Susana Scramim.indd

Transcrição

Susana Scramim.indd
Do sentimento de pertença:
o princípio da auctoritas em Francisco
Manuel de Melo
Dra. Susana Scramim
Universidade Federal de Santa Catarina
1. Francisco Manuel de Melo: viver entre dois mundos
De Dom Francisco Manuel de Melo se diz que era um dos grandes escritores
de seu tempo. Entretanto, seus contemporâneos não lhe atribuíam esta distinção.
Homem pertencente a dois mundos, a duas grandes culturas promotoras da contrareforma, Dom Francisco era visto pelos espanhóis com ressalvas porque era português e aos portugueses inspirava pouca confiança porque serviu ao rei espanhol
durante os anos de 1580 e 1640, período em que o poder soberano português esteve sob a égide espanhola. Foi somente no começo século XX que se ofereceu à
obra de Dom Francisco uma oportunidade de releitura. Edgar Prestage, em 1931, ao
coordenar a 3ª reimpressão das Epanáforas de vária história portuguesa, diz que era
de se estranhar que alguns textos deste instigante autor ficassem sem reedição durante 200 anos. Exemplo disso é o olvido em que caiu um conjunto de textos como as
Epanáforas. Sabemos que o esquecimento não é ato fortuito e que, nesses 200 anos,
os promotores da política conservadora na Península experimentaram operações de
resgate de outros autores que lhes propiciassem a salvação somente de parte do que
lhes interessava deste passado persuasivamente arcaico. Contudo, lembrando de
uma reflexão desenvolvida por Jean-Luc Nancy sobre o gesto de dar adeus como um
gesto que no mesmo movimento de despedida desvia e retorna àquilo que abandona, cabe perscrutar nesse abandono quais as motivações que o suscitaram? Da parte
de quem ele emana? E que movimento executou o gesto de retorno a D. Francisco?
Importa também perguntar o que foi descartado da obra deste autor binacional, pertencente ao mesmo tempo à cultura portuguesa e espanhola?
Edgar Prestage, “Introdução” a Epanáforas de vária história portuguesa. Imprensa da Universidade. Coimbra. 1931.
Jean-Luc Nancy. “Poema de l´adieu au poème: Bailly”, in Po&sie, n.º 89, 3.º trim. 1999,
p.59-63.
Susana Scramim - 1233
Edgar Prestage, um dos grandes lusófilos ingleses do final do século XIX e começos do XX e autor de uma das biografias de Dom Francisco Manuel de Melo, sublinha na Introdução à edição das Epanáforas que os historiógrafos espanhóis modernos, não os contemporâneos de Dom Francisco, conferiram importância ao livro
Historia de los movimientos, separación y guerra de Cataluña, pois que ali se conforma uma visão especial do império espanhol. Juan Estruch Tobella, no seu estudo introdutório à mesma obra, relembra que este livro está marcado por uma visão muito
datada do império, pois se em finais de 1639, quando se encontrava em Flandres,
lutando sob a bandeira espanhola, Dom Francisco se referia à coroa como uma
“grande monarquia de Espanha”, no tratado sobre a guerra da Cataluña, que foi publicado em 1645, expressa já uma visão bastante diferente do poderio espanhol. As
baixas que o exército espanhol sofre nos enfrentamentos com os catalães são vistas
por Dom Francisco como sinais de castigo divino à soberba espanhola. Até mesmo a
derrota de Montjuic é vista como uma punição impingida pela divina Providência.
Había llegado ya aquella última hora que la Divina Providencia decretara
para castigo no solo del ejército, mas de toda la monarquía de España, cuyas
ruinas allí se declararon. Así dejando obrar las causas de su perdición, se
fueron sucediendo unos á otros los acontecimientos, de tal suerte que aquel
suceso en que todos vinieron á conformarse, ya parecía cosa antes necesaria
que contingente. Pendía del menor desorden la última desesperación de los
Reales: no se hallaba entre ellos alguno, que no desease interiormente cualquiera ocasión honesta de escapar la vida.
É certo que a esta altura do século XVII o prestígio militar da armada espanhola bem como da monarquia já enfraquecera muito, com isso ocorre também a decadência dos tons épicos bem como das visões bastante sublimadas da nua realidade em que se encontrava a economia política à época de Felipe IV. Moralistas
severos não se eximiam da tarefa de criticar o despreparo e a falta de investimentos
Embora a Guerra da Cataluña tenha sido publicada em 1645, o relato abarca apenas os
acontecimentos ocorridos até 1641. O editor anota que muitos críticos deste livro justificam
esse fato pela simples intenção do autor de narrar apenas aquilo que ele tenha vivido. No
entanto, basta uma análise cronológica para invalidar esta explicação. Dom Francisco esteve somente por dois meses na Cataluña – de novembro a dezembro de 1640 – de modo que
nem os acontecimentos do primeiro livro nem os do quinto poderiam ter sido presenciados
por ele. Isto ocorre porque considerava estes episódios em uma perspectiva literária. No
texto que tem seu início com “Corpus de Sangre” e seu desenlace com a narração da batalha
de Montjuic é gerada uma estrutura trágica que se abre e fecha com episódios que exemplificam a derrota e humilhação do poderio espanhol. Com isso temos um autor cujo testemunho
está muito mais próximo de uma zona de indeterminação entre memória e seleção do que
de uma zona de determinação entre os papéis da autenticidade e criação individual. Juan
Estruch Tobilla, Introducción, em Francisco Manuel de Melo. Historia de los movimientos,
separación y guerra de Cataluña. Madrid: Castalia, 1996, p. 4.
Francisco Manuel de Melo. Historia de los movimientos, separación y guerra de Cataluña.
Edición de Juan Estruch Tobilla. Madrid: Castalia, 1996, aforismo 134, p. 43.
1234 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
na maquinaria militar espanhola, que perde de seus adversários por inadequação técnica. Essa decadência não escapará nem da frase severa de Baltasar Gracián que tentará recolocar o antigo valor pessoal do soldado espanhol na ordem do dia cuja nua realidade é a de estar em franca desvantagem frente à tecnologia de seus inimigos:
Antes, ahora – dixo Critilo – he oído ponderar que está más adelantado el
valor que antes, porque ¡Cuánto más corazón es menester para meterse un
hombre por cien mil bocas de fuego, cuánto más ánimo para esperar un torbellino de bombardas, hecho terreno de rayos! Ese sí que es valor, que todo
lo antiguo fue niñería, ahora está el valor en su punto, que es en un corazón
intrépido; que entonces, en un buen brazo, es tener más fuerzas que un gañan,
en los jarretes de un salvaje.
Engañase de barra a barra quien tal dice: ¡qué dictamen tan exótico y errado!
Pues ese que él celebra no es valor, ni lo conoce, no es sino temeridad y locura, que es muy diferente.
Esse valor pessoal do antigo soldado espanhol que tenta resgatar Gracián derivado
da imagem de uma “bélica Hispania” fora projetado durante todo o século XV e XVI e
não foram poucos os rastros deixados por essa imagem no universo das práticas literárias e nos espaços de representação plástica. Os rastros dessa época dourada funcionam, no século XVII, como figuras e fantasmagorias as quais conservam de sua potência larvar, ou seja, sua possibilidade de vir a ser, a sua capacidade política de orientar
a história como uma teologia política transcendente ou um governo das “católicas armas”. As imagens literárias e plásticas continuam a ser projetadas como “fortalezas”,
“castillos interiores”, “bastiones”, “ciudadela de Dios”, “moradas” e seus habitantes ou
comandantes serão ainda os soldados de Deus. Fantasmagorias essas que os moralistas
espanhóis não irão abdicar de invocar em seus tratados e preleções.
