fim de encorajar a instalação de empreendimentos privados e tornar o bairro ativo
economicamente.
Tais investimentos contribuíram para uma “requalificaç~o” de algumas |reas do bairro
como se observa no caso do chamado “Pólo Bom Jesus” (LACERDA, 2007, p. 629) onde a
escurid~o e a prostituiç~o, aos poucos deram lugar { iluminaç~o de boa qualidade, {s “cores”
(LACERDA, 2007, p. 628) e a uma vida boêmia de moral aparentemente mais coerente à das
classes que passaram a circular pelo bairro.
Já nos anos 2000, o bairro sofre e vem sofrendo transformações mais ousadas no que
diz respeito às exigências do capital local e externo. Sob essa perspectiva foram
implementados na área, segundo Lacerda (2007, p. 633-634) o Projeto Porto Digital
Empreendimentos e Ambiente Tecnológico. Trata-se de um sistema local com foco no
desenvolvimento de software. E o Shopping Paço Alfândega que tem como principal âncora a
Livraria Cultura.
185
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Sobre tal modelo de revitalização, prossegue Lacerda:
Recentemente (2005), a uns duzentos metros da ponte sul de entrada na ilha, foi
aprovado, também após debates no âmbito do CDU, o projeto de duas torres com 39
pavimentos (ver Figura 5), destinados a servir de residência para a elite da elite local,
projeto que agride enormemente os padrões urbanísticos de vizinhança,
comprometendo de forma irreversível a paisagem do conjunto arquitetônico e
histórico do bairro de São José e, também, do Bairro do Recife e de Santo Antônio
(LACERDA, 2007, p. 639)
As duas torres de luxo citadas por Lacerda (2007, p. 639) já se encontram construídas
e habitadas. As mesmas foram apenas o início de mais um processo de valorização da área
portuária através da especulação imobiliária e indústria da construção civil. Recentemente,
mais uma grande área, o chamado Cais José Estelita, ocupado por estruturas ferroviárias e
galpões que davam estrutura ao porto e que se encontram desativadas, foi leiloada a grandes
construtoras locais que pretendem ali construir mais torres para moradias de alto luxo.
Assim como nos outros processos de requalificação anteriores, nas atuais
transformações espaciais nota-se uma primazia pela produção de objetos que reproduzam
práticas que visam à maximização dos lucros dos atores que, com maior ênfase, modificam o
espaço. Carecem de legitimidade posto que, tendo origem em concepções ideológicas e
decisões de grupos minoritários em contingente, porém hegemônicos por imposições
econômicas e apropriação do Estado, vem se tornado realidades materializadas sem a
necessária discussão com as demais camadas da sociedade, não levando em conta os diversos
interesses da mesma.
“A ideologia é um nível da totalidade social e n~o apenas é objetiva, real, como cria o
real. Sendo, na origem, um real abstrato, cada vez mais se manifesta como real concreto, na
medida em que a vida social se complica” (SANTOS, 2008, p. 127). A ideologia, pautada na
reprodução dos interesses dominantes e responsável pelas ações que deram forma ao bairro,
produziram “símbolos, criados para fazer parte da vida real” (SANTOS, 2008, p. 126).
Esses símbolos impostos às dinâmicas sociais da cidade, mais precisamente do bairro
do Recife, são influentes e consumidos como um discurso de revitalização de uma área que em
décadas anteriores apresentava-se economicamente ociosa. Entretanto, assim como em
décadas anteriores, os diferentes usos e valores atribuídos ao espaço pelas praticas sociais do
cotidiano impõem seus signos, exercem poder, dialogam com os objetos e com as ações
territorializadas no recorte estudado. Para Ramos (1994, p. 31):
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
186
Luta de Classes e Contemporaneidade
A cidade é, assim, um sistema semiótico de produção e consumo de códigos; emite e
recebe mensagens. É o espaço da arquitetura que se constrói e se demole; do vestir
que segue tendências locais, nacionais, internacionais; do andar ora apressado, ora
despreocupado/insinuante/distraído; da linguística, da escrita citadina que emite e
impõe ideologias religiosas, políticas, morais, e da fala do urbano; que é dito nas ruas,
praças, esquinas, espaços públicos; o que se escreve em seus muros e cruzamentos, no
tecido urbano. (RAMOS, 1994, p. 31)
Dentre as diferentes práticas estabelecidas no bairro do Recife, a arte em grafite chama
a atenção pela persistência com que marca as formas do bairro e impõe seus discursos. Temse aqui a consciência de que o grafite não se apresenta como algo homogêneo. Diferenciam-se
tanto nas técnicas empregadas, mensagens que transmitem, quanto na subjetividade
individual de cada artista que deixa sua marca nas formas da cidade. Entretanto, trataremos
aqui tais marcas nas paisagens urbanas do bairro do Recife em conjunto, e como esse conjunto
de imagens dinamizam as relações sócio-espaciais do bairro do Recife.
A arte em grafite e suas marcas no bairro do recife
Na história contemporânea a arte em grafite surge em diferentes espaços e a partir
deles, pela influência cultural que exercem sobre o mundo, ganha repercussão em escala
planetária. Ramos (1994, p. 13-14) cita tais manifestações primeiramente em París por
ocasião das manifestações de Maio de 1968, nos metrôs e ruas de Nova York na década de
1970, no muro de Berlim na década de 1980 e em São Paulo a partir da década de 1970.
Mesmo que, em alguns grafismos, segundo a autora, não haja a intenção de uma crítica
às relações dominantes da sociedade, acredita-se aqui que o mero registro que desentoa as
paisagens pragmáticas das cidades modernas mostra-se, como uma imposição a diálogos que
emergem do dia-dia dos indivíduos em suas dinâmicas sócio-espaciais e que são
recorrentemente ignorados. Questionam a lógica hegemônica de reprodução das relações
sociais, convidam a questionamentos e formação de opiniões divergentes ou não ao ato. São,
também, e por isso, um convite ao exercício da política.
“O grafite é a expressão de uma nova estética e de uma nova subjetividade coletiva
que se apropria do espaço da cidade, dando visibilidade para grupos sociais
silenciados e marginalizados [...] A apropriação do espaço urbano se dá através de
187
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
desenhos, mensagens políticas, assinaturas com nomes e apelidos.” (RODRIGUES,
2004, p. 96)
Recife hoje mostra, em vários pontos da cidade, paisagens resignificadas por artistas de
rua que reinvidicam “identidades urbanas” (GOMES, 2008, p. 10) e significados autônomos
nas formas impostas pelas ações predominantes. O bairro do Recife concentra com maior
densidade uma grande quantidade de grafites. É perceptível que os mesmos não são
considerados pelos planos de requalificação ou revitalização da área e que os próprios artistas
não buscam incluir-se nos projetos formais de valorização da arte promovidas pelo estado e
iniciativa privada na área estudada.
O grafite, a pichação, são discursos da cidade em que a letra – a grafia – em sua
materialidade é a ordem própria discursiva, que significa pelo (por ser) urbano. Por
isso, essa escrita urbana tem sido, na dinâmica do tempo, alvo de discussões, devido
ao seu suposto car|ter subversivo e contestador da ordem sociopolítica vigente.”
(SILVA, IAPECHINO, GOMES, 2010, p. 01)
Para Ramos:
A intervenção pressupõe um ato consciente de alguém que atua sobre um
determinado objeto ou espaço, conferindo-lhe um novo significado. Nas pichações e
grafites, a intervenção se dá como ato de transgressão: são manifestações não
autorizadas, que atuam, na maior parte das vezes, no espaço urbano. [...] o espaço
visual da cidade se altera, ganha uma outra dimensão pela ação dos grupos ou
indivíduos que por ali passam e imprimem sua marca. [...] Assim, as imagens tatuadas
no corpo da cidade e consideradas, na maioria das vezes, como marginais à cultura,
vão pouco a pouco nutrindo a cultura que as rejeita. (RAMOS, 1994, p. 42-45)
Sendo assim, as paisagens do bairro do Recife, ainda que predominantemente
transformadas pelas elites locais e externas de modo a reproduzir o pragmatismo de suas
ações, ignorando a necessidade da participação da sociedade nas decisões que são tomadas e
que intervém na vida pública de toda a cidade, como é o caso da execução dos projetos de
revitalização da área estudada, são também produzidas, renovadas, por atores que exercem
suas influências de modo autônomo às imposições dos poderes estatal e privado.
Nesse sentido, ainda que o exercício da liberdade não seja conferido plenamente por
consenso da sociedade como um todo, e esta se encontra ainda refém das estruturas legais e
socioeconômicas criadas para o favorecimento dos grupos privilegiados economicamente,
observa-se, nas ações dos artistas de rua do Recife, a tentativa do exercício de sua autonomia
no sentido que aponta Castoriadis (1979, p. 21). “Autônomo significa {quele que se d| a lei a si
mesmo. E falamos aqui das leis comuns, ‘formais’ e ‘informais’ – a saber, as instituições.”
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
188
Luta de Classes e Contemporaneidade
“A liberdade, a autonomia, implica necessariamente a participaç~o ativa e igualit|ria
em todo o poder social que decide sobre os problemas comuns”. (CASTORIADIS, 1979, p. 21)
Ao longo de toda a história do bairro do Recife, como visto anteriormente, esta participação
foi suprimida, ignorada. As ações dos artistas do grafite vão de encontro à essa lógica.
Imprimem suas imagens, transformam as paisagens, constroem o lugar ao seu modo.
Contradizem, friccionam as relações sócio-espaciais. Dialogam, discutem a necessidade da
construção de padrões democráticos a serem considerados nos momentos de tomada de
decisão da sociedade, sejam eles para revitalizar objetos no bairro do Recife ou requalificar
ideias que venham a se materializar espacialmente no presente e no futuro.
Referências
BIONE, Marcelo Mara, “ALÉM DAS CORES” Um Comparativo Entre o Modelo de
Interpretação Ambiental e os Planos de Valorização do Bairro do Recife nas Décadas de
1980 e 1990. Recife, Dissertação, Mestrado em Desenvolvimento Urbano, Departamento de
Arquitetura e Urbanismo – UFPE, p. 36 – 40 1999
CASTORIADIS, Cornelius, Socialismo ou Barbárie O Conteúdo do Socialismo. São Paulo,
Brasiliense, Ed. 01, p. 21. 1979.
CAMPOS, Helena Avila, Permanências e Mudanças no Quadro de Requalificação SócioEspacial da Área Central do Recife (Pe): Estudo Sobre Territorialidades Urbanas em
Dois Setores "Revitalizados". Programa de Pós-Graduação em Geografia Teses Defendidas Doutorado Anuário do Instituto de Geociências – UFRJ, Vol. 22, p. 131-132, 1999.
GOMES, Paulo Casar da Costa, Cenários da Vida Urbana: imagens, espaços e
representações in: CIDADES. Presidente Prudente, v. 5, n. 9, p. 10. 2008.
LACERDA, Norma, Intervenções no Bairro do Recife e no seu Entorno: indagações sobre
sua legitimidade in: Sociedade e Estado, Brasília, v. 22, n. 3, p. 623-639. set./dez. 2007.
LUBAMBO, Catia Wanderley, O Bairro do Recife no Início do Século: uma experiência de
modernização urbana. Recife, Dissertação, Mestrado em Desenvolvimento Urbano,
Departamento de Arquitetura e Urbanismo – UFPE, p. 26-29.1988
RAMOS, Cecília Maria Antonacci, Grafite, Pichação e Cia. São Paulo, ANNABLUME, Ed. 1, p.
1994, 31-45
189
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
RODRIGUES, Glauco Bruce, Quando a Política Encontra a Cultura: a cidade vista (e
apropriada) Pelo Movimento Hip-Hop. Rio de Janeiro, v. 6, n. 9, p.96. 2009.
SILVA, Alesson Luiz Gois; IAPECHINO, Mari Noeli Kiehl; GOMES, Valéria Severina, Entre a
caatinga e os muros da cidade: as culturas em diálogo nos (xilo)grafites recifenses.
ANAIS X JORNADA DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO – JEPEX 2010 – UFRPE: Recife, 18 a 22
de outubro.
SANTOS, Milton, A Natureza do Espaço. São Paulo, EdUSP, ed. 4, 2008, p. 63-322.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
190
Luta de Classes e Contemporaneidade
SIMPÓSIO TEMÁTICO 4
ANARQUISMO: PRÁTICA E TEORIA
Coordenadores:
João Gabriel da Fonseca Mateus
Graduando em História (licenciatura)/IFG-Goiânia.
Rafael Saddi Teixeira
Doutor em História e professor na UFG.
191
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
O Coletivismo na Primeira Associação Internacional dos Trabalhadores:
Para Que Serve o Estado?
Erisvaldo Souza1
Resumo: A primeira Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) foi uma das principais
tentativas de organização da luta dos trabalhadores no século XIX, onde atuaram diversos
grupos ou correntes de pensamento com perspectivas variadas, dentre elas, os mutualistas
que foram seus fundadores, marxistas que contribuíram com a organização e a luta dos
trabalhadores e por último os coletivistas que tinham por base fundamental as ideias do russo
Bakunin. Por fim, a proposta deste trabalho é analisar os pressupostos teóricos e práticos da
ação dos coletivistas inseridos neste movimento social, tendo por base a concepção de Mikhail
Bakunin sobre o Estado e suas implicações, pois este enquanto instituição se organiza de
forma contraditória em relação aos interesses dos trabalhadores.
Palavras-Chave: Coletivismo, Estado, Trabalhadores, Movimento Social
O século XIX produziu determinados tipos de pensamentos, sejam eles, críticos,
conservadores e revolucionários, como é o caso da teoria e da prática do coletivismo de
Mikhail Bakunin. São várias também as perspectivas que surgem ou estão sendo consolidadas
neste contexto, como é o caso da ciência burguesa, principalmente aquelas vinculadas ao
estudo da natureza e as até então recentes ciências humanas ou sociais que estavam em
formação, buscando espaço científico, mas estas ciências têm suas limitações, pois buscam a
partir de seus métodos de análise entender realidades cada vez mais fragmentadas, sendo
este o objetivo de uma ciência particular.
Neste mesmo contexto do século XIX, o movimento operário avança em termos de sua
organização e luta, fazendo frente contestatória a burguesia e ao Estado capitalista, principal
representante da burguesia, isto quer dizer que a luta de classes ganha força, principalmente
porque o operariado europeu não só contestava a sociedade e o Estado, mas buscava a
destruição completa desta instituição e das demais que o auxiliavam no sentido de produzir e
reproduzir os valores classe dominante.
As várias tendências teóricas e práticas do movimento operário estão em pleno
desenvolvimento, dentre elas, podemos destacar: os mutualistas seguidores das ideias de
Proudhon, os marxistas, que tinham uma visão a partir da perspectiva teórica e prática de
Graduado em História, Especialista em Ciência Política Pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) Anápolis e
Mestrando em Sociologia Pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Bolsista do Programa.
1
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
192
Luta de Classes e Contemporaneidade
Marx, os coletivistas ou bakuninistas que tinham por base as ideias de Bakunin. Do outro lado,
temos os defensores das práticas da sociedade e do Estado liberal, que são os defensores de
uma Economia nacional e burguesa, que é utilizada na manutenção das relações sociais de
dominação.
É neste contexto de lutas sociais que irá ocorrer a ação dos coletivistas no que ficou
conhecido historicamente como (AIT) Associação Internacional dos Trabalhadores, fundada
em 1864 com o objetivo de defender os interesses coletivos dos trabalhadores, nesta
associação dos trabalhadores, como ficou explicitado em outro momento, existiam outras
tendências políticas atuando no interior desta associação, mas a nossa proposta é analisar a
ação dos coletivistas, principalmente do anarquista russo Mikhail Bakunin e para além da sua
compreensão do Estado burguês, ou seja, seu fim.
Bakunin foi o grande representante do pensamento anarquista em todo o mundo,
principalmente pelos seus escritos e ações revolucionárias atuando em diversos levantes dos
trabalhadores contra a dominação burguesa em diversas regiões da Europa, como Marx,
Bakunin foi estudioso da Filosofia de Hegel, mas logo percebe que esta não consegue dar
conta da sua perspectiva revolucionária que tem por base a ação direta e não uma Filosofia do
espírito e idealista, o que Marx já criticava em seus escritos, a proposta de Bakunin é romper
com toda e qualquer Filosofia especulativa em detrimento de uma ação prática no sentido não
só de compreender, mas de transformar a sociedade por completo, para tanto, alguns textos
do autor são fundamentais para que possamos entender melhor suas ideias e ações, neste
caso, torna-se importante, analisar a ação de Bakunin e dos coletivistas como ficaram
conhecidos os anarquistas que tinham afinidade com a teoria e a prática coletivista no
contexto da (AIT) de 1864, mas em um primeiro momento se recusam a entrar nesta
organização, mas acabam aderindo por volta de 1868, posteriormente realizaremos uma
análise sobre o Estado a partir da concepção de Bakunin. Estado que no século XIX já se
encontrava organizado sistematicamente para a defesa de seus interesses e da conservação de
uma ordem burguesa e liberal, que vai ser contestada pelos coletivistas, marxistas,
mutualistas etc. O Estado que a partir dos seus ideólogos 2, estes irão produzir ideologias no
sentido de conservar esta ordem social e política do Estado. Bakunin foi um crítico do Estado,
Marx & Engels, em sua obra A Ideologia Alemã (2005), desenvolvem uma análise crítica sobre a ideologia e seus
produtores, ou seja, os ideólogos que atuam no sentido de reproduzir a lógica do Estado capitalista contra os
trabalhadores.
2
193
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
tanto é que este vai defender a sua abolição, obviamente que temos outras implicações, que
ficarão mais claras quando analisarmos esta questão. Marx & Engels em a Ideologia Alemã
(2005), tratam da questão da organização, tanto do Estado como das classes sociais, que
buscam além de sua consolidação, sua universalização até mesmo de seus interesses. Os
interesses dos trabalhadores devem ser universais, principalmente sua luta com objetivo de
transformar a sociedade em sua totalidade.
Marx & Engels, no Manifesto Comunista de 1848, já alertavam para uma organização
da classe trabalhadora em termos universais no sentido de lutar contra a dominação burguesa
em seus diversos aspectos, estes convocam os trabalhadores no final deste manifesto com o
objetivo desta organização, esta frase fica bastante conhecida em todo o mundo, tanto por
trabalhadores como pela sociedade em geral: “trabalhadores de todo o mundo, uni-vos”. Desta
forma os trabalhadores deveriam buscar a partir da sua luta e organização transformar a
sociedade, esta é uma necessidade do proletariado como classe social, as demais classes
sociais como é o caso da burguesia, burocracia, sendo que esta última como classe auxiliar, só
existem organizadas e em termos universais, o Estado burguês, também se organiza desta
forma com o objetivo de produzir e reproduzir os interesses da burguesia e contra os
trabalhadores.
Bakunin contribui com esta questão ao analisar a organização das classes sociais:
Compreendeste que, tendo em vista a coalizão formidável de todas as classes
privilegiadas, de todos os proprietários, capitalistas, e de todos os estados no mundo,
uma associação operária isolada, local ou nacional, mesmo que pertença a um dos
maiores países da Europa, jamais poderá triunfar, e que, para fazer frente a essa
coalizão e para obter esse triunfo, não é preciso nada menos que a união de todas as
associações operárias locais e nacionais numa associação universal, faz-se necessária
a grande associação internacional dos trabalhadores de todos os países? (Bakunin,
s/d, p. 41).
É deste questionamento que Bakunin demonstra o interesse da associação universal
dos trabalhadores no sentido da própria classe se organizar, e ao mesmo tempo em que
mostra essa necessidade coletiva, pois as outras classes sociais, principalmente a burguesia se
organiza no sentido de dominar a classe trabalhadora, é por isso que os trabalhadores devem
se unir com o objetivo de lutar não só contra a burguesia, mas também para a destruição desta
classe social. Nas palavras de Bakunin, seria a luta do trabalho contra o capital, dos
trabalhadores contra a burguesia, que para ele sempre defende interesses individuais, mas
falsamente em nome de todos.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
194
Luta de Classes e Contemporaneidade
A Associação Internacional dos Trabalhadores tinha como objetivo coletivizar a ação e
a luta dos trabalhadores, e assim,
Tiveram necessariamente de buscar uma base comum, uma série de simples
princípios sobre os quais todos os operários, quaisquer que sejam, por sinal, suas
aberrações políticas e religiosas, por pouco que sejam operários sérios, isto é, homens
duramente explorados e sofredores, estão e devem está de acordo (Bakunin, s/d, p.
43).
A (AIT), tinha um estatuto que não vamos reproduzir neste artigo, mas em alguns
momentos quando for necessário iremos citar alguns pontos que são importantes. Na citação
acima, vimos que esta buscava uma base comum, mesmo com as limitações por parte de
alguns trabalhadores, estes devem reconhecer que são explorados e lutar em conjunto com os
demais trabalhadores, mesmo com suas limitações políticas ou religiosas. Esta organização
coletiva dos trabalhadores existia no sentido de fazer oposição a classe burguesa, pois
Bakunin afirma que, toda política da burguesia, quaisquer que sejam sua cor e seu nome, só
pode ter, no fundo, um único objetivo, que é a manutenção da dominação burguesa; e a
dominação burguesa é a escravidão do proletariado. De fato toda organização e luta da
internacional no início foi:
Começar limpando o terreno, e como toda política, do ponto de vista da emancipação
do trabalho, encontrava-se então maculada de elementos reacionários, ela teve
inicialmente de expurgar de seu seio todos os sistemas políticos conhecidos, a fim de
poder fundar sobre as ruínas do mundo burguês a verdadeira política dos
trabalhadores, a política da Associação Internacional (Bakunin, 2008, p. 45).
Sua ideia era possibilitar uma nova forma de organização em busca da emancipação
humana em sua totalidade em favor de uma sociedade radicalmente diferente da sociedade
burguesa, os burgueses utilizam diversas leis para dominar as demais classes sociais,
produzem também falsas ideias com o objetivo de mostrar seu mundo como sendo universal e
ideal, e mais ainda o melhor para todos. São essas fantasias que a classe trabalhadora deve
negar, pois os burgueses têm como objetivo dominar os trabalhadores em termos políticos,
econômicos, culturais etc. Para Bakunin (2008), do ponto de vista político e social, os
trabalhadores têm por conseqüência necessária a abolição das classes, conseqüentemente da
burguesia, que é a classe dominante; a abolição de todos os estados territoriais, a queda de
todas as pátrias políticas, e sobre sua ruína, o estabelecimento da grande federação
internacional de todos os grupos produtivos, nacionais e locais. Isto é uma nova sociedade,
mas esta nova sociedade só é possível a partir da luta travada no cotidiano por todos os
trabalhadores de todo o mundo.
195
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Nas palavras de Bakunin, contra essa organização da injustiça, com toda a sua exibição
de leis iníquas e de instituições privilegiadas deve perecer, ou então, as massas operárias
permanecerão condenadas a uma escravidão eterna, para tanto, somente a partir da luta e da
solidariedade entre os trabalhadores contra seus patrões e seus representantes que será
possível algo diferente para os trabalhadores, que não devem acreditar na boa vontade e no
humanismo burguês. Nesta relação de antagonismos entre as classes sociais, principalmente
os existentes entre a burguesia e o proletariado, Bakunin (2008) afirma que os trabalhadores
querem a igualdade, e os burgueses querem a manutenção da desigualdade, é evidente nesta
relação, que uma destrói a outra, então, nada mais justo para o proletariado lutar e destruir
por completo a burguesia, a sociedade e um estado que os representa para o domínio do
burguês contra os trabalhadores.
Os trabalhadores a partir do entendimento da sua luta, da sua posição, esclarecidos e
com base em princípios da (AIT), segundo Bakunin, estes têm que organizarem, com efeito, e
começam a formar uma autêntica força, não nacional, mas sim internacional, não para cuidar
dos interesses dos burgueses, mas de seus próprios interesses. Assim, a (AIT), deve ser um
forte aliado dos trabalhadores em luta.
A Associação Internacional dos Trabalhadores, fiel a seu princípio, jamais apoiará uma
agitação política que não tenha por objetivo imediato e direto a completa emancipação
econômica do trabalhador, isto é, a abolição da burguesia como classe
economicamente separada da massa da população, nem revolução que desde o
primeiro dia, desde a primeira hora, n~o inscreva em sua bandeira a liquidaç~o social”
(Bakunin, 2008, p. 67).
Esta associação tem que ter por princípio, o apoio mútuo a luta e aos objetivos dos
trabalhadores contra as instituições burguesas, que historicamente são seus inimigos mortais,
isto quer dizer, que ao longo de sua história, com a internacional ou não, os trabalhadores
sempre lutaram contra a dominação burguesa, neste caso, podemos dizer que tanto a
internacional e alguns de seus militantes que estiveram ligados a ela, tentaram a partir da sua
luta e inserção, contribuir com a emancipação humana, Bakunin foi um deles, Marx, Engels,
dentre outros que estiveram contribuindo com o conjunto da luta dos trabalhadores e não de
dirigir ou burocratizar a luta operária. Para uma crítica a burocracia e sua forma de
organização e dominação, pode ser encontrada na obra de Tragtenberg (2006) e outra que
além da crítica a burocracia, desenvolve também uma crítica ao estado burguês, neste caso
Viana (2003).
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
196
Luta de Classes e Contemporaneidade
Bakunin faz alguns questionamentos sobre o papel da (AIT) no que diz respeito à luta
dos trabalhadores, segundo ele, ela dará a agitação operária em todos os países um caráter
essencialmente econômico, colocando como objetivo a diminuição da jornada de trabalho e o
aumento dos salários, como meios, a associação das massas operárias e a formação das caixas
de resistência. Portanto esta associaç~o far|: “Ela far| a propaganda de seus princípios, pois
esses princípios sendo a expressão mais pura dos interesses coletivos dos trabalhadores do
mundo inteiro s~o a alma e constituem toda a força vital da associaç~o” (Bakunin, 2008, p.
68). Esta tem que auxiliar na luta e ir em favor do movimento operário em termos de
possibilitar em conjunto com o operariado, a ampliação de sua luta, aonde ir e o que fazer?
Como o próprio Bakunin afirma, lutar com um objetivo declarado e único, o fim do capitalismo
e a emancipação humana em sua totalidade.
Sobre o estatuto da (AIT), Bakunin cita a última parte que para ele é fundamental para
a classe oper|ria: “O movimento que se realiza entre os oper|rios dos países mais
industriosos da Europa, fazendo nascer novas esperanças, dá uma solene advertência para
n~o recair em absoluto nos antigos erros” (Bakunin, 2008, p. 69). Além de fazer nascer esta
esperança, o mais importante para os trabalhadores, é não abandonar essas práticas de luta
que fazem com que esta esperança não seja algo distante de sua realidade, onde os erros do
passado não devem ser repetidos, isto quer dizer que historicamente a classe operária, tem
que aprender com a sua luta e sua história. Bakunin afirma ainda ser partidário e tem
convicção da igualdade econômica e social, porque fora desta igualdade, a liberdade, a justiça,
a dignidade humana, a moralidade o bem-estar dos indivíduos, assim como a prosperidade
das nações nunca serão senão mentiras.
Ainda para ressaltar algumas questões importantes em relação à (AIT), Bakunin
comenta sobre esta forma de organização da classe trabalhadora:
A internacional é, evidentemente, uma magnífica instituição, é incontestavelmente a
mais bela, a mais útil, a mais benéfica criação deste século. Ela criou a base da
solidariedade dos trabalhadores de todo o mundo. Ela deu-lhe um começo de
organização através da fronteira de todos os estados e fora do mundo dos
exploradores e dos privilegiados. Ela fez mais, já contém hoje os primeiros germes da
organização da unidade que há de existir e ao mesmo tempo deu ao proletariado de
todo o mundo o sentimento de sua própria força. Estamos certos também do grande
serviço que ela prestou à grande causa da revolução universal e social. Mas ela não é
de modo nenhum uma instituição suficiente para organizar e dirigir esta revolução
(Bakunin, s/d, p. 72).
197
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Na verdade, a criação da (AIT) pelo conjunto dos trabalhadores, foi fundamental para a
consolidação não só da luta dos trabalhadores em todo o mundo, mas também da sua
organização, pois a partir desta é possível lutar contra toda dominação burguesa. A função da
(AIT), não é direcionar a luta dos trabalhadores, e sim auxiliá-los no sentido de buscar seus
objetivos que é a revolução da sociedade. Vários intelectuais estiveram atuando no interior da
internacional, mas estes não tinham como objetivo ser uma vanguarda que iria direcionar
tanto os trabalhadores com sua luta. Não é o saber a serviço do poder, a educação libertária
tem princípios e práticas distintas da educação formal, como bem analisa Mateus (2012) e
desta forma Bakunin ainda coloca que?
A internacional prepara os elementos da organização revolucionária, mas não a
realiza. A única coisa que ela faz fora desta obra já tão útil, é a propaganda teórica das
ideias socialistas nas massas operárias, obra igualmente muito útil, muito necessária à
preparação da revolução das massas (Bakunin, s/d, p. 72).
Sua função na realidade é somente contribuir com a organização e a propaganda das
ideias socialistas, é por isso que os intelectuais envolvidos nesta associação devem produzir
revistas, textos, jornais e obras em geral, defendendo os interesses dos trabalhadores contra a
burguesia, da mesma forma que a burguesia busca a partir de seus intelectuais (ideólogos),
produzir conhecimento como forma de dominar culturalmente a classe trabalhadora, os
intelectuais que atuam no interior do movimento operário, devem a partir de seus textos,
contestar o domínio burguês em favor dos trabalhadores.
Segundo Bakunin, mesmo com a organização da Internacional para a luta dos
trabalhadores, esta necessita de outra que seria a aliança anarquista defendida pelo autor,
desta forma ele afirma:
Que seria uma sociedade secreta formada no seio da própria internacional, para dar a
esta última uma organização revolucionária, para transformá-la, a ela e a todas as
massas populares que estão fora dela, numa força suficientemente organizada para
aniquilar a reação político-clérico-burguesa, para destruir todas as instituições
econômicas, jurídicas, religiosas e política (Bakunin, s/d, p. 75-76).
Esta aliança na concepção do anarquista russo tem como objetivos gerais:
A abolição definitiva e completa das classes sociais e a igualdade econômica e social
dos indivíduos de ambos os sexos. Para chegar a este objetivo, pede a abolição da
propriedade individual e do direito de herança, a fim de que no futuro sejam os
benefícios proporcionados pela produção de cada um, e que conforme as decisões
tomadas pelos últimos congressos de Bruxelas e da Basiléia, a terra e os instrumentos
de trabalho, como qualquer outro capital, chegando a ser propriedade coletiva da
sociedade inteira, não possam ser utilizados a não ser pelos trabalhadores, quer dizer
pelas associações agrícolas e industriais (Bakunin, s/d, p. 77).
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
198
Luta de Classes e Contemporaneidade
Seria necessária mesmo a atuação de um grupo clandestino dentro da própria
internacional? Segundo Bakunin sim, pois seriam esses que iriam dar um caráter
revolucionário para a organização, mas não seria uma vanguarda atuando dentro da
associação. Liberdade ou a emancipação humana para Bakunin ocorre de forma totalizante e
não apenas de alguns poucos indivíduos privilegiados, quando ele se refere à emancipação
humana, ele fala de todos os indivíduos, homens e mulheres, pois assim, a nova sociedade
teria por base a coletividade da vida social. Mas esta nova sociedade será fruto de muita luta,
onde os trabalhadores devem lutar pela sua emancipação em todos os sentidos, observando
que: “A emancipaç~o dos trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores para
conquistar a sua emancipação não devem levar à constituição de novos privilégios, mas para
estabelecer para todos os mesmo direitos e os mesmos deveres” (Bakunin, s/d, p. 81).
A classe trabalhadora deve buscar se organizar para a destruição por completo tanto
do Estado como da burguesia. Como foi apontado em outro momento, o Estado é um das
instituições que limita a atuação e a liberdade dos indivíduos socialmente, pois este tem em
sua base de organização a imposição pela força. No texto princípio do Estado, Bakunin traz
reflexões interessantes, não só para que possamos pensar e compreender o Estado como
instituição de dominação, mas principalmente sua destruição, para isso, o autor realiza alguns
questionamentos:
O que é o Estado senão a organização da força? Mas é da natureza de toda força não
poder suportar nenhuma outra, nem superior, nem igual -, não podendo a força ter
outro objetivo senão a dominação, e a dominação só é real quando tudo o que a
entrava lhe está subjugado (Bakunin, 2008, p. 27-28).
De fato o Estado historicamente se organizou a partir da força de uma classe para
dominar outras classes sociais, mas o Estado não é uma instituição que nasceu com a
sociedade, mas este surge a partir da necessidade da própria sociedade, isto quer dizer, que o
Estado não é uma instituição que vai existir eternamente, pois outras classes sociais
dominadas podem além de contestar a forma de organização do Estado e suas autoridades
constituídas, em alguns momentos irão atuar no sentido de derrubar o Estado por completo,
como é o caso da análise realizada por Bakunin, pois esta força que ele se refere, é a força do
conjunto do proletariado organizado, que em vários momentos históricos atuaram nesse
sentido, ou seja, na derrubada do Estado, é por isso que ele vai afirmar que o Estado é a
negação da humanidade.
199
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Bakunin em seu ensaio sobre o Estado analisa algumas doutrinas religiosas como é o
caso do judaísmo e do cristianismo, principalmente esta última, mas ele era contra todas, pois
estas também são formas de dominação pela autoridade e a valorização do individualismo,
sobre esta questão ele coloca que:
Nenhuma religião levou tão longe o culto do individualismo quanto a religião cristã.
Diante da ameaça do inferno e das promessas absolutamente individuais do paraíso,
acompanhadas por essa terrível declaração de que entre muitos chamados haverá
pouquíssimos eleitos, foi uma confusão, um salve-se-quem-puder generalizado; um
tipo de corrida em que cada um só era estimulado por uma única preocupação, a de
salvar sua própria pequena alma (Bakunin, 2008, p. 35-36).
Ainda sobre as religiões ele afirma que:
Segundo o nosso entendimento, quer dizer, do ponto de vista da moral humana, todas
as religiões monoteístas, mas principalmente a religião cristã, como a mais completa e
a mais conseqüente de todas, são profundas, essencial, e principalmente imorais: ao
criar seu deus, elas proclamaram a decadência de todos os homens, dos quais só
admiram a solidariedade no pecado; e ao afirmar o princípio da salvação
exclusivamente individual, renegaram e destruíram, na medida de sua força para fazêlo, a coletividade humana, isto é, o próprio princípio da humanidade (Bakunin, 2008,
p. 36).
O autor analisa como as religiões monoteístas, principalmente a religião cristã, cria
determinados valores morais, dogmas e principalmente a figura de “deus” com o objetivo de
dominar os indivíduos, limitando sua ação enquanto indivíduo, ele chega a afirmar que esta
forma de religião vai criar a decadência humana, onde os indivíduos não se reconhecem
enquanto indivíduos humanos e reais, pois o pecado limita essa ação. Esta religião tem por
princípio a salvação e o individualismo, que é contrário aos princípios de emancipação
humana de forma coletiva, que é a principal característica de uma nova sociedade fundada na
liberdade coletiva, esta nova sociedade, uma sociedade real, concreta e não algo metafísico e
individualista como prega a religião cristã, ou seja, a salvação individual. Por outro lado, a
igreja que durante toda a Idade Média era a principal instituição, a grande dominadora das
relações sociais, detentora de terras e de servos, com as mudanças ocorridas no mundo
moderno, segundo Bakunin, a igreja depois de ter sido a senhora, tornou-se a serva do Estado,
um instrumento de governo nas mãos do monarca, isto demonstra que historicamente a igreja
perdeu espaço não só para outras doutrinas religiosas, mas também perdeu poder político
para o Estado que estava em ascensão, tanto é que agora esta tem que fazer acordos entre as
instituições, a igreja com o Estado capitalista moderno. Tanto a igreja como deus são os
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
200
Luta de Classes e Contemporaneidade
grandes males que atormenta os indivíduos, é nesse sentido que Bakunin ataca ambos, com o
objetivo de suprimi-los por completo.
Retomando uma questão fundamental em sua discussão, Bakunin desenvolve alguns
questionamentos sobre o Estado, a igreja e deus:
E o que é o Estado? Sustenta-se que é a expressão e a realização da utilidade, do bem,
do direito e da liberdade de todo o mundo. Pois bem, aqueles que sustentam isso
mentem, assim, como mentem aqueles que declaram que o bom deus é o protetor de
todo o mundo. Desde que a fantasia de um ser divino se formou na imaginação dos
homens, deus, todos os deuses, e entre eles, sobretudo, o deus dos cristãos, sempre
tomou partido pelos fortes e pelos ricos contra as massas ignorantes e miseráveis. Ele
abençoou, por intermédio de seus padres, os privilégios mais revoltantes, as
opressões e as explorações mais infames (Bakunin, 2008, p. 68-69).
Um pouco mais à frente o autor discute um ponto mais específico, que é o Estado, desta
forma, ele argumenta que do mesmo modo, o Estado é senão a garantia de todas as
explorações em proveito de um pequeno número de felizes privilegiados, em detrimento das
massas populares. Os grandes capitalistas são aliados da burocracia estatal e se organizam
para dominar os trabalhadores e realizar a manutenção dos seus privilégios, que, como bem
aponta Bakunin, os privilégios dentro desta instituição chamada estado, é somente para
alguns poucos privilegiados, então, cabe a classe trabalhadora como foi analisado aqui neste
artigo, lutar contra esta dominação do Estado e como aponta o próprio Bakunin, que o Estado
deve ser destruído em favor da coletividade, pois tanto a igreja como o Estado são fonte de
dominação e individualismo, e só a coletividade em luta pode ir contra estas instituições, foi
neste sentido que a internacional se fez importante.
Referências
BAKUNIN, Mikhail. Os Enganadores: A Política da Internacional Aonde ir e o Que Fazer? São
Paulo, Faísca, 2008.
BAKUNIN, Mikhail. Socialismo e Liberdade. São Paulo, Luta Libertária, s/d.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo, Centauro, 2005.
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. O Manifesto do Partido Comunista. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1998.
201
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
MATEUS, João Gabriel da Fonseca. Educação e Anarquismo: Uma perspectiva Libertária. Rio de
Janeiro, Rizoma Editorial, 2012.
TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e Ideologia. São Paulo, Unesp, 2006.
VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania: A Dinâmica da Política Institucional no
Capitalismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
202
Luta de Classes e Contemporaneidade
Élisée Reclus e o conceito de “evolução”: margens para uma (re)
interpretação
João Gabriel da Fonseca Mateus*
Resumo: Élisée Reclus, geógrafo e anarquista francês, foi militante nos principais conflitos do
século XIX (entre eles, a Comuna de Paris de 1871 e a Federação Jurassiana) e atualmente, é
um dos mais importantes escritores do anarquismo. Os escritos de Reclus foram mal
interpretados por diversos de seus “seguidores” em que atribuíram seu pensamento apenas
como evolucionista. Os textos compilados e posteriormente chamados de Evolução, Revolução
e o Ideal Anarquista é um destes escritos mal interpretados. Porém, uma leitura atenta do que
ele chamou de “evoluç~o” pode nos atentar para fatos de extrema importância à prática
revolucionária. Esta comunicação visa apresentar uma (re) interpretação no conceito de
“evoluç~o” que est| intrinsecamente ligado aos conceitos de “Revoluç~o” e “Ideal Anarquista”.
Assim, proporemos a leitura de que onde a “evoluç~o humana”, para Reclus, passa
fundamentalmente por grandes momentos de rupturas, não podendo ser confundido com o
mesmo sentido dos hegelianos e positivista contemporâneos ao geógrafo.
Palavras-chave: Élisée Relcus, anarquismo, evolução, revolução.
O anarquismo, entendido a partir de uma prática social situado historicamente ao
longo de seu desenvolvimento assumiu debates entorno da questão da organização e sentido
de suas lutas em mais diferentes contexto e, consecutivamente, teve diferentes posições
estratégicas e interpretações. Nas diferentes interpretações do anarquismo contemporâneo
ainda se encontra a necessidade de uma nova retomada do pensamento anarquista que esteve
engessado nas interpretações bolcheviques. Nessas interpretações, a memória leninista e
ainda dominante sobre o anarquismo conseguiu eleger ao anarquismo, além de prisões e
derramamentos de sangue, uma leitura dominante nas lutas dos trabalhadores a partir,
sobretudo da historiografia, como um inutilidade. Este pequeno texto visa superar esta
memória esquem|tica dominante, propondo a (re) interpretaç~o do conceito de “Evoluç~o” do
anarquista francês Élisée Reclus. Essa proposta tem o intuito de superar a visão limitada e
conservadora das leituras bolcheviques sobre os movimentos anticapitalistas.
Temos, portanto, um primeiro passo a ser cumprido: atualizar o pensamento
anarquista na contemporaneidade negando as interpretações de outrem sobre o próprio
Graduando em Licenciatura em História pelo Instituto Federal de educação, Ciência e Tecnologia de Goiás.
Autor do livro Educação e Anarquismo: uma perspectiva libertária (Rio de Janeiro, Rizoma Editorial, 2012).
Membro do corpo editorial da Revista Espaço Livre.
*
203
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
anarquismo. Quais foram as influências que Reclus sofreu no século XIX? Se entendermos o
entrelaçamento histórico e social, situando sua obra em um contexto histórico juntamente
com as categorias utilizadas pelo autor, podemos compreender os aspectos mais profundos de
sua produção.
Reclus considerava as condições históricas da emergência de novas formas feita pelas
ações humana como algo fundamental na sociedade. Ele pensava a transformação e mais que
isso, pensava a destruição de dogmas e pensamentos cristalizados. Portanto, ler um autor do
século XIX pressupõe entender seu contexto histórico e o nosso, quando elegemos uma nova
leitura. Reclus também era enf|tico ao afirmar que o “novo” diferia radicalmente do que j|
existia. Romper radicalmente com o que era dado era necessário, o que lhe possibilitava
pensar na criação de uma sociedade radicalmente inovadora. É nesse sentido que a busca de
uma (re) interpretaç~o do conceito denominado “evoluç~o” se torna importante. Antes de
entrarmos na discussão conceitual, consideramos pertinente situar historicamente o autor e
sua trajetória.
Jean Jacques Élisée Reclus, natural de Sainte-Foy-la-Grande, França, nasceu em 15 de
março de 1830. De educação protestante, ingressa na Universidade de Berlim sendo aluno de
Karl Ritter1 no ano de 1851 aos vinte e um anos. Em dezembro do mesmo ano, Reclus retorna
a França para tentar impedir o golpe de Estado de Luís Napoleão e sua proclamação como
Imperador da França. Em 1855, com o objetivo de conhecer a América do Sul viajou a
Colômbia retornando a França após dois anos.
Assim como seu irmão, Reclus foi estudar teologia para se tornarem pastores, porém,
a negação do sacerdócio foi sem dúvida um dos elementos que levaram Reclus a abandonar o
pensamento religioso e abraçar o anarquismo. Em 1855 escreve a que ficou conhecida como
sua primeira obra, Voyage à la Sierra-Nevada de Sainte-Marthe descrevendo sua viagem à
Colômbia. Morou em Paris onde trabalhou como escritor, tradutor e geógrafo, colaborando
para revistas e jornais como: Les Temps Nouveaux, Le Tour de Monde, Revue Germanique,
Revue des Deux Mondes, Revue politique et littéraire, Le Journal des Voyages e o Boletim da
Sociedade Geográfica de Paris.
Nascido no dia 7 de agosto de 1779 em Quedlinburg e faleceu em 28 de setembro de 1859 em Berlim. Foi um
naturalista, nascido na Prússia, que contribui para a institucionalizaç~o da Geografia como “ciência”.
1
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
204
Luta de Classes e Contemporaneidade
Como militante anarquista ingressou em organizações como a Liga da Paz e da
Liberdade, colaborou com o jornal Le Révolté militando com seu irmão Élié Reclus. Em 18681869 escreveu uma obra na área de geografia, que ficara conhecida mundialmente, intitulada
A Terra, descrição dos fenômenos da vida do globo que constitui de forma geral um estudo de
geografia física em dois volumes com um capítulo final dedicado ao ser humano e suas mais
variadas relações (PALACIOS, 2010, p. 18).
Em 1870, se candidatou à Assembleia Nacional, mas, não conseguiu vencer as
eleições. Neste mesmo ano, alistou-se como soldado para lutar na Guerra Franco-Prussiana
que acabou com a derrota francesa, a anexação da Alsácia-Lorena pela Alemanha e a
composição de um governo subserviente aos interesses alemães, que, motivaram Reclus a
participar junto aos parisienses na organização da Comuna de Paris2, logo derrotada pelas
forças francesas e alemãs. Foi preso durante a luta communard e foi condenado a prisão
perpétua em Nova Caledônia. A prisão significava o rompimento de suas relações familiares,
científicas e políticas, mas se iniciou um movimento da comunidade científica e intelectual que
pressionou o governo francês, e decidiu pela comutação por um exílio de dez anos. Reclus já
detinha grande influência no meio intelectual por suas contribuições à Geografia e sua
aceitação no meio intelectual que fora fator que o salvou da prisão por mais tempo. Embora
perseguido na França por sua militância anarquista, o geógrafo possuía renome internacional
e desfrutava de sólida reputação no mercado editorial por suas publicações de geografia, o
que veio a contribuir para sair da prisão perpétua.
