Mudanças nas normas para a pronúncia do português brasileiro

Transcrição

Mudanças nas normas para a pronúncia do português brasileiro
O processo de mudanças nas ormas para a boa pronúncia da língua portuguesa
no canto e no teatro no Brasil entre 1938, 1958 e 2007
Martha Herr
EVPM, FUNDUNESP, Universidade Estadual Paulista
Resumo
Durante os últimos 70 anos, houve três tentativas de definir as Normas para a pronúncia do canto erudito
no Brasil. A primeira foi como resultado do I Congresso da Língua Nacional Cantada (São Paulo, 1937),
a segunda no Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro (Salvador, 1956) e, em 2005, o
IV Encontro Brasileiro de Canto (São Paulo). As três versões de Normas resultantes destes encontros têm
muito em comum, mas mostram as diferenças da língua falada em cada época. Evidentemente, as Normas
de 2005, já publicadas em português e inglês, procuram mostrar a língua como falada atualmente na
maior parte do Brasil (com as necessárias adequações a um padrão estabelecido para o canto erudito). A
procura foi a criação de Normas para um português brasileiro “neutro”, sem tendências regionais ou
internacionalismos: um português consideravelmente brasileiro e nacional. Procuraremos mostrar o
processo das mudanças nas Normas desde 1937 até hoje, com ênfase no IV Encontro Brasileiro de Canto,
de 2005, que definiu as Normas atuais. As Normas de 1937 (publicadas em 1938) não se utilizaram de
simbologia fonética criteriosa e, por esta razão, deixam de ser claras em certas situações. As de 1956
(publicadas em 1958) utilizaram uma simbologia fonética pouco criteriosa e clara. As normas de 2005
(publicadas em 2008), porém, utilizaram o alfabeto fonético internacional (IPA), numa tentativa de deixar
mais clara as propostas estabelecidas como resultado do Encontro. Finalmente, apresentaremos os
critérios e resultados para o processo de escolha das Normas de 2005, conforme as atividades em plenário
democraticamente realizadas com a participação de cantores, professores de canto, regentes,
compositores, fonoaudiologistas e outros interessados, representando 17 estados brasileiros e o exterior, e
subseqüentemente, os refinamentos dos resultados em grupos de trabalho que também contaram com a
participação de lingüistas.
Quando, em 1938, foram publicadas as Normas para a “bôa pronúncia da língua
nacional no canto erudito”, resultado das reuniões do Primeiro Congresso da Língua
Nacional Cantada (realizado de 7 a 14 de julho de 1937), foi divulgada a intenção dos
participantes deste primeiro Congresso de realizar um segundo Congresso em 1942 “...
afim de serem homologadas oficialmente as decisões de agora e corrigidas as que a
maior experiência do tempo assim aconselhar” (NORMAS, 1938, p. 2). O texto das
Normas fecha com a seguinte advertência:
A fixação destas normas não implica de forma alguma a fixação definitiva e
irrecorrível da fonética da língua-padrão. Por isso mesmo foram elas
chamadas“normas”e não “leis”. Casos há que, embora definidos pela atenção aguda
e cautelosa de filólogos eminentes, carecem ainda de comprovação experimental.
Outros casos há também, dependentes de mais completa generalização, não só
porque as línguas vivas são manifestações humanas de perpétua evolução, como por
se achar ainda a língua nacional em fase incontestável de adolescência e
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desenvolvimento. Verificações experimentais ulteriores bem como fixações novas
que porventura apareçam, deverão transformar necessariamente as normas que com
elas colidam (NORMAS, 1938, p. 35).
Ainda fizeram questão de reconhecer os “direitos de vida e movimentos” da
língua nacional.
A grande preocupação do Primeiro Congresso foi o estabelecimento de uma
língua-padrão, “animado pelo desejo de bem servir à causa da nacionalidade brasileira
nas artes da linguagem e do canto” (NORMAS, 1938, p. 6). O sonho de Mário de
Andrade de unificar o Brasil através da língua e das manifestações culturais deixou as
Normas com um forte tom político/patriótico. A filosofia estado-novista já dominava o
pensamento da época e as preocupações eram muito mais que unicamente artísticas.
Por razões também políticas, um segundo Congresso nunca aconteceu. Porém,
em 1956 realizou-se o Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro em
Salvador- Bahia. Nos Anais, publicados em 1958, encontram-se as Normas fixadas pelo
Congresso. Em fevereiro de 2005, a ABC (Associação Brasileira de Canto) promoveu o
IV Encontro Brasileiro de Canto em São Paulo com a intenção de revisar as Normas do
Português Brasileiro no canto.
