OLIVEIRA, Itelmar de N.

Transcrição

OLIVEIRA, Itelmar de N.
0
UNIVERSIDADE FEDERAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO
CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA E PRESERVAÇÃO
PATRIMONIAL
Itelmar de Negreiros Oliveira
AS REPRESENTAÇÕES DO FALO NOS ANTROPOMORFOS EM
CENAS DE GUERRA DA SUBTRADIÇÃO VÁRZEA GRANDE.
São Raimundo Nonato – PI
2010
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO VALE DO SÃO FRANCISCO
CURSO DE GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA E PRESERVAÇÃO
PATRIMONIAL
Itelmar de Negreiros Oliveira
AS REPRESENTAÇÕES DO FALO NOS ANTROPOMORFOS EM
CENAS DE GUERRA DA SUBTRADIÇÃO VÁRZEA GRANDE.
Trabalho apresentado à Universidade
Federal do Vale do São Francisco –
UNIVASF,
Campus
Serra
da
Capivara, para a obtenção do título de
bacharel
em
Arqueologia
e
Preservação Patrimonial.
Orientador: Guilherme de Souza
Medeiros.
São Raimundo Nonato – PI
2010
2
O48r
Oliveira, Itelmar de Negreiros
As representações do falo nos antropomorfos em cenas de guerra da
subtradição Várzea Grande / Itelmar de Negreiros Oliveira. – São Raimundo
Nonato, PI, 2010.
75 f. : il.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Arqueologia e
Preservação Patrimonial) - Universidade Federal do Vale do São Francisco,
Campus São Raimundo Nonato, PI, 2010.
Orientador: Prof. Msc. Guilherme de Souza Medeiros
Banca examinadora: Profa. Msc. Pávula Maria Sales Nascimento, Profa.
Dra. Selma Passos Cardoso
Bibliografia
1. Pinturas Rupestres – Subtradição Várzea Grande - Piauí. 2. Pinturas
Rupestres – Cenas de Guerras – Serra da Capivara. 3. Pinturas Rupestres –
Representações Fálicas. Título. II. Universidade Federal do Vale do São
Francisco.
CDD 709.0113
Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Integrado de Biblioteca
SIBI/UNIVASF
Bibliotecário: Lucídio Lopes de Alencar
3
4
Dedico a meus dois avôs Neudilton Coelho e Waldemar Ribeiro,
dois “guerreiros” que foram meus exemplos do que é ser bom.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, que sem a fé que tenho Nele eu nada seria. A minha família,
em especial minha Mãe Maristela, minhas irmãs Maraiza e Izamara, que não
mediram esforços pra eu chegar até aqui, e meu sobrinho Davi, motivos de
minha felicidade.
Ao Prof. Guilherme Medeiros pela orientação e incentivo que tornou
possível minha vitória.
A Prof.ª Vivian Karla que me orientou e me abriu os olhos quando eu
queria estudar a monstruosidade do Dr. Hannibal Lecter.
A todo o colegiado que de uma forma ou de outra contribuíram para
minha formação: Prof. Max Furrier, por a confiança em me orientar na bolsa de
pesquisa; a Prof. Janaína que quando fiquei “desorientado” me ajudou no que
pôde na minha pesquisa, o Prof. Mauro pelos papos corriqueiros nos corredores,
a Prof. Beth pela oportunidade que me deu. E todos os outros que me ajudaram:
Daniela Cisneiros, Carlos Fabiano, Pedro Sanches, Elaine Ignácio, Fátima
Barbosa. E ao Coordenador do curso Prof. Dr. Celito Kestering.
A Prof.ª Pávula, minha seguidora no Twitter, pelo convívio, apoio,
compreensão e pela amizade, e a Prof.ª Selma que sempre quando precisei de
ajuda me ajudou de bom grado.
A Dra. Ana Clélia que me ajudou muito no desenvolvimento dessa
pesquisa, Dra. Gisele Felice e Fátima Luz por terem me dado o privilégio de
escavar junto a elas.
A Dra. Niède Guidon, que me ajudou e disponibilizou os materiais
necessários para o desenvolvimento dessa pesquisa, E minha “prima” Érika
Targino, que me ajudou com os dados dos sítios.
Aos funcionários da UNIVASF e FUMDHAM que sempre me ajudaram
durante esses 4 anos, em especial: Paulo Oliveira, Artenice, Angélica e Iva.
A todos os meus colegas de classe, que estranhamente me acolheram
e me fazem acreditar que eu sou uma pessoa legal: Tânia Véa, Fatinha Véa,
Rianne Véa, Drica, Nêga (Annelise), Leidi, Bandida (Camila), Cinthia Davis,
Andréia, Antônio, Bernardo, Isadoida, Jaiomala e Joyce.
6
Aos dois malandros: Rafa e Jack, pela amizade além UNIVASF.
Aos demais colegas que tive o privilégio de conviver entre esses 4 nos e
meio: Shirlene, Adolfo por estar sempre disposto a me ajudar, em tudo que eu
pedia, Marquinhos, Lívia, Thalison, Nívia e tantos outros.
A amiga Tiala, pela amizade incondicional, pelas risadas, as conversas,
as noitadas, e todos os momentos que passamos juntos.
Ao Pierrô que fez meu coração bater durante esses anos em que a
arqueologia me enlouquecia.
Minhas moças: Caroline, minha vizinha, amiga, pessoa tão importante
na minha formação, vou levar pro resto da vida todos os nossos momentos
bons, inclusive dançar o adultério de madrugada na UNIVASF; Sâm, que
sempre esteve disposta a me escutar, e sempre que o fez nunca me criticou, te
amo tanto que saber que iremos nos separar me faz chorar por antecipação e
Cinthia, minha amiga do peito e de peito, sempre esteve presente, até quando
meu mundo tava desabando, companheira das escavações, a todas três pela
compreensão, o afeto, o amor, e todos os sentimentos bons e ruins que
compartilham comigo hoje e pra sempre.
A minha amiga Elen “a menina com olhos caleidoscópios” por quem me
apaixonei em Belém do Pará, toda a sorte do mundo nessa nova fase da vida e
não se esqueça de seus amigos daqui.
Ao meu arco-íris de energia: Graziele, Hellen, Jorge Luís, Igor, André [e
toda a família Moura, família iluminada] por aturarem todos os meus dramas,
meus ciúmes e por fazer parte da minha vida em todos os momentos, amo
vocês.
Ao anjo que Deus colocou em meu caminho, Laécio Lucas. Obrigado
por tudo que me tornei ao seu lado, você mudou a minha vida, e vai mudar a de
muita gente ainda, tenho certeza disso. Sei também, que quando eu for lembrar
de algo bom nessa graduação, você vai estar presente em todas as lembranças,
boas, ruins e inacreditáveis. Então amanhã ou depois a gente se encontra de
novo irmão, se abraça e fala as coisas da vida, pois quando a amizade é
verdadeira não há distância que abale. “Você faz parte dessa história, é dia da
nossa vitória, então chora comigo”.
7
Use-me sempre, sem dó e sem zelo. Visível é o
viso rubro usurpado do sentir. Suga-me, visceral,
sucção, surreal, visão palpitante. Sedução que faz
suspirar. Sereia, digo-lhe, Falo-te: surja-me mesmo
em sonho. Faça-me seguir-te ereto e reto. Sedento
por você. Usufruindo a artista, sonetista. Subjugame. Seciona-me até sublimar em poesia, falo.
Paulo Esdras, Poeta Baiano.
8
RESUMO
OLIVEIRA, Itelmar de Negreiros. A representação do falo, nos antropomorfos
em cena de guerra da Subtradição Várzea Grande. Monografia, 75 f. São
Raimundo Nonato – PI, 2010.
O presente trabalho tem como objetivo analisar os tipos de representação do
falo, presente nos antropomorfos que se apresentam pintados em “cena de
guerra” nos sítios do Parque Nacional Serra da Capivara – PI. A pesquisa
desenvolveu-se a partir da revisão bibliográfica sobre a arte rupestre da região
Nordeste. Escolheram-se para a pesquisa três sítios localizados na região da
Serra Branca, são eles: a Toca do Conflito, a Toca da Extrema II, e a Toca do
Vento. Através da análise das três cenas observaram-se diferenças e
similaridades na representação do falo. Todos os questionamentos levantados
no início da pesquisa foram resolvidos. O trabalho trata a arte rupestre como
artefato, sendo como tal um identificador cultural, e contribui para o estudo da
Subtradição Várzea Grande.
Palavras-chaves: Arte rupestre. Cena de guerra. Serra da Capivara. Serra
Branca.
9
ABSTRACT
OLIVEIRA, Itelmar de Negreiros. A representação do falo, nos antropomorfos
em cena de guerra da Subtradição Várzea Grande. Monografia, 75 f. São
Raimundo Nonato – PI, 2010.
The present work has as objective to analyze the types of representation phallo,
gift in the antropomorphuses that if present spotted in “scene of war” in the sites
of the National Park Serra da Capivara - PI. The research was developed from
the bibliographical revision on the rupestre art of the Northeast region. Three
sites located in the region of the Serra Branca had been chosen for the research,
are they: the Toca do Conflito, the Toca da Extrema II, and the Toca do Vento.
Through the analysis of the three scenes differences had been observed and
similarities in the representation phallo. All the raised questionings of the
research had been at the beginning decided. The work treats the rupestre art as
device, being as such a cultural identification, and contributes for the study of the
Subtradição Várzea Grande.
Key-words: Rock art. Scene of war. Serra da Capivara. Serra Branca.
