Óscar NF Mota Engº naval e mecânico A ENGENHARIA DA

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Óscar NF Mota Engº naval e mecânico A ENGENHARIA DA
Óscar N. F. Mota
Engº naval e mecânico
A ENGENHARIA DA MARINHA E A SOCIEDADE CIVIL
PERSPECTIVA HISTÓRICA
All of it depended on improvements in the art of shipbuilding: caravels, longer and
sleeker, rather than broad, cargo-bearing cogs; stern rudders; a mix of square and lateen
sails; a marriage of Atlantic and Mediterranean techniques. When Dias returned from
the southern tip of Africa, he also brought with him ideas that went into the ships (no
longer called caravels) used by Vasco da Gama a decade later. Ten years more saw
further modifications. Every trip was an experience, an incentive to emendation.
David S. Landes – The Wealth and Poverty of Nations
(why some are so rich and some so poor)
Sumário
Pretende-se apresentar uma perspectiva histórica da relação entre a engenharia da marinha e a
sociedade civil, desde a revolução industrial até aos nossos dias. As grandes mudanças na ciência
e na construção naval a partir de meados do século XIX, trouxeram grandes problemas para a
nossa Marinha, inserida num país atrasado cultural e socialmente. Daí que a Armada tenha tido
necessidade de formar técnicos no estrangeiro que pudessem contribuir para minorar as
consequências desse atraso. Tal foi conseguido principalmente pela formação de engenheiros
construtores navais no estrangeiro, que fizeram escola no Arsenal de Marinha, constituindo um
pólo de irradiação de conhecimentos técnicos para outros estaleiros navais e para a sociedade
civil em geral, que durou cerca de um século. Essa transmissão de conhecimentos não foi, no
entanto, confinada ao Arsenal, tendo irradiado através de instituições como a Inspecção de
Construção Naval, a Direcção da Marinha Mercante, gabinetes de projecto de vários estaleiros
navais e mais tarde na criação do curso de engenharia naval do I.S.T. Um procedimento
semelhante teve lugar com outras formas de engenharia, sobretudo no campo das comunicações
e electrónica, tendo os técnicos da Marinha – em larga medida formados nas suas escolas -,
constituído durante largos decénios o núcleo técnico de instituições do Estado e de empresas
civis da especialidade.
1 - INTRODUÇÃO
a) O nosso objectivo
Por termos ouvido várias vezes, e a última recentemente, que a nossa actual engenharia civil teve
origem na engenharia militar, propusemos que no âmbito deste seminário sobre “A Engenharia na
Marinha”, se fizesse uma
o
Perspectiva histórica da relação entre a engenharia da marinha e a sociedade civil.
A ideia foi aceite, mas foi-nos endossada a tarefa. O que não serve de desculpa para as lacunas que
sabemos existirem na exposição.
Referir-nos-emos, pois, à engenharia naval em sentido lato, desde meados do século XIX até aos nossos
dias. Século e meio em números redondos.
b) A grande mudança
Assim sendo, e para início, pareceu-nos interessante ir buscar um texto da época, um notabilíssimo
relatório de um aspirante a engenheiro (construtor) naval, datado de 1867 [1]1,
1
Designaremos entre parêntesis rectos as referências, constantes na Bibliografia.
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“Comparando as construções navais desde quase a sua origem até à nossa época, repetimos, que os
progressos foram sempre muito graduais e sucederam-se pouco a pouco com ligeiras modificações,
marcando-se a transformação completa da marinha de guerra de 1854 para diante.”
“As esquadras dos navios de vela compostas de naus, que representavam o núcleo das forças, e de
fragatas, que serviam de exploradores pelas suas condições especiais de ligeireza e de bom
andamento, figuraram até aos nossos dias.”
Explicitando um pouco mais:
o As experiências com máquinas a vapor estendem-se por todo o século XVIII, enquanto os navios de
ferro começam a aparecer apenas no seu final.
o Depois de alguns decénios de navegação com rodas propulsoras, foi em meados do século XIX que os
hélices se impuseram.
o Os navios de guerra mistos (com propulsão mecânica e à vela) tiveram uma vida breve, logo após o
virar do meio centénio2. É da mesma época a guerra da Crimeia, que desencadeou o aparecimento
dos navios couraçados e o imediato e duradouro duelo entre a artilharia e a couraça, que o torpedo
veio rapidamente complicar e que só o míssil encerrou, já na segunda metade do século XX.
O ritmo da mudança por meados do século XIX é, pois, alucinante.
Antecedendo mas interagindo com o progresso prático, sucediam-se os avanços teóricos da construção
naval, nos campos da ciência dos materiais, da termodinâmica, da estática e, sobretudo, da dinâmica do
navio.
Para Portugal, que há muito se afastara da posição dianteira da construção de navios - que já fora sua -,
tal significava perder completamente o contacto com as novas tecnologias.
Já porque na área militar a fractura científica e técnica era mais directa e grave – pelo menos no curto
e no médio prazo -, já porque só o Estado tinha recursos financeiros e humanos para evitar que o atraso
se tornasse catastrófico, a solução para conseguira construir navios modernos em Portugal, foi enviar
construtores navais da Armada3 ao estrangeiro. O objectivo era aprenderem as novas tecnologias para
as aplicarem entre nós – principalmente na Marinha de Guerra, mas também na de Comércio -, pelo
menos na medida em que as nossas carências gerais de conhecimentos e meios financeiros o
permitissem.
Mas, de imediato, era inevitável que fosse principalmente comprando no estrangeiro que a Armada
Portuguesa se renovasse [16].
c) A importação de navios
Para arrumar o assunto da encomenda de navios no estrangeiro, acrescentamos já que os seus surtos
durante o século XX, foram sendo progressivamente menos defensáveis em termos técnicos e
industriais:
i.
O destaque vai para a notável renovação da frota, com navios adquiridos na Grã-Bretanha, no
início da década de 30 (o programa fora estabelecido no final da 1ª República), com novos
submarinos os navios de turbinas a vapor: avisos e 5 contratorpedeiros (que atingiam 36 nós); 2
contra-torpedeiros adicionais, construídos nos estaleiros da CUF em Lisboa, foram exportados.
ii. A série francesa, de 3 submarinos e 4 fragatas na década de 60, é justificada sobretudo por
razões de urgência, ligadas ao início da guerra colonial.