Em 1956, não houve a mesma preocupação com uma língua-padrão, mas houve
um reconhecimento de uma tendência progressiva a uma maior unidade na fala. No seu
discurso de instalação, o Prof. Celso da Cunha, Presidente Executivo do Congresso,
comentou que através da rádio, da televisão e do cinema, entre outros meios (sem
mencionar o canto), o padrão culto terá uma tendência a se propagar nacionalmente.
Ele sugere a possibilidade de adotar “... uma média de falar equidistante de todos
os padrões básicos regionais”, como a pronúncia neutralizada do inglês utilizado nos
Estados Unidos e outros países da Europa por cantores, atores e telejornalistas em rede
nacional.
A preocupação principal do Encontro de 2005 foi mais prática que filosófica.
Certamente, as necessidades agora são diferentes dos anos de 1937 ou de 1956. Houve a
participação de lingüistas no Encontro e do grupo de trabalho que preparou a sugestão
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inicial das Normas que foram submetidas à votação durante o Encontro. Entretanto, em
contraste com o Congresso de 1937, houve uma participação maciça de cantores e de
professores de canto no Encontro de 2005, e estabeleceu-se como prioridade a adoção
de critérios com o objetivo de tornar a utilização das Normas de maneira prática e de
fácil entendimento. Reconhecendo-se as divergências nas pronúncias regionais como
uma constatação da riqueza e da diversidade do português brasileiro, o Encontro de
2005 procurou encontrar aquela “...média de falar equidistante de todos os padrões
básicos regionais” que Celso da Cunha tinha sugerido em 1956. Tentando-se evitar
“bairrismos” e admitindo-se a necessidade de se ter pelo menos uma pronúncia básica
do português brasileiro para que os estrangeiros possam apreciar e estudar o repertório
brasileiro, os participantes votaram uma tabela fonética que visa a adoção de um
português “neutro” sem regionalismos.
Nossa intenção aqui é de comparar e de contrastar as Normas dos três eventos.
Se poucos cantores conhecem as Normas do Congresso da Língua Cantada,
principalmente, pela inclusão destas em versão reduzida por Vasco Mariz nos seus
livros sobre a canção de câmara brasileira, um número ainda menor deve ter lido as
Normas do Congresso da Língua Falada no Teatro. As Normas de 2007 têm sido o
objeto de estudo em dois encontros da ANPPOM (Associação Nacional de Pesquisa e
Pós-Graduação em Música) desde sua formulação inicial em 2005. Durante o ANPPOM
de 2006, o grupo de trabalho fez uma nova versão da tabela fonética com o auxílio da
lingüista Thäis Cristófo Silva da UFMG. As normas foram publicados em português na
revista
OPUS
da
ANPPOM
(www.anppom.com.br/opus/opus13/202/02-
Kayama_et_al.htm) com o título “PB cantado: normas para a pronúncia do português
brasileiro no canto erudito”. Foram publicados em tradução para inglês no Journal of
Singing, (Nov.-Dec., 2008, Vol. 65 No. 2, pp 195-211) com o título “Norms for Lyric
Diction of Brazilian Portuguese”. Ambos destes artigos estão disponíveis, junto com
uma
tradução
para
espanhol
da
tabela
fonética,
no
site
www.ia.unesp.br/gp/expressao_vocal Porém estão sempre abertas à discussão e a
sugestões.
Os documentos antigos não utilizam o IPA (International Phonetic Alphabet –
Alfabeto Fontético Internacional), que forma a base das normas de 2007. Nas Normas
do Congresso de 1937, a natureza das vogais é definida por uma palavra utilizada, como
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exemplo:
A – oral aberto (má);
A – oral surdo (da);
A – nasal fechado (rã).
Na verdade, isso dificultaria o entendimento de qualquer pessoa não-brasileira e
poderia criar confusão entre os brasileiros que, sendo provenientes de regiões distintas
do país, pronunciam os fonemas de maneira diferente.
As consoantes são definidas com o termo lingüístico seguido por uma palavra
como nos exemplos:
B – oclusiva bilabial sonora (bom);
B – fricativa bilabial sonora (aba, albor).