2. Soberania sem poder
Dom Francisco Manuel de Melo será um desses moralistas, não será exatamente um moralista espanhol nem certamente um moralista português no sentido estrito desses adjetivos pátrios. A mudança de ponto de vista que se percebe nos seus
textos não destaca tanto uma mudança de opinião a respeito de uma decadente
vocação militarista espanhola proferida por um membro da nobreza ibérica, mas é
marca de uma oscilação do próprio D. Francisco a respeito da monarquia. O fato é
que essas imagens da “bélica Hispania” serão retomadas pelos textos de Dom Francisco de um modo ambíguo e oscilante entre uma visão da monarquia como poder
Baltasar Gracián, El Criticón, Crisi Octava, Segunda Parte. Edición de Santos Alonso. Madrid: Cátedra, 2004, p. 442.
Susana Scramim - 1235
soberano, fundamentado na transcendência da figura do rei cujo poder se baseia
na mediação que emana da auctoritas como força política e uma visão da monarquia como poder absoluto, mas ineficaz, fundado na força do rei apenas como figura que legitima o gerenciamento do estado executado pela potestas. Essa ambivalência gera uma visão na qual se encontram indistintas as esferas do público e do
privado. A alternância desses pontos de vista não ocorre quando o gênero textual
muda, como por exemplo, das Epanáforas, que são cartas escritas como crônica
histórica, para um tratado sobre a guerra da Cataluña, que é efetivamente um relato histórico, mas que possui estrutura que seu autor empresta do gênero trágico
para melhor poder expressar seu julgamento sobre o fato. Num texto como Carta
de Guia de Casados, publicado pela primeira vez em 1651, apesar de estar mais
afinado com os pontos de vistas condizentes ao espaço privado, estão presentes os
dois pontos de vista, bem como nos textos das Epanáforas, publicado em 1654,
que, sendo um conjunto de crônicas históricas e seguindo as orientações textuais
do gênero, analisam e julgam questões pertinentes à esfera do privado e, no entanto, segundo a regra do gênero deveriam conter apenas o ponto de vista que enfocasse os problemas da esfera do público.
Segundo Álvaro d´Ors, jurista espanhol admirador de Carl Schmitt com quem manteve
relações estreitas de amizade intelectual, especialmente nas intensas conversas que mantiveram em 1944 em Granada e Santiago, o termo auctoritas, no direito romano clássico, se
contrapunha ao de potestas ao que complementava e lhe definia os limites, após analisar
vários casos de suas aplicações d´ Ors definiu a autoridade como o saber socialmente reconhecido. Contudo, com base na prerrogativa de que o conceito de autoridade é tipicamente
romano, questões histórico-jurídicas, iniciadas com Augusto e culminadas com Adriano,
fizeram com que houvesse uma indistinção entre auctoritas e potestas não somente no terreno dos fatos como também no âmbito da conceituação destes. O termo latino auctoritas
foi assimilado em sua tradução para o grego ao longo dos séculos, especialmente na Idade
Média, por authentia e declinado posteriormente no neologismo authenticum, derivado do
adjetivo grego authentiko, que expressa a idéia de poder originário não delegado do qual
dependem outros poderes. Dessa forma, veio a significar poder originário do qual dependem
outros delegados. Daqui decorre que hoje em dia se tenda a chamar autoridade à instância
superior de potestade que manda, mas não executa o mandato, pois esta função é própria
dos agentes da autoridade. Para uma leitura mais atenta da teoria da auctoritas e da potestas em Álvaro d´Ors conferir: Elementos de Derecho Privado Romano. Estúdio General de
Navarra: Pamplona, 1960; “Autoridad y potestad”, em Lecturas Jurídicas, n. 21, 1964, p
23-35; “Auctoritas-authentia-authenticum”, em Apophoreta philologica. Homenaje al Prof.
Fernández-Galiano, Revista Estudios Clásicos, n. 88, Madrid, 1984, p. 375-381.
Giorgio Agamben acrescenta que é necessário que se compreenda “o sentido dessa confusão”, dessa indistinção entre auctoritas e potestas. Segundo uma observação feita por um
outro estudioso espanhol, Jesus Fueyo, e citado por Giorgio Agamben, esses “dois conceitos
que exprimem o sentido original pelo qual o povo romano havia concebido sua vida comunitária” e sua convergência no conceito de soberania, “foram a causa da inconsistência
filosófica da teoria moderna do Estado” e que essa confusão está “inscrita no processo real
que levou à formação da ordem política moderna”. Jesus Fueyo, “Die Idee des ‘auctoritas’:
Genesis und Entwicklung”, em H. Barion (org.), Epirrhosis. Festgabe für Carl Schmitt, Berlin,
Dunkler&Humbolt, 1968, apud Giorgio Agamben, Estado de Exceção, tradução Iraci Poleti.
São Paulo:Boitempo, 2004, p.116-117.
1236 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
Nesse sentido, diríamos que esta oscilação pende entre o questionamento de
uma teologia política – porque funda o poder absoluto sobre uma transcendência
divina – inerente aos desígnios da monarquia a qual Dom Francisco estava filiado
e a sua ponderação frente a uma teologia econômica – porque doméstica e imanente –, esta sim independente da transcendência a que ele se via obrigado na sua
práxis no âmbito da teologia política. Interessante notar que na esfera doméstica
D. Francisco critica o maquiavelismo, o puro arbítrio régio, as intrigas de áulicos e
até mesmo as devoções, contudo, no espaço público ele irá considerar esses mesmos males e outros como a prostituição, a bastardia, e desigualdade social como
males necessários. Não há no pensamento de D. Francisco uma clara distinção
entre o público e o privado, contudo atribui valor positivo a esta distinção que,
segundo ele, ofereceria um caminho para que a nobreza retomasse seu natural
papel de mediadora entre o rei e os povos. Esse julgamento do papel da nobreza
nada tem de ingênuo, pois que a avaliação que D. Francisco faz do levantamento
de Évora, expressa na Epanáfora Política, ocorrida em 1637, é bastante contundente e a sua opinião era de que a revolta foi uma reação contra o incompetente funcionalismo composto de legistas e filhos da burguesia que, desde D. João II, afastara a nobreza de sua função de intermediária entre o poder dos reis e o povo.
O uso immemorial de nossa nação havia constituído por cabeças de comarcas,
em nome de corregedores, a homens leigos, prudentes e nobres; e a muitos dos
que derramando seu sangue na mocidade, por defesa da pátria, como mais
obrigados a ella, e ella mais dependente delles, agora na velhice se empregavão
em conservalla e regella, com paz e justiças e bons costumes. Mas sucedendo
no Reyno D. João, o II, Príncipe excessivamente zeloso da justiça, e duramente
oposto á grandeza dos vassallos, acordou de mudar o estilo antigo, (que todavia
se conservava em o resto de Espanha), e introduziu nas correições homens,
professores de letras civis; gente que por meam entre os grandes e pequenos,
pudesse moderar a autoridade dos senhores e castigar a insolência do vulgo.
Este modo de regimento, por se mais em favor da monarquia que o passado, foi
tam aprazível a todos os Reys sucessores de D. João, que nenhum se lembrou
de restituir à nobreza estas dignidades que D. João lhes alheara; nem advertidos
dos grandes inconvenientes que sobreviverão por essa causa ao Rey e república, tais que a todos puzeram perto da última ruìna. Porque os reys,(dizem os
Giorgio Agamben trata do conceito de economia com base na oposição de dois paradigmas:
o da “teologia política, que baseia a transcendência do poder soberano no único Deus, e o da
teologia econômica que substitui tal idéia com uma oikonomia como uma ordem imanente
– doméstica e não política em sentido estrito, tanto da vida divina como da vida humana. Do
primeiro paradigma derivam a filosofia política e a teoria moderna da soberania: do segundo, a
“biopolítica” moderna, até o atual triunfo da economia sobre qualquer aspecto da vida social”.