2
O mesmo não sucedeu com os navios mercantes. Nos nossos portos, há pouco mais de 50 anos, eram vulgares os
iates e palhabotes de cabotagem. Mais recente é ainda o desaparecimento dos belos lugres da pesca do bacalhau. A
sua longevidade, no entanto, deveu-se principalmente a atrasos na introdução de novas tecnologias de pesca e de
conservação do pescado, o que resultou sobretudo de motivações políticas que se sobrepuseram às forças do
mercado.
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Neste trabalho as expressões Armada Portuguesa, Marinha de Guerra, Armada e Marinha são equivalentes.
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iii. Entre 1969 e 1975 foram encomendadas na Alemanha 6 corvetas e em Espanha 4. Trata-se de
um notável projecto do contra – almirante engenheiro construtor naval Rogério de Oliveira. A
primeira série era destinada principalmente à guerra colonial, mas a segunda, com navios melhor
armados e sofisticados, tinha um campo de acção muito mais vasto. É claro, neste caso, que a
Marinha e a indústria nacional não souberam entender-se para a construção destes navios em
Portugal, o que estava perfeitamente dentro da nossa capacidade técnica e industrial.
iv. As 3 fragatas da classe “Vasco da Gama”, aumentadas ao efectivo em 1991, foram adquiridas na
Alemanha; na referência [23] expusemos as nossas objecções quanto às justificações alegadas
para esta decisão, considerando que 2 destes navios deveriam ter sido construídos em Portugal.
Estão em jogo questões financeiras e de contrapartidas, demasiado complexas para poderem
ser aqui tratadas.
O acompanhamento destas construções no estrangeiro foi feito, essencialmente, no sentido de garantir
a sua operacionalidade e manutenção adequadas. Exceptua-se o programa citado em a), devido à
construção de dois contratorpedeiros no estaleiro da CUF, o que foi um estímulo decisivo para dar
continuidade às novas construções naquele estaleiro.
Já no século XXI, a construção de novos submarinos na Alemanha, está ainda em curso. É tarde para
quaisquer providências tendentes à majoração da incorporação nacional, e cedo para conclusões quanto
ao regime de contrapartidas.
Omitimos as referências às aquisições de navios em segunda mão, por nos parecer que tal sai do nosso
âmbito.
As construções em Portugal serão referidas no decorrer deste trabalho.
d) A complexidade do projecto naval
Resolvemos incluir este capítulo por duas razões:
o As dificuldades encontradas em Portugal para desenvolver projectos de navios de guerra, não
podem ser entendidos se não tivermos uma ideia da complexidade do projecto naval;
o A influência dos técnicos da Marinha e do Arsenal foi fundamental e ainda é importante.
Na Marinha havia engenheiros de boa qualidade, mas muito poucos. Muitas vezes tinham de apoiar a
indústria particular sendo quase impossível, até há pouco tempo, o percurso inverso.
Várias construções sofreram atrasos por este facto, não obstante a acção esforçada, até notável, dos
técnicos da Inspecção de Construção Naval e do próprio Arsenal.
Vejamos um resumo dos conhecimentos necessários, válido para a perspectiva histórica e para navios
relativamente simples:
(a) Os conhecimentos
(i) O domínio tradicional dos engenheiros construtores navais:
a
Requisitos gerais, modo e local de operação, legislação respeitante ao tipo de navio em
causa;
b
Arquitectura naval (é a ciência fundamental, que faz a ligação com as outras tecnologias) capacidades, deslocamento, plano geométrico e cálculos associados, arranjo geral, qualidades
náuticas, compartimentação estanque e estabilidade, limitação de avarias, velocidade e potência
propulsora
c
Engenharia de materiais e estruturas;
o Materiais - aço, alumínio, polímeros reforçados com fibras, madeira, tintas
o Estruturas - a viga-navio em mar calmo e em mar ondoso, a resistência local (vigas, painéis,
membranas) em diversas condições de carregamento e às acções do mar, a interligação
Cabendo normalmente aos engenheiros construtores navais a chefia e coordenação dos projectos
navais, devem eles possuir conhecimentos de todas estas matérias, algumas detalhadamente, outras
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apenas o suficiente para poder dialogar com os múltiplos especialistas e com as sociedades de
classificaçãoI.
(ii) Outras engenharias
a.
Engenharia de máquinas - com concepção das casas de máquinas e auxiliares, sistemas de
encanamentos e condutas envolvendo o motor principal (com toda uma panóplia de auxiliares),
linhas de veios e hélices, grupos geradores, sistemas hidráulicos, guinchos e molinetes, bombas,
compressores, etc.
b.
Engenharia de armamento - integrando, quando necessário, artilharia, mísseis e meios de
luta anti-submarina
c.
Engenharia electrotécnica e electrónica - corrente trifásica, monofásica e corrente
contínua, quadros eléctricos principais e de distribuição, sistemas de força, de iluminação e de
controlo, automatismos, sistemas de navegação, de comunicações, etc.
d.
Engenharia de aprestamento – mastreação e aparelho, movimentação de carga, sistemas de
fundear e de amarrar, controlo ambiental, equipamento de salvação e de combate a incêndio,
ajudas à navegação, sistemas de hotelaria, etc.
Uma actualização desta listagem teria de pôr mais ênfase nas qualidades náuticas, sobrevivência em
avaria, ruído e vibrações, automatização, guerra electrónica, sistemas de mísseis.
(b) Quantidade de trabalho envolvida
Varia muito, como seria de esperar, de navio para navio e mesmo de estaleiro para estaleiro.
Classicamente, podemos considerar três ou quatro fases no projecto de navios
Projecto básico – Poderá originar uma memória descritiva e um número restrito de desenhos
(talvez 4 a 12); da parte estrutural costuma constar, pelo menos, a secção mestra
o
Projecto de contrato – Conjunto de desenhos e especificações técnicas que são anexadas ao
contrato comercial de construção; muitas vezes é utilizado simplesmente o projecto básico, mas no
caso de navios de guerra os desenhos costumam ser mais elaborados e as especificações volumosas.
o
Projecto de classificação – É o conjunto de documentos que se envia para aprovação para a
sociedade de classificação escolhida, se for o caso; pode envolver uma centena de desenhos
o
Projecto de produção – São os milhares de documentos elaborados para construir o navio
o
Dizendo de outra maneira, para o projecto completo de uma lancha de desembarque serão necessários
uns 600 homens x dia e para uma corveta talvez 15 mil.