10
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Localização e limite do Parque Nacional Serra da Capivara – PI........17
Figura 2: Vista geral do sítio Toca do Conflito.....................................................20
Figura 3: Sítio Toca da Toca da Extrema II.........................................................21
Figura 4: Vista do Sítio Toca do Vento................................................................23
Figura 5: Estilo Serra da Capivara, Sítio Toca da Entrada do Pajaú...................32
Figura 6: Complexo Estilístico Serra Talhada......................................................33
Figura 7: Complexo Estilístico Serra Talhada......................................................33
Figura 8: Antropomorfos do Estilo Serra Branca.................................................34
Figura 9: Subtradição Seridó, Sítio Carnaúba dos Dantas – RN.........................35
Figura 10: Subtradição Seridó, Sítio Carnaúba dos Dantas – RN.......................35
Figura 11: Registros emblemáticos da Subtradição Seridó.................................36
Figura 12: Pintura rupestre da Tradição Agreste.................................................36
Figura 13: Tradição Geométrica..........................................................................37
Figura 14: Tradição Geométrica..........................................................................37
Figura 15: Arte Rupestre em Lascaux.................................................................38
Figura 16: Vênus de Willendorf – Áustria.............................................................39
Figura 17: Divindade egípcia da fertilidade Min...................................................40
Figura 18: Deus grego da fertilidade Príapo........................................................40
Figura 19: Esculturas Itifálicas da Cultura Moche................................................41
Figura 20: Esculturas Itifálicas da Cultura Moche................................................41
Figura 21: Representação de Exu na África........................................................42
Figura 22: Koteka adornada................................................................................43
Figura 23: Índios da Indonésia usando o koteka.................................................43
Figura 24: Cena de Guerra – Toca do Conflito....................................................49
Figura 25: Cena de Guerra segregada – Toca do Conflito..................................49
Figura 26: Antropomorfos adornados na cena....................................................50
Figura 27: Antropomorfos simples na cena, apresentando “cabeça de caju”......50
Figura 28: Antropomorfos da “cabeça de caju” da Subtradição Seridó...............50
Figura 29: Antropomorfos feridos na cena...........................................................51
11
Figura 30: Antropomorfos apresentando falo......................................................52
Figura 31: Toca da Extrema II – Cena da Árvore................................................52
Figura 32: Cena de guerra da Toca da Extrema II..............................................53
Figura 33: Cena de guerra segregada da Toca da Extrema II............................54
Figura 34: Guerreiros adornados da Toca da Extrema II....................................54
Figura 35: Guerreiros com diferentes tipos de armas, Toca da Extrema II.........55
Figura 36: Guerreiros com o falo, Toca da Extrema............................................56
Figura 37: Objetos arremessados na cena [em destaque], Toca da Extrema II..56
Figura 38: Cena de Guerra do Sítio Toca do Vento............................................57
Figura 39: Imagem segregada da “cena de guerra” do Sítio Toca do Vento.......58
Figura 40: Antropomorfo do Sítio Toca do Vento................................................59
Figura 41: Guerreiros numerados - Toca do Vento.............................................60
Figura 42: Guerreiros com o falo utilizando o mesmo tipo de arma....................61
Figura 43: Diferentes representações do falo nos três sítios da pesquisa..........64
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................14
CAPITULO I: Caracterização área da Serra Branca:...................................... ...17
1.1. Apresentação da Área de Pesquisa.............................................................17
1.1.1. Geologia e Geomorfologia.........................................................................18
1.2. CARACTERIZAÇÃO DOS SÍTIOS...............................................................19
1.2.1. Sítio Toca do Conflito.................................................................................19
1.2.2. Sítio Toca da Extrema II............................................................................21
1.2.3. Sítio Toca do Vento...................................................................................23
CAPÍTULO II: Aportes Teóricos e Metodológicos................................................25
2.1. Conceito de arte rupestre.............................................................................25
2.2. O Homem e a Arte Rupestre........................................................................27
Tradição Nordeste...............................................................................................29
Subtradição Várzea Grande, PI........................,..................................................31
Estilo Serra da Capivara......................................................................................31
Complexo Estilístico Serra Talhada.....................................................................32
Estilo Serra Branca..............................................................................................34
Subtradição Seridó, RN.......................................................................................34
Tradição Agreste..................................................................................................36
Tradição Geométrica.......................................................................................... 37
13
2.3. Representações do Falo...............................................................................38
2.4. Representações Hitifálicas na Arte Rupestre...............................................44
2.5. Metodologia..................................................................................................45
CAPÍTULO III: Análise do Falo nos Antropomorfos em Cena de Guerra............48
3.1. Toca do Conflito............................................................................................48
3.2. Toca da Extrema II........................................................................................51
3.3. Sítio Toca do Vento......................................................................................57
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................61
Referências Bibliográficas...................................................................................65
ANEXOS
14
INTRODUÇÃO
Foi na década de 70, induzida por algumas fotografias que lhes foram
enviadas pelo prefeito do município de São Raimundo Nonato que a arqueóloga
Niède Guidon entrou em contato pela primeira vez com as pinturas rupestres da
área da Serra da Capivara. Por tratar-se de um lugar novo, no que diz respeito a
pesquisas arqueológicas, os primeiros trabalhos realizados por Guidon e sua
equipe franco-brasileira foi a de identificação de sítios com pinturas e gravuras
rupestres.
Com uma paisagem deslumbrante e a maior concentração de sítios
arqueológicos com pinturas do mundo, não demorou muito para que a
Presidência da República criasse o Parque Nacional Serra da Capivara em
1979. Em 1986, Niède Guidon cria a Fundação Museu do Homem Americano FUMDHAM, uma entidade civil sem fins lucrativos. Em 1991 a UNESCO
reconhece seu valor cultural e o coloca na lista de Patrimônio Cultural da
Humanidade.
O impressionante acervo de grafismos rupestres encontrados no Parque
Nacional Serra da Capivara nos mostra indícios de como as populações préhistóricas da região viviam. Nos paredões areníticos encontramos registros do
dia-a-dia dessas culturas, que, mesmo sem o conhecimento da escrita, nos
deixaram através de seus grafismos rupestres, preciosas informações sobre o
seu modo de vida.
Pela grande quantidade de sítios e da diversificação de pinturas e
gravuras encontradas nessa região, foi realizada uma classificação preliminar,
elaborado pelas arqueólogas Anne Marie Pessis, Niède Guidon e Gabriela
Martin. D ividiu-se os grafismos rupestres em duas tradições, a Tradição
Nordeste e a Tradição Agreste elaborada posteriormente por Alice Aguiar, e
posteriormente Pessis e Guidon segregaram outra tradição, denominada de
Geométrica.
15
A Tradição Nordeste é atualmente a mais estudada, apresenta uma
maior freqüência nos sítios da Serra da Capivara. Através de métodos de
datação relativa foi possível chegar a uma datação de 12 mil anos B.P para essa
tradição.
Caracteriza-se
por
apresentar
figuras
reconhecíveis,
como
antropomorfos (representações humanas), zoomorfos (representações de
animais) e fitomorfos (representações de plantas). Apresentando ainda
elementos que não podem ser identificados, denominados de grafismos puros,
que aparecem em menor quantidade.
Através da análise dos registros gráficos, podemos identificar formas de
representação do falo inseridas em cenas de guerras, e com isso, encontrar um
tipo padrão. Pois, como sabemos cada cultura representa e interpreta a
sexualidade de uma forma diferente.
Essa pesquisa consiste na análise das formas de representação do falo
nos antropomorfos nas cenas de guerra pertencentes à Tradição Nordeste, e
que estão inseridas na área arqueológica da Serra da Capivara. Foram
selecionados para essa pesquisa, três sítios que se encontram na área
conhecida como Serra Branca.
O objetivo geral do projeto consiste em encontrar padrões nas formas de
representação do órgão sexual masculino nos antropomorfos em cenas de
guerra, da Tradição Nordeste. Os sítios escolhidos para essa pesquisa foram os
seguintes: Toca do Conflito, Toca da Extrema II e Toca do Vento.
Objetivos específicos:
• Identificar padrões reconhecíveis na representação do órgão sexual
masculino (análise morfológica do falo);
• Reconhecer diferenças na representação do falo nas distintas cenas
escolhidas;
• Identificar padrões de similaridades e diferenças entre os elementos
dessas cenas nos sítios escolhidos;
Problema:
16
1 – Em que tipo de antropomorfos há a representação do falo, ele
encontra-se relacionado a figuras isoladas ou em grupos?
Hipóteses:
1 – Nos antropomorfos das cenas de guerra, a representação do
falo encontra-se reservada aos indivíduos que se encontram em destaque na
cena, ou seja, em posição de ataque;
2 - A presença da representação do falo é mais comum nos
antropomorfos que se apresentam mais adornados na cena;
3 – Os guerreiros feridos na cena não apresentam o falo.
Para uma melhor apresentação da pesquisa, o trabalho foi dividido da
seguinte forma:
O primeiro capítulo ficou reservado para a apresentação dos Sítios
escolhidos para a pesquisa, apresentando para isso seu contexto ambiental e
cultural, bem como a apresentação da área da Serra Branca.
No segundo capítulo apresentamos os Pressupostos Teóricos e
Metodológicos da pesquisa, salientando alguns trabalhos realizados sobre o
tema da pesquisa. Neste capítulo é apresentado também um breve histórico
sobre as representações do falo, em diferentes culturas.
O terceiro capítulo apresenta a análise da representação do falo nos
sítios de arte rupestre pertencentes à Tradição Nordeste, na área arqueológica
da Serra Branca, e por fim são apresentadas as considerações finais e
resultados obtidos na pesquisa.
17
CAPÍTULO I
Caracterização da área da Serra Branca:
1.1. APRESENTAÇÃO DA ÁREA DE PESQUISA
Fig. 1: Localização e Limite do Parque Nacional Serra da Capivara.
Em 1991 o Parque Nacional Serra da Capivara foi inscrito pela UNESCO
na lista de Patrimônio Mundial, com o objetivo de proteger uma das mais
importantes concentrações de sítios com pinturas pré-históricas até hoje
descobertas, além da preservação da caatinga, que é um conjunto de formações
vegetais característico da zona semi-árida do Nordeste brasileiro. A caatinga é
um dos grandes biomas brasileiros, entretanto ainda pouco conhecido do ponto
de vista florístico e fitogeográfico. No Estado do Piauí, este bioma reveste cerca
de 37% do seu território, apresentando uma única Unidade de Conservação, o
Parque Nacional Serra da Capivara. As características que mais pesaram para a
criação de um parque nacional são as de natureza cultural, ambiental e turística.
18
Localizada no Sudeste do Estado do Piauí e inserida no chamado
"Polígono das Secas", a Área Arqueológica da Serra da Capivara preserva
centenas de sítios arqueológicos e paleontológicos. As pesquisas realizadas no
Parque Nacional Serra da Capivara fornecem uma base de dados que tornará
possível uma melhor compreensão da Pré-história brasileira (Arnaud 1984).
O Parque Nacional Serra da Capivara compreende uma área com densa
concentração de sítios arqueológicos com evidências sobre a antiguidade do
povoamento do homem na América do Sul. Ocupa áreas dos municípios de São
Raimundo Nonato, João Costa, Coronel José Dias e Canto do Buriti. Possui uma
área de 129.953 hectares e seu perímetro é de 214.235,37 m.
O Parque Nacional Serra da Capivara encontra-se dividido em zonas
correspondentes as áreas apresentadas com nomenclatura local, sendo essas
regiões: Serra Talhada, Serra Vermelha, Serra Branca e Serra do Gongo. Para
esta pesquisa selecionei quatro sítios pertencentes à área da Serra Branca
(mapa e localização em anexo).
O Circuito Serra Branca como é localmente conhecido, está localizado a
noroeste do Parque Nacional Serra da Capivara, e como tal, vem sendo
pesquisado desde a década de 70. O Circuito apresenta uma grande
concentração de sítios com registros gráficos, com os mais diferentes temas, e
por isso, já estão sendo consideradas as mais belas pinturas rupestres da Serra
da Capivara.
De acordo com a FUMDHAM atualmente se conhece cerca de 130 sítios
arqueológicos dentro do Circuito da Serra Branca, e 60 deles já estão abertos à
visitação turística, possuindo, para isso, uma estrutura adequada, com
passarelas que permitem que o visitante possa observar as pinturas de perto,
sem que elas sejam danificadas.
GEOLOGIA E GEOMORFOLOGIA
De acordo com Santos (2007), a área pertencente ao Parque Nacional
Serra da Capivara e circunvizinhanças, encontra-se na fronteira de dois
19
domínios geológicos, um sedimentar representado pela Bacia Sedimentar do
Parnaíba e outro cristalino representado pela Faixa de Dobramentos Riacho do
Pontal. A área do Parque apresenta rochas sedimentares do Grupo Serra
Grande do Siluriano e das Formações Pimenteiras e Cabeças do Devoniano. E
o segundo, a Faixa de Dobramentos Riacho do Pontal, situa-se ao sul do
parque. Nela predomina ortognaisses migmatíticos, tonalíticos-trondhjemíticos e
granodioríticos, com enclaves máficos e restos de rochas supracrustais, e
constitui-se de um sistema de dobramentos inseridos na Província de
Borborema (Santos 2007).
De acordo com o mapeamento geomorfológico de Pellerin, realizado no
Parque Nacional Serra da Capivara e circunvizinhanças no ano de 1984, são
reconhecidas três unidades geomorfológicas: os Planaltos areníticos, cuesta e
pedimento.