Confira em “Da teologia política à teologia econômica”, entrevista concedida a Gianluca Sacco, publicada em Rivista online, Scuola superiore dell’economia e delle finanze, anno I, n.6/7,
Giugno-Lulgio 2004, 07 pp. – http:/rivista.ssef.it/ , acessado em 24/07/2004, tradução para o
português de Selvino Assman), p. 3.
Susana Scramim - 1237
que não aprovão esta mudança), amão o serviço dos letrados, persuadidos delles mesmos, por lhes fazerem certo, que o ser da sua faculdade he sciencia do
justo e injusto; donde procede que elles às vezes estendendo a jurisdição, chamão de continuo em seus excessos por autora a autoridade real, com cuja
ofensa, (se assi he) dilatam seu poder à vontade da paixam ou cobiça, que talvez oprime o animo de muitos por ambição ou miséria. Até aqui pertence à
queixa dos que julgarão inconveniente o governo dos jurisconsultos, de alguma
sorte favorecida como o exemplo que escrevemos.
A noção de poder soberano em D. Francisco deve passar por uma força de mediação que impediria os excessos daqueles que desejassem exercer autenticamente
uma função que apenas era atributo do rei devido a sua autoridade constituída pela
política teológica. Interessante é observar na construção do argumento de D. Francisco
que ele distingue como sendo um excesso a autenticação de qualquer ato jurídico fora
da autoridade real. E que praticam esse ato excessivo os letrados, “os homens, professores de letras civis”, destituindo definitivamente a nobreza dessa função que deveria
ser exercida como uma dignificante força mediadora. Em nada dignificante é o que
acontece quando os homens de letras civis assumem para si o poder da autoridade. Por
isso, Dom Francisco irá de modo recorrente em seus tratados discutir essa função, ou
seja, a função da autoridade no seio das monarquias portuguesa e espanhola. A autoridade será por ele compreendida como força de mediação cujo núcleo pode igualmente ser percebido no tratado sobre política militar. Neste texto publicado em 1638,
portanto, um ano antes de História de los movimientos y separación de Cataluña, em
que perceberemos a mudança de ponto de vista em relação à capacidade de se autogovernar do poder soberano espanhol, D. Francisco se propõe a ensinar os capitães a
dar ordens a seus mandantes, de modo que o tratado também poderia ter sido chamado de A arte de governar, mas não o foi, e a escolha do título Política Militar é significativa para a reflexão que se quer fazer aqui.
Em Política Militar o objetivo não é escrever sobre preceitos civis da guerra ou
sobre as ciências da guerra – por isso a opção é pela forma do aviso e não da lição
– mas sim sobre o espírito da prudência dos comandantes gerais dos quais se cobra
governar ações tão distantes de preceito como ocorre no desenrolar de uma batalha. Dessa forma, seria interessante perguntar se este tratado de Dom Francisco se
insere na ordem do público ou do privado, ou ainda, no âmbito de uma política,
conforme seu título atesta, ou estaria apontando para uma oikonomia, um regime
de governo caracterizado pela administração da vida doméstica. Vale lembrar que
Giorgio Agamben fala da indistinção entre auctoritas e potestas em sua origem pela
reivindicação de Augusto da “auctoritas como fundamento do próprio status de
princeps”10 como significativa para indistinção entre o público e o privado na formação do estado moderno. Nesse sentido, conclui Giorgio Agamben, “a vida ‘augusta’ não pode mais ser definida, como a dos simples cidadãos, pela oposição
Francisco Manuel de Melo. Epanáforas de vária história portuguesa, op. cit., p. 20-21.
Giorgio Agamben, Estado de Exceção, op. cit., p. 123.
10
1238 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
público/privado”.11 O que, então, poderia significar, já no primeiro aviso aos comandantes, a afirmação de que seu objetivo é o de governar ações que estão separadas do preceito?
Yo escribo ahora al espíritu y prudencia de los Capitanes Generales, por cuya cuenta está el gobernar acciones tan ajenas de precepto, que todas se afirman en la incierta disposición de la fortuna y en la ceguedad de la pasión humana; mayor empresa es la mía que dar medios á la enseñanza común de las artes que digo12.
Teríamos, neste trecho, já configurada uma zona de indistinção entre o público
e o privado nas orientações para o exercício da soberania? Se o preceito e a lei estivessem de antemão refletidos e definidos nos tratados e nas doutrinas, haveria dessa
forma algo que escaparia aos tratados e doutrinas cuja essência Política Militar quisesse discorrer? Mais que isso é preciso interrogar sobre que política Dom Francisco
deseja se referir? Arturo Cancela compara a empresa de Dom Francisco à de Descartes do Discurso do Método. A comparação os separa no que se refere à motivação de
seus tratados. “Descartes se decide a pensar por su cuenta en vista de la confusión y
contradicción en las opiniones de sus antecesores”13. O autor português estaria motivado pela falta de documentos que orientassem e conformassem uma doutrina militar para a marinha já que para a doutrina do exército havia já alguma orientação
doutrinária. A resposta a essa questão pode não ser simples assim a ponto de pensarmos que havia uma lacuna sobre a organização e orientação aos comandantes da
batalhas navais e um satisfatório conjunto de regras para as batalhas em campo.
Como um moralista, talvez um pouco afastado do típico do austero pensamento português do século XVII, Dom Francisco cria uma artificiosa prática de argumentação que envolverá, no âmbito de um tratado sobre a administração das armadas ibéricas, tanto uma economia dos afetos como uma política das paixões. Este
método de reflexão o levará como pensador a invocar muitas das fantasmagorias
que ajudaram a construir a idéia de Península Ibérica no século XVII. Contudo,
seus conselhos e análises para as mais diversas facetas da vida ibérica nas suas dimensões política e administrativa serão construídos de um modo que se avizinha
muitas vezes da posição política que o próprio rei sustenta, ou melhor, que ele não
sustenta. Em Política Militar há uma separação entre as concepções de Estado e de
poder, uma vez que a análise de cada um destes assuntos foi disposta em dois avisos distintos, sucessivos, porém, separados. O “Aviso V”, “Del Estado”, trata da
maneira como transmitir a autoridade dos comandantes e da discussão, por conseguinte, da vantagem do comandante estar ou não casado e ter filhos durante o
exercício do seu mandato o que daria para seus descendentes o direito de transmissão do cargo do pai quando este não estivesse mais habilitado para exercê-lo.
Idem, p.126.
Francisco Manuel de Melo, Política Militar. Colección Cisneros. Madrid: Ed. Atlas, 1944, p.111.
13
Arturo Cancela. “Nota preliminar”, em Francisco Manuel de Melo, Política Militar en avisos generales. Buenos Aires: Emecé, 1946, p. 14.
11
12
Susana Scramim - 1239
Note-se que esta não é uma discussão que possamos compreendê-la como uma
disposição de assuntos administrativos, mas sim políticos, que se limitam ao problema da autoridade e de quem possui o direito a sua transmissão. No entanto, no
“Aviso” subseqüente, o de número VI, intitulado “Del Poder”, podemos observar
por sua vez uma discussão sobre o poder do comandante das armadas no que se
refere as suas atribuições e a sua gestão administrativa.
