Óscar NF Mota Engº naval e mecânico A ENGENHARIA DA
Transcrição
Óscar NF Mota Engº naval e mecânico A ENGENHARIA DA
Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico A ENGENHARIA DA MARINHA E A SOCIEDADE CIVIL PERSPECTIVA HISTÓRICA All of it depended on improvements in the art of shipbuilding: caravels, longer and sleeker, rather than broad, cargo-bearing cogs; stern rudders; a mix of square and lateen sails; a marriage of Atlantic and Mediterranean techniques. When Dias returned from the southern tip of Africa, he also brought with him ideas that went into the ships (no longer called caravels) used by Vasco da Gama a decade later. Ten years more saw further modifications. Every trip was an experience, an incentive to emendation. David S. Landes – The Wealth and Poverty of Nations (why some are so rich and some so poor) Sumário Pretende-se apresentar uma perspectiva histórica da relação entre a engenharia da marinha e a sociedade civil, desde a revolução industrial até aos nossos dias. As grandes mudanças na ciência e na construção naval a partir de meados do século XIX, trouxeram grandes problemas para a nossa Marinha, inserida num país atrasado cultural e socialmente. Daí que a Armada tenha tido necessidade de formar técnicos no estrangeiro que pudessem contribuir para minorar as consequências desse atraso. Tal foi conseguido principalmente pela formação de engenheiros construtores navais no estrangeiro, que fizeram escola no Arsenal de Marinha, constituindo um pólo de irradiação de conhecimentos técnicos para outros estaleiros navais e para a sociedade civil em geral, que durou cerca de um século. Essa transmissão de conhecimentos não foi, no entanto, confinada ao Arsenal, tendo irradiado através de instituições como a Inspecção de Construção Naval, a Direcção da Marinha Mercante, gabinetes de projecto de vários estaleiros navais e mais tarde na criação do curso de engenharia naval do I.S.T. Um procedimento semelhante teve lugar com outras formas de engenharia, sobretudo no campo das comunicações e electrónica, tendo os técnicos da Marinha – em larga medida formados nas suas escolas -, constituído durante largos decénios o núcleo técnico de instituições do Estado e de empresas civis da especialidade. 1 - INTRODUÇÃO a) O nosso objectivo Por termos ouvido várias vezes, e a última recentemente, que a nossa actual engenharia civil teve origem na engenharia militar, propusemos que no âmbito deste seminário sobre “A Engenharia na Marinha”, se fizesse uma o Perspectiva histórica da relação entre a engenharia da marinha e a sociedade civil. A ideia foi aceite, mas foi-nos endossada a tarefa. O que não serve de desculpa para as lacunas que sabemos existirem na exposição. Referir-nos-emos, pois, à engenharia naval em sentido lato, desde meados do século XIX até aos nossos dias. Século e meio em números redondos. b) A grande mudança Assim sendo, e para início, pareceu-nos interessante ir buscar um texto da época, um notabilíssimo relatório de um aspirante a engenheiro (construtor) naval, datado de 1867 [1]1, 1 Designaremos entre parêntesis rectos as referências, constantes na Bibliografia. EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Impr. 17-Jun-10 1 Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico “Comparando as construções navais desde quase a sua origem até à nossa época, repetimos, que os progressos foram sempre muito graduais e sucederam-se pouco a pouco com ligeiras modificações, marcando-se a transformação completa da marinha de guerra de 1854 para diante.” “As esquadras dos navios de vela compostas de naus, que representavam o núcleo das forças, e de fragatas, que serviam de exploradores pelas suas condições especiais de ligeireza e de bom andamento, figuraram até aos nossos dias.” Explicitando um pouco mais: o As experiências com máquinas a vapor estendem-se por todo o século XVIII, enquanto os navios de ferro começam a aparecer apenas no seu final. o Depois de alguns decénios de navegação com rodas propulsoras, foi em meados do século XIX que os hélices se impuseram. o Os navios de guerra mistos (com propulsão mecânica e à vela) tiveram uma vida breve, logo após o virar do meio centénio2. É da mesma época a guerra da Crimeia, que desencadeou o aparecimento dos navios couraçados e o imediato e duradouro duelo entre a artilharia e a couraça, que o torpedo veio rapidamente complicar e que só o míssil encerrou, já na segunda metade do século XX. O ritmo da mudança por meados do século XIX é, pois, alucinante. Antecedendo mas interagindo com o progresso prático, sucediam-se os avanços teóricos da construção naval, nos campos da ciência dos materiais, da termodinâmica, da estática e, sobretudo, da dinâmica do navio. Para Portugal, que há muito se afastara da posição dianteira da construção de navios - que já fora sua -, tal significava perder completamente o contacto com as novas tecnologias. Já porque na área militar a fractura científica e técnica era mais directa e grave – pelo menos no curto e no médio prazo -, já porque só o Estado tinha recursos financeiros e humanos para evitar que o atraso se tornasse catastrófico, a solução para conseguira construir navios modernos em Portugal, foi enviar construtores navais da Armada3 ao estrangeiro. O objectivo era aprenderem as novas tecnologias para as aplicarem entre nós – principalmente na Marinha de Guerra, mas também na de Comércio -, pelo menos na medida em que as nossas carências gerais de conhecimentos e meios financeiros o permitissem. Mas, de imediato, era inevitável que fosse principalmente comprando no estrangeiro que a Armada Portuguesa se renovasse [16]. c) A importação de navios Para arrumar o assunto da encomenda de navios no estrangeiro, acrescentamos já que os seus surtos durante o século XX, foram sendo progressivamente menos defensáveis em termos técnicos e industriais: i. O destaque vai para a notável renovação da frota, com navios adquiridos na Grã-Bretanha, no início da década de 30 (o programa fora estabelecido no final da 1ª República), com novos submarinos os navios de turbinas a vapor: avisos e 5 contratorpedeiros (que atingiam 36 nós); 2 contra-torpedeiros adicionais, construídos nos estaleiros da CUF em Lisboa, foram exportados. ii. A série francesa, de 3 submarinos e 4 fragatas na década de 60, é justificada sobretudo por razões de urgência, ligadas ao início da guerra colonial. 