A Serra da Capivara forma o limite sul da bacia sedimentar do rio
Parnaíba. Apresenta-se como uma chapada com 500 a 600 m de altitude,
interrompida por alguns vales. O planalto é formado por camadas areníticas
quase horizontais sobre as quais se assentam formações de latossolos arenoargiloso vermelho-amarelado. Nos terrenos pré-cambrianos da depressão, a
paisagem é menos acidentada, tratando-se de uma sucessão de pequenos
tabuleiros entalhados no sedimento. Os solos são também latossolos arenoargilosos vermelhos, porém mais férteis que na zona da bacia sedimentar
(Emperaire 1984 apud Lemos 2004).
1.2. CARACTERIZAÇÃO DOS SÍTIOS
1.2.1 Sítio Toca do Conflito
O sítio Toca do Conflito (ver figura 2) é um abrigo sob rocha arenítica,
encontra-se na área da Serra Branca, nas coordenadas UTM L 753315 UTM N
20
9050356 em uma altitude de 424m, topograficamente situado em alta vertente,
orientação SE – NW, abertura SW, possuindo uma área de 20 m².
Descoberto no ano de 2002, pela equipe da FUMDHAM, este sítio possui
suas distinções, como por exemplo, o abrigo encontra-se sem a ocorrência de
formação de solo, o que impossibilita uma escavação na área. Nele não foram
encontrados vestígios em superfície.
Fig. 2: Vista geral do Sítio Toca do Conflito (Acervo FUMDHAM 2009)
De acordo com os arquivos da FUMDHAM, é um tipo de sítio ímpar na
região do Parque Nacional Serra da Capivara, pois, enquanto a maioria dos
sítios são caracterizados por apresentarem grafismos pertencentes à Tradição
Nordeste e Agreste, com subtradições e tipos estilísticos diferentes, e às vezes
associados a gravuras, neste sítio o único vestígio da presença do homem préhistórico é a “cena de guerra” utilizada nessa pesquisa.
A cena é importante, pois serve de base na identificação cenográfica da
guerra em outros sítios, por apresentar características identificáveis nos
elementos representados, como por exemplo: armas de mão e os adornos.
21
1.2.2 Sítio Toca da Extrema II
De acordo com as informações contidas nos documentos da FUMDHAM
sobre o sítio, a Toca da Extrema II ou Toca do Gato trata-se de um abrigo sob
rocha arenítica, que está localizado no município de Brejo do Piauí, dentro dos
limites do Parque Serra da Capivara, nas coordenadas UTM L 752048 UTM N
9047691, a uma altitude de 389 m. Topograficamente inserido em baixa
vertente, na área do Planalto arenítico da Serra Branca com orientação N-S,
abertura W com 18 m de largura, com 8 m comprimento (FUMDHAM, 2009).
Fig. 3: Sítio Toca da Extrema II, presença de blocos caídos com pinturas (Acervo FUMDHAM
2009)
Uma corrente fluvial que passava pelo sítio foi erodindo o sopé da torre
de arenito, formando o abrigo. Este tipo de formação é comumente chamado
pela população local de “pedra solta”. A camada externa da rocha apresenta a
típica erosão do arenito, formando um tipo de relevo conhecido como “carapaça
de tatu”, por se assemelhar ao conjunto de placas que recobrem o corpo desse
animal.
22
O sítio Toca da Extrema II é formado por uma vasta mancha gráfica de
aproximadamente
26m.
Os
grafismos
puros
e
figuras
reconhecíveis
(antropomorfos, zoomorfos e fitomorfos) são pertencentes à Tradição Nordeste e
Agreste. Em alguns blocos de arenito, que se deslocaram da rocha que forma o
abrigo, é possível observar algumas gravuras. As cores predominantes no sítio
são o vermelho, amarelo e preto.
As escavações evidenciaram alguns fragmentos da parede que se
desprenderam do abrigo, e que continham figuras rupestres. Estes painéis foram
consolidados pela equipe de conservação da FUMDHAM. O sítio apresenta
também afloramento de sais minerais e infiltrações de fungos de coloração preta
decorrentes do escorrimento de água.
Em 1997, devido ao desgaste sofrido pelos blocos desprendidos das
rochas com presença de gravuras, a arqueóloga Niède Guidon resgatou esses
blocos juntamente com a equipe da Dra. Conceição Lage e os transportou para
o Museu do Homem Americano, onde se encontram em exposição até hoje.
Com a retirada dos blocos, evidenciou-se a presença de material
arqueológico, como o carvão, o que levou a escavação do sítio no mesmo ano
de 1997 pelas arqueólogas Niède Guidon, Irma Vidal e Gisele Felice. Como as
pinturas rupestres se encontravam próximas ao solo atual, e algumas vezes
estavam parcialmente cobertas por sedimento, foi possível atribuir uma datação
relativa para as pinturas, a partir de restos da tinta (óxido de ferro) no sedimento,
que foi datado em 3350±60 anos BP e outra que data a queda de blocos
gravados e pintados em solo arqueológico datado em 3130±50 anos BP. A
escavação possibilitou revelar uma ocupação pré-histórica de 4730±110 a
1420±50 anos BP (FUMDHAM 2009).
As fogueiras encontradas no abrigo, 15 no total, não apresentam resto
de fauna, ou outros vestígios que comprovem que elas eram utilizadas na
preparação de alimentos.
Os principais vestígios evidenciados na campanha arqueológica foram
material lítico lascado (total de 44 peças), entre eles: raspador, furador, faca,
lesmas, chopper, que possuíam na sua produção três tipos diferentes de
matérias-primas na realização do material lítico: quartzo, quartzito e arenito
silificado e sílex. Além dos materiais líticos, outros artefatos foram encontrados,
23
como: vestígios cerâmicos (13 fragmentos cerâmicos, lisos e decorados) e uma
flauta de madeira (FUMDHAM 2009).
As datações obtidas para esse sítio a partir da mancha de ocre, entre
2.700 e 3.000 anos, coincidem com as datações de outros abrigos da Serra
Branca, como é o caso da Toca do Vento, que também foi utilizada para essa
pesquisa.
1.2.3. Sítio Toca do Vento
O sítio Toca do Vento é um abrigo sob rocha arenítica com pinturas e
gravuras, localizado na Serra Branca, nas coordenadas UTM E 0750291, UTM N
9041810, altitude 419 m, a situação topográfica de alta vertente. O abrigo possui
uma área de 65 m largura e 11,30 de comprimento, abertura SW, orientação SENW. Revestida por uma caatinga arbustiva densa, situa-se na base da encosta
(FUMDHAM 2009).
Fig. 4: Vista geral do Sítio Toca do Vento. (Acervo FUMDHAM 2009).
24
Durante a sondagem e a escavação do abrigo foram encontrados
materiais líticos, sendo a matéria prima da fabricação o quartzo e o quartzito
Foram identificados polidores, percutores, facas e chopper; material cerâmico,
carvão de fogueira e mancha de ocre. A datação do sítio foi realizada a partir do
carvão evidenciado em uma fogueira, datado em 8500±60 anos BP (BETA
200147).
A mancha gráfica do sítio possui 22 metros de comprimento, com mais
de 425 pinturas, com predominância nas cores vermelho e amarelo. Apresenta
pinturas da Tradição Agreste e Nordeste, e alguns grafismos puros. As
representações rupestres nesse sítio, não diferentemente dos outros sítios da
Tradição Nordeste, possuem cenas de caça, sexo, grafismos emblemáticos,
figuras isoladas de zoomorfos e antropomorfos.
A Toca do Vento, assim como os demais sítios escolhidos para a
pesquisa possui a ação de agentes intempéricos, que comprometem a
“longevidade” das pinturas. Ação de fungos e insetos, bem como a de outros
animais, acelera o processo de erosão da rocha. Nesse sítio foram realizados
trabalhos de intervenção, como limpeza do painel gráfico e aplicação de
pingadeiras.
25
CAPÍTULO II:
APORTES TEÓRICOS E METODOLÓGICOS
2.1. Conceito de arte rupestre
A validade ou não do termo 'arte', aplicado aos registros
rupestres pré-históricos, é tema sempre discutido. (...) O pintor
que retratou nas rochas os fatos mais relevantes da sua
existência, tinha, indubitavelmente, um conceito estético do seu
mundo e da sua circunstância. A intenção prática da sua pintura
podia ser diversificada, variando desde a magia ao desejo de
historiar a vida do seu grupo, porém, de qualquer forma, o pintor
certamente desejava que o desenho fosse 'belo' segundo seus
próprios padrões estéticos. Ao realizar sua obra, estava criando
Arte (Martin, 2005: p. 240).
O termo “arte rupestre” possui muita controvérsia dentro do campo da
arqueologia, pesquisadores utilizam-se de diferentes termos para citar as
pinturas rupestres. Para Martin (2005), o problema encontra-se no significado da
palavra arte, que está relacionada com a atividade humana ligada a
manifestações de ordem estética, feita por artistas a partir de percepção e
emoções com a finalidade de estimular algum interesse em um ou mais
espectadores. O que não podemos esquecer é a incrível capacidade dessas
populações que através de recursos técnicos e funcionais gravaram na rocha
seus costumes diários, usando apenas de sua habilidade manual e capacidade
de abstração.
O termo “registro rupestre”, definição que tenta substituir entre
os arqueólogos a consagrada expressão “arte rupestre”,
pretende liberar da conotação puramente estética algo que,
seguramente, é a primeira manifestação artística do homem, ao
menos em grandes áreas geográficas onde a arte móvel em
pedra e osso não aparece anteriormente às gravuras e pinturas
rupestres (Martin, 2005: p. 239).
26
A manifestação artística do homem pré-histórico antecede a sua
capacidade de comunicação por meio da fala, e surge da necessidade de um
diálogo dentro do grupo.
E, portanto deveria ser considerada como uma
idealização que foi transmitida e coletivizada entre os “artistas” pré-históricos.
A principal temática presente nesses tipos de acervo é representada na
maioria das vezes por animais, seres humanos, desenhos geométricos e
imagens representando plantas, as quais são denominadas “fitomorfas” (Martin
2005). Demonstrando assim a habilidade humana de raciocinar, que se encontra
evidenciada pela sua comunicação gráfica.
De acordo com Gaspar (2003) a arte está ligada ao “conhecimento de
regras que permitem realizar uma obra perfeitamente adequada a sua
finalidade”, o que era de total domínio dos nossos artistas paleolíticos. Contudo,
o arqueólogo André Prous discorda do termo arte empregado aos registros
rupestres, e sugere que em seu lugar o termo grafismo.
Entre os anos de 1980 a 1985, Prous fez uma análise para a
arqueologia brasileira, fazendo um levantamento bibliográfico em 275 títulos,
cujas referências se faziam diretas ou indiretamente às pinturas e gravuras
rupestres do Brasil. E através dessa pesquisa constata que o termo “arte
rupestre” encontra-se presente em 47,6% dos títulos analisados. E, portanto,
mesmo discordando do uso do termo, considera que a expressão já é
consagrada pelo uso e não pode ser abandonada. Prous acrescenta que é
interessante observar a diferença entre os termos arte rupestre e arte parietal,
que na maioria das vezes são empregadas como sinônimo.
A "arte parietal" designa grafismos pintados ou gravados usando de
suporte às paredes de grutas ou abrigos sob rocha e inclui representações de
diversos tipos - baixos relevos, gravuras, pinturas (Prous 1985/1986).
A "arte rupestre" diz respeito aos grafismos pintados ou gravados em
superfícies rochosas situadas ao ar livre, qualquer que seja a respectiva
inclinação (Prous 1985/1986).
Por tudo que foi exposto, usarei para minha pesquisa o termo arte
rupestre por mostrar o poder de abstração do homem pré-histórico e da sua
sensibilidade ao transformar seu cotidiano em registros que ultrapassaram sua
“história”.