Com essa pressão conseguiu sair da prisão e se exilou na Suíça. Em 1893, Reclus
milita na Federação Jurassiana3. Ainda na Suíça, com um projeto de escrever a Nouvelle
Géographie Universalle permaneceu em território suíço até 1889. Com o objetivo de escrever
Reclus diz sobre a Comuna: “Segundo o que meus companheiros contaram-me, tenho motivo para crer que em
outros fatos da guerra, nossos chefes empenachados, ao menos aqueles que comandaram os primeiros combates,
deram provas da mesma ininteligência e da mesma incúria. Talvez o governo da Comuna tivesse mais capacidade
em outras matérias; em todo o caso, a história dirá que esses ministros improvisados permaneceram honestos ao
exercerem o poder. Mas nós pedíamos-lhes outra coisa: ter o bom senso e a vontade que a situação comportava e
agir em conseqüência (RECLUS, 1871, apud SAMIS, 2011, p. 342)”. Cf. SAMIS, Alexandre. Negras Tormentas: o
federalismo e o internacionalismo na Comuna de Paris. São Paulo: Hedra, 2011. Ainda sobre a Comuna de Paris,
diversas produções foram feitas, porém destacamos: SAMIS, Alexandre. Negras Tormentas: o federalismo e o
internacionalismo na Comuna de Paris. São Paulo: Hedra, 2011. VIANA. Nildo (Org.). Escritos Revolucionários
Sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma Editorial, 2011.
2
A Federação Jurassiana congregou todas as federações opositoras aos marxistas. Foi criada em 1871 por
anarquistas dissidentes da AIT. Para mais informações: PRÉPOSIET, Jean. História do Anarquismo. Lisboa:
Edições 70, 2005.
3
205
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
os livros, realizou intenso trabalho em bibliotecas e diversas viagens – em 1884, à Argélia,
Tunísia e Egito; em 1885, à Hungria, Turquia e Ásia Menor; em 1886, à Itália; em 1889,
retornou aos Estados Unidos e Canadá; em 1890, novamente aos Estados Unidos, África do
Sul, Portugal e Espanha. Nesse mesmo ano, retornou a França. E em 1893, Reclus realizou a
sua última grande viagem ao redor do mundo e teve como destino a América do Sul –
conheceu o Brasil4, Argentina, Uruguai e Chile. A Nouvelle Géographie Universalle foi o
resultado de vinte e dois anos de trabalho, cerca de dezessete mil páginas, aproximadamente
quatro mil mapas e mais de mil gravuras divididas em dezenove grossos volumes editados e
publicados no fins do século XIX (MYAHIRO, s/d, p. 5-6).
No ano seguinte, na Bélgica, participou do grupo de cientistas que fundou a
Universidade Livre de Bruxelas, onde assumiu a cátedra e se tornou professor de geografia
somente aos 64 anos de idade. Escreveu em 1897, L’évolution, la révolution et l’ideal
anarchique5 – um livro em que esboça os seus pressupostos teóricos sobre o anarquismo.
Escreveu L’homme et la Terre sua principal obra com 3.589 páginas em seis volumes. Foi nas
suas últimas obras que aparecem as concepções anarquistas, já que ele sofria censura de
v|rias editoras em relaç~o a sua milit}ncia. “O Homem e a Terra” é a única obra de Reclus que
não sofre interdições político-ideológicas dos editores, expõe com toda a liberdade sua visão
anarquista da Geografia (MOREIRA, 2008, p. 49). Élisée Reclus morre em Thourout na Bélgica
no ano de 1905.
Compreendendo a trajetória (obviamente nossa biografia aqui descrita é limitada) de
Élisée Reclus, vemos como seu pensamento é indissociável de sua prática como geógrafo. O
estudo sobre o pensamento de Élisée Reclus nos remete pensar na sua trajetória de vida para
uma possível (re) atualização de seu pensamento, pois este esteve relegado a um ostracismo
(no que tange sua participação na ciência da Geografia) devido sua militância política de sua
época e em interpretações dogmáticas.
Para resgatar o pensamento de Élisée Reclus na construção de uma possível (re)
interpretaç~o do conceito de “evoluç~o” ser| necess|rio reconstituir alguns conceitos
elaborados pelo autor e que ao longo do processo histórico após sua morte, entrou em um
Ver tese de mestrado: DA SILVA, Robledo Mendes. A influência de Èlisée Reclus na Educação Operária no Brasil:
das Ciências Naturais à Educação Integral. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. Disponível em:
http://www.4shared.com/get/pnVAYDtq/a_influncia_de_lise_rclus_na_e.html. Acesso em abril de 2012.
5 Tradução livre: A evolução, a Revolução e o Ideal Anarquista.
4
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
206
Luta de Classes e Contemporaneidade
emaranhado de interpretações problemáticas feitas por seus intérpretes. Nesse sentido,
apresentaremos uma análise da obra de Jean Jacques Élisée Reclus principalmente sobre os
conceitos de “evoluç~o” e “revoluç~o” (Reclus, 2002); Esses conceitos acima citados
apresentam-se em relações intrínsecas e indissociáveis.
Para o autor, a sociedade burguesa aparece como a negação da vida humana com suas
autoridades através da afirmação ou não da vida e da felicidade humana, que emergiam como
parâmetro ético fundamental de seu pensamento. Com isso, suas produções não deixavam de
abarcar a geografia e a militância anarquista, sendo estas indissociáveis. Vejamos a
centralidade radical que Reclus deixava claro:
Queremos saber. Não admitimos que a ciência seja um privilégio, e que homens
situados no cume da uma montanha, como Moisés, num trono, como o estoico Marco
Aurélio, num Olimpo ou num Parnaso de papelão, ou simplesmente numa cadeira
acadêmica, ditem-nos leis, vangloriando-se de um conhecimento superior das leis
eternas (RECLUS, 2002, p. 51)
A noç~o de “evoluç~o humana” para ele passava fundamentalmente por grandes
momentos de rupturas (RECLUS, 2002, p. 114). Mas onde reside a necessidade da (re)
interpretaç~o do conceito de “evoluç~o” para Reclus? Podemos considerar alguns fatores:
primeiramente, a confusão entre o termo evolução para os positivistas e para Reclus;
segundo, na própria necessidade de desse conceito para entender a revolução e o anarquismo.
Uma leitura atenta do que ele chamou de “evoluç~o” pode nos atentar para fatos de extrema
import}ncia { pr|tica revolucion|ria. Sendo assim, a “evoluç~o” para Reclus é,
(...) sinônimo de desenvolvimento gradual, contínuo, nas idéias e nos costumes, é
apresentada como se fosse o contrário dessa assustadora, a Revolução, que implica
mudanças mais ou menos bruscas na realidade. É com um entusiasmo aparente, ou
mesmo sincero, que discorrem sobre a evolução, sobre os progressos lentos que se
realizam nas células cerebrais, no segredo das inteligências e dos corações; mas que
não lhes falem da abominável revolução, que escapa repentinamente dos espíritos
para eclodir nas ruas, acompanhada, às vezes, por gritos da multidão e pelo estrépito
das armas (RECLUS, 2002, p.29).
A questão da anarquia para Reclus vem imbuída de um olhar cientificista em que o
mundo aparece de acordo com a necessidade de uma lei universal de evolução. Sendo assim,
para o próprio anarquista francês, o anarquismo é parte fundamental da própria evolução
natural do mundo como finalidade do progresso humano. Sendo assim, o ideal de “evoluç~o”
do qual fala Reclus não deve ser confundido com a evolução dos positivistas e hegelianos.
Vejamos o que ele diz:
207
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
a evolução é o movimento infinito de tudo o que existe, a transformação incessante do
Universo e de todas as suas partes desde as origens eternas e durante o infinito dos
tempos (RECLUS, 2002, p.21).
Porém, o caráter revolucionário dessa evolução reside quando notamos que, a
“evoluç~o” toma um car|ter de contraditoriedade, j| que,
cada uma de suas evoluções realiza-se por um deslocamento de forças para um novo
ponto. O movimento geral da vida de cada ser, em particular, e em cada série de seres
não nos mostra em lugar nenhum uma continuidade direta, mas sempre uma sucessão
indireta, revolucionária, por assim dizer. Um ramo não se acrescenta ao comprimento
de outro ramo. A flor não é o prolongamento da folha, nem o pistilo do estame,e o
ovário difere dos órgãos que lhe deram origem (idem, p. 27).
Com certeza Élisée recebeu influências dos positivistas, principalmente no que tange
a percepção sobre a razão e a ciência. Porém, o ideal de evolução no pensamento reclusiano é
a determinação relacionada entre o desenvolvimento dos seres humanos (físicos e
intelectuais) com a revolução (em prol da negação das autoridades e de qualquer forma de
governo). Portanto, quando se diz desenvolvimento e evolução pressupõe a mesma coisa, pois
evolução ao longo dos trabalhos historiográficos levou um sentido pejorativo de caminho
progressivo que caminha a humanidade estabelecendo a diferença e a estratificação entre
superiores e inferiores. Desmistificando o que Reclus entende por evolução,
A flor não é um prolongamento da folha, nem o pistilo do estame, e o ovário difere dos
órgãos que lhe deram origem. O filho não é a continuação do pai ou da mãe, mas um
novo ser. O progresso se faz por uma mudança continua dos pontos de partida para
cada indivíduo distinto. O mesmo acontece com as espécies (idem, p. 29).
Como afirmou Reclus,
De revolução em revolução o curso da história assemelha-se àquele de um rio
estancado de espaço em espaço por comportas. Todo governo, todo partido vencedor
tenta, por sua vez, represar a correnteza para utilizá-la, à direita e à esquerda, em suas
pastagens ou sem seus moinhos. A esperança dos reacionários é que seja sempre
assim e que o povo-ovelha deixe-se, de século em século, desviar de seu caminho,
enganar por hábeis soldados, ou por advogados eloqüentes (idem, p. 38).
Para o geógrafo anarquista, a “evoluç~o” e a “revoluç~o” s~o dois atos sucessíveis de
um mesmo fenômeno, a evolução precedendo a revolução, e esta precedendo uma nova
evoluç~o, “m~e de revoluções futuras”. Sendo assim, ele rasga críticas aos evolucionistas
reacion|rios que creem na “evoluç~o das idéias” e que negam a experiência concreta da luta
revolucionária. Ele diz:
Há, entretanto, espíritos indecisos que crêem honestamente na evolução das idéias,
que acreditam vagamente numa transformação correspondente das coisas, e que,
todavia, por um sentimento de medo instintivo, quase físico, querem, pelo menos em
vida, evitar toda revolução. Eles a evocam e a conjuram ao mesmo tempo: criticam a
sociedade atual e sonham com a sociedade futura como se ela devisse surgir
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
208
Luta de Classes e Contemporaneidade
repentinamente, por um, tipo de milagre, sem que o mínimo estalido de ruptura
produza-se entre o mundo passado e o mundo futuro (idem, p. 23).
Existe outro tipo de evolucionistas, os que perdem o sentido final da evolução, como
mero pensamento específico desligado do campo social, que é a revolução. Para ele uma outra
classe,
de evolucionistas é a das pessoas que, no conjunto das mudanças a se realizarem,
vêem apenas uma única, e consagram-se estritamente, metodicamente, à sua
realização, sem se preocupar com outras transformações sociais. (...) A pretexto de
consagrar seus esforços a uma reforma de realização vindoura, perdem de vista por
completo todo seu ideal superior e o rejeitam até mesmo com cólera, a fim de eu não
sejam suspeitos de compartilhá-lo (idem, p. 24).
Estes evolucionistas só querem conservar a sociedade privilegiada j| que “é uma
quimera esperar que a Anarquia, ideal humano, possa emanar da República” ((idem, p. 83).
Para tal efeito de conservação ligam-se aos dogmas sendo estes a peça fundamental de
organização e princípios, por exemplo, o Estado e a Igreja. Para Reclus, todos os reacionários
ligam-se aos ideais religiosos,
Se os contramestres e os guardas campestres ou florestais, os soldados e o pessoal da
polícia, os funcionários e os soberanos não inspiram ao popular um terror suficiente,
não se deve apelar a Deus, aquele que recentemente dispunha das torturas eternas do
Inferno, das provações mitigadas do Purgatório? Invocam-se seus mandamentos e
todo o aparelho da religião que reivindica sua autoridade (idem, p. 102).
É neste ponto fundamental que podemos diferenciar Reclus dos ditos evolucionistas
reacionários, positivistas, do seu contexto. O caráter de ruptura é central em seu pensamento.
A desmistificação de seu pensamento é fundamental, pois sendo influenciado por Karl Ritter,
como citamos anteriormente, não quer dizer que Reclus absorveu seu pensamento de forma
una e a-crítica. Sendo assim, conclui,
Os imensos progressos já realizados dão-nos confiança do futuro. Mas vós, que
desesperais, invocai de novo o Cristo redentor, com seu paraíso onde só alguns eleitos
ouvirão o canto das violas durante os séculos dos séculos, enquanto no inferno, os
bilhões e bilhões de malditos arderão para sempre! (RECLUS, 2011, 78-79)
Mas, uma questão que pesa na concepção de Reclus sobre a evolução é que esta nem
sempre é boa para o desenvolvimento da humanidade para sua emancipaç~o, pois “tudo
muda, tudo se move na natureza, em um movimento eterno, mas, se poder haver progresso,
pode também existir retrocesso” (idem, p. 29). O que leva a evoluç~o ser benéfica é a quest~o
de ela ser anárquica. Portanto, a ação é fator preponderante nessa posição desde que o
acontecimento histórico e social dever ser transformador para que a boa evolução se realize.
209
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
O pensamento evolucionista de Reclus se confundido com o mecanicismo positivista
leva,
a Anarquia encarada como a transformação das ideias que evoluem superando as
ideias passadas, levando a verdadeira revolução, assim como todos os outros
elementos naturais e sociais que seguem a lógica de uma mesma lei Universal, sem
existir diferenças fundamentais que exijam um tratamento diferente entre os minerais
e a filosofia por exemplo (BONOMO, 2007, p. 325).
À guisa de conclusão podemos identificar os elementos que justificam essa (re)
interpretaç~o no pensamento de Reclus. O objetivo dos evolucionistas “é conhecer a fundo a
sociedade ambiente que eles reformam em seu pensamento. Em segundo lugar, devem buscar
dar-se conta precisamente de seu ideal revolucion|rio” (RECLUS, 2002, p. 67).
É nesse sentido que a noção de uma evolução revolucionária colocara a queda do
capital, que poderá emanar das forças que promovem o trabalho e produzem a riqueza social,
a partir das necessidades individuais no coletivo, a maneira que possibilitem a emancipação
humana, abolindo o capital e a sociedade de classes.
A emancipação social integral só poderá desenvolver com as formas de auto
organização em que não se apoiam em governos e caminham para auto libertar-se. Essa
proposta sobre o pensamento de Reclus está com tal intuito, visa contribuir para a luta
revolucionária socialista libertária, desmistificando elementos engessados no anarquismo
histórico.
Referências
BONOMO, Alex Buzeli. O Anarquismo em São Paulo: as Razões do Declínio (1920 – 1935). São
Paulo, PUC-SP, 2007.
MIYAHIRO, Marcelo Augusto. A viagem científica de Élisée Reclus ao Rio de Janeiro da Primeira
República.
São
Paulo.
Disponível
em:
http://enhpgii.files.wordpress.com/2009/10/texto_marcelo_augusto_miyahiro.pdf.
Acesso
em: abril de 2012.
MOREIRA, Ruy. O Pensamento Geográfico Brasileiro: as matrizes clássicas originárias. Vol.1.
São Paulo: Editora Contexto, 2008.
PALACIOS, David Alejandro Ramírez. Élisée Reclus e a Geografia da Colômbia: cartografia de
uma interseção. São Paulo: Editora da USP, 2010.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
210
Luta de Classes e Contemporaneidade
RECLUS, Élisée. A evolução, a revolução e o ideal anarquista. São Paulo: Imaginário e Expressão
& Arte, 2002.
RECLUS, Élisée. Anarquia pela educação. São Paulo: Hedra, 2011.
RECLUS, Élisée. O Homem e a Terra – Educação. São Paulo: Imaginário/ Expressão & Arte,
2010.
SAMIS, Alexandre. Negras Tormentas: o federalismo e o internacionalismo na Comuna de Paris.
São Paulo: Hedra, 2011.
BONOMO, Alex Buzeli. O Anarquismo em São Paulo: as Razões do Declínio (1920 – 1935). São
Paulo, PUC-SP, 2007.
211
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
A importância da organização: Errico Malatesta e seu programa revolucionário
Deivid Carneiro Ribeiro (IFG)
[email protected]
Resumo: A presente comunicação tem como objetivo central a discussão de algumas teses do
anarquista italiano Errico Maltesta. Não somente, mas como essas teses têm ainda
importância para se pensar a organização dos trabalhadores e para a superação da sociedade
capitalista. Assim, discutiremos no no presente trabalho, tendo como referência os escritos de
Malatesta, a importância que uma organização de trabalhadores bem estruturada possui para
a emancipação dos mesmos. Discutiremos, também, de que forma Malatesta caracteriza uma
organização de trabalhadores que realmente traz consigo a vontade de superar o modelo
social vigente, usando como ponto de partida para a análise a forma libertária de organização.
E por último, trataremos do que o autor chama de “partido anarquista”. Nesta parte,
apresentaremos o significado de “partido” para Malatesta e como esse partido, que é uma
forma de organização especificamente anarquista, deve se estruturar.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
212
Luta de Classes e Contemporaneidade
Abordagens do anarquismo: mediando a realidade no século XXI
Bruno Augusto de Souza1
Resumo: O presente estudo aborda as questões do anarquismo, sua forma de pensamento
ideológico, negando o autoritarismo, buscando a compreensão da sociedade no intuito de
aplicação dos princípios da solidariedade e liberdade, acima de tudo. Citando grandes
pesquisadores e cientistas anarquistas, como Piotr Kropotkin e Élisée Reclus, abrangendo
pequena parte de suas vidas, citando o porque da luta que ambos realizaram. E também
abrangendo de forma exemplar o que o capitalismo esmagador faz na vida das pessoas, sem
as mesmas perceberem, buscando uma forma clara de compreensão da necessidade de
mudança em todos os aspectos, citando o Brasil como exemplo disso, políticas de repressão e
literalmente escravidão dos trabalhadores, sendo aprisionados, mascarados pela realidade
midiática e opressora.
Palavras-Chave: Anarquismo, Reclus, Século XXI.
Introdução
O entendimento do princípio anarquista é de extrema importância para a compreensão
do embasamento referido neste artigo. A anarquia nega como princípio básico a autoridade,
qualquer forma de repressão autoritária, de manipulação que existe, bem como a exploração
intensificada no sistema capitalista.
"Nada de Estado" ou "nada de autoridade", malgrado sua forma negativa, tinha um
profundo sentido afirmativo em suas bocas. Era um princípio filosófico e prático,
significando ao mesmo tempo que todo o conjunto da vida das sociedades, tudo desde as relações cotidianas entre indivíduos até as grandes relações das raças para
além dos oceanos - podia e devia ser reformado, e o seria necessariamente, cedo ou
tarde, segundo os princípios da anarquia: a liberdade plena e completa do indivíduo,
os grupamentos naturais e temporários, a solidariedade, passada ao estado de hábito
social (KROPOTKIN, 2007, p. 33-34).
Sua principal forma de afirmação está na questão de uma sociedade livre, não só na
questão econômica, mas também nos aspectos culturais , religiosos, educacionais, nos quais a
abolição do Estado é uma das primeiras etapas para edificação de uma sociedade anarquista
Autor. Graduando do curso de Geografia na Universidade Estadual de Goiás, na Unidade Universitária de
Ciências Sócio-Econômicas e Humanas, é estagiário do Laboratório de Geoprocessamento na mesma unidade,
participa do grupo de estudos Geografia Anarquista de Reclus e a Questão Ambiental.
1
213
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
juntamente com apropriação direta do trabalho pelo trabalhador implantando a autogestão
da produção2.
Para Gomes (2009) nas últimas décadas o anarquismo tem aumentado suas
publicações, embora no campo acadêmico essa inserção continua sendo complicada,
mesmo em uma fase que esses debates tem sido feitos em algumas universidades, mas
como exceção do que regra.
Alvorecer do debate
Os movimentos anarquistas no século XIX, buscavam através de determinados
momentos históricos implantar suas concepções através de ações práticas (comuna de Paris,
Revolução Russa, criação dos sovietes, guerra civil espanhola), em que pese que muitas dessas
experiências apresentaram problemas práticos, mas torna-se inegável que as mesmas
mostram a validade das experiências conduzidas pelos próprios trabalhadores.
A forma habitual de cação anarquista é a agitação sobre dado assunto, que se
transforma em participação numa campanha de protesto. Esta pode ser reformista,
lutar por qualquer coisa que não mudará todo o sistema, ou revolucionária, favorável
a uma mudança do próprio sistema; pode ser legal ou ilegal, ou ambas ao mesmo
tempo, violenta, não violenta, ou simplesmente sem violência. Pode ter hipóteses de
triunfar ou nenhuma hipótese desde o princípio. Os anarquistas podem ser atores
importantes ou mesmo os atores principais da campanha, ou então podem
simplesmente ser um dos numerosos grupos que nela participam. Pensa-se logo de
seguida numa grande variedade de possibilidades de cação e de há um século a esta
parte os anarquistas experimentaram-nas todas. A forma de cação mais feliz e mais
típica é a cação direta (WALTER, 1969, p. 49-50).
Interessante observarmos que os exemplos acima citados, pouco são divulgados ou
analisados no meio acadêmico, nas perspectivas dos trabalhadores os sindicatos tem
procurado escamotear esses exemplos bem como as críticas colocadas pelos movimentos
marxistas libertários, divulgando os princípios do anarco-sindicalismo que combatia a luta
economicista e a propagava que a greve geral seria um elemento revolucionário, cabe lembrar
que nesse período a maioria dos sindicatos era proibido.
No entanto os burocratas sindicais praticam apenas formas de luta que auxiliam a
reprodução da exploração do trabalhador pelo capitalista. O senso comum da maioria das
pessoas continua vendo o anarquismo como algo que leva a "baderna", a "insanidade"
2 Em que pese que existe várias tendências dentro do anarquismo (anarco-sindicalismo, anarquismo
individualista, anarquismo filosófico, anarquismo libertário), o fato da liberdade e a abolição do Estado serem
elementos que caracterizam o anarquismo, indiferentes das correntes. Outra questão é que esse como
movimento social eclode no século XIX.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
214
Luta de Classes e Contemporaneidade
associada a questão da destruição do estado, esse fato ocorre pela falta de informação a
respeito dos princípios anarquistas.
O que apavora um grande número de trabalhadores e os afasta das idéias anarquistas
é essa palavra revolução, que lhes faz entrever todo um horizonte de lutas, combates e
sangue vertido, que os faz tremer à idéia de que um dia eles poderão ser forçados a ir
para as ruas e combater um poder que lhes parece um colosso invulnerável contra o
qual é inútil lutar violentamente, e que é impossível vencer (KROPOTKIN, 2007, p.39).
A necessidade das rupturas
O princípio anarquista nega diversas formas de autoridade, quebrando paradigmas,
formando rupturas nunca antes pensadas, essa questão é de que os detentores do poder
jamais aceitariam formas sucintas de "desmascaragem" essa realidade.
As revoluções passadas, que se voltaram todos contra seu objetivo e o deixaram
sempre tão miserável quanto antes, contribuíram em muito também para tornar o
povo cético em relação a uma nova revolução. Para que combater e fracassar, diz-se,
para que um bando de novos intrigantes para nos explorar no lugar daqueles que
estão no poder atualmente. E, choramingando, murmurando contra os blefadores que
o enganaram com promessas que nunca cumpriram, tapa os ouvidos contra os fatos
que lhe gritam a necessidade de uma ação viril, e cerra os olhos para não ter de
encarar a eventualidade da luta que se prepara (KROPOTKIN, 2007, p. 39).
O fato de alguns direitos existirem, por mínimos que possamos ter, vem das formas
como nossa sociedade em idos da civilização sempre lutou por esses direitos, como já disse,
por mínimos que sejam3. Devemos não acomodar com as migalhas que os detentores do poder
nos dão, mas sim, espelhar nas revoluções de antigamente para fazermos novas revoluções, a
idéia central é eclodir esse pensamento na grande massa, fato complexo, mas não impossível.
Pois, na iminência da revolução, mesmo sem conhecer as abordagens e seus aspectos, todos
lutam por uma mesma causa, mas essa causa deve ter consequências atuais e não que levam
décadas para serem aceitas e empregadas.
O pensamento de Reclus da natureza e o problema da destruição da mesma
Para RECLUS (1985), a natureza é pensada de uma forma a mostrar sua necessidade
de integração nas sociedades e não como mera fonte de riqueza para satisfação das
necessidades da sociedade capitalista, sua perspectiva ambiental mostra claramente
Nas civilizações antigas sempre houve guerras para fazer com que possuíssem direitos mínimos que foram e
estão se transformando, e conseguindo até hoje.
3
215
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
suas concepções anarquistas que se baseiam na noção de apropriação coletiva do
ambiente, para extrair somente os bens necessários para apropriação dessa geração e
das outras.
Os bens necessários são na verdade uma porcentagem mínima do que se corrompe a
natureza e as formas de vida hoje presentes, o capitalismo com o princípio de acumulação e
lucro fez com que a exploração ideológica e da natureza se faz presente de uma maneira
invisível, é fato que concordamos com que a natureza está cada vez mais devastada, mas a
realidade é outra, porque, mesmo com a consciência, todos não param de assolar a natureza,
do ponto de vista ideológico, podemos ter a consciência e lutar, mas do ponto de vista
material, isso se torna extremamente complexo, porque estamos no meio do capitalismo e
muitas vezes estamos sem saída, o estopim está iminente da necessidade de uma mudança
radical.
A questão de apropriação da natureza pelo homem, começando no pensamento do
racionalismo moderno, o homem de certa maneira, compacta o mundo e também o fragmenta
para melhor decifração, e posteriormente, melhor destruição.
À beira-mar, as falésias mais pitorescas, as praias mais encantadoras também são em
muitos lugares açambarcadas por proprietários invejosos ou por especuladores que
apreciam as belezas da natureza à maneira dos cambistas avaliando um lingote de
ouro. Nas regiões montanhosas freqüentemente visitadas, o mesmo furor de
apropriação apodera-se dos habitantes: as paisagens são recortadas em quadrados e
vendidas ao comprador mais abonado; cada curiosidade natural, o rochedo, a gruta, a
cascata, a fenda de um glaciar, tudo, até o som do eco, pode tornar-se propriedade
particular. Empreendedores apossam-se das cataratas, cercam-nas de tapumes para
impedir os viajantes não-pagantes de contemplar o tumulto das águas, depois, à força
de publicidades, transformam em belas moedas sonantes a luz que brinca nas
gotículas rompidas e o sopro do vento que espalha no espaço echarpes de vapores
(RECLUS, 2010, p. 85-86).
Podemos citar Humboldt para início de exemplificação, Humboldt com conhecimento
científico baseado nas ciências naturais, visava com viagens épicas, embasar a evolução de
vegetais e animais, pois, é uma forma exemplar de mostrar que tudo está interconectado. Essa
perspectiva humboldtiana, considerada referência nos estudos da geografia tradicional,
contrariava a análise de Reclus, que não separava o ambiente natural do social.
RECLUS (2010, p. 34) demonstra que não existe determinismo natural, pois a
influência de um mesmo fator natural na sociedade humana pode evoluir, e até mesmo mudar
totalmente de sentido, pois a sociedade melhora incessantemente sua capacidade de controlar
os elementos naturais.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
216
Luta de Classes e Contemporaneidade
A respeito dessa exploração e condições precárias de sobrevivência que existem na
maior parte do mundo, Piotr Kropotkin, um exemplar cientista e revolucionário russo,
nascido no fim da primeira metade do século XIX, com um futuro promissor no
exército, filho do príncipe Aleksei Petrovitch, serviu por cinco anos como oficial do
exército russo na Sibéria, Kropotkin vendo “a crueldade com que eram tratados os
desterrados, em especial os poloneses dissidentes que se opunham ao domínio russo
em seu país, fez com que ele e seu irm~o, Alexandre” , se ausentassem do exército
russo (KROPOTKIN, 2007, p.10).
Portanto a natureza é profanada por tantos especuladores precisamente por causa de
sua beleza, não é surpreendente que em seus trabalhos de exploração os agricultores
e os industriais negligenciem quanto a perguntar-se se eles não contribuem para o
enfeamento da terra. É certo que o "duro labor" preocupa-se muito pouco com o
encanto do campo e com a harmonia das paisagens, desde que o solo produza
colheitas abundantes; portando seu machado ao acaso nos bosquetes, ele abate as
árvores que o incomodam, mutila indignamente as outras e dá-lhes o aspecto de
estacas ou vassouras. Vastas regiões, outrora belas de se ver e que amava percorrer,
foram inteiramente desonradas, e experimenta-se um sentimento de verdadeira
repugnância ao observá-las. Por sinal, ocorre freqüentemente que o agricultor, pobre
em ciência bem como em amor pela natureza, engane-se em seus cálculos e cause sua
própria ruína pelas modificações que introduz sem sabê-lo nos climas. Do mesmo
modo, pouco importa ao industrial, explorando sua mina ou sua manufatura em pleno
campo, enegrecer a atmosfera com fumaças da hulha e viciá-la por vapores
pestilenciais (RECLUS, 2010, p. 86-87).
A questão abordada no Brasil
Hoje no Brasil, país este totalmente assolado pelo capitalismo, mas no mundo do século
XXI qual país não é assolado por este capitalismo destruidor? Brasil país considerado
emergente, mas com uma desigualdade econômica astronômica, onde multinacionais alocamse em locais com mão-de-obra barata, visando à total exploração da mais-valia. Nessa
perspectiva as considerações feitas por Reclus e Kropotkin continuam válidas, mostrando
assim o poder de autores clássicos que os mesmos propõem desde idos do século XIX,
mostrando significativos até em nosso presente século XXI.
Um exemplo disso são as grandes montadoras de veículos, onde constroem grandes
fábricas nas cidades dos mais divergentes tamanhos. Os veículos no Brasil, ainda são vendidos
a “peso de ouro”, onde o consumidor que trabalha 8 horas por dia e n~o revê seus direitos
paga o preço que não vale em produtos ruins. Fora a destruição ambiental que esse modo de
produção produz no espaço geográfico.
As crises que ocorrem nas chamadas economias centrais ou em países centrais,
refletem a falência do Estado em relação, aos problemas causados pelo capital e o papel que
217
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
esse estado tem em reproduzir o capital sendo assim assumindo sua verdadeira face,
burguesa na qual essa instituição jamais pode servir a classe trabalhadora.
É o Estado. É o crescimento contínuo e a ampliação das funções do Estado, embasado
nessa fundação bem mais sólida do que a religião ou o direito de hereditariedade - a
lei. Enquanto durar o Estado, enquanto a lei permanecer sagrada aos olhos dos povos,
enquanto as revoluções futuras trabalharem pela manutenção e pela ampliação das
funções do Estado e da lei, os burgueses conservarão o poder e dominarão as massas.
A constituição do Estado onipotente que faz a força atual da burguesia. Pela lei e pelo
Estado, os burgueses apoderaram-se do capital e constituíram sua autoridade. Pela lei
e pelo Estado, eles a mantém. Pela lei e pelo Estado, prometem ainda reparar os males
que corroem a sociedade (KROPOTKIN, 2007, p. 100).
A pressão da mídia
Diz-se importante o trabalhador comprar, palavra essa primordial para a manutenção
do capitalismo, o trabalhador é bombardeado todos os dias por propagandas na mídia, onde a
pessoa após o trabalho, chega a sua casa e em seu momento de lazer é corrompido por
propagandas enganosas impondo que ele precisa consumir exacerbadamente, que nada em
sua casa está bom e que ele está fugindo dos padrões da moda.
Tudo isto nos remete aos primeiros programas televisivos nos Estados Unidos, onde a
programação era formada em grande parte por desfiles de moda. Os desfiles de moda só
trazem benefícios, ou melhor, só traz algo concreto para a indústria da moda, nem se dá para
explorar muito isso em forma de utilidade para as pessoas que vivem fora desse meio.
A moda, algo imposto na sociedade, é a visão perfeita para a concepção inerente do
capitalismo, alguma coisa abstrata que terceiros impõe para a grande maioria usar, já é uma
forma de repressão.
As vestimentas como qualquer forma de locomoção do ser humano, devem ser feitas
com a opinião própria, o que lhe convém e o que não lhe convém usar. Criação de leis para a
repressão das pessoas sempre são aprovadas com louvor, o que não acontece com as leis de
cortar benefícios dos que compõem o governo.
Vejamos uma forma de fazer com que os trabalhadores se sintam "justamente
remunerados", o 13º sal|rio é uma forma fantasiosa de um pagamento “extra” para os
trabalhadores, onde as pessoas trabalham na verdade por 13 salários e recebem 12 em um
ano, isso explica a total desigualdade econômica no Brasil.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
218
Luta de Classes e Contemporaneidade
A venda do tempo é outra coisa ilógica, pois, o mês é designado por 30 dias, outra
forma de aprisionamento das pessoas, onde é a grande forma de acumulação de capital dos
empresários.
Essa designação de horas de trabalho e dia, aprisiona todos a trabalhar exaustivamente
para não receber o que lhes é de direito, sendo recebido somente quantias insignificantes para
uma pessoa sobreviver.
Nostalgia e pós-modernidade
Não precisamos ver um mundo antigo, de nossos antepassados, apropriando dos locais
do mundo em sua plenitude, plenitude principal do planeta Terra, onde histórias eram
mencionadas com orgulho, pessoas utilizando de forma sucinta a linguagem, onde somente
vimos isto em histórias fantasiosas, mundos surreais para nossa atual realidade.
A questão da natureza nas histórias antigas eram cheias de invenções para fazer com
que o vislumbre se tornasse grande. O esplendor dos contornos da natureza ambiente
restaria desconhecido a homens que, sob o golpe de um vago terror cuidadosamente
alimentado pelos feiticeiros de todo tipo, não cessavam de perceber nas grutas, nos
caminhos desertos, nas gargantas das montanhas, nos bosques povoados de sombra e
silêncio, fantasmas informes e monstros horríveis assemelhando-se simultaneamente
ao animal e ao demônio. Que estranha idéia deviam fazer da terra e de sua beleza
esses monges da Idade Média que, em seus mapas-múndi, nunca deixavam de
desenhar, ao lado dos nomes de todos os países longínquos, animais vomitando fogo,
homens com cascos de cavalo ou cauda de peixe, grifos com cabeça de carneiro ou boi,
mandrágoras voadoras, corpos decapitados com grandes olhos de espanto alojados no
peito! (RECLUS, 2010, p. 63).
Hoje vemos um mundo completamente desigual em todos os sentidos, desde o
nascimento de pessoas não favorecidas financeiramente, citemos o Brasil, onde a saúde
pública fica cada vez mais medíocre, se existe o dinheiro, existe o atendimento, se não há
dinheiro, então também não há atendimento, pode-se até afirmar que a culpa é total das
pessoas, se o médico não atende é porque ele está de má fé, só quer saber do dinheiro, mas
vejamos que estão inseridos no capitalismo, quem não está trabalhando por seu sustento?
Pela questão financeira? Todos buscam melhorias.
Com esse intuito, podemos afirmar que a culpa é do sistema capitalista, onde préjulgam todos a partir de quando o referido ser humano é concebido no planeta Terra.
Não fazendo de sua única exclusiva vontade ou de um grupo, mas da totalidade
irremediável, podemos abdicar de luxos, que na verdade é uma palavra capitalista e
219
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
inescrupulosa, pois mostra o que muitos não tem, uma total falta de generosidade por grande
parte do mundo. Aplicando a visão de um cristão é simples, pois, se somos todos filhos de
Deus, porque nossos bilhões de irmãos são cruelmente abdicados dos "luxos"? Onde em
muitos lugares o luxo de uma refeição se torna mortal a cada momento.
As projeções do quantitativo de habitantes no Planeta Terra são alarmantes, hoje a má
distribuição de renda gera total desordem, fome e mortes no mundo, quando se passar
algumas poucas décadas se fará necessário a racionalização de suprimentos básicos para a
sobrevivência. Fato que já ocorre entre as pessoas que não tem acesso à alimentos, saúde,
trabalho.
Se consolidarem as projeções recentes, o que será do Planeta daqui essas poucas
décadas? O ser humano ajudará a destruir tudo o que ele apropriou, mas a destruição será o
mínimo que poderia acontecer, vide a irresponsabilidade e também o uso em benefício
próprio de todos os recursos presentes na vida terrestre.
A poluição que se faz presente no Planeta é outro fato consolidador do caos, a poluição
da água e do ar, são as formas mais graves para a vida terrestre. Isso está iminentemente
ligado as grandes indústrias, onde liberam no ar produtos tóxicos em formas de nuvens, e
depositam nas águas resíduos de lixo tóxico, formando um ciclo da morte nas vizinhanças.
A iminência da (r)evolução
A questão que se coloca sempre em discussões anarquistas é de que nesse mundo
assolado pelo capitalismo não teria como as relações anarquistas envolverem todos, pois, a
necessidade dos bens se tornam primordiais, mas aí que está a revolução. As pessoas
enxergam um mundo solidário como um mundo destruído, sem policiais, sem o poder público,
já acostumaram a deixar de lado suas singularidades, talvez nem exista mais singularidade
nas pessoas.
A solidariedade seria a forma final de um mundo anarquista, relações corretas,
trabalho sem exploração, divisão precisa. Não haveria crimes e poluição, pois não precisaria
explorar as pessoas para sua sobrevivência e também a necessidade de respeito e restauração
do meio ambiente. Grandes fábricas exploradoras da mais-valia desapareceriam, a
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
220
Luta de Classes e Contemporaneidade
necessidade de locomoção para lugares longínquos extinguiria, a necessidade de educação,
saúde, alimentos, moradia e trabalho estariam ao alcance de todos.
Um mundo auto gerido evitaria que catástrofes naturais se tornassem catástrofes
mortais, como sempre ocorreram, pois evitaria as péssimas condições de moradia para
grande parte da população mundial, que vive literalmente no limbo, esperando somente o
juízo final chegar para dar um fim em suas miseráveis e exploradas vidas.
Maior caos que vivemos no capitalismo não há como expandir para destruições
maiores. A necessidade iminente de renovação está sendo clamada.
Referências
GOMES, P. N. Élisée Reclus: Por uma Nova geografia Libertária. 2009.
KROPOTKIN, P. O Princípio Anarquista e Outros Ensaios; organização e tradução Plínio
Augusto Coêlho. São Paulo: Estudos Libertários: Ed. Hedra, 2007.
RECLUS, E. A Natureza da Geografia. 1985.
RECLUS, E. Da Ação Humana na Geografia Física; Geografia Comparada no Espaço e no
Tempo; organização e tradução Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Expressão & Arte: Ed.
Imaginário, 2010.
RECLUS, E. Do Sentimento da Natureza nas Sociedades Modernas; organização e tradução
Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Expressão & Arte: Ed. Imaginário, 2010.
WALTER, N. Do Anarquismo. 1969.
221
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Marx Anarquista? – reflexões sobre as possibilidades de um
Marxismo Libertário
Mariana Affonso Penna (UFF)
[email protected]
Resumo: O senso comum da militância política tem por recorrente a associação da produção
intelectual de Marx ao chamado “Socialismo Real”, que se desenvolveu na URSS a partir da
Revolução de 1917. Neste aspecto dividem-se os simpatizantes daquele modelo e seus
opositores, que observam no leninismo e, posteriormente, no stalinismo, práticas políticas de
caráter autoritário. Ao tratar do Anarquismo, opiniões novamente dividem-se entre seus
entusiastas, (sejam eles coletivistas ou individualistas) de um lado e seus opositores, que
consideram Anarquismo sinônimo de desorganização e utopia.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
222
Luta de Classes e Contemporaneidade
Considerações do princípio anarquista de Kropotkin, até os dias de
hoje
Aroldo Pedreira Barbosa da Silva1
Resumo: As considerações deste trabalho se refere ao princípio anarquista no final do século
XIX, abordando as lutas de classes com o princípio da autoridade do campo privado, como
também o do casamento até o governamental. No primeiro momento o autor começa
apresentando uma simples negação do estado e de qualquer espécie de autoridade ou
egoísmo absurdo e na opressão bem como na moral corrente derivada do código romano
adotado e santificado pela igreja cristã. Foi nessa luta engajada contra a autoridade, nascidas
no próprio seio da internacional, que o partido Anarquista constituiu-se como partido
revolucionário distinto. Nos escritos de Bakunin, tanto quanto encontramos profundas
considerações relativas aos fundamentos históricos da idéia anti-autoritária, nada de estado
ou nada de autoridade.
Palavras -Chave: Anarquia, sociedade, Estado, autoridade.
Introdução
Kropotkin , Que era um príncipe russo nascido em berço de ouro, herdeiro de um titulo
de nobreza, que logo renuncia e segue para a casa dos Ruriks,(Dinastia anterior à Romanov),
Desde cedo foi interessado pelos mistérios da natureza e da sociedade. Terminando seus
estudos em 1861, na academia militar, foi designado ir para a Sibéria.
Lá começa a indignação, por presenciar a crueldade com que era tratado os Poloneses
em especial. Em sua memória, a anarquia tem o seu surgimento do processo de negação das
estruturas opressoras vigente na sociedade, as instituições burguesas como o Estado e o seu
aparato repressivo (Escola, Justiça, policia etc...) são combatidas pelo anarquismo, pois
representam a ordem imposta e não natural da organização em sociedade. A concepção de
uma sociedade livre, sem autoridade, avançando para a conquista do bem-estar material,
intelectual e moral – Seguia de perto a negação. Nos escritos de Bakunin, tanto quanto
naqueles de Proudhon, e também de Stirner, encontramos profundas considerações relativas
aos fundamentos históricos da idéia anti-autoritária: Que dizia não ao Estado e nada à
Graduando do curso de Geografia na Universidade Estadual de Goiás, na Unidade Universitária de Ciências
Sócio-Econômicas e Humanas. Participa do grupo de estudos A Geografia anarquista de Reclus e a questão
ambiental.
1
223
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
autoridade, malgrado sua forma negativa, tinha um profundo sentido afirmativo em suas
mentes. Era um principio filosófico e prático, para que todo o conjunto da vida das sociedades,
desde que as relações das raças fossem para servirem todo o planeta sem restrição de cor,
raça ou qualquer outro tipo de discriminação. Podia e devia ser reformado, cedo ou tarde,
segundo os princípios da Anarquia: A liberdade plena e completa do indivíduo, (Kropotkin
2007, p.34)
Essa liberdade proposta pelo anarquismo surge da necessidade (...), Sem açoite, sem
coerção, de um modo ou de outro, sem o açoite do salário ou da fome, sem aquele do juiz ou
do policial, sem aquele da punição de uma forma ou de outra, eles não podem conceber a
sociedade. Só nós ousamos afirmar que punição, polícia, juiz, salário e fome nunca foram e
jamais serão um elemento do progresso, (Kropotkin 2007, p. 36).
Revolução
Segundo Bakunin em alguns de seus livros, afirma, pelas ações anarquista que a
revolução é inevitável, tudo leva a ela, tudo contribui para esse confronto. Ora, se olharmos
para o Brasil nestes últimos anos veremos que de um modo em geral, a classe trabalhadora
tem se revoltado constantemente contra a ordem estabelecida, as revoltas se manifestam nos
terminais de ônibus, nas filas dos cais, nas resistências promovidas pela classe contra o
processo de especulação imobiliário nas cidades, no campo a luta pela terra continua. Esses
fato são potencializados pelos escândalos por exemplo como os fanfarrões nadarem de
braçadas no rio de dinheiro, no entanto a mídia procura colocar que esses fatos são isolados e
não a própria essencial das relações do estado.
Em conseqüência desse sistema, cada vez mais explorador da sociedade de um modo
geral, é que presenciamos a insatisfação de vários órgãos públicos que, na maioria dos setores,
passam pela mesma situação do efetivo que trabalha para o setor privado. A insatisfação
tamanha dessa população, está levando-os as ruas, paralisando serviços públicos, como
exemplo: a greve dos bombeiros no Rio de janeiro e das polícias militares de vários estados
brasileiros, onde houve intervenção das forças armadas, indo as ruas
para manter
a
ordem. Isso significa o desconforto dos funcionários públicos, e que a situação não pode
prolongar-se, e que tudo leva a um confronto
em
massa
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
da multidão.
Não adianta o
224
Luta de Classes e Contemporaneidade
Estado aumentar seu efetivo de seguranças ou tropas especiais como são chamadas, e de
contratar funcionários temporários com baixos salários.
