A INDEPENDêNCIA DO BRASIL E A UNIDADE
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Issn 0102-0382 • ano 121 • Nº 367 • jul/ago/set • 2013 a independência do brasil e a unidade nacional Revista do Clube Naval • 367 1 Nesta edição: operação secreta • Pág. 36 • História real e empolgante de uma ação da Marinha do Brasil contra o contrabando organizado • C-Alte Domingos Castello Branco 4 editorial • CF(IM) Osmar Boavista da Cunha Junior 6 EM PAUTA • Notas sobre acontecimentos no CN 8 alocução a independência do brasil e a unidade nacional • V-Alte Fernando Manoel Fontes Diégues 12 palestra uma opinião no congresso nacional • Deputada Perpétua de Almeida revolução na energia: petróleo e gás de xisto • Pág. 20 • A enorme importância da exploração do xisto para o potencial energético das Américas • Joel Mendes Rennó 15 transporte marítimo modal marítimo. Um desafio • CMG Luiz Paulo Guimarães 20 reserva energética revolução na energia: petróleo e gás de xisto • Joel Mendes Rennó 22 fuzileiros navais os fuzileiros navais na guerra do futuro 24 marinha do brasil besouros e helicópteros – os essenciais • CMG Paulo de Paula Mesiano 28 marinha do brasil 99º aniversário da força de submarinos • C-Alte Marcos Sampaio Olsen tilápia com batatas • Pág. 34 • Uma fábula sobre a burocracia atravancando o desenvolvimento do país • CMG José Álvaro da Costa Donato 30 abimde o alicerce da indústria de defesa • Carlos Afonso Pierantoni Gambôa 32 amazônia azul o pré-sal brasileiro e a soberania no mar • CT RM2 Marcos Poggi 33 navios da mb a surpreendente carena do nae s. paulo • CMG Sérgio LimaYpiranga Guaranys 34 fábula tilápia com batatas • CMG José Alvaro da Costa Donato 36 histórias navais operação secreta • C-Alte Domingos Castello Branco alemanha – da baviera a berlim • Pág. 42 • Outra viagem repleta de informações e de maravilhosos cartões postais • CC Rosa Nair Medeiros 42 viagens alemanha. da baviera a berlim • CC Rosa Nair Medeiros 50 segunda guerra flores ao mar • Israel Blajberg 52 fé católica papa francisco. o pastor dos jovens de espírito • Jornalista Antônio de Oliveira Pereira 54 fé católica aviagem brasileira do papa francisco e a jornada mundial da juventude • V-Alte SergioTassoVásquez de Aquino papa francisco: o pastor dos jovens de espírito • 58 reflexão as divisões humanas • Claudio Fabiano de Barros Sendin Pág. 52 • Jornalista Antônio de Oliveira Pereira. 60 filosofia monismo • CMG Walter Arnaud Mascarenhas a viagem brasileira do papa francisco e a jornada mundial da juventude • 66 direito o exercício da cidadania na era digital e a democracia participativa • Dr. Xisto da Silva Matto 70 personalidade simch venerável mestre • CMG Walter Sanches Sanches 73 homenagem um exemplo ao país • CMG Luiz Sérgio Silveira Costa 2 Revista do Clube Naval • 367 74 última página opinião do leitor – Cartas dos leitores Revista do Clube Naval • 367 3 Pág. 54 • V-Alte SergioTasso Vásquez de Aquino. Dois artigos sobre o Papa Francisco, desde a sua posse até a vinda ao Brasil. A Revista do Clube Naval, uma publicação trimestral, não tem como objetivo divulgar a notícia cotidiana nem o conteúdo de interesse do veículo de massa. Todavia, tem excelente oportunidade da análise tranquila e profunda dos fatos, de suas causas e consequências, e assim, exercer a capacidade, exclusiva dos serem humanos, de garantir o aprendizado pela experiência, promover e divulgar a evolução tecnológica ou de ciência humana. Alguns desses fatos têm a propriedade de despertar continuado interesse por séculos. É o caso da Independência do Brasil, cujo aniversário o Clube Naval celebrou na Seção Solene da Semana da Pátria. Tivemos a ocasião de assistir à excelente palestra proferida pelo Almirante Fernando Manoel Fontes Diegues, renomado historiador, que trouxe à consideração o tema sempre atual e relevante da Unidade Nacional. Prosseguimos, ainda neste número a dividir o interesse dos nossos leitores entre a cultura artística e social e a cultural profissional. A seção “Em Pauta” faz sempre o registro da história atual do nosso clube, da nossa sociedade, da nossa eterna reverência aos que se tornaram heróis no sacrifício pela Pátria. Prosseguimos atualizando notícias sobre estudos e ações relevantes àqueles como nós, que temos amor à profissão. A Escola de Guerra Naval, através do CEPE, vem cuidando de forma estável da evolução da atualidade, em face às perspectivas da Guerra do Futuro. Está consolidada a ideia de que, sem uma base industrial de defesa fortalecida e sem o investimento em Ciência Tecnológica e inovação, não haverá defesa possível. É um desafio e uma missão para toda a nação brasileira, muito além dos limites das Forças Armadas. A garantia da nossa unidade nacional é, ainda hoje, dever e tarefa de todos os brasileiros. CF (IM) Osmar Boavista da Cunha Junior Nossa Capa Issn 0102-0382 • ano 121 • nº 367 • jul/ago/set • 2013 a independência do brasil e a unidade nacional ••• Clube Naval Av. Rio Branco, 180 • 5º andar Centro • Rio de Janeiro • RJ Brasil • 20040-003 Tel.: (21) 2112-2425 Presidente V-Alte (FN) Paulo Frederico Soriano Dobbin Diretor do Departamento Cultural CF(IM) Osmar Boavista da Cunha Junior ••• José Bonifácio Homenagem a seus ideais na construção do Brasil independente. • Unidade nacional • Fim da escravidão. • Distribuição justa da riqueza. • Educação para todos. Editoria CF(IM) Osmar Boavista da Cunha Junior CMG Adão Chagas de Rezende Jornalista Responsável Antônio de Oliveira Pereira (DRT-MT. Reg. 15.712) Direção de Arte e Diagramação AG Rio - Comunicação Corporativa [email protected] (21) 2569-9651 Produção José Carlos Medeiros Adriana Guanaes Diretor Cultural Atendimento Comercial Tel.: (21) 2262-1873 [email protected] ••• As informações e opiniões emitidas em entrevistas, matérias assinadas e cartas publicadas são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Não exprimem, necessariamente, informações, opiniões ou pontos de vista oficiais da Marinha do Brasil, nem do Clube Naval, a menos que explicitamente declarado. A transcrição ou reprodução de matérias aqui publicadas, em todo ou em parte, necessita da autorização prévia da Revista do Clube Naval. ••• Os artigos enviados estão sujeitos a cortes e modificações em sua forma, obedecendo a critérios de nosso estilo editorial. Também estão sujeitos às correções gramaticais, feitas pelo revisor da revista. As fotos enviadas através de e-mail devem medir o mínimo de 15cm, em jpg ou tif, com 300dpi. ••• 44 Revista do Clube Naval • 367 Revista do Clube Naval • 367 55 CLUBE NAVAL REVERENCIA HERÓIS DA MARINHA, MORTOS DA SEGUNDA GUERRA • Celebrada na Igreja da Candelária, dia 10 de julho de 2013, às 10h, a Missa Solene em memória dos integrantes da Marinha do Brasil e da Marinha Mercante que perderam suas vidas. Após a Missa, a homenagem continuou com o tradicional almoço, no Salão Nobre da Sede Social. SESSÃO SOLENE EM HOMENAGEM À SEMANA DA PÁTRIA • No Salão dos Conselheiros da Sede Social, às 16h do dia 3 de setembro, durante a Sessão Solene em homenagem a Semana da Pátria, o V-Alt (Ref) Fernando Manuel Fontes Diegues proferiu palestra sobre Unidade Nacional. Complementando a solenidade, o coral do Clube Naval, sob a regência da CMG Sylvia da Costa Orazen, interpretou cânticos cívicos alusivos à data. Presentes, entre outras autoridades militares, Alte Leôncio, Alte Karam e o Presidente do Clube Naval, V-Alte Dobbin. VISITA À HELIBRaS E À EMBRAER • Uma delegação de 25 sócios visitou, nos dias 18 e 19 de setembro de 2013, as empresas Helibras e Embraer, como parte do programa de conhecimento da indústria brasileira de Defesa, setor aeronáutico. A Helibras mostrou uma linha de montagem do helicóptero EC-725, Super Cougar, do lote de 16 unidades entregues à Marinha brasileira. A Embraer apresentou a influência no mercado aeronáutico, com ênfase no ramo da Defesa e o programa de modernização das doze aeronaves A-4, do Esquadrão VF-1 da Marinha brasileira, o controle de qualidade e a criatividade da empresa. Na foto, a partir da esquerda: Sergio Dias da Costa Aita (Segurança e Defesa – Embraer), CMG Ney Moraes Carneiro, CMG Olney Ladeira de Souza e CMG Jocelei dos Santos Magalhães. eventos e comemorações do clube naval INAUGURAÇÃO DO 44 º SALÃO DE BELAS ARTES • Em 17 de setembro, às 18h, no Salão dos Conselheiros da Sede Social, aconteceu a entrega de premiações aos artistas plásticos participantes do 44º Salão de Belas Artes. Foram entregues medalhas e prêmios, onde destacamos o Prêmio Aquisição da Obra, pelo Centro de Capitães da Marinha Mercante. Foi também oferecido o Prêmio UCAI que permitiu a exposição da obra no Vaticano. Logo após, no Salão Nobre, foi inaugurada a exposição, com um coquetel servido aos artistas e convidados.Veja a relação completa de premiados e aprecie todas as obras expostas em www.clubenaval.org. br/, no link 44º Salão de Belas Artes. 66 SECRETARIA ITINERANTE • Dia 23 de agosto, no auditório do CIAW, o Presidente do Clube Naval,V-Alte Dobbin, juntamente com os Diretores, proferiram palestra para oficiais alunos de diversos quadros, com a intenção de angariar novos associados para o clube. Com essa visita obtivemos mais de 50 novos sócios. Revista do Clube Naval • 367 Revista do Clube Naval • 367 77 eventos e comemorações do clube naval ALOCUÇÃO A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL E A UNIDADE NACIONAL Essência da alocução do Vice-Almirante Fernando Manoel Fontes Diégues, no Salão Nobre do Clube Naval, durante as comemorações da Semana da Pátria. A Independência do Brasil foi um desses momentos decisivos, surgido de um impasse, da crise de um sistema, que sempre agita a vida das nações. Foi um momento de transição, um marco político notável na evolução da sociedade brasileira, que se credenciou, assim, após 300 anos de domínio e exploração coloniais, a assumir livremente o seu futuro. Nada tem de escandaloso – muito pelo contrário, faz parte de sua índole – que a colonização tivesse seguido um rumo indiferente à formação de uma sociedade mais integrada, ciosa da própria identidade e, muito menos ainda, que fosse inspirado em um projeto de fundação nacional. O Brasil não fora criado para ser uma nação. Não era essa, nem se poderia esperar que fosse, a intenção de seus descobridores. Embalada no desejo de mudanças, a ruptura com o passado colonial teria de ser ao mesmo tempo uma exigência e um produto natural da Independência. Descortinavam-se, então, à sombra do movimento, novas perspectivas e ideias sobre o futuro do Brasil, entre as quais as de José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência, ministro do Reino e Estrangeiros quando é proclamada a Independência. Talvez ninguém melhor do que ele tenha exposto uma visão tão clara e inovadora – até mesmo tão ousada – da importância histórica desse momento. Talvez ninguém mais do que ele tenha percebido e ressaltado a oportunidade que então se desenhava para – segundo suas próprias palavras – a “regeneração política da nação brasileira”. Uma visão em que a realização da Independência não se resumiria a ser um fato isolado, fechado em si mesmo, restrito à pura Na primeira Sessão Solene da atual diretoria do CN, a partir da esquerda, CMG (IM-Ref) Haroldo Rodrigues da Cunha Fonseca, AE (RM-1) Alfredo Karam, V-Alte Dobbin, Presidente do CN, AE (RM-1) Mauro Cesar Rodrigues Pereira e V-Alte Ilques Barbosa Júnior, Comandante do 1º DN 88 e simples separação de Portugal. Pautar-seia pelos critérios e ditames de um projeto político voltado para a superação do passado colonial – e, não seria um exagero acrescentar: a construção de uma nova nação. A Independência, para o Patriarca, se inscrevia no curso da história como fato gerador de uma nova etapa de vida da nação. Uma etapa cujo sentido as palavras de seu discurso de despedida por ocasião do regresso ao Brasil já revelavam: o Brasil é país talhado para uma “nova civilização”; é a terra ideal “para um grande e vasto Império”. Para a consumação, no entanto, desse desígnio, certas condições deveriam ser satisfeitas. A instrução dos brasileiros era uma delas. Era preciso – afirmava o Patriarca – criar uma extensa e bem distribuída rede de ensino que transmitisse ao povo “os conhecimentos que são indispensáveis ao aumento da riqueza e à prosperidade da nação”. Também não ignorava a necessidade de outras medidas ajustadas ao futuro que antevia para o Brasil. Seria imprescindível reformar costumes e padrões de convivência social; estreitar os laços entre as províncias e garantir a unidade nacional; abrir caminhos que conduzissem a uma sociedade mais homogênea, guiada pelas luzes da razão. Uma dessas medidas contemplava a abolição da escravatura, um “luxo inútil”, que corrompia e perturbava o sossego da nação. Nenhum país precisava – argumentava o Patriarca – de “braços estranhos e forçados para ser rico e cultivado”, pois, “a Revista do Clube Naval • 367 riqueza só reina onde imperam a liberdade e a justiça, e não onde moram o cativeiro e a corrupção”. A sobrevivência do Estado e a unidade nacional, para ele, e outros próceres da Independência, dependeriam da supressão dos males e distorções vindos da fase colonial. O povoamento da terra, a administração da justiça, o progresso e a paz interna estariam ameaçados sem a remoção dos entraves sociais e culturais do passado colonial. A Independência deveria traduzir-se, enfim, na consumação de um projeto político de afirmação nacional; na criação de uma nação livre e soberana. A legitimação do governo central e o fortalecimento da unidade nacional apresentavamse, assim, na visão do Patriarca, como instrumentos decisivos da consumação desse projeto. A Independência do Brasil não seria, no entanto, obra de um instante. É certo que, com o Grito do Ipiranga, ela se formalizaria sem quaisquer reservas; mas, já há algum tempo, o anseio de emancipação se alastrara e se fortalecera pelo país afora; e adquirira impulso, com a chegada ao Rio de Janeiro, em dezembro de 1821, dos decretos das Cortes de Lisboa que confirmavam de uma vez por todas o propósito da assembleia portuguesa de forçar o Brasil a retornar à condição de colônia. Guindado por D. João, em 1815, à categoria de Reino Unido, o Brasil desfrutava desde então, pelo menos sob o ponto de vista jurídico, do mesmo status político de Portugal. Um dos decretos tornava evidente a intenção das Cortes de suprimir quaisquer vestígios de um poder central no Brasil que pudesse assegurar sua integridade e a união entre as províncias. Determinava a extinção dos tribunais superiores e de várias outras repartições centrais, criadas no tempo de D. João. Os Governadores das Armas ficariam diretamente subordinados a Lisboa. Os governos provinciais seriam privados dos meios indispensáveis à manutenção da ordem e à administração. A aplicação do decreto – protestava José Bonifácio – traria o desmembramento do Brasil “em porções desatadas e rivais, sem nexo, e sem um centro comum de força e unidade”. As Cortes, por outro decreto, rematavam Revista do Clube Naval • 367 a liquidação entrevista no primeiro. Ordenavam o regresso de D. Pedro a Portugal, de onde deveria viajar pela Europa para aperfeiçoar a formação. À partida de D. Pedro seguir-se-iam certamente – retrucava o Patriarca – a desordem nas províncias e a ruína política do país. O grandioso futuro reservado ao Brasil não poderia prescindir de “uma mola central de energia e direção geral”, da articulação de suas “A riqueza só reina onde