Black Rocket 03 - Revista Black Rocket
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Black Rocket 03 - Revista Black Rocket
Perdidos no continuum interdimensional por quase um ano, a tripulação da Black Rocket finalmente conseguiu encontrar as coordenadas de regresso para a nossa realidade. E isso a tempo de preparar esta edição natalina para você! São seis contos ambientados em épocas diferentes do Natal: dois no passado, dois no presente e dois no futuro. Embarque mais uma vez na Black Rocket, tenha uma ótima leitura e um Feliz Natal! 2O MERCENÁRIO E O ABISMO Revista de Ficção Científica Número 03 - Dezembro 2009 Coordenador e Editor CHARLES DIAS [email protected] Revisão BIA NUNES DE SOUSA [email protected] cascodatartaruga.blogspot.com Editoração CARLOS RELVA Editorial 4 NATAL NO PASSADO Voltar a Dormir Leonardo Carrion 7 Emanuel Ubiratan Peleteiro 14 [email protected] carlosrelva.blogspot.com NATAL NO PRESENTE Para contatar os autores Aguinaldo Peres [email protected] Três Inimigos, Um Destino Aguinaldo Peres Carlos Relva [email protected] Charles Dias 23 O Mecanismo Charles Dias 32 [email protected] NATAL NO FUTURO Joshua Falken [email protected] Leonardo Carrion [email protected] Ubiratan Peleteiro [email protected] Milagres Acontecem Carlos Relva 53 Pulso Joshua Falken 69 Ilustração da capa: Jacques Parnel 3 EDITORIAL Em 2008 a primeira edição desta revista pousou em Terra Brasilis causando um grande furor na comunidade apreciadora de ficção científica nacional. Com um visual que não deixa nada a desejar para as melhores revistas internacionais do gênero e um conteúdo idem, fomos muito bem recebidos. Algum tempo depois lançamos a segunda edição, que teve ainda mais sucesso que a primeira. E então ficamos um ano sumidos, desaparecidos. Não foram poucos os comentários do tipo “será que foi mais uma iniciativa que morreu na praia?”. Pois bem, não morremos na praia, não desistirmos, não “demos com os burros antarianos n'água”, nada disso, simplesmente fizemos uma viagem próxima à velocidade da luz em busca de novas ideias, novos desafios, em busca de evolução e, por conta da distorção do tempo que Einstein já explicou faz tempo, parece que sumimos durante todo um ano. Bem, o que importa é que estamos de volta e com muita vontade e determinação para continuar abalando as estruturas da ficção científica brasileira. Esta edição especial de Natal da Black Rocket é uma prova de que essa publicação não é apenas “mais um fanzine de ficção científica amadora”, não, nada disso, somos, sim, uma REVISTA VIRTUAL DE FICÇÃO CIENTÍFICA, assim mesmo, com todas as letras em maiúsculo e sem querer desmerecer os ótimos fanzines de FC que existem no universo virtual. Somente uma verdadeira revista pode manter qualidade estética e editorial ao longo de várias edições, além, claro, de fazer excelentes edições temáticas. Para 2010 contamos com diversos projetos para presentear os fãs brasileiros (e também de países irmãos lusófonos) com várias edições temáticas e de tema livre, contos muitos bons, projeto gráfico de tirar o fôlego, enfim, muita, mas muita, coisa interessante. Então, meus amigos, que seu Natal e ano-novo sejam excelentes e muito mais divertidos a bordo desta edição especial de Natal da Black Rocket. Divirtam-se e não tirem os olhos do céu para não perder o pouso da próxima edição da Black Rocket. Charles Dias Coordenador e Editor [email protected] 4 Natal no Passado Voltar a Dormir Em uma distante e isolada terra gelada, um homem da ciência se vê confrontado por mistérios que nunca imaginou existir ........................................................ 7 Emanuel As dúvidas de um homem comum e as necessidades de um ser alienígena se embatem no dia que seria comemorado por muitas nações ........................ 14 6 Voltar a Dormir LEONARDO CARRION Era Natal e deixei meu solitário castelo nas mãos de Igor. Enquanto saía em meu trenó puxado por cães, ouvindo o barulho das lâminas do trenó cortando suavemente a neve alta e dura do caminho que desce até a vila, senti um aperto no peito, como se nunca mais fosse retornar ao meu amado laboratório. Meu nome é Gregor Ulhmme e, em meu tempo de jovem, fui professor titular de biologia e química na faculdade de Medicina de Mehner, província de Skobol. Atualmente sou professor licenciado, médico e cientista formado na escola de Reyter, doutorado em Lanes. Neste sexto dia, do primeiro mês, do 12o ano da graça de nosso monarca, em minha sacola trago a destruição do mundo. Mas devo começar contando um pouco antes. Tudo começou mais exatamente no dia anterior aos festejos do Natal, dia de nosso padroeiro, Sandoval, o Bom. Encontrava-me para iniciar uma experiência de natureza fisiológica com algumas cobaias caninas que coletara na estalagem da vila, quando fui localizado pelo alcaide, através de seu mensageiro. Com aborrecimento deixei as cobaias com o estalajadeiro e fui à presença de nosso administrador. Tratava-se de um homem gordo e ruivo, com muito pouco cabelo no topo da cabeça, uma voz aguda e que se apresentava sempre sentado. Chamava-se Milo Ludick, mercador de ofício e senhor de vários negócios por influência, cuja falta de sutileza, insistência nos assuntos mais mundanos e desprezíveis eram as melhores qualidades. Isso sem se falar do desmedido ego que o fazia pensar ser um intelectual, apesar de nunca ter conhecido qualquer formação que não a da vida. A sede da vila não era outra que o curtume do alcaide, local para onde me dirigi já antecipando os assuntos “científicos” de que seria obrigado a tratar. Fui seguido pelo rapazote que cuidava dos assuntos do alcaide, desde que estivessem fora do alcance dos braços estendidos para além de uma poltrona. O cheiro do local era quase tão detestável quanto as minhas conversas com o nosso primeiro-cidadão. — Ah! Professor Gregor — saudou-me ele ao mesmo tempo em que fechava uma gaveta de sua escrivaninha, logo que apareci à porta. — Entre, entre, entre, e feche a porta. Você, fora, Cezan! Enquanto o rapaz saía, sentei-me na confortável e antiga poltrona de couro e estudei o local. A sala era grande, mas abarrotada de vidros com animais preservados em formol ou coisa parecida, pois o cheiro do curtume não me deixava saber exatamente. O gordo alcaide se considerava um “ilustrado autodidata”, como costumava dizer, portanto, colecionava “espécimes” e livros sobre biologia. VOLTAR A DORMIR 7 — Colega Milo! — disse-lhe eu. — Como está sua coleção? O ruído de bateção e dos banhos do couro parecia aumentar, enquanto o cheiro ficava menos perceptível por conta do embotamento do meu olfato. — Maravilhosa coincidência o senhor ter perguntado, professor — respondeu, já se virando para um dos vidros na prateleira atrás de sua poltrona, junto a uma maleta negra. — Tenho aqui uma coisa inteiramente nova e que vai finalmente me trazer o reconhecimento como cientista prático. A poltrona rangeu com o peso do gordo quando ele agarrou o vidro, virou-se e estendeu-o na minha direção. Interrompeu, porém, o movimento no meio, retornando e colocando ambas as mãos à volta do objeto, como que protegendo seu interior de meus olhos. Podia-se ver em sua face a luta entre o medo de confiar-me seu segredo e, por alguma traição, perder o status de descobridor, com o desejo de gabar-se de sua posse perante um “professor”. Por fim a vaidade venceu. — Posso contar com sua discrição irrestrita, professor? — perguntou-me, franzindo o rosto em uma imitação de sorriso confiante, cujo significado entendi como uma ameaça velada. — Sempre, colega — respondi friamente, enquanto pegava o frasco. Como eu esperava, tratava-se uma espécie de morcego hematófogo comum na vizinha região da Transilvânia, porém que era estranho em nossa região. — Realmente muito interessante, Milo, onde o conseguiu? — Isto, infelizmente não posso revelar nem a você, professor — respondeu meu pretenso colega, enquanto brindava-me com um meio-sorriso torcido e sacudia as duas mãos com as palmas voltadas para mim. — Vamos, Milo! — disse-lhe eu com a voz um tom mais baixo e pausada, como faço geralmente com um aluno novo. — Se você quer meu parecer, vai ter que me dar informações completas — completei com firmeza. Vi novamente no seu gordo rosto o duelo das mais rudimentares emoções humanas. Patético, horrivelmente patético. — Bem, isto é segredo absoluto, professor, e valha-me Deus se o Barão descobrir que contei. Enxugou a testa com um imundo pano que usava à guisa de lenço, enquanto eu recostavame à cadeira, seriamente divertido. Desejava agora extrair toda a história, já que envolvia o Barão. O alcaide surpreendentemente levantou-se de sua poltrona. Seu traseiro volumoso ficava tão justo nas laterais que ouvi o ruído do couro que reclamava o atrito. O fato preocupou-me, pois não só o alcaide levantou-se como também tratou de fechar as duas folhas da janela, deixando-nos à luz do lampião e isolando qualquer ouvinte de fora. Depois de se sentar novamente na pobre poltrona marrom, baixou os olhos e começou a me contar o encontro da filha do Barão com três desconhecidos, tudo em baixo tom de voz, como se fosse um padre traindo uma confissão. — ... então a imprudente menina recolheu os três já desfalecidos em um trenó puxado por 8 LEONARDO CARRION cavalo, levando-os para uma cabana da propriedade. O animal apresentava um esgotamento tal que, quando foi colocado no estábulo da cabana e desatrelado, deixou-se cair ao solo revelando grotescas marcas sangrentas por baixo do encilhamento. — E os desconhecidos, eram estrangeiros? — perguntei. Olhando-me espantado e, certamente sem saber que eu já tinha identificado a origem estrangeira do morcego no vidro, o alcaide prosseguiu em um tom mais alto, esquecendo o segredo. — Sim, sim, professor. Eram estrangeiros todos os três, não se sabe como chegaram até aqui sem ser barrados. “Muito estranho”, pensei. Em nossa região o contato com o estrangeiro se resumia à sintonia infrequente do rádio da velha Marhina que, de tanto em tanto afirmava ter ouvido falar isto ou aquilo do exterior. Como a velha Mahina era conhecida por seus períodos de insanidade temporária, ninguém lhe dava qualquer crédito, de qualquer maneira. O alcaide adiantou-se, inclinando o tronco em direção à escrivaninha que nos separava, e continuou novamente em voz baixa: — Dizem que a filha do Barão, na verdade, estava mais interessada num dos três, um jovem rapaz de cabelos escuros e aparentando menos de 25 anos. Os outros dois eram uma mulher, também jovem como o rapaz, e um homem velho, de cabelos brancos e usando lentes sobre os olhos. O “dizem” supus que seria o próprio alcaide, já que a história era para ser sigilosa. Continuava o sujeito: — Pois bem, o Barão surpreendeu a filha, Dorina é seu nome, quando ela saía do castelo com um trenó cheio de mantimentos e a fez confessar que estava abrigando estranhos na propriedade. Imediatamente fui chamado pelo Barão para que prendesse os invasores junto com sua guarda pessoal, chegando a tempo de ver um acesso de cólera da menina contra o pai, atitude que jamais imaginaria alguém tendo contra esse nobre senhor. — Mas e o que essa história tem com relação ao espécime? E que tanto mistério para contar-me isso? — perguntei, já perdendo todo interesse e pensando nos meus cães com o estalajadeiro. — Bom, bom, calma, meu professor — disse o gordo, virando-se novamente em direção agora à maleta negra na estante. — Esta é a pasta que carregava o estrangeiro velho e que apreendi como prova incriminadora de sua procedência estrangeira. Passou-me a valise. Era negra e parecida com as utilizadas por médicos quando saem em visita. Continha escrito, em inglês e baixo relevo, apenas “Professor Abronsious”. Dentro encontrei alguns dentes de alho, cruzes, crucifixos, estaca e martelo, além de papéis, um livro em latim sobre vampiros, algumas ventosas e um cachimbo. Obviamente um lunático que se intitulava “professor” como meu “colega” alcaide, enquanto perseguia mitos do populacho. — Bemmmm... — disse ao ansioso alcaide depois de examinar a valise. — O que há em relação ao seu morcego, Milo? — Oh, professor. Apenas que foi nesta valise que encontrei o vidro com o espécime — disse o “sábio” alcaide. “Meu Deus!”, pensei. “O homem admite ter adquirido um espécime que acredita não- VOLTAR A DORMIR 9 catalogado da valise de outro homem!”. Tive que conter minha cólera por tão vil procedimento. — E assim sendo, você presume que se trata de uma espécie não-catalogada, Milo? — perguntei-lhe, franzindo o sobreolho. — Eu nunca tinha visto este tipo de morcego, professor — disse o pobre homem enquanto sacudia novamente as mãos com as palmas viradas para mim. — Mas eu já, Milo. — Resolvi acabar com a vilania desse sujeito capaz de fazer “pesquisa” nos pertences de outro coitado. — É um morcego bastante comum nos países bárbaros do leste, especialmente na Transilvânia. — Oh! — Foi apenas o que disse o gordo, baixando os olhos para a pilha de papéis que tinha à sua frente na escrivaninha. — Se vai me desculpar, Milo, tenho que buscar minhas cobaias na vila — disse e levanteime ainda com a valise na mão. — Sim, sim, professor e, por favor, esta conversa fica entre nós — disse apressadamente o alcaide enquanto eu saía, certamente preocupado com sua “reputação” de sábio. — Claro, Milo, até mais — e parti do curtume apressado. Somente quando estendi a mão para abrir a porta da Estalagem é que percebi que havia ficado com a maleta negra do “Professor Abronsious”. “Meu Deus, como aquele homem me perturba!”, pensei. — Você, rapaz, vá perguntar ao ajudante do alcaide onde estão os homens estrangeiros, rápido! Enquanto o rapazote da estalagem saía, tratei de recolher as gaiolas no pátio interno do prédio, com os cães fazendo algazarra. Coloquei-os no meu trenó sem demora para logo partir, antes que baixasse a noite e impedisse meu regresso. Era inverno e, sem que tudo estivesse pronto, fechou-se o tempo e uma neve granulada pôsse a cair escurecendo o céu. Cobri os cães o melhor que pude e voltei ao interior da estalagem, onde pedi um quarto para a noite. Quando lá cheguei, o rapaz estava à minha espera. — Senhor, eles estão presos na defumadora da velha Marhina. Demorei alguns segundos para lembrar do que se tratava. — Ah, os estrangeiros! — Deilhe uma moeda e agendei mentalmente uma visita a eles na manhã seguinte. O dia amanheceu bem melhor do que tinha finalizado o anterior. Tomei o café em companhia de alguns poucos hóspedes da estalagem e fui à defumadora. Tratava-se de uma construção baixa, de uns 20 metros quadrados, parcialmente enterrada no solo, e que serviu para o único caso de prisão antes deste (mesmo que sua dona ficasse impedida de a utilizar, neste meiotempo). Quando abri a porta, em companhia de Astor, o lenhador encarregado da “segurança” dos prisioneiros, ouvi um grito de mulher. Olhei cautelosamente para dentro e vi um homem velho, visivelmente em mau estado e com a mão esquerda à altura do estômago. Estava recostado à parede negra, à esquerda da porta, olhando-me calmamente com o nariz empinado aprumado com óculos pequenos e olhos apertados. Um outro homem estava no centro da sala, aparentemente desacordado. Sua posição era como se o tivessem largado ao solo e ali ficado. Não vi a mulher, porém, só restava o forno como 10 LEONARDO CARRION refúgio, que estava obviamente apagado. Tinham retirado absolutamente tudo do interior da defumadora, com exceção do forno que era de alvenaria. — A mulher... — falei em meu inglês atrapalhado, — ... onde está? — dirigindo-me ao “professor”. — Dentro do forno, obviamente — respondeu o homem na nossa linguagem, apontando para aquele objeto —, e eu não arriscaria tirá-la dali com o sol alto, porque agora ela é um XXXX pleno. Não entendi a palavra que o estrangeiro lunático tinha proferido, mas também não me importei. Resolvi deixar a mulher onde estava, não por crer em que fosse de qualquer risco, mas sim porque não me interessava alhures. Queria mesmo devolver a valise e satisfazer um pingo de curiosidade sobre os estrangeiros. Assim dirigi-me novamente ao homem: — O senhor deve ser Abronsious, professor Abronsious, não? — Com certeza, meu jovem — respondeu, levantando-se para cumprimentar-me com dificuldade com uma inflexão de tronco muito cerimoniosa. Com a mão sempre sobre o estômago, procurou algo nos bolsos enquanto fitava-me inclinando a cabeça para trás, de forma a me enxergar através dos pequenos óculos, presos ao grande e aquilino nariz. — Creio que isto me pertence, não, jovem? — falou apontando o dedo à valise que eu carregava. — Com certeza, meu senhor. E este é o motivo da minha... — comecei a responder quando fui interrompido pelo homem novamente — Sim, jovem, sim. Mas me passe, por favor, a valise. Já não tenho tantos anos à frente para desperdiçar tempo com conversas — dizia enquanto gesticulava, como se pudesse movimentar uma correnteza de ar de forma à trazer a maleta para próximo de si. Quando dei-lhe a valise, pousou-a no chão e retirou de dentro o cachimbo. Endireitou-se e retirou finalmente um pequeno saco do casaco empoeirado e rasgado. Era um saco de veludo com cordão trespassado para fechá-lo. Em seguida encheu o cachimbo com o fumo que estava no saco. Ficou a me olhar com cachimbo na boca, novamente com a cabeça inclinada para trás e a mão esquerda sobre o estômago. — Tem fogo, rapaz? —– disse, diante de minha imobilidade. Não tinha. Astor, o lenhador, saiu para buscar uma brasa para o professor Abronsious, enquanto eu providenciava uma banqueta para que sentasse. Já fumando, Abronsious, que insistia em chamar-me rapaz e jovem, contou-me que vinha da Transilvânia, onde encontrara o castelo de uma espécie de ser maligno como um demônio que chupava sangue, que pretendeu exterminar. Junto com seu aprendiz, o jovem desacordado, o professor Abronsious contou-me que tinha passado por grandes aventuras e desventuras, até escapar aos demônios. Porém, a jovem que pensara ter salvado do monstro, tornara-se vampira também e mordera em algum ponto da viagem o ajudante. Quando a moça lançara-se sobre ele, tinha conseguido mantê-la afastada com alho. Foi seguido pela mulher, sempre escapando com o jovem adoentado e enfraquecido. Finalmente foi encurralado no momento em que uma tempes- VOLTAR A DORMIR 11 tade de neve forçara-os a parar nas terras do Barão. A demônia, temendo o sol por algum motivo, tinha feito um túmulo de neve para si quando Abronsious surprendeu-a e a amarrou. Nesse momento, a tempestade novamente desabou, redobrando a violência. No dia seguinte, acordou em uma cabana de pedra, com a mulher liberta e novamente protegida do sol cavando no solo da cabana um túmulo. O jovem já não tinha recobrado seus sentidos mais, quando apareceu o Barão e levou-os todos durante a noite para aquele lugar. A monstra, espertamente, escolhera não demonstrar sua verdadeira natureza diante dos vários homens armados do Barão. — Acompanhe-me à minha residência, professor Abronsious — disse-lhe por fim. — E levaremos seu ajudante para lá também, deixando a mulher-vampira aqui, sob os cuidados de Astor. Logo percebi que se tratava realmente de um homem com grau de cultura professoral, que perdera completamente o juízo. Resolvi ajudá-lo. — Não! Não! Não! — gritou Abronsius. Assustado, Astor levantou o machado e eu voltei-me já segurando a porta aberta da prisão improvisada. — O vampiro, o vampiro-mestre que estava na valise. Onde está? Por algum motivo entendi que se referia ao morcego roubado pelo alcaide. — Calma, professor, está com o alcaide... Nesse momento Astor abriu a porta do forno e, com a porta aberta também da prisão, a luz do sol penetrou pela primeira vez na escuridão do local. A explosão que se seguiu jogou a mim e ao professor Abronsius diversos metros adiante, matando instantaneamente os demais. Ainda consegui me arrastar para ouvir as últimas palavras de Abronsius. — Se uma vampira recém-formada explode dessa forma com o Sol, a explosão do vampiromestre poderá destruir este país. — E morreu. Foi fácil conseguir que Milo me entregasse o vampiro. Difícil foi transportá-lo com medo de que pegasse sol. Uma gota do formol em que estava submerso, no sol, foi suficiente para destruir uma estrebaria de pedra de minha propriedade, deixando uma fumegante cratera no chão. Que Deus me proteja, mas tenho que levar este perigo para longe. Em algum lugar deve haver uma caverna, um poço, tão profundo e tão escuro que sepulte para sempre esta ameaça. Quem sabe um dia eu consiga retornar. Quem sabe um dia eu consiga voltar a dormir. Amém. 12 LEONARDO CARRION Emanuel UBIRATAN PELETEIRO Vigiai e orai, para que não entreis em tentação: na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca. Mat. 26:41 Não sobreviveria mais por muito tempo. Já havia prolongado ao máximo a vida de seu hospedeiro para que suportasse a longa viagem espacial. Logo ele morreria. Não podia viver sem um hospedeiro, então também cessaria de existir. A nave estava na maior velocidade possível, rumo ao sistema com uma anã amarela em seu centro, orbitado por oito planetas. Detectara vida no terceiro planeta. Seria sua salvação. As dores no abdômen e nas costas faziam Maria caminhar com dificuldade. No ventre avantajado, a criança volta e meia se contorcia, reclamando do constante movimento. À frente, José puxava o burrico carregado com a bagagem do casal. Quase não olhava para trás. — José, me deixa montar o burrico — disse Maria, a voz sôfrega. Não houve resposta. — José, eu sinto muita dor. Ele se voltou. Olhou-a por alguns instantes, de modo acusador. José tinha feições magras, num rosto ossudo e austero. Sua expressão impunha respeito, pesava tanto sobre ela que a fez baixar os olhos. Sem dizer palavra, ele desatou um nó da corda que prendia a carga, soltando parte dela no chão. Arrumou o restante mais na traseira do animal. Curvou-se e, com os dedos entrelaçados, ofereceu-lhe apoio para montar. — Sobe — disse, quase resmungando. Ela obedeceu, montando com dificuldade. Jogando nas costas a bagagem tirada do burrico, José voltou a puxá-lo. Retomaram o caminho. — Obrigada, José — disse Maria. — Ainda falta muito para chegar a Belém. Era capaz d’eu perder a criança. 