Impõe-se uma chamada de atenção para a enorme importância, mesmo para o projecto, dos
fornecedores de matérias e de equipamentos, sobretudo destes últimos. Muitas das suas informações,
e até projectos parciais, têm de ser incorporadas no projecto geral. A falta de cuidado com este
pormenor tem conduzido a muitos insucessos.
(c) Súmula sobre o projecto
Tudo somado, podemos considerar a existência de duas classes de meios navais, em relação à nossa
capacidade de projecto:
o
Navios relativamente simples, que podem ser projectados e construídos no nosso país –
navios logísticos (de qualquer dimensão para nós interessante), barcaças de desembarque até 50m
(transporte e desembarque de fuzileiros), corvetas, patrulhas, lanchas de diversos tipos (acções de
vigilância, busca e salvamento, repressão do narcotráfico),
o
Navios com aptidão essencial para combate e dimensões superiores às corvetas, tais
como fragatas, submarinos e navios de projecção de forças (nomeadamente fuzileiros). O projecto
destes navios, mas não a sua construção, excedem a nossa capacidade.
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2 - A TRANSMISSÃO DE CONHECIMENTOS PARA A SOCIEDADE CIVIL
Conforme já demos a entender, a necessidade de adquirir, manter e operar navios de guerra na era
moderna, impôs a existência de uma multifacetada capacidade tecnológica, que o país em geral não
podia proporcionar. Tal obrigou a Marinha a um esforço extraordinário na formação dos seus técnicos,
na construção de infra-estruturas e na aquisição de equipamento de manutenção.
Uma parte dessa capacidade e competência foi passada para a sociedade civil, através de vários meios:
o
o
o
Em termos individuais - sobretudo com os engenheiros construtores navais, maquinistas navais e
electrónicos;
Nas operações de manutenção dos navios de guerra - pelo apoio dos mesmos técnicos e pelo desafio
que era posto aos estaleiros navais, obrigando-os a investir e a progredir tecnologicamente;
Nas construções para a Armada - durante as quais as exigências de rigor e as complexidades
técnicas dos navios obrigaram os estaleiros a grandes saltos tecnológicos
Não vamos estruturar a nossa apresentação exactamente de acordo com esta divisão, porque os
diferentes meios se entrelaçam.
2.1 – Os engenheiros e outros técnicos
a) Os engenheiros construtores navais
i - A formação
O quadro dos engenheiros construtores foi criado em 1796, já atendendo à necessidade de acompanhar
"as novas Descobertas", conjugando as "maiores luzes Theóricas e Prácticas", citado em [5].
Sucederam-se inócuas reformas, até que em 1864 o curso passou a ser ministrado na Escola Naval,
numa altura em que esta foi profundamente reorganizada.
Em 1867 encontramos já um aspirante a engenheiro naval em Paris a "frequentar os cursos da escola
imperial de engenharia marítima" [1].
Os estágios em estaleiros de outros países passaram a ser frequentes, mas tal não chegava e as
reformas do curso continuaram a suceder-se em bom ritmo, tal como as do Arsenal. Finalmente, em
1899, foi decidido que o ingresso na classe de engenheiros navais seria feito por alunos escolhidos por
concurso documental, e enviados às escolas de engenharia naval no estrangeiro.
Assim foi feito, privilegiando-se primeiro as escolas e estaleiros franceses durante a segunda metade
do século XIX, mas depois da reforma, a escola italiana (“Reggia Scuola Navale Superiore di Genova”)
com um breve interregno francês (“École du Génie Maritime”, de Paris) até à Segunda Guerra Mundial.
Após outro interregno, agora inglês (“Royal Naval College” em Greenwich), voltou-se a Génova em 1950
(“Facoltà di Ingegneria della Università degli Studi”). Seguiu-se um período norte-americano (no
“Massachussets Institute of Technology”, em Boston), a partir de 1965 e até meados da década de 70.
Tratava-se sempre de escolas do mais alto nível em cada país.
Como de costume quando acontecia uma pausa nas construções, a Marinha passou uma década sem abrir
concursos para engenheiros construtores navais, acabando por optar, em 1987, por um curso integrado
no “University College London” (presentemente com a duração de dois anos), por razões principalmente
económicas.
A quase totalidade dos engenheiros construtores navais fez excelentes cursos no estrangeiro, e
podemos dizer sem rebuço que dignificaram a Marinha e o País. Tal tem muito a ver com três factores:
ƒ
Até talvez 1960, tirar cursos no estrangeiro era uma raridade, quer por razões académicas quer
monetárias; acresce que os vencimentos dos oficiais no estrangeiro foram sempre razoáveis, mesmo
em períodos de ordenados bastante baixos na metrópole, o que permitia estudar com algum
conforto material;
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A escolha era feita por concurso, por vezes entre engenheiros já formados em escolas nacionais ou
então entre oficiais de marinha; as regras dos concursos eram simples e sérias, o que permitia
escolher candidatos com boas ou muito boas aptidões académicas;
O sentido de representar a Marinha e a própria tradição de bons resultados dos engenheiros mais
antigos, inculcavam brio e impunham, a quem era seleccionado, um nível de esforço em geral
bastante superior ao que anteriormente empregavam nos estudos em Portugal.
Que se tratava de uma ideia correcta prova-o o facto de o sistema se ter mantido com poucas
alterações durante mais de um século.
Podemos assim dizer que, nos últimos cento e cinquenta anos, e como medida essencial para reduzir o
atraso tecnológico, os engenheiros construtores navais estagiaram e receberam formação no
estrangeiro.
Como eram raros ou mesmo únicos em Portugal, não admirará que a sua influência, quer directa quer
indirecta, se fizesse sentir muito para lá do Arsenal e da Marinha.
Sob a égide do Instituto Superior Técnico (IST) começou a ser leccionado, desde a década de 80, um
curso de Engenharia Naval, com forte apoio dos engenheiros construtores navais da Armada. Este apoio
ainda se mantém, mas o fluxo de engenheiros do IST para os estaleiros, e até para o Arsenal, tem vindo
a prevalecer nos últimos anos. O seu impacto na indústria e serviços, embora já seja considerável,
deverá tornar-se preponderante nos próximos anos.
ii - A transmissão de conhecimentos
As áreas do projecto e de arquitectura naval foram privilégio dos engenheiros construtores navais da
Marinha até há poucos decénios e nelas têm, ainda hoje, um papel importante.