imperam a liberdade e a justiça, e não onde moram o cativeiro e a corrupção.” Brasil e às Nações Amigas (agosto). Passa pelo 7 de Setembro. Tornar-se-á definitivamente consciente de si mesma com a proclamação de D. Pedro como Imperador Constitucional (12 de outubro), sua coroação e sagração (em 10 de dezembro). A esperança de que a paz e a concórdia pudessem reinar entre o Brasil e Portugal se desvanece de uma vez. Como em todo ambiente de crise, a conjuntura destilava um sentimento de incerteza em relação a seus desdobramentos; e de urgência, quanto às decisões que a liderança brasileira deveria implementar. Seria ingênuo esperar que José Bonifácio partes a um governo central responsável por reger a grande orquestra das províncias. A tais decretos seguir-se-iam outros de natureza militar. Um deles estipulava o envio de novas tropas portuguesas a Pernambuco e ao Rio de Janeiro. A política das Cortes viria estimular a indignação e a revolta dos brasileiros. A Independência irá se consumar na sequência de acontecimentos que começa com a decisão do príncipe de ficar no Brasil (9 de janeiro de 1822) e com a criação do Conselho de Procuradores Gerais das Províncias (16 de fevereiro). Irá se afirmar com a convocação da Assembleia-Geral Constituinte e Legislativa (3 de junho) e os Manifestos aos Povos do 99 os independentistas não fossem depararse com a reação do velho poder colonial, com o antagonismo dos interesses que a emancipação contrariava. E, de fato, por seu alcance e implicações, a consolidação da Independência não seria uma tarefa fácil, livre de percalços e transtornos no caminho. Não se faria tranquilamente, sem resistências, sem resvalar para o conflito. O inconformismo das Cortes e de seus partidários no Brasil não tardaria a se manifestar pela força das armas. A Bahia iria transformar-se em um ponto focal importante na manobra das Cortes para a recuperação da ex-colônia. O principal objetivo militar das Cortes seria o controle da de oposição à Independência estavam no Bahia. Em carta remetida ao rei, o general Malitoral. O transporte por terra era precário, deira destacaria a importância estratégica da se já não fosse inviável. O envio de tropas e capital da província: “cumpre-me informar a equipamentos só teria condições de efetivarV. M.” – dizia o chefe português – “que a cidade se com relativa segurança pelo mar. da Bahia, pela sua situação geográfica, pelo O mar é o caminho pelo qual a Indepenseu comércio e população, é um daqueles dência poderia ser levada às províncias mais portos do Brasil que muito convém conservar distantes; mas, por outro lado, é dele também, para assegurar a estabilidade do reino”. que partiriam as tentativas portuguesas de Situada a meio caminho entre as proresgate do Brasil. A liderança brasileira não víncias do Norte e do Sul, na Bahia iriam ignora que estão sendo enviadas novas troconcentrar-se as tropas e navios que estavam pas ao país. Não descarta a possibilidade de sendo ou ainda seriam enviados ao Brasil. No um ataque proveniente diretamente de Lisfinal de 1822, novos batalhões e mais de dez boa ou, ainda, conduzido pelas forças navais navios de guerra se somariam àqueles que já estacionadas na Bahia e na Cisplatina. se encontravam nas águas do Recôncavo, enConsiderando esse cenátre eles, a poderosa nau D. João VI. Lord Almirante rio, José Bonifácio insiste na Dominando a Bahia, poderia o Thomas Cochrane, partido português usá-la como tram- marquês do Maranhão, necessidade de o país dispor polim para a recuperação do resto comandou a primeira de uma Marinha. Em uma de esquadra brasileira do Brasil; ou, no caso de a recupena Guerra da ração mostrar-se inexequível, adotar Independência a proposta separatista apresentada nas Cortes pelo deputado Soares Franco: “conservaremos algumas províncias ao norte do Brasil, pelo menos; faremos um comércio útil com as outras, se imperiosas circunstâncias as separarem”. Também não seria desprezível a ameaça à unidade nacional representada pelas forças estacionadas nas províncias do Norte – Grão-Pará, Maranhão e Piauí – onde os Governadores das Armas rejeitavam a autoridade de D. Pedro e se opunham à Independência. Esse quadro nebuloso abrangia ainda a Cisplatina. Uma parte da tropa ali estacionada se rebelara contra D. Pedro e ocupava Montevidéu. Navios de guerra da Coroa suas cartas a Felisberto Caldeira Brant Pontes, portuguesa estavam na capital e em outros Encarregado de Negócios do Brasil em Lonportos da Cisplatina. A fidelidade dessa dres, anuncia que um dos “pontos essenciais” força à causa brasileira não era garantida, a cujo atendimento o Governo então se como mais tarde se verificaria, com a revolta dedicava era a “defesa exterior deste Reino”. e a adesão às Cortes dos comandantes de Faltava ao Brasil, no entanto – observava alguns desses navios. o Patriarca – maior experiência das lides O governo brasileiro teria de prepararnavais. Só o tempo poderia permitir que a se para enfrentar as ameaças vislumbradas Marinha chegasse “ao estado que reclama a no cenário. Ele demandava uma resposta a dignidade e a grandeza deste Império”. várias questões: como neutralizar as forças Um mês depois, em outra carta enviada a enviadas de Lisboa? Como convencer as Brant, o ministro já não crê ser apenas necesprovíncias do Norte a se unirem ao resto sária, mas também urgente, “a prontificação do Brasil? Como obrigar a tropa e os navios de uma força marítima tal no Brasil, que possa portugueses a deixarem a Cisplatina? obrar em massa ou subdividir-se pelos diversos Uma das medidas prioritárias para isso, pontos da costa, segundo as ocorrências”. seria a organização de uma Marinha, exigênA liderança política do Brasil indepencia natural da vastidão do espaço em que a dente não se vê diante de situações ou de influência e a vontade do poder central dehipóteses conflituosas com maior ou menor veriam refletir-se. Os focos mais importantes probabilidade de ocorrência. Ela se depara 10 10 com uma ameaça de contornos bem nítidos e consistentes, com relação à qual deve conceber o papel da Marinha. O exame desse papel, no entanto, não é tarefa exclusiva da liderança política ou dos chefes navais da Independência; nem se detém na consideração das circunstâncias do momento. Não se refere apenas ao perigo iminente representado pelas forças fiéis às Cortes. Transcende o horizonte político da simples separação de Portugal e se configura sob a forma de uma visão de longo alcance projetada na história. Hipólito José da Costa é um dos que, em vários de seus artigos no Correio Braziliense, privilegia essa visão. Em sua opinião, o papel da força naval brasileira não poderia limitarse à neutralização da esquadra portuguesa. Era muito possível, que, se o Brasil não dispusesse de “uma esquadra proporcional à sua extensão de costas e multiplicidade de portos” – escrevia o jornalista – fosse insultado “até por um bando de corsários que deseje roubar-lhe suas riquezas; e, muito mais é de recear, nesse caso, o ataque da parte de alguma nação que possua forças marítimas”. Seria um “descuido injustificável” – concluía – o Brasil “declarar-se nação independente, e não adquirir os meios de sustentar essa independência; e os meios não são outros senão a criação de poderosa força naval”. As dificuldades relativas à formação de uma Marinha teriam de ser avaliadas e superadas sob a pressão do tempo e dos acontecimentos. O material flutuante existente no Rio de Janeiro, remanescente da armada portuguesa, é requisitado. Intensificam-se nos estaleiros os trabalhos de construção e reparos navais. É aberta uma subscrição popular para a compra de navios. O próprio imperador adquire e doa ao estado o brigue Caboclo. Recorre-se ao voluntariado brasileiro. Iniciam-se as negociações para a contratação de oficiais e marinheiros estrangeiros, que viriam reforçar a nascente Marinha brasileira. Não vou aqui abordar, em toda a sua extensão e de forma detalhada, a campanha naval da Independência. Mas acredito que seria oportuno relembrar algumas das consequências mais significativas da atuação da Marinha na Independência. A esquadra organizada no Rio de Janeiro tem um papel decisivo no desfecho da guerra. A intervenção da Marinha nas províncias cujos governos se declaravam fiéis às Cortes Revista do Clube Naval • 367 e se opunham à Independência acentua o desequilíbrio de forças a favor dos brasileiros, e acelera o processo pelo qual a posição dessas províncias se torna insustentável. A chegada da esquadra brasileira às águas da Bahia neutraliza a força naval portuguesa e dissipa as esperanças de Madeira. No Maranhão, um navio de guerra remata a derrota das forças fiéis às Cortes e consuma a adesão da província à Independência. No Pará, a Independência é proclamada graças ao impacto político e moral da presença do navio de Grenfell ao largo de Belém. Na Cisplatina, os navios brasileiros se impõem, no combate, aos do Brigadeiro D. Álvaro da Costa, e constrangem o chefe português à capitulação. É essencialmente o mesmo o efeito da intervenção da Marinha nas províncias: a criação de uma descontinuidade estratégica, assinalando a aproximação, como na Bahia, ou o próprio desfecho da luta, como no Maranhão. A intervenção não tem apenas consequências de ordem militar. Com a Marinha, um elemento extrarregional, estranho ao dia a dia das províncias, irrompe nos cenários de conflito. Traz às províncias a imagem, materializada nos navios de guerra, de um poder distante, mas ágil e resoluto. Reforça o conteúdo e a dimensão nacionais da luta pela Independência. Nenhum outro instrumento de ação teria melhores condições de conferir ao conflito nas províncias um sentido político tão convincente de afirmação da integridade e da unidade nacionais. Pode parecer, à primeira vista, que o processo da Independência e consolidação da unidade nacional nada tenha a nos dizer sobre o tempo presente. Quase dois séculos depois, são outros os problemas que enfrentamos, as aspirações que acalentamos, as circunstâncias e dilemas que balizam a presença do Brasil no cenário mundial. Esse cenário, marcado por importantes transformações nas relações de poder entre as nações, na economia mundial, no campo da tecnologia, no panorama dos valores e tendências culturais, o Brasil luta por progredir, a despeito dos sobressaltos naturais do caminho, na construção da sociedade livre, justa e solidária de que nos fala a Constituição. Somos um país sem contenciosos políticos a superar, sem intenções agressivas ou expansionistas em relação a outros países; mas, levando em conta os ensinamentos da história, seria muito provavelmente um grave erro pensar, que, nesse mundo instável e nervoso, a construção dessa sociedade possa prosperar sem nunca deparar-se com embaraços ou pressões externas – sobretudo se a desejamos construída a partir de nosso esforço criativo, de nossos ideais e opções. O Brasil precisa, por isso mesmo, como precisou na Independência, de uma Marinha em condições de sugerir e acentuar uma imagem confiável da vontade política do Estado brasileiro. Uma Marinha capaz de contribuir, nesse mundo globalizado, para a manutenção da paz e da segurança internacionais; mas, também, capaz de inibir, se necessário, iniciativas restritivas ou hostis à liberdade de ação indispensável à construção desse futuro que almejamos para o Brasil. Não uma Marinha consagrada à satisfação de ambições de domínio imperial ou conquistas territoriais; mas, sim, uma Marinha capaz de garantir, em seu campo próprio de atuação, a continuidade e a segurança do processo de amadurecimento do Brasil como nação. Esse processo se prolonga aos nossos dias, pois, no fim de contas, uma nação é um projeto de vida coletivo em permanente execução. Não existe um momento da história Treino da Armada Imperial do Brasil, em meados da década de 1870. Revista do Clube Naval • 367 11 11 em que possa ser vista como “pronta”. Um dos mais importantes historiadores do século XX, o francês Fernand Braudel, observou, certa vez, em um de seus livros, que a história não se reduz a uma simples coleção de fatos excepcionais ocorridos no passado, condenados a jamais se repetirem. “O verdadeiro objetivo da história” – escreveu Braudel – “não é, talvez, o passado – esse meio – mas o conhecimento dos homens”. Daí, reconhecido o objetivo, ele propõe uma singela, mas sugestiva, definição para a história: é “o estudo das sociedades graças ao passado, esse ‘meio’”. O processo de elaboração da Independência e consolidação da unidade nacional – esse passado sobre o qual procurei debruçarme e destacar alguns de seus pontos mais cruciais – tem alguma coisa a nos dizer sobre o tempo presente. Como um marco político notável na formação da nacionalidade brasileira, ele nos leva a renovar, nesta era de transição e incertezas, a fé no vigor e no destino dessa nacionalidade. Ao iluminar e colocar em evidência a atuação da Marinha em uma etapa tão decisiva da história do Brasil, reforça nossa convicção no papel que lhe cabe, e sempre caberá, na concretização de nossas aspirações nacionais. Refulge, assim – esse passado – como se fosse inspiração para os desafios de nossos dias. Nossa homenagem e nosso reconhecimento aos heróis da Independência. Eles nos legaram, muitos com o sacrifício da própria vida, exemplos de abnegação e amor ao Brasil. Um patrimônio que não deve ser esquecido pelas gerações que vão nos suceder e viver o Brasil e a Marinha do século XXI; pois, uma nação não se constrói no vazio, não amadurece sem a lembrança inspiradora dos feitos de seus antepassados. n UMA OPINIÃO NO CONGRESSO NACIONAL PALESTRA S ou da Amazônia, uma região cobiçada pelo mundo. Nasci em um dos seringais mais distantes, já fronteira com o Peru. Costumo dizer que sou de um estado, o Acre, que é hoje a porta de entrada do Brasil para o Pacífico. E desde jovem aprendi o quanto é necessário defendermos o patrimônio nacional e darmos o devido valor para quem trabalha em prol do Brasil. Sei que aqui também, neste ambiente, estão pessoas compromissadas, que dedicam sua vida a darem o melhor de si, cujas empresas contribuem com o desenvolvimento e com a geração de empregos, e que ajudam na elevação da capacidade do Brasil em resguardar sua soberania e independência nacional. Eleita pelo PCdoB, ao chegar ao Congresso Nacional, vi com maior grandeza o quanto é necessário fortalecermos as ações de Estado e o empresariado nacional. E nesse caso específico, as estruturas que dão suporte direta e indiretamente ao Sistema de Defesa carece de um olhar especial e dedicado do Poder Executivo e ao Poder Legislativo. Ao presidir a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, no ano passado, decidi que ela estaria inteiramente a serviço de um intercâmbio entre suas duas áreas: a política externa e a defesa. Assim aprovamos um plano de trabalho que, entre outras iniciativas, apontava para a realização de dois grandes eventos no sentido de reunir os principais formuladores, executores e especialistas dessas duas áreas de responsabilidade daquela comissão. Fizemos então, em 2012, um grande evento no parlamento para debatermos com especialistas a realidade e os desafios da Política e da Estratégia Nacional de Defesa. Alguns dos senhores lá estiveram. Chamamos o governo, as universidades, os empresários e a sociedade. Percebemos que avançamos em alguns pontos, mas a certeza tirada daquele momento é que se faz obrigatório a conquista de novos desafios. E nesse aspecto um dos temas que mais me chamaram atenção é o desafio empresarial nos produtos de defesa. Por ser um tema estrategicamente delicado, que envolve ciência e tecnologia, soberania nacional e valorização da nossa indústria, é que decidi dar um passo a mais. Criamos a Subcomissão Especial de Acompanhamento dos Projetos Estratégicos das Forças Armadas. Que segundo palavras do ministro da Defesa, Celso Amorim, em recente entrevista para o jornal da CREDN, afirmou: “o fato de o Legislativo ter uma subcomissão para tratar desses temas, é de extrema importância... É uma grande novidade neste ano”. Nessa subcomissão estamos acompanhando os programas iniciais da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. O Prosub, o avião KC 390, o helicóptero EC-725, a compra do Guarani e o lançador de mísseis Astro 2020, entre outros de vital importância para as Forças Armadas, que garantem a produtividade da indústria nacional de defesa. No acompanhamento da execução desses programas, ora interagindo com o governo, ora com estudiosos e empresários, pretendemos, ainda este ano, propor ao Palácio do Planalto um conjunto de medidas que deem mais condições de estruturação e competitividade das empresas, como por exemplo, a formação do decreto que institui o Regime Tributário das Indústrias de Defesa brasileiras, além de ações que fortaleçam o Plano de Articulação e Equipamentos de Defesa (PAED). Já identificamos que nosso maior desafio é garantirmos permanentes fontes orçamentárias para as três forças e condições de financiamento que atendam às necessidades das indústrias de produtos de defesa. Esse é o nosso foco! “Entre as 20 maiores economias do A lógica mais correta é a de que os recursos das Forças Armadas não podem ser vistos e nem tratados como meros gastos, mas, como investimento estruturante de longo prazo. 