Dia Seguinte
A revolução Segundo ( Kropotkin 2007, p.42), em sua fala, ele cita as objeções que as
idéias anarquista enfrenta, quando é dito que a anarquia por si só não teria como se defenderse de outras potencias,
e dos burgueses que provavelmente tentariam recuperar sua
autoridade e estabelecer seu propósito de dominação. Mas se os que pensam neste sentido,
dessem conta, do que poderia causar uma revolução social, perceberia que logo cairia por
terra sua posição e que os meios de transição que postulam resultaria no estrangulamento da
revolução que eram obrigados, a realizar tal tarefa. É evidente que a proporção que a
revolução, causaria, nas instituições sociais é, provavelmente impossível ser uma obra de dois
ou três dias de luta, mas sim, de uma longa sequência de lutas, que poderão durar anos, e
gradualmente a eliminar qualquer tipo de preconceitos, e que tendo destruído todos os
obstáculos, e a humanidade estiver em plena liberdade.
Teoria e Pratica
Na teoria e na pratica, (Kropotkin 2007, p.45), fala desses dois termos, o primeiro
determina, e o segundo presta-se a equívocos. Sendo assim a quase totalidade dos crimes, tem
uma simples e única causa: É a cobiça, que leva a vontade de possui-la; levando o ser humano
a loucura arrebatadora do ouro e a das grandezas. E as leis são garantias feitas para justificar
a legalidade dos crimes da classe dominante, e usadas para punir as contravenções dos pobre.
Corrupções envolvendo autoridades do alto escalão, onde é perceptível a punição
Que na verdade se dá de forma que, o envolvido renuncie, no caso ser parlamentar.
compreendendo assim os anárquistas, que ai se encontra o verdadeiro mal da humanidade. Se
sobre as ruínas desse mundo ingrato e assustador, um outro viesse e o trabalhador segundo
as suas aptidões, trabalharia a sua vontade e necessidades.
Egoismo
O sentimento é para Kropotkin, a mais poderosa alavanca do progresso, é ele que leva
o ser humano a interesses individuais instantâneos e materiais, unindo os oprimidos num
único pensamento, e uma única necessidade de emancipação, ensinando o homem a revolta-
225
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
se sem nenhuma perspectiva de vitoria, mas simplesmente uma protestação ou uma
afirmação, ou apenas um exemplo. Não é normal e nem se pode ser egoísta sem fazer mal a
outra pessoa ou a outros seres humanos, como por fim a própria vida, exemplo que aconteceu
na guerra dos países baixos e contra o poder dos Stuarts, nos séculos XVI e XVII, por fim,
vivemos um pouco a vida do outro; por que deixa atrás de si, lembranças, afeições e vestígios.
Então o que o anarquismo acredita é que para adquirir prazer ou satisfação, sem se preocupar
com o bem está do seu vizinho, é o mesmo que acreditar que a revolução do futuro, seria feita
em proveito dos mais poderosos, sendo assim, não teríamos por que reinvindicar uma idéia
de liberação geral.(Kropotkin 2007, p. 49-64) .
Casamento
Sobre o casamento, Segundo Kropotkin, em sua fala, cita que a religião e os burgueses
queriam manter indissolúvel, mas tiveram que corrigir, aplicando o divorcio, sendo um
processo que depende de dinheiro para ter sua validade. Em conseqüência da luta entre os
dois tipos de casamento, o matriarcado e o patriarcado, se desenvolveram lado a lado, na
série dos tempos e conforme as vicissitudes dos homens, ganhando ou perdendo em força
relativa, sem nunca manter o ponto de equilíbrio enquanto instituição. E naturalmente, esta
pretensão exclusiva à virtude gerou todos os males: Exemplo bem próximo nos dias de hoje
aqui no Brasil, em relação às mulheres, e seus maridos ou mesmos, simples companheiros
que, por motivo de se achar proprietário da mulher, cometem barbaridades, como
brutalidades na criação dos filhos em sua educação, maltratando seu cônjuge, seja
verbalmente ou fisicamente, chegando até o homicídio seja da própria esposa ou do cidadão
que provavelmente está lhe traindo. Por isso os anarquista repudiam a organização do
casamento, por acreditarem que dois seres humanos que se amam, precisem de um terceiro,
para viverem juntos e construir famílias. (Kropotkin 2007, p.65-66).
Isso conclui o pensamento de Èlisée Reclus, quando em sua fala ele diz que os
primitivos eram naturalmente levados a considerar como seu pertence, a pedra por ele
talhada ou o vaso feito com suas mãos, e, ao darem a outrem este objeto por eles fabricado, a
livre doação estabelecia sua qualidade de proprietário, mas não imaginavam que a pedreira
da qual extraíram o SILEX ou o campo de LAVA que lhes fornecera a obsidiana necessária à
sua indústria a pudessem torna-se propriedade pessoal.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
226
Luta de Classes e Contemporaneidade
Evolução socialista
Na idéia de Kropotkin, Ele comenta as características dessa época. Quando ele fala no
desenvolvimento do pensamento; e no prodigioso desenvolvimento das ciências naturais; da
impiedosa crítica aos preconceitos adquiridos sobre bases cientificas de observações,
experiência e raciocínio. Em questão a essa idéia, é perceptível que à séculos, a humanidade
corre rumo a esse ideal de liberdade, Igualdade e fraternidade, em seu livre desenvolvimento
pelo despotismo, pelo egoísmo das classes dominadoras e privilegiadas, esse movimento
favorecido pela indignação da população, levou a revolução, com isso abril caminho para mil
dificuldades internas e externas, e mesmo com a revolução vencida, suas idéias
permaneceram perseguidas e a evolução de um século terrivelmente lenta. Tempos depois o
socialismo aparece em nome da metafísica governamental dizendo que o estado está aí para
proteger os pobres contra a classe dominante e do capitalismo explorador, arrecadando a
mercadoria ou produto do seu trabalho. Ação rápida da burguesia cruel e calculista com
armas, acabou em junho de 1848,
somente 20 anos depois, começa a convidar os
trabalhadores para ingressarem na associação internacional dos trabalhadores (AIT),
somente aí que, o socialismo começa a falar em nome do povo mais uma vez. ( kropotkin,
2007, p 79).
Entretanto, assim como as religiões levaram as aspirações à justiça e a igualdade a um
céu Fictício, os filósofos e alguns juristas transmitiram o ideal de um direito verdadeiramente
equitativo embasado nas premissas formuladas por Zenão e pelos estóicos. Foi o pretenso
direito natural que, ao modo das concepções ideais da religião natural – iluminou fracamente
muitos séculos de crueldade e ignorância e cujo esplendor ajudava os espíritos. A tentativa de
dar uma realidade a esses ideais abstratos foi a maior contribuição que a idéia libertária deu à
humanidade. Esse ideal, tão diametralmente oposto àquele de um reinado supremo e
definitivo da autoridade, foi, em seguida, absorvida durante mais de dois mil anos. E
permaneceu enraizado no coração de todo homem honesto, perfeitamente consciente de que
isso era necessário, a despeito de seu ceticismo, de sua ignorância ou de sua oposição à
possibilidade próxima de realização, (Nettlau, p 32).
227
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Segundo Max Nettlau,
Compreende-se facilmente por que a autoridade – Estado,
propriedade, Igreja – Impediu
republica, o Império Romano e
a divulgação dessas idéias, e sabe-se de que maneira a
a
Roma dos Papas, até o
século XV, impuseram ao
mundo ocidental um fascismo intelectual absoluto, assim como o despotismo
oriental
renascente entre os bizantinos e os Turcos, e do mesmo modo o czarismo russo, o qual,
virtualmente, continua
no
bolchevismo.
Até o século XV, e inclusive, depois (
servvet,Bruno, Vanini), o livre pensamento foi proibido sob pena de morte e só pôde ser
transmitido secretamente por alguns homens de ciências e seus discípulos, talvez no círculo
muito restrito de algumas sociedades secretas. Ele só pode aparecer abertamente quando, no
fanatismo e no misticismo das seitas religiosas.
Reclus comenta em seus escritos, que o mundo está mudado, não olha mais para o
passado. Houve varias tentativas de adotarem um jardim do Édem em vários países como
Estados Unidos, Brasil e México, bem como na Australia, Europa e na África, entregando um
grande numero de colônias pelo qual, é buscar com maior ou menor sucesso, estabelecer
sociedades de trabalhadores felizes. Porém muito pequeno em relação a experimentação
geral, além dessas inúmeras empresas que tentam aplicar ao solo as forças industriais, e
procedimentos químicos e a força do trabalho que é dito como livre. Como em todos os
tempos a burguesia sai na frente, deixando para trás uma grande caravana de pobres infelizes
e desesperados, encontrando no cristianismo aquela bela frase onde diz, ( se bateres em tua
face, da outra para também bateres), enquanto esperam um milagre e a volta de um Rei de
Gloria.
Referências:
Kropotkin, P. O princípio Anarquista e outros ensaios. Série Estudos Libertários, São Paulo:
Ed. Hedra, 2007.
NETTLAU, M. História da Anarquia, das origens ao Anarco-comunismo. Ed. Hedra.
Autor: Élisée Reclus; Da ação humana na geografia física, Editora Imaginário, expressão e arte,
São-Paulo: 2010
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
228
Luta de Classes e Contemporaneidade
Lumpemproletarização e Luta de Classes na Argentina
Lisandro Braga
Resumo: Uma das principais conseqüências da neoliberalização da economia argentina, sem
sombra de dúvidas, foi a geração de milhares de postos de trabalho precarizados,
subempregos, empregos temporários e milhões de desempregados. O índice de desemprego
que na década de 1980 variava entre 4% e 6%, nos primeiros anos da década de 1990 chegam
a 18,4%. Apesar da singela recuperação no final dessa década, tais índices voltam a crescer de
forma assustadora a partir de 2001: dependendo da região, o índice de desemprego chegou a
atingir a cifra de 50% da população economicamente ativa. A intensidade com que a pobreza
foi atingindo amplos setores da classe trabalhadora foi proporcionalmente acompanhada pela
intensidade das tensões sociais derivadas de tal pobreza, pois para amplos setores da classe
trabalhadora argentina, o processo de privatização representou o fim de uma estabilidade no
emprego e o início de um caminho, muitas vezes sem volta, ao desemprego e à vida
lumpemproletária. A resposta popular a essa condição não tardou a aparecer, pois a história
argentina conheceria uma nova modalidade de protestos sociais e um novo sujeito histórico,
formado essencialmente pelo lumpemproletariado: o movimento piquetero. A intenção desse
seminário é discutir as múltiplas determinações desse processo e a dinâmica da luta de
classes derivada do mesmo.
O processo de lumpemproletarização traduz a principal conseqüência social do regime
de acumulação integral1 em todo o mundo, no entanto esse processo possui suas
singularidades segundo o modelo de capitalismo vigente em cada nação, isto é, apesar de
constatarmos
que
durante
a
vigência
do
regime
de
acumulação
integral
o
lumpemproletariado2 tende a crescer, tal crescimento ocorre de forma diferenciada, pois nos
países de capitalismo imperialista vem ocorrendo uma expansão do lumpemproletariado
enquanto nos países de capitalismo subordinado o processo de lumpemproletarização tende a
ocorrer de forma intensificada. A lumpemproletarização vem acompanhada da luta de classes
que, também, atinge coeficientes diferenciados de uma região para outra. Acreditamos que
esse seja o caso argentino. Vejamos.
Seguindo as análises de Maristella Svampa (2010), é possível perceber que durante
décadas a Argentina foi dominada por um modelo de integração nacional-popular cuja
máxima expressão foi a primeira fase do peronismo (1946-1955). Esse modelo se constituía

Doutorando em Sociologia/UFG e pesquisador do NUPAC – Núcleo de Pesquisa e Ação Cultural.
Sobre o regime de acumulação integral Cf. VIANA, 2009.
2 Para nós, o lumpemproletariado equivale a uma classe social composta pela totalidade do exército industrial de
reserva (desempregados temporários ou de longa data, mendigos, sem-tetos, prostitutas etc.).
1
229
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
por três grandes características: No plano econômico tal modelo se caracterizava por uma
concepção de desenvolvimento inspirada na substituição de importações e por uma estratégia
voltada para o desenvolvimento do mercado interno. No plano político o Estado se
apresentava como o agente garantidor da coesão social através dos gastos públicos sociais.
Essa política se traduzia na ampliação da cidadania burguesa3 através do reconhecimento dos
direitos sociais. Em terceiro lugar, havia uma tendência a promover a homogeneidade social
visível na incorporação de parcela significativa da classe trabalhadora, assim como na
expansão das classes auxiliares da burguesia4. Em linhas gerais, a Argentina se diferenciava
dos demais países latino-americanos por possuir um Estado que, dentro das limitações típicas
de um capitalismo subordinado, conseguia promover uma maior distribuição de renda e
serviços públicos de qualidade para a maioria da população.
O desmantelamento desse modelo social percorreu diversas etapas, no entanto não
ocorreu de forma linear nem tão pouco numa única seqüência. A substituição da sociedade
fordista para uma sociedade de acumulação integral conheceu diversos momentos.
De maneira esquemática, poderíamos afirmar que as mudanças na ordem econômica
se iniciaram durante a década de 70, a partir da instalação de regimes militares no
cone sul da América Latina; as transformações operadas na estrutura social
começariam a tornar-se visíveis na década de 80, durante os primeiros anos de
retorno à democracia; por último, podemos situar as maiores mudanças no final dos
anos 80 e princípio dos anos 90, com a gestão menemista (SVAMPA, 2010, p. 22).
Assim como em vários países da América Latina, a ditadura militar, que chegou ao
poder na Argentina no dia 24 de março de 1976, tinha como principais objetivos programar
uma rígida política de repressão, assim como refundar as bases materiais da sociedade. Por
um lado, o terrorismo de Estado promoveu o extermínio e disciplinamento de amplos setores
sociais mobilizados e, por outro lado, colocou em prática um programa de reestruturação
econômica que produziria profundas repercussões na estrutura social e produtiva do país.
“O cidad~o, enfim, é um indivíduo que cumpre com seus deveres e direitos, ou seja, é aquele que respeita a
propriedade privada, a liberdade de imprensa etc., paga os impostos, legitima o estado capitalista reconhecendo
o processo eleitoral etc. O cidadão é o indivíduo conservador, o indivíduo que aceita o mundo existente, ou seja, a
sociedade burguesa (modo de produção capitalista e formas de regularização não-estatais) e o estado capitalista.
A cidadania, por conseguinte, é a concretização dos direitos do cidadão e, portanto, significa a integração do
indivíduo na sociedade burguesa por intermédio do estado” (VIANA, 2003, p. 69).
4 Utilizamos o conceito de classes auxiliares em substituiç~o ao constructo ideológico de “classes médias”. A
garantia e manutenção dos interesses dessas classes estão intimamente vinculadas à sociedade capitalista,
portanto, “o que se deve ressaltar é que as classes auxiliares, devido {s necessidades de sua própria reproduç~o,
bem como sua inserção social, auxiliam a dominaç~o burguesa [...]” (VIANA, 2003, p. 72).
3
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
230
Luta de Classes e Contemporaneidade
Tais mudanças estavam assentadas na importação de bens e capitais e na abertura financeira.
Isso implicou uma interrupção na política de substituição de importações e um grande
endividamento dos setores públicos e privados, visíveis no extraordinário aumento da dívida
externa5 que passou de 13 milhões para 46 milhões de dólares no período de 1976-1983.
Dessa forma, a lógica da acumulação imposta pela valorização financeira sustentou as bases
de dominação centradas nos grandes grupos nacionais e nos capitais transnacionais
(SVAMPA, 2010; BASUALDO, 2002).
Os efeitos dessa reestruturação econômica podem ser percebidos nas diversas
mudanças geradas na estrutura social argentina. Dentre elas se destaca a enorme
transferência da mão-de-obra empregada na indústria para o setor terciário e autônomo,
assim como a formação de uma incipiente mão-de-obra marginalizada do mercado de
trabalho - o lumpemproletariado. Além disso, houve uma significativa deterioração dos
salários reais que aliada com a baixa produtividade causou a contração da demanda interna
na qual foi acompanhada por um forte incremento das disparidades intersetoriais. A
distribuição de renda também sofreu impactos negativos com a eliminação das negociações
coletivas e com a queda salarial. Dessa maneira,
até o final dos anos 80, envolvido em uma série de conflitos econômicos e
institucionais, o país se afundava cada vez mais em uma grave crise econômica,
refletida na importante queda da inversão interna e estrangeira, na crescente fuga de
capitais e no recorde inflacionário, que em 1987 alcançaria 175% e, em 1988, 388%
(SVAMPA, 2010, p. 25).
Diante dessa nova realidade, nascia na Argentina da década de 1990 uma sociedade
empobrecida e atravessada por novas desigualdades sociais. O país experimentava o declínio
estrutural do modelo nacional-popular sem contar com nenhuma chave para reencontrar a
Já há algumas décadas, diversos estudos vêm sendo realizados sobre a dívida externa dos países da América
Latina e vários deles apontam para o seu caráter ilegal. De acordo com estudos realizados por pesquisadores do
Observatório da Dívida na Globalizaç~o (Catalunha, Espanha), “no caso argentino, durante o mandato de Carlos
Ménen (1989-1999), se ampliou o número de juízes da Corte Suprema de Justiça (o máximo tribunal de justiça),
e o executivo designou, com apoio de um senado majoritariamente menemista, cortesias a dependentes do
regime. Com isso, o governo de Ménen assegurava a ratificação de todos os seus atos sem que fossem
impugnados por via judicial. Na mesma época se revisou a Constituição Nacional (1994). A reforma da Carta
Magna não só permitiu a reeleição de Ménen, mas, além disso, facultou o presidente a tomar decisões próprias do
Parlamento (delegação do poder legislativo ao poder executivo) [...] Esse foi o marco político que possibilitou que
durante o ‘menemismo’ a dívida externa da Argentina crescera 150% e, em cumprimento as exigência do FMI, se
privatizaram todas as empresas de serviços públicos e as que controlavam os recursos estratégicos do país”
(RAMOS, 2006, p. 32-33).
5
231
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
integração social de amplos setores populares e médios empobrecidos6 (KESSLER & MINUJÍN,
1995; KESSLER & DI VIRGILIO, 2008). No entanto, as conseqüências mais drásticas estavam
por vir, visto que a consolidação da nova ordem neoliberal argentina ocorreria durante os
governos de Carlos Menen.
Recém saída de uma ditadura militar, a Argentina se encontrava extremamente
endividada e presa a um modelo de governabilidade corporativo, autoritário e corrupto. A
partir de 1992, com Carlos Menen no poder, inicia-se um período de neoliberalização da
economia com vistas a obter auxílio dos Estados Unidos, assim como recuperar sua
credibilidade perante a comunidade internacional. Para isso, Menen promoveu uma abertura
comercial aos fluxos de capital externo, garantiu maior flexibilidade nos mercados de
trabalho, reformou a legislação trabalhista, realizou uma ampla reforma tributária, privatizou
empresas estatais, equiparou o peso ao dólar com o objetivo de combater a inflação e garantir
segurança aos investimentos estrangeiros.
Uma das principais conseqüências da neoliberalização da economia argentina, sem
sombra de dúvidas, foi a geração de milhares de postos de trabalho precarizados,
subempregos, empregos temporários e milhões de desempregados. O índice de desemprego
que na década de 1980 variava entre 4% e 6%, nos primeiros anos da década de 1990 chegam
a 18,4%. Apesar da singela recuperação no final dessa década, tais índices voltam a crescer de
forma assustadora a partir de 2001: dependendo da região, o índice de desemprego chegou a
atingir a cifra de 50% da população economicamente ativa (VITULLO, 2008; SVAMPA, 2010).
A intensidade com que a pobreza foi atingindo amplos setores da classe trabalhadora
foi proporcionalmente acompanhada pela intensidade das tensões sociais derivadas de tal
pobreza, pois para amplos setores da classe trabalhadora argentina, o processo de
privatização representou o fim de uma estabilidade no emprego e o início de um caminho,
muitas vezes sem volta, ao desemprego e à vida lumpemproletária. A resposta popular a essa
“Uma das conseqüências de grande peso econômico e sócio-culturais mais inesperadas que os setores médios
têm sofrido na Argentina foi a de dar origem a um tipo de pobreza com traços particulares, uma vez iniciado o
intenso processo de empobrecimento sofrido pela sociedade desse país. Basta dizer que entre 1980 e 1990 os
trabalhadores em seu conjunto perderam em torno de 40% do valor de suas rendas, e logo após certa
recuperação em 1991 devido à estabilidade, voltaram a perder em torno de 20% entre 1998 e 2001, com
importantes oscilações até hoje. A profundidade e persistência da crise iniciada em meados da década de 1970
fizeram com que milhares de famílias de classe média e de pobres de longa data, que no passado conseguiam
escapar da miséria, visualizassem suas rendas declinar abaixo da “linha de pobreza” (KESSLER & DI VIRGILIO,
2008, p. 32).
6
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
232
Luta de Classes e Contemporaneidade
condição não tardou a aparecer, pois a história argentina conheceria uma nova modalidade de
protestos
sociais
e
um
novo
sujeito
histórico,
formado
essencialmente
pelo
lumpemproletariado: o movimento piquetero.
A emergência do movimento piquetero está diretamente relacionada com o amplo
processo de privatização neoliberal, principalmente com a privatização da empresa estatal
petrolífera YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales), localizada nas províncias patagônicas de
Neuquén, especificamente em Cutral-Có e Plaza Huincul, entre os anos de 1991 e 1993. Logo
após a privatização dessa empresa milhares de trabalhadores foram demitidos. No primeiro
momento buscaram sobreviver como autônomos e micro-empresários que prestavam
pequenos serviços para a petrolífera, no entanto essas tentativas resultaram em verdadeiros
fracassos7 e esses ex-trabalhadores passaram a se encontrar isolados frente á frente com o
desemprego aberto e sem nenhuma possibilidade de sustentarem a si mesmo e os seus
familiares. Foi a partir daí que em junho de 1997 um grupo de desempregados convocaram
seus familiares, vizinhos e vários outros setores sociais locais para bloquear a estrada
nacional 22, “artéria chave na economia da regi~o” (VITULLO, 2008; SVAMPA & PEREYRA,
2009; ALVAREZ, 2009).
Daí em diante, várias outras regiões afetadas pelos ajustes neoliberais conheceriam
manifestações de desempregados e de diversos grupos de trabalhadores precarizados que
passaram a adotar a estratégia dos piquetes e cortes de estradas como forma principal de
protestos que se espalharam por diversas regiões da Argentina: General Mosconi e Tartagal
(Salta), Libertador General San Martín (Jujuy), Cruz Del Eje (Córdoba), Capitan Bermúdez
(Santa Fe), Buenos Aires e Conurbano Bonaerense e outras regiões mais.
É no ano de 2000 que a prática piquetera atinge o Conurbano Bonaerense, alcançando
um caráter nacional e permanente, deixando de ser um fenômeno localizado e fragmentado e
tornando-se uma prática de resistência aos ditames neoliberais com caráter nacional. Em
resposta à intensa lumpemproletarização de diversas regiões do conurbano, a prática dos
Um conjunto de obstáculos e dificuldades possibilitou que a maior parte dessas experiências resultasse em
fracasso. Svampa e Pereyra apresentam alguns desses obstáculos: “Por causa da ausência de uma verdadeira
política de recursos humanos, muitas das empresas naufragaram rapidamente, atravessadas por dificuldades
ligadas ao reconhecimento da autoridade, à tomada de decisões, a escassa capacidade negociadora, a
impossibilidade de obter contratos por causa do não cumprimento com obrigações impositivas, a carência de
edifício próprio e a impossibilidade de acesso ao crédito, por falta de garantias de pagamento ou hipoteca; por
último, pelos problemas associados ao elevado nível de endividamento” (2009, p. 109).
7
233
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
piquetes e cortes de ruas/estradas se generalizam e se prolongam por semanas em vários
municípios em volta de Buenos Aires. Com isso o governo De La Rua se vê obrigado a
reconhecer esse movimento e iniciar negociações que apontem para a solução do desemprego
em massa. Concomitante a esses cortes de ruas locais, se espalham, no mesmo período, cortes
de estradas por todo o país. A repressão se intensifica e a reação popular cresce
assustadoramente após o assassinato de alguns militantes piqueteiros (o assassinato de
Aníbal Verón e Santillán são casos exemplares). De acordo com Vitullo,
segundo um estudo realizado pela consultora Centro de Estudios Nueva Mayoría
(2004a) divulgado pelo Jornal La Nacion, os cortes de estradas realizados em todo o
território nacional foram 140 em 1997, 51 em 1998, 252 em 1999, 514 em 2000, 1383
em 2001 e 2336 em 2002 (o que representa uma média superior aos 6 bloqueios
diários, sendo este o ano recorde em matéria de cortes) e, em 2003, verificaram-se
1278 interrupções { circulaç~o de veículos e mercadorias” (2008, p. 115).
Nesse período, insurge um ciclo ascendente de lutas sociais e de enfrentamento
popular contra as forças policiais que tomará conta da cena política e social argentina até
aproximadamente o ano de 2003, período em que as lutas sociais iniciam seu refluxo. Em
diversos períodos a tensão social adquire elevado grau de radicalidade e, conseqüentemente,
a repress~o do “Estado penal” tendeu a ampliar-se a ponto de iniciar um verdadeiro processo
de criminalização do protesto social (WACQUANT, 2001; KOROL, 2009).
Esse novo ator social, composto majoritariamente pelo lumpemproletariado,
denominado de movimento piquetero, assim como a dinâmica de suas lutas firmadas na ação
coletiva, na organização solidária, com tomadas de decisões pautadas em assembleias
horizontais e adotando o corte de ruas e estradas como principal ferramenta de luta, possui
de acordo com vários autores uma dupla filiação. Portanto, para que se compreenda a
emergência e desenvolvimento do movimento piquetero torna-se necessário apresentar essa
dupla filiação.
Uma das principais e mais complexa obra sobre o assunto, elaborada por Maristella
Svampa e Sebastián Pereyra e denominada Entre la ruta y el barrio – la experiencia de las
organizaciones piqueteras (2009) afirma que
não é possível compreender a gênese nem o posterior desenvolvimento do
movimento piquetero se não estabelecermos sua dupla filiação: por um lado, a
vertente que apresenta a brusca separação dos marcos sociais e trabalhistas que
configuraram a vida cotidiana de gerações e povos inteiros; separação violenta que, no
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
234
Luta de Classes e Contemporaneidade
limite, revela tanto uma relação mais próxima com o mundo do trabalho formal, como
reflete a opção por um tipo de ação sindical não-institucionalizada; ligado a um
modelo de ação confrontativo; por outro lado, a vertente que assinala a importância
da matriz especificamente territorial da ação coletiva, e que da conta tanto de uma
distância maior com o mundo do trabalho formal como, no extremo, da continuidade
de uma relação mais pragmática com os poderes públicos, na luta nada fácil pela
sobrevivência (p. 20).
A primeira filiação está intimamente relacionada com as conseqüências sociais que as
reformas e “ajustes” neoliberais provocaram no mundo do trabalho a partir da
implementação de um novo projeto econômico orientado para a eliminação de déficits fiscais,
desregulamentação dos mercados e privatização acelerada de empresas públicas. Juntamente
com esses ajustes foi aprovado o Plano de Convertibilidade de 1991 que estabelecia a
paridade entre o peso e o dólar, reduzindo as tarifas alfandegárias, liberação do comércio
exterior e aumentando a pressão fiscal. Os principais mecanismos de controle do Estado
foram suprimidos a favor das regras do mercado.
As conseqüências sociais foram drásticas, pois a queda na qualidade dos serviços
públicos foi extrema, milhares de pequenos investimentos se viram falidos, milhares de
lumpemproletários que além de perderem seus salários, perderam o seguro-desemprego e se
encontravam extremamente endividados. Nesse novo contexto, as mudanças no mundo do
trabalho modificaram-se bruscamente, pois
o processo privatizador deixou uma importante quantidade de trabalhadores
desempregados com diferentes trajetórias ocupacionais. No caso dos trabalhadores
empregados se modificaram as condições de contrato de trabalho, de uma situação de
quase garantia de estabilidade no emprego se passa a uma situação de incerteza e
precarização das condições de trabalho e possibilidades de associação sindical
(BONIFACIO, 2011, p. 73).
Como foi dito anteriormente, o impacto mais extremo dessas reformas veio em
conseqüência da privatização de uma das empresas públicas mais lucrativas e estratégicas da
Argentina, a YPF. Vale lembrar que a YPF consistia em uma das maiores empresas estatais
argentina e seus trabalhadores formavam uma espécie de “aristocracia oper|ria” visto que
possuíam uma ampla gama de garantias e direitos sociais (saúde, moradia, educação para os
filhos, creches, espaços recreativos etc.) oferecidos pelo Estado social argentino, usufruíam de
estabilidade no emprego e de excelentes salários. Com a privatização da empresa no ano de
235
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
1993-1995, em pouco tempo todas essas garantias desapareceram e o processo de
intensificação da lumpemproletarização insurgiu:
a empresa, que em 1990 contava com 51 mil empregados, logo após um acelerado
processo de reestruturação, que inclui demissões voluntárias e arbitrárias, passou a
ter 5.600 trabalhadores. As baixas contabilizadas de 1990 e 1997 foram as seguintes:
para a região saltenha, 3.400; na região neuquina, 4.246; no vale austral, 1.660; em
Comodoro Rivadavia, 4.402 e, finalmente, em Santa Fe (San Lorenzo), 1.177. Enfim, a
reorganização do trabalho esteve marcada por uma forte flexibilização que incluiu a
descentralização e desregulação dos setores, a redução sistemática de pessoal, a
limitação no pagamento das horas-extras, a intensificação do tempo de trabalho e a
incorporação de novas tecnologias (ROFMAN apud SVAMPA & PEREYRA, 2009, p.
107).
É nesse contexto que nasce na Argentina o movimento piquetero que, em resposta aos
efeitos desintegradores das políticas neoliberais e seus ajustes estruturais, buscou autoorganizar e mobilizar o lumpemproletariado composto por desempregados e outros setores
empobrecidos da sociedade. O movimento piquetero adquiriu um caráter de protagonista nas
manifestações contra o neoliberalismo argentino e seus métodos de resistência popular
ocuparam um lugar destacado na política nacional. Os explosivos cortes de estradas e as
enérgicas puebladas de Neuquém, Salta e Jujuy entre 1996 e 1997
representam o ponto inicial no qual uma nova identidade – os piqueteros – um novo
formato de protesto - o corte de estrada -, uma nova modalidade organizativa – a
assembléia – e um novo tipo de demanda – o trabalho – ficam definitivamente
associados, originando uma importante transformação nos repertórios de mobilização
da sociedade argentina (SVAMPA & PEREYRA, 2009, p. 25).
A segunda filiação do movimento piquetero é marcada por uma modalidade de ação
coletiva de caráter territorial, pois diferentemente das manifestações ocorridas nas
longínquas províncias patagônicas que sofreram com as privatizações das empresas estatais,
os protestos que ocorreram na região do Conurbano Bonaerense remete a um longo processo
econômico e social ligado à desindustrialização e deterioração crescente das condições de
vida das classes populares e auxiliares, iniciados ainda na década de 1970. O processo de
desindustrialização da região afetou uma parcela importante dos setores assalariados. De
acordo com os dados para a região da Grande Buenos Aires, entre 1980 e 1990 o desemprego
aumentou de 2,3 a 6%, a subocupação duplicou, passando de 4,5 a 8,1% da população
economicamente ativa. O emprego informal que era de 42,1% em 1980 foi para 48,5% em
1991 e terminou por adquirir características próprias de outros países latino-americanos
(SVAMPA & PEREYRA, 2009).
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
236
Luta de Classes e Contemporaneidade
As ocupações ilegais de terra na região do Conurbano Bonaerense são reveladoras do
processo de pauperização social que atinge a região desde o período da ditadura militar. Esse
processo de ocupação de terras às margens dos grandes centros urbanos argentinos foi,
muitas vezes, resultado de uma ampla organização territorial que contaram com o apoio de
organizações eclesiásticas de base e organização de direitos humanos. De acordo com as
análises de Merklen (2005), os assentamentos de terras demonstram a emergência de uma
nova configuração social que manifesta o processo de inscrição territorial das classes
populares, relacionada com a luta pela sobrevivência e pelos serviços públicos básicos. Por
conseguinte,
tais ações foram construindo um novo marco e, por sua vez, um emaranhado
relacional próprio cada vez mais desvinculado do mundo do trabalho formal. Uma das
principais conseqüências dessa inscrição territorial é que o bairro foi surgindo como
espaço natural de ação e organização, e se converteu em um lugar de interação entre
diferentes atores sociais reunidos em refeitórios, posto de saúde, organizações de
base, formais e informais, comunidades eclesiásticas de base, em alguns casos
apoiadas por organizações não-governamentais. Enfim, o surgimento de novos
espaços organizativos dentro do bairro conheceu um novo impulso, ainda que fugaz,
durante os dois episódios hiperinflacionários de 1989 e 1990, visíveis na proliferação
de refeitórios populares (SVAMPA, 2005, p. 106).
Entre 1990 e 1998 sucessivas ondas desindustrializadoras atingiram a região do
Conurbano
Bonaerense
como
resultado
das
privatizações
e
ajustes
neoliberais.
Conseqüentemente, ocorreu um acelerado processo de expulsão do mercado de trabalho
acompanhado de uma maior instabilidade no emprego. Vale lembrar que boa parte dos
sindicatos argentinos foram cooptados e aceitaram prontamente esse conjunto de reformas e
ajustes neoliberais. Dessa maneira, parcela significativa dos trabalhadores do conurbano
passou a se sentir completamente desorientados politicamente. No entanto, as conseqüências
políticas e sociais para as instituições burocráticas e clientelistas do Partido Justicialista
também foram enormes, assim como o debilitamento do peronismo no mundo popular.
Diante da ausência de respostas efetivas do poder público e das suas instituições para
os problemas sociais que afetavam o lumpemproletariado da região, emergiram organizações
populares nos bairros que passaram a se organizar por fora das estruturas burocráticas, tais
como partidos políticos e sindicatos. É nesse contexto que emerge as organizações de
desempregados e um novo modelo de militância territorial na região do conurbano. Portanto,
entre 1990 e 1995 alguns bairros começaram a se organizar para reclamar das tarifas dos
serviços públicos privatizados. Em 1995 surge a primeira comissão de desempregados no
237
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
município de La Matanza, porém somente em 1996 inicia as primeiras manifestações exigindo
auxílio à alimentação.
Tais manifestações ocorrem em maio de 1996 quando vários vizinhos dos bairros
María Elena e Villa Unión realizam uma manifestação na Praça São Justo com uma importante
participação feminina. Logo em seguida, no dia 06 de setembro de 1996 se realiza uma
importante “Marcha contra a fome, a repress~o e o desemprego” até a Praça de Maio, que
reuniu aproximadamente duas mil pessoas. A marcha foi um pontapé inicial para a
emergência de diversas organizações de desempregados em vários municípios do conurbano
(SVAMPA & PEREYRA, 2009).
La Matanza é um município vizinho à capital da República, com aproximadamente
1.500.000 habitantes, população que supera de longe à de 18 das 23 províncias argentinas
(ISMAN, 2004). Trata-se de um enorme aglomerado urbano com grande quantidade da
população vivendo abaixo da linha da pobreza. Segundo o Jornal Clarin de 22 de outubro de
2001:
La Matanza é um dos maiores e mais difíceis municípios do conurbano bonaerense:
calcula-se que o 50% de seu um milhão e meio de habitantes vive abaixo da linha da
pobreza e que o índice de desemprego chega a 30%. Viver, nesse contexto, se torna
mais complicado a cada dia. As pessoas não têm dinheiro, não tem teto seguro, não
tem comida, não tem roupa, não tem remédios. E não tem esperança (Apud ISMAN,
2004, p. 18).
As condições de deterioração pelas quais vem sofrendo o município de La Matanza se
inicia em 1976 com o golpe militar e vêm se ampliando continuamente até atingir sua fase
mais acentuada durante o período menemista (1989-1999). As ocupações ilegais de terra na
região do Conurbano Bonaerense são reveladoras do processo de pauperização social que
atinge a região desde o período da ditadura militar.
Durante o período marcado pela substituição de importações, o setor fabril carregava
consigo o restante das atividades econômicas em termos de produção e gerava diversos
postos de trabalho, porém nos anos noventa o coeficiente de empregabilidade se encontrava
na ordem de -3,7% e demonstrava que o setor industrial foi o grande responsável pela
expulsão da mão-de-obra na região (BASUALDO, 2002; BARRERA & LÓPEZ, 2010). Nesse
contexto, La Matanza deixou de ser um dos grandes pólos industriais do conurbano para se
converter numa região que apresenta altos índices sociais negativos. E essa realidade não era
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
238
Luta de Classes e Contemporaneidade
exclusividade desse município, pois diversas outras regiões do país também passaram a
experimentar um intenso processo de lumpemproletarização.
De acordo com uma nota de Ismael Bermudez, contida no jornal Clarin de 19 de
setembro de 2001, exemplifica a situação geral do Conurbano Bonaerense:
O desemprego cresceu quatro vezes mais (subiu de 5,7% para 22,9%) e entre os
chefes de família se multiplicou por cinco (de 3,3% a 17,2%). Como resultado direto
dessa situação, nesses municípios quase 40% das residências é formada por pessoas
que recebe apenas 20% da renda da região. Isso explica a razão pela qual a pobreza
atinge quase 50% da população, o que significa que seus habitantes ou famílias da
região não possuem renda suficiente para custear as compras dos bens e serviços
básicos (Apud ISMAN, 2004, p. 17).
Contra essa situação de desemprego, condições de vida precária e inexistência de
serviços públicos básicos de qualidade (creches, escolas, postos de saúde, moradia, asfalto,
rede de esgotos etc.), ou seja, por conta desse completo quadro de abandono gerado pelo
descaso dos poderes públicos (municipal, estadual e federal) é que nascem, na região de La
Matanza, diversas organizações de bairros que darão início a uma onda de protestos sociais
que resultara em 1995 nas primeiras tentativas de organização do lumpemproletariado na
região. É nesse contexto que emerge as organizações lumpemproletárias e um novo modelo
de militância territorial na região do conurbano.
O que vem ocorrendo na Argentina da década de 1990 é parte do já vinha acontecendo
em quase toda a sociedade moderna a partir da década de 1980, isto é, a sociedade moderna
passa a sofrer importantes transformações nas suas formas de valorização do capital
(toyotismo), assim como nas suas formas de regularização das relações sociais garantidoras
do mesmo. A principal forma regularizadora dessas relações consiste no Estado Neoliberal.
Esse emerge com o objetivo de proporcionar melhores condições para a acumulação
capitalista através da desregulamentação do mercado, do “afastamento” do Estado das
obrigações sociais (saúde, educação, segurança, emprego etc.) e de sua transferência para a
iniciativa privada via privatização dessas obrigações e de alguns setores estratégicos antes
sob o controle estatal (energia, água, gás, petróleo, transportes coletivos, telefonia etc.).
Juntamente com a emergência de um movimento lumpemproletário que passou a
construir estratégias
de
enfrentamento ao
processo de
lumpemproletarização e
empobrecimento generalizado, e que dificultaram a expansão das conquistas necessárias à
acumulação integral, emergiu também a face mais autoritária e repressiva do Estado
Neoliberal que, juntamente com os meios de comunicação dominante, transformaram a luta
239
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
pelos direitos sociais em delitos contra a ordem e os manifestantes como delinqüentes dignos
de serem aprisionados ou quando não executados sumariamente pelo Estado Penal, como
ocorreu nos diversos casos de “gatilho f|cil”8.
A análise que Wacquant vem realizando em suas diversas obras sobre o Estado Penal e
seu processo de criminalização do lumpemproletariado e de diversos movimentos sociais
(tanto nos EUA, quanto na Europa) também serve para compreender a realidade Argentina,
pois em todos os rincões em que o neoliberalismo se implantou enquanto forma estatal, se
implantaram também suas faces punitivas da pobreza e do protesto social: criminalização,
aprisionamento e extermínio. Segundo ele,
mais do que mera medida repressiva, a criminalização dos que defendem os direitos
sociais e econômicos integra uma agenda política mais ampla, que tem levado à
criaç~o de um novo regime que pode ser caracterizado como “liberal-paternalismo”.
Ele é liberal no topo, para com o capital e as classes privilegiadas, produzindo o
aumento da desigualdade social e da marginalidade; e paternalista e punitivo na base,
para com aqueles já desestabilizados seja pela conjunção da reestruturação do
emprego com o enfraquecimento da proteção do Estado de bem-estar social, seja pela
reconversão de ambos em instrumentos para vigiar os pobres (WACQUANT, 2008, p.
94).
O processo de criminalização do lumpemproletariado e de outras classes sociais
afetadas pelo neoliberalismo inicia aproximadamente no ano de 1993 quando a Argentina foi
tomada por distintas manifestações populares contra os ajustes neoliberais, nas principais
cidades do país. Em diferentes momentos tais manifestações atingiram níveis de
enfrentamento e violência que assustaram os poderes estabelecidos que em resposta
procuraram ampliar a repressão policial e a criminalização dos militantes dos mais variados
movimentos sociais.
Nos dias 16 e 17 de dezembro de 1993 ocorre em Santiago del Estero o que ficou
conhecido como “El Santiagazo”. A pueblada, como também ficou conhecida as grandes
manifestações populares, foi iniciada por trabalhadores estatais demitidos ou que tiveram seu
salários reduzidos e atrasados por vários meses. Seus participantes invadiram e incendiaram
simultaneamente inúmeros prédios dos poderes legislativo, judiciário, executivo e vários
“Gatilho F|cil é o nome utilizado na Argentina para denominar os episódios de abuso de poder no uso de armas
de fogo por parte da polícia. Em geral, as vítimas de gatilho fácil são, sobretudo, jovens militantes dos bairros
pobres, vítimas de processos de disciplinamento compulsivo realizados pelas forças policiais. A Correpi
(Coordenadoria contra a repressão policial e institucional) tipifica esses métodos como execução sumária
aplicada pela polícia e que geralmente são acobertas sob a alegação de mortes oriundas do enfrentamento. Esta
pena de morte ‘extralegal’ se distingue por duas etapas: o fuzilamento e o acobertamento (KOROL & LONGO,
2009, p. 106).
8
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
240
Luta de Classes e Contemporaneidade
outros edifícios públicos, assim como algumas residências de políticos e sindicalistas locais.
Na noite do dia 16, o governador Juárez foi destituído e o Congresso Nacional realizou uma
intervenção nos três poderes provinciais após aprovar um projeto do poder executivo que
autorizava o envio de tropas do exército e da polícia federal para a província de Santiago del
Estero (KOROL & LONGO, 2009). Segundo Vitullo, foi nesse dia que a pueblada experimentou
elevado nível de conflitividade, pois
os choques entre as forças repressivas e os manifestantes deixaram um saldo de
quatro mortos e mais de cem feridos e uma forte impressão no restante da sociedade
argentina, que, através da televisão, assistia azoada a estes fatos. Além deste saldo e
como conseqüência da mobilização popular, o justicialista Fernando Lobo, governador
da província em substituição de Carlos Mijuca – quem tinha deixado o cargo escassos
50 dias antes sem sequer alcançar metade do seu mandato devido a uma forte crise
política -, também viu-se obrigado a renunciar, o que acabou precipitando o já
assinalado processo de intervenção federal à província (VITULLO, 2008, p. 112).
Após o Santiagazo começaram a explodir em diversas localidades do país vários
protestos sociais que passaram a desenvolver formas de mobilização popular pautadas pela
ação direta. A somatória dos protestos e tensões sociais que assolavam todo o país desde a sua
fase mais aguda entre os anos de 1996 e 1997, explode nos dias 19 e 20 de dezembro de 2001
na grande rebelião generalizada.
Por todo o país eclodiam tensões sociais, movimento de desempregados, mulheres
agropecuaristas em luta, greves de professores, ocupação de fábricas e vários outros setores
sociais em luta contra aquilo que era considerado por eles os responsáveis por toda a gama de
dificuldades, lumpemproletarização, empobrecimento e diversas outras humilhações sociais.
Dentre os eleitos responsáveis destacam-se: os governantes, os partidos políticos, o próprio
Estado, a burocracia estatal, partidária e sindical, suas hierarquias, o sistema financeiro
nacional e internacional, o FMI e o Banco Mundial e, para os setores mais radicalizados, todas
as relações sociais pautadas pela obrigatoriedade capitalista da exploração do homem em
troca da obtenção de lucros. Por essas razões o lema central dessas jornadas foi expresso na
frase “Que se vayan todos, que no quede ni uno solo!” 9.
O caráter massivo dos protestos sociais promovido pelos diversos movimentos
piqueteros argentinos, juntamente com seus métodos de bloqueios de estradas que
impossibilitava a circulação de veículos, pessoas e, principalmente mercadorias, assim como a
construção de formas de participação e decisões políticas pautadas por uma espécie de
9
“Que todos v~o embora, que n~o fique nenhum sequer” (tradução nossa).
241
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
democracia direta, decisões coletivas e horizontais em assembléias etc. consistiram nas
principais razões que levaram os poderes governamentais a temerem a expansão dessas
formas de organização e da consciência de classe derivada das mesmas.
