Cursinhos populares pré-universitários e

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Cursinhos populares pré-universitários e
Cursinhos populares pré-universitários e educação popular: uma relação possível?
Maíra Tavares Mendes
PPGEDU-UFRGS, Rede Emancipa e Cursinho Popular da Santa Rosa
Eixo temático: 1a opção - Educação Popular
2a opção - Educação de Jovens e Adultos
Resumo
A proposta do texto é questionar se é possível realizar uma prática de educação popular no
interior de cursinhos populares. Com a reestruturação produtiva, agrava-se o desemprego
estrutural e surge com força o discurso de maior exigência de qualificação para o emprego.
Este fato, aliado à expansão da oferta de ensino médio a partir dos anos 1990, foram fatores
que ampliaram a demanda de setores populares pelo ensino superior, culminando na
organização de movimentos sociais que demandam este direito, materializados na construção
de cursinhos preparatórios para o vestibular. Estes cursinhos estão permanentemente sobre a
contradição de ter que preparar para o vestibular e ao mesmo tempo propor uma visão crítica
do conhecimento e das instituições, em especial a universitária. Desta maneira, a educação
popular coloca-se como uma possibilidade no âmbito destes cursinhos, que pode avançar na
medida em que a perspectiva de educação crítica seja apropriada pelos sujeitos que constroem
estes movimentos sociais.
Surge aí algo que merece ser contado e cantado. (...) É um
processo de conhecimento em que o ser humano é assumido em
seu poder de superar ou romper a limitação, a pobreza e a
carência. E, veja você, é um rompimento coletivo. Não se trata
daquela superação individual do “self made man”. Não se trata
daquela superação individual que propõe um Pelé diante de
milhões de não-Pelés anônimos, pobres e excluídos. É uma
superação solidária.
Diálogo entre Paulo Freire e Adriano Nogueira
O trecho acima, retirado do livro “Que Fazer: Teoria e prática em Educação Popular”, é um
diálogo entre Paulo Freire e Adriano Nogueira em busca de uma definição do que é a
educação popular. À luz dessa epígrafe e do aporte de outros autores, nossa proposta com este
texto é debater se é possível a prática da educação popular no âmbito dos cursinhos populares.
Introdução
Historicamente as teorias e práticas em educação popular tem dado ênfase à alfabetização de
jovens e adultos, tanto por ter sido este enfoque o que deu destaque ao trabalho desenvolvido
por Paulo Freire (culminando em seu exílio no Chile após o golpe militar de 1964), quanto
pelo fato de o analfabetismo ser uma das mais violentas formas de segregação sócioeducacional vividas em nosso país atualmente.
Apesar da melhoria na oferta de ensino fundamental e médio nos últimos anos, o déficit
educacional de nosso país, entretanto, é uma cruel realidade em todos os níveis de ensino. O
desemprego estrutural agravado pela reestruturação produtiva na indústria e no setor de
serviços reforçou o discurso que afirma a qualificação profissional como ante-sala do
emprego. A expansão do ensino médio da década de 1990 criou um grande contingente de
jovens concluintes do ensino médio incapazes de conseguirem um posto de trabalho, que
passaram a encarar como uma das possibilidades de ampliar essas chances a luta pelo ingresso
no ensino superior.
O que são cursinhos populares?
É no contexto dos anos 1990 que surgem diversos coletivos que se propõem a interferir nesta
realidade1. De acordo com Castro (2005a):
Cursinhos Populares são ações políticas de atores engajados em projetos e ações que têm,
como eixo, a transformação social da realidade por meio da preparação e do incentivo às
classes populares a ingressarem no ensino superior gratuito.
A principal característica dos cursinhos populares é seu público-alvo: jovens oriundos de
classes populares2. Em geral organizam-se a partir da enorme demanda reprimida por acesso
ao ensino superior, e acabam encontrando no vestibular o maior obstáculo para a continuidade
de seus estudos.
Há uma grande diversidade de estruturas organizativas, práticas pedagógicas e
posicionamentos políticos dentre os envolvidos com estes movimentos sociais:. Quanto ao
funcionamento, há aqueles cursinhos organizados no interior das universidades (muitas vezes
1
Sobre a história dos cursinhos populares no Brasil, ver as dissertações de Bacchetto (2003) e Castro
(2005b).
2
Dentre os trabalhos sobre cursinhos populares encontram-se também as nomenclaturas “cursinhos
alternativos” ou “cursinhos comunitários”. A opção por “cursinhos populares” neste trabalho justifica-se não só
por explicitar os sujeitos a quem se dirige (classes populares), mas também para deixar clara a opção pela
educação popular enquanto prática político-pedagógica.
como projetos de extensão universitária), há os que funcionam em bairros periféricos e até
alguns casos de cursinhos mantidos por prefeituras.