27
2.2 O Homem e a Arte Rupestre
Giedion (2000) explica que a partir do momento em que o homem
passou a conviver em bandos, ele sentiu a necessidade de entendimento dentro
do grupo. Foi então que criou um meio de se expressar, e a arte rupestre é, sem
dúvida, a primeira manifestação de diálogo, vindo inclusive antes da fala e da
escrita.
Consideradas como meio de comunicação entre os homens préhistóricos, as pinturas rupestres contam a história da humanidade. Para a área
da Serra da Capivara, datam entre 6 e 12 mil anos B.P. e transmitem costumes
e práticas cotidianas, o que permitiu que outros grupos que mantiveram contato
com esses registros, pudessem se utilizar das informações ali contidas.
Apresentando cenas do cotidiano, como: caça, dança, sexo, luta, ritual,
as pinturas rupestres nos mostram que a vida diária dos primeiros ocupantes do
continente americano era muito dinâmica. E por isso podem ser consideradas
fontes de informações, pois indicam que nesse período anterior a escrita, houve
sim uma história, com sociabilização, comunicação, religiosidade, desde o início
da vida humana.
Arqueólogos como Gabriela Martin chamam as pinturas rupestres que
se apresentam com as mesmas características de Tradição. Nesse sentido,
"Tradição seria o conjunto de sítios de arte rupestre que apresentam uma
temática idêntica e que tem uma grande difusão territorial" e Estilo seria a
redução da territorialidade de sítios com características gerais idênticas, mas
com pequenas variáveis que os distinguem. (Guidon, 1980)
O conceito de Tradição compreende a representação visual de
todo universo simbólico primitivo que pode ter sido transmitido
durante milênios sem que, necessariamente, as pinturas de
uma tradição pertençam aos mesmos grupos étnicos, além do
que poderiam estar separados por cronologias muito distantes
(Martim, 2005: p. 234).
A arte rupestre pertencente à área arqueológica da Serra da Capivara foi
classificada em dois grandes grupos para as pinturas identificáveis: a Tradição
28
Nordeste que como já foi dito acima é caracterizada pela riqueza de informações
representada por figuras humanas e animais, compondo cenas cotidianas,
muitas vezes apresentando a impressão de movimento, e a Tradição Agreste,
representada por figuras humanas de grandes proporções, bem como de
animais, com aparência estática. E um grupo de pinturas na qual não podemos
identificar, a Tradição Geométrica ou São Francisco, definidas pelas
arqueólogas Niède Guidon e Anne-Marie Pessis como uma terceira Tradição
para a região. Contudo Martin (2005) considera essa tradição um pouco mais
desconexo, na qual combina traços e figuras geométricas, com pouca ou
nenhuma representação humana ou de animais.
Para Martin (2005) tanto a Tradição Nordeste como a Agreste, envolvem
também figuras geométricas ou sinais que deviam ser símbolos de um código
que se perdeu para sempre no passar dos milênios. Qualquer tentativa de
interpretá-las não teria nenhum valor científico, pois as formas utilizadas pelos
homens podem ser a mesma, mas seu significado varia de uma cultura para
outra.
A cor utilizada pelos homens pré-históricos nas pinturas do Parque
Nacional Serra da Capivara mais antiga (entre 12.000 e 9.000 anos atrás) era
exclusivamente o vermelho, obtido do oxido de ferro. As diferentes tonalidades,
como claro, médio, escuro do vermelho são somente um resultado da
concentração do corante. Essas tonalidades diferentes eram obtidas graças ao
aquecimento do óxido de ferro.
Somente a partir de 9.000 anos atrás os homens começaram a utilizar
outras cores como o amarelo, que é um mineral, a goetita, o branco feito com
gipsita ou kaolinita, e o cinza composto de hematita misturada com kaolinita,
também substâncias minerais. O preto é composto de substâncias orgânicas,
pois era obtida a partir de ossos de animais queimados e triturados.
29
Tradição Nordeste
Desde 1970, os pesquisadores trabalham na identificação dos povos
que habitaram a região do Parque Nacional Serra da Capivara, e que fizeram as
diferentes pinturas que puderam ser classificadas. Para isso foram feitas
escavações, analisados inúmeros artefatos, bem como restos de pinturas
encontradas nas camadas arqueológicas, essas mesmas camadas foram
datadas pelo método do Carbono-14 e, assim, foi possível provar que, desde
pelo menos 12.000 anos atrás, havia grupos humanos que pintavam sua história
nestas paredes.
Foi possível
identificar alguns grupos estilísticos diferentes. A
classificação mais ampla é denominada de Tradição e se caracteriza pelos
temas e figuras representados.
No interior do Parque Nacional Serra da Capivara existem cerca de 912
sítios catalogados, entre os quais, 657 apresentam pinturas rupestres
(FUMDHAM, 2009), cujos paredões rochosos se encontram pinturas feitas pelos
homens pré-históricos. Essas pinturas são um verdadeiro registro gráfico sobre
a história de uma sociedade que não possuía a escrita, mas que através de suas
pinturas, nos deixaram informações preciosas sobre seus mitos, religiões,
cerimônias e vida cotidiana.
De acordo com Pessis (2003), a Tradição Nordeste teve o seu centro de
difusão no Sudeste do Piauí, e disseminou-se por praticamente todo o Nordeste
brasileiro, e assim deu origem a subtradições. O fato de acreditar-se que essa
tradição teve início na área de São Raimundo Nonato, e posteriormente foi
difundida para outras regiões, ocorre pela similaridade encontrada entre as
pinturas da região do Parque Nacional Serra da Capivara com as pinturas
encontradas na região arqueológica de Carnaúba dos Dantas, no Rio Grande do
Norte.
Como foi possível datar algumas pinturas da região do Parque Nacional
Serra da Capivara por associação com outros vestígios, e as mesmas atribuíram
uma datação mais antiga a esta região do que a região do Rio Grande do Norte
entende-se que as pinturas surgiram primeiramente na região de São Raimundo
30
Nonato e posteriormente ocorreu uma diáspora, e uma conseqüente difusão da
pintura por outras regiões (Martim 2005).
De acordo com Martim (2005), as pinturas produzidas nessas regiões
apresentam as mesmas técnicas de produção, e os mesmos detalhes, embora
estejam distantes uma da outra alguns milhares de quilômetros.
A Tradição Nordeste, que existe desde, pelo menos, 12.000 anos B.P e
desaparece da região 6.000 anos mais tarde, é dominante, e caracteriza-se pela
narratividade de suas composições que englobam animais e homens, juntos ou
separados. Os homens, quase sempre, estão desempenhando uma cena:
dança, ritual, caça, luta, sexo, parto e outras cujo significado nos escapa
completamente.
Os animais representados são os da fauna corrente, emas, tatus, onças,
jacarés, capivaras, peixes, seriemas, macacos, entre outros. As figuras, tanto de
animais como de homens, mostram um movimento marcante.
Os povos da Tradição Nordeste ocuparam um vasto território em todo o
Nordeste, chegando até o norte de Goiás. Sua cultura, rica e poderosa, deixou
marcas nas paredes de abrigos em todas essas regiões e, mesmo se aparecem
variações gráficas, a temática é mantida. (FUMDHAM 1998)
Logo após a tradição, existe a classe das subtradições, esse termo é
usado para definir um grupo que foi desvinculado de uma tradição e adaptado a
um meio geográfico e ecológico diferentes, e que levou ao surgimento de
elementos novos, como o caso da Subtradição Seridó e as representações de
pirogas (embarcações primitivas), que não aparece nos registros da Subtradição
Várzea Grande na região de São Raimundo Nonato – PI.
A quantidade de sítios pertencentes à Subtradição Várzea Grande
permitiu que fossem definidas subclasses, relacionados aos procedimentos
técnicos na elaboração das pinturas e que foram chamados de estilos.
Identificamos para essa área três estilos de pinturas: Serra da Capivara, objeto
de estudo dessa pesquisa, Serra Branca e Serra Talhada.
31
Subtradição Várzea Grande, PI
A subtradição Várzea Grande é a mais bem estudada e representada,
pelas arqueólogas N. Guidon e A. M Pessis, que procuram estabelecer uma
linha de evolução, identificando os estilos que delas se originaram, ao longo de
6.000 anos de arte rupestre. Através desses estudos foi dividida em estilos que
se sucedem no tempo: Serra da Capivara, o mais antigo, Complexo estilístico
Serra Talhada e Serra Branca, estilo final na área de São Raimundo Nonato.
Cronologicamente teve uma longa duração, entre 12.000 e 6.000 anos,
possuindo uma ampla dispersão espacial. Essas datações foram estabelecidas
através do método de datação por associação, que consiste na datação
associado a algum vestígio, como por exemplo, o carvão, encontrado num
mesmo nível estratigráfico. A datação desse sítio foi feita através de
concentrações de óxido de ferro, nas camadas arqueológicas. E ajuda a
corroborar a presença do homem no continente americano antes desse período.
Estilo Serra da Capivara
Através de análises estilísticas da subtradição Várzea Grande definiu-se
inicialmente o Estilo Serra da Capivara, que teria se desenvolvido há cerca de
12.000 anos, e desaparecido por volta de 8.000 anos. E que se caracteriza por
apresentar temas de aspectos lúdicos, e de desenvolvendo cenas nas
representações picturais de zoomorfos e antropomorfos.
As pinturas se apresentam de tamanho diminuído, representando figuras
desenvolvendo ações, com temas muito diversificados, como é o caso da “cena
de guerra”. O contorno das pinturas são completamente fechados, desenhados
por traços contínuos e uma boa técnica gráfica. Na maioria das vezes, sobretudo
quando o tamanho o permite, as figuras são pintadas inteiramente com tinta lisa,
o corpo todo preenchido. As representações humanas são pequenas,
geralmente menores que as figuras animais (ver figura 5). Estas últimas são, em
32
geral, colocadas em um local visível e dominam o conjunto das composições; a
cor dominante é o vermelho.
Fig. 5: Estilo Serra da Capivara, Sítio Toca da Entrada do Pajaú.
Os dados atualmente disponíveis permitiram propor uma explicação
segundo a qual esta sucessão de estilos não representa diferentes unidades
estilísticas perfeitamente distintas e segregáveis, mas sim reflete uma evolução
lenta e contínua que, durante cerca de 6.000 anos, surgiram pequenas
modificações no estilo básico Serra da Capivara. O que levou um
desenvolvimento contínuo da subtradição Várzea Grande, sendo definido
posteriormente por Guidon e Pessis como Complexo Estilístico Serra Talhada,
como resultado dessas modificações acumulada, e que por sua vez, com o
aparecimento de novas alterações resultou no estilo final Serra da Capivara.
(Martin 2005)
Complexo Estilístico Serra Talhada
O estilo Serra Talhada é intermediário e vai de 8.000 a 6.000 anos,
Nesse estilo, tanto antropomorfos quanto zoomorfos apresentam-se com os
33
corpos não preenchidos ou parcialmente preenchidos ou ainda são preenchidos
com pontos (ver figura 6).
Fig. 6: Complexo Serra Talhada, Sítio Boqueirão da Pedra Furada: a) pinturas preenchidas por
pontilhamento; b) a capivara maior foi parcialmente preenchida, a capivara menor pertence ao
Estilo Serra da Capivara.
Nesse estilo ocorre a representação de novos temas, como a famosa
cena de tortura (ver figura 7), cenas de violência individual e em grupo, bem
como a representação da caça como atividade social, e as ações sexuais. No
Complexo Serra Talhada são comuns as superposições de figuras sobre
grafismos característicos do estilo Serra da Capivara (Pessis 2003).
Fig. 7: Complexo Serra Talhada, Sítio Toca do Caldeirão dos Rodrigues I, cena da tortura.