Os ditongos não são alistados de maneira específica, mas são dedicadas 12
páginas à discussão de ditongos e hiatos, incluindo a criação dos mesmos pela ligação
de palavras. Grande parte destas doze páginas é dedicada a exemplos musicais na
tentativa de definir como será dividido o valor de uma nota (ou notas) para acomodar
ditongos e tritongos musicalmente, e continua válida até hoje. Sobre a ligação de
palavras e tritongos, os autores das Normas admitiram a impossibilidade de fixar
normas para a solução musical de ligação destes casos. “Cada frase tem seu ritmo e
psicologia próprios, impossíveis de reduzir a casos gerais. O problema dependerá, pois,
quase exclusivamente da inteligência e da expressividade tanto do compositor como do
cantor.” (NORMAS, 1938, p. 28) Como poderia se esperar, as Normas da Língua
Cantada manifestam grande preocupação com os problemas criados pela união da
linguagem com a voz cantada, e continua sendo válida a maioria das observações,
merecendo estudo em um outro artigo.
As Normas de 1958 utilizam como base fonética a “...convenção a ser seguida
pelo Centro de Estudos Filológicos e pelo Boletim de Filologia, e suas publicações, de
Lisboa.”(ANAIS, 1958, p. 478). Nas primeiras páginas em que é definido o alfabeto
fonético adotado, tanto para as vogais quanto para as consoantes, o símbolo fonético é
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definido com o termo lingüístico e depois seguido por palavras do português usual de
Portugal e o que é falado no Brasil. São considerados alguns regionalismos brasileiros,
como por exemplo:“português do Rio e de extensas zonas do Brasil”.
O novo documento resultante do Encontro de 2005 é baseado no IPA. A maioria
dos cantores estrangeiros recebem instrução no IPA como ferramenta para o estudo de
línguas para o canto e esta prática está ficando mais comum nas universidades
brasileiras. Na sua primeira versão, resultado do trabalho desenvolvido no 4º Encontro
Brasileiro de Canto, a tabela fonética utilizou algumas representações de fonemas
essencialmente diferente daquelas adotadas pela Academia Brasileira de Letras. Porém,
a versão atual, devido ao trabalho em parceria com a lingüista já nomeada, encontra-se
no corrente atualmente aceito da fonética para o português brasileiro. Isso sem perder a
clareza procurada no Encontro.
Nos primeiros dois Congressos, foi reconhecido que na interpretação de textos
com conteúdo e colorido obviamente regional, os cantores e atores deveriam pronunciar
o texto com “a devida adequação regional e social” (ANAIS, 1958, p. 479).
A intenção agora é que as Normas de 2007 sirvam como uma “pronúncia neutra”
do português brasileiro, e reconhece que ainda há grande necessidade de estudo sobre as
manifestações regionais e folclóricas. Acredita ainda, que a maioria dos cantores
brasileiros adotará, aos poucos, esta pronúncia não regional, com exceção dos textos
com conteúdo comprovadamente regional. Já há uma dissertação de mestrado que
estuda a fonética manauense para o canto (Tais Daniela Leite Vieira).
No caso de uma música com teor regional, é de se esperar que os cantores da
região em que foi composta ou o próprio compositor cantem com o seu“sotaque” de
costume. Porém, será difícil para os cantores de outras regiões imitar tal “sotaque” sem
parecer caricaturizado ou falso. Daí a importância do português brasileiro “neutro” –
reconhecidamente brasileiro e nacional, não importando a procedência do cantor. Esta
será a próxima etapa de discussão para futuras modificações nas Normas. Carecemos
também de estudos históricos da pronúncia do português no Brasil. (A mestranda
Juliana Starling da Unesp atualmente está estudando profundamente as Normas de 1938
com a idéia de ter nelas uma primeira versão “histórica” da pronúncia do português
brasileiro).
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O Congresso de 1937 resolveu considerar, com certas modificações que serão
discutidas mais à frente, a pronúncia carioca de então, como a mais “perfeita” do país e
de propô-la como língua-padrão (NORMAS, 1938, p. 7). As Normas do Congresso de
1956 não adotaram nenhuma pronúncia específica. Nas comunicações realizadas
durante este Congresso, visando à determinação da língua padrão e, tendo sido cada
uma delas seguida por um parecer de outro congressista, houve uma grande tendência
da maioria em respeitar as Normas do Congresso da Língua Nacional Cantada.