Como é que se processou a transmissão dos conhecimentos?
ƒ
No antigo Arsenal de Marinha a formação de mestres e de desenhadores era feita não só no
próprio trabalho como com a publicação de livros de divulgação e de apontamentos. No Arsenal do
Alfeite a tradição foi interrompida, mas só até 1970; a partir daquele ano foi reatada, embora com
menor impacte devido a existirem já outros estaleiros tecnicamente avançados (Lisnave e
Estaleiros Navais de Viana do Castelo).
ƒ
A aprovação e fiscalização da construção e reparação de navios mercantes esteve na dependência
institucional da Marinha de Guerra, nomeadamente de engenheiros construtores navais até 1974.
Tal teve uma enorme importância na disseminação de conhecimentos e projecto de navios por todo o
país, com relevo para embarcações de pesca. A cultura que prevalecia era a de que a fiscalização
tinha de ensinar (e tantas vezes de aprender), muito mais do que impor; mesmo depois de 74 e até à
década de 80 a influência referida continuou a fazer-se sentir.
ƒ
Os engenheiros construtores navais tinham e têm tendência para passar à reserva bastante cedo;
se tal podia representar um inconveniente para a Marinha, constituía uma vantagem nacional porque
a actividade desses oficiais passava para áreas geográficas e empresas tecnicamente mais
carenciadas.
ƒ
A execução de um vasto leque de estudos e projectos civis em regime de profissão liberal resultava
de solicitações, quer de diversos ministérios quer de companhias armadoras e da sociedade civil. Tal
acabava por beneficiar a própria Marinha, pois esta tinha largos períodos de estagnação e a
carreira muitas vezes não dava oportunidades de progresso profissional aos engenheiros. A
necessidade de resolver problemas novos e mesmo de reciclar velhos conhecimentos aparecia
principalmente exercendo a profissão na sociedade civil. Adquirir novos conhecimentos e manter em
forma as ferramentas da engenharia evitava o ancilose profissional, podendo a Marinha continuar a
contar, sempre que precisava, com bons profissionais.
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Já referimos o contributo fundamental dos engenheiros da Marinha de Guerra para o curso de
Engenharia Naval do IST.
ƒ
Finalmente, com relevo para os últimos decénios do século XX, notou-se uma presença significativa
dos engenheiros construtores navais na administração de estaleiros navais, com resultados
positivos nas áreas técnica e de gestão em geral.
b) Os engenheiros maquinistas navais
Naturalmente que, nos navios, lhes cabia a operação e manutenção de instalações de máquinas
propulsoras e auxiliares, que tinham particular complexidade no tempo do vapor (sobretudo
turbinas).
Aqui interessa realçar que, para além da parte que lhes cabe nas construções, a sua importância no
panorama nacional tem sido primordial nas operações de manutenção, ocupando posições cimeiras em
diversas organizações.
Deles dependeu também, até à década de 80, a formação dos oficiais maquinistas da marinha
Mercante, na Escola Náutica
c) Os engenheiros electrotécnicos
Agrupamos nesta designação os engenheiros propriamente ditos, os oficiais especializados em
electrónica e comunicações, e até os excelentes sargentos artífices (formados na Marinha).
A Marinha foi pioneiraII e formou gerações de técnicos de radiocomunicações e electrónica cujo
conjunto de conhecimentos teóricos e práticos não tinha rival em Portugal. Durante décadas o seu
contributo foi essencial na formação de técnicos – inclusivamente na Escola Náutica -, em
instalações e reparações de equipamentos em firmas da especialidade [12], em estaleiros navais, no
apoio à manutenção de instalações em navios mercantes e em instalações terra.
No capítulo de telecomunicações a marinha foi desde o início pioneira, muito à frente do resto do
país. São disso prova as estações radionavais do continente e dos Açores e mesmo a prestação de
serviço público comercial, que só terminou em 1933 quando foi inaugurada a Companhia portuguesa
Radio Marconi [21].
Cabe aqui recordar também, porque ligada às telecomunicações, o pioneirismo na meteorologia. A
obrigatoriedade das observações meteorológicas nos navios de guerra data de 1853! Em 1923 foi
criado a Repartição de Serviço Meteorológico e um Observatório Meteorológico na Intendência de
Marinha. Mesmo o Serviço Meteorológico Nacional, criado em 1946, contava entre os “fundadores”
diversos oficiais de Marinha [23]
d) Os desenhadores
O Arsenal formava bons profissionais (embora a formação no Alfeite não fosse a que tinha sido no
Arsenal de Marinha) e a taxa de demissões era grande, pelos maiores salários na indústria
particular. De qualquer modo o país ficava a ganhar.
2.2 – O Arsenal
As dificuldades da adaptação da Marinha aos novos tempos, na segunda metade do século XIX, podem
ser postas em evidência pela multiplicidade das reformas da organização do Arsenal e do recrutamento,
formação, competências e carreira dos engenheiros construtores navais. Reformas que, durante
decénios, se sucederam com a periodicidade média de 5 anos.
É hoje claro que as deficiências e dificuldades de adaptação estavam muito menos em problemas de
organização e de atribuição de responsabilidades na Armada, do que na escassez dos meios financeiros,
na fraca capacidade industrial e na falta de uma cultura científica, técnica e industrial suficientemente
expandidas em Portugal.
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Assim se poderá apreciar devidamente o valor da influência da Marinha de Guerra na construção naval
nacional, o que teve lugar, durante um século, através de dois agentes principais: o Arsenal e os
engenheiros.
Passemos, então, a ma resenha histórica do Arsenal.
o
o
O Arsenal de Marinha, na Ribeira das Naus (espaço compreendido entre o Terreiro do Paço e o
Corpo Santo) teve origem oficial em 1501, com D. Manuel I.