2 O mesmo não sucedeu com os navios mercantes. Nos nossos portos, há pouco mais de 50 anos, eram vulgares os iates e palhabotes de cabotagem. Mais recente é ainda o desaparecimento dos belos lugres da pesca do bacalhau. A sua longevidade, no entanto, deveu-se principalmente a atrasos na introdução de novas tecnologias de pesca e de conservação do pescado, o que resultou sobretudo de motivações políticas que se sobrepuseram às forças do mercado. 3 Neste trabalho as expressões Armada Portuguesa, Marinha de Guerra, Armada e Marinha são equivalentes. EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Impr. 17-Jun-10 2 Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico iii. Entre 1969 e 1975 foram encomendadas na Alemanha 6 corvetas e em Espanha 4. Trata-se de um notável projecto do contra – almirante engenheiro construtor naval Rogério de Oliveira. A primeira série era destinada principalmente à guerra colonial, mas a segunda, com navios melhor armados e sofisticados, tinha um campo de acção muito mais vasto. É claro, neste caso, que a Marinha e a indústria nacional não souberam entender-se para a construção destes navios em Portugal, o que estava perfeitamente dentro da nossa capacidade técnica e industrial. iv. As 3 fragatas da classe “Vasco da Gama”, aumentadas ao efectivo em 1991, foram adquiridas na Alemanha; na referência [23] expusemos as nossas objecções quanto às justificações alegadas para esta decisão, considerando que 2 destes navios deveriam ter sido construídos em Portugal. Estão em jogo questões financeiras e de contrapartidas, demasiado complexas para poderem ser aqui tratadas. O acompanhamento destas construções no estrangeiro foi feito, essencialmente, no sentido de garantir a sua operacionalidade e manutenção adequadas. Exceptua-se o programa citado em a), devido à construção de dois contratorpedeiros no estaleiro da CUF, o que foi um estímulo decisivo para dar continuidade às novas construções naquele estaleiro. Já no século XXI, a construção de novos submarinos na Alemanha, está ainda em curso. É tarde para quaisquer providências tendentes à majoração da incorporação nacional, e cedo para conclusões quanto ao regime de contrapartidas. Omitimos as referências às aquisições de navios em segunda mão, por nos parecer que tal sai do nosso âmbito. As construções em Portugal serão referidas no decorrer deste trabalho. d) A complexidade do projecto naval Resolvemos incluir este capítulo por duas razões: o As dificuldades encontradas em Portugal para desenvolver projectos de navios de guerra, não podem ser entendidos se não tivermos uma ideia da complexidade do projecto naval; o A influência dos técnicos da Marinha e do Arsenal foi fundamental e ainda é importante. Na Marinha havia engenheiros de boa qualidade, mas muito poucos. Muitas vezes tinham de apoiar a indústria particular sendo quase impossível, até há pouco tempo, o percurso inverso. Várias construções sofreram atrasos por este facto, não obstante a acção esforçada, até notável, dos técnicos da Inspecção de Construção Naval e do próprio Arsenal. Vejamos um resumo dos conhecimentos necessários, válido para a perspectiva histórica e para navios relativamente simples: (a) Os conhecimentos (i) O domínio tradicional dos engenheiros construtores navais: a Requisitos gerais, modo e local de operação, legislação respeitante ao tipo de navio em causa; b Arquitectura naval (é a ciência fundamental, que faz a ligação com as outras tecnologias) capacidades, deslocamento, plano geométrico e cálculos associados, arranjo geral, qualidades náuticas, compartimentação estanque e estabilidade, limitação de avarias, velocidade e potência propulsora c Engenharia de materiais e estruturas; o Materiais - aço, alumínio, polímeros reforçados com fibras, madeira, tintas o Estruturas - a viga-navio em mar calmo e em mar ondoso, a resistência local (vigas, painéis, membranas) em diversas condições de carregamento e às acções do mar, a interligação Cabendo normalmente aos engenheiros construtores navais a chefia e coordenação dos projectos navais, devem eles possuir conhecimentos de todas estas matérias, algumas detalhadamente, outras EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Impr. 17-Jun-10 3 Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico apenas o suficiente para poder dialogar com os múltiplos especialistas e com as sociedades de classificaçãoI. (ii) Outras engenharias a. Engenharia de máquinas - com concepção das casas de máquinas e auxiliares, sistemas de encanamentos e condutas envolvendo o motor principal (com toda uma panóplia de auxiliares), linhas de veios e hélices, grupos geradores, sistemas hidráulicos, guinchos e molinetes, bombas, compressores, etc. b. Engenharia de armamento - integrando, quando necessário, artilharia, mísseis e meios de luta anti-submarina c. Engenharia electrotécnica e electrónica - corrente trifásica, monofásica e corrente contínua, quadros eléctricos principais e de distribuição, sistemas de força, de iluminação e de controlo, automatismos, sistemas de navegação, de comunicações, etc. d. Engenharia de aprestamento – mastreação e aparelho, movimentação de carga, sistemas de fundear e de amarrar, controlo ambiental, equipamento de salvação e de combate a incêndio, ajudas à navegação, sistemas de hotelaria, etc. Uma actualização desta listagem teria de pôr mais ênfase nas qualidades náuticas, sobrevivência em avaria, ruído e vibrações, automatização, guerra electrónica, sistemas de mísseis. (b) Quantidade de trabalho envolvida Varia muito, como seria de esperar, de navio para navio e mesmo de estaleiro para estaleiro. Classicamente, podemos considerar três ou quatro fases no projecto de navios Projecto básico – Poderá originar uma memória descritiva e um número restrito de desenhos (talvez 4 a 12); da parte estrutural costuma constar, pelo menos, a secção mestra o Projecto de contrato – Conjunto de desenhos e especificações técnicas que são anexadas ao contrato comercial de construção; muitas vezes é utilizado simplesmente o projecto básico, mas no caso de navios de guerra os desenhos costumam ser mais elaborados e as especificações volumosas. o Projecto de classificação – É o conjunto de documentos que se envia para aprovação para a sociedade