É bastante comum a relação com outros movimentos sociais, destacadamente o movimento
estudantil, o movimento negro, e também as comunidades eclesiais de base (Zago, 2008).
Esta matriz de influências acaba sendo entrecruzada pelo pensamento de Paulo Freire, seja
por se tratar de uma modalidade de educação não-formal, seja pela crítica da “educação
bancária”, que não problematiza os problemas vividos pelos educandos com vistas à sua
emancipação.
Perfil do estudante de cursinho popular
Primeiramente faz-se necessário situar o contexto sócio-educacional dos estudantes de
cursinhos populares. Em pesquisa desenvolvida junto a estudantes de cursinhos populares no
Rio de Janeiro e região metropolitana, Carvalho (2006) obteve o seguinte quadro: 39% dos
pesquisados tinha idade acima do previsto para a conclusão do ensino superior; 51% dos pais
tinham ensino fundamental completo e 38% das mães apenas o “ensino primário”; metade
possuía renda de menos de dois salários mínimos.
Ademais não é incomum que diversos conteúdos exigidos no vestibular jamais tenham sido
ministrados na vida escolar destes estudantes oriundos da escola pública3, em alguns casos em
virtude de terem passado todo o ensino médio sem professor de determinada disciplina, o que
evidencia o grau de sucateamento da escola pública brasileira.
As trajetórias educacionais, que acabam exercendo grande influência na subjetividade deste
estudante, são também um importante fator a se analisar. Uma trajetória escolar marcada por
repetência, evasão, preconceito de classe e racismo, acabam constituindo o que Maria Helena
Patto (1991) conceituou como “produção do fracasso escolar”. Baixa auto-estima e a crença
de que são incapazes são uma constante dentre os jovens de classes populares que sonham
com uma vaga no ensino superior. Nos dizeres de Fábio Mendes (2005):
A influência da baixa auto-estima no aprendizado do povo pobre – principalmente o afrodescendente – a grande carência de qualidade do ensino público ministrado nas áreas de
periferia (...) são apenas olhares desta realidade educacional
3
Enquanto professora de Biologia, o primeiro contato com aspectos morfológicos, anatômicos e
fisiológicos, tanto na Botânica quanto na Zoologia era frequentemente traumático para meus alunos. Menos
traumático, mas igualmente novidade, eram os tópicos de Biologia Celular e Molecular.
Vestibular e educação popular: uma relação conflitante?
O primeiro desafio que se coloca ao fazer a relação entre um curso que se propõe a preparar
para o exame vestibular e a educação popular reside no próprio caráter desta prova: tendo
seus conteúdos definidos pelas instituições de ensino superior, os quais muitas vezes nem ao
menos foram citados na vida escolar de estudantes da escola pública, como propor uma
educação crítica neste contexto? De que maneira é possível apresentar uma proposta de
emancipação dos educandos, se muitas vezes os conteúdos ministrados aparentemente não
tem a menor relevância ou referência concreta em suas vidas?
De acordo com Silva Filho (2004), os cursinhos populares são
uma
modalidade de educação popular, pois é voltada especificamente para os setores
“subalternos” da sociedade, ou organizada por esses setores. Esses setores acima referidos são
aqueles que pelos dados oficiais estão excluídos ou mais excluídos dos serviços de educação
como um todo e da Educação Superior em especial.
Entretanto, a simples reprodução dos conteúdos exigidos pelo vestibular, mesmo que para as
classes populares, não é por si só educação popular; se assim fosse, estaríamos apenas
reproduzindo, fora de contexto, os “aulões-espetáculos” dos cursinhos comerciais,
estimulando a competição entre os estudantes para “garantir a sua vaga”. Para além de
capacitar tecnicamente para a prova, é preciso pensar os papéis sociais envolvidos neste
processo. A “sociedade emperrada”, segundo Freire e Nogueira (2001)
Socializa apenas adestrando Homens e Mulheres para exercer técnicas. Nisso não existe
cidadania: existe apenas competência e competição.
O que identifica os cursinhos populares com o proposto por Paulo Freire é a problematização
do próprio conteúdo do vestibular e do caráter excludente da universidade, uma crítica à
“educação bancária”, e a abertura da possibilidade de romper as limitações a partir da
apropriação dos novos conhecimentos. De acordo com Pereira (2007):
Desta forma, percebemos como a educação popular é uma ação pedagógica que acontece a
partir de um posicionamento político de intervenção na realidade dos segmentos excluídos –
material e simbolicamente – pelo sistema hegemônico. Como vimos os PVP [pré-vestibulares
populares] procuram incidir exatamente nas classes populares, propiciando um espaço
alternativo de formação educacional, onde o vestibular aparece como um fim que abre
possibilidades que o perpassam em direção ao entendimento da realidade social em seu devir
histórico.