Entretanto, houve congressistas que apoiavam a adoção de uma pronúncia paulista. No
seu parecer sobre a comunicação “Padronização da Prosódia Brasileira” de Ruy
Affonso, Maria José de Carvalho chama a atenção para o fato de que a fala carioca
“...expurgada de seus vícios e cacoetes e, portanto de suas características, resulta na
prosódia paulista culta, também expurgada” (ANAIS, 1958, p. 148). Affonso sugere
uma língua-padrão que considere a média entre as prosódias carioca e paulista. De certa
forma, foi esta que foi adotada. As Normas que seguem deixam em aberto certas
pronúncias, concedendo o direito de escolha a uma ou a outra. Explica que todas as
transcrições fonéticas serão representadas entre colchetes mas, dentro dos colchetes,
será mostrada entre parênteses a variante admitida, “sem caráter preferencial” (grifo
nosso) para o fonema que anteceder os parênteses. Apresenta como exemplo a palavra
“estorvar”, [(e)(s) to(r) va(r)] podendo ser pronunciada de oito maneiras diferentes:
[εstorvar], [Istorvar], [εʃtorvar], [Iʃtorvar], [εstoxvax], [Ιstoxvax], [ε∫toxvax] ou
[Iʃtoxvax]. Devido ao amplo leque de variações, um indivíduo que não fosse brasileiro
teria sérias dificuldades em entender as diferenças. A este respeito, o Congresso decidiu
deixar uma livre opção entre variantes, sendo que, ao se adotar uma delas, que seja
utilizada de maneira consistente.
Ainda hoje, grande parte das Normas do I Congresso da Língua Nacional
Cantada é aplicada sistematicamente por cantores e atores. Há, porém, certos fonemas
que apresentaram problemas em 1937 e 1956, e que também não foram de fácil solução
em 2005. Vamos olhar agora a visão dos três congressos sobre alguns destes fonemas.
Letra E:
As duas Normas antigas levam em consideração a possibilidade de um e surdo
intermediário entre [e] e [i] (1938), ou reduzido em posição pretônica (1958). Por
exemplo: pedir [pedir] ou [pIdir]. Porém, nas Normas de Teatro esta redução
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corresponde “... a uma gradação de freqüência de meio cultural, de nível social e/ou de
tensão psíquica do indivíduo falante”(ANAIS, 1958, p. 482). Dá para entender que, fora
casos excepcionais, não é desejável fazer esta redução. É aceita em ambos os
documentos a redução do e final para [I], como, por exemplo, nas palavras “felicidade”,
“e”, “se”, “que”. Em 2005, foi aprovado a redução do e em posição pretônica (pIdir) e
do e reduzido no final de palavra (disse, ponte).
As Normas de 1938 sugerem o uso de três vogais de compromisso: uma mais
próxima do [e] que do [i], uma eqüidistante entre os dois, e uma terceira mais próxima
do [i] que do [e]. Incluem um quadro definindo qual das três deveria ser utilizada em
situações musicais específicas (NORMAS, 1938, p. 15). Louvável a aplicação desta
idéia ao canto, mas muito rebuscada para definir uma utilização prática.
Letra O:
É aceita em todos os documentos a redução de o final para o som [U], como na
palavra “estudo”. As Normas de Teatro aceitam a redução do [o] para [U] no mesmo
caso de diferença cultural, social ou psíquica como observado no parágrafo anterior
(sempre em posição prétônica), por exemplo “cozinha”como [kUziɲa]. As Normas para
o canto deixam de ditar regras neste caso, mas aceitam esta pronúncia como uma
tendência, sem fixar regras. As Normas de 1938 também admitem esta vogal de
compromisso entre [o] e [u] para qualquer sílaba póstônica (época = [εpUka]) e nos
artigos e pronomes (os, do, dos, por, vos, etc). As Normas de 2005 reconhecem a
pronúncia reduzida da letra o como normal nestes mesmos casos.
Letras D e T:
“Conserva-se sempre íntegra” nas Normas fixadas em 1937. As Normas de 1958
admitem a palatalização da consoante d antes das letras e ou i ou, seja, antes do som do
e reduzida [I] ou do semivogal [j] (caracterizada pela letra i) passando a ter a pronúncia
[dʒI] em palavras como “dia”, “sede” e “direita”. Porém, as Normas de 1958 ditaram
que este som deve ser evitado na pronúncia para o teatro. Em ambos os casos, os
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mesmos argumentos são utilizado para a letra t, não admitindo no canto ou no teatro a
pronúncia [t∫I] em palavras como “teatro”, “tio” e “sete”. No Encontro de 2005 adotouse a pronúncia palatal-alveolar de d e t antes de i ou antes de e final, sendo
recomendado que estes fonemas sejam executados de forma suave (diva, cidade, tio,
partida). Porém, o d e t antes do e tônico permanecem íntegros (devido, tela).