Podemos sintetizar a sua evolução recorrendo, em parte, à referência [15]:
o Foi arrasado pelo terramoto em 1755, mas 15 dias depois foi ordenada a sua reconstrução pelo
Marquês de Pombal
o Em 1820 era a maior unidade industrial do país, com cerca de 2000 operários
o Desde 1850 que se foram sucedendo as reformas, sinal de que o seu funcionamento não era
satisfatório; é fácil perceber agora que o problema estava muito mais com o país (economia
pobre, falta de tecnologia, largo analfabetismo)
o Mesmo assim, até ao final do século XIX foram construídas algumas dezenas de navios em
ferro, com propulsão a vapor
o Em 1939 foi transferido para a margem Sul do Tejo, mudando o nome para Arsenal do Alfeite
o Talvez mais importante: o Arsenal foi a grande escola de construção naval do País; saíram
de lá centenas de operários, mestres e engenheiros, que muito contribuíram para o
lançamento da Lisnave, da Setenave e dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo
Os avisos de 2ª classe “Pedro Nunes” e “João de Lisboa” foram os últimos navios a ser construídos no
Arsenal de Marinha, na Ribeira das Naus. Talvez por serem de projecto nacional adaptavam-se muito
bem ao serviço no Ultramar e ambos acabaram como navios hidrográficos.
Da 1ª fase de construções do Arsenal do Alfeite, desde a sua criação até ao início da guerra colonial,
assinalemos a notável série de 6 petroleiros, aparentemente ao arrepio da sua vocação: desde o “S.
Braz” de 7400t de porte, até ao “Gerêz” de 36500t; este foi o maior navio construído em Portugal até
chegarmos aos grandes petroleiros da Setenave, já depois de 75.
A origem destas construções está no reconhecimento da necessidade estratégica de Portugal possuir
navios tanques, da dificuldade da sua aquisição no estrangeiro no período da II Guerra Mundial e da
inexistência de instalações adequadas nos estaleiros civis. O “S. Braz”, concluído em 1942, foi o navio
de guerra que melhores serviços prestou ao país durante a II Guerra Mundial [16].
São da década de 50 os patrulhas da classe “Maio” (“franceses”, para os distinguir dos patrulhas
“americanos” já existentes na Marinha), fornecidos ao abrigo do Mutual Defence Assistance Program4.
Foram construídos (entre 1954 e 1958) dois nos ENVC, um nos ENM e dois no Arsenal, que era o
estaleiro-guia. Não tinham características para a guerra colonial.
Conhecemos bem os intervenientes principais nos ENVC e nos ENM, que consideravam que estas
encomendas tinham sido importantes para pôr os estaleiros em contacto com equipamento avançado,
obrigado a refinar técnicas de soldadura (pequenas espessuras) e obrigado a melhorar a organização
interna e sistemas de planeamento.
O Arsenal teve dificuldade em desempenhar a função de estaleiro-guia, menos por razões de ordem
técnica do que administrativa.
No período da guerra colonial, entre 1961 e 1975, o ritmo da construção de pequenos navios, na maioria
projectados no próprio Arsenal (eventualmente com apoios exteriores de engenheiros construtores
navais), aumentou bastante:
o
4
Os patrulhas da classe “Argos” foram projectados no Arsenal, tendo sido produzidas 10 unidades
(entre 1963 e 1965), 6 no próprio Arsenal e 4 nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC)
Consequência, claro, da entrada na NATO
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Seguiram-se 15 lanchas de fiscalização (6 de projecto do Arsenal), um navio balizador (projecto
Arsenal, com apoio externo), uma doca flutuante (projecto Arsenal), 15 lanchas de desembarque e
os notáveis patrulhas da classe “Cacine” (projecto Arsenal com apoio externo); destes foram
construídas 10 unidades, das quais 6 no Arsenal e 4 nos Estaleiros Navais do Mondego (ENM)
Depois de 1975, relevem-se os patrulhas da nova classe “Argos”.
Não podemos concluir sem acenar ao acontecimento singular mais importante nas últimas décadas, na
relação entre a Marinha e o Arsenal: a passagem deste a empresa pública. O que tem muito pouco a ver
com a tão temida – no meio naval -,“privatização” do Arsenal. É cedo para ajuizarmos da bondade da
operação, que para ser bem sucedida terá de estar longe de uma mera e talvez insuficiente mudança de
estatuto jurídicoIII.
Fazendo a súmula, podemos dizer que desde o início da revolução industrial até quase à II Guerra
Mundial, o Arsenal de Marinha e o seu sucessor Arsenal do Alfeite foram a grande escola nacional de
construção naval e os introdutores das grandes mudanças tecnológicas.
2.3 - Outros estaleiros navais
Olhando para trás e tendo presente o panorama actual, é um tanto surpreendente que todos os
pequenos estaleiros de que a seguir falaremos, possuíssem uma certa capacidade de estudos,
orçamentação e projectos5, apesar da gritante falta de engenheiros navais. Estes eram sobretudo os da
Marinha de Guerra (como já demos a entender) que, na reserva ou mesmo no activo, davam apoio a
todos os estaleiros privados citados; talvez se possa dizer que tudo o respeitante a arquitectura naval
e uma parte da construção naval, foi por eles divulgado.
a) O estaleiro da CUF (depois NAVALIS, depois LISNAVE)
Estamos a falar do estaleiro naval da Rocha Conde de Óbidos, concessionado pela Administração Geral
do Porto de Lisboa à CUF em 1936. O recrutamento de pessoal foi feito, em larga medida, no Arsenal e
foram os engenheiros construtores navais da Armada que chefiaram o seu bom departamento de
estudos e projectos, até ao final das construções (década de 60).
É notável, em termos industriais, a construção de dois contratorpedeiros ainda na década de 30 (navios
com propulsão por turbinas a vapor com 33000 CV e uma velocidade máxima de 36,5 nós)
Depois da II Guerra Mundial são dignas de realce para este nosso rabalho:
•
•
A modernização dos contratorpedeiros, ocorrida no final da década de 50
A construção dos 4 draga-minas de madeira da classe “S. Roque” (1954-57)
Mas o acontecimento que trouxe uma variação qualitativa na tecnologia de projecto e de construção
de navios de guerra em Portugal, foi a construção de duas fragatas da classe “Alm. Pereira da
Silva”, ao abrigo do apoio militar norte-americano, entre 1962 e 1967.
Tratava-se de uma versão modernizada, em termos de artilharia e de luta anti-submarina, das fragatas
americanas da classe”Dealey”:
Comprimento fora a fora = 95,90m
Deslocamento máximo = 1914t
Potência = 20000SHP
Velocidade = 27 nós
Sob a orientação, apoio e fiscalização dos engenheiros da Inspecção de Construção Naval e de oficiais
da Marinha de Guerra americana, o estaleiro da CUF desenvolveu uma muito interessante sala de
desenho, reorganizou a produção e o seu controlo, e teve acesso a tecnologias até então desconhecidas.