12 Revista do Clube Naval • 367 Foto de Renato Araújo Palestra efetuada pela Deputada Perpétua Almeida, do PC do B do Acre, em 8 de agosto de 2013, na FIRJAN, e aqui reproduzida com a sua autorização. mundo, só investimos em defesa mais que duas delas”, segundo disse o próprio ministro da Defesa, Celso Amorim, em depoimento no Congresso brasileiro. Mesmo assim, lamentavelmente, o governo brasileiro, por conta da sua política econômica fez recentemente mais um contingenciamento no orçamento da Defesa de cerca de um bilhão de reais. O orçamento do Revista do Clube Naval • 367 ministério passou então de R$ 18,7 bilhões para R$ 14,2 bilhões em 2013. Para um país com as nossas características geográficas, que é liderança na América Latina, referência no hemisfério sul e que sonha com uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, essa decisão do governo é desalentadora. Para não dizer, assustadora! 13 Mas isso deve nos impulsionar a lutar para que o Executivo repense essa medida. E precisamos, com a máxima urgência, travar esse debate no Congresso brasileiro, envolvendo mais atores nesse esforço conjunto. Para mim, a lógica mais correta é a de que os recursos das Forças Armadas não podem ser vistos e nem tratados como meros gastos, mas como investimento TRANSPORTE MARÍTIMO linhas de financiamento que garantam nosestruturante de longo prazo. sas empresas em patamar cada vez mais Ao investirmos em pesquisas e desenconsolidado no cenário internacional, onde volvimento de equipamentos de uso dual, as reais garantias a serem exigidas sejam estamos investindo no Brasil. Estamos o seu principal patrimônio: o patrimônio melhorando substancialmente os níveis intelectual, a sua criação. qualitativos da sua educação, inserindo o É urgente, então, que esse modelo de fiBrasil no seleto grupo de nações científica e nanciamento seja repensado. Tenho compartitecnologicamente avançadas. E é com essa lhado essa preocupação com vários parlamenpreocupação que iniciamos duas importantares, com a Secretaria Executiva do Ministério tes articulações legislativas em andamento da Defesa – em audiência direta com o dr. Ari na Câmara dos Deputados. Matos – e conversas já iniciadas com A primeira é uma emenda, já o ministro da Ciência e Tecnologia, apresentada por mim em mediDr. Marco Antonio Raupp. Agenda das provisórias que tramitam no também importante para tratar do Congresso, onde propomos que o assunto será com o presidente do direito de propriedade intelectual BNDES, Luciano Coutinho. e industrial sirvam de garantias A outra ação, também de enverno acesso aos programas de figadura importante, é uma emenda nanciamento. que apresentei no projeto de Lei da Ora, se sabemos que a capaciMineração que começa a ser debatitação técnica é demorada e cara, da no Congresso, neste semestre. a permanência de profissionais no A emenda garante que uma setor é dispendiosa e a concorrên- Ministro da Defesa, cia internacional é acirrada, então Celso Amorim parcela dos royalties da mineração possa constituir um fundo para temos que buscar alternativas para financiamento, estruturação e manutenção competir em níveis mais seguros. da indústria de defesa, a exemplo do que já Ao longo de décadas o parque industrial ocorre em outros países. de defesa foi menosprezado e os que conÉ também uma forma de compensar seguiram sobreviver, de lá até aqui, tiveram as perdas nos royalties do petróleo que que, em alguns casos, cortar na própria carne tinha uma parcela importante destinada a para manterem suas estruturas de produção Defesa, mais precisamente para e seus técnicos capacitados. a Marinha do Brasil. Um Brasil forte, profissionalizado, com Outra articulação que buscapacidade de criar e construir ciência, teccamos fazer, e julgo da maior nologia e inovação, capaz de garantir a seguimportância, é garantir que não rança de todos os brasileiros e a sua própria haja mais contingenciamento soberania exige empresas preparadas para nas verbas da Defesa. Mas essa a produção de equipamentos para as Forças é uma tarefa quase inglória e Armadas brasileiras e para a exportação que precisa do envolvimento de desses equipamentos a outros países. todos, num “lobby do bem”. O Inova Aerodefesa veio em boa hora, E, nesse sentido, quero onde a Finep, por meio do Ministério de aqui registrar: temos que fazer Ciência e Tecnologia, e o próprio BNDES todo o esforço necessário para apoiam a pesquisa, o desenvolvimento convencermos e garantirmos e a inovação nas empresas de produção que os congressistas brasileiros aeroespacial, defesa e segurança. Mas suas compreendam a necessidade e exigências estão distantes das necessidades ajudem nas articulações para das pequenas e médias empresas. A exigênque a indústria nacional tenha cia de garantias patrimoniais e bancárias capacidade de atender o que para algumas empresas, chega a ser injusta. a Marinha, o Exército e a Aeronáutica Não podemos tratar – nesse caso em espenecessitam. Assim sendo, estamos garancífico – os diferentes de forma igual. Para tindo que a proteção da nossa indústria, alavancarmos nossa indústria de defesa é o engrandecimento da nossa tecnologia necessário um regime especial, onde os e a capacidade financeira das nossas emdiferentes sejam vistos de forma diferente e presas de defesa, estejam na ordem do recebam o tratamento adequado. dia dos debates legislativos. De forma decisória, faz-se necessário “O fato de o legislativo ter uma Subcomissão para tratar destes temas, é de extrema importância...” Nessas lutas: de novos parâmetros de financiamentos de nossas indústrias, de um fundo de investimento proveniente dos royalties da mineração, do não contingenciamento do orçamento da Defesa e, inclusive, da regulamentação que deve ser participativa da Lei no 12.598, registro aqui, me disponho estarmos juntos nessa luta para sermos vitoriosos. Os senhores podem contar com o meu esforço na agenda da Câmara dos Deputados. Mas lembro: precisamos de muitos outros mais. A realidade do Congresso Nacional é de um desafio de todo dia. Lá são inúmeros temas que estão sendo debatidos. Cada um deles exige de nós a responsabilidade que o Brasil precisa. Nesse cenário infelizmente a temática da defesa nacional ainda é carente e há demanda reprimida. Precisamos avançar no tempo que foi perdido. Mas no tempo do agora, podemos exigir mais de todos nós. Exigir outras visões, outros comportamentos e repactuar os compromissos recentes. Quando discutíamos recentemente o Livro Branco de Defesa no Plenário da Câmara (Pasmem! Ainda não foi votado!), muitos líderes partidários sequer sabiam do que se tratava. E percebam que ali estão a Estratégia e a Política Nacional de Defesa. Articularmos recursos perenes e um orçamento compatível com um país do BRICS é um desafio gigante, mas é a tarefa que se impõe no momento. Por isso convido a todos os envolvidos nesse tema a fortalecermos o diálogo no Congresso, sensibilizando o parlamento, mostrando o potencial das nossas empresas e as dificuldades que atravessam. Lembro: faz-se urgente garantirmos que as emendas às quais me referi inicialmente, sejam aprovadas na Câmara e posteriormente no Senado. Reafirmo mais uma vez a necessidade do “lobby do bem”, em defesa das empresas brasileiras. Portanto, senhoras e senhores, talvez não seja um grande passo o que estou fazendo ou propondo até aqui, mas tenho ciência de que ao trabalharmos em sintonia numa articulação do parlamento, do empresariado, do Executivo, dos estudiosos da academia e incentivando a sociedade a entender essa necessidade, estamos dando uma contribuição para o Brasil. n um desafio Modal Marítimo LUIZ PAULO GUIMARÃES * A emenda garante que uma parcela dos royalties da mineração possa constituir um fundo para financiamento, estruturação e manutenção da indústria de defesa, a exemplo do que já ocorre em outros países. 14 Revista do Clube Naval • 367 Embora o propósito específico seja o de abordar os estudos de viabilidade de implantação do modal marítimo como uma das alternativas que a Marinha do Brasil (MB) pode utilizar para a distribuição de material de diversas categorias, no interior da Baía da Guanabara, é oportuno enquadrar o assunto em contexto mais amplo que ajudará a fundamentar este artigo. Revista do Clube Naval • 367 15 O Brasil e o transporte marítimo internacional O transporte marítimo é responsável pela maior parte das trocas comerciais internacionais do Brasil, transportando principalmente commodities agrominerais, veículos, máquinas, e equipamentos de ponta. Cerca de 75% das trocas comerciais internacionais brasileiras são transportadas pelo mar. Embora os prejuízos por nossa incapacidade de transporte próprio sejam de amplo conhecimento, transcreve-se, para quem não teve a oportunidade de ler, alguns trechos do artigo “Brasil à mercê das multinacionais”, recentemente escrito por Washington Barbeito de Vasconcellos: “Após muitas décadas de vida, a gente se pergunta como é que certos absurdos podem se perpetuar sem a devida reação da sociedade. É o caso do setor marítimo. O Brasil não tem sequer um navio porta contêineres operando fora de suas costas. Isso gera um déficit de fretes estimado em US$ 20 bilhões anuais e deixa a nação à mercê das multinacionais do mar”. “Por qualquer critério, o país é uma das maiores economias do planeta. E como se pode pensar em uma potência sem navios? Após o auge dos anos 80, em que chegou a ter frota expressiva, dividindo com os estrangeiros suas cargas, ombro a ombro, o Brasil caiu para uma situação inaceitável”. “Com uma frota de pelo menos 12 navios, o Brasil poderia voltar ao transporte internacional de contêineres, sem subsídios, com imediata redução do déficit de fretes, gerando emprego para marítimos e metalúrgicos e ainda reduzindo o custo Brasil, pois haveria extraordinário impulso à cabotagem, com enorme redução de custos na competição interna com o caminhão”. O Brasil e sua navegação de cabotagem O Brasil tem mais de 4 mil quilômetros de costa atlântica navegável e milhares de quilômetros de rios. Entretanto, levantamento realizado em 2012 mostra o desbalanceamento dos modais utilizados na matriz de transporte, em relação à tonelagem de carga transportada: modal rodoviário – 65,6%; modal ferroviário – 19,5%; modal marítimo – 14,9%. A propósito, transcreve-se alguns trechos de um recente artigo de autoria de João Guilherme Araújo, Diretor do ILOS – Instituto de Logística e Supply Chain: “Melhorar a movimentação e distribuição de bens e mercadorias no país é condição primordial para um mercado que se pretenda competitivo. Não basta ao país ser rico em recursos naturais e matérias primas, perseguir menores custos de energia, aumentar sua capacidade industrial e desenvolver melhores processos produtivos. Há de haver um esforço direcionado a destravar o nó da ausência de adequada infraestrutura de transportes e os entraves de distribuição física de nossos produtos.” “Nesse sentido, a matriz de transporte brasileira de cargas apresenta grandes possibilidades de aperfeiçoamento e melhor balanceamento entre seus diferentes modais especialmente se levarmos em consideração a histórica concentração rodoviária brasileira. Reforçamos, desde já, que não se trata de uma disputa entre modais, mas, pelo contrário, gostaríamos de apresentar a oportunidade concreta de complementariedade e colaboração multimodal.” Interessante notar que o desbalanceamento na matriz de transporte brasileira, privilegiando o transporte terrestre, contrasta com os números apresentados no quadro a seguir, que aponta as seguintes vantagens para o modal marítimo: maior capacidade de transporte de carga; menor consumo de combustível; menos poluente; menor impacto ambiental; menor custo operacional. O transporte marítimo é o mais importante, respondendo por quase 75% do comércio internacional do Brasil. A navegação fluvial no Brasil está numa posição inferior em relação aos outros sistemas de transportes. É considerado o sistema mais barato e limpo, contudo, o de menor participação no transporte de mercadoria no Brasil. Isto ocorre devido a vários fatores: muitos rios do Brasil são de planalto, apresentando-se encachoeirados e, portanto, dificultando a navegação; alguns rios de planície, embora facilmente navegáveis (Amazonas, São Francisco e Paraguai), encontram-se afastados dos grandes centros econômicos do Brasil. Algumas iniciativas existem para um maior aproveitamento de nossa navegação interior, seja para transporte de pessoal ou de carga, sendo necessário, entretanto, que o transporte marítimo seja tratado com mais atenção. Neste particular, vamos nos ater aos projetos existentes em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em São Paulo Há muitos estudos mostrando a possibilidade de São Paulo se tornar uma cidade capaz de explorar o transporte fluvial em seus dois principais rios: Pinheiros e Tietê. O mais recente deles (2012), desenvolvido no âmbito da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Quadro comparativo entre os modais de transporte (Confederação Nacional do Transporte) MODAIS MARÍTIMO FERROVIÁRIO TERRESTRE CONSUMO DE COMBUSTÍVEIS 4 LITROS 6 LITROS (TRANSPORTE DE 1000 TON POR DISTÂNCIA DE 1 KM) EMISSÕES DE GASES (CO²) 74 GRAMAS 104 GRAMAS (TRANSPORTE DE 1000 TON POR DISTÂNCIA DE 1 KM) CUSTOS SOCIAMBIENTAIS U$$ 0,20 U$$ 0,80 (U$$ / 100 TON A CADA 1 KM) CUSTOS DE FRETE R$ 40,00 R$ 80,00 (R$ PARA TRANSPORTE DE 1 TON / 1000 KM 15 LITROS CAPACIDADE TRANSPORTE DE CARGA 1 BARCAÇA (900 TON) O Brasil e sua navegação interior O transporte hidroviário no Brasil é um setor de infraestrutura multimodal que integra o país através de seus recursos hídricos. O transporte hidroviário no Brasil é dividido nas modalidades fluvial e marítima. 