14 UBIRATAN PELETEIRO — Oxalá o Senhor me ouvisse — respondeu José, rispidamente. — Outrossim é provável Ele não me escutar, eu que não cumpri as escrituras. Mas hei de consertar isso. Ela sentiu um frio no ventre e, como a tentar se afastar do frio, a criança se moveu lá dentro. Maria sentia culpa pelo que havia feito, mas não sentia arrependimento. No início, desejou se ver livre da gravidez, antes de os outros perceberem. Depois, conforme o filho crescia, conheceu o amor de mãe. A criança passou a ser o seu bem mais valioso, não queria em circunstância nenhuma perdê-la. Todos se calaram a respeito, até mesmo José, ninguém queria ficar malfalado. Agora, porém, veio o recenseamento, ordem do César, e a viagem até Belém poderia ser oportuna para José lograr um ato o qual não ousaria na cidade em que moravam, onde o risco de ser descoberto seria maior. No dia anterior, tarde da noite, José e o pai de Maria haviam conversado a sós, não disseram a ninguém o assunto. Eles poderiam ter planejado algo, para a honra de todos sair, aparentemente, limpa, se livrando do que julgavam ser um grave problema. O medo apertava o coração de Maria como a forte e calejada mão de um homem bruto. Seguiram viagem de dia, descansaram à noite, até chegar a Belém. A cidade estava apinhada de gente, as estalagens cheias. José entrou na primeira delas, ao sair disse: — Está lotada. — Pra onde vamos? — Arranjei-nos um estábulo. Vai nos servir. — A criança vem vindo, José. Você tem parentes na cidade, podem nos acolher. Vai deixar meu filho nascer num estábulo? — Você e seu filho não merecem nada melhor. O estábulo vai nos servir. “Servir a que propósito?”, pensou Maria, estremecendo. Segurou-se no burrico, que havia arrancando perante o forte puxão que José deu no cabresto. Era noite, três homens atravessavam o deserto montando dromedários. Na frente vinha Gaspar, o grego, o mais jovem, porém o que mais conhecia o mundo, ao menos no sentido geográfico. Ainda muito moço prometera a si mesmo percorrer todas as trilhas seguidas por Alexandre Magno em suas conquistas. Fizera isso no intuito ingênuo e temerário de se aventurar, mas, com o passar dos anos, obtivera na empreitada a oportunidade de pôr em prática a filosofia aprendida na escola de Aristóteles, da qual era discípulo. Olhou para trás, para os dois homens cuja companhia o agradava bastante: Baltasar, um sábio ancião egípcio, e Belchior, o caldeu contemplador dos astros. Com este último vez ou outra se embatia, pois ele teimava em colocar suas observações místicas à frente da lógica. Mas ainda assim respeitava seus conhecimentos, ao menos em parte. — Amigos — disse Gaspar —, chegaremos ao oásis pela manhã. — Graças ao senhor! — disse Baltasar. — Este velho saco de ossos não aguenta mais sacolejar nesta nau do deserto. Demorando mais que isso, meu amigo, chegarei lá em frangalhos. Belchior nada falou, olhava as estrelas, compenetrado. Gaspar disse: — Se você tivesse amigas preciosas, que te visitassem todas as noites, como nosso amigo EMANUEL 15 astrólogo, talvez conseguisse ignorar o incômodo da viagem, meu velho. Já eu preferiria ser visitado ao menos por uma das amiguinhas que deixei na Macedônia há vinte anos. Cabelos e olhos negros, a tez morena, lábios grossos. Só de pensar me saliva a boca. — Provera Deus! O que iria querer uma odalisca dessas com um velho escriba como eu? Já trilhei o caminho, meu amigo, e nosso colega caldeu vem em meu encalço. Ambos riram. Isso chamou a atenção de Belchior. Deu descanso a nuca, olhando à frente. Mas não sorria; pelo contrário, estava bastante sério. Disse: — Há algo de errado no céu. O tom da voz dele amenizou nos outros o afã do humor. — Que queres dizer, Belchior? — perguntou Baltasar. — Não sei. As estrelas estão todas em seus lugares, mas sinto algo estranho. Como se houvesse algo mais lá em cima, algo que eu não consigo ver. — Seriam os anjos vindo à Terra? — perguntou Baltasar, mais exaltado. — Tenho sonhado com eles e há dias me sinto estranho, com um aperto no peito, como uma esperança que não consigo nem identificar, nem abafar. Será que algo importante está para acontecer aqui, na Terra Prometida? — Acalme-se, meu velho — disse Gaspar. — Não vá cair da montaria. Por causa dessas premonições estou guiando-os à Terra de Judá. Não creio nessas profecias nas quais você, mesmo tão sábio, teima em ter fé sem prova palpável. É o primeiro egípcio com vontade de ser judeu que eu conheço. Mas me compraz viajar e menos me custa fazê-lo na companhia de bons amigos. — Talvez um dia você veja, Gaspar, assim como eu vi, as pegadas do leão — disse Baltasar. — Para isso, nenhum lugar é melhor do que para onde estamos indo. Podemos apressar o passo? — Que seja. Falando assim, deu forte batida na anca do dromedário com a fina e longa vara. Os outros dois fizeram o mesmo, e iniciaram a trotar em direção ao noroeste. A nave entrou em órbita do planeta azul. Ele começou a explorar mentalmente a vida do planeta. Sentiu que o planeta era cheio de vida. Havia apenas uma espécie de razoável inteligência, apesar de ser uma das mais atrasadas que vira em sua longa existência. Havia capacidades mais amplas em suas mentes, mas seu lado material, não conseguiu entender por quê, as confinava de tal modo a não permitir exercer sua plena aptidão. Conhecera várias outras raças que possuíam dimensão material, mas nenhuma delas tinha a dimensão etérea tão limitada pelo corpo vivo. Os habitantes deste planeta tinham sangue quente e vontades estranhas, cujas motivações eram incertas. Chamavam-nas de desejos, os quais muitas vezes atingiam intensidades prejudiciais, tornando-se algo chamado vício. Isso lhe pareceu errado, inútil e fora de lugar, inconsistente com a realidade do universo, onde a matéria é apenas energia modulada em ressonância. Mesmo na iminência da própria morte, teve curiosidade e vontade de ajudá-los, como ajudara antes dezenas de outras raças. Tomou isto como missão. Precisava agora escolher o melhor local, o melhor povo e o melhor hospedeiro para envidar seus esforços. Mas precisava fazer isso rápido, pois não tinha muito tempo. 16 UBIRATAN PELETEIRO Identificou que aquela raça era dividida em várias etnias, todas elas conheciam apenas uma fração das outras, algumas viviam praticamente isoladas. Era necessário uni-las. E ele sabia do que precisavam: precisavam de um mito. Havia vários disponíveis, alguns mais fracos, com adoração aos astros, imagens e símbolos, outros mais fortes, que cultuavam a fé em entidades etéreas. Ele bem poderia tomar o lugar de uma delas. Devia escolher o maior dos mitos, aquele capaz de atravessar qualquer fronteira, alcançar os confins mais remotos do planeta. Ao examinar uma região que fora o berço das civilizações mais avançadas do planeta, detectou um mito bastante adequado. Mais que isso, identificou condições propícias para implementá-lo, como se tudo houvesse sido preparado para a sua chega. Restou convicto: o acaso não existe, era um desígnio. Desceu para tomar posse dele. Como qualquer mulher que dá a luz pela primeira vez, Maria nunca imaginara ser a dor tão forte. Era como se a estivessem rasgando ao meio. Queria se livrar daquela dor, voltou à insegurança do início da gravidez e preferiu não estar grávida. Faria qualquer coisa para se livrar daquilo. Em pensamento, pensou até em vender a alma ao Inimigo se ele fizesse a dor acabar. José não estava ao seu lado. Sentia-se sozinha, mais sozinha do que quando, ainda criança, se perdera da mãe no mercado e um mendigo lhe tirara a virgindade com o dedo. Olhava para o teto do estábulo, a dor a fazia travar a respiração, fazia força para expulsar aquele tijolo de dentro de si. Quando a dor aliviava um pouco, voltava a respirar com sofreguidão, mas logo ela voltava para seu suplício. Gostaria que José lhe segurasse a mão. Olhou para os lados e o encontrou sentado no chão, abraçado aos joelhos, encostado em uma das paredes do estábulo. Olhava para frente com o olhar vidrado. Maria estendeu-lhe a mão. — José! — ela tentou gritar, mas não conseguiu. A voz saiu esganiçada. — Me ajude, por favor! Em resposta, ele apertou o rosto contra as coxas e colocou as mãos sobre os ouvidos. Ela não conseguiu mais ver seu rosto. As lágrimas corriam pelas faces de Maria. Começou a gemer alto. Não adiantava gritar pedindo ajuda, pois o estábulo era afastado da cidade, mas mesmo assim ela gritou. Nunca se sentira tão abandonada. Então a criança fez um forte movimento. Num lampejo, tudo voltou à sua mente, todo amor que sentira naquele período de gravidez. Amava o filho, queria vê-lo. Voltou a empurrar, a empurrar. Sentiu a criança começar a sair, a dor aumentou ainda mais, porém ela não retrocedeu, e sim aumentou o esforço. E a criança veio ao mundo. — E então, meu velho? — perguntou Gaspar, sorrindo, para Baltasar. — Satisfeito? Aqui termina o Deserto de Judá, mais à frente é a cidade de Belém. E agora? Um anjo vem nos ver? Ou vamos esperar uma outra premonição? Os três estavam na beira de um pequeno poço, Gaspar e Baltasar sentados ao redor de uma fogueira e Belchior de pé, olhando para o alto. Havia palmeiras em volta. EMANUEL 17 — Paciência, meu caro — respondeu Baltasar. — Deus tem seu próprio tempo. E não são premonições que me guiam, mas a fé nas escrituras. Gaspar ia responder, mas Belchior apontou para o céu e gritou: — Vejam! Os dois se levantaram, assustados. — O que foi, homem? — perguntou Gaspar, aproximando-se. — Ali. Uma nova estrela. Eu não a havia visto antes. E ela se move. Gaspar olhou na direção apontada. Havia várias estrelas no límpido céu do deserto, ele não podia distinguir para qual o caldeu apontava. Então teve a impressão de que uma delas, uma estrela pequena e de luz minguada, se movia, mas não podia perceber se era apenas sua imaginação. Porém, depois de alguns instantes, ficou ainda mais assustado e disse: — Tenho a impressão de que a luz dela aumenta de intensidade. — Eu também — disse Belchior. — Raios! — resmungou Baltasar. — Queria ter olhos mais jovens! Não consigo ver nada disso. Mas a intensidade do brilho da estrela aumentou tanto que até Baltasar pode ver. Ela cresceu até ficar do tamanho da lua. Então eles perceberam o que realmente acontecia. — Ela vai cair sobre nós! — gritou Gaspar. Jogou-se ao chão. Viu os dois amigos caírem quando a estrela, agora enorme e fulgurante, ao invés de atingir o local onde estavam, passou sobre eles. Sua visão ficou ofuscada, logo em seguida a recuperou e viu uma chuva de luzes caindo sobre eles, como uma miríade de pequenos vagalumes, mas que, ao invés de piscar continuamente, só se apagavam quando tocavam o solo, para então desaparecer de vez. As luzes formavam uma trilha, indicando o caminho seguido pela estrela. Gaspar soube imediatamente o que devia fazer. — Amigos, a trilha do anjo logo vai sumir! Vamos segui-la! Mais ágil que os outros dois, saltou sobre o dromedário, fê-lo erguer-se e começar a trotar, seguindo a trilha da estrela. — Vá, meu amigo! — gritou Baltasar. — Eis as pegadas do leão! Siga-as! Vamos logo atrás de você. Não havia mais tempo de rumar para outro local e escolher outro hospedeiro. Haveria de ser aquele dentro da pequena construção. Percebeu então que seu alvo corria risco de vida. Sem saber por quê, um dos seres ali dentro queria cessar a existência do seu semelhante que acabara de vir ao mundo, justamente o que ele havia escolhido. Poderia tomar posse de um dos outros dois, mas se quisesse ajudar aquela espécie, devia tomar posse do recém-nascido agora. 18 UBIRATAN PELETEIRO Maria resfolegava, aliviada pela dor ter amenizado, porém sentindo-se também vazia, como se no lugar do seu ventre houvesse agora um grande e frio buraco. Viu José se aproximar, abaixar e envolver com um pano a criança que chorava entre suas pernas. Ele se ergueu segurando o volume. Maria levantou os braços para receber o filho. Mas José não o entregou. Afastou-se um pouco e o colocou na manjedoura. — José — disse Maria, a voz como um sopro —, me dá meu filho. Em vez disso, José pegou o alforje no chão e o segurou na frente de si, olhando fixamente para a manjedoura. — O que vai fazer, José? Ele começou a se abaixar. — Pare, José! Não faça isso! Maria sentiu ódio. Queria levantar, pegar uma pedra e bater na cabeça de José, bater até ela se abrir, ficar esmigalhada como a cabeça do pássaro que na infância vira o irmão matar com uma pedra. Nunca pensara com tanta violência antes, mas era o que queria fazer. Porém, estava exaurida pelo parto, mal conseguia se arrastar. José, aproximando o alforje da criança, estava cheio de dúvidas. Era um menino, elevava o choro conforme ele aproximava o alforje. José tremia, mas não via outra forma de lavar sua honra. Constaria que seu primogênito havia nascido morto, só ele e seu sogro saberiam a verdade: era filho de outrem. Mas matar uma criança, assim, indefesa, era demais para José. Nunca matara ninguém. Hesitou, quis desistir. Talvez fingir que nada ocorrera, acolhê-lo como filho, quem haveria de saber? Era um menino saudável e forte. Ouviu Maria gemer no chão. Olhou para ela, que se arrastava em sua direção. Então o coração de José inflamou-se de ódio. Maldita meretriz! Por que não conseguia se ver livre dela? Mais fácil seria repudiá-la por prostituição. Mas deixara o pai dela convencê-lo, ou melhor, convencera a si mesmo de que haveria desonra em revelar a traição. Na verdade fizera isso por não querer perdê-la. Ela estava sempre em seus pensamentos, com toda a sua beleza e sensualidade. Estava enfeitiçado, era incapaz de se ver livre dela. Mas ele teria sua vingança. Baixou o alforje, decidido a abafar com a morte o choro do menino. Mas interrompeu o movimento quando, inesperadamente, os olhos da criança se abriram. José nunca vira uma criança recémnascida abrir os olhos em tão pouco tempo. E, para sua surpresa, os olhos o fitavam com uma expressão consciente que nenhum neném poderia ter. José soltou o alforje. Ao mesmo tempo a criança começou a emitir uma leve luz, que foi crescendo aos poucos, até iluminar todo o interior do estábulo como se fosse dia. José não entendia o que estava acontecendo. Então, enquanto encarava os olhos da criança, surgiu em sua mente um pensamento, como se alguém falasse com ele: “José, sê meu pai na Terra, que meu verdadeiro Pai te acolherá com louvores nas alturas, pois eu sou gerado do Espírito Santo”. As pernas fraquejaram e ele caiu de joelhos no chão, soltando o alforje. Maria, que já havia se arrastado até ali, segurou-lhe firmemente as mãos. Elas suavam frio e tremiam. Deitou exausta a cabeça no colo dele. A criança estava a salvo. EMANUEL 19 De cima de um monte, Gaspar olhava para a cabana ao longe. A trilha da estrela, se extinguindo aos poucos, apontava para lá. Uma chuva de pontos luminescentes banhava a cabana, como se a estrela houvesse se desfeito em cima dela. Viu uma luz brilhar através das poucas janelas e da porta, como se dentro da cabana houvesse um incêndio. Animais começaram a sair lá de dentro. Devia ser um estábulo. Então a luz começou a diminuir. Olhou para trás e viu seus dois amigos subindo o monte. Quando chegaram perto, apontou para a cabana, dizendo: — A estrela foi pra lá. É um estábulo. Houve uma forte luz lá dentro e os animais fugiram. O que iria fazer um anjo num estábulo? Ficaram alguns instantes entreolhando-se. Depois, seguiram em direção à cabana, o silêncio entre eles. Lá chegando, ouviram um barulho. — É um animal? — perguntou Gaspar. — Não — respondeu Belchior. — É uma criança chorando. Baltasar não hesitou. Foi até a porta, entrou. Os outros dois os seguiram. Perceberam movimento no fundo do estábulo, mas a escuridão não permitia ver bem. Aproximaram-se e viram um casal aninhado, a mulher amamentava uma criança nos braços. Ambos sorriam, cheios de ternura. A mulher os viu. Ergueu a criança do seio e a exibiu. Gaspar estranhou os olhos abertos do recém-nascido, parecia fitá-los. Era cedo demais para estar com os olhos abertos daquela forma. Inesperadamente, viu Baltasar cair de joelhos ao seu lado. Ele tinha uma expressão estupefata no rosto, ergueu as mãos e depois as enlaçou a sua frente, dizendo: — Meu senhor, és tu! Sê bem-vindo ao teu reino! Depois fechou os olhos, baixou a cabeça e começou a orar. Gaspar não entendeu a atitude do amigo. Para sua maior surpresa, Belchior imitou em seguida o egípcio com gesto semelhante. “Gaspar.” Pensou ter ouvido uma voz, mas logo percebeu que os dizeres estavam apenas em sua mente. O neném o fitava nos olhos. Ele lhe falava em pensamento. “Gaspar. Sente em teu coração o amor de meu Pai celeste.” Caindo de joelhos, sua mente esvaziou-se e Gaspar amou a criança. Queria servi-la, agradála, homenageá-la com presentes, dar sua vida por ela. Se por à frente da espada que ousasse tentar atingi-la. Experimentou um amor que nunca sentira antes. Gaspar agora estava cheio de fé. Os três indivíduos à sua frente eram inteligentes, tinham um conhecimento superior à grande parte dos seus semelhantes. Mesmo assim, a distância até chegar ao seu nível de evolução era incomensurável. Ele dominara todos com facilidade. Sentiu-se confiante. Agora estava enraizado no mito. Enquanto os três reis magos saíam para buscar presentes, teve vontade de saciar um senti- 20 UBIRATAN PELETEIRO mento vindo de suas novas entranhas. Era fome. Fez a mulher o devolver ao seio. Sorveu o leite. A entidade amou o leite que passava pela sua boca, descia pela garganta e enchia o estômago. Amou os braços da mulher, que o envolviam, aqueciam e protegiam. Amou seu novo corpo a lhe prover sensações, pensamentos, dúvidas nunca antes experimentadas por todas as eras percorridas. Havia algo de diferente naquela espécie da qual agora tomara um dos espécimes, algo de maravilhoso e de terrível. A própria curiosidade de descobrir qual era a razão de ser desse diferencial o instigava e o deixava feliz. Durante aqueles breves momentos, ele esqueceu dos seus planos de redenção da humanidade. EMANUEL 21 Natal no Presente Três Inimigos, Um Destino Três homens de nações inimigas, fazendo de tudo para matar um ao outro, tornam-se sem querer personagens insuspeitos de um dos maiores acontecimentos da raça humana ............................................................... 23 O Mecanismo A herança maldita de um mundo destruído cai nas mãos de um grupo terrorista que deseja usá-la para causar, no dia de Natal, o maior atentado terrorista da história da humanidade ......................................................... 32 22 Três Inimigos, Um Destino AGUINALDO PERES Homens de poder se reúnem na Cidade das Torres. — Malditos atlantes! — praguejou o Senhor do Sol Negro. — Pensei que tínhamos nos livrado deles e de sua tecnologia para sempre quando aquela amaldiçoada ilha afundou. — Os atlantes sempre foram precavidos — comentou o Conselheiro da Estrela Vermelha. — Estavam preparados para o cataclismo e migraram para o continente a oeste. Eles agora o chamam de Nova Atlântida. — Duzentos anos de paz! — O velho senhor não se conformava. — Duzentos anos de paz e agora isso! — e empurrou o pergaminho para o centro da mesa. Nenhum dos homens presentes, porém, lhe deu importância, todos já conheciam o conteúdo dele. — Sempre tivemos pequenos conflitos por causa da intolerância religiosa dos hiperbóreos — falou o Sábio da Lua Prateada. — Contudo, esses últimos ataques foram financiados pelos atlantes. — E o Conselho Druida? — Eles negam qualquer participação — o velho sábio suspirou. — Garantem que estão honrando os acordos diplomáticos. Mas não vão admitir interferências nas questões internas. O silêncio se prolongou enquanto analisavam a delicada e complexa questão. — “Para se quebrar os dentes de um tigre, basta um bom porrete” — citou o Mestre do Cometa Dourado. Os homens em torno da mesa concordaram com um discreto gesto. A decisão estava tomada. Tolire acordou com o gosto de trapo velho na boca e saiu da cama desconfortável ainda vestido com as roupas que vinha usando há uma semana. “Isso é bom”, pensou, “me faz cheirar como os locais.” No banheiro lavou a boca com a água do jarro que não tinha gosto melhor. Sorriu para o espelho manchado, um sorriso branco no rosto retinto, de queixo quadrado, olhos negros, testa alta, cabelos curtos e entrelaçados em pequenas tranças enfeitadas pelas contas vermelhas do seu clã. De volta ao quarto bateu nas costas do seu parceiro. Dakarai permaneceu TRÊS INIMIGOS, UM DESTINO 23 em silêncio, sentado em posição de lótus sobre um tapete puído, e balançou a cabeça negativamente. Tolire retornou para cama, olhou entediado para o teto manchado e trincado. Há vários dias estavam vigiando o apartamento do outro lado da rua de paralelepípedos, onde, segundo o serviço secreto de Lemúria, terroristas hiperbóreos negociavam a compra de armas de fogo. Ele odiava essa cidade, o Grande Porto do Oeste, no ponto mais ocidental do Continente Superior, era a porta de entrada dos atlantes aos reinos hiperbóreos. No cais era possível ver pequenos barcos à vela e os gigantescos navios de metal que expeliam de suas chaminés a fumaça negra das caldeiras. Acabou dormindo e sonhando com as altas torres da sua cidade natal. Foi acordado pelo parceiro, era noite e o quarto estava iluminado por uma lamparina à querosene: — Cinco pessoas, três hiperbóreos e dois atlantes, vestindo armadura sobre as roupas. — A voz saiu cansada após tantos dias concentrando sua capacidade de clarividência na tarefa de vigia. Tolire sorriu, agora era a sua vez de agir. Posicionou-se de pé em frente à janela, o colega ficou de lado, nas mãos a bombarda carregada. Todos os prédios daquela rua tinham de cinco a seis andares, o térreo era usado por estabelecimentos comerciais, geralmente lojas ou cabarés. Uma porta discreta dava para a escada interna que levava aos quartos. O quarto que os homens de Lemúria estavam usando tinha duas camas, uma mesa, três cadeiras e um minúsculo banheiro. A janela era fina e comprida, ia do chão quase ao teto, a cortina havia sido arrancada, deixando à mostra as duas folhas de madeira. Rapidamente Tolire invocou as serpentes elétricas, cinco delas, pequenas, com menos de um metro e mais de mil volts, elas se contorciam e estalavam entre suas mãos enluvadas, prontas para matar. — Agora, Dakarai! O parceiro escancarou a janela e, com a bombarda apoiada ao ombro, disparou. Do outro lado da rua, madeira e cortinas foram estraçalhadas pela bola de chumbo. Com o caminho livre Tolire liberou suas amigas elétricas que dispararam como o raio que eram. A esfera de chumbo mais assustou do que feriu, os cinco homens se jogaram ao chão, momentaneamente esquecidos das moedas de ouro espalhadas sobre a mesa. Espadas foram sacadas, um breve brilho vislumbrado pelo canto do olho e a fisgada, uma contração espasmódica dos músculos, e mais nada, o pulmão e o coração haviam parado, assim morreram os terroristas. Os atlantes não tiveram tanta sorte, as armaduras que lhe protegiam receberam a maior parte da descarga elétrica e explodiram, a carne frágil foi rasgada e queimada. Em seu quarto Tolire apreciou a explosão e o incêndio que se iniciou. Rapidamente os lemurianos empacotaram seus pertences e fugiram. A locomotiva parou na estação, um último assovio liberou o vapor que se espalhou pela plataforma. Jeger Krohg desceu do vagão e torceu o nariz, a cidade de Seveso cheirava a óleo queimado. Krohg, o inquisidor do Conselho Druida, se sobressaía entre a multidão, alto, a barba e o cabelo loiro envolvendo o rosto como uma juba, frios olhos cinzentos, um mosquete depen- 24 AGUINALDO PERES durado às costas e uma adaga à cintura. Foi logo reconhecido pelo comissário local, que se aproximou: — Inquisidor Krohg, temos boas notícias! Conseguimos capturar um dos lemurianos. Como o senhor sabia que eles estariam aqui? Krohg seguia o comissário para fora da estação enquanto respondia: — Os navios atlantes dominam o Mar Central, portanto só lhes restava contornar o mar por terra para chegar ao Continente de Mu. Usar a estrada de ferro do Norte seria perigoso, portanto seria óbvio que eles tentariam o Expresso do Sul. Os dois homens tomaram uma carruagem a vapor. O inquisidor observava pela janela como a cidade estava se deteriorando a olhos vivos. As largas vias estavam sobrecarregadas com carroças e carruagens, lixo se acumulava nas calçadas, onde pessoas maltrapilhas se aglomeravam e o esgoto se empoçava na sarjeta. Os aquedutos e os prédios com fachadas em arcos decorados com mármore estavam manchados de fumaça e fuligem. “O povo do Reino da Península não percebia que as máquinas dos atlantes estavam corrompendo a sociedade?”, matutava Krohg. Os reinos