El Capitán General, que (como habemos dicho) es el más eminente y poderoso
oficio de las monarquías y repúblicas, después del Príncipe ó Senado de ella, y
que, como éste, debe ser persona de tal satisfacción que sobre su ánimo y fidelidad asienten justamente las mayores confianzas, no podrá jamás hacer la
guerra con acierto á nación ó provincia distante de su patria, si los poderes con
que sale de ella á gobernar la guerra le fueren concedidos con alguna limitación y en orden de consultar algunas resoluciones; porque los accidentes de la
guerra son tantos y tan desemejantes, que no cabe la prevención de ellos en el
entendimientos de los hombres, supuesto que en meditarlos se desvelen los
más doctos y experimentados, de quienes se forman los Consejos de los Príncipes [...] Será dudosísimo el acierto de las acciones llevando abstenidos los poderes el Capitán General que las gobierna en provincias remotas, donde nace
el perderse ocasiones de gran importancia y que la fortuna ofrece raramente, y
se da causa á disculpas de muchas omisiones, dorando la falta de cuidado con
la del poder. Y supuesto que el Príncipe debe señalar al Capitán General la
disposición de las cosas conforme al orden de ellas, no será justo negarle la
plenitud de la potestad para los casos impensados, ni lo será también que el
Capitán General, por temor ó por malicia, deje perder alguna conocida conveniencia por faltarle la concesión del Príncipe ó la prevención para tal caso,
porque va menos en la represión que en el desacierto.14
Ao ler este aviso nos vemos diante de uma somatória de atribuições, de seu
bom modo de conduzi-las e do julgamento de seus atos não previstos. Está presente a divisão entre os poderes, entre auctoritas e potestas, na análise de Dom Francisco Manuel de Melo. Porém, quando diz que será injusto negar ao comandante
a plenitude da potestade está considerando a possibilidade da exceção à lei, porque melhor será reprimir um ato excessivo do que reparar um desacerto. O que
parece mais instigante para nossa leitura da oscilação de ponto de vista desses textos é que ao criticar a república quando ela tolhe os poderes do comandante geral
não a julga em função de um improvável desconhecimento dos assuntos sobre as
atribuições de poder dos mandatários, mas sim com base na sua reflexão de que
“siendo cuerpos imperfectos vivem siempre celosos del poder absoluto y grande,
de que se podia formar cabeza monstruosa á esse mismo cuerpo”15. Dessa forma,
Dom Francisco julga, no século XVII, a república como aspirante à mesma finali-
14
15
Idem, p. 116-117.
Idem.
1240 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
dade da monarquia: o poder soberano. No entanto, a justificação pelas leis republicanas dessa autoridade que emana do poder soberano – aquele que autentica
uma práxis e que na monarquia está baseada numa teologia política – está fundada
num modus operandi administrativo.
O moralismo de Dom Francisco Manuel de Melo está relacionado à discussão
que seus textos estabelecem com a questão do poder. Seus tratados, cartas, guias, epanáforas e até mesmo alguns poemas dão testemunho dessa quase obsessão. Por sua
vez, o poder é enfocado como um problema dependente de certa interioridade que lhe
é exterior, quer seja, a auctoritas que deveria ser fundada num conjunto de tópicas,
topoi, que seriam extrínsecas e intrínsecas, com a finalidade de conjugar o poder sobredeterminado, transcendente, com o caráter do soberano, passa na visão de Dom
Francisco a ser questionado na sua limitação a um exercício de soberania meramente
administrativo, gerencial. Quando Walter Benjamin analisa o problema da soberania
reportando sua conceituação ao problema da falta de capacidade de decidir do soberano no século XVII o que se conforma é um conceito de soberania baseado na indecisão. No entanto, esta indecisão no século XVII é figurada na fúria característica do
final de vida típico de alguns dos reis judeus, isto é, como seres possuídos, furiosos
porque se encontram em uma situação em que estão incapazes de decidir.
O espírito do drama principesco se revela na circunstância de que nesse final
de vida típico do rei judeu estão presentes os temas da tragédia dos mártires.
Porque se a figura do governante, no momento em que ele ostenta o seu poder da forma mais furiosa, simboliza ao mesmo tempo a manifestação da
história e a instância que coíbe as suas vicissitudes, então algo pode ser dito
em favor do César sucumbindo a seu delírio de poder: ele se torna vítima da
desproporção entre a dignidade hierárquica desmedida de que Deus o investiu, e a miséria da sua condição humana.16
Há algo de exterior que condiciona o poder soberano no século XVII. Se a
indecisão é a sua principal característica, ela é motivada pela gradativa assimetria
entre o poder místico de foi investido o rei ao assumir a função da auctoritas e a
condição humana que lhe impediria de agir senão por “impulsos físicos vacilantes”17. Esta assimetria entre transcendência e a imanência, entre razão e afeto, entre
o fora e o dentro foi corrigida pela introdução de um novo modo de governo, que
para Giorgio Agamben, é a oikonomia18. Dom Francisco Manuel de Melo escreverá contra e a favor desses impulsos físicos vacilantes da auctoritas do Príncipe que
estará longe do campo de batalha, por isso seus subordinados comandantes de
16
Walter Benjamin. Origem do Drama Barroco Alemão, tradução, apresentação e notas
Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 94.
17
Giorgio Agamben, “Da teologia política à teologia econômica”, entrevista concedida a
Gianluca Sacco, op. cit., p. 3.
18
Giorgio Agamben, “Da teologia política à teologia econômica”, entrevista concedida a
Gianluca Sacco, op. cit., p. 3.
Susana Scramim - 1241
campo não terão tempo hábil para consultá-lo frente ao imprevisto. Na reflexão
sobre esses problemas Dom Francisco reafirma, ressaltando as qualidades do comandante geral das armadas, sua opinião de que os comandantes necessitam de
um lastro mais amplo em que possam decidir estando longe do Príncipe. Nesse
mesmo sentido concluirá que a imprecisão dos preceitos da Lei diante de fatos
novos deverá conduzir ao aumento da potestas do comandante geral. Sendo assim,
a idéia de soberania em Dom Francisco ratifica a posição de dentro e fora do Príncipe no âmbito das decisões, bem como o mantém inserido na ordem teológica, a
da transcendência divina que lhe instituiu a auctoritas. Veja-se como exemplo disso a atribuição da derrota frente aos catalães ao castigo impingido pela Providência
à arrogância e presunção espanholas, conforme já se referiu anteriormente neste
estudo. Alguns analistas da obra de Dom Francisco não concordariam com esta
leitura, uma vez que muitos afirmaram o caráter fortemente moralista unívoco de
seu pensamento que julga os acontecimentos e atribui-lhes apenas um valor didático moral. Esta moral de mão única apregoada por seus críticos condiz, numa
análise historicista do século XVII, com o conceito de história como “mestre da
vida” vigente nesse período.19
3. Auctoritas, autor
Sem invalidar o fato de que na obra de Dom Francisco encontra-se um estoicismo de tipo racionalista que conduz à moderação – e daqui decorre o caráter
doutrinário de seu texto – é importante notar que o convite feito ao leitor para que
siga o caráter exemplar de suas reflexões é sempre acompanhado por uma frase ou
outra que desestimulam a observância da doutrina que se constrói. Num texto
como Carta de Guia de Casados é possível perceber todo o sistema construído sobre a inter-relação das contingências da vida conjugal e familiar com a vida social,
sobretudo, aristocrática, no século XVII, estruturado por operações retóricas de
seleção de ditos e exemplos e de disposição sintética, mas “aguda20”, dessas mesmas sentenças ditadas para a vida prática, já que como um “discreto21” que escre-
Para aprofundamento desse ponto de vista crítico da obra de Francisco Manuel de Melo
ver: Maria de Lurdes Correia Fernandes. Espelhos, Cartas e Guias. Casamento e espiritualidade na Península Ibérica. 1450-1700. Porto, 1995 e “Introdução à Carta de Guia de Casados”.
Campo das Letras: Coimbra, 2003; Maria Lucília Gonçalvez Pires, “Homo homini lupus: um
tópico da moral barroca na obra de D. Francisco Manuel de Melo”, em Atas I Congresso
Internacional do Barroco, vol. II, Braga, 1990; Joel Serão, “Introdução a Epanáforas de vária
história portuguesa”. Lisboa, INCM, 1977.