16 9 VAGÕES (100 TON CADA) 35 CARRETAS (26 TON CADA) 219 GRAMAS U$$ 3,20 R$ 120,00 (FAUUSP), prevê a criação de um hidroanel de 117 km de extensão que aliaria ao transporte hidroviário obras para tratamento de lixo, despoluição das águas, combate a enchentes, criação de parques e aumento da capacidade do abastecimento de energia Revista do Clube Naval • 367 e de água em São Paulo. Interligando a rede fluvial seria construído um canal com 17 km de extensão. Concluído, o hidroanel teria a função de transportar lixo e outros resíduos urbanos, como entulho de construção, sedimento de dragagens, terra de escavações e lodo das estações de tratamento de água e esgoto. Essa carga seria encaminhada a três triportos de destino, em Itaquaquecetuba, Carapicuíba e no dique da Billings da rodovia Anchieta, em São Bernardo do Campo. O nome triportos vem de trimodal, por conta da integração prevista, nesses pontos, com o Rodoanel e o futuro Ferroanel. De acordo com o professor da FAU e coordenador do grupo responsável pelo projeto, Alexandre Delijaicov, “a meta é acabar em até 30 anos com os aterros sanitários e lixões da região metropolitana”. No entanto, as embarcações devem também transportar passageiros – moradores e turistas – e carga comercial, como hortifrutigranjeiros e material de construção civil. Com o hidroanel, estima-se, haveria redução na quantidade de caminhões, responsáveis por cerca de 440 mil viagens por dia na região metropolitana. Dessa maneira, São Paulo conseguiria cumprir a meta, prevista em lei estadual, de reduzir até 2020 as emissões de gás carbônico em 20% em relação aos níveis de 2005. rodoviário, aumentando a eficiência do transporte no Estado; aproveitamento da infraestrutura portuária já existente (exemplo: São Gonçalo e Caju - estaleiros desativados); localização de terminais fora da cidade; investimentos baixos e possíveis de serem compartilhados com outras modalidades (terminais multimodais); possibilidade de aproveitar navios existentes, adaptando-os para o transporte de cargas, reduzindo o para o caótico trânsito da cidade do Rio de Janeiro. Foi desenvolvido um projeto aquaviário para a Lagoa, onde pequenos barcos, com capacidade de passageiros semelhante a dos ônibus urbanos, cruzariam o espelho d’água. Barcos fariam as rotas entre diferentes pontos, como o viaduto que dá acesso ao Túnel Rebouças ao Corte do Cantagalo, ou da Fonte da Saudade à Praia de Ipanema, através do Canal do Jardim de Alah. custo de fabricação; transporte de carga durante todo o dia, evitando as restrições de horário da ponte; oferta de novos empregos. A MB e o modal marítimo de abastecimento Projeto de transporte público na Lagoa Rodrigo de Freitas 2010 Projeto feito por dois escritórios de arquitetura para utilizar a Lagoa Rodrigo de Freitas, na Zona Sul, como uma alternativa No Rio de Janeiro Projeto COPPE/UFRJ - 2001 (Projeto de Transporte Marítimo de Carga na Baía de Guanabara e Praias Adjacentes) Objetivos: desafogamento do trânsito; escoamento de cargas de forma mais eficiente, atendendo ao crescimento comercial, populacional e industrial no Estado do Rio de Janeiro. Benefícios: redução do fluxo de transporte Revista do Clube Naval • 367 17 Toda a estrutura de abastecimento da MB no RJ se encontra às margens da Baía de Guanabara. Antecedentes: A ideia de utilizar o modal marítimo como forma alternativa de distribuição de material armazenado nos Órgãos de de transporte, evitando o direcionamento, para o mesmo local, de viaturas com capacidade ociosa; III) tornar mais fácil gerenciar as informações relativas à tarefa entrega”; b) baseado no insucesso de experiências anteriores, o modal marítimo não deve privilegiar o transpo te de cagas em contêineres ou pallets; c) as cargas devem ser acondicionadas em caminhões e estes embarcados e deslocados via marítima até os Polos de Consumo PC (novo conceito criado de pontos de recebimento de material, concentrando uma ou mais OMC) : Estudo de viabilidade econômica do projeto Elaborou-se em 2012, um estudo de viabilidade econômica do projeto modal marítimo, com as principais conclusões: a) considerando o tempo de vida útil do projeto (30 anos) e para atender a uma mesma grade de roteiros de transporte (quadro anterior), o custo total do modal marítimo é menor do que o custo total do modal terrestre em R$ 21.946.256,00 (valor presente); b) até o 8° ano de vida útil do projeto, o cus- ConcentraçãoNúmero de OM/PC de OMC Distribuição (OD) localizados no Complexo Naval de Abastecimento (CNAb) – Av. Brasil – RJ, é antiga na MB. De 1985 a 1988 a Diretoria de Abastecimento da Marinha (DAbM) envidou esforços para a utilização do modal marítimo e, em 2005, o Centro de Controle de Inventário da Marinha (CCIM) efetuou entregas não sistemáticas utilizando embarcação do Centro de Munição da Marinha (CMM). Os itens de material eram colocados na embarcação em contêineres ou pallets e transportados até o cais onde se localizava a Organização Militar Consumidora (OMC). Além de demandar equipamentos de manobra de peso para o embarque e desembarque do material, o abastecimento não atendia à premissa de distribuição “porta a porta”, o que deixou claro que o modal marítimo não seria bem sucedido, da forma como fora realizado. (a figura ainda mostra o DepSMRJ e o DepMEMRJ como OM distintas) O projeto modal marítimo – cenário geográfico Em 2008 foi iniciado o estudo de viabilidade do modal marítimo, em bases científicas, visando sua utilização de forma sistêmica para abastecer as 166 OMC localizadas às margens da Baía da Guanabara, em complemento ao modal rodoviário. A realização do estudo foi determinada pela Secretaria Geral da Marinha (SGM) e aprovada pelo Comandante da Marinha (CM). Na SGM, a realização do estudo vem sendo coordenada, desde seu início, pelo CMG(Ref-IM) Moraes ( Reco). Sua atuação, com o apoio da SGM e DAbM, vem sendo preponderante para o desenvolvimento do projeto modal marítimo. principalmente na Ponte Rio-Niterói. Desenvolvimento e conclusão do estudo Após ter estudado a série histórica dos itens de material demandados de cada OD, ter levantado o quantitativo de recursos PC1 – Centro do RJ (AMRJ, Com1ºDN e GptNavSE e EscNav) 62 PC2 – Ilha de Mocanguê (BACS, BNRJ, ComForSub e ComForSup) 68 PC3 – Ponta da Armação (BHMN, CAMR e GNHO) 15 PC4 – Ilha das Flores (BFNIF) 7 PC5 – Ilha do Governador (BFNIG, CIACFN e DepCMRJ) 11 PC6 – Ilha das Enxadas (CIAW) 1 PC7 – Ilha do Engenho (CMASM) 1 PC8 – Ilha do Boqueirão (CMM) 1 Total 166 d) os caminhões desembarcam nos PC e abastecem as OMC, conforme grade de roteiro abaixo: Fatos geradores do estudo Os fatos geradores do estudo são similares aos de projetos outros citados neste artigo. Considerando a especificidade, destaca-se: a vulnerabilidade do abastecimento, em razão da dependência exclusiva do modal terrestre; o alto custo operacional das viaturas; os óbices para abastecimento das OMC localizadas em ilhas; a criticidade das vias terrestres, por saturação e má conservação; restrição ao trânsito de cargas por via rodoviária, 18 to total do modal terrestre é menor do que o custo total do modal marítimo; o projeto modal marítimo atinge o “break-even point” humanos e materiais existentes nos OD e nas OMC, a empresa contratada para modelar o projeto chegou às seguintes conclusões: a) para otimizar a distribuição do material fornecido pelos OD há necessidade de ser criada uma Central de Operações Logísticas (COL), com a finalidade de, em moldes sistêmicos: I) possibilitar a unitização das cargas e a elaboração de um cronograma ótimo de entrega de material; II) otimizar o aproveitamento dos meios Revista do Clube Naval • 367 entre o 8° e o 9° ano; c) durante todos os anos de vida útil do projeto, o custo operacional do modal marítimo é inferior ao custo operacional do modal terrestre. Fase atual do projeto Setembro de 2012 – foi realizado, com sucesso, um exercício de abastecimento às OM do Complexo Naval de Mocanguê via modal marítimo (foi utilizada como embarcação uma EDVM). Maio de 2013 – foi prontificada a concretagem da rampa de abicagem do Complexo Naval de Abastecimento (CNAb), indispensável ao embarque do material dos OD. Junho de 2013 – foi prontificado pelo Centro de Projetos de Navios (CPN), o projeto da embarcação a ser utilizada no modal marítimo – chata de emprego geral (CEGE) – (o projeto está em fase final de revisão pela Diretoria de Engenharia Naval). Julho de 2013 – foi prontificado e aprovado pela Diretoria de Obras Civis da Marinha o projeto básico de retificação da rampa do Complexo Naval de Mocanguê, o que permitirá, quando oportuno, que se realize o processo licitatório de obras civis. Considerações finais “Sonhar sempre, persistir muito, desistir nunca” Chega-se ao ponto crucial do projeto, qual seja, o de viabilizar recursos, principalmente: • para as obras civis necessárias à retificação da rampa do Complexo Naval de Mocanguê (atualmente utiliza-se a rampa que está sendo cedida à Petrobras); • para a construção de uma rampa na área do Comando do 1° DN; • para a construção de uma primeira embarcação, o que permitirá a implementação parcial do projeto, possibilitando que seja regularmente iniciado o abastecimento via marítima às OMC localizadas no Complexo Naval de Mocanguê. Sabe-se que os recursos são escassos, mas o desafio está aceito e não há de haver esmorecimento, pois todos que conhecem o projeto, não só os Oficiais Intendentes, mas especialmente os companheiros do Corpo da Armada, reforçam o entendimento de que o modal marítimo representará um “up grade” no Sistema de Abastecimento da Marinha. n *Capitão-de-Mar-e-Guerra (Ref-IM) Revista do Clube Naval • 367 19 RESERVA ENERGÉTICA Revolução na Energia: petróleo e gás de xisto A Joel Mendes Rennó* exploração dos recursos minerais de xisto betuminoso está promovendo, em diversos países, notável progresso no setor de energia, proporcionando expressivos resultados na produção não convencional de petróleo e gás natural. Está ocorrendo uma verdadeira revolução nessa atividade, projetando mudança significativa na geopolítica energética. Os dados e informações que pretendo apresentar, representam o que há de mais moderno no desenvolvimento dessa fonte de energia. Reservas de xisto betuminoso nos Estados Unidos, por exemplo, estão sendo exploradas vigorosamente nos últimos anos, de modo que a produção de petróleo e gás naquele país tem aumentado fortemente. Apenas neste ano de 2013, a produção local deverá ser acrescida de 3 milhões de novos barris por dia. Até pouco tempo, os Estados Unidos, maior consumidor mundial, importavam de 10 a 11 milhões de barris por dia, a fim de atender sua necessidade diária de 18 a 19 milhões de barris. Metade desse volume, 9 a 10 milhões de barris, se destina a produzir gasolina, de modo a atender sua frota de veículos de 300 milhões de unidades (automóveis, utilitários, ônibus, caminhões etc.). Presentemente, graças aos resultados do aproveitamento de xisto, essa importação já se encontra no nível de 7 milhões de barris por dia. A Agência Internacional de Energia, a mais conceituada instituição do setor, sediada em Paris, estima que os EUA deverão se transformar nos próximos 5 a 7 anos, no maior produtor mundial de petróleo, superando a Arábia Saudita e a Rússia. Prevê-se que até 2030 os norte-americanos serão importantes exportadores. O xisto é uma formação rochosa, semelhante a uma bacia sedimentar, produtora convencional de petróleo e gás, feita de sedimentos depositados há milhões de anos e que contém significativos volumes de gás e petróleo retidos no seu interior. Até cerca de 15 a 20 anos, o aproveitamento do xisto não competia em preço com a exploração convencional, daí o fato de que as reservas existentes representavam, apenas, potencial para o futuro. Mas o progresso chegou muito mais rápido do que se imaginava. Com o desenvolvimento tecnológico, descobriu-se um processo de fracionamento das rochas de xisto, liberando os hidrocarbonetos. As reservas desse mineral encontram-se a uma profundidade média de 2.000 a 2.500 metros e pela perfuração de poços verticais, combinados com a técnica de perfuração horizontal, estava aberto o caminho para uma verdadeira revolução no setor de energia. Nos poços são injetados, sob pressão, água, areias finas e fluidos de fracionamento, produtos químicos. Ao atingir a camada de xisto, essa mistura “quebra”, por assim dizer, a rocha, permitindo que petróleo e gás fluam para a superfície. Essa técnica de fracionamento encontra, naturalmente, muitos questionamentos dos ambientalistas, e nos países onde esse processo tem sido empregado, o assunto é amplamente debatido, tendo em vista o volume de água necessário e os riscos de afetar os reservatórios subterrâneos. É importante mencionar a existência de reservas de xisto em diversas nações, como China, Canadá, México, Argentina e Brasil. Assim, o atual êxito dos Estados Unidos poderá vir a ocorrer igualmente nesses países, dependendo do esforço exploratório e das condições existentes nas respectivas áreas. Outro dado significativo do sucesso norteamericano, é que até o ano 2000 o gás de xisto representava 1% da oferta de gás natural naquele mercado. Atualmente, já atinge cerca de 30%. De forte importador, os Estados Unidos passaram a ser potencial exportador e os preços de gás caíram tanto que os reflexos são sentidos até no Brasil, com a migração de investimentos em petroquímica, intensa usuária de gás, para o citado país. As maiores reservas de xisto podem estar na China, ainda que em alguns lugares a ausência de água em abundância dificulte a exploração. A China é uma prodigiosa produtora e consumidora de carvão, em que pesem os efeitos da poluição. O gás natural substitui com vantagens o carvão e o petróleo nas centrais termelétricas e em inúmeros projetos industriais. Se levarmos em conta o pré-sal brasileiro e as reservas de gás e petróleo de xisto nas Américas (EUA, Canadá, México, Argentina e Brasil), essa parte do mundo pode se transformar proximamente em um novo Oriente Médio em termos de energia. Sem exagero! Realisticamente! Como se sabe, a energia e sobretudo a sua falta podem criar tensões políticas nacionais e internacionais. O petróleo é o vilão usual. A política desse produto está tendo papel significativo nas ambições nucleares do Irã. Esse é um fato da maior importância, Se levarmos em conta o pré-sal brasileiro e as reservas de gás e petróleo de xisto nas Américas, essa parte do mundo pode se transformar proximamente em um novo Oriente Médio em termos de energia. 