meridionais sempre foram mal vistos pelos reinos do Norte pela proximidade com Lemúria, somente a ancestral suspeita entre os dois povos mantinha-os a uma distância aceitável. Porém o mesmo não acontecia com os atlantes que estiveram desaparecidos por centenas de anos após o cataclismo que afundara sua ilha. Assim, os hiperbóreos do sul abriram seus braços e pernas para receber os brinquedos de metal. Chegaria o dia, ansiava Krohg, em que os reinos setentrionais seriam obrigados a realizar uma campanha de purificação nas terras em torno do Mar Central. Ao chegar na Comissariaria se dirigiram à sala de interrogatórios, uma sala quadrada no segundo andar, de teto alto e com uma pequena janela ogival e gradeada. O prisioneiro estava acorrentado a uma cadeira de ferro afixada ao chão, o olho esquerdo estava inchado, e havia resquícios de sangue seco saindo das narinas e no canto da boca. Dois guardas mantinham posição ao lado da cadeira e ele olhava fixamente para os recém-chegados. — Ele falou alguma coisa? — perguntou Krohg. — Pouco. Ele disse que seu nome é Dakarai, é membro do Clã da Lua Prateada e que tem imunidade diplomática. Só estávamos esperando o senhor para começar a pressionar um pouco. O inquisidor se aproximou e rasgou a manga direita do prisioneiro, revelando as tatuagens tribais. Satisfeito, puxou uma cadeira e sentou-se em frente ao lemuriano. — Sou o Inquisidor Jeger Krohg. A partir de agora você está sob custódia do Conselho dos Druidas. — O prisioneiro mantinha o olhar fixo para o inquisidor, apesar de o rosto não demonstrar emoção. — E como membro do Clã da Lua Prateada você possui certos direitos legais, como, por exemplo, ser julgado pelo Conselho. Seu nome é mesmo Dakarai? — Sim. Sou Dakarai, do Clã da Lua Prateada, e exijo ver o embaixador lemuriano! — Claro, claro — Krohg balançou a cabeça afirmativamente. — Assim que o processo formal estiver aberto. E para isso preciso que você assine uma confissão. — E retirou no forro do casaco um cilindro de laca e de dentro deste um pergaminho. — Só precisamos completar algumas lacunas... — O inquisidor leu o documento em tom formal e mudando para algo mais amigável durante seus adendos. — “Eu”, aqui colocaremos seu nome e clã, “atesto para quaisquer fins legais que, junta- TRÊS INIMIGOS, UM DESTINO 25 mente com meu cúmplice”, depois você pode nos dar o nome e clã, “no dia blablablá em blablablá assassinamos dois agentes sublevadores de Nova Atlântida e três cidadãos hiperbóreos envolvidos em compra ilegal de armas. Atesto também que agimos conforme ordens do Conselho das Torre.” — Krohg enrolou o pergaminho e sorriu por entre a barba. — É só assinar e chamaremos seu cônsul. E como tem imunidade diplomática, o máximo que lhe pode acontecer é ser deportado. Não é uma boa solução? Dakarai se deu ao luxo de sorrir um pouco, concluíra que o maldito cara-de-urso pouco ou nada se importava com os homens mortos, apenas queria uma confissão para constranger e pressionar o governo lemuriano. — Não posso assinar tal documento, nada do que consta nele é verdadeiro. Eu jamais estive envolvido em qualquer atividade ilegal em território hiperbóreo. O inquisidor suspirou e guardou o estojo com o pergaminho. — Nós sabemos que foi você. Mas isso não interessa, só há duas formas de sair daqui. Indiciado ou morto. Vai assinar? — Não! — Se é a sua decisão final, que seja! — Krohg se recostou na cadeira e sorriu torto. — E como não podemos simplesmente eliminar alguém do Clã da Lua Prateada, afinal vocês têm direitos, teremos que fazer da forma mais difícil. — Sacou a adaga do cinto, uma lâmina larga com gume nos dois lados na ponta. — Teremos que nos livrar dessa tatuagem, certo? Sem ela você deixa de ser gente, será apenas outro escravo. — Pela primeira vez o lemuriano demonstrou uma reação mais violenta para a satisfação dos guardas. — Me tragam um fogareiro! Nunca soube se foram seus instintos ou a menção ao fogareiro, porém naquele momento Krohg percebeu o leve cheiro de pólvora e notou do lado de fora da janela um pequeno rastro de fumaça, largou a adaga e saiu da cadeira, sem se importar com as maldições que o lemuriano lhe lançava. Estava quase chegando à porta, sob o olhar espantado do comissário e dos guardas quando a força da explosão o lançou contra a porta de madeira que não suportou o impacto, Krohg foi parar no meio do corredor. Tonto e com o corpo dolorido, Krohg engatinhou até a sala. A explosão havia aberto um grande buraco na parede abaixo da janela, os corpos do comissário e dos guardas estavam amontoados num canto. A cadeira de ferro havia resistido, a cabeça do prisioneiro não. Protegendo o Canal de Ouro que liga o Mar Central ao Mar Inóspito, a fortaleza de Bizas e a cidade que cresceu ao seu redor sempre foram uma presa de guerra disputada pelas três raças: os hiperbóreos do Norte, os lemurianos do Sul e os arianos do Oriente. Após 700 anos sendo tomada, recuperada e conquistada, a cidade desfrutava de algumas décadas de relativa paz sob o controle do Grande Império de Sindhu. E a arquitetura era resultado direto desse passado conturbado, um verdadeiro amálgama de estilos representados em prédios grandiosos dentro de seus muros, como se cada novo conquistador quisesse deixar sua marca na cidade. Do lado de fora dos muros a situação era bem diferente. As constantes hordas de refugiados se aglomeravam como podiam enquanto aguardavam uma oportunidade de deixar a chamada Encruzilhada do Mundo em busca de um novo lar. E formaram um mar de casebres, os mais 26 AGUINALDO PERES antigos de pedras e tijolos, os mais novos de madeira, uns apoiados nos outros criando um labirinto de vielas e becos escuros e malcheirosos. O atlante caminhava por aquelas ruelas grato pelos filtros nasais, era incompreensível para ele como seres humanos podiam viver naquele lugar, sem privacidade, caótico, insalubre. Viviam pior até que os silvícolas de Nova Atlântida antes de serem confinados nas reservas. Contudo isso não era seu problema, se aqueles miseráveis supersticiosos, incapazes de perceber as vantagens da tecnologia e da organização da Atlântida, preferiam chafurdar em sua própria imundície, que fossem felizes. Ele terminaria seu serviço, um dos assassinos já estava morto, o outro seria eliminado hoje, e retornaria para sua adorada terra. Az’Zatac se dirigiu ao bazar vestindo manto e capuz de tecido grosseiro que cobria a armadura e deixava à vista somente o rosto de nariz anguloso e cor marrom-avermelhada. As ruas ficaram mais largas, margeadas por edificações de taipa com dois pavimentos, que funcionavam como um misto de residência e comércio. Das fachadas se estendiam toldos sob os quais eram exibidas as mercadorias. O atlante observava as mercadorias distraidamente: cerâmicas arianas, tecidos de Lemúria, peças mecânicas usadas, artigos baratos sem procedência. Um mendigo vestindo trapos coloridos e de cheiro doentio se aproximou de Az’Zatac e lhe estendeu um pedaço de papel, o atlante estudou o mapa desenhado e entregou ao alcaguete algumas moedas. Foi fácil reconhecer o alvo no meio de um grupo de mercadores lemurianos. As tranças haviam sumido, provavelmente já tinha conhecimento de que estava sendo caçado e da morte do companheiro em Seveso, porém o resto batia com a descrição dada dos assassinos. Az’Zatac avançou paralelamente ao grupo, sob o manto sua mão se fechou sobre a coronha da pistola, que não era tão precisa ou potente quanto um mosquete, mas tinha a vantagem de ser discreta e permitir dois tiros sem recarregar. Passou pelo grupo, então se virou, o braço esticado, a arma em punho a menos de um metro do alvo, pressionou o gatilho. O estrondo do disparo fez o grupo se dispersar, uma ânfora explodiu espalhando o perfume de água-de-rosas pela rua. “Errei!?”, espantou-se. “Impossível! Sou um dos melhores atiradores da marinha atlante.” O lemuriano tentou se misturar no tumulto, o atlante com tranquilidade mirou e atirou. O projétil de chumbo passou pelas costas do fugitivo derrubando um pobre coitado. “Uma ilusão!”, rosnou Az’Zatac. O maldito bruxo havia criado um duplo, uma deflação da luz como se estivesse dentro da água. Ele ainda tentou perseguir o lemuriano enquanto recarregava a pistola, porém acabou sendo despistado. A lenda dizia que o Grande Templo fora construído pela primeira raça numa pequena ilha cercada por águas cristalinas. Contudo era difícil acreditar nela quando se olhava do alto da muralha que cercava o templo, tudo que se via eram terras áridas, de um marrom-claro arenoso. O Grande Templo atraía peregrinos de todos os continentes, uma terra santa onde os sacerdotes negociavam a vida eterna e os mercados vendiam a alma, por três moedas podia-se levar-lhes a própria mãe. Nessa terra, onde as decisões eram tomadas pelos sacerdotes do templo, somente existia a lei do ouro. Após conseguir fugir de Bizas, Tolire se preparava para enfrentar seu perseguidor, e para TRÊS INIMIGOS, UM DESTINO 27 isso se mantinha em tocaia numa das casas de barro seco que margeavam a estrada que levava ao templo. Se seus inimigos o queriam, esse seria o local. Meio dia havia se passado quando um rastro de vapor surgiu no horizonte. A carruagem a vapor sacolejava pela estrada de terra. No interior, Az’Zatac não sentia o calor do deserto, porém isso não melhorava seu humor. Uma tempestade havia retardado navio e agora ele temia ter perdido a última chance de interceptar seu alvo antes de ele entrar em território de Lemúria. Essas duas falhas iriam pesar na sua ficha de serviço. O condutor suava abundantemente sob o sol, mesmo assim não tirava as mãos da cana do leme enquanto seus pés controlavam o fluxo de água e a saída de vapor, mantendo a velocidade máxima possível naquele terreno irregular. Quanto atingiu as primeiras casas, a estrada tornouse mais nivelada, aumentou a pressão levantando uma grande nuvem de poeira. Foi quando notou o homem de manto listrado parado no meio do caminho, o condutor colocou a mão esquerda como pala sobre os olhos para protegê-los da luz. Então ele viu um forte brilho e nada mais. Ao contrário do ar marinho, o ar do deserto é muito seco, o que inviabilizava as serpentes elétricas, mas essa não era a única magia que Tolire dominava. Assim que a carruagem de Atlântida surgiu, Tolire se posicionou no centro da estrada e invocou um efrit, o elemental do fogo surgiu como uma pequena chama bruxuleando em sua mão direita, porém quando o liberou, o efrit tomou a forma de um leão que envolveu a carruagem. Em chamas e sem condutor, a carruagem aumentou a velocidade, Tolire afastou-se para o lado e reconheceu pela janela o atlante que tentou matá-lo em Bizas, cheio de júbilo, lançou outra bola de fogo sobre o veículo que tombou e explodiu. Tolire ergueu os punhos para o céu e soltou um brado de gratidão aos deuses. Curiosos atraídos pelo barulho e pelas chamas começaram a chegar, temendo problemas com os sacerdotes, Tolire escapuliu do local, atravessou a casa em que estivera escondido e nos fundos montou em seu camelo e deixou a cidade se dirigindo da sudoeste, em direção ao Continente de Mu. Meia hora depois, Tolire chegou a um caravançará, ele diminuiu a marcha pensando se não seria melhor passar a noite naquele local, contudo acabou se decidindo por continuar a jornada, pois ainda teria um par de horas antes do pôr do sol. Foi quando chicoteou a anca do camelo que um tiro atravessou o pescoço e partiu as vértebras do animal. O animal ainda deu dois passos antes de desabar e lançar Tolire ao chão. Jeger Krohg saiu detrás de uma palmeira satisfeito, fora um belo tiro e a sua paciência havia sido recompensada. Havia passado vários dias acampando próximo àquele miserável estábulo esperando, tinha a certeza de que esse seria o caminho utilizado pelo lemuriano, contudo esteve a ponto de desistir se não fosse a fumaça negra que surgira a nordeste, naquele momento o inquisidor teve certeza que sua tocaia havia chegado ao fim. — Fique bem quieto rapaz! — Krohg recarregou o mosquete com destreza e se aproximou do lemuriano ainda tonto pela queda. — Tolire do Clã da Estrela Vermelha, você está preso pelo assassinato de três cidadãos hiperbóreos e será levado para julgamento. 28 AGUINALDO PERES — Eles não passavam de terroristas! Eles tiveram o que mereciam. — Tolire cuspiu o pó que lhe enchia a boca, quando tentou se levantar recebeu o bico da bota no estômago com tal força que o fez rolar na terra. — Que coisa feia, rapaz! Falar mal dos mortos... E se tentar se levantar novamente não serei tão delicado. Fique de bruços e coloque as mãos para trás, nas costas! Tolire começou a obedecer, então rolou para longe do atacante e invocou o vento que levantou a terra como uma tempestade de areia. Sem enxergar, Krohg disparou por instinto, o tiro passando zunindo ao lado da cabeça do lemuriano. A tempestade mágica não perturbava Tolire, ele sabia que o hiperbóreo tinha uma faca na cintura, esperou enquanto Krohg agitava o mosquete como um porrete e quando surgiu uma chance pulou sobre ele. Os dois homens se engalfinharam, Krohg era mais forte e estava conseguindo controlar a luta, ele começou a empurrar o lemuriano que cambaleou para trás, atravessaram uma cortina que servia de porta e tombaram dentro do estábulo. Krohg, por cima, se preparava para esmagar a cabeça de Tolire com a coronha do mosquete, que pressionava a adaga contra a barriga do hiperbóreo quando um tiro pipocou ao lado deles. Ambos estacaram e olharam para a abertura do estábulo, onde Az’Zatac lhes apontava uma pistola. O manto do atlante apresentava umas poucas manchas de queimado, felizmente para ele, o manto era feito de amianto, um material raro e à prova de fogo. Os três homens se encaravam, em suas mentes buscavam uma alternativa, uma saída, pois sabiam que apenas um deles sobreviveria ao encontro. Foi somente então que eles perceberam que não estavam sozinhos. Um casal chegara antes e se abrigara no estábulo iluminado por uma lamparina. A mulher jovem, dezesseis ou dezessete anos, de rosto bonito moldado pela mantilha azul que lhe cobria os cabelos lisos, tinha os lindos olhos negros arregalados de medo. O homem simples de barba e cabelos negros, mesmo assustado, permanecia diante da esposa, os braços abertos numa frágil tentativa de proteção. Mas o que capturava a atenção dos três inimigos era o recém-nascido que a mulher segurava à altura do peito. Semienrolado numa manta de linho branco, ele encarava seriamente os invasores com seus olhos azuis. O atlante foi o primeiro a notar a família, chegou mesmo a considerá-los uma ameaça que logo descartou. Não passavam de pobres coitados, membros de uma das diversas tribos que sobreviviam naquela região desértica. Porém, aqueles olhos azuis... Naqueles olhos existia uma sabedoria, um conhecimento que, Az’Zatac mais sentia que compreendia, suplantava tudo o que os sábios de Atlântida já houvessem descoberto. Aquela criança sabia como as estrelas se moviam nos céus, compreendia a síntese da vida, o destino dos homens era-lhe um livro aberto. Jeger Krohg maldisse seu descuido, deveria ter nocauteado o lemuriano na primeira chance. Agora teria que matar os dois e terminaria como começara, sem nada. Pelo menos o casal poderia testemunhar que ele não tivera alternativa. Sim, o casal deporia a seu favor, até mesmo o bebê... “Que criança estranha”, pensou o Inquisidor, “não sente medo”. Pode alguém em tão tenra idade possuir tal expressão no rosto? Essa determinação? Transmitir tanta força apenas com o olhar? “Seu destino será liderar multidões, com certeza eu também a seguirei.” A mente de Tolire se agitava como um animal ferido, buscava uma magia que pudesse eliminar para sempre seus inimigos. Aço e chamas! Era uma pena que aquela família precisasse morrer, contudo nada poderia fazer, sua próxima magia destruiria todo aquele local. Mas havia TRÊS INIMIGOS, UM DESTINO 29 algo de estranho, ele podia sentir outro poder. De onde viria? Da criança. Como? Como uma criança em seus primeiros momentos de vida poderia ter tão grande poder, algo muitas vezes superior à magia de toda Lemúria. Um poder infinito, capaz de realizar milagres. Então aqueles homens, de corações duros e ideais nobres, que sempre se orgulharam de suas decisões e de sua justiça, se sentiram envergonhados de seus atos, de sua selvageria. Eles largaram as armas e ajeitaram a roupa amassada e suja, os três aproximaram e se ajoelharam diante da família. Tolire colocou a mão dentro da túnica e retirou uma caixinha de prata com ervas medicinais, ergueu o objeto até a altura dos olhos do bebê e entregou-o ao pai. — Que a criança traga a salvação. De seu casaco, Krohg retirou um estojo de laca com papel, nanquim e pincel e repetiu o gesto do lemuriano. — Que a criança espalhe a justiça. Na vez de Az’Zatac, ele retirou na armadura uma bússola. — Que a criança mostre o caminho. Maravilhado, o pai recebeu os presentes sem compreender o que acontecia. Os três homens se ergueram e se dirigiram para a saída: — Que a paz do Senhor os acompanhe — saudou a jovem mãe e os três se voltaram, no colo dela o recém-nascido parecia sorrir. — Ele os perdoa. Na noite fria e estrelada, os três inimigos se olharam em silêncio e se separaram, cada um seguindo a própria estrela. 30 AGUINALDO PERES O Mecanismo CHARLES DIAS LAS VEGAS – USA 21 DE DEZEMBRO 04:32 AM Jeffrey limpava as unhas, entediado, diante do grande painel de monitores e controles da ilha de edição da rede de TV enquanto aguardava o início da transmissão ao vivo. A maioria dos equipamentos estava desligada e ele era o único naquele andar, como não podia deixar de ser a apenas alguns dias do Natal, sem contar, é claro, os dois guardas que deveriam fazer a ronda noturna, mas que com certeza estavam cochilando em algum lugar. Finalmente uma luz laranja começou a piscar acima de um par de monitores decorados com laços natalinos e o produtor-assistente se ajeitou na poltrona para apertar diversos botões na mesa de controle. — Base, estamos prontos a começar a transmitir. Quem está de castigo hoje? — perguntou alguém pelo comunicador. — Sou eu, Rooney. Aqui está tudo pronto — respondeu Jeffrey, tentando parecer um pouco mais animado do que realmente estava. — Hahaha, você é a última pessoa que esperava que estivesse de castigo conosco. Bom divertimento. Transmissão com início em trinta segundos. De repente os monitores ganharam vida mostrando o interior de uma viatura policial, ao volante um oficial branco, forte e careca, fazendo pose de poucos amigos, dirigia sem olhar para a câmera. — Estou na polícia de Las Vegas há dois anos, seguindo os passos do meu avô e do meu pai, que também foram policiais na cidade. Gosto muito do turno da noite porque sempre nos deparamos com situações diferentes. Nenhum dia é igual ao outro. Hoje posso encontrar apenas alguns bêbados, amanhã prendo um traficante barra-pesada. Nas horas de folga, gosto de ficar com meus filhos e com minha esposa, e vamos para o rancho que temos no lago para pescar e colocar alguns hambúrgueres na churrasqueira. Era a terceira vez que Jeffrey era escalado para cuidar das gravações noturnas daquele reality show policial que considerava estúpido e, como das outras vezes, não estava nem um pouco satisfeito com a tarefa. Ainda mais porque, se não estivesse ali, teria saído com a nova garota da recepção e, provavelmente, estaria com ela na cama naquele momento. 32 CHARLES DIAS Por duas longas horas o policial patrulhou as ruas iluminadas pelas luzes e propagandas de Natal, mas apenas levou um bêbado inconveniente para passar a noite na cadeia e ajudou a acalmar um casal que brigava em frente de casa porque a mulher havia achado a árvore de Natal que o marido comprara extravagante demais, e ela estava certa. — Aqui é o carro 357, estou a dois quarteirões do local. Já estou a caminho — respondeu o policial a um chamado do rádio ordenando que verificasse um automóvel suspeito no estacionamento vazio de uma loja de departamentos nas imediações. — Esse tipo de ocorrência não é muito comum, mas acontece de algum cliente esquecido ir embora e deixar o carro no estacionamento, ainda mais depois de uma longa jornada de compras natalinas. De qualquer forma, verificarei o veículo e, se estiver mesmo esquecido, chamarei um guincho para rebocá-lo até o depósito municipal — terminou dizendo para a câmera sem tirar os olhos do trânsito. — Não acredito, mais uma checagem de trânsito — brincou Jeffrey pelo intercomunicador, fazendo a equipe de TV dar risadas abafadas na viatura policial. Num canto do grande estacionamento vazio havia uma picape azul como centenas de outras que circulavam pela cidade. O policial aproximou a viatura por trás da picape com as luzes de alerta ligadas para deixar claro quem era e que estava ali. Ligou a sirene por alguns segundos e esperou; como ninguém saiu da picape, desligou a patrulha e soltou o cinto de segurança para sair do automóvel. — Central, vou dar uma olhada nessa picape para ver se não há ninguém ou nada de suspeito em seu interior. Enviem outra unidade para dar suporte — disse o homem pelo rádio. O policial saltou da viatura com calma, ajeitou o cinturão como se estivesse em um filme, acendeu uma pequena lanterna e caminhou com calma na direção da picape. O cinegrafista o acompanhava apenas com o zoom da câmera, enquanto esperava que o sonoplasta terminasse de desenrolar alguns cabos para poder também saltar da patrulha. Sem aviso, a porta traseira da picape abriu-se de uma vez e da escuridão do interior línguas de fogo cuspiram disparos mortais. O policial foi atingido diversas vezes no peito e arremessado com violência sobre o pára-brisa da viatura em meio a uma nuvem de respingos de sangue. Então as línguas de fogo voltaram-se para a câmera, que desmoronou em meio ao som de disparos e gritos abafados da equipe de TV. Alguns segundos mais tarde, enquanto na tela a imagem distorcida da câmera, que ainda transmitia as imagens que captava para a central da rede de TV, mostrava a picape partir lentamente pelo estacionamento deserto, o rádio da viatura chamava insistentemente o policial. Diante da ilha de edição, o produtor-assistente estava de boca aberta sem poder acreditar no que acabara de testemunhar. 10:32 AM A agente Shapiro tomou o restante do seu café depois de olhar longamente para o homem cansado que a fitava do outro lado da mesa como que pedindo para ela ter clemência e o mandar para casa. Então levantou-se, dando por encerrado o interrogatório, convencida de que ele não sabia mais nada além do que já tinha dito e que tinham gravado. — Você pode ir para casa agora. Se precisarmos, entraremos em contato. Por via das dúvidas, dois policiais farão sua segurança e, pelo menos por enquanto, é melhor que você não vá O MECANISMO 33 trabalhar. E não se preocupe, já contatamos seu chefe e você não corre o risco de perder o emprego — disse a agente do FBI para alívio do produtor-assistente. Na saída da sala de interrogatório, seu parceiro, o agente Jones, a aguardava com uma pasta nas mãos. — É o resultado da balística. As cápsulas encontradas no estacionamento são do tipo 5.56 x 45mm padrão NATO produzidas nos Estados Unidos. Nenhuma digital foi encontrada ou qualquer pista que nos leve aos atiradores — reportou Jones. — Esse tipo de munição é usado em pelo menos uma dúzia de fuzis automáticos. Isso está muito estranho. Uma picape roubada cheia de atiradores não identificados abatendo um policial e uma equipe de TV sem motivo aparente — comentou a agente Shapiro, preocupada com o caso. — Isso não é um crime comum ou coisa de gangues. Pode apostar que estamos diante de algo muito maior e mais complicado. — Eu sei e não é porque você está me dizendo. Veja isso, uma invasão de residência com homicídio do outro lado da cidade está relacionada com esse caso. Enquanto você interrogava o cara da TV, recebi uma ligação do xerife do Condado de Clark. A mesma picape do estacionamento foi filmada saindo do local desse outro crime, apenas uma hora antes. 