Por esses motivos é que desde o início dos primeiros levantes de desempregados, o
governo argentino procurou criminalizar as lutas sociais. No primeiro momento com a
ampliação da repressão policial – o deslocamento da Gendarmería (tropas militares), que
originalmente foi criada para defender as fronteiras nacionais, para as províncias patagônicas
tomadas pelas puebladas é um sinal demonstrativo da mudança na política repressiva. Com o
avanço das lutas e das mobilizações populares o governo inicia um intenso processo de
judicialização dos militantes de diversos movimentos sociais, principalmente dos integrantes
de movimentos piquteros. Segundo Korol & Longo,
algumas das formas em que se manifesta a criminalização dos movimentos populares
é o avanço do processo de judicialização dos conflitos, visível na multiplicação e no
agravamento das figuras penais, na maneira em que estas são aplicadas por juízes e
promotores, no número de processos contra militantes populares, na estigmatização
de populações e grupos mobilizados, no incremento das forças repressivas e na
criação especial de tropas de elite, orientadas para a repressão e militarização das
zonas de conflito (2009, p. 84).
Outra estratégia adotada pelo governo argentino para criminalizar o movimento
piquetero se deu através do uso excessivo dos meios de comunicação com o objetivo de criar
uma imagem negativa dos militantes. Dessa forma, os meios de comunicação apresentavam os
manifestos por direitos sociais como delitos contra a ordem e os manifestantes como
delinqüentes violentos, assim como ocultando as motivações populares e apresentando
apenas os episódios de violência popular, com isso gerando o medo, fragmentando a
sociedade e impossibilitando o crescimento do apoio às lutas por direitos sociais10.
O regime de acumulação integral é marcado por contradições crescentes, pois se de um
lado é necessário, para manter a acumulação capitalista, realizar cortes drásticos em políticas
sociais, corroer os direitos trabalhistas, precarizar e intensificar as relações de trabalho,
expandir e intensificar a lumpemproletarização para alimentar o exército industrial de
reserva e seu papel na manutenção de baixos salários e etc., por outro lado ela se vê obrigada
Para saber mais sobre o processo de criminalização da pobreza e dos movimentos sociais na Argentina Cf.
KOROL, Claudia (org.). Criminalización de la pobreza y de La protesta social. Buenos Aires: El coletivo/America
libre, 2009); CARDOZO, Fernanda. “Protestar não é delito”. A criminalização dos movimentos sociais na Argentina
contemporânea – o caso do movimento piquetero (1997-2007). 2008. Dissertação (mestrado em História) –
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. 130 p.
10
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
242
Luta de Classes e Contemporaneidade
a intensificar a repressão, pois, em conseqüência de tais práticas, cresce a violência contra a
propriedade privada, os protestos sociais se radicalizam e a criminalidade tende a se
generalizar. No entanto, o Estado neoliberal não pode ser mantido às custas da não redução
da dívida pública e da poupança de recursos, e por isso tal Estado opta por ampliar o aparato
repressivo e criminalizar o movimento piquetero e diversos outros movimentos sociais. É
exatamente isso que vem ocorrendo na Argentina contemporânea e em diversas outras
regiões do globo.
O movimento piquetero nos fornece um excelente exemplo de que a postura política do
lumpemproletariado não é a mesma em todos os contextos históricos, pois se na França do
século XIX, o lumpemproletariado foi cooptado pelo Estado francês e utilizado na repressão
contra o avanço das lutas operárias, na argentina contemporânea, as lutas dessa classe social
desenvolveu-se de forma autônoma, inicialmente desvinculada das instituições burocráticas,
tais como sindicatos e partidos políticos, resgatando práticas do movimento operário
revolucionário (assembléias coletivas e horizontalizadas, auto-organização dos bairros e de
algumas atividades produtivas etc.) e adquirindo elevados níveis de radicalidade, que o
tornou o principal ator em luta contra a intensificação da lumpemproletarização, típica da
acumulação integral subordinada.
Portanto, não é possível afirmar que o lumpemproletariado é, e sempre será
politicamente reacionário e cooptável, pois sua postura política se altera dependendo do
contexto, das singularidades regionais e da correlação das forças sociais, podendo representar
uma importantíssima aliança com o proletariado em torno de um bloco revolucionário. Na
contemporaneidade, a postura contestadora do lumpemproletariado tende a crescer e,
consequentemente, a se apresentar como uma ameaça cada vez maior à existência da
sociedade capitalista.
Referências:
ALVAREZ, Gonzalo. Los trabalhadores desocupados – el caso de noreste de Chubut, continuidad,
rupturas y estrategias. Razón y Revolución, número 19, segundo semestre de 2009.
243
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
BARRERA, Facundo & LÓPEZ, Emiliano. El carácter dependiente de la economia argentina. Uma
revisión de sus múltiples determinaciones. IN: FELIZ, Mariano et al. Pensamiento critico,
organización e cambio social – de la crítica de la economia política a la economía política de los
trabajadores y las trabajadoras. Buenos Aires: El colectivo, 2010.
BASUALDO, Eduardo. Concentracion y centralizacion del capital en la Argentina durante la
década del noventa. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes ediciones, 2002.
BONIFÁCIO, José. Protesta y organización – los trabajadores desocupados em la província de
Neuquén. Buenos Aires: Editorial el colectivo, 2011.
CARDOZO, Fernanda. “Protestar não é delito”. A criminalização dos movimentos sociais na
Argentina contemporânea – o caso do movimento piquetero (1997-2007). 2008. Dissertação
(mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. 130
p.
ISMAN, Raúl. Los piquetes de La Matanza – de la aparición del movimiento social a la
construción de la unidad popular. Buenos Aires: Nuevos Tiempos, 2004.
KESSLER, Gabriel & MINUJIN, Alberto. La nueva pobreza en la Argentina. Buenos Aires:
Editorial planeta, 1995.
KESSLER, Gabriel & VIRGILIO, Maria. La nueva pobreza urbana: dinâmica global, regional y
argentina en las última dos décadas. Revista de la Cepal, 95, agosto 2008.
KOROL, Claudia & LONGO, Roxana. Criminalización de los movimientos sociales en Argentina –
Informe General. IN: KOROL, Claudia (org.). Criminalización de la pobreza y de La protesta
social. Buenos Aires: El coletivo/America libre, 2009).
MERKLEN, Denis. Pobres ciudadanos – las classes populares em la era democrática (Argentina,
1983-2003). Buenos Aires: Gorla, 2005.
RAMOS, Laura. Los crímenes de la deuda. Barcelona: Icaria editorial, 2006.
SVAMPA, Maristella & PEREYRA, Sebastián. Entre La ruta y el barrio – la experiência de las
organizaciones piqueteras. Buenos Aires: Biblos, 2009.
SVAMPA, Maristella. La sociedad excluyente – la Argentina bajo el signo del neoliberalismo.
Buenos Aires: Taurus, 2010.
VIANA, Nildo. Estado, democracia e cidadania – a dinâmica da política institucional no
capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.
______. O capitalismo na era da acumulação integral. Aparecida, SP: Idéias e letras, 2009.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
244
Luta de Classes e Contemporaneidade
VITULLO, Gabriel. Teorias da democratização e democracia na Argentina contemporânea.
Porto Alegre: Editora sulina, 2008.
WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
______. As duas faces do gueto. São Paulo: Boitempo, 2008.
245
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
A teoria do valor-trabalho e a constituição do valor:
as classes sociais na teoria de Marx
Lucas Maia1
Resumo: Este texto objetiva discutir como Marx considera as classes sociais a partir de sua
teoria do valor-trabalho. Fazemos inicialmente um breve apanhado do processo histórico de
constituição desta teoria para em seguida demonstrar como Marx a considerou. As críticas de
Marx aos fisiocratas, aos economistas clássicos, vulgares e ecléticos são o ponto de partida
para a constituição de sua teoria. Após demonstrar isto, apresentamos como ele deriva sua
análise das classes sociais a partir de sua teoria do valor-trabalho. Sendo a burguesia e o
proletariado as classes fundamentais do capitalismo, os proprietários fundiários como uma
classe importante no período de Marx, por isto ele denomina estas de “as três grandes classes
do capitalismo”. Um conjunto de outras classes vão aparecendo como subsidiárias do
conjunto da mais-valia produzida pelo proletariado: as classes dominantes do capital
improdutivo: burguesia comercial e financeira ou bancária; as classes responsáveis pela
superintendência do processo de trabalho: os managers ou gerentes; a burocracia estatal que
se apropria da mais-valia através dos impostos etc. Também há a existência de um conjunto
de classes exploradas que também são improdutivas, ou seja, que não produzem mais-valia:
lumpemproletários, trabalhadores do capital improdutivo, trabalhadores domésticos etc.
Assim, este trabalho procurou demonstrar como, a partir da análise do valor, Marx
compreende a constituição e as fontes dos rendimentos das classes sociais.
Palavras-chave: valor-trabalho; mais-valia; classes sociais.
Este texto objetiva debater como Marx desenvolveu a teoria do valor e, portanto, a
teoria da mais-valia, articulando esta discussão com os apontamentos que ele fez sobre as
classes sociais. Quais são as classes fundamentais do capitalismo? Qual o conjunto de classes
que compõem a sociedade moderna, tal como Marx a encontrou em seu tempo? Qual a relação
do conjunto de classes sociais com a mais-valia produzida?
A teoria do valor-trabalho é deveras uma das mais belas criações do pensamento
humano com intuito de devassar a produção e reprodução da vida material das sociedades
humanas ao longo da história. Marx dedica grande parte de sua vida a compreender, criticar e
desenvolver até as últimas consequências os elementos constituidores desta teoria. Não farei
aqui uma longa análise do processo de constituição e desenvolvimento da teoria do valortrabalho, desde os mercantilistas, os fisiocratas, os economistas clássicos, passando pelos
Geógrafo. Professor do Instituto Federal de Goiás/Campus Anápolis. Doutorando em geografia pelo Programa
de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Goiás – IESA/UFG.
1
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
246
Luta de Classes e Contemporaneidade
economistas vulgares e sincréticos, até chegar a Marx e a partir daí as contribuições de seus
continuadores e detratores2. Intenciono exclusivamente determinar como Marx desenvolveu
esta teoria e como podemos compreender o conjunto das classes sociais no capitalismo a
partir da análise do valor.
J| nos “Manuscritos econômico-filosóficos”, Marx faz a seguinte afirmaç~o:
É exatamente na atuação sobre o mundo objetivado que o homem se manifesta como
verdadeiro ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica ativa. Por meio dela, a
natureza nasce como a sua obra e a sua realidade. Em consequência, o elemento do
trabalho é a objetivação da vida genérica do homem: ao não se reproduzir somente
intelectualmente, como na consciência, mas ativamente, ele se duplica de modo real e
percebe a sua própria imagem num mundo por ele criado (Marx, 2004, p. 117, grifos
meus)
Ou seja, a capacidade de realizar trabalho é uma necessidade humana. Para que o
homem se objetive no mundo, é necessário que ele o faça por meio de uma atividade
produtiva e esta atividade produtiva tem um duplo papel: a) humanizar o homem; b) produzir
os víveres necessários à sua existência. Em uma palavra, a ação de o ser humano produzir sua
existência o humaniza na mesma medida, da mesma forma que humaniza o mundo no qual ele
vive.
Como já é por demais discutido, os economistas que compunham a escola que ficou
conhecida como fisiocrática defendiam que somente a atividade agrícola gerava riqueza,
produzia valor. Assim, a produção do valor era na verdade uma dádiva da natureza, do solo.
Os economistas clássicos, notadamente Adam Smith e David Ricardo, apresentaram tese
contrária a esta. Como verdadeiros ideólogos da manufatura, os quais produziram belíssimas
interpretações deste período da aurora do capitalismo, não podiam crer que a fonte da
riqueza estava somente na produção agrícola. A partir da crítica da concepção fisiocrática,
desenvolveram os princípios da teoria do valor-trabalho, segundo a qual a origem da riqueza
encontra-se na atividade humana, na sua capacidade de realizar trabalho.
Devido aos vínculos destes autores com os interesses da então burguesia que se
consolidava, não puderam levar às últimas consequências suas descobertas acerca desta
matéria. É justamente criticando estes autores, os quais Marx nutria certo respeito,
identificando-os como os últimos baluartes da produção teórica partindo do ponto de vista da
burguesia, que Marx dá continuidade à teoria do valor-trabalho. Afirmava que estes autores
Para tanto, pode-se consultar: Marx (1983a; 1983b; 1983c, 1980), bem como Mattick (1975), entre vários
outros.
2
247
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
não podiam chegar a determinadas conclusões, por que o ponto de partida deles era o ponto
de vista burguês e por causa disto não podiam compreender determinados processos,
notadamente o de espoliaç~o violenta da força de trabalho. Devido a estes “limites
intransponíveis da consciência burguesa” é que Marx parte de outra perspectiva: a do
proletariado.
Ainda, considerando de um ponto de vista genérico o trabalho, agora em “O Capital”,
Marx faz a seguinte afirmação:
O processo de trabalho, como o apresentamos em seus elementos simples e abstratos,
é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural
para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o
homem e a Natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto,
independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas
as suas formas sociais (Marx, 1983a, p. 153)
O processo de trabalho é, portanto, algo inerente à existência humana e algo que
constitui sua existência. Não houve, não há e não haverá formas de sociedades humanas que
prescindam do trabalho como atividade produtiva que satisfaça necessidades. Entretanto, a
forma social da produção capitalista de realizar tal atividade, ao invés de objetivar o ser
humano, pelo contrário, o aliena e o desumaniza. Este processo de desumanização que se dá
através da realização de um trabalho alienado é comum a todos os modos de produção
fundados no antagonismo de classes. E isto ocorre na sociedade moderna.
Deste modo, o trabalho, que juntamente com a terra é fonte de toda a riqueza, torna-se
nas sociedades de classe um método segundo o qual se espolia até o limite os indivíduos
vinculados diretamente à atividade produtiva, ou seja, as classes trabalhadoras. A teoria do
valor-trabalho em Marx tem este sentido ontológico de constituição permanente do ser
humano3. O homem, produzindo sua existência, se produz enquanto tal à medida que realiza
um determinado trabalho.
No capitalismo, este “Processo de trabalho” é simultaneamente “Processo de
valorizaç~o”. A valorizaç~o é o processo de constituiç~o do valor. Para Marx, valor é o tempo
de trabalho socialmente necessário para se produzir uma determinada mercadoria. A teoria
do valor-trabalho tem uma implicação ontológica e, portanto, como vimos, explica o processo
Segundo Paul Mattick: “La teoria del valor-trabajo se refiere a la inevitable necessidad – común a todas las
sociedades – de trabajar y distribuir el trabajo social en proprociones definidas. Pero, esta necessidad se
manifesta en una ley del valor somente en el capitalismo, y sólo porque la economia de mercado no puede
separar el processo de producción de valor del processo de producción mesmo” (Mattick, 1975, p. 42)
3
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
248
Luta de Classes e Contemporaneidade
reprodução material da vida dos homens independentemente da forma social que se revista
esta atividade. É comum a todas as sociedades. Pelo contrário, o valor é uma forma social
determinada. Onde há a produção de valores de uso (produtos que satisfaçam necessidades)
com o objetivo de serem mercadejados no mercado, há a produção de valores de troca.
Na produção de valores de uso, não se esconde nenhum segredo. Um determinado
produto tem uma certa utilidade e por isto é produzido. Pelo contrário, quando um dado
produto é produzido com vistas a ser trocado no mercado, outros pressupostos entram em
sua constituição. É a partir daí que Marx começa a derivar sua teoria do valor. Um produto X
será trocado por um produto Y. Ambos são valores úteis diferentes, por exemplo, pão e
sapato. Nada há de estranho em necessitar calçar e comer. Agora, trocar pão por sapato já é
uma operação um pouco mais sutil. O que permite que pão seja trocado por sapato? O que há
de comum entre estes dois produtos é que ambos são produto do trabalho humano. O
trabalho do padeiro produz o pão e o do sapateiro o sapato. Assim, como trabalho concreto, há
a produção de valores de uso (pão e sapato). Agora, como trabalho abstrato, genérico há
somente a capacidade humana de realizar trabalho. Este trabalho tem que ser medido de uma
determinada forma. Mede-se o trabalho pelo tempo gasto para se produzir um determinado
produto. Este tempo gasto para se produzir os produtos é que permite igualar o pão e o
sapato a um terceiro elemento, o tempo de trabalho. A partir de agora já podemos mercadejar
os produtos reduzindo-os ao que ambos tem em comum, ou seja, o fato de serem produtos do
trabalho humano e como tais podem ser medidos através do tempo de trabalho socialmente
necessários para produzi-los.
Porém, no capitalismo, não basta somente produzir valor, para que o capital
reproduza-se constantemente, é indispensável a produção de um mais-valor. A mais-valia é a
forma capitalista de produção de mercadorias. É a forma social de que se reveste o trabalho
humano. O trabalho do sapateiro e do padeiro são formas concretas sobre as quais se realiza o
trabalho. São considerados, portanto, de seu ponto de vista útil, qualitativo. Como valor, o
trabalho é considerado de um ponto de vista genérico, abstrato. Todas as diferenças de
qualidade entre os vários trabalhos são eliminadas ficando somente o que todos tem em
comum, o fato de poderem ser medidos através de uma determinada unidade de medida:
tempo (horas, dias, semanas etc.).
249
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Só que nas sociedades de classe, além de o produtor realizar um trabalho necessário à
sua existência, ele realiza também um trabalho excedente. Este trabalho excedente, este maistrabalho, no capitalismo, assume a forma de mais-valia. Se um determinado trabalhador
necessita, para sobreviver, trabalhar 4 horas e efetivamente ele trabalha 8, há portanto, um
quantum de 4 horas trabalhadas e não recebidas. A estas 4 horas excedentes Marx dá o nome
de mais-valia.
No livro terceiro de O Capital, Marx desenvolve o conceito de “mais-valia global”. Esta
seria o quantum de mais-valia produzida em um determinado país em um determinado
período de tempo, digamos, por exemplo, um ano. Tal como definida anteriormente, o
conceito de mais-valia explica satisfatoriamente a reprodução do capital considerado de modo
isolado, de um capitalista particular. Para o conjunto da sociedade capitalista, que envolve
além das classes fundamentais que o fundam: burguesia e proletariado, os proprietários
fundiários, a burocracia, os intelectuais, os trabalhadores do comércio, do capital financeiro
ou bancário e demais classes improdutivas etc. é necessário um conceito mais amplo que
permita incorporar num todo explicativo o conjunto da sociedade. O conceito de mais-valia
global visa satisfazer esta necessidade de explicação.
Assim, o processo de produção mesmo da mais-valia funda as classes fundamentais do
capitalismo: burguesia e proletariado, sendo este o produtor da riqueza e aquela a
apropriadora. Mas uma outra classe de importância quantitativa e política no século XIX eram
os proprietários fundiários. Marx demonstra, criticando a economia vulgar, que esta classe, da
mesma forma que a burguesia, vive de apropriar parte da mais-valia produzida pelo
proletariado. Mas a forma como os latifundiários o fazem é através da renda fundiária. Assim,
tanto os lucros da burguesia industrial e arrendatários capitalistas, como a renda fundiária
são frações da mais-valia.
O mesmo ocorre com as frações da burguesia que são ligadas ao que Marx denomina de
capital improdutivo: o capital comercial e financeiro ou bancário. Os lucros do capitalista
comercial, da mesma forma que os juros da burguesia bancária são também partes da maisvalia cedidas pela burguesia industrial: em forma de lucros do capital comercial e em forma de
juros do capital bancário.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
250
Luta de Classes e Contemporaneidade
O desenvolvimento do capitalismo cria um conjunto de classes improdutivas. Marx
entende por classes improdutivas todas aquelas que não produzem mais-valia4, mas sim que
se apropriam da mais-valia produzida por outrem. Todas as classes dominantes são, deveras,
classes improdutivas. Mas também, no seio mesmo da classe trabalhadora se desenvolvem
determinadas classes que embora sejam submetidas e dominadas, não são, todavia,
produtivas. Por exemplo, os trabalhadores do comércio, que embora sejam dominados pelos
capitalistas comerciantes e gerem lucros para estes, este lucro, como vimos, não deriva do fato
de os trabalhadores do comércio acrescentarem mais-valia aos produtos. O que ocorre, de
fato, é que estes trabalhadores compõem parte do capital variável dos comerciantes. Este
capital variável é parte da mais-valia produzida na esfera produtiva e transferida para a esfera
da circulação em forma de lucros do capital comercial.
Isto ocorre também, com o que Marx denomina de “classe dos serviçais”. Esta classe, ao
invés de se reduzir, amplia-se com o desenvolvimento das forças produtivas. Quanto mais
desenvolvida é a capacidade de produção de uma determinada sociedade, mais é possível a
ela colocar fora da esfera produtiva seguimentos da classe trabalhadora. Toda a riqueza
produzida permite que um quantum considerável de indivíduos da classe trabalhadora se
dedique a atividades improdutivas, ou seja, que não geram mais-valia.
Também, o desenvolvimento mesmo da capacidade produtiva do capital permite que o
trabalho de gerência e supervisão passe das mãos dos capitalistas propriamente ditos para
uma outra classe social, as quais Marx denomina managers ou gerentes. Trata-se daquele
seguimento de “assalariados especiais” que compõem o conjunto de atividades produtivas da
fábrica que são responsáveis por controlar, gerir, superintender a classe trabalhadora dentro
do processo de trabalho. Esta classe está presente tanto na esfera do capital produtivo
(industrial), quanto na do capital improdutivo (comercial e bancário). Os gerentes são parte
do capital variável dos capitalistas necessários para garantir o processo de exploração. Esta
classe se desenvolve a limites nunca vistos antes com o surgimento das sociedades por ações.
Estas retiram definitivamente os proprietários jurídicos das ações, os capitalistas, da direção
Sobre isto, na verdade, há uma certa imprecisão nos textos de Marx. Em O Capital, bem como em outras obras,
na maioria das vezes ele se refere a trabalho produtivo como sendo aquele que gera valor. Há contudo,
referências a trabalho produtivo como sendo aquele que gera lucro. Nos limites deste trabalho, estamos usando o
conceito como sendo aquele que gera mais-valia.
4
251
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
plena do processo de produção, deixando esta função para os managers, aqueles que gerem
propriamente o processo produtivo.
Situação específica se dá com as classes oriundas de modos de produção nãocapitalista, tal como o campesinato. O campesinato, como ressalta Viana (2009), é a classe
social constituinte do modo de produção camponês. Este é subordinado ao modo capitalista
de produção. Contudo, a riqueza produzida por esta classe não é derivada de parte da maisvalia produzida pelo proletariado. Embora esse mais-trabalho converta-se, com frequência,
em renda fundiária, compondo, portanto, a mais-valia global, este excedente não é mais-valia
no sentido estrito do termo. Entretanto, como avalia Marx (1983d), as riquezas, em forma de
mercadoria ou dinheiro, vindas de modos de produção não-capitalista, se incorporam no ciclo
global do capital.
Este texto não tem a intenção de esgotar o conjunto de classes sociais que compunham
a sociedade capitalista no tempo de Marx, nem muito menos visa interpretar como esta
composição se dá na contemporaneidade. Visou exclusivamente demonstrar como a partir da
teoria do valor, tal como desenvolvida por Marx, podemos compreender o processo de
aprofundamento da divisão social do trabalho e como este é acompanhado do aumento do
número de classes sociais e principalmente, qual a origem dos rendimentos destas classes.
A teoria do valor-trabalho é o fundamento sobre o qual Marx ergue toda a estrutura
interpretativa das classes sociais. Estas ocupam um determinado lugar na divisão social do
trabalho, vivem da exploração da força de trabalho do proletariado, portanto, da mais-valia e
se ampliam à media que se desenvolve a produção capitalista. Contrariamente ao que
comumente se diz, em Marx não há uma visão dualista de classes sociais, na qual só teriam
importância burguesia e proletariado. A análise marxista é muito mais complexa e como
vimos está diretamente relacionada à teoria do valor-trabalho de um modo de geral e,
particularmente, em seu revestimento social sob o capitalismo: o valor5.
Referências
MATTICK. P. Marx y Keynes: los limtes de la economia mixta. Mexico DF: Era, 1975.
5
Isto foi discutido também por Mattick (1977).
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
252
Luta de Classes e Contemporaneidade
______. O marxismo e o capitalismo monopolista. In: Integração capitalista e ruptura operária.
Porto: Regra do Jogo, 1977.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Matin Claret, 2004.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. V. 1. T. 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983a.
______. O capital: crítica da economia política. V. 1. T. 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
______. O capital: crítica da economia política. V. 3. T. 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983c.
______. O capital: crítica da economia política. V. 3. T. 2. São Paulo: Abril Cultural, 1983b.
______. O capital: crítica da economia política. V. 2. São Paulo: Abril Cultural, 1983d.
______. Teorias da mais-valia. V. 1. São Paulo: Civilização Brasileira, 1980.
VIANA, N. Marx e o modo de produção camponês. In: ______. Temas de sociologia rural. Pará de
Minas: VirtualBooks, 2009.
253
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
O Estado na perspectiva de Kropotkim
Marcos Augusto Marques Ataides (UEG)
[email protected]
A contribuição das ideias de P. Kropotkim em relação ao Estado no século XIX, mostra
que esse autor procurou desenvolver uma analise histórica e das instituições que formaram o
Estado na Europa Ocidental de uma forma que mostra o papel desse na reprodução do capital.
Para desenvolvermos uma analise sobre essa temática usaremos os textos do referido autor:
O Estado e seu Papel histórico; Os direitos Políticos; O governo Representativo; A lei e
autoridade; As prisões; A decomposição dos Estados. A escolha desses textos, foi feita de uma
forma para mostrar a analise do referido autor sobre a estrutura do Estado. No primeiro texto
esse autor escreve sobre a formação do Estado mostrando o seu caráter antinatural ao longo
da história da sociedade, procurando refutar os argumentos que colocam o Estado como algo
imprescindível. No segundo e terceiro textos a questão posta está como o processo eleitoral
no seio do Estado é marcado pelo autoritarismo do capital, aliado aos interesses da burguesia
que comanda o Estado. No quarto e quinto textos são abordados a estrutura repressiva das
leis feitas para proteger o Estado e suas consequências para a classe trabalhadora. No sexto e
ultimo texto esse autor apresenta os argumentos da decomposição do Estado na sua época.
Frente aos problemas colocados pretendemos mostrar a situação que o Estado se encontra na
atualidade bem como os elementos para superação desse.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
254
Luta de Classes e Contemporaneidade
SIMPÓSIO TEMÁTICO 5
AS CLASSES SOCIAIS NA MODERNIDADE TARDIA:
ABORDAGENS EMPÍRICAS E PROPOSIÇÕES TEÓRICAS
Coordenador:
Glauber Lopes Xavier
Doutorando em Sociologia/UFG e professor na UEG.
255
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
O surgimento das classes sociais e as consequências maléficas na
sociedade capitalista
Ednahn Veríssimo Andrade Silva1
Resumo: O homem ao longo do desenvolver na história da civilização foi agregando
juntamente com ele mudanças e modos variados de convivência com a primeira natureza.
Desde o homem nômade até o do mundo pós moderno capitalista. Será que o homem sempre
viveu em classes ou seria uma mazela necessária do mundo capitalista? O que propiciou a
figura da classe dominante sobre os dominados?
Palavras-chaves: capitalismo, classes sociais, mais-valia e Estado.
Na sociedade primitiva existiam grupos nômades os quais buscavam territórios que
possibilitassem sua sobrevivência, além de buscarem locais em que pudessem desfrutar de
defesa própria defesa. Nesse tipo de sociedade ainda não havia a divisão de classes, visto que
os grupos caçavam o que era necessário a sua sobrevivência. Portanto não existia ainda a
relação de domínio dos mais poderosos e mais fracos, advento que surge como uma mazela no
mundo capitalista futuramente.
Tornando o Homem um ser sedentário, passou habitar em cidades. Segundo Mumford
(apud. 2004), as primeiras cidades surgiram na Mesopotâmia, em torno de 3500 a.C., aquelas
pelas quais os homens abandonaram seu modo de vida nômade, espacialmente errante. Nesse
período, o domínio da técnica do tijolo cozido (matéria-prima utilizada na construção das
cidades) correspondeu a uma verdadeira reviravolta na vida das pessoas, na medida em que
possibilitou uma nova maneira de pensar o habitat.
É complicado especificar o surgimento do pré-capitalismo ou mesmo capitalismo de
fato. Sistema em que o poder concentra nas mãos de poucos os quais exploram
impiedosamente a classe ‘fraca’, esta última n~o enxergam outra condiç~o, se é que existe, de
serem explorados, visto que precisam sobreviver.
Segundo Reclus(1985), o capitalismo passa a existir a partir do momento em que o
homem deixa práticas de subsistência, e passa a trocar mercadorias. A partir desse momento
1 Acadêmico do 3º ano do curso de Geografia da Universidade Estadual de Goiás, Unidade Universitária
de Ciências Sócio-Econômicas e Humanas na cidade de Anápolis. Bolsista de Iniciação Científica do CNPq e
participante do grupo de estudos: A Geografia anarquista de Reclus e a questão ambiental.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
256
Luta de Classes e Contemporaneidade
o homem se opõe ao outro com anseios particulares. Surge então a sociedade dividida em
classes.
O capitalismo caracteriza pelo poder estar concentrado nas mãos de poucos. Portanto
tracemos uma linha histórica das condições econômicas da sociedade. Primeiramente
partiremos de uma breve análise de um sistema que durou aproximadamente um milênio
(século V ao XV), o feudalismo.
O feudalismo foi um sistema em que poucas pessoas desfrutavam de uma vida luxuosa.
O clero, a nobreza e os senhores feudais usufruíam de uma vida abastada graças ao trabalho
da base da pirâmide social, os servos. Assim como a indústria urbana se desenvolvia, também
nasciam conflitos no meio feudal. O camponês passava a produzir produtos alimentícios para
enviar as cidades.
Podemos até fazer uma analogia entre capitalismo e feudalismo. Não referente a
estrutura de produção, mas sim na questão da divisão de classes. A grande massa da
população está submetida às ordens da pequena população detentora dos meios de produção,
a classe dominante. A comparação torna-se oportuna, visto que nos dois sistemas existiram e
sempre ir| continuar desse modo, pessoas “iguais” como ser humano, dominando a maioria.
No feudalismo podemos dizer que houve um avanço em relação ao sistema
escravagista. O homem não é mais tratado como uma mercadoria que produziria mais
mercadorias ainda. Por exemplo, se um senhor vendesse suas terras a outro senhor, os seus
servos permaneceriam no mesmo lugar. O servo passou a ter direito, palavra não existente no
dicionário de um escravo.
O sistema feudal constituía em um modelo econômico auto-suficiente. A produção
agrícola era para proporcionar a sobrevivência da família. As necessidades como casa, roupa,
móveis eram suprimidas no local onde viviam.
A produção industrial que antes alimentava somente a zona urbana e áreas próximas,
passa agora investir na transformação dos produtos camponeses em objetos luxuosos, além
de impulsionar o surgimento de novas necessidades no campo.
Era drástica a situação do camponês que agora leva seus produtos à cidade e
comercializa suas mercadorias, caracterizando-o como agricultor. Em momentos pretéritos
eram comemoradas as colheitas abundantes. Nesse novo momento isso significaria queda do
257
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
preço de seu produto, corroborando para um possível endividamento. Em colheitas menos
fartas o resultado tornava mais satisfatório, visto que o preço elevava-se.
Em caso de endividamento o camponês requeria dinheiro emprestado, e para que
pudesse garantir aquele pagamento, tinham suas terras hipotecadas. Caso não conseguisse
uma boa colheita no ano posterior, que pudesse quitar sua dívida tinha suas terras
confiscadas e leiloadas. Sobrando uma trágica opção: mudar se para cidade e tornar-se um
proletário.
Voltemos à análise do desenvolvimento da ordem cronológica do embrião que
futuramente seria chamado de capitalismo.
O fim da Idade Média é marcado pela queda de Constantinopla em 1453. No fim do
século XV e decorrer do XVI e XVII, o mundo europeu é caracterizadas pelo expansionismo das
maiores economias européias.
Trata de um momento definido como expansão marítima, que consistia numa época em
que os países como Portugal, Espanha, França, Inglaterra e Holanda buscavam o
“descobrimento” de novos territórios em que pudessem exercer domínio sobre os “ humanos
descobertos. O grande objetivo que permeou também na América portuguesa foi a procura de
riquezas minerais.
É lamentável o choque cultural resultado do contato dos portugueses com os índios. O
português com suas habilidades de manipulação de seus interesses particulares, impunha aos
índios ordens e buscavam “tapiar” o entendimento indígena para encontrarem as riquezas
que viria a serem descobertas e exploradas.
Nos países em que existiu colônia de exploração, podemos perceber como pelo próprio
nome já esclarece a questão de uma pessoa dominar outrem. Em amplitude maior e mais
degenerativa o domínio de uma cultura (portuguesa) sobre a cultura indígena.
Partiremos para o momento histórico em que as pessoas migram para as cidades em
busca de melhora de vida, nem todos locomoviam-se de seus locais como o meio rural de
forma espontânea, de modo que muitos dos camponeses passavam pelo desgosto de verem
suas terras confiscadas.
O homem que vivia no meio rural e buscava sua sobrevivência no uso da terra para
produção de suas necessidades vitais, é obrigado a deixar a vida que levou por muitos anos,
para se desgastar no sistema industrial precoce.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
258
Luta de Classes e Contemporaneidade
Tratemos desse momento conhecido como a I Revolução Industrial, a qual aconteceu
em 1754. As pequenas cidades da época pré Revolução Industrial não estavam preparadas
para receberem esse alto contingente populacional, fato que não impediu o processo de
industrialização. O intenso crescimento das cidades traz um grande prejuízo sócio-cultural,
visto que as pessoas são obrigadas a inserirem-se neste modelo drástico.
As cidades vão modificando de tal modo que uma pessoa a qual viveu em uma cidade
durante maior parte de sua vida e por motivos da época ter de se ausentar daquele meio.
Retornando cinco anos aquele lugar iria ficar perdido, pois os elementos característicos da
cidade eram modificados de acordo com as necessidades dos industriais.
A respeito da definição do surgimento de classes sociais, descarta-se que o termo fora
criado pelo marxismo. Podemos encontrar nos escritos da Bíblia Sagrada a existência de
homens ricos que dominavam a classe menos abastada. Para Santos (1991, p.07) desde a
antiguidade grega já existia classes sociais, confirmando a hipótese em documentos egípcios
relatando essa divisão.
Mesmo não podendo pensar que de formas iguais aconteceram as formas de
dominação, visto que as relações de um escravo que produz riquezas para seu dono é
diferente do trabalhador pós Revolução Industrial, este último amparado por “direitos”, n~o
esquecendo que este também proporciona riqueza para seu patrão.
O surgimento do Estado que surge no âmbito político de organizar e proporcionar a
sociedade desenvolvimento. Como a maioria enxerga o Estado hoje, como organizador social e
mantenedor da “ordem”.
O Estado apropria de seus aparelhos ideológicos para moldar a sociedade da base
piramidal da sociedade, enquanto está atento a cumprir os anseios da classe dominante.
Pouco é interessante e analisado em como uma atitude poderá acarretar tristezas, angústias,
além de danos financeiros.
Se existe algum interesse pela iniciativa privada de “conquistar” certo local para fins
diversos, o Estado fica ciente deste interesse e mesmo sabendo que a área é concentrada de
valores culturais ou até mesmo modelados naturais este irão lutar pela desocupação deste
local, lembrando que este serve aos anseios da classe dominante.
259
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Reclus (1985, p.31) defende que a guerra, sob suas mil formas, foi uma das grandes
causas, a mais importante de todas as que contribuíram para a instituição das desigualdades e
para o surgimento de classes sociais.
Sempre existirá a figura de um vencedor venerado pelos não vencedores. Partindo aí
uma lógica do sustento das classes sociais: Um ser sempre terá que dominar o outro para que
o capitalismo prossiga estabelecido.
O Estado aliado da classe dominante irá facilitar o maior enriquecimento dessa classe.
Por exemplo, atendendo as facilidades para implantação de uma indústria por meio da
diminuição de juros e pagamento de uso do local. Ao contrário o proletariado só existirá uma
opção que é submeter a sua força de trabalho a disposição da classe detentora dos meios de
produção.
O proletariado irá de certa forma sustentar a vida luxuosa da alta classe. A mais-valia é
essencial para equilibrar o maléfico sistema capitalista. Esta consiste basicamente nas horas
de trabalho não pago ao trabalhador, visto que o que este último ganha em um dia equivale
apenas uma hora ou duas de sua produção diária.
O operário sente-se oprimido pela pressão que lhe é imposta. Mas sabendo ele que é
impossível fugir da lógica capitalista. Chega ao ponto de se a pessoa não quiser trabalhar,
existem inúmeras do lado de fora sonhando com a vaga do seu semelhante. Para SANTOS (
2008, P. 46) “ a concorrência atual n~o é mais como a velha concorrência, sobretudo por que
chega eliminando toda forma de compaixão. A competitividade tem a guerra como norma. Há
toso custo, que vencer o outro, esmagando-o para tomar o seu lugar”.
Portanto sempre que existir um ser humano dominando o outro irá existir
desigualdades sociais e divis~o de classes. Encerrando nas palavras de SMITH (1988, p.86) “ o
capitalismo difere de outras economias de troca no seguinte: produz, de um lado, uma classe que
domina os meios de produção para toda sociedade, ainda que não produza trabalho, e, de outro lado
uma classe que domina somente sua força de trabalho, que precisa ser vendida para sobreviver”
Referências:
MUMFORD, L. A cidade na história. Trad. N. R. da Silva. 4. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
260
Luta de Classes e Contemporaneidade
RECLUS. E. Organizador Manuel Correia de Andrade. São Paulo: ED. Ática, 1985.
SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único a consciência universal.
15ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2008.
SANTOS, T. dos. Conceito de classes sociais. Tradução de Orlando Reis.5ª Ed. Petrópolis:
Vozes, 1991.
SMITH, N. Desenvolvimento desigual. Tradução de Eduardo Almeida Navarro. ED. Bertrand.
Rio de Janeiro, 1988.
261
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
O fio de Ariadne:
Cultura e classes sociais no labirinto da pós-modernidade
Glauber Lopes Xavier2
Resumo: Caótica, a pós-modernidade desafia, com toda força, o pensamento. Neste artigo
pretende-se argumentar, a partir da apreensão de suas condições, a fragilidade do conceito de
classes sociais encontrado nos escritos de Marx. Tem-se que as transformações políticas,
sociais, estéticas, econômicas e culturais têm alterado, substancialmente, a natureza do
espaço, conturbando as relações entre suas três dimensões, a física, a social e a mental. A
vertigem que ocupa tais relações pode ser apreendida a partir de alguns elementos que
conformam a cidade contemporânea, caleidoscópio cultural das transubstanciações pósmodernas, como o consumo e a comunicação virtual, instaurando uma multiplicidade de
relações e inaugurando um período no qual o valor-de-signo, resultante da prestação social
dos objetos, tem sobrepujado o valor-de-uso, por exemplo.
Palavras-chave: Cultura. Classes sociais. Modernidade. Rizoma.
Da modernidade à pós-modernidade: breves apontamentos sobre as classes sociais
Desafiadora, a pós-modernidade se nos apresenta nos moldes de um labirinto cuja
saída tem tornado frágeis e insustentáveis conceitos até então considerados inquestionáveis.
Levando em conta as transformações sociais, políticas, econômicas e culturais que marcaram
o mundo a partir dos anos 1970, é inviável elaborar concepções teóricas que prescindam de
um real tecido em polaridades, como a clássica antinomia burguesia x proletariado. Esta
afirmação assegura-se no fato de que tais mudanças colocaram em proeminência elementos
atinentes à reprodução das relações sociais, sobrepujando a produção e seus aspectos da
ordem econômica. Mais que investigar a lógica da acumulação de capital, urge apreender os
mecanismos culturais que permitem sua sobrevivência e, fundamentalmente, os rearranjos
entre as camadas sociais e suas manifestações simbólicas no cotidiano.
É nesta perspectiva que se deve privilegiar a cultura, do que seria pertinente cunhar
alguns questionamentos: é possível sair em defesa da existência das classes sociais, nos
Professor Efetivo da Universidade Estadual de Goiás. Doutorando em Sociologia pelo PPGS/UFG. E-mail:
[email protected].
2
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
262
Luta de Classes e Contemporaneidade
moldes do pensamento marxista ortodoxo, levando a termo o fato de que burguesia e
proletariado comungam as mesmas representações ou, ainda, seria percuciente falar em
classes sociais considerando a primazia do valor de signo, conforme enunciou Baudrillard, por
sobre o valor de uso e o valor de troca? Tecer estes questionamentos não significa negar os
postulados marxistas, mas considerá-los a partir de uma determinada condição sóciohistórica. O contrário seria a absoluta incoerência com o próprio marxismo e seu método.
Antes de adentrar os aspectos ligados à cultura e as classes sociais, cabe, porém, apresentar
este período histórico, o qual se estabelece a partir do século XVI, que se convencionou
chamar de modernidade e, mais especialmente, o estágio em que seus elementos encontramse num patamar de avanço sem precedentes, a modernidade tardia ou alta modernidade ou
até mesmo pós-modernidade como prefiro afirmar.
A modernidade consiste, historicamente, em uma transformação abissal no campo da
política, da economia, da sociedade e da cultura, ensejada, por seu turno, pela ascensão da
burguesia e suas representações e a conformação de um proletariado cuja aparente liberdade
instaura-se no direito de vender única e exclusivamente sua força de trabalho. Claramente
constituídas, estas classes perfaziam a organização social nos tempos de Marx, movendo seus
estudos e escritos políticos, a exemplo do Manifesto Comunista. De igual clareza consistia a
produção do valor na medida em que a atividade industrial correspondia a principal atividade
econômica na Inglaterra, lócus das investigações de Karl Marx. Estavam sólidas, pois, as peças
desse mosaico que é a sociedade moderna, de tal maneira que era possível, com base em um
modelo de conhecimento ainda fundamentalmente alicerçado no objetivismo, esmiuçá-lo a
fim de se atingir a correspondência entre seus fragmentos. O aparente não se fazia, naquele
período, tão eficaz e indispensável para as análises como em tempos hodiernos, quando as
representações, os discursos, os constructos ideológicos agem por sobre a realidade, havendo,
portanto, um efeito real daquilo que é inerente ao plano fantasmagórico como enunciou Marx
(2004).
Negar este plano é se voltar à contramão de um verdadeiro materialismo, o qual não se
enreda pelo aspecto econômico, mas pela matéria no que ela reserva de concretude e
abstração, ou seja, no que significa enquanto mercadoria, mas também obra, fruto de relações
sociais, as quais, na pós-modernidade, turvam a apreensão do que é essencial aos fenômenos
porque também se apresentam enquanto altamente essenciais. A fim de se promover uma
263
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
rotação na relação entre o pensamento e o real, é preciso verter a lógica de um materialismo
economicista, isto é, considerar mais as mediações do que os processos mediados, mais o
continuum ou modus operandi do que os resultados históricos que compõem o inventário da
modernidade. Com efeito, este esforço do pensamento, não poucas vezes equivocado,
incoerente, absoluta e completamente insustentado descortina as armadilhas da história.
Os fenômenos relutam em manifestar, por um lado, a nossa esterilidade enquanto
agentes de sua apreensão, por outro, as infindáveis possibilidades que temos de desenhar o
curso dos acontecimentos com base naquilo que detemos sobre a humanidade. Finalmente, os
fenômenos estão prenhes do devir, ora trazendo à cena episódios que evocam a sociedade
liberal clássica de meados do século XIX, ora apresentando novos atores e novos papéis, como
a relevância da retórica nos processos econômicos atinentes ao capital financeiro atual. Neste
particular, é curioso o fato de que os discursos engendrados, embora se refiram a um capital
fictício, desprovido de substância, na tentativa de equilibrá-lo, promove efeitos reais. À
reificação em segundo plano que se tornou a ciência econômica moderna, conforme elucidou
Leda Paulani (2005), deve se voltar uma dialética em segundo plano. Não mais uma dialética
da mercadoria e o homem, mas uma dialética que leve em conta a relação homemmercadoria-linguagem.
Em Para uma critica da economia política do signo, Jean Baudrillard (1995) anuncia
esta tarefa a ser cumprida. Ao cunhar a noção de valor de signo, Baudrillard supera a relação
valor-de-uso/valor-de-troca que se colocou permanentemente intransponível na obra de
Marx. Com este termo, o de valor de signo, torna-se possível apreender a complexidade de
uma pós-modernidade ainda por decifrar. O signo, presença-ausência militante no nosso
cotidiano, é, numa leitura semiótica, a linguagem por excelência da sociedade de consumo, da
sociedade urbana pós-industrial, ou, como bem colocou Henri Lefebvre (1972) da sociedade
burocrática de cosumo dirigida. A partir dos incontáveis signos, são constituídos sistemas e
subsistemas que qualificam a miséria do cotidiano (LEFEBVRE, 1961), obstruindo a
criatividade em múltiplos aspectos. Na esfera do trabalho isso é sintoma candente. Onde
estão, nela, as classes sociais rigidamente conformadas, claramente delineadas e cindidas?
Ora, e se leva em conta uma sociedade cujas revoltas sociais tem se estabelecido na
virtualidade enquanto locis de anúncio, tendo como motivações não apenas o aumento de
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
264
Luta de Classes e Contemporaneidade
preços disso ou daquilo, mas também a defesa de direitos sexuais, étnico-raciais, dentre
outros.