34
Há evidência do uso de instrumentos gráficos flexíveis em virtude do
maior domínio do traço curvo, assim como a utilização de outras cores, como o
branco, o preto, o amarelo e o cinza (Pessis, 2003).
Estilo Serra Branca
O estilo Serra Branca é datado em aproximadamente 6000 anos, ou
seja, o estilo final da subtradição Várzea Grande e é caracterizado pelas
pinturas geometrizadas realizadas no interior das figuras. Nelas, o autor passou
a privilegiar as características ornamentais e a policromia nas figuras. As figuras
se apresentam com o corpo decorado com traços geométricos (ver figura 8).
Fig. 8: Antropomorfos do Estilo Serra Branca, Sítio Toca do Morcego.
Subtradição Seridó, RN
A subtradição, localizada no Rio Grande do Norte, fica acerca de
1.200km de São Raimundo Nonato – PI. Essa subtradição apresenta algumas
inovações, dentro da Tradição Nordeste, de acordo com Martin (2005) as
pinturas apresentam elementos próprios de seu “habitat”, como por exemplo, as
pirogas, que são embarcações indígenas, e que se apresentam decoradas com
35
motivos geométricos (ver figura 9). Bem como a representação de fitomorfos que
dão a impressão de paisagem, e antropomorfos que se apresentam com “uma
espécie de “sacolas” primitivas (ver figura 10).
Fig. 9: Subtradição Seridó, Sítio Carnaúba dos Dantas – RN. Embarcações indígenas
Fig. 10: Antropomorfos carregando sacolas, e fitomorfos usados como elementos da paisagem.
Sítio Xique-Xique I - Carnaúba dos Dantas - Seridó – RN. (FUMDHAM 2009).
Nessa
subtradição,
encontramos
os
mais
famosos
marcadores
emblemáticos da Tradição nordeste, como o costa a costa, a cena da árvore, e
outra cena que é composta por dois antropomorfos que se encontram frente a
36
frente, de mãos levantadas, e entre eles, um antropomorfo de tamanho reduzido
(ver figura 11).
Fig. 11: Registros emblemáticos da Subtradição Seridó. Sítio Xique-xique IV - Seridó – RN: a)
costa a costa; b) cena da árvore e c) Pai, mãe e filho.
Tradição Agreste
Essa tradição aparece por volta de 10.000 anos e persiste até cerca de
4000-3.000 anos B.P. Os temas representados são animais e homens, estes
geralmente representados, cobertos por grandes máscaras e com cocares na
cabeça (ver figura 12).
Fig. 12: Pintura rupestre da Tradição Agreste, Sítio Toca da Entrada do Baixão da Vaca.
37
As figuras são representadas paradas, não há movimento, e com
dimensões bem maiores do que na tradição Nordeste.
Não se admite, até agora, o foco de procedência da Tradição Agreste.
Na área do Parque Nacional Serra da Capivara ela se encontra associada a uma
indústria lítica rude, sem nenhum acabamento, que utiliza como matéria prima,
principalmente, o quartzo e o quartzito.
A tradição Agreste é, inicialmente, periférica e suas manifestações são
restringidas entre um período que vai de 10.000 a 3.000 anos BP; com o final da
Tradição Nordeste, ela se torna predominante e passa a ocupar toda a área por
volta de 5.000 anos, desaparecendo por volta de 4.000/3.000 anos BP.
Tradição Geométrica
A tradição Geométrica é marcada por pinturas que representam uma
maioria de grafismos puros (ver figura 13), além de apresentar pinturas de mãos,
pés, figuras humanas e de répteis extremamente simples (ver figura 14). Esses
grafismos, muitas vezes descritos como “abstratos”, apresentam-se inseridos,
em todos os painéis de pinturas rupestres no Nordeste.
Fig. 13 e 14: Tradição geométrica. [13] grafismo puro; [14] representações de répteis
extremamente simples. Sítio Toca do Alto do Capim; Serra das Confusões – Caracol – PI.
Na área do Parque Nacional Serra da Capivara, esta tradição aparece isolada
em um único sítio na planície pré-cambriana, mas aparece também como
38
intrusão gráfica em outros sítios, pois alguns grafismos foram feitos sobre
painéis em abrigos das tradições Nordeste e Agreste.
2.3 Representações do Falo
A figura de um homem deitado ao lado de um bisão (ver figura 15)
encontrado na gruta de Lascaux talvez seja uma das primeiras representações
do pênis no contexto da arte rupestre. Isso demonstra que a preocupação do
homem primitivo em representar o órgão sexual masculino remonta a préhistória. (Pereira 2005).
Fig. 15: Pintura rupestre em Lascaux – França. Fonte: Pereira, 2005.
Para Trevisan (1998) o homem passou a ter essa preocupação com o
falo, no momento em que tomou consciência de sua participação no ato de
conceber a vida, pois durante muito tempo a participação do homem na
procriação era desconhecida por ele. Ou seja, o ato de dar vida a um novo ser
39
era considerado um atributo exclusivamente feminino, pois se acreditava que a
origem da vida começava nas águas, nas pedras, nas árvores ou nas grutas,
antes de serem inseridas por um alento vindo do desconhecido no ventre da
mulher.
Porém, quando o homem passou a domesticar os animais, entendeu
que para produção de uma nova vida é indispensável o sêmen do macho. A
partir desse entendimento, os papéis na fertilidade humana se inverteram e
agora o homem era o grande símbolo da fertilidade. Pois somente agora ele
tinha conhecimento de seu papel indispensável e, além disso, sua força havia
sido rejeitada nesse território por muito tempo.
A partir de então, o homem passa a se auto-afirmar como o fertilizador
da terra. Pois era seu sêmen que disseminava a vida dentro do útero da mulher,
e toda a história das “Deusas da Fertilidade” (ver figura 16) passa agora a ser
consideradas como uma simples gruta protetora. O pênis se tornou, então, um
membro correspondente de veneração e fé religiosa. E o órgão masculino passa
a ser venerado da mesma forma que o órgão feminino tinha sido anteriormente.
(Trevisan, 1998)
Fig. 16: Vênus de Willendorf – Áustria.
40
O autor José Eustáquio Diniz Alves nos oferece o conceito de “phalo”
apresentado por Freud em suas reflexões sobre Orientação Sexual e o
Complexo de Édipo, que seriam as diferentes formas de representações
simbólicas que o órgão masculino (pênis) recebe nas mais diversas culturas,
durante esse período de adoração ao falo.
O fenômeno do culto fálico se espalha então por todo o mundo antigo e
são representados em diversos monumentos de diferentes lugares, e atribuídos
a novos deuses que passam a existir após esse período.
Como por exemplo, no Egito nos tempos de Sesostris I (1900 a.C.), a
divindade Min, que era considerado o protetor das caravanas, além de promover
a fertilidade, e que se apresenta iconograficamente com um enorme falo ereto
(ver figura 17).
Na Grécia encontramos outro exemplo de veneração ao falo, na
divindade Príapo, filho de Dionísio e Afrodite, o deus grego da fertilidade é
representado como um homem idoso vestindo uma túnica em que se sobressaia
do meio de suas coxas, um grande membro sexual em posição ereta (ver figura
18).
Fig. 17: Divindade egípcia da fertilidade Min.
Fig. 18: Deus grego da fertilidade Príapo.
41
Na Civilização Moche, ou cultura Mochica, que floresceu no norte do
Peru entre os anos 100 a. C. e 800 d. C., os artefatos cerâmicos incluem muitas
peças representando cenas do cotidiano, muitas do ato sexual nos quais
tendiam a exagerar as proporções dos membros sexuais (ver figura 19). A
cerâmica foi o meio pelo qual esta civilização melhor se manifestou, e tal era sua
inclusão na vida dos mochicas que dela hoje nos podemos valer para classificar
o progresso e aperfeiçoamento da sua cultura (ver figura 20).
Fig. 19 e 20: Esculturas Itifálicas da Cultura Moche. Fonte: Revista Somos.
No próprio candomblé, conhecido de todos trazido da África para o
Brasil, o Imole Exu, responsável pela procriação na terra, é mostrado como um
grande pênis (ver figura 21). Exu está profundamente ligado à atividade sexual.
Representados por um falo (pênis), ou suas representações simbólicas como: os
penteados de forma fálica, sua arma, o ogó - bastão em forma de pênis -, e sua
lança que traz pequenas cabaças que representam os testículos (VERGER,
1981).
Imole Exu também está representado com objetos à sua boca; dedo,
cachimbo e principalmente flauta, que vem representar a prática sexual, como
42
absorção e expulsão, ingestão e restituição, com a flauta Exu chama seus
descendentes. Portanto símbolo por excelência da fecundidade.
Fig. 21: Representação de Exu na África. Imagem do livro: Orixás de Pierre Verger.
Grupos étnicos da Indonésia e Papua – Nova Guiné, são conhecidos por
seus tradicionais acessórios de proteção à genitália masculina, os koteka (ver
figura 22). Esses estojos penianos são confeccionados com frutos da família das
cucurbitáceas, popularmente conhecidas como cabaças, que após secas e
enceradas, são usadas pelos homens da tribo em ocasiões festivas,
independente de seu status social. E, ao contrário do que muitos acreditam, o
tamanho da koteka não esta relacionada ao status social do portador. (Ucko
1969).
43
O koteka é mantido no pênis por um pequeno laço de fibra que liga sua
base ao redor do escroto do indivíduo portador. Existe ainda um círculo
secundário colocado ao redor do tórax e abdômen anexado ao corpo principal
do koteka.
Fig. 22: Koteka adornada.
Fig. 23: Índios da Indonésia usando o koteka. Fonte:
Marcela Campos.
Algumas tribos indígenas aumentam o tamanho do pênis, a partir de
rituais difundidos dentro do grupo, como é o exemplo dos Karamojong no norte
da Uganda. Esse ritual que aumenta o tamanho do pênis é praticado por todos
os indivíduos da tribo, que tem o tamanho do pênis como algo merecedor de
adoração. Para Trevisan (1998), esse mito da medida masculina é difundido
dentre toda a população atual, e todos partilhamos desse mesmo pensamento,
seja consciente ou inconsciente.
Um dos motivos para essa transferência do culto fálico ir do consciente
popular na antiguidade, para o inconsciente na atualidade, é conferido por
Trevisan (1998) à ascensão do cristianismo, e seu princípio anti-sexual.
Antigamente algumas religiões, como a shivaísta na Índia, tinham uma doutrina
completamente oposta a do cristianismo e acreditava no prazer como a imagem
44
de um grau divino. O próprio falo é o símbolo da sua divindade maior Shiva
Lingan, que afirma: “onde há um sexo erguido, aí estou eu presente”.
2.4. Representações Itifálicas na Arte Rupestre.
O termo “itifáfico” vem do grego “ithýphallos”, e está relacionado as
representações artísticas onde o falo se encontra ereto, e muitas vezes
desproporcional ao seu tamanho, foi adotado para essa pesquisa.
Irma Asón Vidal (1996) acredita na importância das representações
sexuais e eróticas na arte rupestre como identificadores de identidades culturais,
pois cada cultura interpreta a sexualidade de uma forma diferente. E não
somente através das pinturas, pois o sexo encontra-se presente nas mais
diversas formas de representações artísticas.
De acordo com Vidal (1996), a região Nordeste do país é o lugar mais
abundante em representações itifálicas do mundo, estando inserido na Tradição
Nordeste de pintura rupestre.