Quando o estudante se apropria de um conteúdo antes sem sentido (ou mesmo inexistente) em
sua vida, e contextualiza as relações sociais inerentes a este conteúdo – especialmente a
universidade e seus critérios de acesso – parafraseando novamente Freire e Nogueira (2001):
é um processo de conhecimento em que o ser humano é assumido em seu poder de superar ou
romper a limitação, a pobreza e a carência.
Na mesma obra, os autores entendem
a educação popular como o esforço de mobilização, organização e capacitação das classes
populares; capacitação científica e técnica. Entendo que esse esforço não se esquece, que é
preciso poder, ou seja, é preciso transformar essa organização do poder burguês que está aí
Da mesma forma propomos a educação no seio dos cursinhos populares, com a diferença que
ao invés de nos dirigirmos à escola básica, temos a universidade como interlocutora.
Lembremos que essa instituição tem ainda mais arraigada os valores da elite, desde os
critérios de acesso ao conhecimento lá produzido, em virtude do público que historicamente a
freqüentou e ainda hoje freqüenta.
Com esta postura crítica ao vestibular enquanto barreira de acesso ao ensino superior, muitos
cursinhos não se identificam com o rótulo “pré-vestibular”, o que os conota como
preparatórios para este exame, apenas. Em alguns casos os cursinhos preferem se identificar
como cursinhos “pré-universitários”, priorizando não o exame vestibular em si, mas a vida
universitária enquanto eminentemente política4.
Práticas e desafios em educação popular nos cursinhos
A contradição entre um cursinho que tem o a aprovação no vestibular como meta e a proposta
de uma educação crítica acaba se manifestando de diversas formas. Em primeiro lugar, no
âmbito da organização curricular, que tradicionalmente repete as disciplinas exigidas pelos
exames vestibulares. Em alguns casos, ocorre a inclusão da disciplina Cultura e Cidadania (ou
outras denominações)5, que prioriza a discussão política de temas relevantes do ponto de vista
social e cultural, conforme relatam Pereira (2007) e Santos (2005).
4
É o que propõe a Rede Emancipa, em sua carta-compromisso (consultar www.redeemancipa.com.br)
na Grande São Paulo, bem como o relatado no Rio de Janeiro por Santos (2005)
5
No caso do Cursinho Popular do Butantã, membro da Rede Emancipa de Cursinhos Populares, que
funciona no bairro do mesmo nome, em São Paulo, há a disciplina “Atualidades”. No Cursinho da Psico, que
funciona no Instituto de Psicologia da USP, o espaço correspondente é denominado “Arena”.
A presença de uma disciplina que desenvolve este assunto, por um lado revela a preocupação
em assegurar que este debate seja garantido no interior do cursinho. Por outro lado, pode
acabar fazendo com que todas as outras disciplinas não tratem do debate político
transversalmente, o que incorre no risco de propor um conhecimento descontextualizado.
Entretanto a diversidade na composição do quadro de professores, no mais das vezes
voluntários, acarreta no fato de alguns deles acharem esse debate supérfluo em relação ao
conteúdo curricular exigido pelas provas. Afirma Santos (2005):
Essa dimensão política entra nos pré-vestibulares, então, trazendo um tensionamento crucial
para a possibilidade de avanço em torno deste projeto, que é a fricção entre duas intenções que,
em alguns casos conseguem ser compatíveis, mas que em geral não conseguem convergir: o
confronto entre a politização pedagógica do trabalho que se efetiva nos pré-vestibulares e a
necessidade de preparação para o vestibular – que muitos chamam de “adestramento” para
fazer as provas.
A dificuldade dos cursinhos em garantir professores para algumas disciplinas e
consequentemente o regime voluntário de trabalho, faz com que o comprometimento com os
alguns princípios de educação popular não sejam os critérios norteadores dos professores que
se dispõem a trabalhar nos cursinhos. Há ainda outros professores, ex-alunos de cursinhos
populares, ou que fazem/fizeram parte do movimento estudantil ou outros movimentos
sociais, e tem a educação popular como eixo norteador de sua prática político-pedagógica.
Para finalizar, a contradição coloca os cursinhos populares como um projeto em disputa
permanente entre uma proposta de capacitação técnica para o ingresso na universidade, em
que os professores se enxergam fazendo um trabalho voluntário numa perspectiva assistencial
ou a proposta de um movimento social, contestador das desigualdades sócio-educacionais,
tendo como pilar a educação popular enquanto ferramenta de construção coletiva e crítica do
conhecimento e de sujeitos políticos emancipados.
Referências Bibliográficas
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