de classificação escolhida, se for o caso; pode envolver uma centena de desenhos o Projecto de produção – São os milhares de documentos elaborados para construir o navio o Dizendo de outra maneira, para o projecto completo de uma lancha de desembarque serão necessários uns 600 homens x dia e para uma corveta talvez 15 mil. Impõe-se uma chamada de atenção para a enorme importância, mesmo para o projecto, dos fornecedores de matérias e de equipamentos, sobretudo destes últimos. Muitas das suas informações, e até projectos parciais, têm de ser incorporadas no projecto geral. A falta de cuidado com este pormenor tem conduzido a muitos insucessos. (c) Súmula sobre o projecto Tudo somado, podemos considerar a existência de duas classes de meios navais, em relação à nossa capacidade de projecto: o Navios relativamente simples, que podem ser projectados e construídos no nosso país – navios logísticos (de qualquer dimensão para nós interessante), barcaças de desembarque até 50m (transporte e desembarque de fuzileiros), corvetas, patrulhas, lanchas de diversos tipos (acções de vigilância, busca e salvamento, repressão do narcotráfico), o Navios com aptidão essencial para combate e dimensões superiores às corvetas, tais como fragatas, submarinos e navios de projecção de forças (nomeadamente fuzileiros). O projecto destes navios, mas não a sua construção, excedem a nossa capacidade. EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Impr. 17-Jun-10 4 Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico 2 - A TRANSMISSÃO DE CONHECIMENTOS PARA A SOCIEDADE CIVIL Conforme já demos a entender, a necessidade de adquirir, manter e operar navios de guerra na era moderna, impôs a existência de uma multifacetada capacidade tecnológica, que o país em geral não podia proporcionar. Tal obrigou a Marinha a um esforço extraordinário na formação dos seus técnicos, na construção de infra-estruturas e na aquisição de equipamento de manutenção. Uma parte dessa capacidade e competência foi passada para a sociedade civil, através de vários meios: o o o Em termos individuais - sobretudo com os engenheiros construtores navais, maquinistas navais e electrónicos; Nas operações de manutenção dos navios de guerra - pelo apoio dos mesmos técnicos e pelo desafio que era posto aos estaleiros navais, obrigando-os a investir e a progredir tecnologicamente; Nas construções para a Armada - durante as quais as exigências de rigor e as complexidades técnicas dos navios obrigaram os estaleiros a grandes saltos tecnológicos Não vamos estruturar a nossa apresentação exactamente de acordo com esta divisão, porque os diferentes meios se entrelaçam. 2.1 – Os engenheiros e outros técnicos a) Os engenheiros construtores navais i - A formação O quadro dos engenheiros construtores foi criado em 1796, já atendendo à necessidade de acompanhar "as novas Descobertas", conjugando as "maiores luzes Theóricas e Prácticas", citado em [5]. Sucederam-se inócuas reformas, até que em 1864 o curso passou a ser ministrado na Escola Naval, numa altura em que esta foi profundamente reorganizada. Em 1867 encontramos já um aspirante a engenheiro naval em Paris a "frequentar os cursos da escola imperial de engenharia marítima" [1]. Os estágios em estaleiros de outros países passaram a ser frequentes, mas tal não chegava e as reformas do curso continuaram a suceder-se em bom ritmo, tal como as do Arsenal. Finalmente, em 1899, foi decidido que o ingresso na classe de engenheiros navais seria feito por alunos escolhidos por concurso documental, e enviados às escolas de engenharia naval no estrangeiro. Assim foi feito, privilegiando-se primeiro as escolas e estaleiros franceses durante a segunda metade do século XIX, mas depois da reforma, a escola italiana (“Reggia Scuola Navale Superiore di Genova”) com um breve interregno francês (“École du Génie Maritime”, de Paris) até à Segunda Guerra Mundial. Após outro interregno, agora inglês (“Royal Naval College” em Greenwich), voltou-se a Génova em 1950 (“Facoltà di Ingegneria della Università degli Studi”). Seguiu-se um período norte-americano (no “Massachussets Institute of Technology”, em Boston), a partir de 1965 e até meados da década de 70. Tratava-se sempre de escolas do mais alto nível em cada país. Como de costume quando acontecia uma pausa nas construções, a Marinha passou uma década sem abrir concursos para engenheiros construtores navais, acabando por optar, em 1987, por um curso integrado no “University College London” (presentemente com a duração de dois anos), por razões principalmente económicas. A quase totalidade dos engenheiros construtores navais fez excelentes cursos no estrangeiro, e podemos dizer sem rebuço que dignificaram a Marinha e o País. Tal tem muito a ver com três factores: Até talvez 1960, tirar cursos no estrangeiro era uma raridade, quer por razões académicas quer monetárias; acresce que os vencimentos dos oficiais no estrangeiro foram sempre razoáveis, mesmo em períodos de ordenados bastante baixos na metrópole, o que permitia estudar com algum conforto material; EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Impr. 17-Jun-10 5 Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico A escolha era feita por concurso, por vezes entre engenheiros já formados em escolas nacionais ou então entre oficiais de marinha; as regras dos concursos eram simples e sérias, o que permitia escolher candidatos com boas ou muito boas aptidões académicas; O sentido de representar a Marinha e a própria tradição de bons resultados dos engenheiros mais antigos, inculcavam brio e impunham, a quem era seleccionado, um nível de esforço em geral bastante superior ao que anteriormente empregavam nos estudos em Portugal. Que se tratava de uma ideia correcta prova-o o facto de o sistema se ter mantido com poucas alterações durante mais de um século. Podemos assim dizer que, nos últimos cento e cinquenta anos, e como medida essencial para reduzir o atraso tecnológico, os engenheiros construtores navais estagiaram e receberam formação no estrangeiro. Como eram raros ou mesmo únicos em Portugal, não admirará que a sua influência, quer directa quer indirecta, se fizesse sentir muito para lá do Arsenal e da Marinha. Sob a égide do Instituto Superior Técnico (IST) começou a ser leccionado, desde a década de 80, um curso de Engenharia