Letra L:
As Normas de 1938 não admitem a redução da letra l para [u] em posição final
como na palavra ‘animal’, chamando esta tendência de “inculta”. Porém, as Normas de
1958 admitam o l lateral linguoalveolar sonoro relaxado no caso de palavras como
“alto”, “mal”, “Brasil”, “calmo” e “sal”, mostrando uma mudança ocorrida nos quase
vinte anos que separam os dois documentos. As Normas de 2007 reconhecem a
ditongação do l que se torna [U] em final de sílaba (mel, salgado).
Letra R:
Nas Normas de 1938 não é admitida a pronúncia vibrante dorsovelar múltipla
para a letra r (o r carioca). O r soa brando (um tepe) entre vogais ou quando final
seguido de palavra iniciada por vogal (“levar amanhã”). Quando final ou anterior a
outra consoante no interior da palavra (“esquerda”) deve ser rolado com bastante leveza
– “aproximadamente nulo” (NORMAS, 1938, p. 32). Deve-se evitar a tendência de rolar
excessivamente o r para que não se incorra em uma pronúncia estrangeirada. Não é
mencionada a pronúncia do r inicial, mas deve-se aplicar a mesma advertência para o r
final.
Como já visto, as Normas de 1958 permitem tanto a pronúncia carioca do r
quanto a pronúncia sugerida nas Normas de 1938. Porém, na página 491, é vetado o
som do vibrante dorso-uvular [R] múltipla para uso no teatro. As Normas de Teatro
permitem o som vibrante dorsovelar múltipla [x] para r inicial em palavras “rato”,
“riso”, “rosto” e “régua”. Em ambos documentos o r soa brando entre vogais ou quando
no final seguido de palavra iniciada por vogal.
Depois de horas de discussão acalorada, o Encontro de 2005 votou as seguintes
regras para a letra r: uma vibração (flepe) simples para encontros consonantais e
posição intervocálica (arara, Brasil); levemente vibrado para final de sílaba e de palavra
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(morte, amor). Na posição inicial e no dígrafo rr, o cantor deve escolher entre o
fricativo velar [x] (rua, carro) ou o alveolar vibrante [r] sem exagero. Uma vez
escolhida, o cantor deverá manter a consistência de pronúncia em toda a canção. Ainda
haverá muita discussão sobre a representação fonética da letra r.
Letra S:
O s chiado é o “cacoete” carioca mais fortemente vetado pelo Congresso de
1937. É vetada a palatização do s quando cantado em palavras como “esquerda”, “as”,
“pragas” e “poste”. Quando a letra s encontra-se com consoantes sonoras ou em posição
final seguida por outra palavra que começa com vogal, o s soa como [z]: i.e. nunca mais
amei, outras batas.
O documento de 1958 fala de dois regimes para a pronúncia do s e z gráficos
finais de sílabas ou palavras: o primeiro é um regime que pode dar a impressão de
excessivo “sibilamento”enquanto que o segundo pode provocar a impressão de
excessivo “chiamento”. Seguem-se quatro páginas de exposição das regras e de
exemplos dos dois regimes. Não há coincidência entre eles, como no caso do r (ANAIS,
1958, pp. 492-495). Em 2005 foi praticamente unânime o veto à palatalização da letra s.
Houve somente um voto a favor. Não existe opção de escolha como para o teatro em
1958.
Há mais um caso de grande desacordo entre os dois documentos: seqüências
consonantais em que há tendência de interpor um [i] como advogado, apto, adjunto,
recepção, rítmico, interrupta, etc. (epêntese). A interposição do som [i] é vetada no
teatro em que as seqüências devem ser pronunciadas com “os valores fonéticos próprios
das suas consoantes” (ANAIS, 1958, p. 491). Porém, as Normas de 1938 oferecem
condição suficiente para que se solucione a problemática musical da interposição do [i]
entre as consoantes de encontro consonantal, permitindo a epêntese (NORMAS, 1938,
pp. 33-35). Este assunto não foi discutido no Encontro de 2005, mas muitos
compositores têm admitido valores musicais para as sílabas criadas pela interposição do
[i].