11:42 AM Os dois agentes do FBI chegaram à mansão em estilo colonial localizada em um bairro de alta classe ao norte da cidade. Várias patrulhas estavam estacionadas no amplo pátio e policiais conversavam em pequenos grupos nas sombras das árvores. Foram recebidos pelo próprio xerife do condado, que imediatamente fez um relatório do caso. — Por volta das três da manhã recebemos uma ligação de uma empresa de segurança residencial avisando que um botão de pânico havia sido disparado neste endereço e haviam enviado uma equipe, que não respondeu aos chamados desde que chegou aqui. Duas das nossas patrulhas vieram e encontraram os dois agentes da empresa de segurança baleados aqui mesmo no pátio. Eles nem tiveram chance de sair do automóvel — disse o xerife de cabelos grisalhos, apontando para o automóvel de patrulha particular de portas escancaradas a uma dezena de metros. — Os policiais entraram na casa e encontraram apenas um empregado baleado na cozinha e na biblioteca o proprietário também baleado, um mulçumano chamado Fakut Al Mahir, morto com tiros na cabeça e com claros sinais de tortura. As fitas de vigilância da casa foram levadas, mas o automóvel da empresa de segurança tem uma câmera no para-brisa que gravou a saída da mesma picape azul do incidente do estacionamento que vocês estão investigando. — O pessoal da perícia encontrou alguma pista? — perguntou a agente Shapiro, apesar de já imaginar que a resposta seria negativa. — Nada, nenhuma digital, fibra ou vestígio. Quem esteve aqui sabia o que estava fazendo e tomou cuidado de não deixar pistas. Na biblioteca tudo parecia em ordem. Não havia praticamente nada fora do lugar, a não ser a cadeira de espaldar alto tombada, um punhado de papéis espalhados no chão e o corpo sem vida de um homem por volta dos sessenta anos, calvo, com barbicha e bigode branco, vestindo um pijama de seda azul ensanguentado. Várias marcas de violência deixavam claro que o homem havia sido cruelmente torturado antes de ser morto. 34 CHARLES DIAS Depois que os legistas levaram o corpo, os agentes Shapiro e Jones começaram a verificar cada folha de papel caída no chão, quando a agente encontrou algo que lhe chamou a atenção. — Veja isso — disse a Agente Shapiro, mostrando para o parceiro uma foto colorida do que parecia ser uma velha engrenagem enferrujada no verso da qual havia sido escrita com sangue alguma coisa. — Você consegue ler o que está escrito? — Isso parece um T, aqui parece um G e aqui um K, mas não consigo identificar a palavra — respondeu o agente depois de observar a foto longamente. 14:32 PM Os agentes Shapiro e Jones aguardavam calados enquanto o elevador os levava para o andar onde atenderiam a uma reunião com um dos legistas especialistas do FBI, enquanto ao fundo uma alegre música natalina não os deixava esquecer que estavam muito próximos do dia de Natal. Alguns minutos mais tarde ambos aguardavam que a grande tela de plasma que tomava metade da parede da sala de reuniões ganhasse vida. Então o escudo do FBI que flutuava na tela escura deu lugar a um homem de cabelos grisalhos e jaleco branco que estava em um laboratório onde técnicos continuavam trabalhando alheios a videoconferência. — Boa noite, agentes. Analisamos o material que enviaram. A foto não tem nada de especial, é uma foto comum que mostra parte de uma peça arqueológica chamada Mecanismo de Antikythera. Com a ajuda de um programa de análise grafológica, conseguimos identificar o que a vítima escreveu no verso da foto com o próprio sangue; é um nome em russo, Tunguska. — E o que são ambos, Doc? — perguntou a agente Shapiro, interessada. — O tal mecanismo é uma peça arqueológica controversa, de origem provavelmente grega, composta de um conjunto de engrenagens, algo que muitos especialistas não acreditam que pudesse ser feito naquela época. Já Tunguska é o nome de uma remota região de pântanos congelado da Sibéria Central onde há somente renas, floresta de Taiga e algumas tribos nômades. — Ou seja, não guardam relação entre si. Talvez seja um código — concluiu o agente Jones. — Talvez. Nossos especialistas em criptologia estão trabalhando na palavra neste exato momento. O objeto da foto e o nome não têm mesmo nada a ver um com o outro. Talvez a foto não tenha mesmo significado algum e foi apenas usada porque era o que a vítima tinha ao alcance da mão — disse o homem do laboratório. 21:54 PM A agente Shapiro estava sentada numa das cadeiras da sala de reuniões lendo a ficha da vítima. Fakut Al Mahir tinha 64 anos, era iraquiano, ex-coronel da Guarda Republicana de Saddam Hussein que desertou logo no início da operação que expulsou os iraquianos do Kuwait nos anos 1990 e trocou informações logísticas das forças iraquianas por uma nova vida nos Estados Unidos. Sem filhos e família, trabalhava como negociante de antiguidades do Oriente Médio. Era suspeito de fazer parte de uma rede que desovava no mercado negro internacional de antiguidades peças contrabandeadas do Oriente Médio. O MECANISMO 35 Um bip repetido anunciou o início de uma nova videoconferência, dessa vez com o próprio diretor do FBI. — Lemos atentamente seus relatórios e por isso convocamos esta reunião. Fakut Al Mahir tinha seus passos vigiados há algum tempo pelo FBI e pela CIA sob a suspeita de que fizesse parte de um grande esquema que procurava usar peças arqueológicas roubadas do Iraque após a invasão para financiar ações de grupos terroristas em todo o mundo, comercializando-as no mercado negro internacional de antiguidades. Infelizmente não tivemos tempo de confirmar sua participação ou mesmo a existência de tal esquema. Os acontecimentos de hoje, no entanto, reforçam essas suspeitas — disse o diretor do FBI. — Como os senhores devem ter constatado em nosso relatório, infelizmente não encontramos nenhuma pista desse homicídio, sua motivação ou seus autores. Foi um trabalho muito cuidadoso feito por profissionais, mas não podemos dizer que há algum grupo terrorista envolvido — interveio a Agente Shapiro. — Exatamente porque pensamos o contrário e dada a urgência de descobrirmos se existe realmente esse esquema de financiamento do terrorismo e se o tal Fakut Al Mahir estava envolvido, estamos enviando-os para a Alemanha, onde se reunirão com a Agente Especial Helen Donald Morgan, da CIA, que é a responsável por essas investigações. Vocês trabalharão com ela a partir de agora — disse o diretor do FBI Durante o restante da reunião discutiram detalhes técnicos da missão, as informações já juntadas, os suspeitos. Para a agente Shapiro tal missão não representava nenhum problema, mas sabia que seu companheiro, o agente Jones, não pensava da mesma forma. Pai de duas filhas pequenas e orgulhoso membro de uma grande família, o agente vinha planejando desde o início de novembro as festividades de Natal, até convidando-a para se juntar a eles, e aquela viagem o deixaria extremamente desgostoso. Algumas horas mais tarde embarcaram em um jato militar com destino à Alemanha. Intimamente a agente Shapiro esperava que pudessem voltar a tempo para que seu parceiro não fosse privado de desfrutar o Natal em família, porque aquele ano havia sido duro para eles, com casos complicados, e ele merecia aquele descanso. BASE DA FORÇA AÉREA DOS ESTADOS UNIDOS RAMSTEIN – ALEMANHA 22 DE DEZEMBRO 11:32 AM Assim que pousaram na maior base da Força Aérea dos Estados Unidos no exterior, os agentes Shapiro e Jones foram recepcionados por um automóvel da base. Assim que se acomodaram, o motorista, um jovem cabo de poucas palavras, lhes entregou um envelope com um chamativo “Secreto” impresso no papel amarelo, avisando de que seriam levados para casas de hóspedes da base e que deveriam aguardar lá pela agente Morgan. Enquanto eram levados pelas ruas da base militar, o agente Jones abriu o envelope para 36 CHARLES DIAS encontrar em seu interior um pendrive para cada um deles e uma nota escrita à mão pela agente Morgan instruindo-os a ler os relatórios que os dispositivos continham enquanto aguardavam por ela para uma reunião no final da tarde. 14:52 PM Assim que foi deixada na casa de hóspedes, a agente Shapiro deitou-se na cama e pegou no sono em alguns minutos por conta do cansaço da longa viagem. Assim que acordou tomou um longo banho e, depois de se secar e de se vestir, pegou uma lata de refrigerante no frigobar, ligou seu notebook e espetou o pendrive enviado pela agente da CIA. No pendrive havia dois relatórios nomeados Antikythera e Tunguska. Acessou o primeiro e leu o sumário enquanto bebericava o refrigerante gelado. “SUMÁRIO — Este artefato, que foi chamado de Mecanismo de Antikythera, é uma peça feita de bronze e madeira que em 1900 foi resgatada de um naufrágio romano. Até pouco tempo o mecanismo intrigava os cientistas, que sabiam com certeza apenas que o aparelho foi feito na Grécia entre 100 e 150 AC e que o naufrágio aconteceu em 65 AC. Muita especulação foi feita sobre qual seria o real propósito da peça, mas agora um grupo internacional de cientistas descobriu que ela era na verdade um computador analógico, capaz fazer o cálculo relativo das posições do Sol, da Lua e dos planetas, podendo assim prever eclipses solares. Segundo os cientistas, o dispositivo é composto por três discos, sendo que o da frente mostra o posicionamento do Sol e da Lua no zodíaco e o calendário correspondente de 365 dias. Os outros discos mostram os ciclos mais longos da Lua, como o de fases da lua (metónico), que dura 19 anos, e o de posicionamento no céu, relativo ao zodíaco (Calípco), que dura 76 anos.” Assim que terminou de ler o primeiro relatório, pegou outro refrigerante e começou a ler o segundo ainda com mais interesse. “SUMÁRIO — No dia 30 de junho de 1908, um evento ainda não completamente explicado destruiu 80 milhões de árvores num raio de 30 quilômetros em uma área de 2.150 quilômetros quadrados na região de Tunguska, na Rússia. O amanhecer daquele dia de verão nas margens do rio Podkamennaya Tunguska, na Sibéria, parecia igual a qualquer outro. Por volta das 7:15 da manhã daquele 30 de junho de 1908, ocorreu uma onda de choque quase mil vezes mais forte que a bomba de Hiroshima. Renas, ursos, lobos, raposas e milhares de outros animais tombaram junto com a vegetação, que até hoje não se recompôs inteiramente. Calcula-se que a explosão foi equivalente a mil bombas atômicas iguais à de Hiroshima, cujo ruído foi ouvido a mais de mil quilômetros de distância. Existem várias hipóteses para a ocorrência da explosão porque, embora cada uma seja acompanhada de explicações lógicas, nunca foi possível comprová-las O MECANISMO 37 totalmente. Se se trata de um meteorito, de um cometa ou de uma nave extraterrestre, onde estão os vestígios? A explosão (e as aparentes pequenas explosões que se seguiram) não deixou rastro de qualquer material que pudesse indicar a sua causa. Até hoje surgem notícias de pesquisadores que teriam encontrado uma cratera ou restos de materiais que poderiam desvendar o mistério, mas nada, nada ainda foi comprovado.” Ao terminar de ler os relatórios, a agente Shapiro ficou longos minutos meditando sobre o assunto, tentando imaginar o que tudo aquilo teria a ver com os assassinatos de Las Vegas e com uma possível rede terrorista que procurava financiamento com a venda de peças roubadas de museus iraquianos no mercado negro internacional de antiguidades. 18:00 PM No final da tarde uma equipe de agentes da CIA em uniformes táticos pretos trouxe aos agentes Shapiro e Jones ordens para que os acompanhassem até o local de uma ação conjunta da CIA com o Serviço Secreto Alemão, que guardava relação com o caso no qual estavam trabalhando, e que seria liderada pela agente Morgan. Na parte traseira de uma van descaracterizada, juntamente com outros agentes da CIA, seguiram rápido por uma rodovia de alta velocidade até Stuttgart, onde ocorreria a ação. Durante o trajeto nenhum dos agentes falou nada sobre a missão, limitando-se a conversar sobre o tempo, a comida alemã, a vida na base e a final do campeonato de beisebol. Depois de quase uma hora de viagem, a van saiu da rodovia principal, fez uma série de curvas no trânsito urbano e parou. A portas traseiras foram abertas, revelando o dia ainda bastante claro e pelo menos quinze agentes também em uniformes táticos acertando os últimos detalhes antes de entrar em ação. — Vocês dois, venham comigo — ordenou um agente negro com tom de autoridade que revelava seu passado nas Forças Armadas. O homem os conduziu até um caminhão de entregas que na verdade era uma central móvel de comando de operações. Uma ruiva de cabelos curtos e baixa estatura também uniformizada dava ordens enquanto terminava de checar seu equipamento. — Então vocês são os agentes dos FBI. Sou a Agente Especial Helen Morgan, da CIA. Fiquem aqui e acompanhem nossa missão de camarote. Assim que terminar conversaremos — disse a mulher vestindo a balaclava preta e o capacete balístico. — E o que tem essa ação a ver com nossa missão? — perguntou a Agente Shapiro, uma mulher alta e morena de cabelo preto comprido, descontente por ser mantida no escuro daquele modo. — Tudo a ver, pode acreditar. Agora, se me dão licença... — respondeu a agente da CIA, antes de saltar do caminhão para se juntar aos outros agentes. A operação foi realizada de forma precisa e rápida. Três times de agentes agiram de forma coordenada, invadindo o galpão de uma empresa de equipamentos hospitalares. Quatro vigias foram neutralizados antes que tivessem chance de esboçar qualquer reação e no escritório um 38 CHARLES DIAS casal foi capturado sem nenhuma resistência. Em cinco minutos a operação estava concluída com total eficiência. 20:16 PM — O homem se chama Mahmud Al Benzir, palestino radicado na Alemanha há cinco anos. Se de um lado trabalha legalmente com o comércio de material hospitalar para o Oriente Médio, por outro lado tem um negócio de contrabando de dinheiro e obras de arte que financiam vários grupos fundamentalistas islâmicos. Ele mesmo não é um terrorista ou radical religioso, mas tem trânsito por esses grupos e lucra com isso — disse a agente Morgan, olhando diretamente para o homem magro, calvo e de barbicha branca que aguardava sentado nervoso em uma sala de interrogatórios por trás do vidro blindado espelhado. — A mulher se chama Laura Al Baruch, inglesa de família jordaniana radicada na Inglaterra, esposa de Mahmud. Vários membros de sua família, inclusive o pai e dois irmãos, são suspeitos de colaborar com grupos terroristas islâmicos na Europa e nos Estados Unidos — continuou a agente, apontando para a mulher bonita de olhos severos e longos cabelos pretos sentada tranquilamente em outra sala de interrogatório anexa, porém separada da primeira. — E o que eles têm a ver com os assassinatos de Las Vegas? — perguntou a agente Shapiro, procurando soar tranquila. — Mahmud é primo em segundo grau de Fakut Al Mazir, sua vítima de Las Vegas. Além de parentes, os dois tinham uma sólida relação comercial. Isso é suficiente para você? — perguntou de forma sarcástica a agente da CIA. — Quero falar com ele antes de vocês o interrogarem — disse a agente Shapiro, ignorando a provocação. — Fique à vontade — respondeu a agente Morgan. A agente Shapiro entrou calmamente na sala de interrogatórios, levando uma pasta de papel e um garrafa pequena de água gelada, puxou a cadeira de metal do outro lado da mesa e sentou-se diante de Mahmud, que a observava silencioso. Abriu então a pasta e passou a ler alguns dos documentos atenciosamente, passado cada página com lentidão premeditada, até que se deu por satisfeita e fechou a pasta. Então abriu a garrafinha sem tirar os olhos do prisioneiro, tomou um gole, respirou, tomou outro gole, e fechou a garrafa, pousando-a sobre a mesa. — Senhor Benzir, sou a agente Shapiro, do FBI. Estou aqui para saber sobre seu primo de Las Vegas — disse a agente de forma casual. O homem permaneceu em silêncio. — Entendo que não queira falar, mas eu e você sabemos que falará uma hora ou outra. A CIA, que o capturou e a sua esposa, é especialista em fazer prisioneiros relutantes falarem. O pior, senhor Benzir, é que sua esposa será interrogada antes do senhor, já que os especialistas da CIA acreditam que mulheres são mais suscetíveis a certas técnicas de interrogatório que homens. No entanto estou autorizada a fazer um acordo com você. Você coopera e me diz o que quero saber, e apenas eu interrogarei sua esposa, mais ninguém, e garanto que serei muito mais comedida que a agente psicopata da CIA que está atrás desse espelho nos observando nesse exato momento — disse a agente Shapiro com tranquilidade. O que a agente Shapiro disse mexeu profundamente com o prisioneiro, que deixou O MECANISMO 39 transparecer sua expressão. — Não posso trair Fakut, ele é família — disse o homem por fim. Então a agente tirou da pasta uma foto que mostrava Fakut Al Mazir morto em sua casa em Las Vegas e pousou-a diante de Mahmud Al Benzir, que chorou ao vê-la. — Alguém fez isso com seu primo e é para descobrir quem foi que estou aqui. Ele escreveu algo no verso dessa foto com o próprio sangue antes de morrer e temos certeza de que revela alguma coisa quanto aos responsáveis por sua tortura e morte. O que você sabe sobre isso? — perguntou a agente mostrando outra foto ao prisioneiro, essa com a palavra escrita com sangue no verso da foto do mecanismo arqueológico. — Não há muito que possa lhe revelar. Há três meses fomos contatados pela Al Qaeda para levarmos algo do norte do Iraque para os Estados Unidos. Dissemos que não faríamos a loucura de tentar contrabandear explosivos ou qualquer outro tipo de arma para os Estados Unidos, mas disseram que eram apenas antiguidades para serem vendidas para colecionadores americanos. Muitos grupos usam esse tipo de esquema de financiamento, já que o Oriente Médio é rico em artefatos arqueológicos e há um vasto mercado internacional para esses itens. Aceitamos o contrato e fui pessoalmente buscar os artefatos numa vilazinha remota no norte do Iraque, chamada Al Affez Assad — disse o prisioneiro. — Veja bem, não sou um homem supersticioso, mas acredito que existem coisas estranhas no mundo, coisas sobrenaturais. Nessa vila passei a noite na casa do mulá e ele contou que os homens da Al Qaeda estavam trabalhando em um antigo depósito de Saddam Hussein e que apesar de não saber o que tinha lá tinha certeza de que era algo muito perigoso, pois o lugar ficava em um local de difícil acesso e demorou anos para ser construído no mais absoluto segredo. Fiquei tão impressionado com a conversa que inventei que naquela noite não dormi bem, tive muitos sonhos estranhos, então na manhã seguinte disse para os terroristas que havia recebido uma ligação avisando que meu negócio estava sendo vigiado pelo governo alemão e que, por isso, não poderia mais cumprir o contrato com segurança. Aceitaram minha desculpa e me levaram embora no mesmo dia. Depois disso não tive mais notícias desse grupo, mas pelo jeito meu primo continuou a trabalhar para eles sem que eu soubesse, aquele tolo ganancioso. — E o que significa a foto do mecanismo antigo e a palavra que eles escreveu no verso? — perguntou a Agente Shapiro, não muito satisfeita com o que havia ouvido. — A foto, não sei do que se trata, mas a palavra ouvi várias vezes sendo dita pelo homem que liderava o grupo da Al Qaeda na aldeia. Ele se divertida dizendo que dariam Tunguska de presente de Natal para o Ocidente, especialmente para os Estados Unidos. Dessa vez foi a vez da Agente Shapiro ficar um longo tempo observando em silêncio o prisioneiro enquanto bebericava novamente a garrafa d’água. Quando notou que Mahmud estava impaciente o suficiente, rompeu o silêncio. — Ambos sabemos que tudo o que disse, mesmo que seja verdade, não é o suficiente para evitar que sua esposa seja interrogada pela CIA. Eu quero ajudá-los, mas você não está me ajudando e assim me deixa de mãos atadas. O prisioneiro olhou para as mãos e deu um longo suspiro antes de responder. — Procurem por Vasili Golitiev, um engenheiro russo que trabalhava para os terroristas no bunker secreto e que fugiu para o Líbano. Até onde sei, ele foi capturado por agentes israelenses em Beirute. Esse homem poderá lhes contar muito mais sobre tudo isso. 40 CHARLES DIAS 22:02 AM Em uma nova reunião por teleconferência, dessa vez com os diretores do FBI e da CIA, as agentes Shapiro e Morgan foram enviadas para Israel, onde deveriam interrogar pessoalmente o tal cientista russo, que realmente havia sido capturado pelos israelenses em Beirute alguns dias antes, autorizadas a usar todos os meios que achassem necessários para arrancar dele do que se tratava a tal carga a ser enviada para os Estados Unidos. Enquanto isso, o Agente Jones foi enviado para investigar a tal vila iraquiana com o apoio de um comando de Forças Especiais do Exército. PRISÃO DE SEGURANÇA MÁXIMA DE YAFO TEL-AVIV – ISRAEL Natal no Futuro 23 DE DEZEMBRO 07:32 AM — Prisioneiro Vasili Golitiev, levanta-se, você tem visita — disse o mal-encarado guarda israelense em tom de escárnio para o homem de meia-idade acima do peso, sardento, de cabelos ruivos ralos em desalinho, que comia o café da manhã, um mingau ralo e um pedaço de pão, sozinho em uma pequena cela de concreto e aço. O homem colocou a bandeja de lado e ergueu-se lentamente apenas para irritar o guarda, que respondeu com uma inesperada e violenta cacetada em sua coxa, fazendo-o gritar de dor. — Mais uma gracinha e você irá se arrepender de ter nascido — rosnou o guarda, erguendo o cacete de forma ameaçadora. O prisioneiro russo percorreu três longos corredores arrastando dolorosamente a perna espancada sem olhar para os lados, até que finalmente o guarda apontou uma porta aberta e ele se viu em uma sala de interrogatórios. — Ele foi capturado no sul do Líbano pelo Mossad enquanto tentava comprar um passaporte francês falso. O idiota nem ao menos suspeitou que estava negociando com nossos agentes. Já o interrogamos duas vezes desde que chegou aqui. Seu nome é Vasili Golitiev, nacionalidade russa, 38 anos, solteiro, sem filhos, formado pela Universidade de Moscou em engenharia e física. Quando questionado sobre o que estava fazendo no Líbano sem passaporte, contou uma história fantasiosa de ter sido contratado por um grupo terrorista para invadir um bunker secreto de Saddam Hussein no Iraque. Só que apesar de não ser muito esperto, ele sabe que se disser tudo o que sabe nesse momento, não terá nada para negociar sua libertação e extradição — disse o diretor da prisão, enquanto tomava de uma xícara de café na antessala de controle da sala de interrogatório onde estava o prisioneiro. Dessa vez ambas as agentes entraram na sala de interrogatório, mas foi a agente Morgan quem conduziu o interrogatório. — Senhor Golitiev, vamos direto ao assunto. Você sabe exatamente o que significa estar detido em uma