Naval, com forte apoio dos engenheiros construtores navais da Armada. Este apoio ainda se mantém, mas o fluxo de engenheiros do IST para os estaleiros, e até para o Arsenal, tem vindo a prevalecer nos últimos anos. O seu impacto na indústria e serviços, embora já seja considerável, deverá tornar-se preponderante nos próximos anos. ii - A transmissão de conhecimentos As áreas do projecto e de arquitectura naval foram privilégio dos engenheiros construtores navais da Marinha até há poucos decénios e nelas têm, ainda hoje, um papel importante. Como é que se processou a transmissão dos conhecimentos? No antigo Arsenal de Marinha a formação de mestres e de desenhadores era feita não só no próprio trabalho como com a publicação de livros de divulgação e de apontamentos. No Arsenal do Alfeite a tradição foi interrompida, mas só até 1970; a partir daquele ano foi reatada, embora com menor impacte devido a existirem já outros estaleiros tecnicamente avançados (Lisnave e Estaleiros Navais de Viana do Castelo). A aprovação e fiscalização da construção e reparação de navios mercantes esteve na dependência institucional da Marinha de Guerra, nomeadamente de engenheiros construtores navais até 1974. Tal teve uma enorme importância na disseminação de conhecimentos e projecto de navios por todo o país, com relevo para embarcações de pesca. A cultura que prevalecia era a de que a fiscalização tinha de ensinar (e tantas vezes de aprender), muito mais do que impor; mesmo depois de 74 e até à década de 80 a influência referida continuou a fazer-se sentir. Os engenheiros construtores navais tinham e têm tendência para passar à reserva bastante cedo; se tal podia representar um inconveniente para a Marinha, constituía uma vantagem nacional porque a actividade desses oficiais passava para áreas geográficas e empresas tecnicamente mais carenciadas. A execução de um vasto leque de estudos e projectos civis em regime de profissão liberal resultava de solicitações, quer de diversos ministérios quer de companhias armadoras e da sociedade civil. Tal acabava por beneficiar a própria Marinha, pois esta tinha largos períodos de estagnação e a carreira muitas vezes não dava oportunidades de progresso profissional aos engenheiros. A necessidade de resolver problemas novos e mesmo de reciclar velhos conhecimentos aparecia principalmente exercendo a profissão na sociedade civil. Adquirir novos conhecimentos e manter em forma as ferramentas da engenharia evitava o ancilose profissional, podendo a Marinha continuar a contar, sempre que precisava, com bons profissionais. EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Impr. 17-Jun-10 6 Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico Já referimos o contributo fundamental dos engenheiros da Marinha de Guerra para o curso de Engenharia Naval do IST. Finalmente, com relevo para os últimos decénios do século XX, notou-se uma presença significativa dos engenheiros construtores navais na administração de estaleiros navais, com resultados positivos nas áreas técnica e de gestão em geral. b) Os engenheiros maquinistas navais Naturalmente que, nos navios, lhes cabia a operação e manutenção de instalações de máquinas propulsoras e auxiliares, que tinham particular complexidade no tempo do vapor (sobretudo turbinas). Aqui interessa realçar que, para além da parte que lhes cabe nas construções, a sua importância no panorama nacional tem sido primordial nas operações de manutenção, ocupando posições cimeiras em diversas organizações. Deles dependeu também, até à década de 80, a formação dos oficiais maquinistas da marinha Mercante, na Escola Náutica c) Os engenheiros electrotécnicos Agrupamos nesta designação os engenheiros propriamente ditos, os oficiais especializados em electrónica e comunicações, e até os excelentes sargentos artífices (formados na Marinha). A Marinha foi pioneiraII e formou gerações de técnicos de radiocomunicações e electrónica cujo conjunto de conhecimentos teóricos e práticos não tinha rival em Portugal. Durante décadas o seu contributo foi essencial na formação de técnicos – inclusivamente na Escola Náutica -, em instalações e reparações de equipamentos em firmas da especialidade [12], em estaleiros navais, no apoio à manutenção de instalações em navios mercantes e em instalações terra. No capítulo de telecomunicações a marinha foi desde o início pioneira, muito à frente do resto do país. São disso prova as estações radionavais do continente e dos Açores e mesmo a prestação de serviço público comercial, que só terminou em 1933 quando foi inaugurada a Companhia portuguesa Radio Marconi [21]. Cabe aqui recordar também, porque ligada às telecomunicações, o pioneirismo na meteorologia. A obrigatoriedade das observações meteorológicas nos navios de guerra data de 1853! Em 1923 foi criado a Repartição de Serviço Meteorológico e um Observatório Meteorológico na Intendência de Marinha. Mesmo o Serviço Meteorológico Nacional, criado em 1946, contava entre os “fundadores” diversos oficiais de Marinha [23] d) Os desenhadores O Arsenal formava bons profissionais (embora a formação no Alfeite não fosse a que tinha sido no Arsenal de Marinha) e a taxa de demissões era grande, pelos maiores salários na indústria particular. De qualquer modo o país ficava a ganhar. 2.2 – O Arsenal As dificuldades da adaptação da Marinha aos novos tempos, na segunda metade do século XIX, podem ser postas em evidência pela multiplicidade das reformas da organização do Arsenal e do recrutamento, formação, competências e carreira dos engenheiros construtores navais. Reformas que, durante decénios, se sucederam com a periodicidade média de 5 anos. É hoje claro que as deficiências e dificuldades de adaptação estavam muito menos em problemas de organização e de atribuição de responsabilidades na Armada, do que na escassez dos meios financeiros, na fraca capacidade industrial e na falta de uma cultura científica, técnica e industrial suficientemente expandidas em Portugal. EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Impr. 17-Jun-10 7 Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico Assim se poderá apreciar devidamente o valor da influência da Marinha de Guerra na construção naval nacional, o que teve lugar, durante um século, através de dois agentes principais: o Arsenal e os engenheiros. Passemos, então, a