É patente como estas questões não foram devidamente colocadas pelo marxismo
contemporâneo, ao menos pela maioria dos estudiosos que se identificam como tal.
Seguramente Henri Lefebvre fora o marxista que melhor dera conta deste emaranhado de
problemáticas atinentes ao conturbado, impactante e desafiador século XX.
Durante os
noventa anos em que viveu este pensador se esforçou na apreensão de processos cuja rapidez
exigiram constantes releituras de grandes pensadores como Hegel, Marx e Nietzsche, segundo
o próprio Lefebvre (1976), os três teóricos, por excelência, da modernidade. Em Hegel, a
modernidade está na afirmação do Estado, sua solidez e firmamento. Em Marx, no trabalho
alienado, produtor de mercadorias em quantidade sem precedentes. Em Nietzsche, na
vontade de potência, de transformação total, de ruptura com o tédio do cotidiano. Um
exercício de análise histórica atestam estes postulados, uma vez que o século XX foi marcado
pelo surgimento de dezenas de estados-nações. Ademais, pelo fato de que neste século se
estabeleceu o chamado fordismo, período áureo do capitalismo e da disseminação de seus
valores e ideologias de toda sorte.
Finalmente, tratou-se do século das irrupções juvenis em busca por novas formas de
vida, portanto, lutas eminentemente culturais, deflagradas por agrupamentos sociais dos mais
diversos extratos de renda e com objetivos que extrapolavam o campo da produção. Neste
particular, é a reprodução que os moviam na maior parte dos casos, a exemplo das lutas
feministas, estudantis, dentre tantas outras que não podem, a pretexto de um marxismo
dogmático e ultrapassado, serem ignoradas. Para não se falar da relação homem-natureza a
partir das inovações no campo da técnica, inaugurando novas relações sociais, estas mediadas
pelo virtual. Baudrillard, o qual teve Henri Lefebvre como orientador, defendeu sua tese, O
sistema dos objetos (2000), antevendo transformações nesta direção, estas, resultantes de
uma dinâmica espaço-tempo fragmentada, diluída nos mais diversos recônditos da vida,
desde as configurações do trabalho até as relações amorosas.
265
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Pós-modernidade: o consumo e a cidade rizomática
Estas questões, espaço-tempo, signo, reprodução de relações sociais, grupos sociais,
dentre outras, demarcam uma lógica temporal própria à pós-modernidade: a vida cotidiana,
num espaço que também lhe é próprio: as cidades. Unidos, o espaço da cidade e o tempo da
vida cotidiana tem-se o fenômeno urbano, palco dos subsistemas, como o tão comentado
subsistema do automóvel, uma vez que desvela toda uma gama de representações. É deste
subsistema que são pensados os traçados da cidade moderna, permitindo o seu fluxo. Dele
originam sinais e sons que orientam ações e imprimem comportamentos. Podemos, tomando
a sociedade pós anos 1970, falar de um subsistema engendrado com o advento da internet.
Vertiginoso, porque alheio a relação espaço-tempo, a internet une, virtualmente, pessoas de
lugares diversos, sendo que a comunicação por elas estabelecida elabora tessituras que
fragilizam nossos parâmetros analíticos.
Este subsistema é, de fato, paradigmático. Na medida em que ele afugenta-se do real,
constituído que é por perfis não raras vezes manipulados a fim de apresentarem o que se
pretende ver e não o que realmente são – neste particular, são risíveis os mecanismos
utilizados a fim de se forjar identidades visuais nas redes sociais – ele apresenta enigmas a ser
decifrados, notadamente no tocante às representações virtuais, a estética, a linguagem, a
comunicação, a informação. A internet, esse leviatã da pós-modernidade, arrefece os
distintivos das classes sociais, pois que permite infinitas elaborações, obviamente no campo
da virtualidade, das identidades e seus corolários. Leva, por seu turno, a que indivíduos dos
mais distintos extratos sociais se mobilizem por causas genéricas, como a causa ambiental, tão
em voga nos últimos anos. Mais que isso, ela converge diálogos, histórias de vida, experiências
na não experiência que sua dinâmica espaço-tempo preconiza, de sorte que os indivíduos
perdem, subjetiva e ideologicamente, as condições que os tornariam pertencentes a esta ou
aquela classe. Ou melhor, as condições de realização nesta ou naquela, o que seria o primeiro
passo para suas consciências, não são suficientemente cumpridas.
Estas constatações e possíveis inferências apontam para o fato de que mesmo
fantasmagóricas, mistificadas, seja lá qual o termo que melhor expresse o atual estágio de
subjetividade instaurado pela pós-modernidade, é imprescindível considerá-las. O irreal deve
ser tomado como expressão do real a fim de que este e sua concretude possam ser
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
266
Luta de Classes e Contemporaneidade
profundamente explicadas. Fredric Jameson (2007), importante teórico contemporâneo da
pós-modernidade, alerta para esta necessidade em seu clássico Pós-modernismo: a lógica
cultural do capitalismo tardio. Este pensador explora, com profundidade, as condições
culturais que legitimam o pós-modernismo e que, via de regra, maculam o real em nome de
um todo fragmentado ausente de sentido. Jameson leva a cabo uma espécie de decodificação
do pós-moderno, valendo-se da crítica à retórica. Quanto ao mercado, o qual subjuga a política
e alicerça as bases econômicas da pós-modernidade, é oportuna a seguinte passagem: “a
retórica do mercado tem sido o componente central e fundamental nesta luta ideológica, a luta
pela legitimação ou deslegitimação do discurso de esquerda.”(2007, p. 271).
A naturalização do mercado invadiu as instâncias mais subjetivas do ser social,
incitando um comportamento hedonista, avesso à solidariedade, um comportamento cujo
imperativo é a troca ao invés do uso, da satisfação individual, da aparência em lugar da
essência, do concebido ao invés de um vivido verdadeiramente humano e plenamente
emancipador. Resta apreender o emoliente desse mercado na pós-modernidade, o consumo.
Baudrillard (2010) magistralmente apreendeu a sociedade de consumo gestada na segunda
metade do século XX, uma sociedade devotada ao consumo de signos, cujo valor é a prestação
social da mercadoria, o distintivo que ela promove entre os integrantes dos grupos sociais. Na
medida em que este consumo espraia por sobre os mais longínquos territórios e fornece
substancia ao cotidiano de indivíduos sob quaisquer condições, trabalhadores ou não, ele
torna-se a um só tempo o que equaliza as classes sociais e o que as diferencia. Trata-se, pois,
de mais um elemento na seara dos instrumentos ideológicos, de um mecanismo de domínio de
classe? Talvez. O certo é que o consumo traz a tona problemas que não se encerram com esse
argumento. Ele é, numa perspectiva mais abrangente, a manifestação incisiva da força que
emana dos objetos. Portanto, dos signos, dos símbolos e dos sinais que estes exprimem.
Princípio ativo da chamada globalização, o consumo integra/desintegra povos e
culturas a partir dos ditames do mercado. Encampado pelas grandes corporações e suas
estratégias geopolítico-territoriais, esta vigorosa luz transcendental, o mercado, cujos feixes
percorrem de norte a sul e de leste a oeste o universo, encarrega-se de desterritorializar a
filosofia3, o pensamento, cavando um buraco no qual são soterradas não apenas o homem
Magistralmente, Deleuze e Guattari postularam uma geofilosofia, a qual tem que “Pensar se faz antes na relação
entre o território e a terra.” (Deleuze e Guattari, 2010, p. 103).
3
267
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
enquanto produtor de obras, mas também o homem produtor de sua história e, portanto,
capaz de problematizar sua vida e os acontecimentos. Com efeito, o mercado a tudo invade,
sobrepujando, o mundo da vida. Mas há que se sair da sombra da pós-modernidade e a vida
cotidiana que esta acirra com veemência, romper os grilhões que não mais se reduzem ao
trabalho e ao salário que aparentemente lhe compete. Amiúde complexo, os grilhões do
mundo pós-moderno estão incrustados no campo semiótico e seus discursos, nas roupas,
automóveis, eletrodomésticos, mas também nos seguros, como o do automóvel, que justifica o
desperdício em demais. O desperdício, expressão da irracionalidade do capital, nos desvela
quão difícil é o exercício de apreensão das atuais condições de reprodução do modo de
produção capitalista.
Deve-se, pois, partir da reprodução, como já dito em outros termos. Se a
reprodução, cultural por excelência, porque obtida a partir das práticas sociais, promove um
campo cego que dificulta as abordagens e seus diagnósticos, ela também engendra os
elementos que configuram a diferença. É da repetição que surge o diferencial, já dizia
Lefebvre (1968). Na repetição está contido o devir, o vir a ser, o porvir, anúncio do acaso em
meio a um caótico campo de imanência, em meio a um caótico território que descumpre sua
forma, sua estrutura e sua função, contrariando desta sorte os princípios de sua concepção.
Como? Pelo vivido, só ele destitui o concebido. Isto é espaço social, a relação entre os homens
e o território para além do lócus de suas casas, mas enquanto instância que qualifica suas
vidas, que promove ou não o encontro, espaço das relações sociais que, ao conformá-las,
germina elaborações do espaço, fecundando representações.
Na medida em que parte da unidade entre homem e natureza, o conceito de
espaço social permite que o estudo da cultura não deságue em um culturalismo, em um
desprezo pelas condições materiais de existência dos indivíduos. Por seu turno, o espaço é a
própria materialização das ações sociais e sua materialidade, lócus e matéria das aventuras
humanas. Ele é, por isto, produto e obra, constructo fenomênico e histórico, a um só tempo
físico, social e mental. Sua expressão máxima contemporânea é a cidade, arena da reprodução,
das práticas sociais alienadas e alienantes, da cultura, das investidas do mercado, espaço do
mercado e mercado do espaço concomitantemente, do consumo, consumo de produtos e
consumo de espaço, uma vez mais, concomitantemente. Ela é, destarte, o plano físico da pósmodernidade e a própria pós-modernidade uma vez que terreno do fenômeno urbano. Nesta
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
268
Luta de Classes e Contemporaneidade
perspectiva, a cidade é, ainda, valores, condutas, comportamentos, relações sociais, vida
cotidiana finalmente.
Ao se dar conta da essencialidade da cidade e do urbano na
modernidade, Henri Lefebvre (2001) derramou tinta e nos legou uma de suas principais
obras, O direito a cidade.
Caleidoscópio da vida cotidiana, a cidade contemporânea, a qual coaduna
indústria, comércio e serviços extremamente diversificados, compreende um complexo,
extenso e enigmático labirinto, o labirinto da pós-modernidade. Sua complexidade vai da
cotidianidade (o mimético e rotineiro) até a filosofia. Sua extensão incorpora, por um lado,
elementos de um campo metamorfoseado em agroindústria, por outro, um plano virtual de
relações sociais, instaurado com o advento das redes sociais pela internet, passando pelo
fornecimento dos mais diversos serviços, a exemplo do personal trainer, distintivo
profissional do culto ao corpo, ipso facto, valor-de-signo pela prestação social que provoca.
(BAUDRILLARD, 1995, 2010). Por fim, seu caráter enigmático está em que se pode
vislumbrar, sem reservas, algo de novo, um porvir, dada a confusão que se tem operado na
cidade a partir da sua composição espacial triádica. Ora é o espaço físico que não suporta as
pulsões do espaço social; Ora é o espaço mental que em nada se desdobra do espaço físico ou
mesmo do social; Ora é o próprio espaço físico que não possui direção. Com efeito, muitas
elaborações mentais hodiernas resultam das imposições do virtual. Neste sentido, as relações
sociais tem se transubstanciado completamente, independendo até do espaço físico, o qual
outrora se lhe apresentava indispensável.
Note que o processo aqui fortuitamente denominado de transubstanciação é,
numa pretensão filosófica, a própria desterritorialização e reterritorialização de que falam
Deleuze e Guattarri (1992, 1997) ao postularem uma epistemologia rizomática. Materialidade
filosófica e não-filosófica do rizoma, a cidade contemporânea é, assim como este, a-centrada. O
que está em questão nesta cidade não são as polaridades (início-fim, dentre outras), mas as
mediações. A multiplicidade que dela emerge conturba a racionalidade na qual esta
presumivelmente se ancorava. Uma geofilosofia da pós-modernidade é, pois, rizomática,
partindo de um sistema aberto cujos acontecimentos redefinem veloz e constantemente os
conceitos. Foram proferidas, aqui, algumas pistas que permitem compreender este labirinto
da pós-modernidade, a cidade contemporânea. Nele, porque rizomático, o acaso, o
extraordinário, o inesperado sentencia os indivíduos à partilha de experiências originais. Tal
269
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
qual o fio de Ariadne, a insurreição do super-homem tem se dado seja no discurso filosófico,
na demarcação do território ou mesmo na elaboração mental dos acontecimentos e suas
circunstâncias ou, ainda, porque não, pela internet, um moderno labirinto cuja rota pode ser
registrada e, caso não seja, pode se dar a partir da tentativa-erro, a chamada estratégia de
Ariadne louca; Não seria uma Ariadne caótica? Este labirinto deve-se considerar, não tem
saída. Temos muito que decifrar de uma sociedade por excelência informacional, na qual o
mercado, os objetos e até mesmo os lugares comunicam. Não falam, mas comunicam.
À guisa de conclusão
Há um espaço pós-moderno, a cidade contemporânea, a cidade rizomática. Produto das
condições da modernidade, nela recorrentes contradições demarcam o convívio entre as três
instâncias espaciais, a saber: a física, a social e a mental. Múltipla, caótica, indescritível, ela é
caleidoscópica. Engendra culturas originais, incita o consumo, se consome em suas
indeterminações, como o plano virtual das relações sociais, o qual instaura sem um topo, sem
um lugar. Há, nela, na cidade rizomática, classes sociais, uma burguesia e um proletariado?
Não nestes moldes. Há um gradiente de camadas sociais, especialmente as camadas médias,
cujas representações, práticas sociais, condutas e valores não são compartilhados com os
operários, minoria enquanto agrupamento social, não mais portador de uma potencialidade
revolucionária, a despeito das premissas de um marxismo ortodoxo. A cultura, posto que
emoliente da reprodução das relações sociais, consiste, por outro lado, na pedra de toque da
pós-modernidade. É por meio dela que estudantes, profissionais liberais, operários, dentre
outros, devem promover a busca pela transformação total, pela mudança de vida. Por
enquanto, u-tópico, outro topos, outro lugar, Por enquanto, o possível do qual descortinará o
espaço diferencial cujo anúncio já se vislumbra pelo acaso. Um espaço caótico, como o espaço
virtual, donde emergem novas tessituras sociais e irrompem estratégias para a saída de um
labirinto, o da pós-modernidade, o qual, a despeito da linearidade do pensamento e da
história, não possui saída. Cabe apreender seu percurso, suas a-centralidade para que
possamos atingir com mais acuidade o real, ou não, a depender do que se entende por real.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
270
Luta de Classes e Contemporaneidade
Neste particular, a comunicação é fulcral como elemento de compreensão na medida em que
conditio sine qua non da pós-modernidade.
Referências
BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Ediçoes 70, 2010.
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. 4ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.
BAUDRILLARD, Jean. Para uma crítica da economia política do signo. Rio de Janeiro: Elfos
Ed; Lisboa: Edições 70, 1995.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. São Paulo. Editora 34, 1997.
DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo:
Editora Ática, 2007.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, 2001.
LEFEBVRE, Henri. Hegel, Marx, Nietzsche ou O reino das sombras. Póvoa de Varzim:
Ulisseia, 1976.
LEFEBVRE, Henri. La vie quotidienne dans le monde moderne. Paris: Gallimard, 1972a.
LEFEBVRE, Henri. Sociologia de Marx. Rio de Janeiro: Forense, 1968
LEFEBVRE, Henri. Critique de la vie quotidienne. Paris: L´Arche Éditeur, 1961. Três tomos.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
PAULANI, Leda. Modernidade e discurso econômico. São Paulo: Boitempo, 2005.
271
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Minaçu-GO: uma cidade para o capital no olho do furacão
Fábio de Macedo Tristão Barbosa1
Resumo: Localizada na região Norte do Estado de Goiás, a cidade de Minaçu passou a existir
em virtude do movimento geral do capital-amianto que no decorrer do século XX instalou-se
em diversos países do mundo tendo como centro irradiador a Europa, fazendo parada nesta
porção do espaço goiano. Neste texto abordaremos alguns aspectos da relação do capital na
produção do urbano, especialmente a forma peculiar do urbano que se institui quando a
cidade é literalmente uma criação do capital e para o capital. As condições materiais de
produção encontradas colocaram para o capital a necessidade de dotar este espaço de
infraestrutura para operacionalizar sua própria acumulação. Processo que fez brotar às
margens da mina uma cidade subordinada econômica, política e socialmente pela empresa
Sama Minerações Associadas.
Palavras-chave: Capital, cidade, Espaço urbano.
Introdução
Localizada na região Norte do Estado de Goiás, a cidade de Minaçu passou a existir em
virtude do movimento geral do capital-amianto que no decorrer do século XX instalou-se em
diversos países do mundo tendo como centro irradiador a Europa, fazendo parada nesta
porção do espaço goiano. Neste texto abordaremos alguns aspectos da relação do capital na
produção do urbano, especialmente a forma peculiar do urbano que se institui quando a
cidade é literalmente uma criação do capital e para o capital. A gestação desta cidade foi obra
da “m~e” SAMA Minerações Associadas. A vila oper|ria foi concebida como condiç~o geral de
produção e reprodução do capital-amianto; erguida em meio a uma paisagem
predominantemente composta de Cerrado virgem, praticamente “intocada”, salvo a presença
de quatro famílias de migrantes maranhenses que praticavam a criação extensiva de gado,
impôs-se condições bastante adversas para a instalação da maquinaria e dos instrumentos
necessários para iniciar a exploração do mineral.
Portanto, as condições materiais de produção encontradas colocaram para o capital a
necessidade de dotar este espaço de infraestrutura para operacionalizar sua própria
acumulação. Processo que fez brotar às margens da mina uma cidade subordinada econômica,
política e socialmente pela empresa Sama Minerações Associadas.
1
Doutorando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo
Professor da Universidade Estadual de Goiás
Bolsista CNPq.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
272
Luta de Classes e Contemporaneidade
1. A primavera da cidade: A vila operária da Sama
Enquanto nos países de capitalismo avançado as condições gerais de produção
encontravam-se consolidadas há bastante tempo, e as condições da própria reprodução do
capital passa por importantes processos de reestruturação produtiva nos primeiros anos da
década de 1970 – sinal da crise do regime de acumulação fordista. Por aqui, nas zonas de
fronteira do capital, prescindia-se ainda da instalação de tais condições infraestruturais,
sobretudo a instalação de capital fixo, para sua acumulação e reprodução. Era imperativo criar
estas condições.
Na esteira da mobilidade geogr|fica do capital “las relaciones monet|rias han
penetrando hasta el último rincón del mundo, em casi cada aspecto de la vida social e incluso
a vida privada” Harvey (1982, p. 376), envolvendo todos os lugares na complexa divis~o
territorial do trabalho. Produzindo configurações espaciais novas (capitalistas) na destruição
das antigas (não-capitalistas). É próprio do capital a necessidade da unificação espacial das
relações de produção, conformando uma espacialidade homogêneo/fragmentária que
legitima a tese do desenvolvimento desigual e combinado; na linguagem geográfica de David
Harvey: desenvolvimentos geográficos desiguais.
A cidade distante dos grandes centros urbanos, longe do mercado de força de trabalho
necessitava de trabalho vivo para produzir lucro. Com o início da exploração da mina em
1967 começa a chegar trabalhadores de distintas regiões do país atraídos pela possibilidade
do trabalho, a grande maioria ligados às atividades do campo, são oriundos principalmente do
Nordeste: maranhenses, piauienses, e baianos vindos da mina desativada de São Felix em
Poções-BA, passam compor a massa de trabalhadores braçais; técnicos e engenheiros vieram
de Minas Gerais, São Paulo e de outros países.
Esse processo, de certa forma, também contribuiu para a formação da vila operária
pela empresa, que, além de colocar-se como condição fundamental para extração do amianto,
vê-se pressionados pela oferta de trabalho da população chegante. Porém, a ausência de
condições básicas de sobrevivência poderia não permitir a fixação desses trabalhadores no
lugar. Neste sentido, a cidade deveria garantir até certo ponto, um mercado cativo de força de
trabalho para servir ao capital, dadas às particularidades geográficas de sua localização.
Enquanto espaço produzido a cidade se colocou desde o começo a serviço da
acumulação de capital, a construção das casas pela Sama para os operários cumpria papel
273
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
importante no rebaixamento dos custos de reprodução da força de trabalho, e foi posto
também a serviço do capital. A conversão daquele espaço primevo, o espaço natural dado, a
um valor de uso social para a produção de mercadorias, configura o espaço tornado
mercadoria, ou a mercadorização do espaço. Neste sentido a própria cidade pode ser
entendida como meio de produção, nela passa-se a concentrar o trabalho e os meios básicos
de subsistência necessários à reprodução da classe operária em formação.
A cidade intramuros, cercada, controlada e disciplinada pela Sama, é o espaço-escola
importante na formação da cultura do trabalho nos moldes da empresa capitalista.
Trabalhadores vindos dos mais distintos rincões trazendo consigo hábitos, valores,
comportamentos do campo são levados a rapidamente se despirem da cultura campesina e
obrigados a entronizarem formas de trabalho inteiramente diversa daquelas do meio rural. O
tempo deixa de ser o tempo cíclico das tarefas na lida da roça, o acordar com o cantar do galo,
o tempo de plantar, o tempo de colher, e passa a ser o tempo racional do relógio, deixa de ser
o tempo da natureza para ser o tempo da racionalidade industrial nos termos de Edward
Thompson; e isto é, de certa forma, uma violência, uma perversão.
Consta em Ortiz & Hue (1987, p. 103) que no período entre “1967 e 1974, quando
então se abriu uma estrada, 15.000 pessoas chegaram à região, sendo que 6.000 se instalaram
em torno da mina. Desses, 1.300 dentro da vila oper|ria, montada pela empresa”. Percebe-se
então que a produção social do espaço urbano deu-se a partir da montagem de alojamentos e
casas simples, que foi se conformando aos poucos em uma vila de trabalhadores que se
aglomeravam em torno da mina. Neste sentido, a construção da vila operária é tanto uma
condição da acumulação de capital, como espaço de reprodução do trabalho.
Portanto, a Sama viu-se na obrigaç~o de “modernizar” o espaço. A vila foi sendo
construída¸ composta por edifícios comerciais, escolas, hospital, centro de saúde, clubes
recreativos, 383 residências e 59 alojamentos para solteiros, abrigando em meados da década
de 1980 aproximadamente 2400 pessoas. A organização espacial da vila, expressa claramente
a hierarquia de poder dentro da empresa. O setor leste destinado aos funcionários mais
graduados é onde mora o alto escalão de comando da empresa, os setores norte, sul e oeste
residem os trabalhadores da base da pirâmide social. Um simples olhar na fachada das casas
denunciam as diferenças econômicas.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
274
Luta de Classes e Contemporaneidade
Aos poucos a vila foi sendo dotada de toda infraestrutura e conforte: energia, primeiro
com a instalação de potentes geradores a diesel, posteriormente, a própria empresa financia a
linha de 90% da linha de alta-tensão; a instalação de redes de água e esgoto tratados numa
estação própria de uso exclusivo dos moradores da vila. Atendimento hospitalar aos seus
funcionários, restaurante industrial, posto bancário, postos de atendimento e administração
da vila, uma espécie de delegacia, uma “prefeitura” e um posto de assistência social, além de
clubes sociais e de recreação, campos de futebol e quadras poliesportivas e de tênis, escolas
técnicas profissionais e de ensino, etc.
Tais objetos espaciais distribuídos racionalmente dão forma ao espaço da vila operária,
recortados por vias e ruas largas, amplos canteiros centrais gramados e arborizados
compõem o arranjo espacial da vila. Tudo isso sob o rígido controle e disciplina da empresa.
Para além do espaço fabril, o espaço da produção e do trabalho, a disciplina do capital adentra
o espaço-tempo da vida cotidiana, o espaço-tempo da reprodução no sentido marxiano, da
reproduç~o amipliada como atesta Lefebvre (1973, p. 11) “n~o h| reproduç~o das relações
sociais sem uma certa produção de relações; não h| aqui um processo puramente repetitivo”.
É no âmbito do espaço como condição histórico-social que a reprodução das relações de
produção acontece, engendrando outras novas, porém, preservando a sua essência. Tudo
mudo para que tudo permaneça como está.
2. De vila operária a condomínio residencial fechado
Nos primeiros anos do século XXI mudanças importantes ocorreram na relação da
Sama com a Vila Operária. Até este momento as casas e todas as edificações da vila eram de
propriedade da empresa que alugava as casas para os operários, apenas funcionários da Sama
poderiam morar na vila. A partir de 2003 isso mudou, a empresa resolveu vender as casas –
segundo consta por preços módicos –, desde então pessoas com nenhuma relação direta com
a empresa passou a residir na vila da Sama. Professores, delegados, policiais, juízes,
promotores, etc., residem hoje na vila, que passou de vila operária a condomínio residencial
de classe média alta de Minaçu. O Em abril de 2005 o condomínio é fundado legalmente, com
estatuto próprio e eleição de dois em dois anos para escolher nova diretoria.
Residem hoje no condomínio cerca de mil pessoas em 264 edificações. O estatuto
coloca restrições para reformas nas casas para assegurar as formas originais e não
275
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
descaracterizar a arquitetura do condomínio. Porém, com autorização da diretoria os
moradores podem alterar com certos limites suas casas; o que é expressamente proibido é
trocar o telhado, todas as casas e edificações deve manter o telhado original, ou seja, com
telhas onduladas de fibrocimento. O preço pago por condômino é de trinta reais, é cobrado
também uma taxa de segurança que varia de vinte a trinta e cinco reais, de acordo com o
padrão arquitetônico das casas. O fornecimento e tratamento de água e esgoto são realizados
pela empresa a preço de custo para os moradores, cerca de R$ 1,10 o metro cúbico de água, ao
passo que a Saneago cobra cerca de R$ 3, 40, ou seja, três vezes mais caro.
O condomínio conta ainda com: hospital, sistema Sesi/Senai, escolas, clínicas médicas,
banco, Unimed, padaria, academias de ginástica, restaurante, dois clubes sociais com piscinas
e quadras de esporte, salão de festas e espaços para realização de eventos e encontros
culturais, etc. conta também com ampla área verde, matas de cerrado que abriga um enorme
lago e garantem uma temperatura bem mais agradável no meio do forte calor do norte goiano.
A entrada no condomínio é permitida, porém a Sama mantém uma portaria vigiada com
seguranças que podem solicitar identificação de quem adentra no condomínio. As normas de
trânsito são rigorosamente observadas, os espaços para pedestres, ciclistas e automóveis são
bem definidos e vigiados; há um projeto para instalação de 24 câmeras de vigilância a serem
espalhadas no condomínio, certamente aumentará a sensação de segurança, mas também de
disciplinamento e vigilância deste espaço.
Carlos (1994) observa duas perspectivas diferentes para analisar o espaço. Do ponto
de vista do capitalista, enxerga o espaço como capital fixo destinado a reprodução do próprio
capital; de outro, observa o espaço como meio de produção da própria vida, como valor de uso
e consumo indispensável à reprodução da sociedade em geral. O espaço assim visto deve ser
apropriado para o uso da coletividade e de acordo com o uso que a coletividade faz dele. Para
Carlos, essa produç~o dual do espaço, é produzida “para atender, de um lado, as necessidades
da produç~o e circulaç~o de mercadorias, [...] e de outro, { reproduç~o humana” (CARLOS,
1994, p. 11), é a própria manifestação das contradições do espaço transformado em
mercadoria que traz embutido em si valor de uso e valor de troca.
Do outro lado dos muros, na hinterland da antiga vila operária transformada em
condomínio residencial fechado, do outro lado dos muros, um processo de urbanização
caótico e esgarçado vem ocorrendo. Neste processo de desdobramento urbano, emerge uma
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
276
Luta de Classes e Contemporaneidade
centralidade
urbana
assentada
no
comercio
varejista,
lojas
de
departamentos,
eletrodomésticos, informática, supermercados, juntamente com o setor de prestação de
serviços: escritório de contabilidade, de advocacia, clínicas médicas e odontológicas, etc.,
espacializando, assim, a divisão social do trabalho. O movimento do capital no espaço
contribuiu para o processo de valorização urbana, as áreas da cidade dotadas de
infraestrutura urbana abrigam as classes abastadas economicamente, enquanto aos pobres,
cabem ocupar as franjas da cidade, a beira de cursos d’|gua e nas encostas de morros como é
o caso do setor Serrinha.
Os espaços dos pobres e os espaços dos ricos vão sendo definidos pelo processo de
segregação residencial dado pela propriedade privada da terra urbana, a totalidade vai se
fazendo no lugar. A urbanização autoritária comanda o aparecimento de cidades sob a égide
do capitalismo autoritário brasileiro, Minaçu emancipa-se politicamente no período mais duro
da ditadura militar no Brasil, ao que parece sua emancipação política foi dada diretamente
pelo presidente da república em exercício General Adalberto Pereira dos Santos num
momento político restritivo à criação de novos municípios em território brasileiro.
3. Sama e a estratégias de dominação da cidade
É flagrante a subordinação e a dependência econômica da cidade de Minaçu em relação
à exploração econômica do mineral-amianto. A Sama é a maior pagadora de impostos
estaduais e municipais da região, a maior fatia de todo ICMS (Imposto sobre a circulação de
mercadorias e serviços) arrecadado pelos cofres do Município provém da exploração do
amianto. Outro imposto que contribui com a arrecadação municipal é a CFEM (Compensação
financeira por exploração mineral) em que 65% do seu valor também entram nas receitas
municipais, 23% vão para o Estado. Estas são as duas maiores fontes de receita advindas da
extração/beneficiamento do amianto à prefeitura de Minaçu.
Entre os anos de 1996 e 2000 foram arrecadados um total de R$ 74.742.169,00 em
ICMS, deste valor, R$ 18.685.542,25 participaram das receitas municipais. A CFEM gerou
entre os anos de 2008 e 2011 um total de R$ 24.643.479,73, neste período entraram nos
cofres da prefeitura de Minaçu R$ 16.018.261,68. Segundo Silva & Shiki (2002) a importância
do amianto para Minaçu justifica-se por uma participação média de 94,41% do total
arrecadado em tributos na região.
277
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
A participação política da Sama é outro aspecto que não pode ser desprezado da
análise. A empresa é uma das maiores doadoras em campanhas político-eleitorais do Estado
de Goiás, conforme dados apresentados no gráfico 1.
Gráfico1
Municípios que mais receberam doações
eleitorais do Grupo Sama-Eternit de 2002 a
2008
680.000,0
0
410.000,0
0
190.000,0
0
Minaçu
Goiânia
Anápolis
245.000,0
0
Osasco-SP
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral; Portal Transparência Brasil.
http://media.folha.uol.com.br/treinamento/2009/07/10/poder_politico.pdf
O gráfico evidencia fortemente o interesse e a presença da empresa Sama e do Grupo
Eternit, no campo político-eleitoral no Estado de Goiás e fora dele, pois a empresa foi generosa
também para Osasco-SP. Por “coincidência”, nesta cidade fica a sede da ABREA – Associação
Brasileira dos Expostos ao Amianto – braço nacional de uma organização internacionalmente
reconhecida pela luta e defesa dos trabalhadores vítimas da exposição à poeira do amianto.
No entanto, os vultosos recursos se concentram de acordo com o gráfico, em Minaçu; sendo
também generosas as doações para a cidade de Goiânia. Quem seriam os políticos, candidatos
agraciados pelo Grupo Sama-Eternit?
Sabemos que não há nenhuma ilegalidade jurídico-criminal em fazer doações para
determinado grupo político, a lei é permissiva quanto a isso. Mas pode ser também, se eleitos,
esta classe política pode intervir internamente nas estruturas do Estado para favorecer em
diversos pontos a empresa, os lobbies, são criados, dessa forma, pela empresa para se
constituírem como seus agentes no interior das instituições do Estado, facilitando caminhar
projetos, aprovando leis que sirvam aos seus desejos imediatos. Percebe-se então que a
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
278
Luta de Classes e Contemporaneidade
política local perpassa amplamente pelos interesses e desejos da Empresa, dessa forma tornase claro a dominação político-ideológica local amplamente assegurada e dominada pela Sama.
A sociedade de Minaçu é toda ela defensora ardente do amianto-crisotila. O poderio
econômico e político da empresa demonstrado anteriormente se revestem como instrumento
poderoso de convencimento e controle social, construindo o consenso de que o “uso
controlado” do amianto n~o só é possível, como foi alcançado pela empresa a partir da adoç~o
de aparato técnico de ultima geração e o constante monitoramento do material particulado
em suspensão. Desta forma está garantido o uso seguro no processo produtivo do amianto.
A estratégia da empresa para produzir o consenso e o controle social é seu constante
envolvimento no cotidiano da cidade. A prática espacial de espalhar outdoors em pontos
estratégicos do espaço urbano com imagens e frases ovacionando a empresa coloca a Sama
como uma riqueza natural da cidade. Em todo canto visualiza-se rochas enormes de amianto
em pontos importantes da cidade, como no aeroporto municipal. No desembarque, no rol do
aeroporto uma amostra de pedra de amianto está exposta e um enorme outdoor do lado de
fora.
É comum a ornamentação da entrada dos prédios do poder judiciário no Brasil com a
estátua de olhos vendados, simbolizando que a justiça é cega e “igual” diante de todos. No
entanto, na entrada do Fórum de Minaçu o ornamento principal é uma gigante rocha de
amianto-crisotila. Na portaria de hotéis da cidade também observa-se pedras enormes
desejando as boas vindas aos visitantes e turistas que chegam a Minaçu.
É intensa a presença da Sama nos diversos eventos culturais, sociais, festas, etc., como
a grande patrocinadora dos eventos que acontece na cidade. A elite local se apresenta como a
portadora do discurso do convencimento da opinião publica. As Igrejas Católicas e
Evangélicas cumprem fielmente seu papel neste enredo, a mídia impressa e o rádio são
instrumentos de propagação do discurso importantes, na medida em que alcança a
capilaridade de toda população. Enfim a cidade está aos seus pés. Dominada economicamente,
politicamente e socialmente.
Considerações finais
Esta cidade vive hoje um paradoxo: Enquanto ganha força o movimento nacional e
internacional para o banimento do amianto, relacionando o mineral ao comprometimento da
279
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
saúde dos trabalhadores; as elites dirigentes de Minaçu busca unir as forças políticas locais e
estaduais na defesa da continuidade da exploração econômica do mineral amianto. O discurso
ideológico reinante é o de que o banimento do amianto é quase o “fim da cidade”, um discurso
do terror que é propagado nos mais diversos meios sociais da cidade: nas igrejas, nas
associações comerciais, nos poderes públicos, nos sindicatos de trabalhadores que divulgam
amplamente a ideia, nas escolas, na universidade, na mídia impressa, e no rádio. Enfim, o
imaginário social está definitivamente contaminado por esse discurso que se converte em
prática social, e ao contrário, uma prática social que elabora o discurso.
As contradições se instalam. A história do capitalismo permitiu a criação da cidade de
Minaçu pelo império do amianto, uma cidade criada para servir ao capital. Porém, os
meandros da história deste modo de produção põe Minaçu no olho do furacão, na medida em
que o interrompimento da mineração de amianto pode configurar a própria tragédia do
desenvolvimento; seria a morte da cidade, ou um novo começo?
Referências
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A (Re)produção do espaço urbano. Editora Universidade de
São Paulo, 1994.
HARVEY, David. Os limites del capitalismo y la teoria marxista. México, Fondo de Cultura
Econômica, 1990.
________. Espaços de esperança. São Paulo, Edições Loyola, 2006.
________. O novo imperialismo. São Paulo, Edições Loyola, 2005.
LEFEBVRE, Henri. A (Re)produção das relações sociais de produção. Publicações
Escorpião, Porto, 1973.
MUMFORD, Lewis. A cidade na história: Suas origens, transformações e perspectivas. São
Paulo, Martins Editora, 2001.
ORTIX, Maria Cristina Marques & HUE, Renata Stadter. Minaçu e Recife: Histórias de
habitações e seus habitantes. São Paulo, Projeto, 1987.
PACO,
Puche.
Um
mundo
sin
amianto.
Disponível
http://www.ecoportal.net/content/view/full/98861. Acesso em 10 de maio de 2011.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
em:
280
Luta de Classes e Contemporaneidade
PAMPLONA, Ivo Renato. O amianto crisotila e a Sama 40 anos de história Minaçu-Goiás:
Da descoberta à tecnologia limpa. Minaçu, GO: R.I. PAMPLONA, 2003.
ROSELLI, Maria. La mentira del amianto. Fortunas e delitos. Málaga, Ediciones del Genal,
2010.
SILVA, Cristina Socorro da. & SHIKI, Shigeo. A Participação do amianto na economia do
Estado de Goiás nos anos 1990. Revista Anhangüera Goiânia v.3 n.1 jan./dez. p.195-223
Goiânia, 2002.
SCLIAR, Claudio. Amianto: Mineral mágico ou maldito? Ecologia humana e disputa
político-econômica. Belo Horizonte, Novatus, 2005.b
281
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Perspectivas anarquistas na abordagem da natureza no século XXI
Rubens Elias Santana Morais1
Resumo: Para se abordar essa temática, partirei do preceito no qual será necessária a busca
pelos princípios e ideal anarquista, assim será feita a análise de algumas obras que envolvem
diretamente autores anarquistas. Apresentarei as análises feitas por esses autores sobre essa
problemática, como surgiram e são abordadas. E trarei essa abordagem para a atualidade
através das abordagens feitas no passado e o empirismo que aplicarei nessa abordagem que
terá como problemática a questão da poluição, e como os verdadeiros causadores dela estão
sendo acobertados pelos meios de comunicação que a burguesia e o Estado dominam e usam
como ferramenta para atender suas demandas.
Palavras-chave: Anarquismo, Natureza, Estado, Alienação.
Introdução
Começarei discorrendo sobre os princípios anarquistas, buscando demonstrar seus
ideais e fundamentos que trará uma nova visão de um processo de alienação e enganação
sobre o qual o Estado e a classe burguesa controlam.
O Estado, que controla a sociedade através de entidades e autoridades, alega ser o
responsável pela organização da civilização, mas segundo KROPOTKIN (2007), punição,
polícia, juiz, salário e fome nunca foram e jamais serão, um elemento de progresso; e se há
progresso sob um regime que reconhece esses instrumentos de coerção esse progresso é
conquistado contra esses instrumentos e não por eles.
Há uma pequena minoria que é conhecida como burguesia, no qual possui a proteção
do Estado por ter o capital financeiro em sua mão. Sendo assim o Estado e a burguesia são os
dominadores da massa, aqueles que disseminam desigualdade, fome, miséria e alienação da
população que por sua vez não percebem a opressão que recebem diariamente, reforçando a
exploração que é imposta a eles.
O anarquismo é contra o Estado e o poder que ele representa, pois enquanto o Estado
permanecer, permanece também a opressão sobre o povo e assim, a liberdade no qual todos
Graduando do curso de Geografia, Unidade Universitária de Ciências Sócio Econômicas e Humanas (UnUCSEH)
da Universidade Estadual de Goi|s (UEG), atualmente no 3º ano. Pesquisa em andamento “História da
Cartografia de Goi|s”, participa do Grupo de Estudos: A Geografia Anarquista de Reclus e a Quest~o Ambiental. Email: [email protected]
1
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
282
Luta de Classes e Contemporaneidade
os homens têm direitos continuará sendo uma falsa verdade, pois não existirá igualdade e
democracia para que possamos expressar o que sentimos.
Como os princípios anarquistas são amor, fraternidade, igualdade e total liberdade dos
homens, o Estado passa a ver o anarquismo como uma ameaça, porque o anarquismo defende
o livre desenvolvimento do indivíduo, o que é contrário a ideologia que o Estado e a pequena
minoria chamada burguesia estão implantando, que é a dominação da maior parte da
população. O homem cada vez mais individualista e egoísta passa a visar o seu bem estar e seu
status perante a sociedade, principalmente na questão financeira dando origem a um
processo de apropriação da natureza.
A natureza manipulada pelo homem que faz parte dela
O homem passa a não se enxergar mais como parte da natureza pelo qual
eratotalmente influenciado, e sim se vê como parte dela, mas capaz de manipula-la a seu
próprio benefício e passa a usufruir dela deforma agressiva e exploratória sem reparar os
danos que causa a ela, e sem mesmo se deixar levar pela beleza que ela nos proporciona,
mudando-a e tirando dela o caráter de ser algo Divino.
Assim como o velho Adão, modelado de argila, e como os primeiros egípcios nascidos
do limo, somos os filhos da terra. É dela que extraímos nossa subsistência; ela
sustenta-nos com seus sucos nutritivos e fornece o ar aos nossos pulmões; do ponto
de vista material, ela nos d| “a vida, o movimento e o ser”. Qualquer que seja a
liberdade relativa conquistada por nossa inteligência e nossa vontade próprias, nós
não deixamos de ser produtos do planeta: ligados à sua superfície como
imperceptíveis animálculos, somos arrastados em todos os seus movimentos e
dependemos de todas as suas leis. E não é absolutamente apenas na condição de
indivíduos isolados que pertencemos á terra: as sociedades, consideradas em seu
conjunto, tiveram necessariamente de moldar-se em sua origem no solo que as
sustentava; elas tiveram de refletir em sua organização íntima os inumeráveis
fenômenos do relevo continental, das águas fluviais e marítimas, do meio ambiente.
Todos os fatos da história explicam-se em grande parte pela disposição do teatro
geográfico sobre o qual eles produziram-se: podemos inclusive dizer que o
desenvolvimento da humanidade estava de antemão inscrito em caracteres
grandiosos sobre os planaltos, os vales e as margens de nossos continentes. Essas
verdades, por sinal, tornaram-se quase banais desde que os Humboldt, os Ritter, os
Guyot estabeleceram por seus trabalhos a solidariedade entre a terra e o homem. A
idéia-mãe que inspirava o ilustre autor de Erdkunde, quando ele redigia sozinho sua
grande enciclopédia, o mais belo monumento geográfico dos séculos, é que a terra é o
corpo da humanidade, e que o homem, por sua vez, é a alma da terra (RECLUS, 2010).
O homem está forçando seu corpo (a terra), a uma sucessão de atividades que trará
consequências irreparáveis, esse corpo está sujeito à exaustão por não ter tempo de
283
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
serecuperar e reparar os danos nele encontrados. A humanidade só esta se esquecendo de
que é esse corpo que a movimenta, fascinada pelo consumismo exorbitante, e visando o lucro
extremo ahumanidade não se deu conta da insanidade que está cometendo, ou simplesmente
faz vista grossa a realidade tão assustadora que estamos submetidos e faremos parte dela por
um bom tempo.
Vivemos sob as demandas de um sistema capitalista de produção, ou seja, grandes
indústrias visando grandes consumos para obter grandes lucros. A maior parte da matéria
prima, se não toda ela, vêm da natureza que por sua vez é devastada pelas indústrias. Essa
devastação feita de maneira desordenada acarreta diversas consequências que ocasionará
outras consequências e assim sucessivamente, até chegarmos a um ponto onde essa situação
será insustentável.
O que o homem quer hoje é adaptar a terra às suas necessidades e dela tomar posse
completa para explorar suas imensas riquezas. Ele a recobre de uma rede de estradas,
ferrovias e fios telegráficos; tenta fertilizar os desertos e prevenir as inundações dos
rios; propõe triturar as colinas para transformá-las em aluviões sobre as planícies,
perfura os Alpes e os Andes, une o Mar Vermelho ao Mediterrâneo, prepara-se para
misturar as águas do Pacífico com aquelas do Mar Das Antilhas. Compreende-se que
os povos, atores e testemunhas de todas essas grandes empresas, deixem-se levar pela
embriaguez do trabalho e que só pensem em moldar a terra à sua imagem. E se a
indústria já realiza tais maravilhas, o que ela não poderá fazer quando a ciência
fornece-lhe outros meios de ação sobre a natureza! (RECLUS, 2010).
Não tiramos da natureza o que é preciso para sobreviver, tiramos da natureza muito
mais do que realmente necessitamos, tiramos sua originalidade, moldamos sua paisagem para
facilitar o acumulo de riquezas, e descaracterizamos os climas de diversas regiões e as matas
que foram e continuam sendo devastadas. De fato, as riquezas naturais de nosso planeta são
imensas, mas não infinitas, e se continuar extraindo essas riquezas de forma insana elas não
durarão por muito tempo.