No estudo da arte rupestre considera-se como rito de iniciação sexual
qualquer tema de conteúdo erótico. Nesse quesito o sexo masculino é melhor
estudado, pois na pintura rupestre o falo encontra-se mais comumente
representado do que a vulva. Na arte rupestre do Paleolítico superior da região
da Europa as representações antropomorfas são pouco naturalistas, as pinturas
híbridas nos sugerem um caráter mais mitológico, ou mágico.
Leroi-Gourhan (1984), afirma que metade dos antropomorfos masculinos
que apresentam o sexo são itifálicos, como observamos em vários abrigos na
área arqueológica da Serra da Capivara, como também na região do Seridó. A
exemplo de uma das cenas característica da Tradição Nordeste, reconhecidas
como emblemáticos, onde uma dúzia de indivíduos se encontram dispostos num
circulo de braços levantados, em reverência a um ramo de árvore que se projeta
acima, todos os indivíduos se apresentam com o falo ereto.
Em outros abrigos, como a Toca da Subida da Serrinha I, onde uma
fileira de antropomorfos de dimensões miniaturizadas ostenta um falo em ereção
45
(anexo C). Na Toca da Entrada do Baixão da Vaca, encontramos uma cena de
cópula, onde uma figura masculina introduz o falo na vagina exposta da figura
feminina apresentada a sua frente (anexo D).
Nas pinturas da Toca do Sítio das Pedrinhas Pintadas, onde vários
antropomorfos foram pintados nos seixos dispostos no paredão do sítio, mesmo
em tamanho reduzidos as figuras apresentam o falo ereto (anexo E e F).
Ou ainda na famosa cena de sexo coletivo, ou a “cena da suruba” como
é melhor conhecida, em que várias figuras humanas são representadas de
maneira a sugerir o ato sexual. Essa cena encontra-se dentro do estilo Serra da
Capivara e a representação do falo foi pintada de maneira proporcional, e não se
compara às representações itifálicas que encontramos nos demais sítios citados
acima (anexo G).
Uma cena também pertencente ao estilo Serra da Capivara encontra-se
no sítio Toca do Caldeirão dos Rodrigues I, e é chamada de a “cena do
cativeiro”, onde estão representadas duas duplas humanas, dispostas num
plano horizontal. As figuras, que supostamente seriam os carrascos, encontramse posicionados num plano levemente afastado, em relação aos outros dois
indivíduos que parecem apoiar-se numa espécie de tronco. Excitados os
carrascos exibem um falo desproporcional ao seu tamanho. Já os indivíduos que
estão sendo “torturados” não apresentam representação de órgãos sexuais
(anexo H).
2.5. Metodologia
Para a obtenção de melhores resultados, foi utilizado para a pesquisa o
método de micro análise de unidades gráficas segregadas, proposto por Pessis
(1984). Com essa metodologia Pessis afirma que poderíamos atribuir
determinados grafismos que apresentem as mesmas características a uma
mesma autoria social. Pois, identificando certas características, a ponto de
encontrarmos
padrões
na
representação
gráfica
de
encontraríamos então as mesmas características culturais.
diferentes
sítios,
46
A metodologia apresentada por Pessis (1993) privilegia três unidades
gráficas: temática, cenografia e técnica. O conjunto dessas três unidades
caracteriza o fenômeno gráfico.
•
Temática: refere-se às escolhas feitas pelos autores pertencentes a
uma sociedade;
•
Cenografia: a forma como se apresentam os grafismos, se juntos
ou segregados. A orientação espacial na mancha gráfica e suas dimensões;
•
Técnica: trata dos aspectos relacionados à execução dos
grafismos;
Por tratar-se de uma cena definida como ação de guerra, optei para a
pesquisa a unidade cenográfica, e através desta identificar padrões na
representação do falo nos antropomorfos envolvidos na cena.
O desenvolvimento da pesquisa deu-se da seguinte maneira:
• Pesquisa imagética de sítios do Parque Nacional Serra da Capivara;
• Pesquisa bibliográfica acerca da Tradição Nordeste, sub-tradição
Várzea Grande e estilo Serra da Capivara;
• Tratamento de imagens com ferramentas de softwares para coleta de
informações e segregação dos elementos representativos;
• Análise das pinturas em cena de guerra que apresentam o falo, e
descrição da análise, bem como a formulação de explicações para a
representação ou não representação do falo nas cenas.
O levantamento fotográfico foi realizado junto à Fundação Museu do
Homem Americano - FUMDHAM, onde encontramos um grande acervo
imagético, com todos os sítios cadastrados no Parque Nacional Serra da
Capivara, os quais vêm sendo estudados desde a década de 1970. Utilizamos
parte da documentação, tal como cadernos de campo, e dispositivos
digitalizados para levantamento parcial sobre os sítios escolhidos para a
pesquisa, juntamente com a pesquisa bibliográfica sobre o tema em questão.
Após
a
pesquisa
fotográfica,
iniciou-se
uma
nova
etapa,
de
reconhecimento da Tradição Nordeste, subtradição Várzea Grande e estilo Serra
da Capivara, onde estão inseridas as cenas de guerra, utilizadas na pesquisa.
Com um melhor conhecimento do estudo da arte rupestre do Nordeste,
47
iniciamos então uma pesquisa, acerca dos trabalhos realizados sobre o tema da
guerra e da representação do falo nessa área.
Através das imagens das pinturas dos sítios do Parque Nacional Serra
da Capivara, associados a nossa pesquisa bibliográfica, foi possível a obtenção
de informações gerais e específicas de interesse para a pesquisa. Com isso foi
possível identificar os sítios que melhor se encaixavam na pesquisa. E com isso
escolhemos os três sítios da Serra Branca que apresentam cenas de guerra.
São eles: A Toca do Conflito, Toca da Extrema II e Toca do Vento; todos os
sítios foram escolhidos por conterem a mesma cena e se encontrarem na
mesma área cultural, a Serra Branca.
Para a pesquisa levamos em conta as informações gerais sobre os
sítios, tais como: posição topográfica, tipo de sítio, rocha suporte, unidade de
relevo e características do ambiente, e unidade geomorfológica. E se ocorreu
intervenção arqueológica ou de conservação. Essas informações foram de suma
importância no desenvolvimento da pesquisa, e encontram-se apresentadas no
capítulo I, juntamente com outras informações importantes dos sítios, como:
tamanho da área abrigada, orientação e a posição da abertura do abrigo, tipo de
material encontrado e a cronologia do sítio.
Por se tratar de uma cena de guerra, onde se apresetam vários
indivíduos envolvidos, bem como objetos e ornamentos, todos os elementos
foram segregados e estudados separadamente, levando em conta as
características morfológicas, técnicas e temáticas. Dessa forma os elementos do
fenômeno gráfico serão estudados separadamente e divididos em classes, e
posteriormente, será realizada a análise dos antropomorfos envolvidos na cena.
Através da análise de todos os antropomorfos presentes na cena,
poderemos introduzir hipóteses para a presença do falo em alguns indivíduos e
a ausência do mesmo em outros. E com isso chegar à corroboração das
hipóteses defendidas nos objetivos iniciais.
48
CAPÍTULO III
Análise do Falo nos Antropomorfos em Cena de Guerra
Os sítios pesquisados para essa pesquisa encontram-se na área da
Serra Branca, e trata-se de abrigos sob rocha arenítica. Usei de alguns critérios
para a escolha dos sítios, tal como presença da temática da guerra, e a
cenográfica, que ajudará na corroboração de algumas hipóteses levantadas no
início da pesquisa, tais como: por que a representação do falo não é observada
em todos os indivíduos envolvidos na cena?
Seguindo esses critérios, selecionei três sítios para a pesquisa, são
eles: a Toca do Conflito, Toca da Extrema II e a Toca do Vento.
3.1. Toca do Conflito
O sítio situado em alta vertente possui em seu painel um único registro
gráfico, trata-se da “cena de guerra” utilizada nessa pesquisa. Não apresenta
formação de solo, o que impossibilita uma escavação no sítio e uma possível
datação para a ocupação do sítio.
Possui uma grande dificuldade de acesso, pois, para chegarmos ao sítio
tivemos que escalar a serra, com o auxílio de corrimãos que foram instalados
para que o acesso ao sítio fosse mais fácil. Após a pequena escalada,
encontramos escadas que foram construídas no local, para isso foi utilizado o
próprio material rochoso do sítio, pois as leis de conservação do Patrimônio
exigem que qualquer modificação no sítio deve ser realizada de maneira que, o
trabalho possa ser desfeito quando necessário.
A dimensão da cena de guerra desse sítio é de aproximadamente 80 x
50 cm, e encontra-se no “teto” do abrigo, acerca de 2,70 m de altura. Os
afloramentos minerais dificultam a visualização da cena, sendo necessária a
utilização de artifícios de algumas ferramentas de edição de imagem.
49
Fig. 24: Cena de Guerra – Toca do Conflito. Foto: Itelmar Negreiros
A imagem foi trabalhada com ferramentas do software Adobe
Photoshop CS o que auxiliou na micro-análise da cena.
Fig. 25: Cena de Guerra – Toca do Conflito
50
A cena contém doze antropomorfos, sendo que nove são simples, e três
adornados (ver figura 26). Nesse sítio apenas um antropomorfo adornado
apresenta o falo. Dentre os antropomorfos simples, apresentam-se figuras que
lembram os antropomorfos da Subtradição Seridó, os chamados “cabeça de
caju” (ver figura 27 e 28).
Fig. 26: Antropomorfos adornados na cena
Fig. 27: Antropomorfos simples na cena, apresentando “cabeça de caju”.
Fig. 28: Antropomorfos da “cabeça de caju” da Subtradição Seridó.
51
Na composição da cena três antropomorfos são atingidos, em áreas que
correspondem à região da nádega, perna e pescoço. O antropomorfo ferido na
região da nádega faz um gesto de defesa, o que foi atingido na perna continua
em posição de ataque, segurando seus armamentos, o que foi atingido no
pescoço encontra-se deitado, talvez morto, por um ferimento mortal (ver figura
29). Nenhum dos três antropomorfos feridos na cena possui falo, e a arma que
os afligem é representada da mesma maneira, com uma espécie de adorno de
penas na sua extremidade. Dos antropomorfos feridos na cena, dois apresentam
adornos de cabeça, sendo estes diferentes do adorno usado pelo antropomorfo
que se apresenta em posição de comando.
Fig. 29: Antropomorfos feridos na cena
As únicas figuras que apresentam um falo em exposição são duas, que
estão representadas de uma maneira que sugere estar comandando o restante
do grupo. Estes dois indivíduos não parecem participar diretamente do confronto
e se encontram na mesma altura dentro da composição cenográfica.
Um dos guerreiros com falo apresenta ainda, um tipo de adorno único
na cena, que lembra ao fitomorfo da “cena da árvore”, registro emblemático do
Estilo Serra da Capivara. O segundo não apresenta adorno, e nem possuiu a
“cabeça de caju”, trata-se de uma representação simples, situado no plano
oposto ao primeiro guerreiro com falo (ver figura 30).
52
Fig. 30: Antropomorfos apresentando falo
Diferente de alguns antropomorfos que são representados com falos
desproporcionais ao seu tamanho, nessa cena o órgão foi representado de
forma harmônica, ao que se refere ao tamanho do antropomorfo. Mesmo em
posição de ataque, o falo encontra-se ereto, sem a curvatura observada em
outras representações de sítio da mesma região, como por exemplo, na Toca da
Extrema II, onde os antropomorfos em composição cenográfica da árvore
apresentam o pênis representado com uma curvatura para cima (ver figura 31).
Fig. 31: Toca da Extrema II – Cena da Árvore, antropomorfos com representação do falo.
53
3.2. Toca da Extrema II
O sítio Toca da Extrema II ou do Gato, é um sítio sob rocha arenítica.