20
A agudeza, para Baltasar Gracián, que estava fundamentado em Aristóteles e nos tratados
de Retórica da Idade Média, era um instrumento do qual deveriam se valer os autores para
exprimir cultamente os conceitos, em especial pelo que se refere à sutileza do dizer com vistas
a concentrar a profundidade do pensamento. Confira em Baltasar Gracián, Agudeza y arte de
ingenio. Edición de Evaristo Correa Calderón. Tomo I. Madrid: Castalia, 2001, p. 22.
21
Na primeira parte de El Discreto, intitulada “Genio y ingenio”, são explicitadas as bases
19
1242 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
veu para “os discretos”, para os “entendidos e para os “prudentes”, Dom Francisco
necessitava adequar-se às categorias textuais próprias do meio cortesão em que
vivia. É aguda a expressão de seu conselho para que os maridos saibam regular o
riso de suas mulheres menos com os preceitos antigos e mais com a prudência de
avaliar cada situação em particular. “Não disse Platão, nem Sêneca, cousa melhor
que o disserem as nossas velhas: ‘Muito riso, pouco siso’”22. Conforme se pode
observar, ele não estava somente adaptado às formas de expressão do cortesão, era
Dom Francisco, antes de tudo, um homem de seu tempo e, conforme assinalamos
anteriormente, no século XVII, alguns conjuntos de símbolos já tinham entrado em
franca decadência. E é nesse sentido que poderíamos dizer que podem ser encontrados nessa economia discursiva alguns traços de sua subjetividade e idiossincrasias como significantes pertinentes a uma figura como a de Dom Francisco, figura
essa que mantém relações de pertencimento com vários lugares tanto discursivos
como geopolíticos. Sabemos, no entanto, que no regime discursivo em que escreveu não existia espaço para a função de autoria como portadora de alguma subjetividade original tanto em relação à forma, isto é, a disposição das matérias no
texto, quanto em relação à seleção e combinação das matérias do discurso. A eficácia do texto era, dessa forma, medida pela boa articulação entre o engenho em
selecionar e combinar assuntos, a inventio, e a disposição desses assuntos durante
a argumentação discursiva, quer seja, a dispositio. Mesmo compartilhando de muitos dos ideais do cortesão é igualmente possível ponderar em alguns textos de Dom
Francisco sobre uma tentativa de sistematização de seu pensamento para além das
balizas de gênero, portanto, de forma e conteúdo, impostas pelos tratados retóricos
ao desempenho desses mesmos textos. Por exemplo, para construir seu argumento
Dom Francisco lança mão de forma recorrente de provérbios e de refrões populares
que talvez parecesse um pouco extravagante ao gosto dos discretos destinatários
desse texto. Ao mesmo tempo em que compartilhava de provérbios e ditos agudos
encontrados em muitos outros manuais como o Oráculo manual y arte de prudência de Baltasar Gracián bem como de coletâneas várias de dicta e facta tão ao
gosto ibérico dos séculos XVI e XVII que conjugavam o antigo e o moderno, Dom
Francisco também se valia de refrões saídos da boca do povo.
Pois comecei com os meus adágios, hei-de acabar com eles. Ouvi um dia,
caminhando, e não era menos que a chapado recoveiro (veja V.M. que enjeitei os filósofos para citar estes autores), enfim, ouvi-lhe que Deus o guardasse
de mula que faz him e de mulher que sabe latim. O riso e gosto com que lhe
escutei esta engraçada sentença me faz agora lembrar dela. Não se julgue por
de um estilo conciso, aforismático, que não se ajustava a empregos vulgares. Não se escreve para todos, afirma categoricamente Baltasar Gracián. Os destinatários mesmos marcam,
desde as primeiras páginas, o mistério e a sublimidade da matéria tratada. Eles são figurados
como a capacidade de ajuizar com prudência e justiça a aptidão técnica da forma poética,
valorizando o artifício aplicado. Confira em Baltasar Gracián, El Discreto. Edición Aurora
Egido. Madrid: Alianza Editorial, 1997, p. 170-171.
22
Francisco Manuel de Melo, Carta de Guia de Casados. Campo das Letras: Coimbra, 2003, p. 98.
Susana Scramim - 1243
indecente se é proveitosa. O ponto está em que o latim não é o que dana, mas
que consigo traz de outros saberes envolto aquele saber.23
Não é somente por utilizar-se de refrões populares em vez dos “lugares comuns” filosóficos que é possível atribuir alguma singularidade ao texto de Dom
Francisco, sabe-se que Cervantes colocou na boca de Sancho Pança um sem número de provérbios e que, por não conter este personagem nada do “discreto”,
utilizou-os sem nenhuma regra nem contenção – não é gratuitamente que Michel
Foucault irá referir-se a Don Quijote no livro As palavras e as coisas como a primeira obra literária moderna24. Fazia parte dos instrumentos de captura do gênero
doutrinário a utilização de aforismos peregrinos para que pudessem ilustrar os conselhos ou figurar situações, aparentando certa espontaneidade discursiva. O fato é
que o texto de Dom Francisco apresenta um consistente domínio das operações
retóricas, como ressalta Maria de Lourdes Correia Fernandes, “aliado a uma criteriosa seleção conceptual que conferem um gracioso colorido e, indiscutivelmente,
uma amenidade conversacional que outras obras de caráter doutrinário não conseguiram lograr.”25 Interessante observar que o tratado doutrinário Carta de Guia de
Casados resulta num texto portador de uma leveza que não se pode facilmente
encontrar no conjunto de textos pertencentes a esse gênero. Há um tom familiar
nas frases compostas por Dom Francisco o que lhe proporciona um ponto de vista
distinto frente a muitos temas que destoam de outros textos que enveredaram pelo
já cansado gênero moralista da época. E é aqui que reside sua novidade em relação
à lei do gênero vigente nos códigos poéticos desde a Idade Média. No entanto, com
base na prática textual de Dom Francisco seria possível refletir que “um texto não
pertenceria a nenhum gênero. Todo texto participa de um ou vários gêneros, não
há texto sem gênero, sempre há gênero e gêneros, porém esta participação não é
jamais de um pertencimento”26? Da mesma forma que a interpretação da obra do
poeta brasileiro do século XVII, Gregório de Matos Guerra, feita por João Adolfo
Hansen, não sem desencadear polêmica com o crítico e poeta concretista Haroldo
de Campos, submete toda a tentativa de Gregório de Matos de desviar do regramento retórico da época aos enquadramentos poéticos vigentes, aqui também poderíamos tentar estabelecer todos os preceitos dos gêneros textuais observados por
Dom Francisco e interpretar seus possíveis desvios como explicáveis dentro da lógica do gênero. Contudo, essa não parece ser a interpretação mais adequada em
função de todo o quadro que apresentamos até aqui. Seria ainda conveniente refle-
Idem, p. 95.
Dom Quixote é a primeira das obras modernas, pois que aí se vê a razão cruel das identidades e das diferenças desdenharem infinitamente dos signos e das similitudes: pois que aí
a linguagem rompe seu velho parentesco com as coisas, para entrar nessa soberania solitária
donde só reaparecerá, em seu ser absoluto, tornada literatura; pois que aí a semelhança entre numa idade que é, para ela, a da desrazão e da imaginação. Michel Foucault, As palavras
e as coisas, tradução Salma T. Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 67.
25
Maria de Lurdes Correia Fernandes. “Introdução à Carta de Guia de Casados”. Campo das
Letras: Coimbra, 2003, p. 37.
26
Jacques Derrida. “La loi du genre”, consultado em Acts of Literature. Routledge: London, s/d.