20 Revista do Clube Naval • 367 frequentemente noticiado. Se tanto os EUA como a China forem menos dependentes do Oriente Médio em relação a petróleo e gás, como os maiores consumidores mundiais, não terão problemas para garantir os necessários recursos. Além disso, a abundância de gás trará efeitos de redução nos preços de petróleo, em geral. No caso do nosso país, entendo que seria da maior importância formular e implantar uma política clara de desenvolvimento de pesquisas e aprimoramento tecnológico, tendo em vista prosseguir enfrentando o grande desafio da energia. Esse desafio contém oportunidades e reflexos na política energética industrial, em especial quanto a fertilizantes e indústrias de consumo intensivo de energia elétrica, como as de alumínio e a siderurgia. Altamente rico em fontes renováveis, com a sua matriz energética preponderantemente hidráulica e dependente para assim continuar, do adequado aproveitamento dos rios amazônicos, o Brasil terá necessidade de buscar no seu território e no mar, fontes de suprimento de gás e Revista do Clube Naval • 367 petróleo a preços competitivos. Já possuímos uma pequena produção de petróleo e gás de xisto no estado do Paraná, na localidade de São Mateus do Sul. É necessário, porém, fazer muito mais. Nesse sentido, temos que contar novamente com a valiosa contribuição da Petrobras, que por intermédio do seu Centro de Pesquisas, o Cenpes, possui larga tradição e competência no desenvolvimento científico e tecnológico. Informação pública recente dá conta de que estão sendo realizados trabalhos de exploração, à procura de petróleo e gás de xisto, com boas possibilidades de êxito, na bacia do rio São Francisco, no estado de Minas Gerais. A presença da energia é fundamental para o desenvolvimento dos países e a consequente existência de paz entre as nações. O Brasil com a sua impressionante segurança alimentar, produção anual 21 superior a 170 milhões de toneladas de grãos, 250 milhões de hectares agricultáveis, dos quais apenas 75 a 80 milhões utilizados, possui, além disso, vastos recursos para a produção de energia. Sem essas duas condições, que felizmente privilegiam o nosso país, segurança alimentar e energia, não há nação que possa crescer e atender às efetivas necessidades do seu povo. É da maior importância, assim entendo, prosseguir nos estudos e ações para aperfeiçoar ainda mais o nosso conteúdo de energia. E produzi-la em maiores quantidades e a preços compatíveis. Por isso, não devemos perder tempo. n Membro associado do Rotary Club do Rio de Janeiro – presidente indicado para o período 2014/2015; presidente da Petrobras – 1992/1999; presidente da Companhia Vale do Rio Doce – 1978 /1979; membro do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio – CNC; membro do Conselho de Administração da Empresa Mineração Buritirama S.A.; membro da Associação Promotora de Estudos de Economia – APEC. * FUZILEIROS NAVAIS os FUZILEIROS NAVAIS NA GUERRA DO FUTURO O Um breve comentário sobre a transformação do Centro de Reparos e Suprimentos Especiais do Corpo de Fuzileiros Navais (CRESUMAR) em Centro Tecnológico do CFN (CTecCFN) CESAR LOPES LOUREIRO* Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) assinou no dia 30 de janeiro de 2012, em cerimônia realizada no Salão 7 de Março do Comando-Geral do Corpo de Fuzileiros Navais (CFN), portaria que definiu o Centro de Reparos e Suprimentos Especiais do CFN (CRESUMAR) como instituição científica e tecnológica da Marinha do Brasil alterando, de maneira significativa, a história de uma Organização Militar (OM) de mais de 40 anos. Muito além do que uma simples modificação na sua denominação – CRESUMAR para Centro Tecnológico do Corpo de Fuzileiros Navais (CTecCFN) – essa decisão agregou àquele Centro um novo viés de atividades: executar tarefas de pesquisa, desenvolvimento, serviços tecnológicos e de inovação; e estabelecer parcerias com instituições públicas e privadas dos setores industrial, universitário e técnico-científico de interesse para o CFN, sem prejuízo, contudo, da sua vocação originária, de executar a manutenção e o abastecimento das viaturas, equipamentos e equipagens de uso pelos Grupamentos Operativos de Fuzileiros Navais (GptOpFuzNav) em todo o Brasil. Recente artigo publicado pelo VAlte (RM1EN) Marcílio Boavista da Cunha na Revista do Clube Naval no 365, sobre o 1o Seminário da Escola de Guerra Naval (EGN) “Guerra Naval do Futuro”, faculta valiosos subsídios para que se dimensione o alcance dessa transformação. Nesse artigo, o VAlte Boavista recorre a uma taxinomia corrente na Marinha americana que foi apresentada na primeira palestra daquele seminário pelo professor Ítalo Pesce: a “divisão tecnológica” própria de cada guerra: a do presente; a do amanhã; e a do futuro. Segundo essa classificação acadêmica, a guerra do presente será lutada com os meios existentes; a guerra do amanhã com os meios e os sistemas em processo de aquisição e de construção; e a guerra do futuro com os meios ainda em processo de pesquisa e desenvolvimento. Assinala ainda o VAlte Boavista que o planejamento estratégico da Marinha do Brasil contempla as necessidades da preparação para a guerra do amanhã no Plano de Articulação e Equipamento da Marinha (PAEMB) e as necessidades visualizadas para a guerra do futuro no Plano de Desenvolvimento Científico e Tecnológico 22 é da sua jurisdição, para a guerra do futuro. É um grande e novo desafio este que se apresenta a todos os Fuzileiros Navais que laboram na área do material. É evidente o longo caminho a ser percorrido, já iniciado, em 2012, logo após a Portaria do CEMA, com a organização, no CTecCFN, de um Departamento de Ciência, Tecnologia e Inovação; com a organização de uma Assessoria de Ciência e Tecnologia no CMatFN; com a abertura de lotação nesses setores para pesquisadores, engenheiros, mestres e doutores; e com a apresentação de subsídios para a realização de diversos cursos nas mais variadas áreas cientifico-tecnológicas a partir de 2014. O CMatFN e o CTecCFN firmaram desde já convênios e acordos com diversas instituições, dentre as quais se destacam o Instituto Nacional de Tecnologia (INT), a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), *Contra-Almirante (FN) da Marinha (PDCTM). Fica patente no estudo desses documentos que a base material necessária para uma Força será, cada vez mais, intensiva em tecnologia. Pode-se verificar, nesse contexto, que até 2011, as tarefas executadas pelo Comando do Material do CFN (CMatFN), tendo como OM finalística o então Cresumar, restringiam-se à preparação material do Corpo para as guerras do presente e do amanhã, realizando a manutenção, a aquisição e o abastecimento dos armamentos, equipamentos e equipagens da sua jurisdição. A partir do momento em que a Marinha do Brasil agregou a essas competências as de pesquisar, desenvolver e inovar, o CFN passou a perseguir uma nova dimensão: capacitar-se em termos materiais, naquilo que Revista do Clube Naval • 367 o Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro (CEFET-RJ) e o Centro de Tecnologia da Indústria Química e Têxtil do Serviço Nacional de Apoio à Indústria (SENAI-SETIQT), além de algumas empresas privadas. Alguns projetos começam a ser planejados, outros já estão em execução, todos rigorosamente orientados para as necessidades operativas dos Fuzileiros Navais: o desenvolvimento de um sistema de estabilização para a torre do carro de combate SK-105A2S, em conjunto com um consórcio formado pela Universidade de Campinas (Unicamp) e pelas empresas Pollo Equipamentos e Saveway, de São Paulo; o desenvolvimento de um protótipo de sistema para apoio à programação de atividades de manutenção de equipamentos da área de segurança, em conjunto com o INT e a PUC-Rio, com financiamento da Fundação Carlos Chagas Filho de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), em pleno andamento; e projeto e construção de passadeiras flutuantes para a engenharia de combate com a utilização de novos materiais, em conjunto com a Ares Aeroespacial e Defesa S.A. também em execução. Verifica-se, é bem verdade, que esses projetos iniciais, em que pese estejam voltados para as reais necessidades da Força, não constituem, ainda, a plena experiência da pesquisa inovadora, credencial que possibilitará ao novo CTecCFN ingressar, definitivamente, na guerra do futuro. São, contudo, os passos iniciais de uma trajetória irreversível, que permitirá ao CFN ampliar, de maneira significativa, a sua capacidade de combate contribuindo, também, para o desenvolvimento tecnológico da Marinha do Brasil. n Revista do Clube Naval • 367 23 marinha do brasil Besouros e Helicopteros – os essenciais Paulo de Paula Mesiano Ano de 1998, o presidente FHC, atendendo a uma solicitação de Marinha e ante à indiferença da Força Aérea (FAB), autorizou a compra pela Marinha de aviões para operarem no Nael Minas Gerais. Foi grande a alegria da cúpula da Marinha que apregoou que agora passava a ter realmente uma aviação belicosa. Ofensiva, incorporando-se aeronaves letais ao braço aéreo da Esquadra que até então só contava com helicópteros muito úteis, mas que não passavam de besouros, enquanto os A-4s adquiridos, aviões de ataque e interceptação eram vespas ferozes. O s besouros e os helicópteros são belicosos. Apesar da aparência pacífica, discreta e inofensiva, ao contrário dos aviões que, tendo um design semelhante ao das aves de rapina, sugerem ser agressivos. Os aviões não são tão letais como aparentam ser. Além de terem muitas limitações operacionais, requerem um apoio efetivo para que possam cumprir com a sua missão, tendo um custo-benefício discutível. A MB adquiriu do Kuwait os A-4 Skyhawak, que passaram a ser designados pela MB como AF-1, na versão monoplace de ataque e interceptação, e AF-1A na versão biplace de treinamento. Foi grande a euforia e a satisfação com esse novo Esquadrão que veio a se juntar aos outros oito Esquadrões já existentes, e em plena operação (cinco sediados em São Pedro d’Aldeia e os outros três em Manaus, Ladário e Rio Grande). Parecia que a Marinha tinha estreado e ganho a aviação com esse Esquadrão, um mero componente para a defesa aérea da Força Naval com a missão de interceptação e ataque. Apenas mais um Esquadrão de uma modesta mas aguerrida Aviação Naval. A Marinha havia sido pioneira na utilização de aviões em suas atividades de combate. Teve a primazia de ser a primeira a ter a aviação militar no nosso país. O presidente Venceslau Braz assinou o decreto que criou a Escola de Aviação Naval em 23 de agosto de 1916, dez anos após o voo pioneiro do 14 Bis no campo da Bagatelle em Paris, onde Alberto Santos Dumont mostrou ao mundo que se podia voar com uma máquina mais pesada que o ar. Assim foi iniciada tão importante atividade, como deve ser, pela instrução. Foram enviados ao cenário europeu na 1ª Guerra Mundial cinco aviadores navais que operaram, inclusive, em combate com a Naval Royal Air Fleet do Reino Unido. Durante transcurso da 2ª Guerra Mundial no ano de 1941 a Aviação Naval foi extinta 24 pelo presidente Getúlio Vargas para, juntamente com a Aviação Militar (do Exército), formar a Força Aérea Brasileira (FAB), ao gosto de Dohuet, Mitchell, Seversky e outros defensores do Poder Aéreo, com uma Força Aérea única, ao estilo da Luftwaffe e da Réggia Aeronáutica Italiana. A Lei nº 1.658, de 4 de agosto de 1952, deu uma nova organização administrativa à Marinha, e foi recriada a Diretoria de Aeronáutica da Marinha (DaerM), sendo o seu Diretor o Almirante Olavo de Araújo, um dos cinco aviadores navais que combateram na 1ª Guerra Mundial, e que não havia passado para o Ministério da Aeronáutica. Como a fênix, a Aviação Naval renascia das cinzas, pleiteando a Aviação Embarcada orgânica dos navios. Como em 1916, a DAerM reiniciou suas atividades ativando o Centro de Instrução e Adestramento Aeronaval (CIAAN) com a Instrução de Voo, utilizando as aeronaves e instrutores de voo do Aeroclube do Brasil, então em Manguinhos. Revista do Clube Naval • 367 Os observadores aéreos navais (OANs), como eram eufemisticamente chamados os aviadores navais, passaram a pilotar helicópteros adquiridos das mais variadas formas e fontes a partir de 1955, e começaram a voar e a operar com a Esquadra, com a Hidrografia e com os Fuzileiros Navais. O decreto do presidente da República Humberto Castelo Branco em 1965 deu uma solução salomônica ao problema: a Marinha passou a ter direito a voar aeronaves de asa rotativa (helicópteros), e a FAB através do 1º Grupo de Aviação Embarcada teve acesso ao Nael Minas Gerais, operando organicamente S-2 Fs que denominavam de P-16, os quais, durante o período de embarque passavam a ser a arma aérea do Navio Aeródromo Minas Gerais, o capitânia da Esquadra Brasileira. Renascia então com os helicópteros, e voltava a existir oficialmente a Aviação Naval que havia sido extinta em 1941. O reinício foi discreto, sem alardes, não foi saudado com a euforia com que os A-As Revista do Clube Naval • 367 25 foram recebidos, mas foi muito mais significativo, oficializou no cenário nacional, que aquelas aeronaves denominadas de OVNIs, como eram pejorativamente tratadas pela FAB, pois sabiam que eram helicópteros e que eram da Marinha e operadas por marinheiros nacionais e não por infratores da lei e da ordem, voavam legalmente. Se não fossem esses helicópteros pairando no ar, voando sobre o mar e por todo o território nacional, guarnecidos e pilotados por marinheiros, não teria a MB condições quando foram adquiridos os A-As, de ter a rapidez com que ativou e passou a operar o Esquadrão de Asa Fixa, com aeronaves bem mais simples que os helicópteros do HS-1. Os SH-3 são helicópteros atuais em uso nas Marinhas do primeiro mundo, já os A-4 são aviões muito bons, versáteis, robustos, mas são aviões da época da Guerra da Coreia. A MB não ganhou uma Aviação Naval em 8 de abril de 1998, apenas passou a contar com aeronaves de asa fixa, os A-4s cognominados de Falcões, mas bem mais simples que os SH-3, se bem que decolando e pousando de forma espetaculosa, chamam muito a atenção da mídia que sempre teve dificuldades em compreender a Aviação Naval. O nosso navio capital tido por “Belo Antonio”, referindo-se a suposta impotência porque não operava aviões, pois, por ignorância, não sabiam da operacionalidade e letalidade dos helicópteros. Os SH-3, na denominação da US Navy, os Sea Kings foram substituídos pelos MH 16, os Sea Hawk que, além da guerra antissubmarino (ASW), passaram também a fazer a guerra antinavio de superfície utilizando mísseis, bem como fazendo a transmissão de dados do seu radar para o navio controlador, o que significa uma ampliação do horizonte radar. É como se tivéssemos a antena do radar do navio na altitude de operação e distância do helicóptero. Os Guerreiros, como são conhecidos, pairam no ar com discrição e modéstia, com eficiência, eficácia e bastante letalidade, como besouros. Os besouros também pairam no ar, apesar do seu modo desajeitado de voar, o que levou certo e desavisado professor de Física a duvidar da sua dinâmica. Ele calculou o volume e o seu peso, verificou o tamanho e a resistência das suas asas membranosas, e chegou a uma conclusão apressada de que o besouro era inviável aerodinamicamente e só voava porque não conhecia as leis da aerodinâmica. A vontade de voar é muito importante, tanto que os helicópteros que são aeronaves similares aos besouros voam de acordo com as leis da aerodinâmica, porque os pilotos de helicópteros (helo drivers) são conhecidos como besouros das leis da aerodinâmica, e por terem necessidade e vontade de voar as aplicam bem, e voam melhor que os aviões porque fazem tudo que os aviões fazem e mais o que só os besouros e helicópteros são capazes de fazer. A concepção do helicóptero é anterior à do avião. O primeiro projeto de uma aeronave com características de um helicóptero é de Leonardo da Vinci (1452-1519), enquanto a concepção do avião só veio muito tempo depois. Coleóptero é um inseto que tem quatro asas, um par membranoso e um par rígido. As asas membranosas ficam recolhidas quando em repouso. É um inseto que tem asas rígidas superiores que, para os que não conhecem, pensam ser impróprias para o voo, servindo de mero estojo para as asas inferiores. As membranosas quando