Tendo em vista o que sempre tiveram de excepcional tais concepções em relação às
coisas da natureza, é fácil compreender como a ignorância, a superstição, a miséria, o
medo ou o amor pelo lucro devem ter obscurecido os espíritos e ocultado, ao menos
em parte, a beleza da terra. Os camponeses ou exploradores burgueses do solo não
podiam absolutamente imaginar a beleza do campo sob outro ponto de vista senão
aquele da utilidade; e a literatura, intérprete natural do pensamento do povo, não
podia, por sua vez, senão traduzir, idealizando-a, essa maneira de ver. Durante
séculos, os escritores franceses abstiveram-se completamente de celebrar outra coisa
que não fosse o homem e a sociedade, ou, então, quando eles falaram da natureza, era
apenas para cantar “o frescor das folhagens, os prados floridos, as colheitas
amarelando”. Era, ainda, em geral, em conseqüência de alguma reminiscência cl|ssica,
e sem dúvida eles não teriam ousado cantar a natureza de Virgílio não a tivesse
celebrado antes deles (RECLUS, 2010).
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
284
Luta de Classes e Contemporaneidade
A fim de incentivar o consumo, matérias primas são processadas através das indústrias
em produtos rapidamente substituíveis, matas originais de dadas regiões são derrubadas para
que se ergam ali muitas plantações de cereais que serão estocados em diversos
supermercados quando na realidade se tem milhares de pessoas morrendo no mundo por
causa da fome, porcausa da má distribuição de alimentos que é gerida pelo capitalismo
desenfreado.
Portanto a natureza é profanada por tantos especuladores precisamente por causa de
sua beleza, não é surpreendente que em seus trabalhos de exploração os agricultores
e os industriais negligenciem quanto a perguntar-se se eles não contribuem para o
enfeamento da terra. É certo que o “duro labor” preocupa-se muito pouco com o
encanto do campo e com a harmonia das paisagens, desde que o solo produza
colheitas abundantes; portanto seu machado ao acaso nos bosquetes, ele abate as
árvores que o incomodam, mutila indignamente as outras e dá-lhes o aspecto de
estacas ou vassouras. Vastas regiões, outrora belas de se ver e que se amava
percorrer, foram inteiramente desonradas, e experimenta-se um sentimento de
verdadeira repugnância ao observá-las. Por sinal, ocorre freqüentimente que o
agricultor, pobre em ciência bem como em amor pela natureza, engana-se em seus
cálculos e cause sua própria ruína pelas modificações que introduz sem sabê-lo nos
climas. Do mesmo modo, pouco importa ao industrial, explorando sua mina ou sua
manufatura em pleno campo, enegrecer a atmosfera com fumaças da hulha e vicia-la
por vapores pestilenciais (RECLUS, 2010).
A poluição da natureza apresentada pelos meios de comunicação
Visando abordar os meios de comunicação como veículos depropagação de ideologias
de dominação, farei uma análise de cunho empirista sobre a questão da poluição. No qual é
muito divulgada pela mídia, aqui entendida como peça fundamental para que se tenha um
padrão único entre as classes dominadas, que facilitará a mantimentoda hegemonia do Estado
e da burguesia.
A temática poluição é muito divulgada pela mídia, e vêm promovendo muitas
discussões em programas de TV, jornais, revistas e pela internet. Essa temática é apresentada
com sua devida importância, são propostas sugestões e soluções para que se resolva ou
minimize o problema, tal qual é o que de fato interessa. As sugestões e soluções apresentadas
são basicamente as mesmas, o que muda é a forma com que elas vão ser implantadas. Quase
sempre passa aqueles anúncios como: jogue lixo no lixo, use embalagens ecologicamente
corretas, e o mais utilizado ultimamente principalmente quando se fala em sustentabilidade
que é “recicle”.
285
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Tais anúncios apresentados em canais de TV, faixas de rádio, internet entre outros
veículos de comunicação, são muito importantes, pois se trata de medidas eficazes para
diminuição da poluição em nosso planeta.Essa exposição da poluição feita pela mídia, sempre
apresenta como se todos fossem responsáveis pela poluição e atribui valor de culpa igual a
todos os cidadãos. Não querendo tirar a parte dessa responsabilidade que cabe a nós, mas não
aceitando levar culpa quando se tem indústrias que preocupadas com produções elevadas
para atender a um consumismo extremo, possuem um grande índice de poluição, e a mídia
que atende as necessidades do capital acoberta essas empresas que incentivam o consumismo
e produzem não só mercadorias, mais também poluição em grande escala. Assim levamos um
peso de culpa bem maior do que realmente merecemos, e muitas vezes por não conseguirmos
fazer uma análise mediada aceitamos aquilo que a mídia e as grandes corporações nos
impõem.
A mídia também é uma indústria, pois produz falsas ideologias e falsas verdades
através de noticias manipuladas, produz coisas profanas e defende somente os seus
interesses. Devemos ter muito cuidado antes de nos deixar levar pela seriedade que eles
dizem ter. A mídia só tem um proposito que é manter a hegemonia nas mãos de poucos, e ela
já está fazendo isso em suas programações e novelas, quando dissemina uma ideologia de
dominação sobre nós telespectadores.
Conclusão
As análises feitas neste trabalho tiveram como objetivo demonstrar a forma com que a
humanidade se apropriou da natureza, mas também a forma com que somos egoístas e
individualistas. Todos os dias somos submetidos a ideologias de alienação e muitas vezes sem
ter noção não damos conta de perceber o caos ao nosso redor.
Certamente, é preciso que o homem apodere-se da superfície da terra e saiba utilizar
suas forças; entretanto, não podemos nos impedir de lamentar a brutalidade coma qual se
realiza essa tomada de posse (RECLUS, 2010).
Isso não se dá apenas com a natureza, mas também com os próprios homens que
dominam uns aos outros sem respeito algum nem se quer consideração com os direitos que
todo ser humano deveria ter.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
286
Luta de Classes e Contemporaneidade
Essa loucura que vivemos essa luta de classes onde uma possui todos os aparatos de
opressão e alienação humana, e a outra possui o medo de viver na miséria, o medo da fome de
não ter onde morar, uma luta bastante desigual, só irá ter fim quando todos da classe que é
dominada se verem sem condições dignas de sobrevivência e não tiverem outra escolha a
nãoser a revolução.
A natureza esta sendo dilacerada pelas mãos do capitalismo, a busca continua pela
riqueza, a centralização do poder que se encontra nas mãos de poucos, faz com que essa
situação só piore, nos dias de hoje ter dinheiro, poder e status, pode não comprar tudo, mas
sem sombra de dúvida facilita em muita coisa, porém vai chegar o dia em que essa situação irá
mudar, pois como já comentei no decorrer do trabalho, nosso planeta possui muitas riquezas,
mas elas não são infinitas.
Referências
KROPOTKIN, P. O Princípio Anarquista e Outros Ensaios; organização e tradução Plínio
Augusto Coêlho. São Paulo: Estudos Libertários: Ed. Hedra, 2007.
RECLUS, E. Da Ação Humana na Geografia Física; Geografia Comparada no Espaço e no
Tempo; organização e tradução Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Expressão & Arte: Ed.
Imaginário, 2010.
RECLUS, E. Do Sentimento da Natureza nas Sociedades Modernas; organização e tradução
Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Expressão & Arte: Ed. Imaginário, 2010.
WALTER, N. Do Anarquismo. 1969.
287
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
SIMPÓSIO TEMÁTICO 6
MARXISMOS E CRISTIANISMOS DA LIBERTAÇÃO NA AMÉRICA LATINA
Coordenadores:
Helio Aparecido Teixeira
Doutorando em Teologia/EST.
Ezequiel de Souza
Doutorando em Teologia/EST.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
288
Luta de Classes e Contemporaneidade
O conceito “opção preferencial pelos pobres” nas teologias de
libertação da América Latina
Helio Aparecido Teixeira2
Resumo: Embora um conceito ontologizado pelas teologias de libertação que se proliferaram
no continente, especificamente nas décadas de 1970 e 1980, o conceito “Opç~o Preferencial
Pelos Pobres” é ainda uma vari|vel analítica e operacionalmente importante nas construções
teóricas que procuram investigar, desde sua relevância para a fé evangélica, a realidade de
extrema assimetria nas concentrações de riqueza e de reconhecimento da alteridade de
grupos segregados, no caso brasileiro. Dessa forma, o presente texto busca analisar
brevemente o conceito “Opç~o Preferencial Pelos Pobres” produzido pelas teologias de
libertação latino-americanas e considerar sua relevância como construto teórico, aporte
necessário à operacionalização conceitual de investigação da realidade, lastreado pelas
noções marxianas de investigação social.
Palavras-chave: Opção Preferencial Pelos Pobres. Teologias de Libertação. Praxiologia.
Igrejas.
Introdução
O termo libertação procede de uma antropologia específica do continente latinoamericano, que nas décadas posteriores à II Guerra Mundial foi sendo cada vez mais
reivindicado nas lutas por emancipação nos vários contextos.3 A teologia como uma
“inteligência da fé” também passou a responder {s questões vivenciais com uma nova
linguagem, a da libertação. Essa nova linguagem surgiu ecumênica e interdisciplinarmente.
Houve a contribuição de grupos católicos, protestantes, afro-brasileiros, indígenas, etc. É bem
verdade que, com o passar do tempo, a percepção do que fosse libertação, num primeiro
momento compreendida fundamentalmente como libertação econômica, passou a significar
libertação de gênero, de cultura, de religião, de sexo, de etnia, entre muitas outras.
Doutorando em Teologia na Faculdades EST, São Leopoldo, Rio Grande do Sul. É financiado pela
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Contato: [email protected]
3
FLORES, Alberto Vivar. Antropologia da libertação latino-americana. São Paulo: Paulinas, 1991.
2
289
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Essa nova linguagem procurava fundamentar a experiência dos grupos sociais, à
margem, de realizarem a leitura da Bíblia desde a situação de pobreza e exclusão tão bem
evidenciada nas Guerras Messiânicas que tanto abalaram o país nos séculos XIX e XX. Essa
maneira de ler a Bíblia e de atuar na mudança da situação vem sendo chamada de
Cristianismos de Libertação.4 Dessa forma, não há um único jeito de articular os discursos e as
práticas, cumpre notar as multifacetadas formas de interpretar a vida de fé num contexto
marcado pela assimetria social. Em todos estes vieses há um mesmo e fundamental problema
a ser compreendido: a pobreza. E é justamente a respeito dessa problemática que as muitas
elaborações buscam contribuir na sua compreensão.
É inviável aqui uma delimitação histórica e conceitual que seja abrangente o suficiente,
a intenção é apontar para aquilo que é ecumenicamente razoável, isto é, as percepções
consensuais, fundamentalmente a respeito do conceito pobre. A presença de nuanças é
evidente, porém, há um nível de consenso entre as construções teóricas consideradas
razoáveis, as quais possibilitam que para este conceito possa ser usada a metalinguagem:
Teologias de Libertação.
1 O conceito “pobreza” nas Teologias de Libertação
É difícil apontar para o tema do pobre na teologia latino-americana sem falar primeiro
na questão anterior, a pobreza do continente. Bem verdade que o Brasil tem sido elevado a
categorias mais altas no ranking dos países mais ricos e desenvolvidos do mundo, porém, é
sabido que essa nunca foi a questão fundamental dos debates e, sim, a distribuição da riqueza.
Por isso, a definição clássica de Hugo Assmann em inícios dos anos de 1970 é tão feliz, a do
lugar de dependência e dominação como o ponto de partida para uma teologia consequente.5
Como analisado anteriormente, poderíamos encontrar vários pontos de articulação
teológica que tinham a situação de pobreza como ponto de partida para a transformação dos
artigos de fé em conceitos práticos, mesmo antes da 2 Grande Guerra Mundial, quais sejam,
católicos, protestantes históricos, pentecostais e grupos que se articulavam em torno de
religiosidades populares. Essa situação era o lugar de onde se professava a fé em um Deus que
LÖWY, Michael. A Guerra dos Deuses: religião e política na América Latina. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 9.
ASSMANN, Hugo. Teologia desde la práxis de la liberacón: ensayo teológico desde la América
dependiente. 2. ed. Salamanca: Sigueme, 1976. p. 40.
4
5
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
290
Luta de Classes e Contemporaneidade
estava com as pessoas que aí se moviam e existiam. Tratava-se de uma releitura a partir e
desde um lugar comum ao próprio Cristo quando de sua encarnação, isto é, um lugar de
humildade.
Clodovis Boff e Jorge Pixley produziram um texto clássico a respeito da temática. 6
Nessa obra, os autores puderam levantar questões novas e avaliar as primeiras décadas de
discuss~o desde aquilo que Paulo Freire chamou de “a nossa própria palavra”. E num
levantamento teórico, os autores argumentam que a pobreza é um fenômeno não metafórico,
mas sim real de caráter econômico, pois a pobreza seria a realidade nua e crua daqueles que
est~o “privados dos bens materiais necess|rios para uma existência digna”. 7 A pobreza é
caracterizada como uma questão social, estrutural e massiva. A pobreza é conceituada por
estes autores como algo histórica e socialmente construído. Não é uma situação natural. A
pobreza é um conceito pautado numa percepção histórica dos processos de colonização das
colônias e da implantação de políticas imperialistas ao continente.
A pobreza como dado positivo é compreendida como situaç~o de pecado. “Uma
realidade que necessita de redenç~o”.8 A situação de pecado atinge o próprio Senhor, uma vez
que se peca contra o irmão. Na esteira do Sermão Apocalíptico de Mateus 25.31-46, a ação em
favor de um dos pequeninos irmãos é ação em favor do próprio Senhor Jesus, porém, a ação
de desrespeito à dignidade destes pequeninos irmãos é, também, ação de desrespeito ao
próprio Senhor Jesus.
É clamoroso o escândalo da pobreza num mundo de abundância. Enquanto se
sucedem inúmeras décadas de desenvolvimento, os pobres continuam a morrer.
Morrem de fome, de muitas privações, de opressão. Entretanto, a riqueza de alguns
depende de sua vida e trabalho [...] A pobreza não é acidental. Trata-se de um
fenômeno fundamental e incisivo de nossa sociedade voltado para a destruição da
humanidade, que é criação de Deus. A pobreza só pode ser atacada pelas raízes. A raiz
de todos os males, segundo Paulo em 1 Tm 6.10, é o amor ao dinheiro. Jesus o chama
de Mamom, um ídolo. Promete riqueza, mas cria pobreza; sugere humanidade, e
produz separação; fala de liberdade, mas escraviza as pessoas. É multinacional, difusa,
e exige fidelidade dos corações humanos. Jesus disse, simplesmente, “N~o podeis
servir a Deus e ao dinheiro”.9
6
7
8
9
BOFF, Clodovis; PIXLEY, Jorge. Opção pelos Pobres. Petrópolis: Vozes, 1986.
BOFF; PIXLEY, 1986, p. 19.
GALILEA, Segundo. Teologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 1979. p. 31.
SANTA ANA, Julio de. A Igreja dos Pobres. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985. p. 24.
291
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
Reconhecem-se como um dos aspectos importantíssimos desta realidade de pecado as
questões políticas, as quais envolvem a vida cotidiana dos muitos grupos da sociedade. Daí a
ideia de conflito presente nas elaborações teológicas. No entanto, conforme Galilea, é
importante não confundir discursos pautados por uma concepção de eclesiologia de corte
estrutural e funcional, como é a dos grupos católicos na esteira do Vaticano II, e a de grupos
mais vinculados a uma “antropologia da libertaç~o” e que se intercalam mais facilmente com
vinculações político-ideológicas.10
Às diferenciações cotidianas lastreadas por concepções de mundo – área política –
desenvolve-se uma “guerra dos deuses”, na express~o de Michael Löwy, interpretando o
argumento de Max Weber a respeito do politeísmo de valores presente na sociedade
moderna,11 na qual estão vinculadas determinadas colisões de valores, situações de
compreensões diferenciadas a respeito dos princípios religiosos. Nesse sentido, para todos
aqueles e aquelas que professam a fé cristã, permitir a existência da pobreza se constitui como
a quebra da regra de ouro da fé cristã, qual seja, ama a Deus acima de todas as coisas e ao
próximo como a ti mesmo.
2 O conceito de “pobre” nas Teologias de Libertação
Depois de conhecer, mesmo que en passant, o que significa a pobreza para o contexto
de formulações das Teologias de libertação, torna-se mais tranquila a laboração do conceito
pobre nas Teologias de Libertação. Trata-se de uma evolução nas perspectivas. Inicialmente
as construções se pautavam mais pela noção socioeconômica, ocorrendo mais tarde um
declive para perspectivas mais culturalistas e identitárias. O pobre era a pessoa destituída das
condições econômicas básicas de existência. Dentro deste espectro se alocava – via de regra –
o gênero masculino, restringindo-se ao projeto de chefe de família nos moldes da burguesia o
elemento positivo, isto é, o pobre real. Isso acarretava problemas teóricos seríssimos, já que
muitos pobres ficavam fora deste padrão como as mulheres, em especial as mulheres negras,
os próprios negros, os índios, os homossexuais, bem como outras minorias.
GALILEA, 1979, p. 36. Esse tipo de teologia, que possui a eclesiologia por fundamento de articulação, tem
na formulação estrutural sua vinculação orgânica. Há de se dizer que ela se estrutura pela superioridade
numérica no continente, no caso aqui a Igreja Católica Romana, pela estruturação hierárquica e pelas demandas
funcionais e programáticas que galvanizam dinamicamente as elaborações conciliares e as organizações de base.
Diferentemente desta, outras teologias se pautam em formatos, por vezes, menos hierárquicos e mais
contextuais, senão congregacionais em termos de eclesiologia.
11
LÖWY, 2000, p. 9.
10
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
292
Luta de Classes e Contemporaneidade
Para muitos cristãos e cristãs da América Latina, a situação da pessoa pobre tem sido
entendida por meio da fé. E por meio dessa fé, vem sendo buscado o porquê de uma
determinada situação estar sendo vivida. Por que o pobre existe dessa forma e o rico daquela?
Esse é um ponto fundamental para a compreensão do conceito pobre nas Teologias de
Libertação. O pobre é a vítima da idolatria e da opressão dos ricos os quais, diferentemente do
Cristo, que se fez pobre por amor de muitos, estão embrenhados no egoísmo e na vontade de
poder que se efetiva ante o desejo de acúmulo de pessoas que se entregam a Mamóm. Por isso,
poder-se-ia dizer que o pobre é, na América Latina, a vítima do contra-testemunho de uma
igreja que não é pobre. Não pobre por simples opção ou como meta de vida, mas por
solidariedade, uma vez que o próprio Cristo, sendo rico, se fez pobre para poder fazer ricos
estes mesmos pobres; ricos de amor e de solidariedade (2Co 8.9).
O pobre nessa abordagem teológica é um “lugar teológico”. O pobre n~o é um dado
positivo sobre o qual se lancem simplesmente políticas públicas ou de ordem sistêmica no
intuito de contribuir para mudanças estruturais em seu mundo, é muito mais um “mistério do
Reino” no qual se ocultam sabedorias e conhecimentos negados aos s|bios e poderosos deste
mundo (Lc 10.21), e revelados a todas as pessoas que se fazem pobres de espírito; as quais
desejam acabar com a pobreza positiva que tanto desumaniza os pequeninos irmãos de Jesus.
O pobre como lugar teológico é um lugar hermenêutico compreendido desde o reverso da
história.12 Neste lugar cabem perspectivas mais abrangentes e mais específicas; o pobre como
lugar teológico fecha-se hermeneuticamente com o pobre positivo, isto é, o pobre-pessoa-real
num contexto determinado. É assim que a partir do lugar teológico – o pobre não como uma
simples nomenclatura analítico-sociológica, antes, como um ente de histórias e de vivências de
exclusão – surge um lugar hermenêutico do qual se lê a Escritura e se interpreta a História da
Igreja Cristã e, fundamentalmente, se experimenta o Espírito Santo de Deus.
3 O conceito “Opção Preferencial pelos Pobres” nas Teologias de Libertação
Ao se falar do conceito “Opç~o Preferencial pelos Pobres” est| se falando num conceito
fundamental da Teologia Latino-Americana, especificamente nas conhecidas Teologias de
Libertação. Trata-se de um conceito analítico-hermenêutico que busca operacionalizar por
meio da interdisciplinaridade a realidade da fé ante um mundo excludente que vincula a
12
CODINA, Vitor. Os Pobres, a Igreja e a Teologia. São Paulo: Paulinas, 2007. p. 72.
293
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
situação específica da pessoa pobre ao modo em que ela compreende a própria fé. É a busca
pela inversão na lógica da Civilização do Capital, o que Ignacio Ellacuría chamou de Civilização
da Pobreza, uma pobreza que se caracteriza pela ausência de desejo de dominação. 13 É um
conceito que vincula percepções, por vezes, reificadas tais como a história, a Igreja, a
sociedade, a fé em Deus, a cultura, etc. E, de fato, existem problemas de interpretação quando
se incorrem em homogeneizações, quando se entendem os processos por meio de
metanarrativas, abordagens continuístas nas quais as especificidades são incluídas em noções
oniabrangentes. José de Souza Martins argumenta que “quando a Igreja diz que fez opç~o
preferencial pelos pobres, é sociologicamente necessário qualificar esses pobres. E, ao fazê-lo,
descobre-se que o lugar estrutural dos diferentes pobres é diverso em cada caso”.14 No
entanto, é um conceito que toma a realidade dos pobres desde sua positividade. Muito embora
seja preciso construir teoricamente cada situação específica que caracterize uma dada
realidade portadora de assimetrias sociais, sob o risco de idealização do pobre por meio de
metanarrativas que os esvaziem de sua estrutura antropológica, otimizando demasiadamente
as potencialidades consideradas “boas”. De qualquer maneira, a seguinte definiç~o de
Gutierrez exemplifica essa maneira de tomar a situação do pobre a partir de sua positividade.
O que se entende por pobre, pergunta Gutierrez, o que ele responde:
Creo que no existe una buena definición; pero nos acercamos a ella si décimos que los
pobres son los no-persona, los “in-significantes”, los que no cuentan para la sociedad
y, con demasiada frecuencia, tampoco para las Iglesias cristianas. Pobre es, por
ejemplo, el que tiene que esperar una semana a la puerta de un hospital para ver al
médico; pobre es el que no tiene peso social ni económico, a quien se despoja
mediante leyes injustas; el que no tiene posibilidad para hablar y actuar para cambiar
una situación; el que forma parte de una raza despreciada y culturalmente marginada.
A lo sumo, los pobres están presentes en las estadísticas, pero no aparecen en la
sociedad con nombre propio. No conocemos el nombre de los pobres. Son y
permanecen anónimos. Los pobres son socialmente insignificantes, pero no delante de
Dios.15
O conceito Opção Preferencial pelos Pobres surgiu da ideia de “irrupç~o dos pobres” no
cenário continental a partir das lutas de emancipação e de participação nas decisões
SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação: pequenos ensaios utópico-proféticos. São Paulo:
Paulinas, 2008.
14
MARTINS, José de Souza. A Política no Brasil: lumpen e místico. São Paulo: Contexto, 2011. p. 139.
15
GUTIERREZ, Gustavo. Renovar “la opción por los pobres”. Revistas Latinoamericana de Teologia, n. 36, p.
269-280, 1995.
13
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
294
Luta de Classes e Contemporaneidade
coletivas.16 Não se trata de uma novidade histórica, mas de uma nova abordagem que os
movimentos sociais trouxeram para a cena política e cultural que vinha sendo gestada desde o
contexto do fim da II Guerra, e eclodida com força a partir dos anos de 1960. Era o
protagonismo dos trabalhadores transformado em reivindicações identitárias pelos
movimentos sociais.
Falar da Opção Preferencial pelos Pobres é reconhecer um conceito que se atrela a uma
teoria que busca compreender as causas da pobreza, e não simplesmente dizer o porquê uma
pessoa é pobre.17 Obviamente não se trata de uma percepção revolucionária, no sentido da
palavra, em todos os casos, mas de “levar em consideraç~o a realidade” e trabalhar no sentido
de efetivar “a maior realizaç~o possível do Reino de Deus na história”.18 Desta forma, o
conceito busca aclarar as causas da pobreza desde um ponto de vista estrutural, e, mais
recentemente, da exclusão identitária já que a pobreza em si não diz tudo a respeito da
realidade dos grupos socialmente marginalizados.19
Ao estabelecer um modo analítico de pensar a fé desde a realidade latino-americana, as
elaborações teológicas passaram a perceber certas rupturas necessárias na construção de
aportes conceituais. Dentre estas noções estão a maneira de entender a história e a sociedade.
Buscou-se eliminar os dualismos que estavam pautados em noções não históricas. Quebrou-se
a desvinculação entre a vida política, econômica, religiosa e humanística que estava sob as
indicações da separaç~o entre os “dois planos”, doutrina t~o cara {s igrejas crist~s. 20 Traçouse uma nova maneira de conceber o lugar epistemológico de construção teórica. A teologia
realizada no contexto latino-americano marcou o labor conceitual desde uma fundamentação
praxiológica, melhor dizendo: desde a opção, ou decisão, da pessoa cristã por formas mais
progressistas de vivência comunitária; como se acostumou a dizer: é reflexão crítica a respeito
da prática.21
GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da libertação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976.
RODOR, Amin Américo. The Concept of The Poor in The Context of The Ecclesiology of Liberation
Theology. Ann Arbor: University Microfilms International, 1987. p. 277.
18
SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação: pequenos ensaios utópico-proféticos. São Paulo:
Paulinas, 2008. p. 18.
19
RODOR, 1987, p. 276.
20
BONINO, José Míguez. A Fé em Busca de Eficácia. São Leopoldo: Sinodal, 1987. p. 62-63.
21
GUTIERREZ, 1976, p. 26-41.
16
17
295
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
4 Relevância da “Opção Preferencial pelos Pobres”
O conceito Opção Preferencial pelos Pobres possui um viés materialista fundamental.
Não se trata de um aporte epistêmico retirado da tradição marxista. O ponto fundamental vem
desde muito tempo na tradição cristã. O que a tradição marxista trouxe de novo foi sua
vinculação teórica aos pontos de causa da pobreza. O que ocorreu foi uma inflexão
interdisciplinar t~o bem expressa pela frase irônica de Dom Helder C}mara: “Se eu dou
comida a um pobre, me chamam de santo, mas se eu pergunto por que ele é pobre, me
chamam de comunista”.22 Melhor dizendo, o que mudou fundamentalmente foi a ação pastoral
e a compreensão teológica desde a pergunta pelos porquês da pobreza reinante no continente
latino. As tentativas de explicação da miséria e da exclusão levadas a cabo pelos socialistas de
orientação marxista ajudaram na aproximação teórica a respeito da situação dos povos latinoamericanos. E assim como houve pluralismo nas abordagens teológicas, também houve
pluralismo nas formas de diálogo com as maneiras de interpretar os marxismos nos vários
contextos da América Latina.23
No decorrer das décadas subsequentes à II Guerra Mundial, muitas foram as ações de
diálogo entre grupos de cristãos e de pessoas ligadas a grupos que militavam formas de
libertação em toda a América Latina.24 Muitos chegaram às armas em nome das revoluções.25
Grupos de católicos e protestantes estiveram imbuídos nas discussões a respeito da realidade
latino-americana. Eventos, publicações, manifestos, diálogos interdisciplinares e ecumênicos
marcaram os anos de 1960 a 1980. Um movimento amplo que respondeu aos próprios
movimentos sociais do período. As igrejas não ficaram isoladas, ora por envolvimento ora por
oposição a estes acontecimentos. Muitos grupos religiosos estavam mesmo participando
diretamente de determinados movimentos sociais, como foi o caso da defesa dos Direitos
Citado por VIOLA, Eugênio Mattos. Brasil: o deserto fértil de Dom Helder. In: Adital: notícias da América
Latina
e
do
Caribe.
Disponível
em:
<http://www.adital.com.br/site/noticia_imp.asp?lang=PT&img=S&cod=36821>. Acesso em: 2 maio 2012.
23
MUELLER, Enio R. Teologia da libertação e marxismo: uma relação em busca de explicação. São
Leopoldo: Sinodal, 1996.
24
BOSI, Alfredo. Sociologia e Militância: entrevista com José de Souza Martins. Estudos Avançados, São
Paulo, v.11, n. 31, set.,/dez., 1997.
25
Paradigmático desta opção é a biografia de Jorge Camilo Torres Restrepo, sacerdote católico colombiano
que tomou as armas para fazer a revolução. STRIEDER, Inácio. Camilo Torres: O Cristianismo rebelde na América
Latina.
In:
Adital:
notícias
da
América
Latina
e
do
Caribe.
Disponível
em:
<http://www.adital.com.br/site/noticia2.asp?lang=PT&cod=23212>. Acesso em: 2 maio 2012.
22
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
296
Luta de Classes e Contemporaneidade
Humanos, durante o período do Governo Militar, e das Ligas Camponesas na região Norte e
Nordeste do Brasil, em especial na Zona da Mata pernambucana, na década de 1950.
A possibilidade de se fazer uso, no Brasil, do conceito Opção Preferencial pelos Pobres
ainda hoje tem sido questionada. Recentemente, instaurou-se grande querela no seio católico,
não somente, com a polêmica levantada por Clodovis Boff a respeito do fundamento das
Teologias de Libertação devido ao fato, segundo o autor, dessas teologias colocarem o pobre
no lugar de Deus como lugar de revelação, o chamado pauperocentrismo.26 Também há outras
críticas que buscam argumentar que a situação de crescimento econômico do país, na última
década, impossibilitaria a continuidade do uso do conceito,27 ou de que não seria mais viável
seu uso porque epistemologicamente o pobre seria uma construção eminentemente teórica,
ficando assim restrito seu uso aos nichos militantes e políticos.28
Essa discussão está inserida nas raízes eclesiológicas nas quais provém cada grupo os
quais produzem teologias de libertação. O lugar do pobre como um lugar teológico é
consensualmente ecumênico. No entanto, as implicações cristológicas já assumem contornos
mais específicos, o que foge à nossa discussão. Cabe notar que para as Teologias de Libertação
o pobre não fica resumido a uma posição histórica e socialmente limitado ao tempo e ao
contexto, é antes um lugar metodológico; é uma maneira de perceber a realidade, seja ela de
assimetrias socioeconômicas, seja ela de assimetrias político-culturais. O pobre como
elemento imprescindível na construção do conceito Opção Preferencial Pelos Pobres toca no
tema da privação e da solidariedade como eixos fundamentais da vida comunitária sob a fé no
Cristo feito gente, e gente necessitada de cuidados.
Conclusão
Percebe-se que o conceito pobre na Teologia da Libertação sofreu dilatações e
conheceu ampliações analíticas. O pobre como ente sofredor de privações socioeconômicas
passou ao pobre como ente sofredor de múltiplas exclusões. O pobre é o produto consequente
de uma situação estrutural que fomenta a exclusão engendrada por planos e ações ao nível da
MOREIRA, Ubiratan Nunes. Deus e os pobres: sobre a relevância do debate acerca do fundamento na
teologia da Libertação. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v. 9, n. 17, p. 77-86, jan./jun., 2010.
27
Cf. SINNER, Rudolf Eduard von. Confiança e convivência: reflexões éticas e ecumênicas. São Leopoldo:
Sinodal, 2007.
28
DUSSEL, Enrique D. Teologia da libertação: um panorama de seu desenvolvimento. Petrópolis: Vozes,
1999.
26
297
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
política econômica tanto nacional quanto internacional, cuja denominação sistemática
vincula-se aos processos de ampliação daquilo que se reconhece como pobreza. E mais: o
pobre também é ente de segregações socioculturais que o impedem de exercer plenamente
sua dignidade humana, o que compromete sua cidadania como direito garantido pelas lutas
emancipatórias.
O pobre é muito mais uma categoria analítica do que uma referência positiva de uma
dada realidade. A cada vinculação teórica, ou mesmo empírica, necessita-se de uma referente
construção conceitual a qual possibilite a operacionalização de análises que computem
caminhos e ações no intuito de contribuir para mudanças na realidade. Essas vinculações
partem de uma noção epistêmica engendrada num lugar teológico, a saber, a situação de
pobreza na qual os muitos grupos excluídos vivenciam sua fé em Deus. Cumpre notar que tal
noção epistêmica é que permite a construção de um saber comprometido com a libertação
desses grupos, n~o se trata de uma percepç~o racional e “objetiva” da realidade. A
epistemologia do lugar é fundamental na construção teórica de uma abordagem conceitual.
Não se trata, evidentemente, de uma construção teórica pautada em objetividades analíticas. É
uma epistemologia da vinculação existencial.
Referências
FLORES, Alberto Vivar. Antropologia da libertação latino-americana. São Paulo: Paulinas,
1991.
LÖWY, Michael. A Guerra dos Deuses: religião e política na América Latina. Petrópolis: Vozes,
2000.
ASSMANN, Hugo. Teologia desde la práxis de la liberacón: ensayo teológico desde la América
dependiente. 2. ed. Salamanca: Sigueme, 1976.
BOFF, Clodovis; PIXLEY, Jorge. Opção pelos Pobres. Petrópolis: Vozes, 1986.
GALILEA, Segundo. Teologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 1979.
SANTA ANA, Julio de. A Igreja dos Pobres. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodista, 1985.
CODINA, Vitor. Os Pobres, a Igreja e a Teologia. São Paulo: Paulinas, 2007.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
298
Luta de Classes e Contemporaneidade
SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação: pequenos ensaios utópico-proféticos. São
Paulo: Paulinas, 2008.
MARTINS, José de Souza. A Política no Brasil: lumpen e místico. São Paulo: Contexto, 2011.
GUTIERREZ, Gustavo. Renovar “la opción por los pobres”. Revistas Latinoamericana de
Teologia, n. 36, p. 269-280, 1995.
GUTIERREZ, Gustavo. Teologia da libertação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976.
RODOR, Amin Américo. The Concept of The Poor in The Context of The Ecclesiology of
Liberation Theology. Ann Arbor: University Microfilms International, 1987.
SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação: pequenos ensaios utópico-proféticos. São
Paulo: Paulinas, 2008.
BONINO, José Míguez. A Fé em Busca de Eficácia. São Leopoldo: Sinodal, 1987.
VIOLA, Eugênio Mattos. Brasil: o deserto fértil de Dom Helder. In: Adital: notícias da América
Latina
e
do
Caribe.
Disponível
em:
<http://www.adital.com.br/site/noticia_imp.asp?lang=PT&img=S&cod=36821>. Acesso em:
2 maio 2012.
MUELLER, Enio R. Teologia da libertação e marxismo: uma relação em busca de explicação.
São Leopoldo: Sinodal, 1996.
BOSI, Alfredo. Sociologia e Militância: entrevista com José de Souza Martins. Estudos
Avançados, São Paulo, v.11, n. 31, set.,/dez., 1997.
STRIEDER, Inácio. Camilo Torres: O Cristianismo rebelde na América Latina. In: Adital:
notícias
da
América
Latina
e
do
Caribe.
Disponível
em:
<http://www.adital.com.br/site/noticia2.asp?lang=PT&cod=23212>. Acesso em: 2 maio
2012.
MOREIRA, Ubiratan Nunes. Deus e os pobres: sobre a relevância do debate acerca do
fundamento na teologia da Libertação. Horizonte Teológico, Belo Horizonte, v. 9, n. 17, p. 7786, jan./jun., 2010.
SINNER, Rudolf Eduard von. Confiança e convivência: reflexões éticas e ecumênicas. São
Leopoldo: Sinodal, 2007.
DUSSEL, Enrique D. Teologia da libertação: um panorama de seu desenvolvimento. Petrópolis:
Vozes, 1999.
299
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
A juventude da Teologia da Libertação
Flávio Munhoz Sofiati
Resumo: O objeto de análise deste artigo é o processo de formação da PJB, isto é, seu método
pedagógico e suas opções políticas. A análise se desenvolve a partir de uma contextualização
histórica que busca identificar as mudanças ocorridas no método da PJB nas décadas de 1980
e 1990. Conclui-se que, durante os anos 1980, a PJB enfatizava a dimensão política em suas
atividades de formação e participava dos diversos movimentos sociais que se organizavam em
torno da proposta de redemocratização do Brasil. No entanto, nos anos 1990 ocorre uma
reformulação do método, o qual passa a direcionar a formação para as dimensões pessoal e
teológica, com uma prática voltada para o interior da Igreja Católica. Contribuíram com essas
mudanças fatores internos, como o retorno do movimento pentecostal no cenário religioso
católico que dificultou a articulação da PJB com os grupos de jovens paroquiais, e fatores
externos, como o advento da cultura pós-moderna na sociedade brasileira que trouxe consigo
o predomínio de práticas individualistas, isto é, destituídas de base coletiva/comunitária.
Palavras-chave: Religião, Juventude, Catolicismo, Teologia da Libertação, Pastorais da
Juventude.
Introdução
O artigo apresenta uma analise sócio-histórica do método de evangelização utilizado
pelas Pastorais da Juventude do Brasil – PJB – junto aos grupos da Igreja Católica – IC. A
proposta visa compreender o processo de formação desses grupos juvenis no contexto da
Teologia da Libertação.
O termo “processo de formaç~o” é entendido aqui como o conjunto dos métodos
pedagógicos e das opções políticas assumidas pela PJB em seu desenvolvimento histórico.
Esse processo é composto por vários elementos que norteiam a formação do jovem católico
nas pastorais. Dentre eles, destaca-se a opção pelo trabalho em pequenos grupos de base e a
utilização do método ver-julgar-agir-rever-celebrar, concebido como um modo de inserção e
olhar sobre a realidade social e religiosa do país.
A PJB, que está inserida na estrutura da IC por intermédio do Setor Juventude e do
Conselho Nacional do Laicato no Brasil da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB –
defende a tese de que os jovens devem ser organizados pelos próprios jovens, apresentandoos como protagonistas de sua ação evangelizadora. É possível identificar nos textos oficiais da
IC que o objetivo geral da PJB é de promover um encontro pessoal e comunitário com Cristo,
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
300
Luta de Classes e Contemporaneidade
para que o jovem se comprometa com a libertação do homem e da sociedade, levando uma
vida de comunhão e participação (CELAM, 1987, p. 115). Nessa perspectiva, a evangelização
da juventude é feita da seguinte maneira:
Como a realidade da juventude é diversificada, em todos os seus aspectos a PJB deve
organizar, desde a nucleação, um processo de formação integral na fé, com passos
pedagógicos apropriados, partindo da realidade e da experiência concreta de cada
pessoa e grupo, despertando-a para o seguimento de Jesus Cristo e o compromisso
com a causa da libertação dos oprimidos e marginalizados (CNBB, 1998, p. 145).
Pelo fato de assumir as diretrizes de ação evangelizadora da CNBB1, a PJB é
compreendida como um segmento da juventude católica. Nesse sentido, uma de suas
principais metas é organizar os jovens para assumirem o ponto de vista da IC no Brasil. Por
esse motivo, em documentos da PJB, identifica-se sua presença nos bairros de periferia por
meio da Pastoral da Juventude do Meio Popular – PJMP –, no meio rural por meio da Pastoral
da Juventude Rural – PJR –, nas escolas por meio da Pastoral da Juventude Estudantil – PJE –
no meio urbano e nas paróquias por meio da Pastoral da Juventude – PJ2. Todas estas
pastorais específicas são parte da PJB e suas principais características são o protagonismo
juvenil, a proposta de evangelização que parte da realidade do jovem, a apresentação da
figura de Jesus Cristo como amigo e companheiro, a promoção da vivência comunitária da fé, a
promoção do senso crítico e a proposta de fomentar uma pastoral de conjunto (CELAM, 1987,
p. 116).
A IC possui em seu interior vários agrupamentos, sendo que a PJB está ligada à
Teologia da Libertação – TL – que, se originou na América Latina, a partir da convergência das
mudanças internas e externas sofridas pela instituição católica no final dos anos 1950. A TL
tem como perspectiva interpretar a realidade latino-americana à luz do evangelho, utilizando
termos e conceitos materialistas, além de fazer a “opç~o preferencial pelos pobres”, isto é,
uma escolha política pautada pela noção de classe social. Assim, a PJB atua nos vários
segmentos da sociedade - escola, zona rural, meios popular e urbano – com a consciência de
A CNBB realiza anualmente, na cidade de Itaicí-SP, sua assembléia geral que planeja e avalia as ações da Igreja
Católica no Brasil a partir de diretrizes que são renovadas em períodos de três anos.
2 Até 1993 a Pastoral Universitária – PU – também fazia parte da PJB, mas pela concepção de que não deveria ser
apenas uma pastoral de jovens, mas uma pastoral para todos que estão na universidade – professores,
funcionários e alunos -, deixou de fazer parte da estrutura da PJB a partir da 10ª Assembléia Nacional,
transferindo-se do Setor Juventude para o Setor de Educação da CNBB.
1
301
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
que nesses diferentes meios estão presentes as diferenças de classes e, em consequência, as
diferentes necessidades da juventude. No entanto, em seus documentos está presente uma
proposta de mudança da realidade brasileira sem apresentar de forma clara um projeto de
transformação, afirmando que não é papel da IC desenvolver plataforma política, mas sim, por
intermédio dos cristãos na sociedade, participar de sua elaboração.
Pode-se afirmar que a PJB é a reatualização de uma corrente histórica da IC que teve
seu início nos anos 1950 com a Ação Católica Especializada, que contribuiu para o surgimento
da TL e, nos dias de hoje, está presente nas pastorais sociais. Nessa perspectiva, a partir dos
documentos e textos da IC, analisam-se os elementos que compõem o método de formação da
PJB, principalmente, com base em dois documentos que marcam sua trajetória. O primeiro é o
documento n° 44 da Coleção Estudos CNBB editado em 1984, logo após o 4° Encontro que
marcou o início da articulação nacional da PJB. Este documento resgata todo o processo de
gênese da PJB e norteia sua ação durante toda a década de 1980. O segundo documento é uma
reedição do primeiro e também pertence à Coleção Estudos CNBB: o documento n° 76 que foi
publicado em 1998 e representa o avanço acumulado pela PJB e as mudanças de concepções
em seu método de trabalho com a juventude católica. Há um terceiro material, o documento
nº 93, que estabelece a atual estrutura de organização da juventude católica. Todavia,
diferente dos anteriores, trata-se de um texto que abrange todas as outras maneiras de
organização juvenil presente no interior do catolicismo e, portanto, não é neste artigo objeto
de análise.
A interpretação do processo de formação da PJB, seus métodos pedagógicos e suas
opções políticas, possibilitam o entendimento do que representa o modelo da IC,
fundamentado pela TL, no contexto religioso e social nacional. Em virtude de sua influência
nos movimentos sociais - os jovens católicos que passam pelo processo de formação na
pastoral, na maioria das vezes, participam de algum movimento social como associações,
sindicatos, ongs, partidos e levam a formação adquirida para esses movimentos –, torna-se
importante a análise das linhas de pensamento que sustentam a IC e sua política pastoral
referente à população jovem e católica.
Características da formação: objetivos e opções
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
302
Luta de Classes e Contemporaneidade
O principal referencial da PJB na década de 1980 foi o documento da CNBB de n° 44
que sistematizou e definiu linhas de ação da IC no ambiente juvenil. Esse documento afirma
que o objetivo principal do trabalho era ajudar o jovem a se transformar em “Homem Novo
por meio de uma autêntica vivência do Evangelho, impulsionando o jovem a evangelizar seu
meio específico de acordo com os valores crist~os”BB, 1983, p.22). Essa definiç~o tem como
significado que a hierarquia teve na PJB o instrumento principal de trabalho com a juventude,
pois, em todo esse período, o único documento elaborado pela IC sobre juventude foi o
documento n°44, desenvolvido especificamente para discutir as pastorais da juventude.
Define-se nesse documento que o papel da PJB era de: fomentar o senso crítico e capacidade
de analisar a sociedade; formar jovens para transformar as estruturas; ajudar o jovem a ligar
sua fé com o compromisso social e político; e levar o jovem a conhecer criticamente o
marxismo, o capitalismo liberal e a Doutrina da Segurança Nacional para assumir o
Humanismo Cristão como perspectiva de superação das estruturas sociais injustas presentes
em toda a América Latina.
Nesse período, conhecido como a fase de elaboração teórica, ocorre a consolidação da
proposta de uma pastoral organizada nacionalmente e articulada entre suas especificidades.
Fez-se a opção por uma pedagogia da ação que continha os seguintes critérios: a) Pedagogia
experiencial, que parte da experiência concreta do jovem com o objetivo de conhecê-la,
aprofundá-la e transformá-la; b) Pedagogia transformadora e libertadora, visando,
mutuamente, uma profunda transformação pessoal e social; c) Pedagogia comunitária, que
busca uma experiência fraterna e evangelizadora; d) Pedagogia do testemunho, que tenha
coerência entre o que se fala e o que se pratica; e) Pedagogia participativa, na qual o
evangelizado participa ativamente de seu processo de evangelização; f) Pedagogia
personalizante, que assume o jovem em sua condição pessoal e social; g) Pedagogia pastoral
integral, isto é, que integra processos cognitivos, afetivos e ativos (CELAM, 1987, 188-190).
Como grande parte dos movimentos sociais e setores envolvidos em trabalhos com as
classes populares, a pastoral também foi influenciada pelo método de formação desenvolvido
pelo pedagogo Paulo Freire. Inclusive um dos centros de apoio da PJB, o Centro de Capacitação
da Juventude de São Paulo, editou um livro do próprio autor sobre trabalho com as classes
populares. Com Paulo Freire as pastorais entenderam que n~o bastava “querer mudar” a
sociedade, é preciso “saber mudar”, sendo necess|rio para isso desenvolver um método, um
303
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
caminho claro para alcançar esse objetivo. Dessa forma, o clero define a PJB como a ação
organizada dos jovens cristãos que visa à transformação da sociedade, sendo uma forma de
conhecer e seguir Jesus Cristo. “A PJ é a aç~o organizada e celebrada do jovem situado, na
ótica do pobre, visando um mundo de fraternidade” (BORAN, J. DICK, H., 1983, p. 17). Em um
subsídio elaborado por A. Altoé são definidos trinta princípios que norteiam o método
pedagógico e as opções políticas da pastoral:
1)
Amar o jovem e fazer com que ele se sinta amado.