Esteve longe de se tratar de uma mera construção segundo desenhos americanos, pois foram
introduzidas numerosas alterações, sobretudo nos sistemas anti-submarinos e no equipamento
5
No caso da Parry & Son, incluia a ligação com os ENVC.
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electrónico. Sendo o navio já “cheio como um ovo”, pode imaginar-se a dificuldade das alterações.
Acresce que o procurement de materiais foi feito na Europa, mas com base em standards da marinha
americana. Foram, muito de longe, as mais complexas construções de navios de guerra em Portugal.
A construção das Dealey foi também muito importante por ter introduzido no estaleiro novas
tecnologias, muito mais complexas do que as anteriores. Grandes foram também os ensinamentos
colhidos quanto a planeamento e organização das novas construções.IV
Foi uma óptima escola, que serviu de preâmbulo à criação da Lisnave na Margueira (Almada), inaugurada
em 1968; porém, o que fez a glória deste estaleiro, a nível mundial, não foi a construção mas sim a
reparação naval. Chegou a ser o maior estaleiro de reparação naval no mundo e consideramo-lo o único
grande êxito internacional da indústria portuguesa em geral. Foi criado com capitais e tecnologia
portuguesa (grupo CUF), holandesa e sueca. Note-se que a reparação de navios da dimensão das nossas
unidades militares continuou entregue aos estaleiros da Rocha, pertencentes ao mesmo grupoV.
Só um aceno à Setenave (Mitrena – Setúbal): criada a partir da Lisnave mas dedicada a construções e
reparações. Inaugurada em tempos de crise nacional e internacional (1975), teve uma vida difícil, mas
acabou de forma relativamente feliz por ter permitido a “refundação” da Lisnave, que se deslocou para
a Mitrena.
b) Os Estaleiros Navais de Viana do Castelo
Os Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC) foram criados logo após a II Guerra Mundial, para
suprir a escassez de navios modernos de pesca. No seu lançamento foi fundamental o pessoal oriundo do
estaleiro da Rocha e do Arsenal; o recrutamento de pessoal operativo e intermédio de boa qualidade,
sempre foi fácil em Viana.
Deram boa conta de si na construção dos patrulhas da classe “Maio” (entre 56 e 57), de 4 pequenos
patrulhas da classe “Argos” (entre 1962 e 1963) de um navio de reabastecimento (o “São Gabriel” de
9000t de porte, em 1963).
Foi grande a sua importância para a evolução tecnológica da empresa, mas ainda mais notável e
importante foi a construção de uma 3ª fragata da classe “Alm. Pereira da Silva”, entre 1966 e 1968,
que decorreu de forma considerada muito satisfatória. Já relevámos que se tratava de navios muito
mais complexos que quaisquer outros que se tenham construído ou estejam a construir em Portugal.
Sobre a construção dos patrulhas oceânicos, ainda em curso, não nos pronunciamos por se tratar de
matéria delicada e controversa.
c) Os Estaleiros Navais do Mondego
Tratando-se de um pequeno estaleiro, que já dera boa conta de si na construção de um patrulha da
classe “Maio” (1957), é surpreendente o modo como se adaptou e evoluiu de modo a dar um contributo
notável para os navios destinados à guerra no Ultramar: 7 lanchas de fiscalização, 6 lanchas de
fiscalização grandes e largas dezenas de lanchas de desembarque pequenas e médias.
Um dos factores de sucesso foi, em nosso entender, a pequena mas eficaz sala de desenho.
d) Os Estaleiros S. Jacinto
Nunca se interessaram verdadeiramente pelo mercado militar, pois o seu nicho eram os navios de
pescaVI.
As únicas lanchas construídas foram as duas da classe “Dom Aleixo”, entregues em 1967. Eram
destinadas a Timor, mas concluiu-se ser pouco prático – ou menos urgente - o seu envio, pelo que se
quedaram por Cabo Verde.
O seu sucesso foi em boa parte devido à pequena sala de desenho, que até 1975 foi sempre dirigida por
engenheiros construtores navais da Marinha
e) Estaleiros da Argibay
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Mencionaremos apenas uma lancha de fiscalização e um navio para os Serviços Marítimos da Guiné: o
ferry “Bor”, com propulsão Voith Schneider.
Mais uma vez, a sala de desenho teve à frente engenheiros construtores navais.
f) Estaleiros do Ultramar
Merecem uma referência os estaleiros do Ultramar:
o Em Moçambique, apesar de diferentes tentativas, o meio eficaz para carenagem era a doca seca da
Capitania do porto de Lourenço Marques, com o comprimento aproximado de 80 metros.
o De Angola destaquemos em primeiro lugar a doca flutuante de Luanda, construída na Holanda em
finais do século XIX, e montada sob a direcção de um engenheiro construtor naval da Marinha. No
final do período colonial a indústria naval concentrava-se essencialmente em Luanda e no Lobito,
mas só neste porto, no estaleiro da Sorefame, era possível construir embarcações metálicas.
o As Oficinas Navais de Macau ultrapassaram os 100 anos de actividade contínua, embora com
grandes altos e baixos, nomeadamente durante a II Guerra Mundial, quando os equipamentos foram
cedidos aos ocupantes japoneses a troco de arroz. Destacamos, no entanto, a interessante
actividade de construção, resultante talvez de três factores principais:
ƒ Compatibilidade entre as limitadas instalações e as dimensões das embarcações requeridas, que
eram sobretudo lanchas de fiscalização para o rio das Pérolas;
ƒ Continuidade da presença à frente das oficinas de distintos engenheiros maquinistas navais;
ƒ Uma certa e tradicional autonomia macaense em relação à burocracia da metrópole.
o No Estado da Índia, longe iam as carenagens das naus na ilha de Angediva, e as grandes construções
terminaram em beleza com a fragata “D. Fernando II e Glória”, em 1843, com projecto e chefia de
engenheiros construtores navais. O único estaleiro de aço entrou em funcionamento em Mormugão
já na segunda metade da década de 50, sob a direcção também de um engenheiro construtor naval
da Marinha. Após a ocupação em 1961, o estaleiro foi recuperado e ampliado pela União Indiana.
g) Indústrias auxiliares
Embora esteja mais na moda chamar-lhes indústrias fornecedoras (talvez por influência da
nomenclatura das normas de qualidade ISO 9000), num aspecto a designação tradicional é mais eficaz:
chama a atenção para o papel importantíssimo dos fornecedores de equipamentos no desenvolvimento
do projecto e na própria construção.