se juntam às superiores ou rígidas (córneas) proporcionam o voo do besouro, um inseto sui generis. Quando os besouros distendem as asas rígidas (córneas) com a intenção de voo com as membranosas eles geram sustentação e propulsão, como se fossem um helicóptero em que as suas asas, que são as pás do rotor, geram sustentação e propulsão, e não têm semelhança com as asas dos aviões que são, na realidade, um plano rígido. O entendimento correto da aerodinâmica 26 é fundamental para a sobrevivência dos aviadores. Só com esse conhecimento, aprendido e testado à exaustão no dia a dia, é que os aviadores tiram o máximo proveito de suas aeronaves com segurança. Os besouros conhecem muito bem as leis da aerodinâmica. As leis da aerodinâmica dos besouros que fazem parte da sua natureza e do seu ecossistema, e tiram delas o melhor proveito. O besouro é uma aeronave que tem o seu cockpit, a sua cabeça, na parte anterior da sua fuselagem, o seu cefalotórax. Os sistemas de asas se situam na parte superior da sua fuselagem. Nos helicópteros, no cockpit vão os pilotos que são as cabeças no comando. Atrás do cockpit vem a fuselagem com um design volumoso e pesado, mas tão lindo como o design de um besouro. O sistema de asas na parte superior, centrado na cabeça do rotor onde são conectadas as pás, que são na realidade as suas asas, também são responsáveis pela propulsão como se fossem seus hélices, daí a confusão que muitos fazem em chamar os rotores de hélices, quando na verdade eles são asas. Os helicópteros, como as aves e os besouros, se sustentam e se locomovem com as suas asas. Já os aviões se sustentam com as asas de forma rígida e fixa, e se propulsionam com as hélices ou com os jatos, dependendo Revista do Clube Naval • 367 do tipo. As membranosas dos besouros ficam guardadas embaixo das córneas quando recolhidas e o besouro não está com intenção de voo. Quando as asas córneas estão distendidas, quando há intenção de voo, as asas membranas se agitam e se movimentam para dar sustentação e movimentação aos besouros, da mesma forma que as pás dos helicópteros ao girarem dão sustentação e movimentação aos helicópteros. Quando o helicóptero se desloca para frente, o piloto o pilota como um avião, podendo decolar e pousar corrido numa pista de aeroporto como se fora uma aeronave de asa fixa, os aviões. Além de poder decolar e pousar verticalmente sem necessidade de pista, o que os aviões não conseguem, a não ser um novo desenvolvimento comparável aos besouros que são os “Harrier”. Não há dúvida de que o piloto de helicóptero é mais completo que o piloto de avião, se bem que menos espetacular e charmoso, haja vista o sucesso que o esquadrão de “Skyhawks” os AF-1 tem feito, operando na BAenSPA ou embarcado a bordo do NAe São Paulo, cujo pouso ou decolagem se reveste de um clima de sensação, de espetáculo e de perigo, enquanto os helicópteros pousam e decolam de forma discreta e rotineira, sem nenhuma espetaculosidade e conotação perigosa. Revista do Clube Naval • 367 Mas aos helicópteros se requer muita atenção. Os aviões decolam e pousam de pistas ou do convés de um navioaeródromo, e os pilotos têm toda a sorte de informações necessárias a um pouso e decolagem seguros, já os helicópteros decolam e pousam em qualquer lugar e não têm nenhum apoio de segurança de voo, a não ser o que o piloto estima, desde a direção e intensidade do vento como da resistência do piso e dos obstáculos circundantes da área escolhida para pouso. Os helicópteros fazem tudo que os aviões fazem, eles atacam com mísseis, foguetes, bombas, torpedos e metralhadoras, e operam de qualquer lugar, em terra, nas praias, nos terrenos montanhoso, de bordo de naviosaeródromos ou de qualquer navio que tenha uma plataforma adequada. Os helicópteros são muito mais versáteis que os aviões. A Marinha do Brasil sabe disso por ser a detentora da mais proficiente frota de helicópteros do país, haja vista o incremento operacional a um custo-benefício altamente compensador, quer na Esquadra, na Hidrografia, na Antártida, no apoio administrativo, na salvaguarda a vida do homem no mar, e nas evacuações aeromédicas (EVAM), algumas feitas em alto-mar a mais de 200 milhas do litoral, quando resgatam tripulantes de 27 navios que se acidentam e necessitam um socorro mais efetivo do que o que podem ter a bordo dos seus navios. Hoje, um navio que não tenha o seu helicóptero orgânico está em inferioridade bélica. A Marinha soube aproveitar a oportunidade que lhe foi dada de ter helicópteros, e o seu uso racional criterioso foi o fator básico para vir a ter uma Aviação Naval pujante. Só quem paira nos ares na Marinha são os helicópteros enquanto não tivermos “Harrier’s”. Por enquanto, os helicópteros são os artilheiros desse campeonato fazendo muito mais gols que os charmosos A-4. Mas o que importa é que a Marinha tem marinheiros embaixo, na superfície e sobre o mar, efetuando o seu controle, defendendo a nossa soberania, privilegiando o uso do mar para o Brasil. Independente da aeronave, o que vale é o homem. Ele é um guerreiro e não à toa que os pilotos do HS-1, que voam o M-16, que é a aeronave naval mais completa, são pilotos prontos 24 horas para o combate, e têm como indicativo de chamada Guerreiros. n * Paulo de Paula Mesiano é Capitão-de-Mar-e-Guerra Aviador Naval Reformado e comandou o 1º Esquadrão de Helicópteros Anti-Submarino. 99ºAniversário da Força de Submarinos MARINHA DO BRASIL MARCOS SAMPAIO OLSEN* A obstinação do homem em possuir um barco dotado de capacidade de ocultação para surpreender e destruir precede à própria concepção do princípio de Arquimedes – século III a.C. O Turtle em 1776, no curso da guerra da independência dos EUA, intentou prender à quilha da fragata britânica Eagle um artefato explosivo, através de uma broca. Extremamente engenhoso para a época, o Turtle possuía tanques de lastro, torre de observação com escotilha, tubos para entrada e saída de ar, leme e hélices vertical e horizontal. Um fato colateral foi determinante para o êxito desses submersíveis de guerra. Em 1868, Robert Whitehead, um inglês a serviço da Áustria, aperfeiçoou o torpedo autopropulsado, atribuindo-lhe controles que o mantinham numa corrida reta a uma profundidade determinada. Assim, na tarde de 22 de setembro de 1914, um rudimentar submarino alemão, de tipo ainda propelido a gasolina, pôs a pique, em questão de minutos, três cruzadores britânicos de 12 mil toneladas. O avanço tecnológico observado no desenrolar da Primeira Guerra Mundial propiciou profunda transformação no submarino. Os pequenos barcos utilizados para fins limitados tinham-se transformado em navios de considerável raio de ação e ao seu armamento adicionados canhões e minas. O submarino não mais se confinava ao papel defensivo, afirmara-se, então, como arma ofensiva por excelência. Desde o emprego em guerras, o submarino afundou mais navios do que qualquer outro meio de destruição. O Brasil não passou alheio ao desenvolvimento da tecnologia de submarinos. Destaco o gênio inventivo de um dos precursores no projeto de submersíveis no país, o Tenente Engenheiro Naval Emílio Júlio Hess, que cedo discerniu que “é o valor militar que justifica 28 28 o submarino e define sua importância como arma de guerra”. O projeto do Submersível Hess-Farfield assinalava: 175 ton de deslocamento; casco duplo; quatro tubos de torpedo; 28 milhas de raio de ação, a seis nós em imersão; e uma tripulação de 10 homens. Revista do Clube Naval • 367 O projeto, apesar de aplaudido pelo Conselho do Almirantado, sessão de 26 de novembro de 1908, e autorizado pelo Congresso, ainda assim não foi executado. Furtava-se o Brasil à pesquisa e inovação, dando lugar à perversa dependência tecnológica externa. Constando do Programa de Construção Naval de 1904, opta o Ministro de Negócios da Marinha, por encomendar ao estaleiro italiano Fiat – Saint Giorgio, sediado em La Spezia, três submersíveis da Classe Foca e um navio Tender. Era criada, em 17 de julho de 1914 por decreto do Exmo. Sr. Almirante Alexandrino de Alencar, a Flotilha de Submersíveis, ficando subordinada administrativamente ao Comando da Defesa Móvel do Porto do Rio de Janeiro, sediado na Ilha de Mocanguê Grande. Operativamente, a Flotilha era subordinada Revista do Clube Naval • 367 ao Chefe do Estado-Maior da Armada. Em 1928, foi alterado o seu nome para Flotilha de Submarinos e, por fim, no ano de 1963, denominada Força de Submarinos, designação que permanece até os dias atuais. A clarividência e operosidade de destacados “marinheiros até debaixo d’água” propiciaram no decorrer desses 99 anos, uma evolução consistente e continuada por variadas classes de submersíveis e submarinos e, ainda, a assimilação das atividades de escafandria, mergulho saturado, mergulho de combate, socorro e salvamento de submarinos sinistrados e medicina hiperbárica, acumulando conhecimento e desenvolvendo procedimentos e doutrinas próprias de emprego. Os submarinistas e mergulhadores, de ontem e de sempre, não se assemelham, em corpo e alma, a nenhum outro profissional. Somos o que somos, o que valemos, o que 29 29 representamos. Uma vida de incertezas e um cotidiano de entrega, na maneira de sentir e de agir, acabam por nos fazer arrojados e um tanto displicentes em presença do risco. A negação do uso do mar integra o rol de tarefas básicas atribuídas ao Poder Naval, sendo este o que organiza, antes de atendidos quaisquer outros objetivos, a estratégia de defesa marítima do Brasil. A Marinha do Brasil afiança tal objetivo ao contar com uma força naval submarina diferenciada e crível, hábil no emprego eficaz dos seus variados meios subordinados. Reside aqui o alicerce da defesa nacional, por meio de uma Força de Submarinos moderna e aprestada para defender o patrimônio brasileiro no mar e os caros interesses do nosso povo. Glória à Flotilha! n * Contra-Almirante Comandante da Força de Submarinos ABIMDE o ALICERCE DA INDUSTRIA DE DEFESA F Carlos Afonso Pierantoni Gambôa * undada em 1985 e hoje com 200 associadas, a Associação Brasileira das Indústrias de Defesa e Segurança coloca-se como legítima representante das empresas que compõem a Base Industrial de Defesa de nosso país. Esse abnegado grupo de empresários que somente possui dois clientes – Ministério da Defesa (Exército, Marinha e Força Aérea) e Ministério da Justiça (Órgãos de Segurança a nível Federal, Estadual e Municipal) é responsável por expressiva fatia do intangível bem que nos é tão caro – a soberania. Entendemos com clareza que Defesa e Segurança devem caminhar lado a lado e, nesse particular, vivemos um momento bastante favorável com as autoridades governamentais somando forças em prol de consolidarmos a nossa soberania sem nos descuidarmos da segurança interna. Assim realizamos com sucesso a pacificação do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro e temos realizado com êxito as Operações Ágata e Atlântico no controle de nossas fronteiras terrestres e marítimas respectivamente. A ABIMDE, como porta-voz dessas indústrias, atua diretamente em cooperação com o Executivo, de modo especial junto ao Ministério da Defesa, por meio da Secretaria de Produtos de Defesa e seus departamentos. Estamos também presentes no Legislativo buscando apoio do Senado e Câmara dos Deputados para os projetos de interesse das empresas. Desse modo as Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional das duas casas têm nos proporcionado oportunidade de apresentarmos os pleitos da Base Industrial de Defesa (BID), participar de debates e seminários no Congresso Nacional, bem como visitado as empresas para melhor conhecerem os produtos e serviços fabricados no Brasil por brasileiros e para brasileiros. Controle de nossas fronteiras 30 Revista do Clube Naval • 367 Pacificação do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro tema atualizados e prontos a atender os chamamentos dos possíveis clientes. Recebemos apoio governamental por meio da Apex-Brasil para participação em eventos internacionais onde expomos os produtos brasileiros, apresentando ao seleto e competitivo mercado a competência e a criatividade de nossa engenharia. Nada vendemos diretamente, mostramos produtos e serviços aqui produzidos e Para que tenhamos Forças Armadas e Órgãos de Segurança bem estruturados necessitamos de uma base científica e tecnológica forte. Assim trabalhamos em estreita cooperação com universidades e centros de pesquisas, tendo entre nossas associadas o CTMSP, CTA, IME, estamos realizando o diagnóstico da Base Industrial em parceria com a UFF e temos proferido palestras nas Escolas de Altos Estudos das três Forças com o propósito de transmitir aos oficiais, futuros decisores em suas Forças, as capacidades e limitações de nossas empresas. Assessoria de imprensa bastante atuante e parcerias com os principais veículos de comunicação da mídia especializada, mantemos as associadas e os cidadãos interessados no Revista do Clube Naval • 367 aqui utilizados com sucesso. Temos conquistado vários segmentos do mercado. A cordialidade e hospitalidade dos brasileiros são também grandes aliadas nessa tarefa. O Brasil não tem inimigos. As aeronaves a navios de superfície, armamentos letais e não letais, misseis e foguetes, paraquedas e abrigos para desastres, munições dos mais variados calibres, viatu31 ras blindadas etc. colecionamos inúmeros casos de sucesso que atendem não só ao mercado nacional como o internacional. A lei de licitações nos permite fornecer “Declarações de Exclusividade” as quais dispensam o comprador público da abertura de processo licitatório, mantendo, entretanto com o comprador total liberdade para decidir o material que deseja adquirir. Esse mecanismo agiliza o processo de compra e dificulta a participação de vendedores não capacitados. Novas associadas se juntam a cada dia fortalecendo a BID. Novos e desafiantes programas são lançados pelas Forças Armadas (SISGAAZ, SISFRON, KC-390 e outros) assegurando um crescimento harmônico do setor com os demais setores de nossa economia. A sociedade se beneficia da dualidade de inúmeros produtos. Aumenta o interesse dos universitários pelo estudo do tema “Defesa e Segurança”. A mídia, em suas diversas versões, dedica espaço para o setor, mostrando a necessidade de protegermos o patrimônio do Brasil e desmistificando a ideia de que o assunto deva ser tratado somente por militares. As empresas do setor devem ser motivo de orgulho para os brasileiros e a ABIMDE se orgulha de representá-las. n *Vice-Almirante (Ref) e Vice-Presidente Executivo da ABIMDE AMAZÔNIA AZUL NAVIOS DA MB O pré-sal brasileiro e a soberania no mar À Marcos Poggi* luz da geopolítica, e em face de possíveis conseqüências a prazos mais longos, a interpretação de analistas, repercutida na imprensa, de que as estatais chinesas teriam decidido participar do leilão de Libra principalmente para melhor conhecerem as reservas do pré-sal brasileiro, não deixa de ser preocupante(*). Não, necessária e unicamente em função de um possível risco China, mas porque tal hipótese reforça a percepção de que o potencial de riqueza no mar brasileiro vem ganhando significativo espaço na pauta de interesses em vários centros de poder no planeta. Por todos os motivos, há indícios de sobra para que o Brasil se acautele diante do quadro que se desenha, já há alguns anos, em relação aos direitos de soberania do país no mar. Cumpre evocar, nesse contexto, o nome do eminente brasileiro Alexandre Tagore Medeiros de Albuquerque, conhecido na Marinha como Comandante Tagore, falecido em 2011, com notável participação na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM). O Comandante Tagore, entre outras importantíssimas funções de representação do Brasil em fóruns internacionais, foi, por dois mandatos consecutivos, presidente da Comissão de Limites da Plataforma Continental da ONU. Em inúmeras ocasiões, Alexandre Tagore (também um dos autores do livro “A Amazônia Azul, o mar que nos pertence”) nos alertou acerca da vulnerabilidade dos direitos do Brasil sobre a chamada “Zona Econômica Exclusiva” e a plataforma continental, limitadas, respectivamente a 200 e 350 milhas a contar das linhas de base da costa. É nesse espaço que se situa a totalidade das reservas do nosso pré-sal. Lembrava Tagore que os direitos de soberania sobre esse espaço no mar não constitui princípio aceito pela totalidade das nações. Vários países são não aderentes ao acordo, ou seja, não subscreveram ou rati- Alexandre Tagore nos alertou acerca da vulnerabilidade dos direitos do Brasil sobre a chamada “Zona Econômica Exclusiva” e a plataforma continental ficaram adesão à Convenção da ONU, sendo o mais importante deles os Estados Unidos da América, que limitou sua concordância ao acordo de pesca. O que, obviamente, não quer dizer que a posição norte-americana tenha, necessariamente, algum vínculo com interesses maiores no pré-sal brasileiro. Já a China, por seu turno, diga-se, de passagem e a bem da verdade, é signatária e ratificou o acordo. Em suma, tal quadro, obviamente, apresenta um potencial de contenciosos que, em nada, interessa ao nosso país. Não custa lembrar que o Brasil já foi protagonista de, pelo menos, dois episódios envolvendo conflitos no mar no âmbito das 200 milhas, por coincidência os dois com a França: o primeiro, conhecido como a “Guerra da Lagosta”, que, em 1962 quase nos levou ao conflito armado, quando ― após o apresamento de barcos de pesca franceses pela Marinha brasileira, nas águas do Nordeste ― ambos os países deslocaram navios de guerra para a região; o segundo episódio, em 2005, quando o Navio-Patrulha Guarujá apreendeu, ao largo do litoral do Amapá, o barco de pesca francês “Yannick 2”. 