ma resenha histórica do Arsenal. o o O Arsenal de Marinha, na Ribeira das Naus (espaço compreendido entre o Terreiro do Paço e o Corpo Santo) teve origem oficial em 1501, com D. Manuel I. Podemos sintetizar a sua evolução recorrendo, em parte, à referência [15]: o Foi arrasado pelo terramoto em 1755, mas 15 dias depois foi ordenada a sua reconstrução pelo Marquês de Pombal o Em 1820 era a maior unidade industrial do país, com cerca de 2000 operários o Desde 1850 que se foram sucedendo as reformas, sinal de que o seu funcionamento não era satisfatório; é fácil perceber agora que o problema estava muito mais com o país (economia pobre, falta de tecnologia, largo analfabetismo) o Mesmo assim, até ao final do século XIX foram construídas algumas dezenas de navios em ferro, com propulsão a vapor o Em 1939 foi transferido para a margem Sul do Tejo, mudando o nome para Arsenal do Alfeite o Talvez mais importante: o Arsenal foi a grande escola de construção naval do País; saíram de lá centenas de operários, mestres e engenheiros, que muito contribuíram para o lançamento da Lisnave, da Setenave e dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo Os avisos de 2ª classe “Pedro Nunes” e “João de Lisboa” foram os últimos navios a ser construídos no Arsenal de Marinha, na Ribeira das Naus. Talvez por serem de projecto nacional adaptavam-se muito bem ao serviço no Ultramar e ambos acabaram como navios hidrográficos. Da 1ª fase de construções do Arsenal do Alfeite, desde a sua criação até ao início da guerra colonial, assinalemos a notável série de 6 petroleiros, aparentemente ao arrepio da sua vocação: desde o “S. Braz” de 7400t de porte, até ao “Gerêz” de 36500t; este foi o maior navio construído em Portugal até chegarmos aos grandes petroleiros da Setenave, já depois de 75. A origem destas construções está no reconhecimento da necessidade estratégica de Portugal possuir navios tanques, da dificuldade da sua aquisição no estrangeiro no período da II Guerra Mundial e da inexistência de instalações adequadas nos estaleiros civis. O “S. Braz”, concluído em 1942, foi o navio de guerra que melhores serviços prestou ao país durante a II Guerra Mundial [16]. São da década de 50 os patrulhas da classe “Maio” (“franceses”, para os distinguir dos patrulhas “americanos” já existentes na Marinha), fornecidos ao abrigo do Mutual Defence Assistance Program4. Foram construídos (entre 1954 e 1958) dois nos ENVC, um nos ENM e dois no Arsenal, que era o estaleiro-guia. Não tinham características para a guerra colonial. Conhecemos bem os intervenientes principais nos ENVC e nos ENM, que consideravam que estas encomendas tinham sido importantes para pôr os estaleiros em contacto com equipamento avançado, obrigado a refinar técnicas de soldadura (pequenas espessuras) e obrigado a melhorar a organização interna e sistemas de planeamento. O Arsenal teve dificuldade em desempenhar a função de estaleiro-guia, menos por razões de ordem técnica do que administrativa. No período da guerra colonial, entre 1961 e 1975, o ritmo da construção de pequenos navios, na maioria projectados no próprio Arsenal (eventualmente com apoios exteriores de engenheiros construtores navais), aumentou bastante: o 4 Os patrulhas da classe “Argos” foram projectados no Arsenal, tendo sido produzidas 10 unidades (entre 1963 e 1965), 6 no próprio Arsenal e 4 nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) Consequência, claro, da entrada na NATO EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Impr. 17-Jun-10 8 Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico o Seguiram-se 15 lanchas de fiscalização (6 de projecto do Arsenal), um navio balizador (projecto Arsenal, com apoio externo), uma doca flutuante (projecto Arsenal), 15 lanchas de desembarque e os notáveis patrulhas da classe “Cacine” (projecto Arsenal com apoio externo); destes foram construídas 10 unidades, das quais 6 no Arsenal e 4 nos Estaleiros Navais do Mondego (ENM) Depois de 1975, relevem-se os patrulhas da nova classe “Argos”. Não podemos concluir sem acenar ao acontecimento singular mais importante nas últimas décadas, na relação entre a Marinha e o Arsenal: a passagem deste a empresa pública. O que tem muito pouco a ver com a tão temida – no meio naval -,“privatização” do Arsenal. É cedo para ajuizarmos da bondade da operação, que para ser bem sucedida terá de estar longe de uma mera e talvez insuficiente mudança de estatuto jurídicoIII. Fazendo a súmula, podemos dizer que desde o início da revolução industrial até quase à II Guerra Mundial, o Arsenal de Marinha e o seu sucessor Arsenal do Alfeite foram a grande escola nacional de construção naval e os introdutores das grandes mudanças tecnológicas. 2.3 - Outros estaleiros navais Olhando para trás e tendo presente o panorama actual, é um tanto surpreendente que todos os pequenos estaleiros de que a seguir falaremos, possuíssem uma certa capacidade de estudos, orçamentação e projectos5, apesar da gritante falta de engenheiros navais. Estes eram sobretudo os da Marinha de Guerra (como já demos a entender) que, na reserva ou mesmo no activo, davam apoio a todos os estaleiros privados citados; talvez se possa dizer que tudo o respeitante a arquitectura naval e uma parte da construção naval, foi por eles divulgado. a) O estaleiro da CUF (depois NAVALIS, depois LISNAVE) Estamos a falar do estaleiro naval da Rocha Conde de Óbidos, concessionado pela Administração Geral do Porto de Lisboa à CUF em 1936. O recrutamento de pessoal foi feito, em larga medida, no Arsenal e foram os engenheiros construtores navais da Armada que chefiaram o seu bom departamento de estudos e projectos, até ao final das construções (década de 60). É notável, em termos industriais, a construção de dois contratorpedeiros ainda na década de 30 (navios com propulsão por turbinas a vapor com 33000 CV e uma velocidade máxima de 36,5 nós) Depois da II Guerra Mundial são dignas de realce para este nosso rabalho: • • A modernização dos contratorpedeiros, ocorrida no final da década de 50 A construção dos 4 draga-minas de madeira da classe “S. Roque” (1954-57) Mas o acontecimento que trouxe uma variação qualitativa na tecnologia de projecto e de construção de navios de guerra em Portugal, foi a construção de duas fragatas da classe “Alm. Pereira da Silva”, ao