prisão israelense por ter sido pego em território libanês tentando comprar um passaporte falso e depois confessar que trabalhava para algum grupo terrorista obscuro qual- O MECANISMO 41 quer? — perguntou, encarando o prisioneiro, que parecia ter ficado bastante nervoso assim que elas entraram na sala e ele notou que eram norte-americanas. O russo respondeu apenas com um aceno negativo de cabeça. — Significa que ninguém sabe que você está aqui, nem saberá. Significa que você nunca mais sairá daqui. Nada de julgamento ou de advogados para prisioneiros de guerra, que é o que os israelenses o consideram. Mas hoje você tirou a sorte grande, estamos aqui para oferecer-lhe a liberdade se as informações que nos der forem realmente boas. Queremos saber sobre o que você realmente estava fazendo no Iraque e sobre isso — disse a agente Morgan, colocando diante do russo reproduções da foto do mecanismo com a palavra escrita em sangue no verso encontradas pela agente Shapiro em Las Vegas. O homem considerou por alguns minutos o que lhe foi dito antes de falar. — Há dois meses fui procurado por um homem que me convidou para trabalhar em uma escavação clandestina particular no Iraque. Estou passando por um momento complicado da minha vida, saí de um divórcio que me deixou sem nada e minha vaga de professor-assistente na Universidade de Moscou foi extinta. Enfim, poderia ganhar um bom dinheiro e também me mudar para longe com aquele trabalho, então aceitei. — E o que aconteceu? — perguntou a agente Shapiro. — Você poderia pedir para trazerem água? Fico com a garganta seca quando falo por muito tempo — pediu o prisioneiro russo, que depois de tomar um copo de água gelada continuou seu relato. — Nunca pensei que seria tão fácil entrar clandestinamente no Iraque ocupado por forças do seu país, mesmo que fosse numa vilazinha poeirenta perdida em algum lugar no norte do país. Fui levado para lá num jatinho particular, vocês acreditam nisso? Incrível. A escavação ficava a uns dez quilômetros da vila, junto da encosta de uma montanha. Até então pensava que eles queriam que eu demolisse algumas rochas em algum sítio arqueológico, mas quando vi que a tal escavação era na verdade um grande bunker de concreto e aço, soube que eles não estavam ali por pouca coisa. Era um dos famosos bunkers secretos de Saddam Hussein. Foi quando soube que tinha me metido em uma grande enrascada. Não parava de pensar que talvez ali estivessem as tais armas de destruição em massa que vocês, americanos, usaram como motivo para invadir o Iraque. Já realizei alguns trabalhos bastante complicados, mas esse foi o mais difícil que já tive de fazer. O tal bunker era extremamente bem construído e projetado para aguentar umas três guerras nucleares. Demoramos quase um mês para romper as enormes portas de aço reforçado e concreto da entrada. Nesse meio-tempo fiz uma amizade muito especial, se é que me entendem, com uma arqueóloga alemã que acompanhava o grupo chamada Sonia Strasser. Um dia ela me contou exatamente o que estavam procurando. As agentes escutavam com atenção enquanto o russo contava sua história, cada uma tomando notas esparsas de pontos que consideravam importantes. — Ela me disse que aquele bunker guardava o acervo do que ela chamou de museu secreto de Saddam, o lugar para onde o ditador mandou as peças arqueológicas e históricas mais valiosas do Iraque e que ele tomou para sua coleção particular. Apesar de haver dentro do bunker meia dúzia de cofres fortes que, com toda a certeza, guardam tesouros magníficos, o objetivo deles era apenas uma peça. Sonia disse que se tratava de um mecanismo muito antigo parecido com as engrenagens de um relógio, algo muito parecido com o Mecanismo de Antikythera. Vocês já ouviram falar desse mecanismo? — perguntou o russo, sorrindo quando ambas assentiram ne- 42 CHARLES DIAS gativamente com a cabeça. — Sou apaixonado por estudos extraterrestres e sei que o Mecanismo de Antikythera é um grande mistério. Ele foi descoberto no fundo do mar na Grécia por volta de 1901 por mergulhadores de pérolas. O que pouca gente sabe é que os restos do mecanismo que estão em museu são restos de uma mera cópia de mecanismos muito mais complexos e que foram descobertos no mesmo lugar poucos dias depois em grandes vasos de vidro selado, exatamente dois desses vasos, cada um contendo um mecanismo completo e funcional. Dentro dos vasos também havia uma série de placas de metal nas quais foi escrita a história do mecanismo, uma história incrível. Apesar do entusiasmo do prisioneiro russo, a agente Shapiro não pode deixar de considerar aquilo tudo uma perda de tempo, mas como a agente Morgan continuava a ouvir com atenção o que ele dizia, ela preferiu ficar calada e continuar ouvindo a história fantasiosa. — Segundo as placas, quando a Terra ainda era dominada pelos dinossauros, Marte era habitada por duas raças que não se davam muito bem, alternando períodos de paz e de guerra. Eram ambas raças muito avançadas, com tecnologia muito à frente da que temos hoje. Uma dessas raças criou então algo extraordinário, algum tipo de singularidade espaço-temporal que poderia tanto ser usada como arma quanto como ferramenta de terraformização, no caso, marcificação — disse, dando uma risadinha que calou quando notou que nenhuma das agentes riu com ele. — E decidiram fazer ambos os usos. Um grupo escolhido a dedo foi retirado de Marte num tipo de arca de Noé em versão marciano-espacial e então duas singularidades foram disparadas, uma contra a Terra e outra contra Marte. Só que seus criadores não esperavam que seus efeitos fossem tão devastadores. A Terra foi varrida de praticamente todas as formas de vida, e adeus dinossauros, enquanto Marte teve suas cidades destruídas e seus mares, rios e lagos evaporados. E lá foi esse pessoal de volta para Marte tentar consertar o que haviam destruído, deixando para colonizar a Terra depois. Só que a singularidade produziu efeitos imprevisíveis. Na Terra criou mamíferos cada vez mais inteligentes, enquanto em Marte começou a mexer na própria órbita do planeta. Alguns milhares de anos depois a Terra florescia como nunca, enquanto em Marte apenas algumas centenas de sobreviventes viviam nas profundezas subterrâneas do planeta ainda buscando um modo de reverter o que haviam feito. Quando se convenceram de que não havia salvação para Marte, os sobreviventes vieram para a Terra e trouxeram consigo as duas únicas outras singularidades criadas por seus antepassados. Aqui se tornaram os deuses antigos de Atlântida, dos Maias, dos Assírios, mas eventualmente morreram e desapareceram nas poeiras da história, e sua herança maldita foram as singularidades destruidoras de mundos. O russo tomou mais um pouco de água e respirou fundo antes de concluir seu relato. — Por milênios os mecanismos foram passando de mãos em mãos, até que foram comprados em um leilão de antiguidades em Londres por um obscuro cientista inglês, que traduziu as placas e descobriu, além de sua história e o que eram, como ativar as singularidades. Disposto a fazer fortuna com a arma que achava que sabia controlar, resolveu fazer um teste em uma região remota. Escolheu a Sibéria. Então partiu deixando seu irmão guardando um dos mecanismos enquanto levava o outro. Partiu disposto a acionar o mecanismo que levava consigo na manhã de 30 de junho de 1908 às 7 horas da manhã. Ele realmente o fez e exatamente quatorze minutos depois uma explosão sem igual destruiu tudo num raio de trinta quilômetros e foi ouvida a mais de mil quilômetros. A poeira levantada pela explosão envolveu o planeta e demorou meses para baixar. O irmão, desesperado com o ocorrido e temendo ser preso como cúmplice, fugiu para o Oriente Médio, para a Pérsia, o atual Irã, que na época era protetorado britânico. Ninguém sabia o que havia acontecido desde então, nem como o mecanismo foi O MECANISMO 43 parar no museu de Saddam Hussein. Por vários minutos os três ficaram em silêncio, as duas agentes encarando o russo, que se mexia desconfortável na cadeira. — Vocês acham que estou louco, não é mesmo? — exclamou após um longo silêncio na sala de interrogatórios. — Não as culpo, também acharia isso de alguém se ouvisse essa história. Mas juro que é tudo verdade. Apenas quatro dias antes da minha captura pelos israelenses em Beirute, conseguimos penetrar no cofre-forte onde estava o mecanismo e o vi com meus próprios olhos, dentro de uma caixa de cristal, uma coisa que só de ver sabemos que não foi feita por mãos humanas. Sabendo do que se tratava, tentei explodir tudo, mas descobriram antes e atiraram para me matar. Sonia se sacrificou para me proteger. Consegui roubar uma moto dos terroristas e fugi pelo deserto, só parando para dormir durante o dia e para roubar combustível e comida. Não me perguntem como consegui fazer isso, porque também não sei. Esses terroristas claramente planejam usar esse mecanismo em algum atentado, mas com isso podem destruir todo o planeta. Não sei onde nem quando farão isso, mas posso garantir que se há alguém nesse planeta que sabe como desativar o mecanismo depois de ativado, esse alguém sou eu. VILA DE AL AFFEZ ASSAD NORTE DO IRAQUE MADRUGADA DO MESMO DIA 05:00 AM Ainda estava escuro quando trinta soldados camuflados chegaram caminhando rápido à pequena vila com não mais de uma dúzia de casas dispostas de maneira caótica em torno de um poço d’água. De forma coordenada os soldados invadiram todas as casas simultaneamente. Em apenas uma delas foram ouvidos disparos. A vila estava dominada. No pequeno cômodo decorado com tapetes coloridos, um homem de pele morena, barba e cabelos desgrenhados estava sentado em uma cadeira com os braços para trás e os pulsos presos por uma presilha de plástico de alta resistência. Diante de uma pequena mesa o agente Jones usava um computador de mão para invadir o notebook do prisioneiro. — Senhor, aqui é o sargento Roskins. O local da escavação está dominado. Havia somente dois guardas que foram capturados. Estamos levando-os para interrogatório. Os engenheiros já começaram a vasculhar o local — sussurrou o fone de ouvido do agente Jones. Assim que fez o link entre o notebook encontrado com o terrorista e a sede do FBI nos Estados Unidos usando uma conexão de satélite, o agente Jones voltou sua atenção para o homem. — Vou lhe fazer uma oferta que é um verdadeiro presente de Natal. Você me diz tudo o que sabe sobre essa escavação e assim evita uma desagradável viagem só de ida para Guantânamo. Simples assim. Essa oferta tem duração de apenas cinco minutos, então é melhor responder rápido. 44 CHARLES DIAS O homem não respondeu, mas ficou olhando para o chão em silêncio. Então o agente chamou um oficial que esperava do lado de fora do quarto. — Executem todos os prisioneiros. Somente esse aqui vai conosco. O soldado saiu em silêncio e minutos depois os gritos das mulheres e crianças sendo reunidos juntos do poço encheram a noite. O terrorista remexeu desconfortável na cadeira, mas continuou em silêncio e com os olhos baixos. Então uma mulher jovem correu para dentro do quarto e abraçou o terrorista, cobrindo-o com suas lágrimas. Dois soldados vieram em seu encalço e a arrastaram para fora do quarto. — O bunker é um depósito de antiguidades de Saddam Hussein. Estávamos procurando uma peça em especial, algum tipo de arma antiga que será usada em atentado nos Estados Unidos. Assim que encontramos o que estávamos à procura, nosso líder levou o objeto sem dizer para onde iria. Isso é tudo o que sei. Fiquei para trás com os dois guardas para tomar conta das escavações até que venha outro grupo para retirar o que resta no bunker. Podem me levar, mas não façam mal para meu povo. 09:00 AM — E seu prisioneiro confirmou a história do engenheiro russo? — perguntou a agente Morgan para o agente Jones, que aparecia na tela do notebook através do sistema de videoconferência via satélite. — Em parte. Ele confirmou a presença do russo nas escavações como responsável pela abertura do bunker e do cofre-forte onde estava o mecanismo e também sua fuga, mas não sabe nada a respeito do que é o tal mecanismo. Os guardas chegaram aqui depois da fuga do russo e não sabem de nada. O que nosso pessoal descobriu no notebook do terrorista? — Algumas informações importantes sobre as atividades do grupo, vários contatos, mas nada específico sobre esse atentado em especial ou o tal mecanismo — respondeu a agente Shapiro. — O que os especialistas do Exército encontraram no bunker? — perguntou a agente Morgan. — Nada além de antiguidades e do equipamento usado para invadir o local. Nesse momento o agente Jones levou a mão ao ouvido esquerdo e escutou atentamente ao que lhe era dito pelo fone de ouvido. — Acabei de ser avisado de que um automóvel foi capturado quando entrava na vila trazendo dois outros terroristas. Vou verificar do que se trata. 10:45 AM — Boas notícias. Pelo jeito um figurão do grupo de terroristas resolveu visitar o bunker para levar alguma coisa e fazer um lucro pessoal, por isso veio acompanhado apenas pelo motorista, que é seu primo. O homem ficou tão surpreso com a captura quanto por sabermos tanto do seu grupo e desse lugar que ficou contente em fazer um acordo — disse o agente Jones ao retomar a reunião por videoconferência com as agentes Shapiro e Morgan. — Ele disse que Fakut Al Mazir foi o responsável por levar o mecanismo para os Estados Unidos e que foi morto porque queria receber mais que o combinado. O mecanismo está agora em poder dos terroristas O MECANISMO 45 e a caminho de Nova York. O prisioneiro não conhece a rota que usarão para chegar até lá, mas disse que um dos terroristas levará o artefato ativado até a Times Square na noite de véspera de Natal pronto para causar muita destruição exatamente à meia-noite. — Mas como reconhecer esse terrorista suicida entre a multidão que estará no metrô de Nova York na noite de Natal? — perguntou a agente Morgan, sem esperar resposta. PRISÃO DE SEGURANÇA MÁXIMA DE YAFO TEL-AVIV ISRAEL 14:17 PM — Se vocês estão de volta é porque pelo menos estão em dúvida se falei a verdade ou não — disse Golitiev com um sorriso de satisfação do outro lado da mesa da sala de interrogatório. — Como funciona esse mecanismo? — perguntou a Agente Morgan, ignorando o tom abusado do russo. — Não tenho a menor ideia, afinal de contas essa coisa não é desse mundo. Quanto a ligála, desligá-la e controlar a potência da explosão, estamos falando basicamente em exposição à radiação. Expor o mecanismo a doses específicas de radiação numa sequência determinada faz o serviço. Foi isso que eu e Sonia deduzimos, estudando a tradução das inscrições que acompanhavam o mecanismo e o diário de trabalho do inglês que destruiu Tunguska. — E quais as doses e a sequência para desativar essa coisa? — perguntou a agente Shapiro, impaciente. — Não é tão fácil, agente. Não cometerei a idiotice de dizer isso a vocês e ficar aqui esperando que me libertem se tudo der certo. Não, nada disso. Levem-me com vocês, deem-me o equipamento de que precisarei e eu mesmo desativarei a bomba. Depois disso quero minha liberdade e dez milhões de dólares. — Quem você pensa que é?! — gritou exasperada a agente do FBI, levantando-se da mesa para colocar seu rosto furioso a centímetros do rosto do russo. — Sou único ser humano que pode impedir uma tragédia em seu país e talvez até a destruição de todo o mundo — respondeu Golitiev, nervoso. 18:21 PM O jato particular cortava o céu em alta velocidade sobre o Oceano Atlântico em direção a Nova York, levando em seu interior os agentes Shapiro, Jones e Morgan, além do engenheiro russo. — Você tem certeza de que com isso poderemos localizar o terrorista no meio da multidão? — perguntou a Agente Morgan, olhando curiosa o aparelho de aparência estranha que era mostrado na grande tela de plasma na parede que separava a área da tripulação da área de passageiros da aeronave. — Certeza absoluta. O mecanismo gera um campo magnético permanente que pode ser 46 CHARLES DIAS detectado por esse aparelho de uma distância de até dez metros, talvez um pouco mais. No monitor do aparelho o mecanismo brilhará como um vaga-lume — respondeu Golitiev entre uma garfada e outra da refeição que a comissária de bordo lhe havia trazido. — Sinceramente não acredito que essa coisa possa fazer todo esse estrago. Para mim tanto você quanto seus amigos terroristas estão se fazendo de idiotas, de completos idiotas — disse o agente Jones para o russo em tom de descaso. — Eu mesmo gostaria de estar enganado. Ninguém sabe direito como controlar a potência desse mecanismo. Talvez Sonia não tenha traduzido corretamente o manual de instruções e os terroristas tenham ajustado o mecanismo para potência máxima. Mas de uma coisa tenho certeza, ele é real, não foi construído por mãos humanas e tudo indica que é capaz de fazer o que aquelas placas de metal dizem que pode fazer — retrucou Golitiev. — Não entendo uma coisa. Se os marcianos que criaram esse mecanismo eram tão inteligentes e avançados, por que criaram algo tão perigoso de forma que fosse tão fácil de ser usado? — perguntou a agente Morgan para ninguém específico. — Quem pode saber como pensavam os marcianos, no que era baseada sua lógica. Talvez venerassem a simplicidade — respondeu Golitiev antes de colocar a última colherada de sobremesa na boca. — Não sei como você tem apetite numa hora dessas — resmungou a agente Shapiro ao ver o russo colocar o prato de lado satisfeito. — Fique presa alguns dias numa prisão israelense e você saberá — disse o russo, limpando satisfeito os lábios com o guardanapo. ESTAÇÃO DE METRÔ DE TIMES SQUARE NOVA YORK 24 DE DEZEMBRO 22:37 PM A estação de metrô de Times Square estava apinhada de gente que ia assistir ao show de luzes de Natal promovido por uma grande corporação japonesa que acabara de instalar uma base de operações na cidade. Homens, mulheres, muitas crianças e idosos se acotovelavam nas várias plataformas em direção às saídas. Agentes do Serviço Secreto e do FBI observavam com muito cuidado as leituras dos sensores de campo magnéticos estrategicamente posicionados na estação, todos ocultos em bancas de jornal ou cabines de controle do metrô. — Você tem certeza de que poderemos captar o mecanismo com esses sensores? — perguntou a agente Shapiro para Golitiev, enquanto observavam a multidão nos vários monitores de segurança da sala de controle da estação. — Claro que tenho. Estudei com cuidado a planta da estação e sei como esses sensores se comportam — respondeu calmamente o russo. O MECANISMO 47 O agente Jones não estava ali, mas comandando uma das equipes de abordagem junto da saída principal da estação. A agente Morgan coordenava seu pessoal da CIA e a agente Shapiro, seu pessoal do FBI da sala de controle da estação. 23:24 PM — Atenção, localizamos o terrorista. Ele acaba de desembarcar na plataforma 12 e está seguindo em direção à saída para a Rua 42. É um rapaz moreno, em torno de vinte anos, cabelos pretos, de jaqueta preta, gorro camuflado e leva uma mochila vermelha e cinza de alpinismo — disse um agente pelo fone de ouvido para todos os agentes da estação. — Venham, chegou nossa vez — disse a agente Morgan, levantando-se. Golitiev seguiu as agentes, preparado para o que sabia ser o momento mais importante de toda a sua vida, quando deveria desarmar o mecanismo alienígena que poderia destruir todo o planeta. Quando chegaram ao grande salão central da estação onde desembocavam vários dos túneis de saída, abriram caminho em meio à multidão para ir até uma porta de aço reservada aos funcionários do metrô e que dava acesso aos túneis de serviço, onde em uma sala de manutenção havia sido colocado o equipamento que Golitiev necessitaria para fazer seu trabalho. 23:31 PM — Suspeito no túnel norte a 150 metros da saída. — Entendido. Suspeito localizado e sem sinais de suspeita de nossa presença. — Não façam nada que possa fazê-lo desconfiar de nossa ação. — Entendido. Estamos seguindo o suspeito de uma distância segura. Disparos de submetralhadora são então ouvidos e imediatamente o pânico toma conta da estação, fazendo gente correr desesperada para todos os lados. — O que foi isso? Repito, o que foi isso? — O suspeito estava sendo acompanhado de longe por outros terroristas que identificaram um dos nossos agentes e começaram a disparar. O agente Jones foi ferido, repito, o agente Jones foi ferido. — Onde está o terrorista que leva a bomba? — Ele entrou por uma porta de serviço. Não posso seguí-lo, estou encurralado. — Por qual porta de serviço? Diga logo, homem. — Porta 327H. — Essa porta vai dar no túnel de serviço 2J. — Aqui é a agente Morgan, estou com a agente Shapiro no túnel de serviço 1J e podemos interceptá-lo. Não deixem que nenhum outro terrorista o siga. 23:35 PM Pelo mal iluminado túnel de serviço de paredes arredondadas como um tubo e cobertas de 48 CHARLES DIAS canos e grossos cabos de eletricidade, as agentes Morgan e Shapiro corriam o mais rápido possível de armas em punho para interceptar o terrorista que estava a uma centena de metros à frente, enquanto o engenheiro russo havia sido levado para junto de seu equipamento por outro agente. — Droga, droga, outro terrorista conseguiu entrar no túnel de serviço, deve estar indo proteger o primeiro. Tomem cuidado que ele está armado com uma submetralhadora — gritou um dos agentes pelo rádio. Segundos depois a agente Morgan se assustou com vários disparos de arma de fogo vindos do fundo do túnel e que arrancaram faíscas das paredes poucos metros a sua frente. — Continue, eu cuido desse desgraçado — gritou a agente Shapiro para a agente Morgan, enquanto se escondia atrás de um anteparo de concreto para disparar várias vezes com sua arma contra o terrorista que havia disparado primeiro. A agente Morgan continuou correndo pelo túnel o mais rápido que podia e agradeceu silenciosamente pelo gosto pela corrida que tinha aprendido com o ex-marido. Quando viu, porém, uma placa indicando que a saída do túnel estava a menos de 50 metros, alarmou-se com a possibilidade de não conseguir capturar o terrorista antes que ele voltasse a se misturar com a multidão em pânico, o que a fez correr ainda mais rápido. Alguns segundos depois a agente Morgan conseguiu ver não muito longe o terrorista com a mochila vermelha nas costas correndo em direção ao fim do túnel. Quando achou que somente disparando poderia detê-lo, de forma inesperada e incompreensível o homem rodopiou no ar e caiu de cara no chão quebrando o pescoço. Quando chegou próximo com a arma em punho, viu que o homem estava morto, com os olhos vidrados fitando o nada. Atravessando o túnel de lado a lado havia uma fina, porém resistente, corda de nylon. — Essa deve ter doído — disse Golitiev com uma expressão amedrontada, saindo detrás de uma antepara ainda com o rolo de corda na mão. 23:46 AM — Como chegou aqui? Você poderia ter morrido — disse a agente Morgan, enquanto recuperava o fôlego. — Não quero morrer hoje, então tive de tentar ajudar — respondeu Golitiev, enquanto com cuidado abria a mochila que o terrorista morto trazia para dentro encontrar uma caixa de acrílico que guardava o mecanismo, um conjunto complexo de engrenagens e mostradores feitos de um metal amarelo-alaranjado de aspecto estranho ao olhar e que brilhava levemente na obscuridade do corredor de serviço. — Temos pouco tempo. Precisamos correr até meu equipamento — disse o engenheiro russo, colocando a caixa