Possuindo 18 m de largura e 08 de comprimento, o sítio apresenta cerca de 470
pinturas dos mais variados estilos e tradições, além de gravuras rupestres. As
pinturas são de maioria vermelha, ocorrendo ainda as cores amarela e preta. A
arte rupestre do sítio é composta pela “cena de guerra” utilizada na pesquisa,
registros emblemáticos, como a cena da árvore e o costa-costa, representações
sexuais, figuras humanas em fila, zoomorfos, além de figuras isoladas.
A dimensão da cena de guerra é de aproximadamente 70 cm de largura
por 60 cm de comprimento, e assim como na Toca do Conflito a cena foi pintada
no “teto” do abrigo a uma altura de 1,90 m. A cena está localizada a noroeste da
mancha gráfica, e é composta por 19 antropomorfos, com o tamanho que varia
de 08 a 10 cm, e encontra-se circundada por uma fileira de antropomorfos, num
tipo de dança, um zoomorfo preenchido por pontilhamento, além de grafismos
puros (ver figura 32).
Fig. 32: Cena de guerra da Toca da Extrema II. Foto: Itelmar Negreiros
54
Fig. 33: Cena de guerra segregada da Toca da Extrema II.
Assim como na Toca do Conflito, na “cena de guerra” desse sítio, a
representação do falo está reservada a poucos indivíduos, apenas três
antropomorfos apresentam o falo, e esses indivíduos se apresentam em lados
opostos, sendo que o antropomorfo de nº 01 encontra-se em cima do
antropomorfo nº 02. Em todos os dezenove antropomorfos envolvidos na cena, a
morfologia da cabeça é a mesma, arredondada, e o adorno presente na cena é
usado por apenas três indivíduos, sendo estes, no mesmo formato e nenhum
dos três guerreiros adornados da cena apresentam o falo (ver figura 34).
Fig. 34: Guerreiros adornados da Toca da Extrema II.
55
Os objetos de mão apresentados na cena são de quatro tipos diferentes
(ver figura 35), somando no total 60 objetos, e os antropomorfos que
apresentam o falo na cena são três, os guerreiros de nº 02 e 03, que possuem
falo, apresentam-se portando o mesmo tipo de arma, e o guerreiro de nº 01
carrega outro tipo de objeto de mão, podendo não ser uma arma, pois não se
consegue identificar. O antropomorfo de nº 02 estende os braços num gesto que
sugere um tipo de comando de ataque ao inimigo, e os de nº 01 e 03 levantam o
objeto que carregam a altura do rosto como se estivessem se protegendo de um
possível ataque.
Fig. 35: Guerreiros com diferentes tipos de armas, Toca da Extrema II.
Os três guerreiros que apresentam o falo encontram-se posicionados
nas extremidades da composição cenográfica. O singular na cena desse sítio é
a representação do falo ter sido elaborada em um indivíduo ferido, o guerreiro nº
03 foi representado ferido por um objeto simples que o atinge na perna, logo
abaixo da pélvis, mesmo assim foi pintado com o falo. Nenhuns dos três
apresentam adorno, eles foram representados de maneira a sugerir que o
guerreiro nº 02, por estar com os braços abertos e levantando suas armas,
estaria em posição de ataque, e o nº 03, que é atingido na perna, parece se
proteger com sua arma, estando em posição de defesa, da mesma forma que o
guerreiro de nº 01 (ver figura 36).
56
Fig. 36: Guerreiros com o falo, Toca da Extrema II.
Dentre as 60 representações de armas na cena, apenas cinco
encontram-se sendo arremessadas, entre essa, uma vai de encontro ao
guerreiro nº 02 que já se apresenta atingido pelo mesmo tipo de objeto (ver
figura 37). O falo, assim como na Toca do Conflito, foi representado de maneira
proporcional ao indivíduo, não sendo uma representação itifálica, o guerreiro nº
02 apresenta o falo um pouco maior que o do guerreiro nº 01 e 02, nos três
casos a impressão que temos é de que o falo esta ereto.
Fig. 37: Objetos arremessados na cena [em destaque], Toca da Extrema II.
57
3.3. Sítio Toca do Vento
O terceiro e último sítio escolhido pra essa pesquisa possui a mancha
gráfica de aproximadamente 22 metros de comprimento, somando quase 430
pinturas da Tradição Nordeste e Agreste, além de apresentar grafismos puros,
as cores predominantes no sítio são vermelho e amarelo.
A composição cenográfica da guerra desse sítio possui 40 cm de
comprimento e 20 cm de altura (ver figura 38), possuindo uma posição central
dentro da mancha gráfica. Alguns grafismos puros de cor preta sobrepõem a
cena, além do sofrer ação intempérica de insetos, como a “maria pobre” que
constrói seus ninhos em cima da arte rupestre do sítio.
Fig. 38: Cena de Guerra do Sítio Toca do Vento. Foto: Itelmar Negreiros.
Como podemos observar na imagem acima, a arte rupestre definida
como “cena de guerra” neste sítio, apresenta características diferentes dos sítios
anteriores. Os antropomorfos não se encontram com os corpos completamente
58
pintados, o que sugere ser uma transição estilística, pois apresentam
características do Estilo Serra da Capivara, que é um conjunto de pinturas
formando uma cena, mas também apresentam características que se
encaixariam no Estilo Serra Talhada, com o corpo parcialmente preenchido (ver
figura 39), neste caso, o corpo dos guerreiros foi preenchido por um traço
vertical, o que lembra o Estilo Serra Branca.
Fig. 39: Imagem segregada da “cena de guerra” do Sítio Toca do Vento.
Este sítio é o mais singular dentre os escolhidos para a pesquisa. Como
podemos observar na imagem de número 39, a cena é composta por apenas
quatro indivíduos que se apresentam praticamente idênticos. Isso poderia
significar que a cena retrata um conflito ocorrido entre os membros de um
mesmo grupo, podendo ser ritualístico, ou mesmo competição para testar
determinadas habilidades dentre os guerreiros de uma mesma tribo.
A cena é representada por quatro indivíduos, pintados de forma
semelhante e que não apresentam dinamismo. A ocorrência de objetos sendo
arremessados, como ocorre nos demais sítios da pesquisa, não se repete nessa
cena. Possui uma dimensão maior, em relação aos sítios Toca do Conflito e da
Extrema II. Os antropomorfos dessa cena têm aproximadamente 15 cm de
altura, e sua coloração é vermelha. Observamos no sítio a presença de vários
antropomorfos que foram pintados com a mesma técnica (ver imagem 40).
59
Fig. 40: Antropomorfo do Sítio Toca do Vento, apresentando características semelhantes aos
antropomorfos em “cena de guerra”.
Os quatro antropomorfos apresentam-se portando um mesmo tipo de
objeto de mão, esses objetos são de dois tipos, o primeiro, de menor dimensão,
foi pintado de diversos tamanhos, entre 06 e 12 cm de comprimento, e foi
representado de maneira a indicar um possível ataque ao oponente. E o
segundo tipo de arma, de maior dimensão parece estar preso a cintura dos
guerreiros, estes foram representados com o tamanho igual ou superior aos
antropomorfos.
O adorno usado nessa cena é o mesmo, os quatro guerreiros
apresentam a cabeça adornada pelo mesmo tipo de enfeite. Quando a imagem
foi segregada observamos que o que parecia ser um objeto preso na cintura dos
guerreiros poderia ser também um armamento inimigo que havia atingido o seu
oponente. Pois, como podemos observar dos quatro guerreiros da cena, três
apresentam um objeto que se sobrepõe ao corpo, dando a impressão de estar
amarrada a sua cintura, e apenas um apresenta-se em primeiro plano
sobrepondo a arma. O que pode sugerir que na cena o único guerreiro
representado de frente é o guerreiro nº 01 (ver figura 41).
Sendo assim o guerreiro nº 01 teria sido representado de frente, e os
três seguintes representados de costas, isso corrobora com a idéia de que os
indivíduos não foram feridos na cena e possui apenas um tipo de arma primitiva
que estava amarrada a sua cintura.
60
Fig. 41: Guerreiros numerados - Toca do Vento.
As particularidades da cena continuam e observamos a representação
do falo em todos os guerreiros. Nesse sítio não podemos introduzir algumas das
hipóteses levantadas no início da pesquisa, pois como os quatro indivíduos
presentes na cena apresentam as mesmas características, adorno, armas,
pinturas do corpo, não podemos sugerir dentro dessa cena, algum tipo de
divisão do grupo.
A representação do falo nesse sítio foi realizada semelhante aos demais
sítios da pesquisa, pois foi reproduzido de maneira proporcional ao tamanho do
antropomorfo. E dessa forma não podemos chamar esse tipo de representação
de itifálica. O falo por estar sendo representado lateralmente, ou seja, ele foi
pintado como se estivesse brotando de um lado da perna do guerreiro, além de
apresentar-se empinado, sugerindo assim um estado de ereção.
61
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por se tratar de um trabalho de micro análise, sobre os tipos de
representação do falo, dentro de uma composição cenográfica definida como
“cena de guerra” é importante salientar os critérios usados na identificação
desse tipo de temática. Como pesquisamos uma cena específica, a
preocupação ficou na observação da composição final, por exemplo: quais tipos
de objetos culturais se apresentam na cena, como as armas e objetos de mão
utilizados pelos guerreiros, o movimento cênico dos antropomorfos guerreiros na
representação, que sugere um ataque ao oponente, um tipo de comando ou
posição de defesa.
Todos esses critérios foram analisados e o que observamos dentro
dessa manifestação gestual dos antropomorfos é que em todos os sítios
pesquisados o principal movimento feito pelos guerreiros na representação da
guerra é o ato de estenderem as mãos pra cima, presente na maioria dos
antropomorfos representados na cena. Esses guerreiros apresentam-se
portando objetos de mão, em algumas representações esses objetos se
assemelham a armas das quais temos conhecimentos, como por exemplo, um
propulsor de dardos, que trata-se de um tipo de armamento indígena no qual
uma base feita de madeira com um tipo de envergamento na ponta que é
utilizado para acoplar uma vareta de madeira de ponta perfurante, que foi
observado nos três sítios pesquisados (ver figura 42).
Fig. 42: Guerreiros representados com o falo utilizando o mesmo tipo de arma.
62
As semelhanças entre os antropomorfos que apresentam o falo nas
“cenas de guerra” analisadas na pesquisa são poucas, pois em cada sítio a cena
foi representada de maneira diferente, principalmente no sítio Toca do Vento, em
que os quatro antropomorfos guerreiros da cena foram representados
praticamente idênticos (ver figura 38).
No sítio Toca do Vento os guerreiros da cena se apresentam adornados
e com falo, portando uma arma que se assemelha a um propulsor. Foram
representados com os braços estendidos, dando a impressão de ataque, com
um tipo de arma agarrada a cintura. O fato de todos os antropomorfos estarem
iguais pode sugerir uma representação de uma batalha interna, de um mesmo
grupo étnico. O falo, assim como nas demais cenas, foi representado ereto e
proporcional ao tamanho do antropomorfo.
Com exceção do sítio Toca do Vento os antropomorfos guerreiros que
apresentam o falo encontram-se de forma isolada e na maioria das vezes não
participam diretamente do conflito, como observamos na Toca do Conflito (ver
figura 25) e Toca da Extrema II (ver figura 32). O que responde ao
questionamento levantado como problema no início da pesquisa, ou seja, que a
representação do falo encontra-se relacionada a figuras isoladas dentro da
composição cenográfica.