abrigo do apoio militar norte-americano, entre 1962 e 1967. Tratava-se de uma versão modernizada, em termos de artilharia e de luta anti-submarina, das fragatas americanas da classe”Dealey”: Comprimento fora a fora = 95,90m Deslocamento máximo = 1914t Potência = 20000SHP Velocidade = 27 nós Sob a orientação, apoio e fiscalização dos engenheiros da Inspecção de Construção Naval e de oficiais da Marinha de Guerra americana, o estaleiro da CUF desenvolveu uma muito interessante sala de desenho, reorganizou a produção e o seu controlo, e teve acesso a tecnologias até então desconhecidas. Esteve longe de se tratar de uma mera construção segundo desenhos americanos, pois foram introduzidas numerosas alterações, sobretudo nos sistemas anti-submarinos e no equipamento 5 No caso da Parry & Son, incluia a ligação com os ENVC. EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Impr. 17-Jun-10 9 Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico electrónico. Sendo o navio já “cheio como um ovo”, pode imaginar-se a dificuldade das alterações. Acresce que o procurement de materiais foi feito na Europa, mas com base em standards da marinha americana. Foram, muito de longe, as mais complexas construções de navios de guerra em Portugal. A construção das Dealey foi também muito importante por ter introduzido no estaleiro novas tecnologias, muito mais complexas do que as anteriores. Grandes foram também os ensinamentos colhidos quanto a planeamento e organização das novas construções.IV Foi uma óptima escola, que serviu de preâmbulo à criação da Lisnave na Margueira (Almada), inaugurada em 1968; porém, o que fez a glória deste estaleiro, a nível mundial, não foi a construção mas sim a reparação naval. Chegou a ser o maior estaleiro de reparação naval no mundo e consideramo-lo o único grande êxito internacional da indústria portuguesa em geral. Foi criado com capitais e tecnologia portuguesa (grupo CUF), holandesa e sueca. Note-se que a reparação de navios da dimensão das nossas unidades militares continuou entregue aos estaleiros da Rocha, pertencentes ao mesmo grupoV. Só um aceno à Setenave (Mitrena – Setúbal): criada a partir da Lisnave mas dedicada a construções e reparações. Inaugurada em tempos de crise nacional e internacional (1975), teve uma vida difícil, mas acabou de forma relativamente feliz por ter permitido a “refundação” da Lisnave, que se deslocou para a Mitrena. b) Os Estaleiros Navais de Viana do Castelo Os Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) foram criados logo após a II Guerra Mundial, para suprir a escassez de navios modernos de pesca. No seu lançamento foi fundamental o pessoal oriundo do estaleiro da Rocha e do Arsenal; o recrutamento de pessoal operativo e intermédio de boa qualidade, sempre foi fácil em Viana. Deram boa conta de si na construção dos patrulhas da classe “Maio” (entre 56 e 57), de 4 pequenos patrulhas da classe “Argos” (entre 1962 e 1963) de um navio de reabastecimento (o “São Gabriel” de 9000t de porte, em 1963). Foi grande a sua importância para a evolução tecnológica da empresa, mas ainda mais notável e importante foi a construção de uma 3ª fragata da classe “Alm. Pereira da Silva”, entre 1966 e 1968, que decorreu de forma considerada muito satisfatória. Já relevámos que se tratava de navios muito mais complexos que quaisquer outros que se tenham construído ou estejam a construir em Portugal. Sobre a construção dos patrulhas oceânicos, ainda em curso, não nos pronunciamos por se tratar de matéria delicada e controversa. c) Os Estaleiros Navais do Mondego Tratando-se de um pequeno estaleiro, que já dera boa conta de si na construção de um patrulha da classe “Maio” (1957), é surpreendente o modo como se adaptou e evoluiu de modo a dar um contributo notável para os navios destinados à guerra no Ultramar: 7 lanchas de fiscalização, 6 lanchas de fiscalização grandes e largas dezenas de lanchas de desembarque pequenas e médias. Um dos factores de sucesso foi, em nosso entender, a pequena mas eficaz sala de desenho. d) Os Estaleiros S. Jacinto Nunca se interessaram verdadeiramente pelo mercado militar, pois o seu nicho eram os navios de pescaVI. As únicas lanchas construídas foram as duas da classe “Dom Aleixo”, entregues em 1967. Eram destinadas a Timor, mas concluiu-se ser pouco prático – ou menos urgente - o seu envio, pelo que se quedaram por Cabo Verde. O seu sucesso foi em boa parte devido à pequena sala de desenho, que até 1975 foi sempre dirigida por engenheiros construtores navais da Marinha e) Estaleiros da Argibay EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Impr. 17-Jun-10 10 Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico Mencionaremos apenas uma lancha de fiscalização e um navio para os Serviços Marítimos da Guiné: o ferry “Bor”, com propulsão Voith Schneider. Mais uma vez, a sala de desenho teve à frente engenheiros construtores navais. f) Estaleiros do Ultramar Merecem uma referência os estaleiros do Ultramar: o Em Moçambique, apesar de diferentes tentativas, o meio eficaz para carenagem era a doca seca da Capitania do porto de Lourenço Marques, com o comprimento aproximado de 80 metros. o De Angola destaquemos em primeiro lugar a doca flutuante de Luanda, construída na Holanda em finais do século XIX, e montada sob a direcção de um engenheiro construtor naval da Marinha. No final do período colonial a indústria naval concentrava-se essencialmente em Luanda e no Lobito, mas só neste porto, no estaleiro da Sorefame, era possível construir embarcações metálicas. o As Oficinas Navais de Macau ultrapassaram os 100 anos de actividade contínua, embora com grandes altos e baixos, nomeadamente durante a II Guerra Mundial, quando os equipamentos foram cedidos aos ocupantes japoneses a troco de arroz. Destacamos, no entanto, a interessante actividade de construção, resultante talvez de três factores principais: Compatibilidade entre as limitadas instalações e as dimensões das embarcações requeridas, que eram sobretudo lanchas de fiscalização para o rio das Pérolas; Continuidade da presença à frente das oficinas de distintos engenheiros maquinistas navais; Uma certa e tradicional autonomia macaense em relação à burocracia da metrópole. o No Estado da Índia, longe iam as carenagens das naus na ilha de Angediva, e as grandes construções terminaram em