E aqui residia e reside a principal lacuna da indústria naval nacional, quer em termos técnicos quer de
valor acrescentado.
Na prática, apenas se podiam adquirir em Portugal cabos eléctricos de aplicação geral, cabos de fibra
vegetal ou sintética, tintas, certas peças de bronze (incluindo hélices de pequena dimensão) e de aço
vazado, algumas válvulas, alguns motores eléctricos e pouco mais.
Recordamos, estando no Arsenal do Alfeite, que de pouco servia a directiva ministerial para fazermos
as aquisições em Portugal desde que o seu preço não fosse superior em mais de 15% aos materiais
congéneres estrangeiros. Casos houve, em que tivemos que ajudar os fabricantes para termos
propostas satisfatórias; fazíamo-lo com prazer, embora os resultados não tenham sido sempre os
melhoresVII.
A importância e gravidade desta situação compreender-se-ão melhor se atendermos a que os
materiais e equipamentos constituem 60 a 70% (ou mais) do custo de um navio de guerra!
E no entanto, há alguma razão para optimismo, não nas indústrias tradicionais mas na electrónica, com
forte influência dos engenheiros e outros técnicos da Armada:
o A EID, que partindo de um contrato celebrado com a Marinha de Guerra em 1980, teve um
extraordinário desenvolvimento na década de 90, sempre na dificílima área das comunicações, com
renovados contratos para os seus produtos, com as marinhas espanhola, holandesa, inglesa e
brasileira.
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o
A EDISOFT, nascida também de um contrato com a Marinha de Guerra na década de 80. Entre as
suas realizações destacam-se:
• O sistema integrador de informação, a aplicar nos patrulhas oceânicos, na área de automação da
plataforma, que será uma parceria com a EID e a Vosper Thornycroft,;
• O sistema de informação logística Hi-Log;
• O trabalho para a NASA, uma das principais actividades da empresa
3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
a)
A Marinha de Guerra teve um papel preponderante na construção naval portuguesa durante um
século, tendo transmitido conhecimentos e tecnologias à sociedade civil, quer por intermédio dos
seus engenheiros quer pelos desafios das construções e modernizações de navios militares. A
Guerra Colonial provocou um acréscimo de actividade da indústria naval de algum modo
surpreendente, embora se tenham perdido oportunidades importantes de aumento de tecnologia e
produtividade.
b)
O Estado não deverá prescindir de utilizar as possibilidades que a UE lhe faculta (como seja a
livre adjudicação das construções militares), nem poderá deixar de seguir o exemplo de países de
maior capacidade industrial, que utilizam uma sofisticada rede de auxílios (estatais, regionais,
municipais), para benefício, sobretudo, dos pequenos estaleiros. O valor acrescentado nacional num
navio de guerra construído em Portugal é talvez da ordem dos 35%; mas temos de acrescentar
ganhos intangíveis de aumentos de tecnologia e de produtividade. E note-se que as contrapartidas
têm estado muito longe de dar os resultados esperados e continuarão a estar enquanto este assunto
não for tratado com o necessário profissionalismo e vontade política.
c)
As indústrias associadas à indústria naval nunca tiveram em Portugal peso significativo. Ainda
hoje assim sucede, em termos económicos globais. No entanto, embora não tenha havido progressos
nas indústrias tradicionais, temos já êxitos relevantes em empresas com componente tecnológica
muito forte, com um papel fundamental desempenhado por técnicos e encomendas da Marinha;
d)
A prática tem demonstrado que só é possível o sucesso nas construções militares quando existe
um forte sentido de cooperação entre os técnicos civis e os militares. Os primeiros têm de
interiorizar que as construções militares têm requisitos, quiçá excessivos em certas áreas, mas que
resultam da sua formaçãoVIII; e que estão a ter uma oportunidade de aprender. Os segundos devem
ter a preocupação, a generosidade e a confiança em si mesmos para ensinarem o que sabem, e que
tantas vezes é muito específico das construções militares. Ambos devem possuir a humildade
técnica de aprender com os outros.
Óscar Mota
8 de Março de 2010
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Óscar N. F. Mota
Engº naval e mecânico
BIBLIOGRAFIA
Abrev. - ACMN = Anais do Clube Militar Naval
Nº
1
Ano
1868
2
1888
3
1900
4
1930
5
1958
6
1962
7
1966
8
1970
9
1970
10
1970
11
1970
12
13
1983
1984
14
1998
15
16
1998
1999
17
2001
Título
Estudos feitos na Exposição Internacional
de Paris em 1867 sobre Os Progressos das
Construções Navaes e das Machinas dos
Navios
Ministerio dos Negocios da Marinha e
Ultramar - Catalogo official dos objectos
enviados à Exposição Industrial Portugueza
em 1888, precedido de uma Memória
acerca das Construções e Armamentos
Navaes e dos Estabelecimentos de Ensino
que lhes dizem respeito
ACMN - Informações diversas – A
engenharia naval portuguesa e as
construções para a marinha de guerra
Estaleiros e Arsenais de Construção Naval
- Com um prefácio do comandante Abel
Fontoura da Costa
A Construção Naval em Angola – V
Congresso Nacional de Pesca, a realizar em
Julho de 1958 na Cidade de Luanda
Sociedade de Estudos da Província de
Moçambique – Sistemas de Querenagem de
Embarcações – O Problema em Moçambique
ACMN (Nº especial comemorativo do 1º
cente19nário) – A classe dos engenheiros
construtores navais nos últimos 100 anos
ACMN – Para uma melhor compreensão do
Arsenal do Alfeite
ACMN (Nº especial do 1º centenário) – Os
últimos 100 anos de construção naval
ACMN – Para uma melhor compreensão do
Arsenal do Alfeite
ACMN (Nº especial do 1º centenário) – Os
últimos 100 anos de construção naval
ACMN – O Arsenal de Marinha
Oficinas Navais de Macau – Cem anos de
Construção e Reparação Naval
Guerra Colonial (Diário de Notícias) Lanchas e Navios
Arsenal do Alfeite
História da Marinha Portuguesa (Academia
de Marinha) Tomo I – Homens, Doutrinas e
Organização 1824 - 1974
ACMN - Cinquenta anos de construção e
EngenhMarinhaCivilRevC – Ed. 7Mar10
Autor
Júlio Cesar de Vasconcellos Correia,
aspirante a engenheiro naval
José Cândido Corrêa, primeiro tenente da
armada, secretario da escola naval, lente
interino da mesma escola e professor do
instituto industrial e commercial de Lisboa
Redacção
Engenheiro Raul César Ferreira, diplomado
pela “Reggia Scuola Navale Superiore di
Genova – Italia”, lente de arquitectura
naval da Escola Naval de Lisboa
1º Tenente Abílio Freire da Cruz Júnior
C. Alm. J. Moreira Rato
Joaquim Carlos Esteves Cardoso, capitãode-mar-e-guerra ECN
Óscar Mota, capitão – tenente ECN
Joaquim Carlos Esteves Cardoso, capitãode-mar-e-guerra ECN
Óscar Mota, CTEN ECN
Joaquim Esteves Cardoso, CMG ECN
Redacção
Fernando David e Silva, capitão-de-mar-eguerra EMQ
João Falcão de Campos, CMG ECN
Alexandre Flores, António Policarpo
Prof. Doutor António José Telo
(coordenador)
Óscar N. F. Mota, CFR ECN ref.