23
24
1244 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
tir sobre uma das operações do discurso prevista nos códigos retóricos vigentes
desde a Idade Média, a dispositio, como um dispositivo de captura desta singularidade, que estaria materializada pelo aparecimento de uma subjetividade como
elemento constituinte do texto. Ao tratar da obscenidade dentro do gênero da sátira João Adolfo Hansen nos diz que
exibida como efeito grotesco da aplicação de regras da fantasia poética para
agredir rindo, é a obscenidade que abre este capítulo. Não deve provocar pruridos, senão os das cócegas de Quevedo, que fazem rir com enfado e desesperação, nem espantar, senão como maravilha do engenho, pois prescreve-se
como técnica moral e política de afetar a vontade com a monstruosidade exemplar. Lida segundo seu funcionamento retórico, que é histórico, a obscenidade
se evidencia nos poemas como maledicência que hierarquiza tipos vis em
nome do bem comum. Contra o vulgo, viu-se, é efetuada como diversão do
mesmo, que se delicia com os mistos sórdidos e fantásticos. Tripla articulação,
pois, em que retórica, moral e política se integram para mover e subordinar.27
Esta análise envolve um conceito de gênero pertencente a um cânone rígido que
está muito longe de uma concepção de gênero em cuja estrutura pudesse aparecer algo
como uma voz dissonante e torna sem sentido qualquer atribuição de individualidade
em detrimento de uma sempre constante inclusão desta num corpo coletivo.
O que dizer, nesse sentido, do recurso não pertinente – um recurso impróprio
– aplicado a um texto que deveria ser incluído no corpo coletivo que são os preceitos a serem seguidos na construção discursiva de cada gênero? Cabe ainda perguntar pelos dispositivos de captura e pelas estratégias de desvio, se elas existem, em
uma obra como a de Dom Francisco?
4. Inventio, Dispositio, Elocutio,
Memória e Actio: o autor em cena
Como já dissemos Carta de Guia de Casados é um texto exemplar pertencente
ao gênero narrativo de caráter doutrinário. As cinco operações discursivas previstas nas retóricas são executadas com maestria. Tanto é que poderíamos dizer com
João Adolfo Hansen que a auctoritas do texto está relacionada ao efeito que se quer
criar no receptor. Um texto de Dom Francisco, desse modo, não seria definido pela
singularidade contida no nome próprio do autor, mas sim pelos dispositivos de
gênero a que pertence.
João Adolfo Hansen. A sátira e o engenho. Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. 2
edição revisada. São Paulo: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da UNICAMP, 2004, p. 389.
27
Susana Scramim - 1245
Quando os códices manuscritos são examinados, evidencia-se que neles a
função-autor é o ponto de convergência das diversas versões de poemas que
realizam a auctoritas do gênero retórico-poético do qual eles eram, para
quem os juntou em códices nos séculos XVII e XVIII, outras aplicações. A
autoria aparece, nos códices, não como realidade psicológica, mas como
dispositivo discursivo. Ela decorre da aplicação de esquemas táticos, retóricos, pressupostos pela recepção contemporânea, ao menos pela recepção
letrada, que produzia e lia os manuscritos.28
Se a auctoritas servia para classificar segundo a adequação das regras da dispositio o pertencimento a determinado gênero discursivo ou outro, bem como era através dessa observação que os ouvintes e leitores do século XVII apreciavam a significação dos temas tratados, a inventio, por sua vez, servia para ratificar a existência de
alguma característica do auctor. É certo que o papel que cada uma das operações do
discurso exercerá em cada época, isto é, a função histórica de cada uma das partes
de technè rhetorikè, estará fortemente marcada pela importância que se ofereceu à
idéia mesma de literatura. Roland Barthes em seu ensaio sobre a retórica antiga nos
diz que as discussões e polêmicas sobre a relação entre a ordem de invenção, a dispositio, e a ordem de apresentação (ordo) é notadamente desvio e orientação (contradição e inversão) das duas ordens paralelas, e possui portanto valor teórico: “c‘est
toute une conception de la litterature qui est à chaque fois en jeu”.29 Se é toda uma
concepção de literatura que se coloca em jogo, outra pergunta se impõe: que concepção de literatura João Adolfo Hansen põe em jogo quando afirma que a autoria
aparece, nos códices, não como realidade psicológica, mas como dispositivo discursivo? E ainda: tal afirmação é feita com base em seu estudo sobre o poeta baiano dos
seiscentos Gregório de Matos, contudo, aplicará o mesmo princípio para caracterizar
“os cinco dos maiores autores desse tempo (o século XVII), Quevedo, Góngora, Vieira, D. Francisco Manuel de Melo e Sor Juana Inés de la Cruz” como dispositivos retóricos que se evidenciam através da “superioridade do engenho do intelecto agente
nos autores, quando produzem o conceito engenhoso e, com isso, a presença irradiante da Luz que os ilumina no mundo” . Claro está que para Hansen comete pecado mortal do anacronismo a análise crítica que, motivada por questões de outra ordem que não a do preceptismo historicista que fundamenta sua própria concepção
de literatura, tenta colocar em jogo nos textos desses autores outra coisa que somente sua função de manifestar o pensamento da Contra-Reforma, manifestação essa que
tecnicamente ocorre na emulação com outras auctoritas.
Na concepção de literatura esboçada por Hansen não encontra lugar uma
possível reflexão sobre a transgressão à ordem do discurso vigente no século XVII.
Tampouco será capaz de cogitar que, ainda sem terem meios para transgredir a
João Adolfo Hansen. “Barroco, neo-barroco e outras ruínas”, em Teresa. Revista de Literatura Brasileira, Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, n. 2, 2001, São Paulo: Ed. 34, p.34.
29
Roland Barthes, “L’ancienne rhetórique”, em O Euvres Complètes, Tome II. Paris: Éditions
du Seuil, 1994, p. 928. 28
1246 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
relação entre as ordens discursivas paralelas de contradição e inversão, mas, segundo Roland Barthes, não excludentes, estes autores pudessem exercer a auctoritas de um modo oscilante entre a ordem e a desordem, entre o dever de decidir e o
pranto, entre o poder autorizado da exemplaridade e as confusões emotivas e os
impulsos físicos vacilantes de que nos fala Walter Benjamin em sua teoria da soberania, que não deixa de ser igualmente uma reflexão sobre a auctoritas.30 Cabe
ainda dizer que para compreender esses autores com base na reflexão sobre a soberania de Benjamin devemos concebê-los não já como transgressores, mas como
operadores marginais dessas ordens, dessa forma, a inventio, a dispositio e a elocutio, para nos restringirmos apenas às operações retóricas referentes ao texto escrito,
continuariam a ser executadas, porém, numa zona limítrofe, na borda entre a ordem e a transgressão.
A inventio é a primeira das operações constituintes de um discurso, se constitui na busca e seleção dos conteúdos sobre os quais deve versar o discurso. Para
esta operação a Retórica subministra um repertório de diferentes lugares comuns e
de tópicos de argumentação, enriquecido sempre pela formação e pelos conhecimentos do orador. A finalidade da inventio é estabelecer os conteúdos do discurso.
Roland Barthes relembra-nos de que a operação inventio ou invenio não significa
invenção ou criação, mas sim descoberta, é uma noção mais “extrativa” do que
“criativa”, com base nessa noção, conclui que “au pouvoir de la parole finale correspond un néant de la parole originelle; l’homme ne peut parler sans être accouchè de sa parole, et pour cet accouchement il y a une technè paticulière, l’inventio.”31
Interessante é observar que Barthes fala de um dar à luz, de um vir a ser da palavra,
da linguagem por meio da técnica extrativa e não criativa que é a inventio. Se refletirmos sobre as declinações, no sentido de captura e abandono dessas noções,
operadas ao longo dos séculos na operação da inventio, alcançaremos a noção
pós-romântica de autor. Inventio, invenio, ingenio, gênio. Dessa forma se torna
impossível não relacionar a leitura da retórica antiga publicada por Roland Barthes
em 1970 com a sua teoria do autor de 1968.