32 32 Obviamente, em situação de paz mundial, nenhuma nação se aventuraria a, por exemplo, colocar uma plataforma de exploração ou produção de petróleo em águas da “Zona Econômica Exclusiva do Brasil”. Até porque, além de suas certamente gravíssimas consequências (independentemente das condições militares do Brasil para se defender adequadamente de uma hipotética agressão desse tipo), tal medida iria requerer uma base de apoio logístico em terra próxima, ou um aparato flutuante de proporções inimagináveis. Contudo, como é incerta a viabilidade da substituição, em larga escala, dos hidrocarbonetos por outras fontes de energia, nas próximas décadas, tais dificuldades de exploração de petróleo e gás na “Amazônia Azul” por outros países, à nossa revelia, não constituem garantia suficiente de tranqüilidade em relação aos riscos da cobiça externa. Possa ela vir a se manifestar a partir do Oriente ou do Ocidente. Pouco importa. E, obviamente, mesmo que todos os países reconhecessem os direitos de soberania sobre a “Zona Econômica Exclusiva” e a plataforma continental, tal ameaça não cessaria em caso de conflito armado. Isto porque, se, na prática da guerra, os contendores invadem ou tentam invadir o território terrestre inimigo, com mais facilidade e razão, invadirão ou tentarão tomar ou destruir o que exista de importante no mar, haja lá a convenção e as assinaturas que houver. Por outro lado, restaria alguma dúvida quanto às razões da decisão das gigantes americanas Exxon e Chevron, e das britânicas BP e BG, de ficarem fora do leilão de Libra. Será que a explicação dessa desistência se esgota na excessiva interferência estatal, nas incertezas regulatórias e nos altíssimos investimentos requeridos no pré-sal brasileiro? Ou haveria, além dessas, outras razões? Pelo visto, ao menos uma conclusão parece óbvia: a de que, ao contrário dos chineses, essas gigantes não estão dispostas a fazer grandes investimentos para conhecer, nos detalhes, nossas reservas no pré-sal. Uma das hipóteses cabíveis para explicar tal postura é a de que, por qualquer razão, elas não tenham mesmo interesse algum nesses campos petrolíferos. Outra é a de que elas já possuam todas as informações de que julgam precisar sobre nossas reservas de petróleo no mar. n A surpreendente carena SÉRGIO LIMA YPIRANGA GUARANYS* O s alunos brasileiros cursando Construção Naval no MIT costumavam rir da palavra inicial das aulas do Dr. Chapman, catedrático de Arquitetura Naval, invariável: Festival ou First of all em inglês. Todavia dizia que apenas um navio, a Arca, foi original, sendo os demais cópias alteradas. Entretanto se houvesse mais de uma dúzia de oficiais que tivessem visto as obras vivas do NAE S. Paulo, talvez fosse olvidável que a carena dele tivesse sido invenção de um arquiteto naval francês, muito diferente da Arca citada pelo Chapman. O navio é rápido, mercê da proa de destroier, da redução traseira da superfície molhada e do bulbo dianteiro e estável para garantir do NAe S.Paulo operação aérea imune ao estado do mar. O S. Paulo possui uma proteção encouraçada, tendo a couraça sido utilizada para adicionar empuxo ao momento endireitador, assim contribuindo para limitar o balanço transversal. Concorrem nessa limitação a reduzida altura metacêntrica transversal, as imensas bolinas reversas cujas almas medem 1,8 m em vez dos 0,6 m tradicionais, divididas em três segmentos cada, repetindo três vezes a reação do mar. Completam o dispositivo estabilizador transversal dois quilhas laterais que começam no final do bulbo dianteiro e terminam no final do 1/3 de vante do comprimento entre p.p. A notável estabilização longitudinal decorre do bulbo, da altura metacêntrica longitudinal e do perfil lateral das obras vivas, que apresentam enorme redução de calado entre os telescópios e o espelho de popa. Esta redução decorre do arranjo de turbinas propulsoras todas equidistantes da perpendicular de ré em vez da usual fila de AP, Cruzeiro, BP e Marcha AR, diminuindo sensivelmente o caturro do navio. *Capitão-de-Mar-e-Guerra (Ref) *Marcos Poggi é Capitão-Tenente RM2 e economista. em O GLOBO, coluna de Miriam Leitão, *noVide dia 20/09/2013 Revista do Clube Naval • 367 Este NAE docou duas vezes no Brasil segundo manobra criada pela USP, pois a folga entre a carena e os batentes da porta batel do dique Rio de Janeiro é inferior a 0,5 m. Na primeira docagem nenhum engenheiro da MB esteve no dique, segundo indagação minha junto ao Comte Hespanha, gerente do AMRJ. A DEM não perguntou nem o Arsenal lhe disse algo sobre os sulcos da corrosão hidráulica encontrada nos pés das oito pás de hélice. A Marine Française enfrentou essa corrosão enchendo os sulcos com o mesmo bronze do hélice e determinando inspeção periódica por mergulhador. Não foi indagada presença de engenheiro naval na segunda docagem. A MB substituiu o bronze de enchimento por conjunto adesivo/endurecedor. A carena do porta-aviões sucessor do S. Paulo deverá ser evolução desta, justificando Chapman, seja por trocar turbinas por motores elétricos, seja por instalá-los em azípodos, assim eliminando lemes, ou seja, por redução da ilha mediante olhos de TV, assim apagando americano que a chamava de Vultur’s Island (Ilha dos Urubus) é essencial... n Revista do Clube Naval • 367 33 FÁBULA TILÁPIA COM BATATAS José Alvaro da Costa Donato* E ra uma vez, em determinado país deste nosso continente, um digno e descansado agricultor, que conseguiu, a exemplo de seus ascendentes, criar a sua família de forma pacata e honesta, plantando, unicamente, batatas. Enfrentando chuvas e estiagens, altas e baixas de preços, viu os seus filhos crescerem, estudarem e constituírem família, tudo à custa da boa e velha batata. Um desses filhos, o mais ousado, talvez o mais empreendedor da família de batateiros – e na visão do patriarca, o mais teimoso – por não mais aguentar ver a sua família trabalhando duro e rezando aos santos de plantão para que intercedessem junto aos céus por uma boa safra, teve certo dia uma ideia: se no nosso país o governo vem dando uma atenção especial à piscicultura, por que não partir para esse outro modelo de cultivo? Afinal, depois de tanto esforço lutando com a terra, seus antepassados que fizeram a vida graças às batatas não haveriam de ficar aborrecidos. Além do mais, na sua região obteria todo o apoio necessário à nova empreitada. O que dizer então do governo central, que nos últimos tempos havia criado uma secretaria especial voltada única e exclusivamente para os peixes? Nosso empreendedor quase não dormia direito pensando: já que o clima aqui na província é o melhor possível, por que não tentar arrendar a represa do vizinho? Afinal, essa barragem há décadas havia sido construída por um político local, mas nenhuma utilidade apresentava nos dias atuais. Ali, pode-se dizer, nunca se produziu um quilo de pescado sequer. Na época em que foi construída, a barragem reunia em suas margens belas mulheres em grandes festas patrocinadas pelo antigo dono, cujos filhos, na linha do pai, a utilizavam apenas para passeios de jet-ski com jovens muchachas. Hoje, abandonada, a quarentona represa serve de deleite, apenas, a capivaras e garças, e já não se ouvem os gritos estridentes das moçoilas ou o barulho dos motores das embarcações. Interessado na sua nova empreitada, o rapaz, para orgulho – e ao mesmo tempo decepção – do velho pai, passou a pesquisar e colecionar toda sorte de livros e revistas sobre piscicultura. Fez cursos, frequentou seminários e congressos; e participava até mesmo de uma lista de discussão na internet sobre o assunto, onde muito aprendeu com especialistas, produtores, ambientalistas, biólogos, veterinários, engenheiros de pesca, curiosos e piscicultores iniciantes como ele. Na internet conheceu gente que realmente ama a piscicultura e que vive disso; também gente que tem a piscicultura apenas como hobby; e ainda os que só estão no negócio por acreditarem firmemente no país. Seu entusiasmo cresceu ainda mais, quando viu aquela secretaria especial ser transformada num ministério, unicamente 34 voltado para os peixes – para inveja dos bovinos, equinos, caprinos, suínos e galináceos – que nunca, na história daquele país, haviam tido tamanha deferência. Muito estranhou ao ver à frente da pasta, administradores sérios mas sem nenhuma intimidade com o tema. Gente que nunca pescou e que não sabe, sequer, a diferença entre tilápias e sardinhas. Quando lhe explicaram que isso tinha a ver mais com a política do que com os peixes, simplesmente fingiu entender. Decepcionado mesmo ficou, quando viu um estranho peixe, dizem até que de olho rasgado, vir de outro continente para competir nos freezers e bancadas de peixarias, com o produto nativo, fruto do incansável trabalho dos aquicultores do seu país. Viu-se, com a implantação da Semana do Peixe uma vez mais animado, e disse: agora vai! De tão boa ideia, essa tal semana bem que poderia ocorrer a cada semestre, depois a cada trimestre e quem sabe no futuro, a cada mês, até se transformar no Dia do Peixe. Quem sabe um dia será assim? Pensou. Havia descoberto que todo peixe consumido nas cidades mais próximas à sua província vinha de criatórios localizados a mais de cem quilômetros de distância. Ouviu de técnicos e gerentes de bancos, que o apoio do governo central à aquicultura é irrestrito e que anualmente até sobram recursos. Só não entendia por que sobrava tanto dinheiro e por que os piscicultores preferiam fazer uso de seus próprios recursos. Se o seu velho pai tivesse a mesma chance com as batatas, certamente não a perderia. Resolveu, com as bênçãos e o apoio do velho, finalmente, colocar em prática tudo o que havia começado a alinhavar para montar o seu negócio, mas antes teria, ainda, que avaliar os gastos com insumos. Checou os tanques-rede, contatou produtores, promoveu cursos para dois vizinhos dos mais interessados e que seriam seus futuros funcionários. Não teve problemas com o atual proprietário da fazenda vizinha, uma vez que o político, hoje aposentado, já não tinha “aquele gás” e seus filhos não queriam mais saber de roça. A represa, portanto, poderia ser arrendada por um valor razoável, desde que se comprometesse a manter as suas características originais. Faltava, somente, contatar o fornecedor de ração; e foi então, nesse momento, que o nosso destemido empreendedor começou a perder o sono. Passou dias e noites apavorado. Não conseguia entender o porquê de a Revista do Clube Naval • 367 ração para tilápias ser tão cara no seu país! E se trocasse de espécie? Outro peixe comeria menos? Como num país que possui até Ministério da Pesca a ração para peixes poderia corresponder de 70 a 80% dos seus gastos? E se pudesse alimentá-los com as sobras da colheita da família? Não seria nada mau, em verdade. Momentaneamente os custos quase o fizeram desistir, mas ao se aconselhar com o seu bom e velho pai escutou: meu filho, não se esqueça que você é um batateiro e um batateiro não desiste nunca! Era tudo o que precisava ouvir para seguir adiante. Mãos à obra! Só faltava, agora, o licenciamento. Coisa simples, pensou. Afinal, estava num país de incentivos à piscicultura. Primeiro passo, contatar a administração do seu município. Depois, o governo da sua província e por último, se necessário fosse, o governo central. Estranhou, porém, quando na Secretaria de Agricultura de sua região lhe perguntaram, conhecendo a sua família, se tilápia era uma nova variedade de batata. Estranhou, também, ao tentar contatar o governo da província, que não existia sequer um 0800 ou endereço de e-mail para um serviço de atendimento ao cliente a distância, por meio dos quais pudesse sanar suas dúvidas. A solução foi apelar para os DDD disponíveis. Depois de diversas chamadas, foi finalmente orientado a reunir os documentos relacionados no site do governo da província e se dirigir, pessoalmente, à capital, distante cerca de 400 km do seu município. Apesar de tudo esse não seria o obstáculo que o faria desistir. Ocorre que a coisa não era tão simples assim. Antes de licenciar a sua atividade, teria que requerer a outorga das águas e o licenciamento da barragem arrendada. Um total de 53 documentos, acreditem, alguns até repetidos, para cada fase da burocracia. E teria, ainda, que pagar por isso. Depois de três ou quatro viagens à capital, no período de quase um ano, quando sempre havia alguma nova exigência – isso quando tinha a sorte de encontrar o único funcionário habilitado a lhe prestar informações precisas – foi-lhe aconselhado buscar uma empresa de consultoria, para que esta administrasse a sua solicitação. Com isso, teria, obviamente, que desembolsar um pouco mais que o previsto. Não entendia como encontrava toda aquela dificuldade para usar uma represa que durante quase 50 anos serviu apenas ao divertimento de gente que não produziu sequer um quilo de alimento e de quem nunca havia sido cobrado um tostão sequer. Onde estavam as tais políticas de incentivo, tão propaladas pelo governo central? E os bilhões na moeda local, destinados aos que se arriscassem na atividade? Pela primeira vez sentiu-se só. Teria que desenvolver a sua piscicultura na ilegalidade, a exemplo de muitos com os quais havia trocado ideias