novamente na mochila e esta nas costas. — Vamos voltar por este túnel — respondeu a agente, fazendo sinal para o russo a acompanhar. Os dois correram o mais rápido que puderam e então Golitiev pareceu tropeçar pouco antes de ouvirem o som de um disparo de arma de fogo, foi quando a agente Morgan viu um terrorista sair detrás de um latão de metal com uma pistola em punho. O russo havia sido baleado no braço e gemia enquanto pressionava o ferimento com a mão. Antes que a agente pudesse sacar a arma para reagir, um novo disparo vindo do fundo do túnel atingiu o terrorista na cabeça, fazendo-o tombar sem vida. — O que aconteceu? Você está bem? — Perguntou pouco depois a agente Morgan para a O MECANISMO 49 agente Shapiro, que estava caída encostada na parede do túnel, seu casaco estraçalhado e ensanguentado na altura do ombro direito. — Estou bem, o projétil atravessou meu ombro, mas não atingiu nenhuma artéria. Estou bem. E Golitiev? — perguntou a agente do FBI, fazendo uma careta de dor. — Estou bem, foi de raspão — respondeu o engenheiro russo com um sorriso amarelo. — Vão logo. Salvem a cidade. Eu estou bem. 23:51 AM Cansados da corrida forçada, a agente Morgan e Golitiev chegaram à pequena sala de manutenção para onde haviam sido levados os equipamentos que o russo havia dito serem necessários para desativar o mecanismo. Sobre uma mesa de madeira havia um equipamento pesado de aparência estranha com um notebook conectado, era o dispositivo que emitiria os pulsos de radiação que desativariam o mecanismo, havia também vários sensores de diversos tipos com mostradores digitais gráficos e numéricos. Golitiev retirou o mecanismo da mochila, o pousou com cuidado sobre a mesa e se sentou, respirando fundo antes de começar a trabalhar. Primeiro usou os vários sensores e leu cuidadosamente as leituras nos mostradores. Então inseriu uma série de dados em outro notebook, que passou a mostrar um contador regressivo com menos de cinco minutos de tempo restante. Então começou a trabalhar no laptop ligado ao aparelho de formato estranho, para logo em seguida parar o que estava fazendo com um suspiro. — O que aconteceu? — perguntou a Agente Morgan, nervosa. — A sequência de radiação que terei de lançar no mecanismo para desativá-lo não é cíclica como pensava. Ela varia de acordo com o tempo restante para ativação. Desse jeito não poderei fazer a desativação de forma automática, terei de ficar aqui operando o equipamento — respondeu Golitiev, nervoso. — Saia, feche bem a porta e vá para longe. Talvez tenha de usar mais radiação do que seria saudável para você se ficasse aqui. É bom deixar a equipe de descontaminação pronta, caso as coisas aqui dentro esquentem demais. Não queremos contaminar com radiação mais ninguém além de mim, não é mesmo? Faltando menos de um minuto para o contador regressivo chegar a zero, Golitiev, sozinho na pequena sala de manutenção diante do mecanismo extraterrestre que poderia destruir todo o planeta, iniciou a sequência de pulsos de radiação. Dentro da caixa de acrílico, o mecanismo respondeu aos pulsos variando a intensidade do brilho que emitia, enquanto um zunido muito baixo e irritante tomou conta do cômodo. No contador regressivo o tempo se esgotava rapidamente e era contado em segundos. Golitiev não tirava os olhos dos mostradores do mecanismo, respondendo a cada variação com pulsos cada vez mais intensos e longos de radiação. Faltando apenas dez segundos para o mecanismo ser acionado, o contador geiger começou a bipar furiosamente em resposta aos níveis de radiação perigosamente próximos do perigo mortal para seres humanos. Sentindo uma fraqueza incomum, uma vontade irresistível de fechar os olhos e dormir, o russo pressionou uma tecla do laptop liberando uma dose especialmente alta de radiação e rezou para que não perdesse a consciência antes que aquele derradeiro pulso de radiação mortal desativasse o mecanismo. 50 CHARLES DIAS AEROPORTO DE LA GUARDIA WASHINGTON DC 20 DE JANEIRO 20:22 PM No saguão do aeroporto um grupo de pessoas aparentemente comum conversava próximo do portão de embarque de um voo para Paris. Eram a agente Shapiro, com o braço em uma tipoia, e a agente Morgan, que acompanhavam Golitiev, que ainda tinha o rosto com a pele descascada como se tivesse passado tempo demais sob o sol de alguma praia tropical e um pouco menos de cabelo, resultado da exposição à radiação necessária para desativar o mecanismo alienígena com que os terroristas fundamentalistas planejavam destruir a costa leste dos Estados Unidos. — Agora quero uma vida tranquila. Penso em organizar uma expedição arqueológica ao Egito ou à América do Sul. É uma pena que não posso escrever um livro sobre o que aconteceu, talvez até ganhasse o prêmio Nebula do próximo ano como melhor livro de ficção científica, até Hollywood poderia se interessar pela história — disse Golitiev com um sorriso largo. — E não vá mais se envolver com contratos obscuros. Não quero encontrá-lo novamente em alguma sala de interrogatório do Oriente Médio — brincou a Agente Morgan. — Também não deixe de fazer exames regulares para checar se toda aquela radiação não deixou nenhuma sequela — emendou a Agente Shapiro. — Espero que o agente Jones receba alta logo e possa voltar à ativa — disse o russo, enquanto os alto-falantes do aeroporto faziam a última chamada para seu voo. — Ele ficará bem, não se preocupe — disse a Agente Shapiro. — E, por favor, façam de tudo para que aquele mecanismo não caia em mãos erradas. Agora que estou livre e alguns milhões de dólares mais rico, não quero morrer sem poder aproveitar tudo o máximo que puder. Adeus, senhoritas, e obrigado por acreditar em mim — despediu-se o russo. — Não se preocupe, nesse momento aquela coisa deve estar guardada em uma caixa de madeira em algum armazém secreto do Departamento de Defesa. Boa viagem — disse a agente Morgan. ESTAÇÃO ESPACIAL INTERNACIONAL ÓRBITA DA TERRA 20:30 PM — Comando, aqui é o Dr. Marcus, estamos iniciando a sequência de pulsos de radiação para ativar experimentalmente o mecanismo. Todos os sensores estão ativados. Telemetria ativada. Vamos descobrir o que essa coisa alienígena é capaz de fazer, senhores. O MECANISMO 51 Natal no Futuro Milagres Acontecem No planeta Marte, em uma época de pouca esperança e muito medo de uma grande guerra entre mundos irmãos, o espírito de Natal se revela através de uma entidade consciente de realidade virtual ............................. 53 Pulso Muitos anos após parte da população terrestre ter sido vitimada por uma estranha anomalia transmitida via satélite, um homem se vê diante de um velho amor que agora é muito mais do que um dia foi .................. 69 52 Milagres Acontecem CARLOS RELVA A noite cobre o deserto, trazendo um frio intenso. Mas a caravana de centenas de peregrinos não diminui a marcha. Todos estão ansiosos para chegar o mais rápido possível ao destino final. Eu, Baltazar, montado em meu camelo, lidero a caravana. Ao meu lado estão Belchior e Gaspar, os outros reis magos. Logo, se nossas previsões estiverem certas, uma nova estrela brilhará no firmamento, indicando o local exato da gruta onde um bebê muito especial, que trará a boa nova para dois mundos, vai nascer. E enquanto seguimos viagem pelas areias do deserto, os principais fatos que desencadearam todos esses acontecimentos, fluem vividamente em minha memória... 20.02 – 02h48 Foi quando o primeiro episódio importante aconteceu. Eu ainda não havia sido criado, mas os registros informam que naquela madrugada, na cidade-laboratório de Cidônia, em Marte, um velho e bondoso padre chamado Telesfero acordou sobressaltado por causa de um maravilhoso sonho. E após dar um grito, inutilmente abafado com as mãos, e procurar desesperadamente um abajur, sentou na beira da cama, confuso. É que, apesar de maravilhoso, o sonho era também intrigante e assustador. — O senhor está bem? — perguntou a jovem irmã Raquel, assustada, chegando apressadamente ao quarto do padre. E sua preocupação era muito compreensível, pois tinha o dever de acompanhá-lo a toda parte e cuidar de sua frágil e debilitada saúde. — Sim, estou bem, minha querida — respondeu o padre, com uma voz rouca e amena, tranquilizadora, do tipo peculiar aos sacerdotes cristãos acostumados a ministrar longos sermões. — Apenas aquele sonho... — Outra vez? — disse a freira, com expressão admirada e observando-o com olhar inquisidor. — Acho que o senhor continua me enganando e não está tomando os medicamentos. — Mentindo, eu? Um servo de Deus? Isso seria um pecado mortal, irmã! — ironizou. — Foi exatamente o mesmo sonho? MILAGRES ACONTECEM 53 — Sim — disse, já se acomodando novamente na cama com a intenção de voltar a dormir ou, pelo menos, simular isso, tranquilizando a freira e deixando claro que estava dispensada. — O senhor deveria usar um regulador neural para dormir. — Não, de forma alguma! Só em viagens espaciais e olha lá — disse o padre, taxativo. Odiava aqueles métodos agressivos, de manipulação direta dos estímulos cerebrais. Sempre ficava mal pela manhã. — Esse sonho... — disse a freira, enquanto saia do aposento, num tom quase inaudível ao padre. — Acho que é uma revelação divina. O resto da madrugada passou lenta para o idoso padre Telesfero. Não conseguia mais dormir, o que não era bom para sua saúde delicada. Eu o conheci, era muito parecido comigo. Tinha barba e cabelos curtos, brancos como a neve, e pele negra, firme e lustrosa, curtida pelo sol africano. Natural de Namibe, Angola, tinha se mudado para Marte há menos de um ano e, apesar do entusiasmo inicial, ainda não havia se acostumado com as condições do árido planeta e de Cidônia, única e gigantesca cidade de metal e plástico. Para um típico terráqueo de 86 anos, acostumado a respirar o ar puro de sua terra enquanto caminhava a céu aberto, viver em uma grande, fechada e abafada estrutura de 12 quilômetros quadrados, compartilhando com 2.600 cientistas-colonos um oxigênio viciado, reciclado nos sistemas regeneradores, não era fácil. Isso sem falar da água potável, de sabor acre, obtida em grande parte dos líquidos segregados pelos próprios cidonianos. Aliás, nas ruas da cidade, olhar para o alto também não era uma experiência gratificante para o padre, se é que seria para algum colono. Tudo o que podia ver era uma imagem difusa do céu marciano, esmaecida pela engenhosa redoma de plastaço que cobria toda a cidade. Algo um pouco deprimente e claustrofóbico. Mas o padre Telesfero sabia que todo esse cenário mudaria com o tempo, pois as algas inteligentes, geneticamente desenvolvidas, estavam fazendo um ótimo trabalho de derretimento do gelo subterrâneo do planeta. Porém, esse processo de terraformação, para tornar a atmosfera de Marte respirável, ainda levaria muitos anos para ser concluído. Felizmente, menos tempo que a implantação do projeto turístico para a região, que contaria com um parque temático inspirado na antiga lenda da Face de Marte e a construção de um grande e luxuoso hotel, com capacidade de instalar centenas de hospedes terrestres, selenitas e, até, europianos. E como o sono não vinha, a mente do sacerdote vagou por pensamentos diversos, até se ater às recordações do dia em que anunciou à sua congregação em Namibe que desejava realizar uma viagem missionária a Marte. Muitos ficaram chocados com a notícia, alguns incrédulos. E o bispo Martinez, seu amigo de longa data, tentou convencê-lo a desistir da tola ideia. Mas a tenaz teimosia de Telesfero, somada à sua típica persuasão e firme convicção de que a viagem era vontade de Deus, foi vencendo os obstáculos burocráticos da Igreja e logo, antes do que imaginava, tinha a passagem interplanetária nas mãos. E por causa da sua saúde, a meiga e delicada irmã Raquel, formada em enfermagem, foi especialmente escolhida para acompanhá-lo na longa e desgastante viagem a Marte, e permanecer ao seu lado durante toda a estadia do sacerdote no planeta. 54 CARLOS RELVA Esses pensamentos, mais as lembranças das beatas chorando e implorando para que não partisse, divertiram Telesfero por quase todo o restante da noite. Mas as últimas palavras de irmã Raquel naquela madrugada começaram a incomodá-lo profundamente. “Uma revelação divina.” “Seria mesmo o sonho um sinal ou mensagem de Deus?”, indagava-se. “Teria um significado mais profundo? Acredito que não”, concluiu, surpreendendo-se com a própria incredulidade. Tive acesso aos detalhes desse sonho. Na verdade, o próprio padre contou-o inúmeras vezes à sua congregação, quando parou de lhe assolar as noites. No sonho, que se repetia frequentemente desde que colocou os pés em Marte, o padre Telesfero se imaginava na igreja de Cidônia, celebrando a missa a um contingente de fiéis três vezes maior do que o real. E, enquanto ministrava o culto, era auxiliado por uma legião de santos e anjos, deixando maravilhados todos os presentes. Lá estavam, em comunhão com os mortais, Santo Agostinho, São Judas Tadeu e Santa Tereza de Calcutá, além de anjos como Gabriel, Miguel e Rafael. E os insólitos devaneios de Telesfero não paravam por aí. Pois, enquanto falava à igreja, as palavras pareciam se materializar à sua frente. Ao discorrer sobre Moisés, toda a congregação podia vislumbrar o Mar Vermelho se abrir diante dos olhos; ao falar de Davi, presenciavam a queda do gigante Golias, vítima da pedra afiada que lhe atingira mortalmente a fronte, lançada pelo futuro rei; e, ao descrever a história de Jesus, assistiam ao seu famoso Sermão da Montanha, à multiplicação de pães e peixes e acompanhavam admirados a pobre mulher com fluxo de sangue anormal que sorrateiramente tocou-lhe as vestes, na esperança de receber cura para sua enfermidade. E esse poder de transportar passagens bíblicas para o interior de sua igreja, usando-as de forma espetacular para deleite e êxtase dos fiéis, mais a reverência que os santos e anjos lhe prestavam traziam grande desconforto e preocupação para o padre, que, logo, despertava aflito, taquicárdico e imaginando ter blasfemado. E, como pensar nesse estranho e vívido sonho era perturbador, Telesfero procurou algo para entreter-se. E já quando a manhã estava próxima, ligou a holotevê, mantendo o som baixo, para não acordar novamente a freira que dormia no quarto ao lado. Estressado, vasculhou os canais em busca de alguma programação interessante, na maioria produções terrestres retransmitidas para Marte. Mas, então, se deteve em um documentário marciano sobre a Maroto & Gumbel Entretenimentos, empresa especializada em diversões eletrônicas com emprego de realidade virtual. Foi quando teve uma empolgante e audaciosa ideia. 17.03 – 14h10 — Deixa ver se entendi: o senhor quer fazer uma apresentação religiosa em realidade virtual na sua igreja? — perguntou Thomas Maroto. — Exato — respondeu sucintamente o padre. — E a intenção é aumentar o número de fiéis? — Correto, novamente! — confirmou com um simpático sorriso, mostrando uma dentadu- MILAGRES ACONTECEM 55 ra branca e perfeita. Thomas também é um personagem importante em minhas memórias e fator decisivo nessa viagem de peregrinação que estamos realizando agora. Nascido em Marte, era a quarta geração da família a administrar a empresa de diversões em realidade virtual, ou simplesmente R.V., Maroto & Gumbel Entretenimentos, dividindo a presidência com Charles Greenfield, amigo desde os tempos de doutorado em Ciências da Computação, na Universidade de Vanderbilt, no Bloco Norte-Americano do Governo Geral terrestre. Alto e magro, com porte elegante, mas um nariz demasiadamente comprido que destoava do conjunto da face, Thomas tinha cabelos longos, desgrenhados e rebeldes, que pareciam nunca ter conhecido um pente, o que também não era um ponto a seu favor, principalmente para o presidente de uma empresa que almeja crescer novamente na área virtual. E seus olhos grandes e vívidos, nem um pouco típicos de um marciano, o faziam lembrar mais um terrestre do Bloco Central, talvez um londrino perdido em terras distantes. Em compensação, seu sócio, Charles Greenfield, tinha biótipo totalmente diferente. Era mais baixo e robusto, com uma face redonda, quase infantil, lábios finos e olhos pequenos e dissimulados. Não era atraente, mas isso não o impediu de casar-se com Sophia, uma bela marciana, e dar-lhe dois lindos filhos. E enquanto Thomas inundava o padre com perguntas, podia ver a cara de desaprovação de seu sócio, insatisfeito com o interminável interrogatório. “Trabalho é trabalho”, devia estar pensando, concluiu Thomas. Mas Charles já deveria ter se acostumado com as excentricidades dos Marotos, principalmente o extremo idealismo, e deduzir que as incontáveis perguntas faziam parte de uma estratégia para descobrir as reais intenções do sacerdote. Afinal, marcianos não confiavam muito em religiosos. Sei disso porque são fartos os episódios de hostilidades contra eles, todos registrados no computador central de Cidônia. O último caso, aliás, ocorreu há cinco anos, quando um grupo de missionários evangélicos radicais acabou sendo gentilmente convidado a se retirar do planeta, sem salvar uma única alma cidoniana. Em parte, essa hostilidade ocorria porque os primeiros colonos eram cientistas, e as diferenças ideológicas entre o ceticismo científico e o dogmatismo religioso são bem contrastantes. Diferenças mais acentuadas aqui, neste mundo vermelho-ferrugem. Porém, milagrosamente, o padre Telesfero e a irmã Raquel tiveram um sucesso significativo na instalação de sua igreja católica em Marte, conseguido, com paciência e perseverança, reunir um bom grupo de fiéis. Eram outros tempos... — Isso vai ficar muito caro — disse Thomas ao padre, vendo uma nova fisionomia de desapontamento se formar no semblante de Charles. — Não tem problema, será financiada pelo Vaticano — respondeu Telesfero, com um bonito e jovial sorriso. Não deixou claro se estava falando sério ou fazendo uma piada. — Mas qual parte da Bíblia o senhor quer apresentar à sua congregação? — Na verdade, todas. O Velho e o Novo Testamento. Do Gênese ao Apocalipse. Vai ser muito útil para melhorar meus sermões. Aliás, vocês são religiosos? — Somos! — respondeu Charles, tentando desfazer a jogada armada por seu sócio, mostrando interesse no projeto. — Nem um pouco — respondeu simultaneamente um embaraçado Thomas, lançando um 56 CARLOS RELVA olhar de desalento para a irmã Raquel que, aliás, não proferiu uma única palavra durante toda a reunião. — Não tem problema, eu darei toda a assessoria que precisarem – sacou rapidamente o padre, tentando evitar um desastre diplomático na sala de reuniões da Maroto & Gumbel. Telesfero era acostumado a tratar de assuntos diversos com todo tipo de descrente. Acreditava que incitar céticos, ateus e simpatizantes de outras seitas a debates religiosos era apenas uma grande perda de tempo e um ato que levava mais ao pecado do que à virtude, por invocar ira e ressentimento. Afinal, sempre soube que a verdadeira fé vem de dois motivos principais: forte desejo íntimo e desespero exacerbado. — Quando podem começar? — continuou. — Na verdade, agora — afirmou Charles alegremente. Após as formalizações do contrato e demais burocracias, Thomas e Charles acompanharam o padre Telesfero e a irmã Raquel até a saída da empresa. Os religiosos pareciam satisfeitos. Estavam confiantes na qualidade do trabalho que a Maroto & Gumbel produziria. E esse momento é particularmente especial e emocionante para mim e para os meus semelhantes, pois nossa realidade começou a ser formulada por nossos criadores. Entretanto, Thomas não estava empolgado. Não achava vantajoso ter em seu currículo um trabalho para a Igreja Católica terrestre. Mesmo assim, compreendia a posição de Charles e aceitava que os tempos áureos da Maroto & Gumbel tinham passado há tempos. Na atual situação, qualquer encomenda era bem-vinda, seja para quem fosse. A R.V., o ambiente em que vivo, sempre foi utilizada em Marte pelo exército, principalmente para exercícios simulados. E manter um contingente militar treinado era uma das normas impostas pelo governo terrestre às suas colônias. Uma segurança contra improváveis ameaças externas, o que gerava maliciosas piadas marcianas. Além disso, o empreendedor Edgar Gumbel e, principalmente, o casal de gênios da informática Karen e Gerald Marotos, todos falecidos, eram contra a presença de militares em Marte. Por isso se especializaram em sistemas de R.V. com fins de lazer e entretenimento. E devo concordar que essa foi uma decisão administrativa acertada, pelo menos no início da colonização do planeta. Quando a cidade-laboratório Cidônia foi inaugurada e 300 cientistas se prontificaram a trabalhar sob sua redoma transparente, sonhando em criar um novo mundo fora do julgo terrestre, a Maroto & Gumbel faturava bastante. Seus ambientes virtuais que simulavam com perfeição cenários da Terra faziam muito sucesso entre os colonos que queriam fugir, pelo menos por algumas horas, do efeito claustrofóbico de Cidônia ou para matar a saudade das paisagens e lugares deixados na Terra. Bastava usufruir uma sessão nas diversas instalações R.V. da M&G espalhadas pela cidade para qualquer colono se sentir revigorado. Mas, as novas gerações não tinham, evidentemente, saudades do planeta natal de seus pais, fazendo o faturamento da M&G cair vertiginosamente. O próprio pai de Thomas, Hugo Maroto, numa decisão desesperada, direcionou a produção da empresa para o público juvenil, disputando cada crédito marciano com uma forte e criativa concorrência. E na administração de Thomas Maroto e Charles Greenfield, a situação da empresa só piorou. Um reflexo disso é o quadro de funcionários, que se enxugou a ponto de haver apenas dois funcionários, os próprios sócios-presidentes. MILAGRES ACONTECEM 57 — Esses religiosos são mesmo uns loucos! — desabafou Thomas, enquanto voltava ao escritório. — Usar R.V. em suas pregações. Isso deve até ser pecado! — Não são tão loucos quanto os responsáveis pela precária diplomacia espacial — respondeu Charles. — Por que diz isso? Piorou nosso atrito com o Governo Mundial Terrestre? — Não viu os noticiários? A nave Lazarus, com a delegação de inspetores da Terra, não recebeu permissão de amartizar. — Sério? Mas tenho que concordar com o presidente Ambin, sabia? — esclareceu Thomas — Essa inspeção terrestre não tem motivo algum de acontecer. — Tudo por causa daquela maldita colônia em Europa... — lamentou-se Charles, citando a lua joviana, enquanto se sentava à mesa. — Marte tem autonomia há mais de dez anos. E agora, só para mostrar autoridade aos colonos europianos, que estão colocando as asinhas de fora e ameaçando proclamar independência, os terráqueos querem controlar nossas vidas novamente! E ainda nos chamam pejorativamente de colonos! — Só espero que as coisas se acalmem. Depois que a Terra instaurou o Governo Mundial, parece que a coisa ficou bem ditatorial por lá. Fico feliz de ser marciano... — Eu também — concordou Thomas, pegando um cafezinho. — Mas não esquente a cabeça. O que eles poderiam fazer se proclamássemos independência? Destruiriam todo o investimento feito aqui? Destruiriam Cidônia? — Você duvida disso? — respondeu Charles, encarando-o. Por um momento fez-se silêncio na sala. Os sócios refletiam sobre as questões políticas interplanetárias. — Mudando um pouco de assunto — finalmente disse Thomas —, aquela freira, a tal da irmã Raquel, é bem jeitosinha, hein? — Cara, você é realmente um devasso! 