De resto, há grande acordo entre os três documentos. As Normas para o Teatro
são bem amplas e foram organizadas de uma maneira mais fácil de se entender, embora
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tivesem tido as Normas para o Canto como premissa. Num esforço atual de se criar
novas Normas, levando-se em consideração as modificações na maneira brasileira de
falar nestes últimos 50 anos, não poderia ser ignorado o trabalho já consagrado dos dois
congressos anteriores. Os documentos de 1938 e 1958 serviram como referência
relevante para a criação do novo documento, elaborado em 2007. As sugestões para a
solução dos problemas vocais e musicais encontrados pelos cantores são amplamente
expostas nas Normas de 1938, e continuam em vigor.
O português é uma língua viva, em mutação, fato constatado nos três congressos.
Certamente, as Normas atuais foram tratadas com a mesma dedicação e amor pela
língua que foi demonstrado pelos participantes dos Congressos de 1937 e 1956 e do
Encontro de 2005. Com sua publicação, virão a ser chamados as Normas de 2007,
exatos 70 anos após as primeiras.
Bibliografia
ANAIS do Primeiro Congresso Brasileiro de Língua Falada no Teatro. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Cultura, 1958.
HERR, M., KAYAMA, A., MATTOS, W. “Norms for Lyric Diction of Brazilian
Portuguese”. Journal of Singing, Nov.-Dec., 2008, Vol. 65 No. 2, pp 195-211.
KAYAMA, A., et. al. “PB cantado: normas para a pronúncia do português brasileiro no
canto erudito”. OPUS, No. 13.2, Dezembro, 2007.
NORMAS para a boa pronúncia da Língua Nacional no Canto Erudito. Revista
Brasileira de Música: Escola Nacional de Música da Universidade do Brasil, Rio de
Janeiro, v.5, 1º fascículo, p. 1-35, 1938.
RELATÓRIO Geral: A votação dos fonemas do português brasileiro no Canto Erudito
(Assembléia realizada no IV Encontro Brasileiro de Canto), in Boletim da Associação
Brasileira da Canto, N. 28 – Ano VII – out/nov 2005. (uma versão um pouco mais
detalhada deste artigo, com minha autoria foi publicado na revista PerMusi:
http://www.musica.ufmg.br/permusi/port/numeros/15/index.htm
com o título
“Mudanças nas Normas para a oba pronúncia da língua portuguesa no canto e no teatro
no Brasil: 1938, 1956 e 2005”).
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ota biográfica
Soprano norte-americana, graduada e mestre em Master Fine Arts pela State University of New York at
Buffalo e doutora em Música pela Michigan State University com o título de “Doctor of Musical Arts in
Voice Performance.” Professora Livre Docente do Instituo de Artes da Universidade Estadual Paulista
(UNESP) é detentora de inúmeros prêmios internacionais e nacionais como: Prêmio “Cantora do Ano” da
Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA); Prêmio Carlos Gomes da Secretaria de Cultura do
Estado de São Paulo. Na Unesp, ela é professora de Canto na graduação e pós-graduação, diretor do
grupo de pesquisa “Expressão Vocal na Performance Musical”. Em 2005, organizou of IVº Encontro
Brasileiro de Canto, que resultou na primeira versão das Normas para a pronúncia do português brasileiro
no canto erudito. Estas normas foram publicadas em português em 2007 e no Journal of Singing em 2008.
Ela tem participado de concertos, óperas e gravações no Brasil, Estados Unidos e Europa, como solista e
como integrante de vários conjuntos de música brasileira e música contemporânea, como o Rio Cello
Ensemble, Mestres Cantores de São Paulo e Grupo Novo Horizonte de São Paulo. É professora de Canto
do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Atuou como regente do Coral do
Estado de São Paulo e do Coral da Cultura Inglesa, de São Paulo. Em 2005, ela participou na primeira
montagem do Anel dos %ibelungos de Wagner durante o IX Festival Amazonas de Ópera. Sua intensa
atividade como intérprete de música do século XX está evidenciada em “premières” de mais de 100
obras, incluindo 5 óperas. Em 2006, fez o papel título na estréia da ópera Olga de Jorge Antunes. Suas
gravações incluem um CD de canções de Virgil Thomson, Europera V de John Cage (que ela estreiou),
várias gravações de música brasileira e em diversas redes de rádio e televisão no Brasil e na Europa. Em
1997 o Rio Cello Ensemble lançou um CD com sua participação como solista da “Bachiana Brasileira nº
5” de Heitor Villa-Lobos. Sua participação no Simpósio recebeu apoio financeiro da FUNDUNESP.
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