2)
O jovem deve ser sujeito da ação pastoral.
3)
Dar a razão de ser das coisas e ajudar o jovem a compreendê-la.
4)
Apresentar um projeto de Homem novo, Igreja e sociedade que sejam sinal da
presença do Reino de Deus.
5)
Valorizar as pequenas coisas e os pequenos passos caminhados.
6)
Gostar daquilo que os jovens gostam. Assim os jovens gostarão daquilo que nos
agrada. Cativar o jovem.
7)
Estar sempre presente junto aos jovens. Fazer-se presença amiga. Ter
familiaridade com os jovens, sobretudo nos momentos livres.
8)
Colocar-se em atitude de escuta, de compreensão, de diálogo. Criar um clima de
confiança cordial.
9)
Procurar fazer-se amar, se quer fazer-se respeitar.
10) Aprender com os jovens, numa relação educador-educando, evangelizadorevangelizando.
11) Acreditar na capacidade dos jovens dando oportunidades para eles se
organizarem e assumirem compromissos no próprio meio. Confiar nos jovens.
12) Ter coerência entre o que se anuncia e o que se vive.
13) Fazer as coisas por convicção, assumindo com responsabilidade as exigências
para o crescimento pessoal e para a convivência no grupo.
14) Conquistar o coração do jovem através do diálogo, pois só depois de conquistar
o coração é que se pode propor, com eficácia, os valores da educação.
15) Servir ao jovem: colocar-se a disposição. Trabalhar COM e não PARA o jovem.
Estimular a criatividade.
16) Fazer as correções e observações em particular, de modo fraterno e discreto.
17) Cultivar o otimismo e a alegria.
18) Ser solidário para com os jovens.
19) Compreender o jovem situado concretamente em seu meio.
20) Partir sempre da realidade concreta em que o jovem se encontra.
21) Atender ao jovem em seu meio específico.
22) Fazer ver a realidade de conjunto e sua complexidade.
23) Proporcionar uma formação integral aos jovens.
24) Conhecer a história da pessoa, da comunidade, da Igreja, da sociedade. Criar e
manter a consciência histórica e crítica.
25) Avaliar após cada atividade e ter paciência histórica.
26) Saber aproveitar os conflitos para caminhar; para isso analisá-los
metodologicamente.
27) Trabalhar em pequenos grupos e caminhar integrados às CEB´s.
28) Conquistar e ocupar espaços, mesmo que pequenos.
29) Conhecer a si mesmo e o contexto social.
30) Fazer uso do método ver-julgar-agir-rever-celebrar (ALTOÉ, 1988, p. 18-19).
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
304
Luta de Classes e Contemporaneidade
Altoé sintetiza as características essenciais do método de formação das pastorais da
juventude. Nesses princípios estão inseridas todas as dimensões da formação e da ação
pastoral do catolicismo diante da juventude. Em relação à opção pelos empobrecidos, esta
possui um teor sócio-político e teológico-pastoral, que fundamenta sua argumentação a partir
das seguintes afirmações: a maioria da população é empobrecida; a juventude empobrecida
carrega consigo uma força libertadora; essa é uma opção de toda a Igreja; é uma resposta à
situação de injustiça; a palavra de Deus só é entendida e vivida a partir da ótica do
empobrecido; Jesus Cristo tomou partido dos pobres (BORAN, J. DICK, H., 1983, p. 23).
A partir dos apelos do Evangelho, a PJB opta preferencialmente pelas classes populares
e pelos jovens das mesmas, por serem a maioria e vítimas de uma estrutura social injusta. As
classes populares são o lugar social de onde se analisa toda a sociedade e se percebe o desafio
da construção de uma sociedade sonhada por Deus (CNBB, 1983, p. 37). Portanto, a opção
pelos jovens empobrecidos tem como significado olhar a sociedade a partir do lugar social do
pobre. Essa tomada de posição leva a PJB a formar seus jovens na perspectiva de
transformação das estruturas sociais que oprimem o empobrecido.
A IC, na década de 1980, tinha como perspectiva, no trabalho com o jovem, partir de
uma pastoral geral, do grupo de jovens que iniciava sua caminhada a partir das paróquias e
comunidades, para uma pastoral juvenil especificamente inserida no seu próprio meio, no
qual o jovem irá, de forma organizada, contribuir com a evangelização de seu espaço de
convivência cotidiana. Na proposta operacional estavam presentes seis elementos: 1)
formação integral; 2) metodologia de trabalho; 3) opção preferencial pelos jovens
empobrecidos; 4) espiritualidade relacionada com a vida; 5) organização; 6) estratégia para a
ação (CNBB, 1983, p. 23). Ocorre que, na década de 1980, impulsionada pela conjuntura de
intensa presença dos movimentos sociais no cenário político, a PJB enfatiza seu processo de
formação na dimensão política, inserindo seus jovens no contexto de lutas sociais,
acompanhando os passos das CEB´s e das pastorais sociais que tiveram presença importante
no processo de transição democrática.
A ação da PJB ocorre em três dimensões complementares: na própria PJ; na
comunidade; e nos meios específicos ou organismos intermediários como partidos,
movimentos e associações. Nos anos 1980, a caminhada do jovem era definida a partir de três
305
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
momentos: 1) participação na PJ Geral da comunidade e paróquia, com prática
assistencialista; 2) engajamento individual no meio social em que ele está inserido; 3)
inserção em um grupo dentro de seu meio específico (BORAN, J. DICK, H., 1983, p. 39). Esse
novo modelo de pastoral de juventude formou uma geração de lideranças que atuam na
própria IC e nos movimentos sociais. Todavia, essa construção só foi possível em
conseqüência da adoção de um processo de planejamento participativo que partia da
realidade do jovem. Por isso, entender as características do processo de formação da PJB é
fundamental para analisar sua influência no segmento juvenil e também os reflexos da
conjuntura social, econômica, política e cultural sobre seu método de ação.
A proposta de formação progressiva, definida pela PJB, afirma que o jovem chega ao
compromisso depois de passar por diferentes etapas: 1) Nucleação: fase em que o jovem é
convidado a participar do grupo e aceita a proposta – momento em que o jovem descobre
como é importante e bom viver em grupo. 2) Iniciação: fase das descobertas das variadas
motivações que o jovem traz para o grupo – momento de formação, num processo educativo
informal. 3) Militância: é a fase madura do jovem no grupo, na qual este se apresenta com uma
fé amadurecida, com compromisso e como uma liderança (CNBB, 1998, p. 155). “A milit}ncia
exercida pelo jovem cristão define-se como aquela ação cada vez mais refletida, intencionada,
consciente, contextualizada e organizada, visando promover uma renovação na Igreja e uma
transformaç~o na sociedade” (CNBB, 1998, p. 156). As fases de iniciaç~o e milit}ncia podem
ser divididas em etapas mais detalhadas que passam pela descoberta do grupo; descoberta da
comunidade; descoberta do problema social; descoberta da necessidade de uma organização
mais ampla; descoberta das causas estruturais (análise social); descoberta da militância
(opção vocacional); e descoberta das etapas percorridas (maturidade pedagógica) (CNBB,
1998, p. 15).
Na etapa de descoberta do grupo, as relações pessoais são mais importantes que a
doutrina, já que o jovem está mais preocupado consigo mesmo. O grupo ainda não é um grupo
de fato, pois ainda não estabeleceu um ideal grupal, havendo muita rotatividade de
participantes. A descoberta da comunidade dá ao jovem uma visão mais ampla da religião e
um sentido de pertencimento à Igreja. Esta noção é o elemento fundamental da fé cristã que
tem como principal característica a vivência religiosa comunitária. Na descoberta do
problema social, o jovem toma consciência de problemas muito piores que os seus. Esse
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
306
Luta de Classes e Contemporaneidade
despertar social leva-o a participar de campanhas para ajudar os pobres, a visitar orfanatos,
hospitais, presídios. Ao fazer a descoberta de uma organização mais ampla, o jovem descobre
a PJB. Nesse momento o jovem é incentivado “a largar as muletas e caminhar com suas
próprias pernas”. Nessa fase de amadurecimento o jovem passa a tomar consciência do
mundo em que vive e descobre as causas estruturais que provocam a desigualdade na
sociedade. Surge a consciência de classe e se descobre a exploração pela qual passam as
classes populares. O jovem é convidado a aprofundar sua opção pelos pobres e unir fé e vida
como elementos de um mesmo conteúdo. “Nesta etapa, acentua-se a importância da dimensão
política da fé. O jovem entende que é necessário conscientizar o povo e chegar ao poder
político para mudar a sociedade” (BORAN, 1994, p. 204, 212, 219-221, 226, 242).
A partir deste momento há a descoberta da militância e o aprofundamento do
compromisso. Boran identifica três níveis de engajamento: na própria PJB, participando da
preparação de subsídios, organizando cursos, festivais de música, preparando assembleias de
avaliação e planejamento, coordenando reuniões; na comunidade, na catequese de crisma, na
preparação da liturgia das missas, preparando festas da paróquia, novenas e boletins
paroquiais; na sociedade, participando de partidos políticos, sindicatos, movimento
estudantil, movimentos populares, organizações de bairros dentre outros órgãos de
organização social. Na última fase, o jovem faz a descoberta das etapas percorridas. É o
momento de maturidade pedagógica. O militante torna-se mais realista e menos vanguardista
e com capacidade de trabalhar com iniciantes sem queimar etapas. Boran afirma que a
educação por etapas não significa necessariamente um processo cronológico na qual uma
etapa sucede a outra. Várias etapas podem coincidir, sendo possível também que alguns
jovens pulem certas etapas em decorrência das particularidades de sua educação. Portanto, as
etapas descritas acima correspondem a um processo metódico da PJB, cujas etapas nem
sempre são identificadas na realidade (BORAN, 1994, p. 249-251, 253).
Oliveira (2002, p. 92-94) também define as fases de crescimento do jovem no grupo a
partir de cinco etapas: 1) de socialização, correspondente aos primeiros contatos com o
grupo, na qual ocorre o fortalecimento da coesão grupal; 2) de aprofundamento, momento em
que o jovem vai conhecendo o projeto de Deus e amadurecendo sua fé; 3) de comunhão, o
jovem descobre que é parte da Igreja e assume tarefas na comunidade; 4) de descoberta, em
que o jovem avança na sua consciência por meio dos debates e ações do grupo; 5) de
307
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
militância, momento do engajamento comprometido do jovem na Igreja e na sociedade. Estas
etapas são percorridas individualmente pelos jovens, já que dentro de um mesmo grupo esse
processo ocorre de forma desigual.
O processo de conscientização do jovem é pensado a partir de etapas que passam pela
descoberta da situação social por meio dos fatos na vida dos jovens, descoberta progressiva
de suas causas e consequências, descoberta do conflito de classes e da consciência de
pertencer a uma classe social, descoberta das engrenagens de dominação da sociedade
capitalista e descoberta da necessidade de uma organização para enfrentar os problemas
dessa sociedade de dominação. Esse caminho leva o jovem a entender a importância da PJB
em seu processo de ação que também passa por fases, começando pela conscientização:
momento em que surgem questionamentos a partir de fatos, causas e conseqüências; fase de
mobilização: surgimento de um processo de organização, de se juntar as pessoas que pensam
da mesma maneira; fase do projeto concreto: busca-se uma ação conjunta e concreta no meio;
fase de articulação em nível mais amplo com participação ativa; até chegar à fase do
compromisso político, na qual há uma ação organizada com repercussões mais amplas e
soluções também amplas (BORAN, 1982, p. 240-246). Nesse contexto, o jovem e os grupos
desenvolvem critérios de participação na sociedade decorrentes do compromisso de fé.
Estabelece-se que o povo é agente de seu processo de formação e que na construção de uma
nova sociedade deve haver democracia em todos os níveis. Descobre-se que não há duas
histórias, da salvação e profana, mas uma única história na qual o cristão, em conjunto com
outros segmentos sociais, deve ser o sujeito da transformação. A PJB busca construir uma
consciência crítica junto aos jovens para que eles percebam na sociedade a mentira, a meia
verdade, a manipulação e a demagogia. Trabalha-se para que eles sejam sujeitos de sua
própria educação e formação e para que participem – como sujeitos conscientes – da
construção da história e da transformação da sociedade injusta (BORAN, 1982, p. 237).
No final da década de 1980 a PJB vivenciou momentos de intenso engajamento social e
político, participando dos vários processos desencadeados naquele período: eleições,
constituinte, governo civil. No entanto, no período seguinte começa a viver uma crise de
perspectivas,
em
decorrência
do
fortalecimento
da
presença
do
movimento
pentecostal/carismático no interior da IC e também em virtude das profundas mudanças que
o cenário nacional e internacional passava naquele momento: queda do Muro de Berlim, fim
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
308
Luta de Classes e Contemporaneidade
da União Soviética, vitória da direita nas eleições de 1989, crise da modernidade e
desenvolvimento do neoliberalismo no Brasil. Essa nova conjuntura influencia diretamente o
processo de formação das pastorais.
As mudanças no processo de formação
Em meados dos anos 1990, a PJB em mutirão, reelaborou seu marco referencial, que foi
publicado pela Editora Paulus como Estudos da CNBB, número 76, Marco Referencial da
Pastoral da Juventude do Brasil. Neste marco, principal referência no método de formação nas
décadas de 1990 e 2000, a PJB estabelece e reafirma as seguintes opções pedagógicas:
trabalho com pequenos grupos de base; formação progressiva, integral e libertadora; atuação
nos meios específicos – paróquia, escola, zona rural, periferia; organização estruturada
nacionalmente; assessoria jovem e adulta para orientar as coordenações; atividades de massa;
apoio das instituições que trabalham temas juvenis; e o método ver-julgar-agir.
Grupo de base. O grupo de jovens é a experiência e o espaço central da proposta
pedagógica e evangelizadora da PJB que propõe a formação de pequenos grupos, de idade
homogênea, com nível de participação estável e com ritmo periódico de reuniões (CNBB,
1998, p. 147). O grupo facilita a criação de laços profundos de solidariedade, permitindo
partilhar critérios, valores, visões e pontos de vista. Dessa forma, o grupo ajuda a enfrentar os
desafios da vida, educando o jovem para olhar a realidade e descobri-la junto com os outros. O
trabalho em grupo permite a adesão ao projeto de Jesus, impulsionando o jovem para uma
renovação permanente do compromisso cristão e dando solidez à sua missão (CELAM, 1997,
p. 194).
O grupo de jovens possui algumas etapas de desenvolvimento que são: 1) Nascimento e
infância. Nesta etapa o grupo depende, em tudo, do assessor e de valores e expectativas
trazidas pelos participantes. É muito frágil no início, sendo fundamental a presença do
assessor. Neste momento o grupo está centrado em si mesmo e cada jovem busca encontrar
soluções para seus problemas. 2) Adolescência. Esta é a fase de crise, conflito, passagem e
mudança em que ocorre o crescimento e tomada de consciência do grupo e seu lugar na
comunidade. 3) Juventude. Nesta etapa o grupo se apresenta com maior segurança e
estabilidade. Também ocorre maior independência em relação ao assessor. O jovem nesse
momento começa a se engajar nos movimentos sociais e populares, superando a esfera da
309
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
comunidade, na busca pela mudança da sociedade. 4) Idade adulta. O grupo que alcança esta
etapa é uma verdadeira equipe de vida, com fortes relações e projeto de vida definido. Os
jovens, assim, estão a serviço da comunidade e da sociedade, sendo a partilha e a troca de
experiências a razão de ser do grupo (CNBB, 1998, p. 150-152). 5) Morte – vida nova. O grupo
não pode existir para sempre. Nessa fase o grupo é chamado a se dividir e se multiplicar na
comunidade e na sociedade, gerando novos grupos e novos trabalhos (CELAM, 1997, p. 200).
Para o CELAM, o grupo de jovens é a experiência central pelo fato de pretender
acompanhar o jovem em seu processo de discernimento, ajudando-o a construir uma
“identidade positiva”. Além disso, o grupo possibilita o amadurecimento da fé, do
entendimento da mensagem evangélica e da missão do jovem, contribuindo para que ele
assuma seus compromissos nos diferentes meios da sociedade (CELAM, 1997, p. 191).
Os grupos das pastorais possuem as seguintes características: são formados por 15 a
20 jovens e todos se conhecem. São grupos de amigos que partilham a vida. Esse contexto faz
despertar o espírito de liderança, pois todos têm função no grupo, que age para fora, na
comunidade. Suas atividades dão consciência crítica para os jovens que, atuando na realidade
em que vivem, possuem uma ação transformadora (BORAN, 1982, p. 33). Boran (1982, p. 306)
afirma que o grupo precisa ter coesão, objetivos claros e metodologia elaborada. O autor
insiste na importância do grupo de base. Segundo ele, o funcionamento da reunião do grupo é
o eixo de toda a formação e engajamento do jovem na Igreja e na sociedade.
Para John Burdick (1998, p. 08), o projeto de formação da TL, da IC progressista em
geral e da PJB em particular, busca “incitar a consciência do povo apresentando-lhe uma visão
utópica”, sendo que as componentes chaves da consciência s~o a “autovalorizaç~o” e a
“autoestima” que permitem {s pessoas agirem em seu próprio bem. Nesse processo, o pecado
deve ser visto numa ótica social e coletiva, sendo sua superação parte do processo de
conscientização. Entretanto, Burdick afirma que há vários limites no discurso da TL e nas
práticas de seus membros que leva à problematização da proposta de conscientização. O autor
faz algumas considerações acerca dos círculos bíblicos das comunidades católicas
progressistas, que podem ser utilizados para analisar o modelo de grupo de jovem da PJB. Nos
círculos bíblicos, por conta do alto grau de proximidade das pessoas, evita-se “fazer conexões
concretas entre a Palavra ‘e a vida’, pois estas só servem para lembrar a todos os
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
310
Luta de Classes e Contemporaneidade
ressentimentos, os julgamentos, os mexericos, e as rivalidades que impregnam a vizinhança”
(BURDICK, 1998, p. 151).
Ocorre também que nos círculos bíblicos os menos alfabetizados se sentem inibidos de
falar, criando uma concentraç~o dos discursos em alguns poucos líderes. “Apesar das
pretensões de que ‘todos tenham voz ativa’ nos círculos, de fato, somente um ou outro fala”
(BURDICK, 1998, p. 152). Os mesmos problemas ocorrem em muitos grupos de jovens da PJB
e isso dificulta o desenvolvimento do método de formação e das práticas democráticas
descritas por Boran sobre os grupos de jovens.
Formação progressiva, integral e libertadora. A PJB tem a proposta de trabalhar junto
ao jovem a formação integral, que pressupõe estabelecer uma relação entre todas as
dimensões humanas, que são desenvolvidas de maneira homogênea e integrada. Uma
formação integral é aquela que envolve todos os aspectos da vida: pessoal, social, política,
teológica e metodológica. A PJB afirma que o crescimento e amadurecimento devem ser
equilibrados em todas essas dimensões, pois em diversas propostas de formação há o perigo
do reducionismo na promoção de apenas algum aspecto como, por exemplo, o aspecto
psicológico, o espiritualista ou o político. Dessa forma, o ser humano deve ser entendido em
sua totalidade, pois assim se consegue aprimorar a espiritualidade e assumir concretamente a
proposta de Jesus Cristo, objetivo principal da proposta católica de formação. O conceito de
formação integral, estabelecido a partir das relações que o indivíduo desenvolve na sociedade,
é dividido em cinco momentos (CNBB, 1998, p. 162-165):
a) Dimensão da personalização: a dimensão pessoal corresponde ao universo
psicoafetivo do ser humano, compreendendo o aspecto do eu, da relação consigo mesmo. É o
espaço da busca constante de resposta { pergunta: “Quem sou eu?”. Nesta dimensão, a PJB
propõe que o jovem faça suas opções de valores, assumindo-os em sua vida. A PJB afirma
ainda que há a necessidade da pessoa ter um conhecimento de si mesma para amadurecer
afetivamente e construir uma formação positiva da personalidade e acolhimento da própria
vida. Dessa forma, ela define que para cultivar a dimensão pessoal é necessário procurar
conhecer-se, aceitar-se e assumir a si próprio. Deve-se cultivar o olhar interno, desenvolvendo
seus sentimentos e interesse com relação aos outros. Também é preciso desenvolver suas
aptidões e qualidades para superar os limites pessoais e não se apegar às barreiras da vida,
transformando-as em trampolins na busca da felicidade.
311
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
b) Dimensão da integração grupal e comunitária: Corresponde à dimensão social da
vida, da relação com o outro na busca da integração grupal e comunitária. É o momento de
descoberta do grupo como lugar de encontro e de compreensão do outro como um ser
diferente. O jovem descobre que precisa do grupo para se sentir importante e útil. Aprende
que o relacionamento é algo fundamental para o ser humano. Dessa forma, toma a experiência
comunitária como referência para sua vida, realizando-se como pessoa na relação com o
outro. Para a PJB, essa dimensão ensina ao jovem a lidar com o conflito e a conviver com quem
pensa diferente. Reconhece os valores dos outros, as diversidades e os limites de cada um.
Passa a ver as pessoas como algo mais importante que as normas, os objetos e as coisas.
Cresce e amadurece nessas relações, descobrindo que a educação na fé é concebida como
caminho a ser percorrido comunitariamente.
c) Dimensão sócio-política: relação com a sociedade. É o momento de inserção do jovem
na sociedade e da sua participação cidadã. A PJB afirma que a promoção do bem comum e a
construção de uma ordem social, política e econômica humana, justa e solidária, devem ser
para o jovem um compromisso de fé. A política é compreendida não somente como política
partidária, mas entende que a política significa uma dimensão da formação humana, que
busca uma relação madura com a sociedade. A PJB propõe que a política deve ser interpretada
pelos cristãos como a arte de administração da convivência dos cidadãos, sendo a participação
da juventude de fundamental importância para que ocorram as mudanças na sociedade e na
IC. Portanto, esse é o momento de socialização e inserção do jovem na sociedade, na
perspectiva de uma formação para a cidadania que considere os deveres e os direitos que
todos devem ter, para a construção de uma sociedade justa, livre e igualitária. Logo, no
processo de formação das pastorais, fazer política é um dever humano, sendo concebida como
algo positivo na vida do cristão que tem como missão utilizá-la como um instrumento de
organizaç~o da “Civilizaç~o do Amor”.
d) Dimensão mística e teológica: corresponde à dimensão da relação com Deus.
Dimensão da manifestação e presença do Pai na vida, na qual ocorre um crescimento na fé a
partir da vivência e fundamentação comunitária cristã. Para a PJB, ao fazer o jovem vivenciar
sua experiência de fé, essa experiência faz com que ele passe a viver como um autêntico
cristão. Nas pastorais, essa dimensão ajuda o jovem a fazer a opção pelo seguimento de Jesus
Cristo, assumindo sua pessoa e seu projeto. Há um encontro com Jesus e o desenvolvimento
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
312
Luta de Classes e Contemporaneidade
de uma espiritualidade centrada em sua proposta. Nesse momento do processo de formação,
descobre-se que o sentido da vida está na experiência do seguimento e passa-se a discernir a
ação do Espírito Santo nos sinais dos tempos. Busca-se uma experiência de Deus com uma
compreensão teórica e prática da própria fé. O cristão deve assumir um compromisso radical
de viver os valores do Evangelho, mantendo o contato com a palavra de Deus e uma vivência
comunitária. A PJB propõe que é preciso integrar fé e vida, transformando a experiência da
vida em experiência de fé e afirmando que o jovem precisa tomar mão de alguns instrumentos
que possibilitem o cultivo de sua fé. A Bíblia é fundamental nesse processo, mas é preciso o
auxílio de outros materiais que ajudem a dinamizar a relação com Deus. Por isso, propõem-se
a utilização do Ofício Divino das Comunidades3 e da “Leitura Orante da Bíblia”4, que devem ser
vistos como livros de referência para a formação da espiritualidade do jovem na IC.
e) Dimensão metodológica: diz respeito à estratégia metodológica do jovem, com
relação à ação, em seu processo formativo dentro das dimensões anteriores. É a dimensão da
capacitação técnica do jovem para o planejamento, desenvolvimento e avaliação da ação
transformadora. A PJB propõe que o jovem se capacite constantemente para o seu trabalho
pastoral. A relação com a ação refere-se às habilidades de liderança, que devem ser
desenvolvidas no processo de crescimento da fé, fundamentais na preparação para a vida.
Nesse processo, torna-se necessário ter capacidade de planejar, desenvolver e avaliar a ação,
pois estar preparado para a ação, permite ao cristão avançar em sua maturidade religiosa,
social, pessoal e política. O jovem precisa refletir sua ação para realizar sua missão
evangelizadora com eficiência. No mundo juvenil o exemplo é mais importante que a palavra,
por isso, o cristão precisa ser profissional na evangelização, preparando sua ação e sendo o
primeiro responsável por sua formação. Essa dimensão é fundamental na proposta de
formação da PJB.
Em cada etapa de formação em que se encontra o jovem no grupo, há uma acentuação
diferenciada em determinadas dimensões. Dessa forma, na PJB o cristão deve vivenciar de
forma conjunta as cinco dimensões da formação integral, para alcançar sua maturidade e ser
feliz na sua missão na Igreja e na sociedade. Portanto, a partir dessa proposta de formação
OFICIO DIVINO DAS COMUNIDADES (1994). São Paulo: Paulus. Livro de oração dos grupos de Pastoral da
Juventude.
4 Metodologia de leitura da Bíblia a partir da Lectio Divina que pressupõe quatro momentos: leitura, meditação,
oração e contemplação. Esse método é incorporado a partir da segunda metade da década de 1990.
3
313
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
integral, conclui-se que as pastorais trabalham com a concepção que proporciona a
continuidade e a conscientização, procurando entender o ser humano como um todo.
Todavia, na década de 1990, em decorrência da ênfase na dimensão política dada na
década de 1980 e das consequências do advento da perspectiva individualista na
contemporaneidade, ocorre a predominância da formação nas dimensões pessoal e teológica
em virtude dos vários acontecimentos apresentados neste artigo. O excesso de busca de dados
de subjetividade escamoteia relações sociais profundas, esvaziando o sentido de ser igreja
enquanto relação social. A consequência desse processo é o deslocamento da política pastoral,
voltada ao coletivo e às questões sociais, para a ação pastoral com viés individualista,
consumista, com um Deus e Jesus Cristo etéreo, espiritualista, sem carne e sem corpo.
Os meios específicos. A sigla PJB surge na assembleia de 1995 para significar a união
das pastorais específicas: PJ, PJE, PJR e PJMP, pois os meios privilegiados de trabalho são as
comunidades paroquiais, a escola, o bairro popular e o meio rural (CNBB, 1998, p. 167).
A Pastoral da Juventude – PJ – corresponde aos grupos das paróquias e das CEB´s, das
grandes cidades ou do interior, sendo a maior e também a mais articulada e estruturada
dentre as pastorais específicas. Sua atuação na comunidade eclesial e nas paróquias enfatiza a
ação do jovem no interior da IC. Portanto, grande parte dos jovens da PJB está inserida em
trabalhos eclesiais como catequese e liturgia, sendo que, prioriza-se o trabalho de formação
bíblica e litúrgica da juventude.
A Pastoral da Juventude Rural – PJR – está ligada à problemática da terra: questão
agrária e ecológica. Atinge jovens agricultores, filhos de pequenos trabalhadores rurais, semterra, peões, arrendatários, assalariados, safristas e bóias-frias. A PJR surge em 1983 no Rio
Grande do Sul, com o apoio da Frente Agrária Gaúcha. Sua primeira Assembleia Nacional
ocorreu em 1989 (MG), contando com a participação de 11 regionais da CNBB (PIERDONÁ,
1990, p. 60).
A Pastoral da Juventude do Meio Popular – PJMP – é a articulação dos jovens da classe
trabalhadora urbana, que se organiza a partir do meio social: jovens que atuam nos
movimentos populares, nos partidos comprometidos com a causa popular, nos sindicatos, no
teatro popular, nos grupos de cultura e dança. A PJMP surge em 1978 num encontro
interregional de animadores, jovens e adultos, da PJ do nordeste. Essa pastoral específica
busca articular jovens das classes populares, ajudando-os a se reconhecerem como membros
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
314
Luta de Classes e Contemporaneidade
de uma classe explorada. No início dos anos 1980 a PJMP argumentava que era
pedagogicamente equivocado reunir, em um mesmo grupo, jovens de classes sociais
diferenciadas, pois os mais abastados acabam por dominar o grupo. Os jovens das classes
populares deveriam se articular entre si para desenvolverem sua consciência de classe e
buscarem sua libertação (PIERDONÁ, 1990, p. 70).
A Pastoral da Juventude Estudantil – PJE – tem sua militância no espaço educacional,
organizando o jovem na escola, no bairro, nas atividades estudantis e na política estudantil:
movimento estudantil, grêmios (CNBB, 1998, p. 165-189). A PJE era conhecida no início como
pastoral secundarista e, a partir de 1984, passa a se chamar Pastoral da Juventude Estudantil.
Surge no Brasil em 1980, por estímulo do Movimento Internacional de Estudantes Cristãos,
através de seu Secretariado latino-americano (PIERDONÁ, 1990, p. 75).
Organização Nacional. A partir da 11ª Assembleia Nacional (1995), a PJB passa a ter
uma organização paritária entre as pastorais específicas, ficando estruturada da seguinte
forma: Setor de Juventude da CNBB; Pastoral da Juventude do Brasil; Assembleia Nacional;
Comissão Nacional de Jovens; Secretaria Nacional; Comissão Nacional de Assessores;
Assessoria Nacional do Setor de Juventude; Coordenação Nacional da PJ, PJE, PJMP, PJR, todas
com organização própria. Dentro das organizações de cada pastoral há uma estrutura que
parte das coordenações nacionais, passando pelas direções regionais e diocesanas, até chegar
ao grupo de base.
A organização existe em vista da missão. A missão é ir ao encontro dos (as) jovens e
convocá-los para caminhar juntos, respeitando os seus interesses na organização dos
núcleos ou grupos [...] A organização exige respeito às diferenças, isto é, ao meio
específico onde vivem os jovens: rurais, indígenas, urbanos, escolas, migrantes,
universidades [...] (PLANO TRIENAL 2002 – 2004, 2001, p. 35).
Nessa perspectiva, a PJB define alguns princípios que norteiam e justificam sua
organização. Segundo ela, essa estrutura possibilita uma distribuição de tarefas, como forma
de educar para o trabalho em conjunto; evita a diluição das responsabilidades; possibilita o
conhecimento das diferentes realidades, para clarear os rumos; supera o espontaneísmo e
evita o ativismo; possibilita a revisão da prática e da vida; está em sintonia e vinculada com a
base (PLANO TRIENAL 2002 – 2004, 2001, p. 35). Todavia, essa estrutura provocou a
disparidade entre a base e as lideranças, pois nessa organização não estão representados
adequadamente o conjunto dos grupos de jovens presentes nas paróquias, as comunidades
315
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
católicas e os grupos específicos espalhados pelo Brasil. Priorizou-se a representação por
especificidades em detrimento da representação numericamente proporcional das bases.
A nova estrutura organizacional gerou debates intensos entre as pastorais e uma crise
que perpassou as assembleias seguintes. Essa situação culminou na decisão da 15ª
Assembleia Nacional, ocorrida em 2008 no Distrito Federal, de extinguir os encontros
nacionais entre todas as pastorais. Daí em diante cada uma ficou responsável pela organização
de seu próprio encontro.
Paralela à estrutura nacional, foi criada em 1996, no 16° Seminário Nacional da PJB,
que teve como tema “Atuaç~o Político-Partid|ria na Construç~o da Cidadania”, a Rede de
Militantes da Pastoral da Juventude do Brasil – Rede MINKA. Este encontro foi considerado
um “marco histórico para a PJ do Brasil e o início de um acompanhamento sistem|tico e em
REDE dos militantes jovens crist~os do mundo da política” (CADERNOS PJB, 1996, p.96). O
objetivo da Rede é organizar e articular os jovens da PJB nos movimentos sociais, sindicatos,
ong´s e partidos políticos, além de promover debates relacionados às políticas públicas para a
juventude. No entanto, em virtude da conjuntura dos anos 1990, a Rede MINKA, apesar de ser
referência para os temas relacionados à política, teve pouca expressão na sociedade e mesmo
no interior do catolicismo.
Assessoria. O papel do assessor na PJB é o de motivar, acompanhar, orientar e integrar
a contribuição e a participação dos jovens na IC e na sociedade. O assessor deve saber escutar
mais do que falar. É capaz de dar lugar ao jovem, para que ele cresça no seu protagonismo
(CNBB, 1998, p. 195). Os assessores das pastorais são, em sua maioria, padres, freiras,
religiosos e leigos especializados na questão juvenil. Esses agentes, que possuem papel
parecido com que tinham os assistentes na ACE, são os responsáveis pela condução dos
processos decisórios na PJB e pelo desenvolvimento do método de formação.
Atividades de massa. A Semana da Cidadania, que ocorre no mês de abril e discute o
tema da Campanha da Fraternidade na ótica juvenil, e o Dia Nacional da Juventude,
comemorado no mês de outubro, são as principais atividades de massa da PJB. Essas
atividades visam dar visibilidade e propagandear os trabalhos das pastorais nas regiões. São
momentos que reúnem centenas e até milhares de jovens para celebrarem e festejarem a
história da pastoral e os resultados alcançados no processo de evangelização.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
316
Luta de Classes e Contemporaneidade
Apoio das instituições. A PJB tem como estrutura de apoio os centros e institutos de
pastoral da juventude como, por exemplo, Instituto de Formação do Norte – AIAKÁ, em
Manaus-AM; Casa da Juventude Pe. Burnier – CAJU, em Goiânia-GO; Centro de Capacitação da
Juventude – CCJ, Centro Pastoral Santa Fé e Centro de Pastoral de Juventude “Anchietanum” e
Centro Paulista de Juventude – CPJ, em São Paulo-SP; Centro Marista de Pastoral, em Montes
Claros-MG, Centro Marista de Pastoral, em São Vicente de Minas-MG e Instituto de Pastoral de
Juventude Leste II, em Belo Horizonte-MG; Centro Marista de Pastoral, em Colatina-ES; Centro
Marista de Pastoral, em Natal-RN; Centro Marista de Pastoral, em Palmas-TO; Instituto de
Formação Juvenil do Maranhão, em São Luiz-MA; Trilha Cidadã, em São Leopoldo-RS e
Instituto de Pastoral de Juventude - IPJ5, em Canoas-RS. Estas instituições formam a Rede
Brasileira de Institutos de Juventude. Jornais e revistas, como o Jornal Juventude e o Mundo
Jovem, informativos e subsídios também contribuem para os trabalhos da PJB. Os institutos
prestam um importante serviço que possibilita o desenvolvimento criterioso dos trabalhos
com juventude. Há, inclusive, a iniciativa de levar o tema juventude para a universidade, como
acontece, por exemplo, com o IPJ que estabeleceu um convênio com a Universidade Vale do
Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, para desenvolver uma especialização, pós-graduação Latu
Sensu, sobre o tema. Esse curso de especialização ocorre atualmente em Goiânia, sob a
coordenação da CAJU e a chancela da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia de Belo
Horizonte-MG.
Método ver-julgar-agir. A essência da proposta de formação da PJB está no método verjulgar-agir, herdado da ACE, ao qual a PJB acrescenta mais dois momentos: revisar-celebrar.
Este método baseia-se na realidade da vida dos jovens (VER), confrontando com os valores da
fé (JULGAR), partindo para uma ação de transformação do meio (AGIR) (OLIVEIRA, 2002, p.
17). O momento do VER significa a tomada de consciência da realidade, a partir dos fatos
concretos da vida cotidiana. O JULGAR analisa os fatos da realidade à luz da fé, da vida e da
mensagem de Jesus Cristo. A Bíblia e os documentos da Igreja Católica são os instrumentos
utilizados para confrontar a realidade. O AGIR é a concretização, a ação transformadora,
momento que evita que a reflexão fique no abstrato. O REVISAR é a avaliação, momento de ver
O IPJ-POA teve um importante papel no processo de formação de assessores jovens e adultos para as pastorais
da juventude. Todavia, após ser transferido de Porto Alegre para a cidade de Canoas-RS, foi recentemente
desativado.
5
317
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
até onde se caminhou. O CELEBRAR é o momento de agradecimento da experiência vivida
(CNBB, 1998, 210-213).
Com o método, nós queremos: formar líderes que se engajem na transformação de
seus meios (escola, trabalho, bairro, família), educar para a liberdade, formar para o
senso crítico, desenvolver a pedagogia da formação na ação, ligar fé e vida e poder
avaliar a caminhada dos grupos (OLIVEIRA, 2002, p. 118).
Este método se concretiza na Revisão de Vida e Revisão de Prática, que consiste num
processo que deve se transformar num estilo de vida para os jovens (CNBB, 1998, 215). Com
essas opções pedagógicas definidas, a PJB afirma que pode contribuir para a viabilização de
um sonho de toda Igreja progressista, compartilhada pelos movimentos sociais, sindicatos e
partidos de esquerda, que é a construção de outra sociedade chamada pelos cristãos da
libertação de Civilização do Amor. As opções pedagógicas assumidas pela PJB levaram-na a
assumir em seu processo histórico a opção política defendida pela Igreja Progressista na
América. Assim, a PJB pode ser concebida como a ação da IC, por meio da qual se ajuda os
jovens a descobrir, a assimilar e se comprometer com a pessoa de Jesus e sua mensagem.
Busca-se construir uma Igreja que tenha um perfil celebrativo, participativo, que opte pelos
pobres, que seja libertadora e solidária, contribuindo, assim, para a construção de uma
sociedade justa e igualitária. Todavia, o que se mostra aqui são as mudanças ocorridas nessa
concepção pedagógica de evangelização juvenil e a consequente redefinição das opções
políticas.
Considerações finais
Diante do exposto neste artigo, afirma-se que a grande diferença dos anos 1980 para os
anos 1990 está na ação das pastorais que é redirecionada para o trabalho no interior da IC,
com uma guinada da ação que sai da questão política e se volta para a questão da cultural de
maneira relativizada, provocando um esvaziamento do sujeito que dificulta o diálogo e
práticas democráticas no interior da IC.
A PJB é levada a assumir uma perspectiva subjetiva da vida e de privatização dos
interesses do indivíduo, ou seja, as necessidades coletiva e política, presentes nos anos 1980,
cederam lugar para o pessoal e cultural. Se nas décadas anteriores a prioridade era o social e o
político, com forte participação na sociedade civil, a década de 1990 inverte esse processo e
propõe uma ação voltada para o cotidiano e para o pessoal. A preocupação com a afetividade e
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
318
Luta de Classes e Contemporaneidade
a sexualidade ganha espaço na formação pastoral, que passa a desenvolver seu método
pedagógico nessa perspectiva. As opções políticas continuam as mesmas, isto é, a PJB continua
defendendo a construção de uma nova sociedade, chamada pelo Cristianismo da Libertação de
Civilização do Amor. Todavia, a ação é diferenciada: busca-se o equilíbrio entre política e
espiritualidade, entre coletivo e pessoal. No entanto, a tentativa de equilíbrio desencadeou
uma prática mais eclesial, mais pessoal, comprometida com a resolução de problemas
individuais.
A ação atual das pastorais da juventude está sendo desenvolvida a partir de uma nova
realidade eclesial, visto que a organização individual das pastorais nas paróquias e dioceses
passou a ser questionada pela CNBB, em documento produzido em 2007. Se nos anos 1980
havia o documento 44, intitulado Pastoral da Juventude do Brasil, nos anos 1990 havia o
documento 76, chamado Marco Referencial da Pastoral da Juventude do Brasil, que dava
sustentação ao programa de evangelização desse setor católico; nos anos 2000, foi publicado
o documento 93 Evangelização da Juventude: desafios e perspectivas pastorais que propõem,
entre outras coisas, uma reorganização dos jovens nas paróquias e dioceses.
O documento sugere que os jovens das pastorais e movimentos sejam articulados a
partir do chamado “Setor Juventude” que procura reunir todas as sensibilidades (ou
tendências) católicas em um único espaço eclesial. Essa proposta tem reduzido o espaço de
atuação das pastorais identificadas com a Teologia da Libertação, visto que no interior do
“Setor Juventude” também est~o presentes as juventudes do movimento carism|tico e as
juventudes identificadas com os Cursilhos de Cristandade,6 todas com atuação conservadora.
Todavia, ainda não é possível avaliar mais profundamente os desgastes causados nas
pastorais da juventude por essa nova proposta de organização assumida pela Igreja no Brasil.
Referências
ALTOÉ, A. (org.) (1988) Metodologia & Método: uma contribuição à Pastoral da Juventude. São
Paulo: CCJ.
BORAN, J. (1982) Juventude, o grande desafio. São Paulo: Paulinas.
6
TLC, Escladada, juventude vicentina, etc.
319
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
____ (1994) O futuro tem nome: juventude. São Paulo: Paulinas.
BORAN, J. & DICK, H. (1983) Pastoral da Juventude no Brasil. São Paulo: Loyola.
BURDICK, J. (1998) Procurando Deus no Brasil: a Igreja católica progressista no Brasil na arena
das religiões urbanas brasileiras. Rio de Janeiro: Mauad.
CADERNOS DE ESTUDOS DA PJB. (1986) Os cristãos e a militância política. São Paulo: CCJ, Nº
1.
____ (1987) Dimensão da Formação Integral. São Paulo: CCJ, Nº 2.
____ (1992) Igreja: freio ou acelerador? São Paulo: CCJ, Nº 7.
____ (1996) Um jeito novo: atuação político-partidária na construção da cidadania. São Paulo:
CCJ, Nº 8.
____ (2000) Eu quero ver o novo no poder: mandato popular e democratização do poder local.
São Paulo: CCJ, Nº 11.
CELAM (1987) Pastoral Juvenil: si a la civilización del amor. Bogotá: Coleção documentos
CELAM, nº 93.
____ (1997) Civilização do Amor: tarefa e esperança – orientação para ao pastoral da juventude
latino americana. São Paulo: Paulinas.
CNBB (1983) Pastoral da Juventude do Brasil. São Paulo: Paulus, Coleção Estudos, nº 44.
____ (1998) Marco Referencial da Pastoral da Juventude do Brasil. São Paulo: Paulus, Coleção
Estudos, nº 76.
____ (2006) Evangelização da juventude: desafios e perspectivas pastorais. São Paulo: Palus,
Coleção Estudos, nº 93.
DICK, H. (2003) Gritos silenciados, mas evidentes: jovens construindo juventude na história. São
Paulo: Loyola.
____ (1999) O Caminho Se Faz: história da Pastoral da Juventude do Brasil. Porto Alegre: IPJ
OLIVEIRA, R. (2002) Pastoral da Juventude: e a Igreja se faz jovem. São Paulo: Paulinas.
PIERDONÁ, E. e FURLANETTO, I. SOUZA J.0. (1990) História da PJ no Brasil. Santo Angelo:
Instituto de Pastoral da Juventude.
PLANO TRIENAL 1996 – 1998 (1995) Brasília: Setor Juventude, CNBB.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
320
Luta de Classes e Contemporaneidade
PLANO TRIENAL 1999 – 2001 (1998) Brasília: Setor Juventude, CNBB.
PLANO TRIENAL 2002 – 2004 (2001) Brasília: Setor Juventude, CNBB.
PLANO TRIENAL 2005 – 2007 (2004) Brasília: Setor Juventude, CNBB.
PROCESSO DE FORMAÇÃO NA PJ (1992) Construindo Juntos: roteiro para grupos de jovens. São
Paulo: CCJ, Nº 4.
____ (1999) Fazendo História: roteiro para grupos de jovens. São Paulo: CCJ, Nº 5.
RELATÓRIOS DOS ENCONTROS NACIONAIS E DAS ASSEMBLÉIAS NACIONAIS DE 1973 A
2008.
SOFIATI, Flávio M. (2009) Tendências Católicas: perspectivas do cristianismo da libertação. In
Estudos de Sociologia, Araraquara-SP, vol.14, nº 26, p. 121-140.
____ (2011) Gramsci e as tendências orgânicas do catolicismo brasileiro. In História Agora,
ANPUH, vol. 2, nº 11, p. 212-238.