beleza com a fragata “D. Fernando II e Glória”, em 1843, com projecto e chefia de engenheiros construtores navais. O único estaleiro de aço entrou em funcionamento em Mormugão já na segunda metade da década de 50, sob a direcção também de um engenheiro construtor naval da Marinha. Após a ocupação em 1961, o estaleiro foi recuperado e ampliado pela União Indiana. g) Indústrias auxiliares Embora esteja mais na moda chamar-lhes indústrias fornecedoras (talvez por influência da nomenclatura das normas de qualidade ISO 9000), num aspecto a designação tradicional é mais eficaz: chama a atenção para o papel importantíssimo dos fornecedores de equipamentos no desenvolvimento do projecto e na própria construção. E aqui residia e reside a principal lacuna da indústria naval nacional, quer em termos técnicos quer de valor acrescentado. Na prática, apenas se podiam adquirir em Portugal cabos eléctricos de aplicação geral, cabos de fibra vegetal ou sintética, tintas, certas peças de bronze (incluindo hélices de pequena dimensão) e de aço vazado, algumas válvulas, alguns motores eléctricos e pouco mais. Recordamos, estando no Arsenal do Alfeite, que de pouco servia a directiva ministerial para fazermos as aquisições em Portugal desde que o seu preço não fosse superior em mais de 15% aos materiais congéneres estrangeiros. Casos houve, em que tivemos que ajudar os fabricantes para termos propostas satisfatórias; fazíamo-lo com prazer, embora os resultados não tenham sido sempre os melhoresVII. A importância e gravidade desta situação compreender-se-ão melhor se atendermos a que os materiais e equipamentos constituem 60 a 70% (ou mais) do custo de um navio de guerra! E no entanto, há alguma razão para optimismo, não nas indústrias tradicionais mas na electrónica, com forte influência dos engenheiros e outros técnicos da Armada: o A EID, que partindo de um contrato celebrado com a Marinha de Guerra em 1980, teve um extraordinário desenvolvimento na década de 90, sempre na dificílima área das comunicações, com renovados contratos para os seus produtos, com as marinhas espanhola, holandesa, inglesa e brasileira. EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Impr. 17-Jun-10 11 Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico o A EDISOFT, nascida também de um contrato com a Marinha de Guerra na década de 80. Entre as suas realizações destacam-se: • O sistema integrador de informação, a aplicar nos patrulhas oceânicos, na área de automação da plataforma, que será uma parceria com a EID e a Vosper Thornycroft,; • O sistema de informação logística Hi-Log; • O trabalho para a NASA, uma das principais actividades da empresa 3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS a) A Marinha de Guerra teve um papel preponderante na construção naval portuguesa durante um século, tendo transmitido conhecimentos e tecnologias à sociedade civil, quer por intermédio dos seus engenheiros quer pelos desafios das construções e modernizações de navios militares. A Guerra Colonial provocou um acréscimo de actividade da indústria naval de algum modo surpreendente, embora se tenham perdido oportunidades importantes de aumento de tecnologia e produtividade. b) O Estado não deverá prescindir de utilizar as possibilidades que a UE lhe faculta (como seja a livre adjudicação das construções militares), nem poderá deixar de seguir o exemplo de países de maior capacidade industrial, que utilizam uma sofisticada rede de auxílios (estatais, regionais, municipais), para benefício, sobretudo, dos pequenos estaleiros. O valor acrescentado nacional num navio de guerra construído em Portugal é talvez da ordem dos 35%; mas temos de acrescentar ganhos intangíveis de aumentos de tecnologia e de produtividade. E note-se que as contrapartidas têm estado muito longe de dar os resultados esperados e continuarão a estar enquanto este assunto não for tratado com o necessário profissionalismo e vontade política. c) As indústrias associadas à indústria naval nunca tiveram em Portugal peso significativo. Ainda hoje assim sucede, em termos económicos globais. No entanto, embora não tenha havido progressos nas indústrias tradicionais, temos já êxitos relevantes em empresas com componente tecnológica muito forte, com um papel fundamental desempenhado por técnicos e encomendas da Marinha; d) A prática tem demonstrado que só é possível o sucesso nas construções militares quando existe um forte sentido de cooperação entre os técnicos civis e os militares. Os primeiros têm de interiorizar que as construções militares têm requisitos, quiçá excessivos em certas áreas, mas que resultam da sua formaçãoVIII; e que estão a ter uma oportunidade de aprender. Os segundos devem ter a preocupação, a generosidade e a confiança em si mesmos para ensinarem o que sabem, e que tantas vezes é muito específico das construções militares. Ambos devem possuir a humildade técnica de aprender com os outros. Óscar Mota 8 de Março de 2010 EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Impr. 17-Jun-10 12 Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico BIBLIOGRAFIA Abrev. - ACMN = Anais do Clube Militar Naval Nº 1 Ano 1868 2 1888 3 1900 4 1930 5 1958 6 1962 7 1966 8 1970 9 1970 10 1970 11 1970 12 13 1983 1984 14 1998 15 16 1998 1999 17 2001 Título Estudos feitos na Exposição Internacional de Paris em 1867 sobre Os Progressos das Construções Navaes e das Machinas dos Navios Ministerio dos Negocios da Marinha e Ultramar - Catalogo official dos objectos enviados à Exposição Industrial Portugueza em 1888, precedido de uma Memória acerca das Construções e Armamentos Navaes e dos Estabelecimentos de Ensino que lhes dizem respeito ACMN - Informações diversas – A engenharia naval portuguesa e as construções para a marinha de guerra Estaleiros e Arsenais de Construção Naval - Com um prefácio do comandante Abel Fontoura da Costa A Construção Naval em Angola – V Congresso Nacional de Pesca, a realizar em Julho de 1958 na Cidade de Luanda Sociedade de Estudos da Província de Moçambique – Sistemas de Querenagem de Embarcações – O Problema em Moçambique ACMN (Nº especial comemorativo do 1º cente19nário) – A classe dos engenheiros construtores navais nos últimos 100 anos ACMN – Para uma melhor compreensão do Arsenal do Alfeite ACMN (Nº especial do 1º centenário) – Os últimos 100 anos de