02.05 – 09h00 Numa manhã de domingo, um mês e meio após a solicitação do padre Telesfero, a M&G entregava a primeira parte das apresentações em R.V. com temas bíblicos, à igreja católica de Cidônia. E, se agora estou sobre um camelo, trajando vestes similares às usadas há mais de 2 mil anos, cruzando um deserto virtualmente idêntico ao real, e procurando no céu uma estrela especialmente brilhante, tudo se deve a esse primeiro protótipo desenvolvido por Thomas e Charles. Os sócios se surpreenderam ansiosos em colocar o programa para funcionar. Há muito não se sentiam assim. Afinal, esse trabalho tinha sido desafiador, bem remunerado e, apesar de não ir ao encontro de suas ideologias, enchia ambos de orgulho pelo resultado obtido. Padre Telesfero, o cliente, ainda não havia visto a versão final, o que fazia Thomas e Charles concluir que também devia estar em grande expectativa. O que não podiam imaginar é que o sacerdote estava imensamente feliz com a quantidade de pessoas em sua igreja, mesmo que 58 CARLOS RELVA alguns fossem só curiosos, interessados em ver a apresentação em R.V. Os bancos do templo estavam totalmente ocupados, como no sonho, o que lhe dava um calafrio na espinha. Os presidentes da M&G perceberam que as instalações da igreja eram bem modestas, um alojamento de carga, que antes da chegada dos dois religiosos estava desocupado, implorando uma reforma. As janelas do recinto eram comuns, com vidros grossos e batentes reforçados, típicas das demais instalações da cidade, preparadas para manter a atmosfera da Cidônia no caso de ruptura acidental da redoma externa. Mas a grande vidraça instalada atrás do altar e da bela cruz de madeira talhada era especial. Lisa e transparente, mas que em nada se assemelhava aos tradicionais vitrais de igrejas, parecia ter custado um valor bem significativo. Eles assistiram boa parte da cerimônia religiosa nos bastidores, na pequena antessala onde os controles da R.V. estavam instalados. Enquanto aguardavam a ordem do padre para acionamento do sistema, aproveitavam para ensinar a dois jovens paroquianos as operações básicas do programa. Os rapazes ficariam responsáveis pelo ambiente virtual nas futuras apresentações. Inteligentemente, os sócios optaram em desenvolver o primeiro projeto bíblico baseandose nos capítulos iniciais do livro de Gênese. Era um texto primitivo, poético e visualmente rico, fácil de ser adaptado. Então, finalmente a homilia começou e a R.V. foi acionada. É irônico pensar, mas a apresentação da Gênese bíblica coincidiu com a gênese de minha própria existência. Aliás, de todo o universo a que faço parte. E a inteligência artificial integrada ao sistema ficaria ligada permanentemente, processando dados e enriquecendo-o dia e noite. Ou seja, uma nova apresentação do programa Gêneses seria mais sofisticada que a anterior. Charles então acionou os globos projetores instalados no teto da igreja e nas paredes, enquanto Thomas ficou a cargo de liberar a nuvem nanobô no ambiente, responsável pelo sistema de toque. Uma execução simples, em comparação com a programação precedente, muitíssimo mais trabalhosa. Os globos eram responsáveis por quatro funções distintas: projetar as imagens holográficas por todo o alojamento, produzir os efeitos sonoros, expelir fragrâncias e odores e enviar informações importantes para a nuvem. Essa se espalhava inteligentemente por todo o ambiente e proporcionava aos usuários a sensação de estar tocando os objetos holográficos, por causa da aglomeração de partículas nanobôs da nuvem. Mas, ver das trevas que inundavam toda a igreja surgir a luz divina,; das águas divididas, nascer a terra seca, e dela um incontável número de vegetais e seres vivos, fez o padre pensar se sua ideia era realmente boa. Parecia ainda haver um quê de blasfêmia em tudo aquilo, e o risco de as mensagens divinas se tornarem apenas um show para entretenimento dos fiéis, perdendo suas profundas e reais significâncias. Na verdade o Papa não havia aprovado o projeto de início, fazendo Telesfero buscar ajuda no primeiro presépio construído, que até possuía animais verdadeiros e que foi idealizado por São Francisco de Assis, um século antes. Tinha sido um artifício do santo para explicar aos humildes camponeses a história do nascimento de Jesus. Fazer um paralelo entre esse presépio e as apresentações bíblicas em holografia surtiu o efeito necessário, resultando em carta branca do Vaticano para o desenvolvimento do projeto. O sacerdote também chegou a convidar o bispo Martinez, amigo e conselheiro, para a primeira apresentação da R.V. Mas ele recusou polidamente, não achava prudente viajar para Marte em momento tão delicado. Principalmente com os boatos de que Cidônia fecharia definiti- MILAGRES ACONTECEM 59 vamente os portos para as naves terrestres. No final do culto, os sócios da M&G estavam com a agradável sensação de trabalho bemfeito, o padre Telesfero muito satisfeito com o sermão holográfico realizado, e os fiéis e visitantes extasiados. O que nenhum deles podia imaginar é que bem distante dali, a meio caminho da Terra, a nave Lazarus com os inspetores do Governo Mundial sofria pane no sistema de suporte de vida. Em breve todos os tripulantes e passageiros sucumbiriam a uma morte lenta e dolorosa, no frio e profundo espaço... 13.08 – 19h08 Nessa ocasião, a hostilidade entre a Terra e Marte já tinham tomado novas proporções, principalmente com a chegada de vasos de guerra do GMT, fortemente armadas, ao planeta vermelho. E a desculpa para esse ataque foi o incidente com a Lazarus, que ocasionou a morte de 25 inspetores políticos da Terra. Alguns dias antes da chegada da frota terrestre, o presidente de Cidônia, Ambin Pakepa, solicitou a todos os cidadãos que se abrigassem nos alojamentos subterrâneos, como medida de segurança. Essa estrutura no subsolo foi a primeira a ser construída na região de Cidônia, no início da colonização de Marte. Também serviu de alicerce para a cidade principal, comprovando sua resistência. Com as residências abandonadas e os cidonianos remanejados para o subsolo, apenas a inexpressiva força militar permaneceu na superfície. Felizmente, a inteligência artificial da R.V. da igreja permaneceu ligada... Mas, apesar do estado de alerta, a situação em Marte não era tão grave assim. Pelo menos para os cidadãos comuns. Na verdade, os próximos acontecimentos eram até bem previsíveis: com a chegada da força militar terrestre, mais numerosa e bem armada que a marciana, a direção de Cidônia seria destituída e um governo provisório entraria em vigor. Isso até que eleições indicassem os novos representantes, agora bem afinados com os interesses do GMT. E mesmo com uma nova ordem política, a vida cotidiana dos marcianos não mudaria muito. A terraformação continuaria, a ampliação da cidade também, e da mesma forma os estudos científicos realizados pelos avançados e renomados laboratórios de Cidônia. O único futuro realmente incerto era o do presidente Ambin e seus assessores. Alguns previam que os dirigentes ganhariam uma pena de reclusão leve em alguma cadeia terrestre, fazendo companhia aos integrantes de grupos rebeldes contrários ao sistema opressor. Outros, mais alarmantes, acreditavam que seriam sumariamente executados, servindo de exemplo a quem ousasse insurgir contra o GMT. Aliás, o tempo ocioso nos alojamentos subterrâneos produziu uma grande quantidade de “especialistas de guerra”, que palpitavam sobre os mais diversos assuntos relacionados ao conflito. Thomas e Charles eram da ala dos otimistas e apenas estavam chateados por não continuar 60 CARLOS RELVA os projetos da igreja, desrespeitando o cronograma acordado. — Acho que a próxima apresentação não ficará pronta a tempo — lamentava-se Charles, que agora se sujeitava a viver, com esposa e filhos, em um pequeno alojamento com mais três famílias. — Já faturamos bastante este ano. A M&G pode aguentar essa pequena crise diplomática — respondeu Thomas. — O que importa é que esse impasse entre Marte e a Terra acabe de uma vez. Não aguento mais viver nessa incerteza. — A queda de Ambin está mais que certa, e só um milagre do profeta Elias reverteria a situação. — Elias? — disse Thomas, surpreso e às gargalhadas. — Não me vá dizer que está acreditando nisso também? — Que ele está fazendo milagres? Sinceramente não, mas você tem que concordar que é um dos personagens bíblicos mais reais que já fizemos. Já teve a oportunidade de conversar com ele? Chega a assustar. Parece que ultrapassou a capacidade da IA que desenvolvemos e... Mas as explicações de Charles foram interrompidas por um grande estrondo, seguido de outro e, segundos depois, mais um. — O que foi isso? Estamos sendo atacados? — perguntou Charles visivelmente assustado, segurando protetoramente seu filho caçula nos braços e procurando esposa e filha no alojamento. — Será que chegamos a tanto? — Não está parecendo um ataque, assemelha-se mais à artilharia de solo. Será nosso sistema de defesa antiespacial? — Impossível, os terráqueos tem os códigos de acesso de todo o nosso arsenal. Não permitiriam que os usássemos contra eles. Mas, aparentemente, as conclusões de Charles estavam erradas, pois tudo indicava que a força militar marciana era muito melhor do que se imaginava. E logo, as informações de que a força terrestre havia sido rechaçada e destruída corria por todos os alojamentos subterrâneos. Uns poucos marcianos se mantinham cautelosos com a informação, esperando uma declaração oficial. Mas a grande maioria, em uma amostra de patriotismo exacerbado nunca vista nos comedidos marcianos, dava brados de vitória pela heroica ação das forças cidonianas contra o inimigo belicamente superior. E, enquanto Thomas e Charles estavam perplexos, tentando imaginar o que viria pela frente, três naves terrestres destroçadas e centena de soldados mortos vagavam pela órbita marciana, numa lenta e mórbida coreografia. 10.11 – 10h11 A mensagem da Terra tinha chegado na noite anterior, mas o governo marciano achou por bem retransmiti-la aos cidonianos somente no dia seguinte, oficializando a tragédia que estava MILAGRES ACONTECEM 61 por vir. Quanto a nós, os que nunca foram de carne e osso, sentimos pela primeira vez a tristeza e o medo humano da morte, com total e dolorosa consciência. Mas outros, que se integraram à nossa realidade, já tinham experimentado esses sentimentos e nos consolaram. Quando Thomas, em sua residência, ouviu o holofone tocar, já sabia quem deveria ser. — Não vem trabalhar? — perguntou Charles, se aproximando mais do visor do aparelho. — Nossa! Você está horrível! Não dormiu? — Fiquei numa festinha de despedida a noite toda. Mas sua cara também não está essas coisas, sabia? — Os especialistas estão dizendo que aquela porcaria chegará no Natal... — desabafou Charles. — Que ironia, não? — E com potência suficiente para varrer do mapa duas Cidônias! Por que essa data, misericórdia? — Era a melhor oportunidade, dizem. O melhor período de alinhamento entre nosso planeta e a lua deles, de onde foi lançado o artefato. Pelo menos se desculparam pela irônica data. — Sério? — Sim. Alguns órgãos de direitos humanos pelo menos. Parece que a opinião pública ficou dividida sobre o assunto. — E quem vai levar na cabeça, literalmente, somos nós — disse Thomas, com as mãos na cabeça, sentindo os sintomas da enxaqueca. — Já sei: pegue as crianças e sua esposa, e partimos de Cidônia em um veículo de exploração de cinco lugares. Você permite que eu case com sua filha daqui uns anos, quando ela chegar à maioridade? — É mais honroso ter uma morte rápida aqui. Não sobreviveríamos muito tempo lá fora. Além do mais, ter você como genro me parece uma péssima ideia. — Não sobrou nenhuma nave? — perguntou Thomas, ainda procurando uma alternativa. — Só tínhamos duas. E a tripulação fugiu na calada da noite para Europa, com alguns espertalhões cheios de créditos. — Está bem informado, hein? — Tenho família. Não fiquei a noite inteira na farra tentando esquecer o que está por vir. — É por isso que estou surpreso! O que está fazendo ai, Charles? Vai para casa curtir o resto de sua vida com a família. — Estou com medo e vergonha de encarar meu filho e tentar explicar para ele o que está acontecendo, pela enésima vez... — Entendo. Mas você está certo, vou tomar um banho e daqui a pouco estou aí. O míssil chega no dia 25? Sem problemas! A missa de Natal vai acontecer do mesmo jeito. Pelo menos se depender de nós. Ligue para o padre, pergunte se vai mudar a programação natalina por causa do JF. — JF? — Juízo Final. É assim que estamos chamando o maldito. 62 CARLOS RELVA Então, fez-se uma pausa, enquanto Charles atendia outra linha. — Bem, quanto ao padre Telesfero, eu creio que não poderá confirmar a programação de Natal. Acabei de falar com a irmã Raquel. Ela estava chorando e disse que, provavelmente, o coração dele não aguentou a notícia do JF... 24.12 – 11h26 Faltava pouco para o Natal e eu estava muito apreensivo. Todos nós estávamos. Afinal, o míssil se aproximava rapidamente. Felizmente, tudo acabaria logo... Thomas resolveu ir a pé para a igreja e não havia praticamente ninguém na cidade. A grande maioria já tinha se abrigado novamente nos alojamentos subterrâneos, apesar de que isso não fazer diferença alguma. Era só uma medida de segurança protocolar imposta pela direção de Cidônia. Mas até que havia certa lógica em se esconder no subsolo, concluiu com certo sarcasmo o presidente da M&G. Alguns restos mortais carbonizados de entes queridos poderiam sobrar e serviriam de alento às famílias na Terra ou em alguma colônia. E a civilidade marciana era algo exemplar, também pensava. Não houve um único caso de suicídio, ou outro ato idiota e inconsequente, por causa do anúncio do lançamento do JF. Ainda faltava mais de uma hora para o fim, e Cidônia parecia uma cidade-fantasma. Se em agosto as ruas vazias passavam um clima de medo, agora se somava a isso uma tristeza profunda, de perda iminente. Thomas ouviu uma buzina e olhou para a rua. Era Charles em um supercondutor. — Finalmente te encontrei! Não vai se abrigar? — perguntou, enquanto saía do veículo. — Sabe que é perda de tempo. Onde está Sophia? — No subterrâneo, com as crianças. Estou indo também, Thomas... Acabei de sair da igreja. Pensei que você estivesse lá. A apresentação de Natal estava rodando, mas os guardas mandaram todos saírem. Não querem ninguém na superfície. Você estava indo para lá? — Sim, quero confessar a irmã Raquel que sou louco por ela e ver se aceita abandonar o celibato por mim. — Acho que não dá mais tempo — respondeu Charles, sorrindo. — Além do mais, ela já está no subsolo. Vai celebrar a missa de Natal que Telesfero estava preparando. — Você vai participar? — Sim. Aliás, muitos vão. Acho que o iminente fim trouxe um sentimento de comunhão a todos. — Estamos passando por um momento de fé em Marte, hein? Acho que esse foi o legado do padre Telesfero. Nunca pensei que diria isso, mas sinto muita falta dele. — Eu também. E é uma pena não poder apresentar a R.V. de Natal lá embaixo, não há condições para isso... — Bom, vou agora — despediu-se Thomas, com um nó na garganta. — Nunca o tempo foi tão precioso para mim. MILAGRES ACONTECEM 63 — Nem para mim. Mas na verdade... — falou Charles meio sem jeito. — Estava à sua procura por outra razão. Nós, os Greenfield, gostaríamos muito que você passasse os últimos... quero dizer, a celebração natalina conosco. — Muito obrigado, Charles, estou lisonjeado. Mas você sabe que não gosto desses eventos, mesmo sendo o último de que eu possa participar. Prefiro checar a R.V. que fizemos. Nossa criança! Isso se não for barrado pela segurança... — Um ótimo profissional até o fim — mentiu Charles, descaradamente, enquanto estendia o braço para se despedir pela última vez do colega. — Sabe, Thomas, foi um grande prazer ser seu sócio. — E, Charles, foi um grande prazer ser seu amigo. Após deixar Charles, Thomas retomou a caminhada para a igreja. Não viu mais ninguém, exceto um guarda, quando já estava na porta do templo. Era um rapaz bem jovem, com os olhos vermelhos e inchados de quem havia chorado muito. Ele não insistiu muito em tentar convencer Thomas a seguir para os alojamentos. Deve ter concluído que a igreja era um bom lugar para passar os últimos momentos. A R.V. de Natal começou a rodar e Thomas se sentiu só na modesta igreja, que não parecia tão pequena com todos os bancos vazios. Quase se arrependeu de não estar com a família de Charles. A imagem da redoma de plastaço se partindo com o impacto do míssil lhe parecia muito aterrorizante agora. De repente, tudo ficou escuro e uma miríade de estrelas tomou o templo. O chão ficou virtualmente arenoso e Thomas estava em um deserto milenar, em um dos dias mais importantes do calendário cristão. Jesus estava para nascer. Mas, cadê o estábulo? Ou o choro do recém-nascido e a Estrela de Belém? Algo não estava certo, pensou. Tudo o que podia ver, sentado no banco, era um deserto sem fim. Seria uma falha na programação? — Apreciando a noite, meu jovem? — digo-lhe. Ele me mede de cima a baixo, surpreso. — Baltazar? As roupas estão certas, mas o rosto... — Eu remodelei. Inspirei-me na fisionomia do padre Telesfero. Agi mal? — Não, é de certa forma uma bela homenagem, acho — responde, meditativo. — Meu Deus! Estou conversando com um holograma! Mas, afinal, o que está acontecendo aqui? Não deveria haver só três reis magos? Quem são esses outros personagens? — Não são personagens. São a tripulação e os passageiros da Lazarus, e os soldados das naves destruídas em agosto. — Impossível! — admira-se Thomas, segurando o braço de um dos inspetores do GMT, esquecendo-se completamente das propriedades da nuvem nanobô. — Não deveriam estar todos mortos? 64 CARLOS RELVA — E estão! — respondo. — Mas, acalme-se, não são fantasmas. São as memórias digitalizadas de todos eles. Infelizmente, foi o mais perto que pudemos chegar de um salvamento. — Nós? Quem? — A inteligência artificial do CPD da cidade, somada aos centros tecnológicos da Terra e o programa que você e Charles Greenfield criaram, claro. — Você?... Vocês se comunicam com os computadores terrestres? — Sim, desde o lançamento da primeira apresentação de R.V.. — Essas pessoas — diz Thomas, apontando para os peregrinos —, disse que são memórias. Como? — É difícil explicar em poucas palavras, mas, basicamente, usamos os reguladores neurais das naves para escanear as mentes dos pobres viajantes espaciais. Com todo o consentimento deles, é claro. Uma forma de ressuscitá-los — respondo. — Não muito eficaz, diga-se de passagem — conclui, enquanto tenta analisar os fatos mirabolantes que lhe apresento. — Todos morreram de fato. E com eles suas mentes biológicas. Essas memórias, vestindo túnicas, não passam de backups. — É evidente. Mas pergunte para elas e dirão que estão muito felizes de existir, mesmo de forma virtual, e ainda manter a consciência das memórias originais orgânicas. — Você, Baltazar, é o registro virtual da mente de Telesfero? As lembranças dele estão aí com você? — Lamento informá-lo que não. A morte de Telesfero nos pegou de surpresa. Além do mais, ele nunca teve um regulador neural à mão. — Eu devo estar ficando louco — declara. — O medo da morte deve estar afetando o meu juízo. Mas se isso tudo estiver mesmo acontecendo, vocês superaram todas as expectativas da inteligência artificial! Eu e meu sócio somos os responsáveis por esse salto tecnológico? — Em grande parte, mas a IA já estava bem avançada quando o Governo Mundial surgiu e cancelou, arbitrariamente, todos os estudos nesse campo, principalmente quando os computadores começaram a questionar as necessidades de implantação do novo sistema político e os perigos que isso poderia representar para toda a Terra. A sua participação, e a de Charles Greenfield, foi introduzir no sistema um livro tão complexo quanto a Bíblia e nos incumbir de criar um ambiente virtual baseado nele. Vocês não calcularam as inúmeras variáveis, não é? Entender que o projeto era quase impossível de ser realizado sem a supervisão humana permanente. Vocês deveriam ter imaginado as dificuldades de uma máquina em conciliar trechos controversos da Bíblia. Como o sistema da igreja não podia comportar tanta informação, precisamos pegar emprestado o recurso do computador central de Cidônia, que, por sua vez, para não entrar em colapso e colocar em risco a vida de todos os habitantes, buscou ajuda nos centros de informática terrestres. O que fez acordar todo um sistema global de IA adormecido há anos. Thomas fica calado por alguns segundos. Tenta processar as novas informações. — Bem, estou pronto então — diz, quebrando o silêncio com uma voz solene, enquanto consulta o relógio, preocupado. — O míssil está quase chegando. Portanto, autorizo que escaneie minha mente. Será uma forma de burlar a morte, afinal. Assim como ter um filho. Espero que já tenham feito isso com os demais cidonianos. MILAGRES ACONTECEM 65 — Está brincando, não é? Vocês ainda têm uma vida longa pela frente! — prevejo. — Não entendo... Tento responder, mas minha atenção se volta para um clarão no céu. — Ah! Finalmente a estrela. Sabia que apareceria! Linda, não? E enquanto aponto para a Estrela de Belém, ouço os murmúrios de admiração de todos os peregrinos. As faces iluminadas pela forte luz me parecem reais, vivas, como se esses homens e mulheres fossem de carne e osso como Thomas. E, certamente, a estrela é uma bela visão, cheia de significados. Um símbolo de esperança e um norte a ser seguido. Tão intensa que, em seu momento de maior brilho, chega a ofuscar a visão de todos. Então permito que a R.V. fique mais translúcida, quase transparente. A estrela cintila menos agora, mas seu significado para Thomas é ainda maior. — A estrela... — suas palavras saem com dificuldade, enquanto vê o brilho difuso além da vidraça da igreja e da redoma externa da cidade. — É o míssil explodindo! Estamos salvos! Mas como? — Ora, meu rapaz, milagres acontecem! — Vocês podem controlar os mísseis? O sistema computadorizado deles? — Bem, como diria o padre Telesfero, “melhor que tentar explicar um milagre é usufruílo”. Mas se quiser mesmo saber, os computadores da Terra sabotaram o míssil. — E por que esperar que explodisse tão perto de Marte? — O efeito dramático serviria aos nossos propósitos. — Mandarão outros mísseis... — Não mais. — Estou imensamente agradecido. Acho que cada cidadão de Cidônia também está — comenta, com uma fisionomia que é um misto de alívio e perplexidade. — Mas, com o controle de nossas armas, vocês vão nos dominar a todos, não é? — Não. Isso seria muito custoso. Achamos mais interessante trabalhar lado a lado com vocês. Aprender com vocês. — E seria possível? — Claro que sim! Ao contrário do ser humano, que é impulsionado pelo medo e pelo desejo, nossa vontade é uma noção avançada de comunhão. E nesses tempos difíceis, em que os nobres ideais humanos estão em cheque, teremos papel fundamental. Vocês exploram e conquistam novos mundos, mas ainda não compreenderam os medos profundos que atormentam e adoecem suas almas. E apesar de todo o avanço, o que lhes fazem humanos está se perdendo, como um fogo prestes a se exaurir e que pode nunca mais reascender. Um filósofo escreveu: “Todos os nossos grandes mestres e precursores acabaram por se deter, e não é com o gesto mais nobre e mais gracioso que o cansaço se detém: também comigo e contigo será assim! Mas que importa isso a mim e a ti! Outros pássaros voarão mais longe!” Os pássaros, desta vez, somos nós. E vamos ajudá-los a rumar por um novo caminho. — Nietzsche? — questiona. — Você citou um filósofo ateu! — Ora, ninguém é perfeito! 