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2006
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2008
22
2008
23
2008
reparação naval
ACMN – As principais reorganizações da
Armada no Portugal Contemporâneo (do
princípio do século XIX à descolonização)
30 Anos de Ensino de Engenharia Naval
História da Marinha Portuguesa (Academia
de Marinha) Tomo II – Cento e Cinquenta
Anos de Construção Naval
História da Marinha Portuguesa (Academia
de Marinha) Tomo II – Electrónica e
Comunicações
História da Marinha Portuguesa (Academia
de Marinha) Tomo II – A Propulsão
Mecânica
História da Marinha Portuguesa (Academia
de Marinha) Tomo II – Navegação
TCOR/PILAV (R) João J. Brandão Ferreira
C. Guedes Soares, Prof. Doutor
Óscar N. F. Mota, CFR ECN ref.
Henrique Matos de Vasconcelos, VALM
Luís Roque Martins, CALM EMQ
Jorge Manuel Novo Palma, CMG
NOTAS FINAIS
I
Entidades como o Lloyd’s Register of Shipping, o Bureau Veritas, o Det Norske Veritas e mais
algumas, que publicam regulamentos relativos à segurança dos navios e que são universalmente
adoptados (com excepção parcial dos navios de guerra). Na prática, nenhum navio mercante acima,
digamos, de 24m, pode navegar sem ter a certificação – que aqui se chama classificação -, de uma
sociedade de classificação reconhecida. Esta prática tem vindo a estender-se aos navios de guerra.
II
Uma curiosidade: ainda em 1900, o 2º tenente Carlos Viegas Gago Coutinho fez o registo de dois
circuitos radioeléctricos conducentes a maiores alcances “tanto pelo telégrafo aéreo como pelo
submarino”.
III
Os cínicos dirão, na banalizada expressão de Tommasi di Lampedusa, “é preciso que tudo mude para
que tudo fique na mesma” (Tutto deve cambiare affinchè tutto rimanga come prima - Il Gattopardo) .
Esperamos que se enganem.
IV
Nas palavras (que esperamos não deturpar) do Engº José S. Sardinha, certamente o engenheiro
português com maior e melhor experiência de operação, direcção e projecto de estaleiros navais:
A construção das Dealey foi muito importante por ter introduzido no estaleiro novas
tecnologias, muito mais complexas do que as anteriores. Foi uma óptima escola, que serviu até
de preâmbulo à criação da Lisnave. Alterações muito importantes foram também introduzidas
no planeamento e organização das novas construções.
V
Não será ocioso referir que, cerca de 1970, o mesmo grupo CUF que estivera na origem da Lisnave,
resolveu criar um estaleiro de construção naval na Mitrena, em Setúbal, a Setenave. O parceiro era o
armador norueguês Fred Olsen, que começava por garantir uma encomenda de 5 navios. No entanto,
este armador retirou-se porque viu a tempo, o que é notável, a aproximação da grande crise petrolífera
de 1973. Nascida em plena crise internacional a que se sobrepôs a crise social resultante da revolução
de 25 de Abril de 1974, a Setenave nunca teve uma chance de singrar. Com um trajecto complexo,
acabou por ser “ocupada” por uma nova Lisnave, trasladada do estaleiro da Margueira. Largamente
remodelada e reorganizada, esta nova Lisnave tem conhecido um êxito muito importante.
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Óscar N. F. Mota
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VI
Recordamos uma excepção, um pequeno petroleiro costeiro para Angola, cujo lançamento ficou
assinalado por um episódio que poderia ter sido trágico: enquanto se esperava pela altura conveniente
da maré – e dos comensais que incluíam um ex-ministro -, o navio estava amarrado a dois muretes no
cimo das carreiras de lançamento. A amarração de um deles cedeu, o navio começou a querer fugir para
um bordo, mas felizmente a outra amarração cedeu também e o navio, um tanto ziguezaguiante e
perante o pânico da assistência, lá se encaminhou para a ria. Alguns minutos depois chegaram os
comensais, a quem foi tranquilamente anunciado que fora necessário lançar o navio, sem baptismo,
“porque a maré não esperava”.
VII
Fabricar para o mar tem mais exigências do que fabricar para uso em terra; e é necessária
experiência, que era escassa. Um caso curioso era o dos Estaleiros S. Jacinto, que mercê de
circunstâncias particulares (direcção e técnicos conhecedores e audazes), fabricava grupos motobombas, guinchos e quadros eléctricos para os seus navios de pesca; no entanto, dificilmente poderiam
ser montados em navios de guerra, mais exigentes em especificações.
VIII
Recordamos dois exemplos, entre outros que poderíamos aduzir:
o
o
Tivemos ocasião de cooperar com uma empresa petrolífera que fabricava single point mooring
buoys para carga offshore de petroleiros. Pretendíamos um conceito semelhante, mas para
abastecimento de água; nunca conseguimos que “realizassem” que os requisitos de segurança
eram de outra ordem de grandeza
Os requisitos do CERN para banais escadas e plataformas metálicas (encomendas à Sorefame),
denunciavam uma atitude mental virado para partículas subatómicas.
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