Das três hipóteses levantadas no início da pesquisa duas não foram
corroboradas, pois como observamos apenas na Toca do Conflito o guerreiro
mais adornado apresenta o falo, e isso não ocorre no segundo antropomorfo
com falo da cena, e na Toca da Extrema II, nenhum dos três antropomorfos com
falo apresentam-se adornados, e o sítio Toca do Vento todos se apresentam
iguais.
A cena do sítio Toca da Extrema II contraria a terceira hipótese da
pesquisa, que indica que os guerreiros feridos na cena não apresentam o falo, e
o antropomorfo de n° 03 apresenta o falo mesmo tendo sido ferido na perna.
Outro caso semelhante a esse não foi observado em nenhum dos demais sítios.
A hipótese de nº 01 que diz que os antropomorfos representados com o
falo encontrar-se em posição de ataque pode ser aceita, pois como vimos os
antropomorfos que foram pintados com falo estão posicionados em locais
“privilegiados”, pois não entram em contado direto com o conflito, e mostram
63
gestos que remetem a um tipo de comando, de ataque ao inimigo. Mesmo os
guerreiros de nº 01 e 03 da Toca da Extrema II, que se apresentam com gestos
de proteção, estão posicionados nas delimitações da composição cenográfica.
Nos três sítios analisados na pesquisa, observamos uma semelhança
no agenciamento do espaço da cenográfica dentro da mancha gráfica. Na Toca
da Extrema II e na Toca do Vento a cena encontra-se posicionada no centro da
mancha gráfica, sempre em locais difíceis de visualizar. Com exceção da Toca
do Conflito, que é a única pintura do sítio, mas que se apresenta igualmente
posicionado no “teto” do abrigo.
Tratamos nessa pesquisa a “arte rupestre” como um artefato, um
registro do homem pré-histórico acerca do seu cotidiano, e com isso
acreditamos que o “artista” revela uma identidade cultural, própria de cada
grupo. Pois como é sabido, no momento da elaboração da “arte rupestre” o autor
inclui traços que se tornam padrão de reconhecimento de diferentes etnias. E,
como pudemos observar nesses três sítios, as três cenografias de guerra foram
expressas de maneira diferentes, principalmente no sítio Toca do Vento que
adquire um caráter estilístico totalmente diferente dos demais.
Como podemos observar, existem algumas semelhanças entre os sítios
Toca do Conflito e Toca da Extrema II, mas quando analisamos suas micromodificações, identificamos diferentes maneira de representar a cabeça, e até o
próprio antropomorfo, bem como os objetos culturais: os adornos de cabeça e
objetos de mão.
A caracterização desses antropomorfos nos mostra uma significativa
mudança na representação do falo, que pôde ser identificada através de uma
micro-análise, que nos revelou uma morfologia peniana distinta em cada sítio.
Na Toca do Conflito os dois antropomorfos apresentam um falo mais
arredondado na extremidade, na Toca da Extrema II apresentam-se mais
empinados e com a extremidade mais pontiaguda, ou seja, o falo vai afinando
desde a base até a sua parte final, terminando numa representação mais fina do
membro. E na Toca do Vento os quatro antropomorfos apresentam o falo ainda
mais empinados do que no segundo sítio, observamos também que a
representação peniana nesse sítio tem uma pequena curvatura para cima (ver
figura 43).
64
Fig. 43: Diferentes tipos de representação do falo nos três sítios da pesquisa.
A ereção observada em todas as cenas pode sugerir um estado de
euforia, de êxtase, causado pela grande quantidade de adrenalina liberada
durante o conflito, ou ainda, um tipo de imposição frente ao inimigo, já que é
representada em poucos indivíduos na cena.
A micro-análise das representações do falo contribuiu para destacar
algumas informações significantes no modo em que o órgão sexual masculino
surge sendo imaginado e/ou representado de diferentes maneiras em sítios
próximos na área arqueológica da Serra da Capivara. Através dessa pesquisa
poderemos
contribuir
para
um
melhor
características da Subtradição Várzea Grande.
entendimento
das
peculiares
65
Referências Bibliográficas
ALVES, José Eustáquio Diniz. A Linguagem e as representações da
masculinidade - Rio de Janeiro: Escola Nacional de Ciências Estatísticas, 2004.
33p.
ARRUDA, Moacir B. Ecologia e antropismo na área do município de São
Raimundo Nonato e Parque Nacional Serra da Capivara (PI). Tese de
Mestrado. Brasília: Instituto de Ciências Biológicas – Departamento de Ecologia
– UNB – Brasília (DF), 1993.
ARNAUD, M. B.; EMPERAIRE, L.; GUIDON, N.; PELLERIN, J. 1984. L’Aire
archéologique du Sud-Est du Piauí (Brésil). Vol. 1: le milieu et les sites,
Editions Recherche sur les Civilisations, "Synthèse" n° 16, 118 p., 9 fig., 2 tabl., 5
pl., 6 cartes h.t.
BOUGET, Steve, JONES, Kimberly L. The Art and Archaeology in the Moche.
Pdf.
CADERNOS DE PESQUISA, Teresina, UFPI/Pró-Reitoria de Pesquisa de PósGraduação. Coordenação Geral de Pesquisa. 1982.'(II) Abril/1982 (Série
Antropologia, 2).
CAVALCANTI, A. P. B. Aspectos paisagísticos: Parque Nacional Serra da
Capivara - São Raimundo Nonato, Piauí - Brasil. CLIMEP Climatologia e
Estudos da Paisagem, v. 1, p. 78-81, 2007.
EMPERAIRE, L. La caatinga du sud-est du Piauí (Bresil) estude
etnonobotanique. Paris: Université Pierre at Marie Curie, 1989.
FUMDHAM. Parque Nacional Serra da Capivara – Piauí – Brasil. São
Raimundo Nonato: Fundação Museu do Homem Americano, 1998.
66
GASPAR, Maria Dulce. A Arte Rupestre no Brasil. Editora Jorge Zahar, 2003.
GIEDION, Sigfrid. FORMA, Alianza. El presente eterno: Los comienzos Del
arte. 2000. Ed. Cast: Alianza Editorial. Madri
GOMBRICH, Ernst H. A história da arte; São Paulo: LTC. Editora, 2000
GUERRA, A. J. T.; GUERRA, A. T. Novo dicionário geológicogeomorfológico. Rio de Janeiro, 1997. 652p.
GUIDON, Niéde; VIDAL, Irma; SALVIA, Eliane; FELICE, Gizeli; MELO, Patricia;
BUCO, Cristiane. Notas sobre a pré-história do Parque Nacional Serra da
Capivara. In FUMDHAMENTOS, Recife, v. 2, 2002, p.105-142.
___________. Arte pré-histórica da área arqueológica de São Raimundo
Nonato: Síntese de Dez Anos de Pesquisa. Revista CLIO - UFPE, Recife, n. 7,
1985, p. 3-80.
___________. A seqüência cultural da área de São Raimundo Nonato, Piauí.
Revista CLIO - Série arqueológica, UFPE, Recife, n.3, 1986, p.137-143.
___________. Tradições Rupestres da Área Arqueológica de São Raimundo
Nonato, Piauí, Brasil. Revista CLIO- Série Arqueológica, Recife, n. 5, 1989, p.
5-10.
LEMOS, J. R. Composição florística do Parque Nacional Serra da Capivara,
Piauí, Brasil. Rodriguesia, Rio de Janeiro, v. 55, n. 85, p. 55-66, 2004.
___________. Fitossociologia do componente lenhoso de um trecho de
vegetação arbustiva caducifólia espinhosa no Parque Nacional Serra da
Capivara, Piauí, Brasil. Tese de Mestrado. Recife: Pós-Graduação em Biologia
Vegetal – Universidade Federal do Pernambuco – Recife (PE), 1999.
67
LEROI-GOURHAN, André. (1984). Arte y grafismo en la Europa Prehistorica.
Madri, Ediciones ISTMO, 326p.
MARTIN, Gabriela. Pré-História do Nordeste do Brasil. Ed. Recife: Ed.
Universitária da UFPE, 2005.
PEREIRA, Nuno Monteiro. O culto ao pênis. 2005. Disponível no site: Clínica
do Homem e da Mulher. Acesso em: Novembro de 2009.
PESSIS, Anne-Marie. Métodos de interpretação da arte rupestre: Análise
preliminar por níveis. Revista CLIO – Série Arqueológica, Recife, UFPE, n. 6,
1984, p. 99-107.
___________. Imagens da Pré-História. Parque Nacional Serra da Capivara.
I ed., FUMDHAM/PETROBRÁS; São Paulo, SP: A&A Comunicação, 2003.
___________. Pré - História da Região do Parque Nacional Serra da
Capivara. (Pré-História da Terra Brasilis/Org. Maria Cristina Tenório. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2000, p. 61-74.
PESSIS, Anne-Marie; GUIDON, N. (Org.) Lux Vidal. Registros rupestres e
caracterização das etnias préhistóricas. In Grafismo Indígena. Studio Nobel,
FAPESP, EDUSP. São Paulo. 1992, p. 19-33.
Plano de Manejo do Parque Nacional Serra da Capivara. (Org.) Anne-Marie
Pessis. Brasília: 1991, p. 583
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras,
2001
PROUS, A.; RIBEIRO, H. A. D. Arqueologia brasileira: bibliografia geral II.
Arquivos do Museu de História Natural, Belo Horizonte, v. 10, 1985/1986.
68
SOUZA, Luciano. Caracterização das Cenas de Guerra da Sub tradição
Várzea Grande na Área Arqueológica da Serra da Capivara – PI. Trabalho de
Conclusão do Curso (monografia) Arqueologia e Preservação Patrimonial –
UNIVASF. São Raimundo Nonato – PI, 2009.
SANTOS, Janaina C. Reconstrução paleoambiental dos depósitos
sedimentares neogênicos do Parque Nacional Serra da Capivara e
circunvizinhanças, Piauí. Tese de Doutorado. Recife: Centro de Tecnologia e
Geociências – Pós Graduação em Geologia – Universidade Federal do
Pernambuco – Recife (PE), 2006.
TREVISAN, João Silvério. Seis Balas num Buraco Só: A Crise do Masculino,
Ed: Recorde. Rio de Janeiro. 1998. 236p.
Ucko, Peter J. "Penis sheaths: a comparative study." Proceedings of the
Royal Anthropological Institute. Ed: Veblen. 1969.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Ed.Corrupio, São Paulo, 1981.
69
ANEXOS
70
ANEXO – A: Delimitação do Parque Nacional Serra da Capivara com a posição
dos sítios analisados na pesquisa. Um por folha
ANEXO – B: Localização dos sítios pelo software do Google Earth.
ANEXO – C: Arte rupestre do sítio Toca da Subida da Serrinha I.
ANEXO – D: Arte rupestre do sítio Toca do Baixão da Vaca.
ANEXO – E: Arte rupestre do Sítio Toca das Pedrinhas Pintadas.
ANEXO – F: Arte rupestre do Sítio Toca das Pedrinhas Pintadas.
ANEXO – G: Arte rupestre do sítio Toca do Perna IV.
ANEXO – H: Arte rupestre do sítio Toca do Caldeirão dos Rodrigues I.
71
72
73
74
Anexo C: Toca da Subida da Serrinha I. Fileira de figuras humanas de dimensões
miniaturizadas.
Anexo D: Toca do Baixão da Vaca. Cena de cópula com a vagina exposta.
75
Anexo E: Toca das Pedrinhas Pintadas. Antropomorfos pintados nos seixos do paredão rochoso.
Anexo F: Toca das Pedrinhas Pintadas. Antropomorfo pintado nos seixos do paredão rochoso.
76
Anexo G: Toca do Perna IV. Cena de sexo coletivo.
Anexo H: Toca do Caldeirão dos Rodrigues I. Cena de “tortura”.

Documentos relacionados