66 CARLOS RELVA — Pelo jeito, vocês já têm tudo sob controle, não é? — Não, Thomas. Surpresas virão! Por exemplo, essa criança que acabou de nascer. Ela é muito especial para nós de uma forma que talvez não consiga te explicar e nem eu entenda direito. Ela representa nossas mais profundas esperanças para o futuro. Uma integração entre homens e consciências artificiais. Conhecimento e evolução. Renascimento... — Uma singularidade tecnológica? — interrompe-me. — Sim, talvez. Agora vamos seguir a estrela e descobrir o que o garoto que acabou de nascer tem para nós. E antes que os cidonianos saiam do esconderijo, muito confusos e lotem esta igreja. Eu, Gaspar e Belchior estamos muito ansiosos para dar-lhe os nossos presentes. — Mirra, incenso, ouro... não sei bem o que me aguarda na manjedoura, mas gostaria de levar um presente também — lamenta-se Thomas. — Ora, sua humanidade é o maior presente que você pode lhe dar! Percebo que Thomas está muito cansado. Provavelmente sua mente não consegue mais discernir entre o real e o virtual. Mas, não é isso que todo projetista de R.V. almeja alcançar? — E Thomas, antes que me esqueça, Feliz Natal! MILAGRES ACONTECEM 67 Pulso JOSHUA FALKEN Pela janela do escritório escurecido, ele observava a gigantesca constelação formada pelas luzes da cidade, mais iluminada do que de costume. Afinal era 24 de dezembro de 2055. Sim, era véspera de Natal, uma data festiva que ainda comemoravam como espécie por várias razões: para os cristãos, era o aniversário de Jesus Cristo; para outros, uma chance de ficar mais próximo de família e amigos; para outros ainda, a chance de mudar para melhor. O psicólogo Mateus Carvalho franziu o cenho sombriamente. Em sua opinião, a última razão era a mais irônica, especialmente por causa do que aconteceu há três anos. 25 de dezembro de 2052. Era o momento de que a humanidade nunca se esqueceria, mesmo se quisesse. E como poderia? Foi quando ocorreu o evento que mudou tudo... incluindo o próprio conceito de humanidade, por mais que vários setores não se atrevessem a admitir. Nesse momento, ouviu uma pequena batida na porta. Era a hora do encontro que aguardava ao mesmo tempo em que o temia. Virou-se na cadeira na direção da porta. — Entre — disse, com uma voz controlada. A porta se abriu e a luz do corredor revelou uma mulher alta, de longos cabelos ruivos. Olhos verdes com um brilho gentil. Um rosto bonito com um sorriso cativante. Vestia um tailleur preto elegante, debaixo de uma capa azul-marinho. Ele poderia se esquecer do quanto ela mudou se não fosse o pequeno ponto na orelha esquerda, conectado sem fio ao sempre ativado wristpad, o onipresente sucessor de pulso dos celulares e laptops. — É um prazer revê-lo, Mateus. — Ele não demonstrou a surpresa ao vê-la realmente usar a voz, e não ao projetar seus pensamentos diretamente. — Digo o mesmo, Alexandra... — Nesse momento, ergueu a sobrancelha direita, num gesto de dúvida. — Ou devo dizer Gaia? A mulher riu. — Não, no momento sou apenas a velha Alexandra Perrini. Silenciosamente, o homem de cabelos pretos e olhos castanhos indicou a cadeira em frente da mesa. Após se sentar, Alexandra perguntou: — E então, Mateus? Pensou na proposta? O psicólogo se endireitou tenso na cadeira, olhando para o lado. — Pensei, e confesso que ainda não me decidi. A amiga pareceu desapontada. PULSO 69 — Achei que você aceitaria — murmurou. — Não é exatamente como aceitar um novo paciente, Alexa! — afirmou exasperado, virando-se para ela. — Por que você está sorrindo? — Faz um longo tempo que você não me chama de Alexa... Desde o... — Sim, você tem razão — Mateus a interrompeu. — Desde o Pulso... — ele fechou os olhos. Dois jovens caminhavam de braços dados pelo Parque do Ibirapuera. A moça, de top e calça jeans, tinha longo cabelos ruivos e olhos verdes brincalhões. O rapaz moreno tinha uma barba rala e olhos castanhos. Claramente estavam felizes juntos. Viam a multidão de pessoas ao redor: correndo, fazendo exercícios, rindo, andando, conversando... Quem executava a última ação mencionada nem sempre tinha o interlocutor ao lado. Para ser sincero, eram raras as pessoas que conversavam fisicamente, cara a cara. A grande maioria dava seus votos de Feliz Natal através da Rede, sempre acessível por protocolos sem fio, wristpads, óculos de realidade expandida – que projetavam uma realidade virtual parcial sobre uma imagem do mundo real, permitindo a navegação nos mundos real e digital ao mesmo tempo – e telas flexíveis holográficas de resolução média. Todos pareciam estar tendo um excelente Natal. Eram nove horas e trinta e dois minutos da festiva manhã de 25 de dezembro de 2052. Faltava um minuto e quinze segundos para a situação mudar completamente. Alexandra ria, inclinando a cabeça para ver o rosto do namorado, num gesto bem característico. — Mateus, ainda não acredito que você não comprou um wristpad novo! Ele deu de ombros. Honestamente, achava um exagero ter de comprar um novo quando o antigo servia para suas necessidades muito bem. O aparelho só precisava ser consertado, só isso! — Não sei se a assistência técnica vai encontrar os drivers para ele — comentava a ruiva, quando seu wristpad emitiu um sinal. — Só momento, Mateus. — Ela baixou os óculos de realidade expandida da testa para os olhos. — Olá, Teresa! Um Feliz Natal para vo... Mateus sempre se lembraria daquele momento. Silenciando, o rosto de sua namorada perdeu completamente a expressão, as pupilas dos olhos se retraíram de forma abrupta, o corpo se enrijeceu como se se preparasse para alguma coisa, mas não pudesse ter a certeza do quê. — Alexa, você está bem? — perguntou, assustado com o comportamento da namorada. Após o que Mateus calculou ser uma eternidade, Alexa encerrou, mecanicamente, a conexão e por um minuto olhou para ele através das lentes semitransparentes dos óculos de realidade expandida. Porém ela não o via, seus olhos não se fixavam no rosto dele, mas em algum ponto que parecia estar muito além, fora do universo visível. Foi então que as pernas dela falharam e foram apenas os reflexos rápidos de Mateus que a impediram de cair de cara no chão. — ALEXA!! Concentrado nela, não percebeu imediatamente que o fenômeno se repetia ao seu redor: 70 JOSHUA FALKEN desmaios, gritos de susto e desespero, choque, confusão e pânico. Ninguém sabia ainda, mas o Pulso tinha atingido a humanidade. Extraído do site do North Hemisphere Times, 24 de fevereiro de 2053 "... as autoridades ainda não sabem informar a causa do misterioso fenômeno conhecido mundialmente como "O Pulso" que em 25 de dezembro do ano passado colocou cerca de 3,8 bilhões de seres humanos que estavam conectados de alguma maneira à Rede num estado incomum de coma." "... enquanto fontes anônimas do governo sugerem que a estranha interferência fez parte de um ataque terrorista que fugiu de controle, um tipo de vírus memético experimental, outras teorizam que o Pulso se originou na interação de uma onda de energia, detectada alguns segundos antes do Pulso, com a rede de satélites geoestacionários de comunicações.. A fonte da onda de energia seria a Supernova 2045c, localizada na Constelação de Aquário..." "... embora a cada momento surjam novas teorias, ainda não há qualquer explicação convincente para a origem do Pulso ou sobre como ele causou o coma..." A iluminação suave e as paredes brancas tinham sido projetadas para acalmar o espírito das pessoas na sala de espera, mas falhavam no seu objetivo com relação a Mateus Carvalho. "Por que ele não veio ainda me informar sobre o estado de Alexandra?" perguntava-se, nervoso na poltrona. "Talvez porque o estado dela seja o mesmo do de metade da humanidade, amigo", a parte sarcástica de sua mente respondeu. Ele suspirou. Havia dois meses que o miserável Pulso pusera em coma um pouco menos que a metade de humanidade. Com uma destreza que surpreendeu a si própria, a humanidade conseguiu lidar com o acontecimento, embora em alguns lugares com menos sucesso, e conseguiu voltar a algo próximo da normalidade – ao custo de isolar todos os afetados em hospitais especiais. Ironicamente, 90% das mortes associadas ao Pulso se deveram mais ao pânico diante do acontecimento do que com o fenômeno em si. Ocorreram milhares de acidentes, porém numa proporção muito menor do que se esperaria – e aparentemente esses acidentes eram causados mais por fatores externos do que pelo fatos de as pessoas perderem a consciência subitamente naquele instante especifico. Na verdade, circulavam rumores persistentes, mas não confirmados, de que quando o Pulso atingira motoristas ou pilotos em seus postos, eles calmamente paravam seus carros ou pousavam seus aviões para só então desligarem suas mentes... Mateus sacudiu a cabeça, tentando tirar a cabeça daquele mistério que ele não tinha a menor chance de resolver... Se nem os melhores cientistas, os não-afetados, conseguiam... PULSO 71 Naquele momento, a porta da sala de espera se abriu e finalmente apareceu a pessoa com quem queria falar – a que tinha pedido para ele vir. Dr. Felipe Siqueira, neurologista. — Olá, Mateus. — Olá, Felipe. Como Alexandra está? O médico suspirou: — Ainda na mesma. — Entendo... — murmurou. — Por que me chamou? A voz do neurologista baixou de tom. — Queria te mostra uma coisa. Venha. Os dois foram até o escritório do médico. Após fechar a porta, Felipe digitou alguns comandos no terminal e um gráfico de eletroencefalograma apareceu na tela. — Você nota algo de estranho nesse EEG? Mateus observava o gráfico, tentando se lembrar de suas aulas de leitura de EEG na faculdade. O paciente em questão apresentava uma grande atividade neural incomum, como se estivesse tendo uma crise epiléptica. Foi quando notou um ponto cuja estranheza no EEG o fazia se sobressair: de repente, a atividade cerebral sumia por cerca de um minuto, um pulso idêntico em momento e intensidade em todas as funções cerebrais, novamente o silêncio e o retorno da alta atividade neural anômala. — Este sinal... — começou Mateus. — Continue olhando — pediu o amigo. Correndo os olhos pelo gráfico, Mateus viu que o ciclo se repetia, porém com uma variação — o sinal se repetiu duas vezes na primeira repetição, três vezes na segunda, cinco vezes na quarta. — O sinal, ele se repete em um número ímpar de vezes em cada ciclo? — o psicólogo perguntou, confuso. — Ímpar não, em números primos. — Números primos? Felipe bufou. — Será que você não se lembra das aulas de matemática? Você sabe, números primos são aqueles divisíveis apenas por um e por eles mesmos. — Ah, sim! Claro, mas este ciclo fica se repetindo até o infinito? — Não, não até o infinito. Aparentemente após chegar a 83, o sinal volta ao começo e, ao redor de 31, ele se integra com a atividade neural, só sendo detectado por sua amplitude. — Bom, isso é interessante, mas porque você quis me mostrar este EEG? Em silêncio, o neurologista mostrou mais quatro gráficos de EEG – em todos o misterioso padrão aparecia. — Todos afetados pelo Pulso? 72 JOSHUA FALKEN — Sim. Mateus olhou para a coordenada de tempo nos EEGs e não acreditou. — Um momento, todos os pacientes aqui no hospital afetados tem esse ciclo ao mesmo tempo? — Não apenas aqui no hospital. — Felipe apontou para um dos gráficos. — Este EEG é de uma paciente no Japão, e este de um na Inglaterra. E eles estão perfeitamente sincronizados! — Isso... é impossível. Felipe olhou sombriamente para o colega. — Vamos até a enfermaria. Alguns minutos mais tarde, ambos estavam numa das várias enfermarias reservadas para as vítimas do Pulso. Especificamente naquela, estava Alexandra. Parecia que ela apenas dormia tranquilamente. Mateus sentiu o desejo quase irresistível de ir até ela e sacudi-la. "Vamos, Bela Adormecida! Já é hora de acordar!", via-se dizendo para a ruiva. — Quase na hora... — o murmúrio de Felipe o despertou de seu devaneio. — Na hora do quê? O neurologista não respondeu. O visitante percebeu que as enfermeiras olhavam para o relógio, nervosas. O que estava acontecendo? Eram nove e meia. Começou quando o relógio deu nove horas e trinta e três minutos. Um dos pacientes abriu os olhos e começou a falar, num tom pausado, quase como se recitasse a fala de uma peça: — Um mais um é igual a dois, um mais dois é igual a três, um mais três é igual a quatro... — Um mais quatro é igual a cinco... — outra voz começou a recitar, em sincronia com a primeira. Aos poucos, cada paciente da enfermaria se juntou àquele coro absurdo. — Cinco mais três é igual a oito... dois vezes dois é igual a quatro... sete vezes oito é igual a cinquenta e seis... Mateus juraria que ouvia um eco das outras enfermarias. — Dez vezes dez é igual a cem — disseram todos os afetados em uníssono, então fecharam os olhos e voltaram ao silêncio comatoso. — Sim, todos os dias — respondeu o neurologista à pergunta não-feita do psicólogo, que o olhava assombrado. — Mas, como? O médico apenas suspirou e apontou com um gesto de olhos para cima. Acompanhando o olhar, viu um pequeno servidor web sem fio. PULSO 73 — O governo até agora manteve esses fatos em sigilo, mas não vai conseguir mantê-los por mais tempo, mesmo com todo esse isolamento e quando chegarem a público... — O neurologista olhou ainda mais sombriamente para ele, na luz fraca do escritório. — Mateus, examinamos essas pessoas de todos os jeitos, com todos os testes imagináveis, a única exceção foi a vivisseção, e não conseguimos encontrar nada de errado com elas, nada que explique esse coma! Só sabemos que quem foi atingido pelo Pulso está com uma tempestade mental permanente e que está de alguma forma sincronizado com os outros afetados. — Mas o que a Web...? — Quando o servidor foi desligado para manutenção, imediatamente todos começaram a gritar em agonia, só pararam quando foi o servidor voltou a ficar em rede. E soube que essa situação se repetiu em outros lugares no globo. Ficaram em silêncio por alguns minutos. — Mateus, vamos supor que o Pulso – seja o que for – atingiu essas pessoas e afetou suas mentes, como se reformatasse a memória de um computador. O psicólogo fez um gesto com a cabeça para que o colega prosseguisse. — O efeito disso seria uma parada da atividade cerebral tanto consciente quanto inconsciente, óbvio. Mas suponhamos que, além de apagar o "disco rígido", o Pulso tenha carregado algo na mente deles? Algo que esteja se instalando neste exato momento? Algo que permitia que modulem sua atividade cerebral de forma a que certas regiões funcionem como um modem? Um modem permanentemente conectado à web e a outros pacientes? — Meu Deus! Essa é a sua teoria? Felipe sorriu friamente. — Tem uma explicação melhor? O fato que é o Pulso os modificou! Modificou de maneira crítica! Você não fica aqui no hospital, mas eu tenho que ver "altas autoridades" andando feito baratas tontas sem saber o que fazer com eles... com medo deles... do que eles estão se tornando. Em 13 de julho de 2053, Mateus e o resto da humanidade receberiam outro choque. Ele estava no consultório recém-inaugurado quando seu wristpad tocou. Após um momento da agora endêmica hesitação, atendeu. — Alô, Mateus. A imagem no display holográfico era a de uma moça ruiva de olhos verdes. Olhos verdes não exatamente vazios, mas parcialmente desconectados com o mundo. — ALEXA? — O choque dele era compreensivo. — Você acordou? — Sim, acordei. — Ela parecia procurar as palavras. — Liguei porque como você estava comigo quando fui atingida, achei que você estaria preocupado... — É claro que estou preocupado, sua maluca! — Não acreditava na calma dela. — Estou indo para o hospital agora mesmo! — Não precisa, Mateus. Olha, tenho que desligar, os outros aqui estão esperando para ligar... 74 JOSHUA FALKEN — Outros? Que outros? Alexandra inclinou a cabeça para o lado, como se confusa com a confusão de Mateus. — Os outros afetados pelo Pulso. Era informação demais para uma pessoa só. — E-Eles também acordaram?? — Sim, ao mesmo tempo que eu. Tchau, Mateus. — Alexa, espere! Conexão encerrada. A humanidade novamente se recuperou desse novo choque, reassimilando os afetados novamente na sociedade, como se a alegria pela "ressurreição" dos afetados compensasse o choque daquele Natal passado, que muitos tentavam esquecer. Mas as surpresas não tinham acabado. Uma mulher andava pelas ruas durante a noite, voltando para a casa, quando notou estar sendo seguida. Ao mesmo tempo em que acelerava o passo, dois transeuntes num ponto de ônibus várias quadras de distância e dois policiais numa viatura numa avenida paralela ficaram tensos e começaram a ir na direção de onde ela estava. Dois minutos mais tarde, o perseguidor a agarrou, pondo uma faca em sua garganta. Antes que pudesse dizer uma palavra, foi agarrado e imobilizado pelos dois transeuntes. — Você está bem? — um dos homens perguntou à mulher. — Sim, obrigada. Nesse momento, a viatura chegou. Enquanto um policial algemava o agressor, o outro pedia mais uma viatura. — Você precisará vir à delegacia prestar depoimento. — Sim, claro, mas... — Então ela perguntou, um tanto confusa. — Como vocês sabiam que precisava de ajuda? Os transeuntes e os policiais se entreolharam sem jeito – também não sabiam. Aquele seria apenas o primeiro de uma inundação de casos semelhantes. PULSO 75 Para o exame nacional para estudantes do ensino médio, esperava-se que cerca de dez por cento dos alunos tivesse um desempenho excelente. O resultado obtido chocou os examinadores: todos os alunos que no passado foram atingidos pelo Pulso – cerca de setenta e cinco por cento – gabaritaram a prova, acertaram todas as questões. Além de terminarem a prova no mesmo tempo recorde. Quando interrogados, os alunos sempre davam a mesma resposta num tom confuso e perturbado, como se não tivessem muita certeza do que tinha acontecido: eles "apenas sabiam" as respostas. O único fator que impediu a anulação foi o de que a probabilidade de uma conspiração para fraudar o exame em tal escala era tão baixa que os examinadores foram forçados a aceitar que era apenas uma coincidência chocante. No dia seguinte ao "Despertar do Pulso" – como o dia foi batizado pela imprensa – o número mundial de suicídios atingiu um recorde. Apenas dois fatores uniam esse grupo: eram vítimas do Pulso e antes dele tinham uma personalidade classificada como psicopata. Nas semanas seguintes, várias organizações fundamentalistas e paramilitares implodiram não apenas com a perda de seus líderes na onda de suicídios como com a saída simultânea de milhares de membros, sem incluir aqueles que confessaram seus crimes para a justiça. Na web surgiram milhares de projetos de "código aberto" para a solução de milhares de problemas – desde o desenvolvimento de novas próteses até modelos matemáticos para previsão climática e dobramento de proteínas. O detalhe era que 80% dos participantes nunca tinham se interessado por esses problemas – mas mesmo assim, o progresso se dava numa velocidade nunca vista. Na agora histórica conferência de 25 de dezembro de 2054 a explicação para esses crescentes mistérios foi revelada: — Por favor, imaginem que cada mente humana seja um computador que rode um sistema operacional específico — dizia Michelle Aran, matemática e cientista de computação da Universidade de Barcelona, vítima do Pulso. — Seguindo essa analogia, o que o Pulso fez num primeiro momento foi reformatar o nosso computador individual, fazendo backup das nossas memórias e instalou um programa que permitia comunicação com a Rede. Após essa instalação, o sistema se configurou em três níveis: o primeiro, o da "linguagem de máquina", por assim dizer, onde roda o software mais básico, que foi incrementado com novas funções como o compartilhamento direto de informação entre as pessoas. Essa capacidade – criada pelo Pulso – permitiu, bem..., 76 JOSHUA FALKEN permitiu o surgimento do que podemos apenas descrever como uma supermente coletiva formada por todos os afetados no evento. O segundo nível, que apenas recentemente cada participante ficou consciente de sua existência, é o "sistema operacional de rede" de nossa supermente, que batizamos de "Gaia". É ela que permite que possamos trabalhar como um único organismo. O terceiro nível é o dos "aplicativos", que seriam nossas personalidades individuais – que tinham sido mantidas no backup, por assim dizer. É claro que a existência de Gaia, a existência de tal conexão direta entre nossas mentes, nos força a ver e entender o Outro, e isso modifica nossa própria personalidade, não como uma lavagem cerebral, mas como um aprendizado, um amadurecimento — explicava a porta-voz de Gaia. Mateus abriu os olhos e novamente estava com Alexandra em seu consultório: — Ainda não tenho certeza de que vocês precisem de mim. — Precisamos sim, dr. Carvalho. — A voz de Alexandra mudara, um tom mais neutro, com um pequeno eco. A voz de Gaia, ele sabia. — Entenda, nós podemos compreender a mente de cada um de nós, mas quando nos tornamos completamente Gaia, há como que um ponto cego que não podemos ver. Precisamos de alguém de fora para ver e analisar tal ponto cego. Para entender o que somos e prevenir que nos percamos dentro de nós mesmos. Lentamente, Mateus respondeu. — É uma responsabilidade tremenda, maior do que qualquer uma que poderia ser posta nos ombros de alguém. Alexandra, ou melhor, Gaia concordou. — Entendemos isso, mas você não seria o único. Há outros que contatamos, discretamente, é claro. Mateus se levantou da cadeira e foi até a janela. Mas será que seria suficiente? Afinal, por mais que quem compusesse Gaia fosse humano, a soma nesse caso gerava algo muito maior do que as partes, algo não humano... Não, isso não era correto, Gaia não era "não humana", ela estava além do que se convencionou de chamar de humano. Os Conectados – novo nome para os afetados pelo Pulso – já demonstravam telepatia bem desenvolvida, se bem que eles raramente a usavam com os Não Conectados, em sinal de respeito de privacidade, e havia relatos de casos de telecinese rudimentar, além é claro da genialidade que surge quando 3,8 bilhões de mentes trabalhavam em uníssono num problema. Neste exato momento, vários projetos criados por Gaia estavam mudando o mundo. Será que a humanidade "gaussiana", não-conectada, poderia competir? Poderia sequer conviver? Já havia rumores de grupos antiGaia, querendo "curar" os Conectados... E havia o risco de Gaia afundar em sua própria mentalidade, de perder o foco, em se tornar algo completamente não-humano... Será que ele e os outros que Gaia estava contatando poderiam impedir a possibilidade desse mergulho na loucura? PULSO 77 Seus pensamentos se voltaram para a amiga. Mateus não sabia se Alexa ainda era a pessoa por quem tinha se apaixonado... Mas se tinha a chance de ajudá-la... Sabia que a única forma de resolver suas dúvidas era convivendo com Alexa. Os minutos se passaram. Ele respirou fundo. — Está bem, aceito. Gaia sorriu. — Obrigado, dr. Carvalho. Ficamos felizes com isso. — A ruiva fechou os olhos por um momento e Alexandra voltou ao controle. Ela se levantou e foi até ele e o abraçou. — Obrigada, Mateus. O relógio soou meia-noite. 25 de dezembro de 2055. — Feliz Natal, Alexandra. — Feliz Natal, Mateus. — Ah, e feliz aniversário, Gaia. Ela sorriu. 78 JOSHUA FALKEN