Com a inventio se dá à luz a linguagem que faz nascer o humano, de acordo
com Roland Barthes. Ao completar a declinação da inventio em gênio ele chega à
morte do autor. Barthes afirma que “se pode admirar a “performance” (isto é, o
domínio do código narrativo), mas nunca o ‘gênio’. O autor é uma personagem
moderna, produzida sem dúvida por nossa sociedade na medida em que ao sair da
Idade Média, com o empiricismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da
Reforma, ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz mais nobremente,
da ‘pessoa humana’”32. Barthes constrói o argumento da morte do autor com base
na exaltação daquilo que ele chama escritura que vem a ser uma estratégia de recolocação do leitor na performance do texto. E, exemplarmente, argumenta ope-
João Adolfo Hansen. “Barroco, neo-barroco e outras ruínas”, op. cit. p. 57.
Roland Barthes, “L’ancienne rhetórique”, op. cit. , p. 930.
32
Roland Bathes. “A morte do autor”, em O Rumor da língua, tradução Mario Laranjeira. São
Paulo: Brasiliense, 1988, p. 70.
30
31
Susana Scramim - 1247
rando a ordem de invenção, a dispositio, e a ordem de apresentação (ordo) como
desvio e orientação (contradição e inversão). Inverte, dessa forma, o mito: para que
a escritura, a literatura tenha futuro “o nascimento do leitor deve pagar-se com a
morte do autor”33. Roland Barthes, nesse mesmo texto, comenta a reflexão de Valéry sobre o autor, atribui o envolvimento deste com uma “psicologia do Eu” ao
abrandamento que fez da teoria de Mallarmé. Não por acaso Barthes associará o
gosto de Valéry pelo classicismo e pela retórica ao questionamento e à derrisão da
idéia de autor operada por este. Giorgio Agamben ao refletir sobre a subjetividade,
o sujeito vivente, em Genius, dá à luz, por talvez uma afinidade eletiva com Paul
Valéry cujo eixo de convergência seria o amor à retórica, um questionamento da
presença do autor pós-romântico que será completado em outro texto, “L’autore
come gesto”. Roland Barthes nos diz que “l’homme ne peut parler sans être accouchè de sa parole, et pour cet accouchement il y a une technè paticulière, l’inventio”34.
Por sua vez, Giorgio Agamben apresenta uma teoria do sujeito que compreende a
concepção do homem como implícita da noção de Genius e que isso significa
pensar o homem não somente como Eu e consciência individual, mas que nele
permanece um elemento impessoal e pré-individual desde seu nascimento até a
morte. “Tutto l’impersonale in noi è geniale, geniale è innanzitutto la forza che
spinge il sangue nelle nostre vene e ci fa sprofondaro nel sonno, l’ignota potenza
che nel nostro corpo regola e distribuisce cosí soavemente il tepore e scioglie o
contrae le fibre dei nostri muscoli.”35 Esse comentário marca a diferença entre a
teoria do autor de Roland Barthes e a de Giorgio Agamben, ambas ligadas, pelo
amor à retórica, à operação da inventio como discursividade que garante a não
recaída de uma consideração do autor como propriedade privada garantida pela
ordem econômica. Contudo, para Giorgio Agamben esse elemento impessoal não
é somente a palavra, ou melhor, a linguagem para o filósofo italiano não é somente sistema, somente technè, como é para Roland Barthes, mas antes esse elemento
impessoal de que se compõe o sujeito como Genuis é pré-individual, de algum
modo está dado nas coisas e reside em uma zona incognoscível. A relação do Eu
com o Genuis que resulta na subjetividade que se caracteriza em um modo impróprio de ser do sujeito. “Ma questa zona di non-conoscenza non è una rimozione,
non sposta e disloca un’experienza dalla coscienza all’inconscio, dove essa si sedimenta come un passato inquietante, pronto a riaffiorare in sintomi e nevrosi.
L’intimità con una zona di non-conoscenza è una pratica mistica quotidiana, in cui
Io, in una sorta di speciale, gioioso esotorismo, assiste sorridendo al proprio sfacelo, e che si tratti di digestione o dell’illuminazione della mente, testimonia incredulo del proprio incessante venir meno. Genius è la nostra vita, in quanto ci appartiene.”36 Este Eu que assiste sorrindo a seu próprio esfacelamento e testemunha sua
dissolução decorre de outra reflexão sobre a autoria esboçada na teoria de Giorgio
Agambem sobre o testemunho.
Idem.
Roland Barthes. “L’ancienne rhetórique”, op. cit., p. 930. 35
Giorgio Agamben. Genius. 1. edizione. Roma: nottetempo. 2004, p. 10-11.
36
Idem, p. 11.
33
34
1248 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
Quando faz uma citação de Primo Levi na qual diz que os sobreviventes de
Auschwitz não são os verdadeiros testemunhos já que estes não podem mais falar,
Giorgio Agamben inicia uma reflexão sobre a ausência da autoridade ao falar em
nome de outro que não seja si o mesmo inerente ao discurso. Portanto, se não é
possível testemunhar desde o exterior e igualmente impossível o é desde o interior,
resta uma lacuna na qual se encontra mais uma vez a questão: o que é um autor?
O autor, assim como o testemunho, residiria nesta zona de indiferenciação entre o
dentro e o fora, não como espaço de diálogo ou ponte entre pólos opostos, mas
como lugar de abandono e captura. Giorgio Agamben faz-nos entender que toda
escritura nasce como testemunho, nesse sentido, confirma sua distancia-se em relação à teoria do autor de Roland Barthes. “Y por esto mismo aquello de lo que
testimonia no puede ser ya la lengua, no puede ser ya escritura: puede ser sólo lo
intestimoniado. Éste es el sonido que nos llega de la laguna, la no lengua que se
habla a solas, de la que la lengua responde, en la que nace la lengua. Y es la naturaleza de eso no testimonio, su no lengua, aquello sobre lo que es preciso interrogarse. […] La huella, que la lengua cree transcribir a partir de lo intestimoniado, no
es su palabra. Es la palabra de la lengua, la que nace cuando la lengua no está ya
en sus inicios, baja de punto para – sencillamente – testimoniar: “no era luz, pero
estaba para dar testimonio de la luz.”37 Diante desse argumento, migramos para
outro texto no qual Giorgio Agamben produz mais reflexões frente ao problema da
autoria. Em “L’autore come gesto”, nos defrontamos com um retorno à discussão
sobre as operações retóricas que foram incrementadas com a discussão acerca da
subjetividade gerada pela força impessoal do Genius, ou ainda, sobre a impossibilidade mesma dessa subjetividade aparecer sob forma de um nome próprio como
se constata ao refletir sobre a infâmia do testemunho. No ensaio “L’autore come
gesto” retornamos à história da infâmia e a sua comparação, desenvolvida pelo
pensamento de Michel Foucault, com o princípio da “função-autor”, a qual também não deixa de ser igualmente uma declaração de amor à retórica, para novamente citar Roland Barthes ao referir-se a Paul Valéry e a sua salvação das garras
da psicologia do autor. Agamben refere-se àquilo que Foucault encontrou na infâmia como a zona na qual a ilegibilidade do sujeito aparece por um átimo em todo
seu esplendor; “eppure, come in quelle fotografie da cui ci guarda il volto remoto
e vicinissimo di una sconosciuta, qualcosa in quell’infamia esige il proprio nome,
testimonia di sé al di là di ogni espressione e di ogni memória.”38 O que interessa
ver nessa reflexão são as relações que Agamben tece entre o Genius, este gênero
de subjetividade impessoal, o testemunho, esta linguagem sem memória, o gesto
sem expressão e os meios para que essa “função-autor”, que Giorgio Agamben
chama de lugar-autor, diga-se, um lugar marcado pela sua ausência, venha a ser no
texto. Esse lugar não é senão o testemunho de sua falta, lugar este que o leitor jamais poderá reocupar, nesse sentido, mais uma vez, distinguindo-se da teoria da
37
Giorgio Abamben. Lo que queda de Auschwitz. El archivo y el testigo. Homo Sacer III,
tradução Antonio G. Cuspinera. Valencia: Editorial Pre-Textos, 2002, p. 39-40.