321
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
A Teologia da Libertação e sua teoria marxista na insurgência armada
colombiana
Mauricio José Avilez Alvarez1
Resumo: A Comunicação pretende analisar a participação de teólogos e teólogas cristãs, que
se engajaram na Teologia da Libertação e na insurgência armada colombiana (FARC –EP e
ELN), bem como a forma como estes interpretaram o marxismo como teoria revolucionária. O
conflito colombiano leva mais de 50 anos de existência e as causas econômicas, sociais e
políticas que lhe deram origem perduram, complexificando o fenômeno com o passar dos
anos. A partir deste contexto, pergunta-se se a participação na luta armada de teólogos e
teólogas, tais como Camilo Torres, Leonor Esguerra, Manuel Perez e Oliverio Medina, poderia
ser considerada uma prática da Teologia da Libertação. Centra-se em três aspectos: a)
caracterização do conflito armado colombiano em sua origem histórica e o papel das igrejas
cristãs neste; b) análise bibliográfica das experiências narradas e de documentos produzidos
por teólogos e teólogas que fizeram parte da insurgência colombiana; c) a forma como estes
interpretaram a teoria marxista para a ação revolucionária de da Teologia da Libertação. Por
fim, tem-se em conta que a Teologia da Libertação, como teoria e prática revolucionária não é
homogênea, visto que ela tomou o marxismo de diferentes formas na sua teoria social, em
distintos contextos. Espera-se demonstrar as características deste cenário específico e suas
relações teóricas e práticas com a teoria marxista.
O conflito colombiano leva mais de 50 anos de existência e as causas econômicas,
sociais e políticas que lhe deram origem perduram, complexificando o fenômeno com o passar
dos anos. O conflito armado se desenvolve entre o Estado Colombiano, representando por
suas forças públicas e suas estruturas mercenárias; e no outro extremo a insurgência armada:
as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia Exército do Povo – FARC EP, e o Exército de
Libertação Nacional – ELN2, que são as que mais se destacam3. Os confrontos em decorrência
do conflito armado acontecem em todo o território colombiano e é perceptível na
cotidianidade da sociedade colombiana em seus diferentes setores sociais.
Mas esse conflito armado não surgiu da forma como aparece hoje, como fenômeno
passou por uma transformação histórica e de diversos contextos que o caracterizam. Há, em
suas origens, uma série de fatores que o propiciaram e do lado desses fatores há atores que
foram e são relevantes no conflito.
Mestrando em Teologia – Faculdade EST. Bolsista CNPQ.
GUILLÉN, Carlos A. L. Guerra o paz en Colombia? Cincuenta años de un conflicto sin solución. Bogotá: Izquierda
viva, 2006.
3 Na Colômbia existem outros grupos insurgentes com menores relevâncias como o Exército Popular de
Libertação –EPL.
1
2
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
322
Luta de Classes e Contemporaneidade
Entre esses atores que apareceram ao longo da história do conflito colombiano há um
papel desempenhado pela Igreja colombiana e de lideranças religiosas como Camilo Torres 4.
A Igreja colombiana parece ter atuado num papel relevante no conflito, como um ator com
interesses politicamente conservadores, de mediação, ou mesmo revolucionários na teologia
da libertação5.
No presente trabalho pretende analisar a participação de teólogos e teólogas cristãs, que
se engajaram na Teologia da Libertação e na insurgência armada colombiana (FARC –EP e ELN),
bem como a forma como estes interpretaram o marxismo como teoria revolucionária. Perguntase se a participação na luta armada de teólogos e teólogas, tais como Camilo Torres6, Leonor
Esguerra7, Manuel Perez8 e Oliverio Medina9, poderia ser considerada uma prática da Teologia
da Libertação.
Lembrando que, como afirmou o mestre Orlando Fals Borda, em seu livro La Violencia
en Colombia10, o que se procura é mostrar a dinâmica do conflito em suas origens para que
seus atores, neste caso a Igreja, olhem com responsabilidade, entendam a dinâmica e suas
dramáticas conseqüências; para que possam se produzir ações de superação e abrir caminhos
para a paz.
O Conflito armado e seu marco histórico
Para entender o conflito armado na Colômbia há que falar da forma como foi gerado o
Estado independente e soberano. Após a guerra de independência contra os espanhóis (18101819), a Colômbia se desenvolveu como Estado, mas, com uma frágil estrutura de
administração pública e econômica por não construir um aparato burocrático de Estado e por
manter e apoiar-se nas instituições sociais criadas pela Espanha para a exploração colonial11.
CAMPOS, Germán G. El padre Camilo Torres. México: Siglo XXI, 1968.
GONZALEZ G. Fernan E. Partidos políticos y poder eclesiástico. Bogotá: CINEP, 1977.
6 Camilo Torres Restrepo foi um sacerdote católico colombiano que ingressou na guerrilha ELN e morreu em
confronto no 15 de fevereiro de 1966.
7 Leonor Esguerra foi uma religiosa da comunidade católica do Sagrado Coração que fez parte da guerrilha do
ELN do ano de 1969 até 1993.
8 Manuel Perez foi um sacerdote católico de nacionalidade espanhola que ingressou no ELN no ano de 1969 e
morreu em 1998 sendo o principal comandante desta guerrilha.
9 Oliverio Medina é um sacerdote católico que ingressou nas FARC em 1983 e na atualidade está exilado no
Brasil.
10 BORDA, Orlando F. Uma sociologia sentipensante para América Latina. Bogotá: Siglo del Hombre /CLACSO,
2009, p. 169.
11 HENAO, Jesus M; ARRUBLA, Gerrardo. Historia de Colombia. Bogotá: Voluntad, 1967, p.513.
4
5
323
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
As elites políticas do nascente Estado colombiano, e dos outros Estados que se
libertaram na América, contra o império espanhol na guerra de independência, tomaram o
lugar dos antigos dominadores12. Nesse processo a terra teve um papel importante como
propriedade para a dominação e para o modo de produção que tinha sido herdado da colônia.
“Había una ambigüedad inicial en los modos de producción e intercambio que trajeron los
españoles. Se recordará que la Conquista se realizó en un momento de transición entre el
feudalismo y el capitalismo” 13.
As elites da nova república disputavam entre elas o poder e a forma de dirigir a antiga
colônia. “La necesidad de asegurar la independencia por medio de las armas – que era la tarea
política del momento – se sustituyo por la controversia interna […]. La capacidad de fuego y
de organización cedió frente a la ambición de los caudillos y sus feudos”14. Dessas duas
posições nasceram os partidos políticos tradicionais da Colômbia: Liberal e Conservador, que
defendiam diferentes modelos políticos de governo e de desenvolvimento econômico 15.
A passagem do século XIX para o século XX se deu em um ambiente belicista. A “paz”
somente foi possível quando os confrontos afetaram os interesses dos Estados Unidos no
canal de Panamá, que ainda era território colombiano16.
[...] Colombia ha vivido muchas violencias, casi desde el momento mismo de la
independencia, (…) En Colombia la violencia es un fenómeno histórico y socio-político,
impuesto “desde arriba” para defender privilegios e intereses políticos y económicos.
(…) la historia republicana está preñada de confrontaciones violentas. Inclusive de
guerras civiles entre los grupos dominantes para definir cuál de ellos tiene el control
del poder. Sin embargo, esos grupos dominantes cuando detectan que están en peligro
sus intereses comunes, en lo esencial económicos y políticos, no vacilan en unirse para
defender el sistema tradicional y bipartidista17.
Na relação política de interesses e dominação de final do século XIX, até meados do
século XX, podem encontrar-se os seguintes elementos que caracterizam este período da
AGUIRE, Indalecio L. Los grandes conflictos sociales y económicos de nuestra historia. Bogotá: Imprenta Nacional
de Colombia, 1964.
13 BORDA, 2009, p. 59.
14 DE LA ESPRIELLA, Ramiro. Las ideas políticas de Bolívar. Bogotá: Grijalbo, 1999, p. 167.
15 HENAO, 1967, p. 658.
16 JARAMILLO, Carlos Eduardo. El tratado del Wisconsin. Noviembre 21 de 1902. Credencial Historia, Bogotá, n.
117, setiembre, 1999; HENAO, 1967, p. 815.
17 GUILLÉN, 2006, p. 38.
12
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
324
Luta de Classes e Contemporaneidade
Colômbia: Do ano de 1886 até 1934 governou o partido Conservador tendo como aliada à
igreja católica romana. De 1934 até 1946 governou o partido Liberal e a igreja católica
romana foi oposição do lado do partido Conservador18. O partido Comunista foi criado em
1930 e ele apoiou o governo liberal no período de 1934 até 1946, embora desde sua criação
sofresse perseguições19.
No período do governo do partido Liberal (1934 -1946) a situação política, social e
econômica da Colômbia estava mudando, se tinha introduzido elementos para essas
mudanças. Os movimentos agrários tinham se fortalecido, liderados pelo partido Comunista e
por Jorge Eliécer Gaitán, quem era uma liderança muito popular, vinculada ao partido
Liberal20.
Em 1946 o partido Conservador ganhou a presidência e tentou governar segundo seus
interesses e políticas, mas as situações de mudanças dificultavam suas intenções. Estas
dificuldades encontradas pelo partido Conservador, devido às mudanças dos setores agrários
e das políticas do período do governo do partido Liberal criou uma situação de instabilidade e
de violência no país.
A violência na Colômbia foi se gestando dentro do contexto descrito como um conflito
de matizes políticas, econômicas e sociais, tendo como um dos focos principais a situação
agrária. O que era uma disputa dos partidos liberal e conservador foi se transformando em
uma luta de setores da elite política e econômica contra os setores políticos que não faziam
parte dessa elite e dos setores sociais mais pobres. “La violencia como práctica del poder
comenzó con el régimen conservador, en 1946, para liquidar las luchas [...] por una reforma
agraria y la solución al problema de la tenencia de la tierra en manos, de manera
predominante, de latifundistas”21.
No dia 9 de abril de 1948 foi assassinado Gaitán e sua morte desatou uma serie de fatos
nomeados como “Bogotazo”. Foi “la generalización de la violencia, y la entronización de
formas abiertas de terrorismo de Estado para aniquilar a las masas liberales y comunistas” 22.
A cidade de Bogotá se converteu em um campo de batalha, e essa expressão popular de
HENAO, 1967, p. 781-899.
GUILLÉN, 2006, p. 39.
20 BORDA, 2009, p. 156.
21 GUILLÉN, 2006, p. 40.
22 GUILLÉN, 2006, p. 40.
18
19
325
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
indignação e sede de justiça se deu em muitos lugares da Colômbia, onde se criaram juntas de
governo popular quase que com características insurrecionistas revolucionárias23.
“Algunas clases dirigentes y las 'oligarquías' de ambos partidos tradicionales,
coaligadas por la seria amenaza a sus intereses, tomaron entonces las riendas del Estado para
efectuar la contrarrevolución”
24.
Segundo algumas pesquisas feitas sobre os fatos que
aconteceram após o assassinato de Gaitán, mais de duzentas mil pessoas foram assassinadas
por integrar o movimento gaitanista ou por ser militantes do partido comunista 25. “A partir
del asesinato de Jorge Eliécer Gaitán se configura un nuevo país: la Colombia en guerra, con
ejércitos de campesinos que se habían organizado para hacer frente a los embates de la
violencia política proveniente desde él mismo”26.
Uma resistência armada como guerrilhas que foi inicialmente conformada por
camponeses e no passo dos anos foram somando-se mais setores da sociedade de distintos
lugares do território nacional. Neste contexto, é onde poderiam considerar-se as origens do
conflito armado colombiano. O governo da Colômbia no mês de maio de 1964 fez uma
operação militar, com o apoio dos Estados Unidos27, para aniquilar os focos guerrilheiros de
resistência que existiam nas vilas de Marquetalia, o Pato, Rio Chiquito e Guayabero 28. “Aquel
irracional y fútil ataque selló el nacimiento de las Fuerzas Armadas revolucionarías de
Colombia (FARC) y de los reductos sureños de donde las FARC nunca volvieron a salir”29.
Pelas políticas belicistas e de repressão do Estado foram surgindo outras guerrilhas
como o Exército de Libertação Nacional – ELN30. “Em quatro de julho de 1964, dezoito
homens [...] deram início ao primeiro foco da organização, nas montanhas do departamento
de Santander. Seis meses mais tarde [...] o ELN faz sua entrada em cena na esfera pública
[...]”31. Também surgiram outras organizações como o Exercito Popular de Libertação – EPL,
BORDA, 2009, p. 157.
2009, p. 157.
25 GUILLÉN, 2006, p. 40.
26 CUELLAR, Edgar B. De Macondo a Mancuso: conflicto, violencia política y guerra psicológica en Colombia.
Bogotá: Cátedra Libre / Fundación América Nuestra, 2008, p. 68.
27 GUILLÉN, 2006, p 108.
28 MARULANDA VELEZ, Manuel. Cuadernos de campaña. 1973.
29 BORDA, 2009, p. 464.
30CAYCEDO, Jaime T. Paz democrática y emancipación: Colombia en la hora latinoamericana. Bogotá:
23
24BORDA,
izquierda viva, 2007, p. 52.
31LEONGÓMEZ,
Eduardo Pizarro. Uma democracia sitiada. Rio de Janeiro: Biblioteca do exercito, 2006, p.
77.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
326
Luta de Classes e Contemporaneidade
Quintín Lame, PRT e o Movimento 19 de Abril – M 1932. Das guerrilhas hoje se mantém na luta
armada as FARC, o ELN e um reduzido grupo do EPL33.
Os teólogos e teólogas na luta armada revolucionária:
O Estado colombiano tinha uma posição muito conservadora a nível religioso,
principalmente na aliança com a igreja Católica que data da Concordata de 188734 e a
Constituição Política de 1886, que teve vigência até 1991 35. Algumas mudanças aconteceram
com o Concílio Vaticano II, permitiu uma melhor relação política a Igreja com as propostas
políticas do partido liberal e partido conservador no que foi chamado do Frente Nacional36; e
aos religiosos e religiosas católicos lhes permitiu ter mais liberdade e ser mais críticos: “[...]
remeció los conventos y monastérios, donde muchos curas y monjas adormilados se
despertaron con sobresalto, preguntándose qué estaba pasando”37.
Quanto {s igrejas protestantes, seus “[...] misioneros y líderes nacionales daban a la
iglesia una orientación bastante conservadora, en lo teológico y lo social38. Não se tem dados
sobre sua postura neste período em relação à política além das denuncias de perseguição
religiosa 39.
No começo da década de 1960 apareceu um jovem sacerdote católico chamado Camilo
Torres falava abertamente da relação do marxismo com o cristianismo, das causas da
violência em Colômbia, da necessidade de reforma agrária e da urgência de abertura
democrática40. As posturas de Camilo Torres comprometidas com a realidade colombiana de
maneira acadêmica e política foram lhe afastando das elites políticas e religiosas, até o ponto
de ser estigmatizado por estas como subversivo e anti-social. Deixando-lhe, assim, como
CAYCEDO, 2007; LEONGÓMEZ, 2006; e GUILLÈN, 2006.
Neste trabalho não tem como objeto caracterizar as organizações insurgentes colombinas em sua etapa atual, é
de interesse sinalar que elas existem, que são relevantes, pelo menos, para o desenvolvimento político
colombiano e anotar que no centro de estas organizações é onde aconteceu a participação de teólogos e teólogas
na luta armada revolucionária.
34 ROUX, Rodolfo R. de. Iglesia y sociedad en Colombia: 9 de abril de 1948. Bogotá: 1981.p. 1.
32
33
GONZALEZ, 1977, p. 156.
ROUX, 1981, p. 204.
37 CLAUX CARRIQUIRY, Inés. La búsqueda, Del convento a la revolución armada. Colômbia: Aguilar, 2011, p. 82.
38 SANIN, Javier Augusto R. Contribuição para uma história do protestantismo na Colômbia: A missão e a Igreja
Presbiteriana (1856-1946). 1996. Trabalho de Tese para a obtenção do grau de doutor em Ciências da Religião –
Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do Campo, São Paulo, 1996, p. 227.
39 ROUX, 1981, p. 55.
40 TORRES, Camilo. Cristianismo e Revolução. São Paulo: Global, 1981; e CAMPOS, 1968, p. 10-45
35
36
327
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
caminho, o ingresso à luta armada na guerrilha do ELN41, onde morreu em seu primeiro
confronto42.
Camilo Torres desenvolveu uma proposta de programa político para o país43, esse
programa diz o mesmo Camilo “[...] tiende al establecimiento de un estado socialista con la
condición de que el socialismo lo entendamos en un sentido únicamente técnico y positivo [...]
se trata de un socialismo pr|ctico no teórico”44. Mas sua motivação é cristã e parte do que ele
teoriza como Amor Eficaz e do qual se gera sua práxis revolucionária.
Descobri o cristianismo como uma vida centrada totalmente no amor ao próximo; deime conta que valia a pena comprometer-me neste amor, nesta vida, por isso escolhi o
sacerdócio para converter-me num servidor da humanidade. Foi depois disso que
compreendi que na Colômbia não se podia concretizar este amor somente através da
beneficência, mas que urgia uma mudança de estruturas políticas, econômicas e
sociais que exigiam uma revolução à qual este amor estava intimamente ligado. [...]
considero-me sacerdote até a eternidade e entendo que meu sacerdócio e seu
exercício se cumprem na realização da revolução colombiana, no amor ao próximo e
na luta pelo bem-estar das maiorias45.
A teoria social que adota Camilo Torres para seu agir político é o marxismo, ele afirma
“A luta revolucion|ria n~o pode ser levada a cabo sem um ‘Weltanschaung’ completo e
integrado. Por isso é difícil que no mundo contemporâneo ocidental essa luta possa ser feita
fora das ideologias crist~ e marxistas [...]”46. Em outro momento ele define melhor sua teoria
social e seu método “Yo podría colaborar verdaderamente con los comunistas en Colombia
porque creo que entre ellos hay elementos verdaderamente revolucionarios y porque en
cuanto son científicos, tienen puntos que coinciden con la labor que yo me propongo” 47. Há
outros textos onde Camilo Torres expõe seu pensamento sobre a programação econômica nos
países subdesenvolvidos e toma elementos de Lênin e o defende48.
CAMPOS, 1968, p. 125-160
ROUX, 1981, 215.
43 TORRES, 1968, p. 169.
44 TORRES, 1968, p. 124.
45 TORRES, 1968, p. 120.
46 TORRES, 1968, 86.
47 TORRES, 1968, p. 181.
48 TORRES, 1968, p. 66
41
42
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
328
Luta de Classes e Contemporaneidade
O que mostra a Camilo Torres como um cristão revolucionário que faz parte dos
gestores da Teologia da Libertação49. Olhando a construção teórica e da práxis a partir das 3
dimensões fundamentais e constitutivas da TdL50: a mediação sócio-analítica que usou foi o
marxismo; sua mediação hermenêutica foi sua interpretação da bíblia como teólogo; e a
mediação da práxis foi a teoria de Lênin. Camilo sempre afirmou não ser comunista porque
dizia que como cristão tinha diferenças filosóficas, mas aceitou o uso cientifico do marxismo e
sua pratica revolucionária foi dentro dos padrões da teoria leninista51, há que lembrar que ele
morre lutando no ELN que é em uma guerrilha que se considera assim mesma como marxistaleninista52.
De Camilo se diz que não deixou um pensamento político e teológico elaborado53, mas
pela forma como elaborou e desenvolveu sua práxis nas 3 dimensões permitiu traçar um
caminho para a ação revolucionaria a partir do Amor Eficaz. Com a morte de Camilo começa o
“Camilismo [...] en un movimiento creciente que parecía encender toda la América Latina
[…]”54. Na Colômbia o fenómeno acontece com muita força o que provocou a vinda do Papa
Pablo VI à Conferencia de Medellin em 1968 – CELAM II55 e o Grupo de Golconda56, assim
como também tomou força a participação na luta armada.
O ELN desperta devoção em amplas camadas sociais. Isto se deve, sobretudo, à
dimensão simbólica do Padre católico Camilo Torres, morto em combate em 15 de
fevereiro de 1966, cuja figura se tornaria o emblema do emergente diálogo entre
cristãos e marxistas em toda a América Latina, bem como do nascimento da Teologia
da Libertação, a Igreja dos Pobres e suas comunidades eclesiais de base. 57
49
Historicamente a Teologia da Libertação é classificada em 5 períodos: 1. Gestação (1962-1968); 2.
Gênese (1969-1971); 3. Crescimento (1972-1979); 4. Consolidação (1979-1987); e 5. Período de revisão (1989 ). In: LIBANIO, Alfonso Murad. Introdução á teologia: perfil, enfoques, tarefas. São Paulo: Loyola, 1996.
BOFF, Clodovis. Teologia e prática: Teologia do político e suas mediações. Petrópolis, Vozes, 1978
TORRES, 1968, p. 122.
52 LEONGÓMEZ, 2006, p. 75-82.
53 SILVA GOTAY, Samuel. El pensamiento Cristiano revolucionário em América Latina y El Caribe. San José,
50
51
Puerto Rico: Cordillera/Sigueme, 1983, p. 55.
SILVA GOTAY, 1983, p. 55.
SILVA GOTAY, 1983, p. 63.
56 O grupo de Golconda foi um grupo de sacerdotes e religiosas católicas que se organizou em Colômbia para dar
continuidade às idéias de Camilo Torres. SILVA GOTAY, 1983, p. 65.
57 LEONGÓMEZ, 2006, p. 77.
54
55
329
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
No ano de 1967 tinham chegado a Colômbia 3 sacerdotes católicos espanhóis Domingo
Laín, José Antonio Jiménez e Manuel Pérez58. Eles falavam das idéias de Camilo Torres.
[...] consideraban que había que seguir los pasos de Camilo Torres porque no había
otro camino; no es que les gustara la violencia, no les atraía la guerra, pero la razón y
la expericia les decían que los dueños de Colombia jamás entregarían el país al pueblo
por las buenas, que había que arrebatárselo, y eso significaba que era necesario
desarrollar una guerra popular [...]59.
A religiosa católica Leonor Esguerra começou a compartir estas idéias nas conversas e
estudos que tinha com estes 3 sacerdotes espanhóis e outros do grupo Golconda. Leonor e os
3 sacerdotes espanhois em distintos momentos do ano de 1969 se vincularam ao ELN.
[...] estaban decididos a formar parte del ELN siguiendo el ejemplo del padre Camilo
Torres; [...] deseaban ser guerrilleros porque su opción era asumida como cristianos,
deseaban vivir un verdadero cristianismo. […] Consideraban que Camilo había tenido
toda la razón cuando dijo ‘La revolución no solo es permitida sino obligatoria para los
cristianos que vean en ella la única manera eficaz y amplia de realizar el amor para
todos’60.
José Antonio Jiménez morreu 8 meses depois de ter ingressado por uma mordida de
cobra e Domingo Laín morreu em confronto com o exército nacional da Colômbia no 20 de
fevereiro de 197461. Em quanto ao sacerdote Manuel Pérez, ele se converteu no principal
comandante do ELN até o ano de 1998 quando morreu como guerrilheiro por uma
enfermidade62. Leonor Esguerra foi da comissão internacional do ELN até o ano de 199363.
Na pesquisa do movimento Camilista encontra-se outro sacerdote colombiano
Francisco Antonio Cadena Colazzos, conhecido como Padre Olivério Medina ou o comandante
Camilo64, ele ingressou nas FARC-EP em 1983 ao parecer pelos mesmos ideais. O nome que
tem em relaç~o { luta armada “Comandante Camilo” faz pensar em a relaç~o que poderia ter
com o ideário revolucionário de Camilo Torres. Pela situação de exílio de este sacerdote no
CLAUX CARRIQUIRY, 2011, p. 117.
CLAUX CARRIQUIRY, 2011, p. 121.
60 CLAUX CARRIQUIRY, 2011, p. 160.
61 CLAUX CARRIQUIRY, 2011, p. 198.
62 CLAUX CARRIQUIRY, 2011, p. 305.
63 CLAUX CARRIQUIRY, 2011, p. 289.
64 Oliverio, o padre da paz. In: <http://www.cebrapaz.org.br/especial_om/padre.htm
58
59
>, Acessado in: 1 Mai. 2012.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
330
Luta de Classes e Contemporaneidade
Brasil no ano de 2006 e de segurança não foi possível ter mais informação sobre ele e sua
possível motivação nas idéias de Camilo Torres para ingressar na luta armada.
O que poderia considerar-se é que no conflito armado colombiano há uma participação
de teólogos e teólogas que ingressaram na luta armada seguindo o pensamento do Camilo
Torres. O ideário camilista poderia ser considerado também como parte da gama de praticas e
desenvolvimentos da Teologia da Libertação, entendendo que pelos contextos de cada lugar e
interpretações a Teologia da Libertação não é uniforme65. No ideário camilista há uma
proposta de Teologia da Libertação que esta mediada por uma teoria social e um método
marxista-leninista e uma mediação hermenêutica cristã baseada na bíblia.
Referências
AGUIRE, Indalecio L. Los grandes conflictos sociales y económicos de nuestra historia. Bogotá:
Imprenta Nacional de Colombia, 1964.
BOFF, Clodovis. Teologia e prática: Teologia do político e suas mediações. Petrópolis, Vozes,
1978.
BORDA, Orlando F. La violencia en Colombia: estudio de un proceso social, Tomo I. Bogotá:
Tercer Mundo, 1962.
__________________. Una sociología sentipensante para América latina. Bogotá: Siglo del hombre/
CLACSO, 2009.
CAICEIDO TURRIAGO, Jaime. Paz democrática y emancipación: Colombia en la hora
latinoamericana. Bogotá, Colombia: Izquierda Viva, 2007.
CAMPOS, Germán G. El padre Camilo Torres. México: Siglo XXI, 1968.
CLAUX CARRIQUIRY, Inés. La búsqueda, Del convento a la revolución armada. Colômbia:
Aguilar, 2011
CUELLAR, Edgar B. De Macondo a Mancuso: conflicto, violencia política y guerra psicológica en
Colombia. Bogotá: Cátedra Libre / Fundación América Nuestra, 2008.
DE LA ESPRIELLA, Ramiro. Las ideas políticas de Bolivar. Bogotá: Grijalbo, 1999.
Encuentro. Bogotá: Octubre-Diciembre, n. 100, 2003.
LIBANIO, Alfonso Murad. Panorama da teologia da América Latina nos últimos anos. Disponível em: <
http://servicioskoinonia.org/relat/229.htm >, Acesso em 8 Jul. 2011.
65
331
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
GONZALEZ G. Fernan E. Partidos políticos y poder eclesiástico. Bogotá: CINEP, 1977.
GUILLÉN, Carlos A. L. Guerra o paz en Colombia? Cincuenta años de un conflicto sin solución.
Bogotá: Izquierda viva, 2006.
GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação: perspectivas. São Paulo: Loyola, p. 14, 2000.
HENAO, Jesus M; ARRUBLA, Gerardo. Historia de Colombia. Bogotá: Voluntad, 1967.
JARAMILLO, Carlos Eduardo. El tratado del Wisconsin. Noviembre 21 de 1902. Credencial
Historia, Bogotá, n. 117, setiembre, 1999.
LEONGÓMEZ, Eduardo Pizarro. Uma democracia sitiada. Rio de Janeiro: Biblioteca do exercito,
2006.
LIBANIO, Alfonso Murad. Introdução á teologia: perfil, enfoques, tarefas. São Paulo: Loyola,
1996.
MARULANDA VELEZ, Manuel. Cuadernos de campaña. 1973.
LIBANIO, Alfonso Murad. Panorama da teologia da América Latina nos últimos anos.
Disponível em: < http://servicioskoinonia.org/relat/229.htm >, Acesso em 8 Jul. 2011.
ROUX, Rodolfo R. de. Iglesia y sociedad en Colombia: 9 de abril de 1948. Bogotá: 1981.
SANIN, Javier Augusto R. Contribuição para uma história do protestantismo na Colômbia: A
missão e a Igreja Presbiteriana (1856-1946). 1996. Trabalho de Tese para a obtenção do grau
de doutor em Ciências da Religião – Instituto Metodista de Ensino Superior, São Bernardo do
Campo, São Paulo, 1996
SEGUNDO, Juan Luís. Liberación de la teologia. Buenos Aires, Argentina: Carlos Lohlé, 1975.
SILVA GOTAY, Samuel. El pensamiento Cristiano revolucionário em América Latina y El Caribe.
San José, Puerto Rico: Cordillera/Sigueme, 1983.
TORRES, Camilo. Cristianismo e Revolução. São Paulo: Global, 1981
TOURAINE, Alain. Palavra e sangue. São Paulo: Unicamp, 1989.
VIGIL, José Maria. Bajar de La cruz a los pobres: cristologia de La liberación. ASSET/EATWOT,
2007.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
332
Luta de Classes e Contemporaneidade
Masculinidade e corporeidade a partir de uma perspectiva teológica
Ezequiel de Souza1
Resumo: A comunicação tem por objetivo analisar como a religião contribuiu para a formação
e reprodução de papéis de gênero, especialmente os papéis masculinos. Partindo de uma
perspectiva teológica, indaga-se por caminhos passíveis de serem trilhados na superação da
dominação masculina, sempre tendo em conta a participação ambígua que a religião tem tido
na construção dos papéis de gênero, nomeadamente os papéis masculinos. Argumenta-se a
respeito da necessidade de uma espiritualidade que tome a corporeidade como ponto de
partida para a expressão e vivência das masculinidades, não mais pautada na força e no poder,
mas na partilha e na solidariedade. Em um país em que a religião desempenha um importante
papel na conformação da sociedade, esta abordagem possui uma relevância tanto prática
quanto teórica.
Durante o I Congresso Latino-Americano de Gênero e Religião, o teólogo André
Musskopf afirmou que a masculinidade tem sido definida de forma negativa: ser homem é não
ser mulher, não ser homossexual.2 De certa forma, atualiza-se o paradoxo da definição
identitária a partir da negação da alteridade. De acordo com Pedro Paulo de Oliveira, a
sociedade tem a expectativa que um homem cumpra quatro pré-requisitos: “1) a necessidade
de ser diferente das mulheres; 2) a necessidade de ser superior aos demais; 3) a necessidade
de ser independente e auto-confiante; e 4) a necessidade de ser mais poderoso do que os
outros, através da violência, se necess|rio”.3
Muitas pesquisas têm chamado a atenç~o para a “crise da masculinidade”,
proclamando a emergência de um “novo homem”. No entanto, André Musskopf entende que é
preciso analisar criticamente essa afirmaç~o, pois ela cria uma dicotomia entre os “novos
homens”, capazes de expressar seus sentimentos, e os “homens tradicionais”, inexpressivos e
hipermasculinos.4 “O ‘novo homem’ surge no lugar do ‘antigo’, ou seja, um indivíduo que se
comportava dentro dos padrões esperados para um macho tradicional”.5 Como a referida
crise possui diferentes interpretações, variando de acordo com o grupo social, há a
1
2
3
4
5
Doutorando em teologia na Escola Superior de Teologia. Bolsista do CNPq. Esta comunicação é parte de minha
dissertação de mestrado.
MUSSKOPF, André S. Identidade masculina e corporeidade: uma abordagem queer. In: MUSSKOPF, André S.;
STRÖHER, Marga J. (Orgs.). Corporeidade, etnia e masculinidade: reflexões do I Congresso Latino-Americano de
Gênero e Religião. São Leopoldo: Sinodal, 2005. p. 80.
OLIVEIRA, Pedro P. Discursos sobre a masculinidade. Estudos Feministas, ano 6, n. 1, 1998. p. 99.
MUSSKOPF, 2005, p. 108.
RIBEIRO, Cláudia R.; SIQUEIRA, Vera H. F. O novo homem na mídia: ressignificações por homens docentes.
Estudos Feministas, Florianópolis, ano 15, n. 1, jan./abr. 2007, p. 217.
333
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
possibilidade de seu resultado ser o incremento do consumo ou a promoção de uma
identidade masculina libertadora.6 A experiência masculina tem sido abordada na teologia a
partir da corporeidade, do poder e da espiritualidade.
De acordo com Renate Gierus, os corpos possuem uma linguagem específica que, como
outras fontes, precisa ser interpretada. Os corpos são esculpidos a partir de suas experiências.
“O corpo constitui-se de muitas marcas e de muitos modelos. Ele carrega consigo a vida,
imprimindo na pele e nas entranhas os caminhos e descaminhos cotidianos”.7 Não é uma
tarefa fácil entender a linguagem do corpo, linguagem ambígua e permeada por relações de
poder.
Também a experiência masculina é uma experiência corpórea. “Somos corpo”, afirma
Daniel Sánchez Pereira.8 Não é possível falar em experiência masculina fora do corpo. A força
desta afirmação é dada pelo contexto da dualidade entre corpo e alma. Por muito tempo,
grupos cristãos sustentaram a dicotomia entre corpo e alma, atribuindo a esta as
propriedades mais elevadas e compreendendo aquele como o locus do pecado,9 um
instrumento a ser utilizado pela mente.10 Segundo o teólogo Jürgen Moltmann, essa dicotomia
não possui base bíblica, tendo sido desenvolvida no gnosticismo cristão e aprofundada pela
antropologia de Agostinho.11 Para Ernst Ksemann, ‘carne’ denota a condiç~o de criatura do
ser humano, n~o constituindo um sinônimo para ‘corpo’. No sentido atribuído pelo apóstolo
Paulo, ‘carne’ representa tudo aquilo que é efêmero, passageiro.12
Homens e mulheres aprendem a desempenhar papéis sociais desde tenra idade. O
aprendizado da masculinidade comporta uma dupla violência que, com o tempo, constitui
6
7
8
9
10
11
12
MUSSKOPF, 2005, p. 92.
GIERUS, Renate. CorpOralidade: História Oral e copo. In: In; STRÖHER, Marga J.; DEIFELT, Wanda;
MUSSKOPF, André S. (Orgs.). À flor da pele: ensaios sobre gênero e corporeidade. São Leopoldo: Sinodal/CEBI,
2004. p. 44.
SÁNCHEZ PEREIRA, Daniel. Além dos limites impostos pela cultura e pelos preconceitos: pistas para uma
releitura da Carta a Filêmon, Ápia e Arquipo na perspectiva das masculinidades. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 86,
n. 2, 2005, p. 37.
IRARRÁZAVAL, Diego. Corporeidad masculina. In: MUSSKOPF, André S.; STRÖHER, Marga J. (Orgs.).
Corporeidade, etnia e masculinidade: reflexões do I Congresso Latino-Americano de Gênero e Religião. São
Leopoldo: Sinodal, 2005. p. 137.
IRARRÁZAVAL, 2005, p. 140.
O apóstolo Paulo utilizava o conceito em três diferentes acepções: com ‘carne’, fazia referência ao mundo criado;
com ‘na carne’, fazia referência à condição transitória do mundo; e com ‘segundo a carne’, fazia referência ao tempo
desse mundo. MOLTMANN, Jürgen. O espírito da vida: uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 1998. p.
90-91.
KÄSEMANN, Ernst. A antropologia paulina. In: KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas paulinas. 2. ed. São Paulo:
Teológica/Paulus, 2003. p. 48.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
334
Luta de Classes e Contemporaneidade
marcas diacríticas inscritas nos corpos masculinos: a violência contra si e a violência contra a
alteridade. A corporeidade masculina tradicional tem sido vinculada à sexualidade, gerando
uma limitação das potencialidades do próprio corpo.13 Através da reprodução do ethos
masculino, a corporeidade continua mantendo uma vinculação estreita com a sexualidade,
entendida como ato de atualização da masculinidade porque a dominação se manifesta
inclusive na divisão do trabalho sexual. A partir da oposição alto vs. baixo, a posição sexual
considerada ‘natural’ é aquela em que o homem se encontra por cima da mulher.
Socialmente diferenciadas, a sexualidade feminina tem sido orientada para a
intimidade, enquanto a sexualidade masculina tem sido compartimentada e orientada para a
penetração,14 em uma atitude falocêntrica. O pênis não é apenas uma parte do corpo
masculino: ele deve receber um nome próprio que o diferencie dos demais, pois simboliza a
masculinidade em si. Penetrando, prova-se para si que não se é uma mulher ou um
homossexual.
O uso legítimo do corpo masculino exige dos homens que assumam a posição ativa na
relação sexual. Em última análise, o que importa é o ato da penetração, sendo relativizado o
parceiro. Quando um homem é penetrado por outro, ele é estigmatizado por usar seu corpo de
forma desonrosa. Ao fazer isso, abdicou de todo o capital de masculinidade de que dispunha.15
Se recordarmos o caráter nobiliárquico da masculinidade, poderemos inferir que em uma
visão tradicional o homem que sofre a penetração macula sua identidade de uma forma
permanente. Por outro lado, quando um homem penetra outro, seu capital de masculinidade
não é diminuído, ele não é considerado um homossexual.16 A expectativa social é que o
homem seja ativo na relação sexual e o fato de diminuir a masculinidade de outro acarreta,
pelo menos para seu ego, uma satisfação.
Adilson Schultz chama a atenção para um detalhe pouco explorado nas análises da
relação existente entre masculinidade e corporeidade: os homens conhecem e falam pouco
13
14
15
16
MUSSKOPF, 2005, p. 85.
SOUZA, Ezequiel de. O papel da teologia na superação da dominação masculina. In: SCHAPER, Valério G.;
OLIVEIRA, Kathlen L.; REBLIN, Iuri A. (Orgs.). A teologia contemporânea na América Latina e no Caribe. São
Leopoldo: OIKOS, 2008. p. 274.
TORRÃO FILHO, Amílcar. Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. Cadernos Pagu, n.
24, jan./jun. 2005, p. 143.
TORRÃO FILHO, 2005, p. 2005.
335
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
sobre o próprio corpo. Quando falam de corporeidade, evocam corpos alheios.17 Não deixa de
ser surpreendente, uma vez que boa parte das conversas entre homens gira ao redor da
sexualidade. As conversas masculinas em ambientes de sociabilidade são construídas sobre
temáticas que, simultaneamente, envolvam sem comprometer. Seria desinteressante discutir
algo que pusesse em xeque o capital de masculinidade. Adilson Schultz defende a criação de
grupos que discutam a masculinidade, entendendo que os homens estão dispostos a superar
seu mutismo.18 Ao mesmo tempo em que há benefícios advindos da condição masculina, o
ônus também é grande. A criação de espaços para a discussão e problematização da
masculinidade proporcionaria a elaboração de alternativas aos modelos vigentes.
A Bíblia nos oferece várias narrativas que podem problematizar a experiência
masculina com o corpo. Com a aplicação de hermenêuticas de cunho não-fundamentalistas, há
a possibilidade de interpretações plausíveis para a construção de novos modelos de
masculinidade. A empreitada é legítima, tendo em vista que alguns modelos foram
sancionados pela mensagem bíblica. Adilson Schultz apresenta dezoito modelos típico-ideais
de masculinidade construídos a partir de relatos bíblicos. Apesar do caráter ficcional, o
exercício demonstra a pluralidade de perspectivas presentes na Bíblia.19
Na narrativa de Gênesis 38, André Musskopf e Yoimel González Hernández identificam
a presença de modelos alternativos de masculinidade, definíveis a partir da corporeidade. Há
uma expectativa que paira sobre os homens em sociedades patriarcais: a aptidão para gerar
descendentes, de preferência filhos homens. Diante da morte de Er, o primogênito de Judá,
antes de ter gerado um filho, cabe a seu irmão a obrigação de dar continuidade ao nome do
falecido, de acordo com a lei do levirato. Onã se recusa a desempenhar o papel masculino que
lhe é imputado:
Ao evitar gerar descendência para seu irmão, Onã entra em contradição com três
posições diferentes: o seu pai, a legislação social da época e Tamar. Para esta, ter filhos
garantia uma posição mais vantajosa que a condição de viúva sem filhos. Afinal, a
maternidade, na cultura patriarcal, dá status à mulher. Estas três posições
17
18
19
SCHULTZ, Adilson. Isto é o meu corpo – e é corpo de homem: discursos sobre masculinidade na Bíblia, na
literatura e em grupos de homens. In; STRÖHER, Marga J.; DEIFELT, Wanda; MUSSKOPF, André S. (Orgs.). À
flor da pele: ensaios sobre gênero e corporeidade. São Leopoldo: Sinodal/CEBI, 2004. p. 172.
SCHULTZ, 2004, p. 189.
SCHULTZ, 2004, p. 177-182.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
336
Luta de Classes e Contemporaneidade
representam uma pressão real diante da qual Onã reage corporalmente, através do
exercício da sua sexualidade.20
A desobediência de Onã custa-lhe a vida. A narrativa de Gênesis 38 apresenta
claramente a disputa de modelos alternativos de masculinidade, tendo como desfecho a
defesa da masculinidade de Jud|: “O corpo de Jud|, apesar da sua idade, é um corpo masculino
portador de plenas faculdades procriadoras e, portanto, símbolo indiscutível da sexualidade
masculina”.21 Enquanto isto, os corpos dos filhos de Judá são estigmatizados como fracos e
incapazes de cumprir as exigências patriarcais. O aprendizado da masculinidade se dá de
forma explícita e implícita nesta narrativa: ser homem é ser viril, apesar da idade avançada;
quem não possui a virilidade, ainda que jovem, não merece ser chamado de homem. A morte
de Er e Onã simboliza a morte social, o não-reconhecimento da masculinidade àqueles
homens cujos corpos não cumprirem as exigências sociais.
Os corpos masculinos são treinados para não sentir dor, ou melhor, para não
demonstrar a dor que deveras sentem. Não é possível continuarmos pensando que os homens
são seres insensíveis. O isolamento e a solidão a que são submetidos forma sua identidade e
molda seus corpos para que sofram calados. O desafio que se apresenta é a valorização da
corporeidade masculina sem a necessidade de manter a dicotomia corpo vs. espírito, sexo vs.
amor.22
Referências
GIERUS, Renate. CorpOralidade: História Oral e copo. In: In; STRÖHER, Marga J.; DEIFELT,
Wanda; MUSSKOPF, André S. (Orgs.). À flor da pele: ensaios sobre gênero e corporeidade. São
Leopoldo: Sinodal/CEBI, 2004.
20
21
22
MUSSKOPF, André S.; GONZÁLEZ HERNÁNDEZ, Yoimel. Homens e ratos! Desconstruindo o modelo
hegemônico de masculinidade e visibilizando modelos alternativos construídos nos corpos de homens em Gênesis
38. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 86, n. 2, 2005, p. 62.
MUSSKOPF; GONZÁLEZ HERNÁNDEZ, 2005, p. 63.
IRARRÁZAVAL, Diego. Justicia de género e identidad masculina. In: SOTER (Org.). Gênero e teologia:
interpelações e perspectivas. Belo Horizonte: SOTER; São Paulo: Paulinas/Loyola, 2003. p. 220.
337
II Simpósio Nacional Marxismo Libertário
IRARRÁZAVAL, Diego. Corporeidad masculina. In: MUSSKOPF, André S.; STRÖHER, Marga J.
(Orgs.). Corporeidade, etnia e masculinidade: reflexões do I Congresso Latino-Americano de
Gênero e Religião. São Leopoldo: Sinodal, 2005.
IRARRÁZAVAL, Diego. Justicia de género e identidad masculina. In: SOTER (Org.). Gênero e
teologia: interpelações e perspectivas. Belo Horizonte: SOTER; São Paulo: Paulinas/Loyola,
2003.
KÄSEMANN, Ernst. A antropologia paulina. In: KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas paulinas. 2. ed.
São Paulo: Teológica/Paulus, 2003.
MOLTMANN, Jürgen. O espírito da vida: uma pneumatologia integral. Petrópolis: Vozes, 1998.
MUSSKOPF, André S. Identidade masculina e corporeidade: uma abordagem queer. In:
MUSSKOPF, André S.; STRÖHER, Marga J. (Orgs.). Corporeidade, etnia e masculinidade:
reflexões do I Congresso Latino-Americano de Gênero e Religião. São Leopoldo: Sinodal, 2005.
MUSSKOPF, André S.; GONZÁLEZ HERNÁNDEZ, Yoimel. Homens e ratos! Desconstruindo o
modelo hegemônico de masculinidade e visibilizando modelos alternativos construídos nos
corpos de homens em Gênesis 38. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 86, n. 2, 2005.
OLIVEIRA, Pedro P. Discursos sobre a masculinidade. Estudos Feministas, ano 6, n. 1, 1998.
RIBEIRO, Cláudia R.; SIQUEIRA, Vera H. F. O novo homem na mídia: ressignificações por
homens docentes. Estudos Feministas, Florianópolis, ano 15, n. 1, jan./abr. 2007.
SÁNCHEZ PEREIRA, Daniel. Além dos limites impostos pela cultura e pelos preconceitos:
pistas para uma releitura da Carta a Filêmon, Ápia e Arquipo na perspectiva das
masculinidades. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 86, n. 2, 2005
SCHULTZ, Adilson. Isto é o meu corpo – e é corpo de homem: discursos sobre masculinidade
na Bíblia, na literatura e em grupos de homens. In; STRÖHER, Marga J.; DEIFELT, Wanda;
MUSSKOPF, André S. (Orgs.). À flor da pele: ensaios sobre gênero e corporeidade. São
Leopoldo: Sinodal/CEBI, 2004.
SOUZA, Ezequiel de. O papel da teologia na superação da dominação masculina. In: SCHAPER,
Valério G.; OLIVEIRA, Kathlen L.; REBLIN, Iuri A. (Orgs.). A teologia contemporânea na América
Latina e no Caribe. São Leopoldo: OIKOS, 2008.
TORRÃO FILHO, Amílcar. Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam.
Cadernos Pagu, n. 24, jan./jun. 2005.
De 9 a 11 de maio de 2012
Universidade Federal de Goiás - Campus II
338
Luta de Classes e Contemporaneidade
NPM
Núcleo de Pesquisa Marxista
339