construção naval ACMN – Para uma melhor compreensão do Arsenal do Alfeite ACMN (Nº especial do 1º centenário) – Os últimos 100 anos de construção naval ACMN – O Arsenal de Marinha Oficinas Navais de Macau – Cem anos de Construção e Reparação Naval Guerra Colonial (Diário de Notícias) Lanchas e Navios Arsenal do Alfeite História da Marinha Portuguesa (Academia de Marinha) Tomo I – Homens, Doutrinas e Organização 1824 - 1974 ACMN - Cinquenta anos de construção e EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Autor Júlio Cesar de Vasconcellos Correia, aspirante a engenheiro naval José Cândido Corrêa, primeiro tenente da armada, secretario da escola naval, lente interino da mesma escola e professor do instituto industrial e commercial de Lisboa Redacção Engenheiro Raul César Ferreira, diplomado pela “Reggia Scuola Navale Superiore di Genova – Italia”, lente de arquitectura naval da Escola Naval de Lisboa 1º Tenente Abílio Freire da Cruz Júnior C. Alm. J. Moreira Rato Joaquim Carlos Esteves Cardoso, capitãode-mar-e-guerra ECN Óscar Mota, capitão – tenente ECN Joaquim Carlos Esteves Cardoso, capitãode-mar-e-guerra ECN Óscar Mota, CTEN ECN Joaquim Esteves Cardoso, CMG ECN Redacção Fernando David e Silva, capitão-de-mar-eguerra EMQ João Falcão de Campos, CMG ECN Alexandre Flores, António Policarpo Prof. Doutor António José Telo (coordenador) Óscar N. F. Mota, CFR ECN ref. Impr. 17-Jun-10 13 Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico 18 2004 19 20 2006 2008 21 2008 22 2008 23 2008 reparação naval ACMN – As principais reorganizações da Armada no Portugal Contemporâneo (do princípio do século XIX à descolonização) 30 Anos de Ensino de Engenharia Naval História da Marinha Portuguesa (Academia de Marinha) Tomo II – Cento e Cinquenta Anos de Construção Naval História da Marinha Portuguesa (Academia de Marinha) Tomo II – Electrónica e Comunicações História da Marinha Portuguesa (Academia de Marinha) Tomo II – A Propulsão Mecânica História da Marinha Portuguesa (Academia de Marinha) Tomo II – Navegação TCOR/PILAV (R) João J. Brandão Ferreira C. Guedes Soares, Prof. Doutor Óscar N. F. Mota, CFR ECN ref. Henrique Matos de Vasconcelos, VALM Luís Roque Martins, CALM EMQ Jorge Manuel Novo Palma, CMG NOTAS FINAIS I Entidades como o Lloyd’s Register of Shipping, o Bureau Veritas, o Det Norske Veritas e mais algumas, que publicam regulamentos relativos à segurança dos navios e que são universalmente adoptados (com excepção parcial dos navios de guerra). Na prática, nenhum navio mercante acima, digamos, de 24m, pode navegar sem ter a certificação – que aqui se chama classificação -, de uma sociedade de classificação reconhecida. Esta prática tem vindo a estender-se aos navios de guerra. II Uma curiosidade: ainda em 1900, o 2º tenente Carlos Viegas Gago Coutinho fez o registo de dois circuitos radioeléctricos conducentes a maiores alcances “tanto pelo telégrafo aéreo como pelo submarino”. III Os cínicos dirão, na banalizada expressão de Tommasi di Lampedusa, “é preciso que tudo mude para que tudo fique na mesma” (Tutto deve cambiare affinchè tutto rimanga come prima - Il Gattopardo) . Esperamos que se enganem. IV Nas palavras (que esperamos não deturpar) do Engº José S. Sardinha, certamente o engenheiro português com maior e melhor experiência de operação, direcção e projecto de estaleiros navais: A construção das Dealey foi muito importante por ter introduzido no estaleiro novas tecnologias, muito mais complexas do que as anteriores. Foi uma óptima escola, que serviu até de preâmbulo à criação da Lisnave. Alterações muito importantes foram também introduzidas no planeamento e organização das novas construções. V Não será ocioso referir que, cerca de 1970, o mesmo grupo CUF que estivera na origem da Lisnave, resolveu criar um estaleiro de construção naval na Mitrena, em Setúbal, a Setenave. O parceiro era o armador norueguês Fred Olsen, que começava por garantir uma encomenda de 5 navios. No entanto, este armador retirou-se porque viu a tempo, o que é notável, a aproximação da grande crise petrolífera de 1973. Nascida em plena crise internacional a que se sobrepôs a crise social resultante da revolução de 25 de Abril de 1974, a Setenave nunca teve uma chance de singrar. Com um trajecto complexo, acabou por ser “ocupada” por uma nova Lisnave, trasladada do estaleiro da Margueira. Largamente remodelada e reorganizada, esta nova Lisnave tem conhecido um êxito muito importante. EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Impr. 17-Jun-10 14 Óscar N. F. Mota Engº naval e mecânico VI Recordamos uma excepção, um pequeno petroleiro costeiro para Angola, cujo lançamento ficou assinalado por um episódio que poderia ter sido trágico: enquanto se esperava pela altura conveniente da maré – e dos comensais que incluíam um ex-ministro -, o navio estava amarrado a dois muretes no cimo das carreiras de lançamento. A amarração de um deles cedeu, o navio começou a querer fugir para um bordo, mas felizmente a outra amarração cedeu também e o navio, um tanto ziguezaguiante e perante o pânico da assistência, lá se encaminhou para a ria. Alguns minutos depois chegaram os comensais, a quem foi tranquilamente anunciado que fora necessário lançar o navio, sem baptismo, “porque a maré não esperava”. VII Fabricar para o mar tem mais exigências do que fabricar para uso em terra; e é necessária experiência, que era escassa. Um caso curioso era o dos Estaleiros S. Jacinto, que mercê de circunstâncias particulares (direcção e técnicos conhecedores e audazes), fabricava grupos motobombas, guinchos e quadros eléctricos para os seus navios de pesca; no entanto, dificilmente poderiam ser montados em navios de guerra, mais exigentes em especificações. VIII Recordamos dois exemplos, entre outros que poderíamos aduzir: o o Tivemos ocasião de cooperar com uma empresa petrolífera que fabricava single point mooring buoys para carga offshore de petroleiros. Pretendíamos um conceito semelhante, mas para abastecimento de água; nunca conseguimos que “realizassem” que os requisitos de segurança eram de outra ordem de grandeza Os requisitos do CERN para banais escadas e plataformas metálicas (encomendas à Sorefame), denunciavam uma atitude mental virado para partículas subatómicas. EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10 Impr. 17-Jun-10 15