38
Giorgio Agamben. “L’autore come gesto”, em Profanazioni. Roma: nottetempo, 2005, p.
67.
Susana Scramim - 1249
autoria de Roland Barthes que vaticina o futuro da literatura pela ascensão de uma
função-leitor que substitua o autor que estaria já morto; “para que a escritura, a literatura tenha futuro o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do autor”.39
Agamben dirá que o autor não está morto, está é ausente, e tampouco o leitor poderá ocupar seu lugar. Resta senão ao leitor e ao próprio lugar-autor instituirem-se
como fiador do jogo que se joga na zona de inderterminação entre uma presença
e uma ausência, entre o testemunho e a falta da memória. Mais curioso ainda é o
fato de que Giorgio Agamben oferece a um jogo que ele denomina de “um corpo
a corpo com os dispositivos com os quais o texto estava jogando” a chave para que
se possa compreender o que é isso que ele diz ser o lugar-autor. E com o que se
joga neste ato de fazer o texto que é o próprio texto? “coi dispositivi. Poiché anche
la scrittura è un dispositivo”40. E conclui que os dispositivos são antes de tudo produzidos pela linguagem, na qual não há lugar para nenhuma subjetividade essencial, pois que ela inscreve-se a si própria como jogo. Recordemos a salvação do
conceito de autor em Valéry de todo “Eu psicológico” que Roland Barthes atribui
ao seu amor à retórica. Poderíamos dizer o mesmo de Giorgio Agamben? Poderíamos dizer que novamente uma reflexão sobre o autor como elemento do jogo da
escritura foi operado por meio de uma paixão à retórica. O que é um dispositivo?
Quando falávamos nas operações do discurso mais afeitas ao texto escrito na
discussão sobre o exercício da auctoritas em um autor como Dom Francisco Manuel de Melo, analisamos com detalhes a inventio, contudo, pudemos ver que essa
reflexão, fundamentada na leitura de Roland Barthes e Giorgio Agamben, deságua
em outra operação relacionada tanto a inventio quanto a elocutio: a dispositio que
diz respeito tanto à res quanto à verba, ou seja, ao significado e ao significante. A
res se relaciona a duas operações diferentes, uma semântica e outra sintática, a
primeira de conteúdo, extencional, vinculada a inventio, que forma o referente do
texto, a segunda, intencional, própria da dispositio que forma a estrutura profunda
do texto ou a estrutura profunda de significado textual. Dispositio é a palavra latina
que Cícero utilizou para traduzir e adaptar o que Aristóteles dizia no Livro III da
Retórica quando quis descrever a terceira questão relativa à composição do discurso: como devem estar dispostas as partes do discurso?41 Vale dizer que o que está
em jogo na dispositio é uma economia do texto. Nessa operação se deve administrar o modo como se dizem as coisas, pois na inventio já foi definido aquilo que
deve ser dito. Roland Barthes dirá que a dispositio é, antes de ser combinação entre
os elementos discursivos, uma forma de corte. O que torna a comparação com a
teoria do autor de Giorgio Agamben mais instigante pelo desdobramento por ela
gerado, pois que o autor manifesta-se na obra num espaço, numa subjetividade,
marcado pela ausência cujo resultado é o atestar, testemunhar, sua própria presença. “Una soggetività si produce dove il vivente, incontrando il lingaggio e mettendosi in gioco in esso senza riserve, exbisce in un gesto la propria irriducibilità ad
Roland Barthes, “A morte do autor”, op. cit., p. 70.
Giorgio Agamben. “L’autore come gesto”, op. cit., p. 80.
41
Aristóteles. Retórica. Introducción, traducción y notas de Alberto Bernabé. Madrid: Alianza, 1998, p. 237.
39
40
1250 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
esso.”42 Se por um lado a escritura é um dispositivo e o autor é um corpo a corpo
com os dispositivos da escrita, quer dizer, do texto, o autor é então inventio, dispositio, elocutio, memoria e actio, ainda mais uma vez baseados neste silogismo diríamos: o autor é Genius, o autor é Dispositivo, o autor é Voz, o autor é Testemunho,
e o autor é Gesto. É somente com esses dispositivos que a subjetividade encontra
sua linguagem, que a auctoritas encontrara a legitimidade de seu poder.
Questionar se o nome próprio Dom Francisco Manuel de Melo constitui um
autor no sentido pós-romântico do termo autor talvez não faça sentido, é provável
que seja mesmo um anacronismo deliberado, posição essa fortemente defendida por
críticos como João Adolfo Hansen e Alcir Pécora. No entanto, interrogar se Dom
Francisco foi um autor com os pressupostos definidos nos tratados de retórica amplamente utilizados como manuais do bem escrever desde a Idade Média até o século
XVII é de fato uma tarefa que não chegará a nenhum resultado anacrônico. Neste
sentido, caberia afirmar, de acordo com a análise das operações retóricas feitas por
Roland Barthes e Giorgio Agamben nas suas formulações do conceito de autor, que
Dom Francisco é um autor que se aplica aos séculos XVII e XX. E que a retomada da
leitura de sua obra no século XX não significa um retorno à retórica clássica ou às
operações discursivas do século XVII amplamente utilizadas na Península Ibérica.
Ademais vimos que as operações que envolviam a dispositio não eram simplesmente
recursos retóricos, funcionavam como lugares onde era permitido construir uma concepção de subjetividade, lugares esses que nos podem ser úteis para refletirmos sobre
muitas questões candentes tanto nas relações peninsulares de hoje quanto nas relações internas à América Latina, bem como nas relações entre a Península e o continente latino-americano. Sendo assim o que importa perguntar aqui é qual o sentido,
que não o do comentário apenas, que os textos de Dom Francisco têm para o momento de sua releitura no início do século XX e qual seria o sentido que eles teriam
para uma leitura do sentimento de pertença na cultura ibero-americana no século
XXI. Arturo Cancela, responsável pela primeira edição em 1943 de Política Militar na
Argentina, definiu Dom Francisco como “el más insigne ejemplo de la hermandad
literaria de España y Portugal”.43 Além disso, Cancela atribui a este autor a característica de ser mestre nos dois idiomas, daí que podemos estender esta atribuição para a
de que Dom Francisco, ao conhecer e com maestria operar tanto na língua portuguesa quanto na castelhana, pertencia aos dois mundos ibéricos.
O que resulta desta análise sobre a propriedade ou não do nome de Dom
Francisco Manuel de Melo como um autor do século XVII desemboca em outra
pergunta: qual a relação de pertencimento dessa autoridade original de quem fala,
auctoritas, no seio da cultura Ibérica dividida entre um forte renascimento do sentimento de uma existência própria portuguesa, desejosa da reconquista da autonomia em relação à Espanha, e um já muito próprio sentimento castelhano que exerceu com propriedade sua auctoritas até o século XVII. O poder soberano com todas
Giorgio Agamben. “L’autore come gesto”, op. cit., p. 81.
Arturo Cancela. “Nota preliminar”, em Francisco Manuel de Melo, Política Militar en avisos generales, op. cit.
42
43
Susana Scramim - 1251
as implicações dessa soberania no século XVI que já nas suas décadas finais não
mais exerce sua capacidade de decisão descerra um processo de decadência, militar e cultural da idéia mesma de império inaugurada por Carlos V.
Plus ultra, mais além, na América Latina há um outro ponto para o qual esta
conclusão converge e novamente se abre para outra questão: como pensar as relações de pertencimento e propriedade nessa fração ibérica do continente a partir da
reflexão sobre a autoria? O que significa hoje ser um autor brasileiro ou ser um
autor argentino no contexto dessas discussões?

Documentos relacionados