antes? Não! Afinal não foi assim que o seu pai o havia educado. Almejava fazer a coisa da forma correta, com honestidade. Quem sabe pagando os impostos, as taxas, e reunindo aqueles “poucos” documentos, pudesse um dia, com o apoio de São Pedro – padroeiro dos que com peixe labutam – começar o seu trabalho e colocar em prática o seu sonho. Passaram-se três longos anos e até agora, acreditem, não conseguiu o nosso incansável sonhador a autorização definitiva para o seu projeto. Agora, já quase “jogando a toalha”, aproveitou a visita de seu melhor amigo, às margens da “quarentona” e na presença do seu velho pai, para desabafar sobre as dificuldades que vinha encontrando há anos, apenas porque queria tocar seu sonho dentro da legalidade. O amigo de infância ouvia silenciosamente as suas lamentações e o único que fazia era balançar a cabeça de um lado a outro. Em determinado momento da conversa, o interlocutor quase não acreditando em tudo que havia ouvido, coçou a cabeça, entreolhou o velho patriarca, deu dois tapinhas no ombro do nosso herói e lhe disse: – Quer saber de uma coisa meu amigo? Vá plantar batatas! n *[email protected] Capitão-de-Mar-e-Guerra (RM1-FN) e piscicultor, no município de Vila Boa – GO. Revista do Clube Naval • 367 35 HISTÓRIAS NAVAIS O Ã Ç A R E P O A T E R SEC domingos castello branco * O perfil das luzes da cidade do Rio de Janeiro aparecia bem delineado na ocular do periscópio, contrastando com o céu negro, sem nuvens. O submarino navegava mergulhado, em baixa velocidade, aproado ao “colar de pérolas” de Copacabana, com uma visão privilegiada do lindo espetáculo. O comandante Felipe “varreu”, com o periscópio, um arco de 60 graus, pela proa, encantando-se com o que via. Isso o levou a esquecer, por alguns minutos, o motivo de estar ali, com seu navio, cerca das 22 horas daquela noite de sexta-feira. O submarino operava em “navegação silenciosa” e com a iluminação vermelha, adequada à navegação noturna. No “compartimento de manobra” – de onde se controla o navio – as ordens para o pessoal do “quarto de serviço” eram ditas em voz baixa. O mesmo ocorria com as informações oriundas dos operadores dos diferentes equipamentos de navegação, de aplicação tática e de direção de tiro, que se comprimiam no local apertado.. O procedimento era rotina para os tarimbados submarinistas ali presentes. A única diferença, a intrigá-los, era a razão pela qual tinham saído do porto do Rio, de repente e no mais absoluto sigilo. Na véspera, na hora do licenciamento, foram avisados de que o navio iria suspender na sexta-feira, à tarde, para cumprir uma missão de menos de uma semana. O motivo para tanto mistério só lhes fora anunciado pelo próprio comandante, no fonoclama de bordo, após a desatracação da OS SUBMARINISTAS • Usque ad sub acquam nauta sum • (Somos marinheiros até debaixo d’água) horas, pela enorme quantidade e volume do material transportado. A hipótese de entrar na Guanabara fora descartada pelo risco de exposição demorada do navio, em área de muito movimento, mesmo à noite. Fora constituído um grupo-tarefa (GT) para executar a operação, que recebeu o nome de “Riqueza Fácil”. Era chefiado pelo comandante de um esquadrão de contratorpedeiros, do qual foram designados dois navios (CTs), sendo um deles seu capitânia. O submarino (S) fora destacado para o grupo-tarefa (GT) pela Força de Submarinos, conforme determinado pelo Comando-em-Chefe da Esquadra. As reuniões de planejamento realizaram-se a bordo de um dos CTs. Os comandantes dos três navios envolvidos eram colegas de turma e o chefe do GT, um pouco “mais antigo”, era muito querido por todos. O ambiente descontraído dos trabalhos dava margem a brincadeiras, incentivadas pelo inusitado da situação. Tal fato se refletiu na escolha dos indicativos-fonia dos participantes, a serem usados nas comunicações operativas. O comandante do GT (grupo-tarefa) foi nomeado “Meritíssimo”; o coletivo do grupo era “Tribunal”; os CTs (contratorpedeiros) se tornaram “Defensor” e “Promotor”; o S (submarino) passou a ser “Dedo-Duro” e o mercante virou “Malfeitor”, acompanhado por “ratos” e “baratas”, isto é, as lanchas e os barcos diversos, receptadores do contrabando. Foram gerados dois documentos para orientar a operação: um “Reservado” e outro “Secreto”. O primeiro previa uma movimentação rotineira, para realizar exercícios antisubmarino (AS), nas proximidades da cidade do Rio de Janeiro. O submarino sairia do porto no início da tarde, seguido pelos CTs, com destino a uma área ao sul da Ilha Rasa. Ali, ficariam por três dias, em treinamento de guerra AS, retornando ao porto ao final. O documento “Secreto” previa que os navios de superfície, ao chegarem à área prevista, simulariam estar treinando guerra AS, mesmo sem o submarino. Nessa condição, eles poderiam interceptar o mercante base de submarinos, naquela mesma tarde. Tratava-se de uma operação, conjunta com dois contratorpedeiros, para apreender, em colaboração com a Receita Federal, o maior contrabando da história a tentar entrar no Rio de Janeiro. Chamava-se Altaneiro (sic) o navio portador da enorme muamba, que partira da Coreia do Sul, onde fora construído. Era sua viagem inaugural... O planejamento da operação baseavase em informações minuciosas prestadas por um delator, inconformado por ter sido alijado do grande negócio pelos próprios parceiros. Esses formavam uma seleção que incluía figurões da alta sociedade, grandes comerciantes, banqueiros, bicheiros e, naturalmente, políticos. Daí, explicava-se o alto grau de sigilo da operação. Era preciso muito cuidado para que ela desse certo... A chegada do navio fora estimada para aquela noite, com base em informações do sistema de controle de tráfego marítimo da Marinha e de dados da Receita e da Polícia Federal. Ele era de carga geral, com 140 metros de comprimento e 11 de calado, carregado. Como tinha navegado no Pacífico e cruzado o canal do Panamá, percorrera a costa do Brasil e deveria aproximar-se do Rio, vindo de Cabo Frio. Seu destino mais provável seria a Ilha Grande. Se o mar estivesse calmo, ele poderia ficar parado ao largo de alguma praia próxima ao Rio, para desovar o contrabando, com o apoio de lanchas de iate clubes e barcos diversos, inclusive pesqueiros. Tal faina deveria ocorrer à noite e levar algumas 36 Revista do Clube Naval • 367 Revista do Clube Naval • 367 37 infrator, caso ele cruzasse a área, o que fora avaliado ter baixa probabilidade de ocorrer. Já o submarino mergulharia, rumando para uma posição entre a ilha Rasa e o Pão de Açúcar, de onde iniciaria uma patrulha dessa passagem, com elevada probabilidade de interceptar o “Malfeitor”. O Altaneiro não deveria ser logo abordado, quando reconhecido. As instruções eram para acompanhá-lo até o local da “desova”. Pelos CTs, com luzes apagadas, ou pelo S mergulhado, conforme quem o interceptasse primeiro. Em qualquer caso, a abordagem final seria efetuada pelos CTs, e só deveria ocorrer em plena faina de transbordo da muamba para as embarcações. Essa seria a forma de caracterizar o flagrante do navio e, também, identificar e apreender os barcos colaboradores. Eram muitas as preocupações do Comandante Felipe, que efetuava varreduras frequentes com o periscópio, os sonares e o radar. O maior risco era o de colisão do submarino mergulhado com o cargueiro ou alguma embarcação menor, ou mesmo com outro navio cruzando a área de patrulha. Esses últimos eram menos perigosos por sua fácil detecção e rumos mais constantes. O problema mais sério seria o comportamento errático dos barcos menores, em especial os pesqueiros, com deslocamentos e paradas súbitas, lançando e recolhendo redes de pesca. Tais circunstâncias eram agravadas pela pequena profundidade da área, impedindo a evasão do submarino em direção ao fundo. Se um barco desses viesse em sua direção, ele teria de vir à superfície e sinalizar com luzes para evitar o pior. Felizmente, talvez por ser noite de sexta-feira, o movimento era pequeno, Súbito, ao ser içado o mastro do radar e feita uma varredura, o operador acusou um contato vindo do leste, a dezoito mil jardas.¹ Três minutos depois, feita nova observação, foi confirmado o contato. Aproado ao submarino, com oito nós de velocidade, ele aparentava ser um navio de certo porte. Até então, os sonares não o haviam detectado, nem o comandante avistara suas luzes de navegação pelo periscópio. Ele foi designado “alvo 33”, para fins táticos.² Silenciosamente, o submarino “guarneceu postos de combate”. Sem demora, apareceu outro alvo no radar, também vindo da direção de Cabo Frio. Firmemente aproado ao Rio de Janeiro, sua velocidade era um poço menor. Foi designado “alvo 34”. Surgiram mais dois alvos no radar: um vindo do oeste, da direção da Ilha Grande (designado “alvo 35”); outro vindo do sul, oriundo do alto-mar (“alvo 36”). Ambos aparentavam ser navios demandando o porto do Rio. A excelente equipe, que guarnecia a “manobra” em “postos de combate”, dava conta, tranquilamente, de acompanhar esses alvos e outros mais, para tudo que fosse necessário. O comandante parou a máquina do submarino, mantendo-o na cota periscópica,3 atravessado à direção de onde vinha o “alvo 33”, e em total silêncio, a fim de facilitar a escuta dos operadores de sonar. Não demorou a receber deles a confirmação de que o navio era um mercante, grande, carregado. Tinha um eixo só, com hélice de quatro pás, girando a 85 rotações. O radar informou sua distância de 9.500 jardas. Ele chegaria próximo ao submarino em cerca de 30 minutos. O outro navio, vindo da mesma direção (“alvo 34”), estava mais longe e bem mais próximo de terra, em demanda da barra da Guanabara. Felipe mandou içar o mastro de comunicações rádio e enviou, pela fonia, a seguinte mensagem: – Meritíssimo, Meritíssimo, aqui Dedo-Duro, aqui Dedo-Duro: detectado provável Malfeitor, distância 9 mil jardas, navegando paralelo 2 milhas costa; estimado cruzar linha patrulha dentro 30 minutos. Vou me aproximar para tentar identificação visual. O comandante do GrupoTarefa acusou o recebimento da mensagem: – Dedo-Duro, Dedo-Duro, aqui Meritíssimo, aqui Meritíssimo: ciente. Boa sorte. O ambiente no compartimento de “manobra” do S ficou mais tenso, conforme o mercante se aproximava. O comandante e o imediato o observavam pelos periscópios de ataque e de observação, enquanto a distância diminuía. Logo, avistaram a luz verde de boreste do mercante. O radar informou que, naquele rumo e velocidade, ele passaria a cerca de 400 jardas do submarino, em seu ponto de maior aproximação. O comandante guinou o submarino e começou a navegar, devagar, em rumo paralelo ao do mercante. O imediato estava com instruções de fixar o periscópio na bochecha do navio, para tentar ler seu nome, pintado menor facilitou o acompanhamento pelo submarino, pois diminuiu a resistência da água nos periscópios e demais mastros, quando içados. Navegando na cota periscópica, com todos os mastros arriados, o acompanhamento do mercante era feito pelo sonar de proa, em escuta passiva. O único ruído na “manobra” vinha de um pequeno alto-falante, que reproduzia, baixo e com clareza, a batida das pás de Malfeitor: “tchok. tchok, tchok, TCHOK!... Tchok, tchok. tchok, TCHOK!...”. Essa era a assinatura acústica do mercante, já registrada no banco de dados do submarino, juntamente com a assinatura eletrônica de branco. Quando o submarino foi alcançado pelo mercante, Felipe acelerou a máquina e se aproximou mais dele. De repente, o imediato conseguiu ler o nome e quase gritou: – É ele! É ele! Comandante! É o Altaneiro!!... A equipe da “manobra” comemorou o feito, sem fazer ruído. Imediatamente, o comandante do GT foi avisado: – Meritissimo, Meritíssimo, aqui DedoDuro, aqui Dedo-Duro: confirmado Malfeitor!... Confirmado “Malfeitor”!... Vou segui-lo mergulhado até local do crime! O submarino deixou o mercante ultrapassá-lo e passou a seguir suas águas pela popa, bem próximo dele, em 38 manobra bastante arriscada, muito praticada no curso obrigatório de preparação de comandantes de submarino. Dessa forma, tanto ele como o imediato, nos periscópios, puderam confirmar o nome, pintado no “espelho de popa” do navio, e ressaltado pela “luz de alcançado” do alvo: “Altaneiro”, “Rio de Janeiro”. Felipe, após a confirmação do nome, aumentou para mil jardas a distância de Dedo-Duro ao Malfeitor, por razões de segurança. Pouco depois, o mercante reduziu a velocidade para cinco nós, ao passarem pela praia do Leblon. Era um sinal de que, provavelmente, pretendia “desovar” em algum ponto da praia da Barra. A velocidade Revista do Clube Naval • 367 do radar do alvo, cuja emissão também fora captada pelo submarino, pelo mastro de contramedidas eletrônicas (CME). A assinatura acústica indicava uma pá do hélice desbalanceada, como característica singular daquele navio. Qualquer variação nas rotações do eixo seria percebida, de pronto, pelo sonar do submarino. Nesse caso, o mastro do radar do submarino seria içado para aferir as variações de distância entre os navios, prevenindo eventual colisão. Foi enviada outra mensagem para o comandante do GT: – Meritíssimo, aqui Dedo-Duro: mergulhado, sigo águas Malfeitor, rumo paralelo praia Barra, distância terra 2 milhas, velocidade reduzida para 5 nós; provável chegada local desova em breve. Ao que o comandante do GT respondeu: – Dedo-Duro, aqui Meritíssimo: ciente; manter-me informado situação com maior frequência. Isso era sinal de que os contratorpedeiros estavam impacientes, como lobos ferozes, para abandonar o tédio dos exercícios simulados na área ao sul da Ilha Rasa. O que mais queriam era partir para cima de Malfeitor, a presa muito desejada por todos os Revista do Clube Naval • 367 participantes da operação “Riqueza Fácil”. Eram 23h30min de sexta-feira, quando o operador de sonar informou, com voz alterada: – Alvo 33 reduzindo velocidade; 40 rotações!...; 30 rotações!..; guinando para boreste!...; parou a máquina!...; máquina parada!... Felipe içou o periscópio e o conteirou (girou) na direção de onde deveria estar Malfeitor. Não viu nada! Perplexo, fez uma varredura em torno da posição estimada do navio. Foi quando avistou o lampejo de uma lanterna portátil, deslocando-se em um dos conveses do navio, depois outra e mais outra... O Altaneiro havia apagado suas luzes de navegação! A guerra iria começar!... O comandante observou o mercante se aproximando, lentamente, do Pontal de Sernambetiba, onde existe uma ilha, formada por enorme pedra, junto à praia do Recreio dos Bandeirantes, na época uma área quase deserta. Nesse local, o mercante poderia se abrigar em águas calmas e sem sofrer os efeitos da fraca corrente marítima ao longo da praia. Em pouco tempo, o cargueiro parou a umas 300 jardas da reduzida arrebentação. Ali permaneceu, aproado à praia, sem lançar o ferro,4 e controlando a posição com eventual uso do hélice. Uma demonstração de planejamento competente! O comandante do S enviou mensagem para o comandante do GT: – Meritíssimo, aqui Dedo-Duro: Malfeitor aproximou-se terra altura Pontal Sernambetiba; neste momento está no remanso leste Pontal, 300 jardas da arrebentação, aproado praia, sob máquina, sem largar o ferro, luzes apagadas, uso lanternas individuais nos conveses indicam preparação desova. Felipe posicionou o submarino a cerca de 500 jardas pela popa do cargueiro, onde encontrou profundidades de 200 pés (60 metros). Essa posição dava-lhe boa condição de observar o movimento a bordo do mercante e em seu redor. Além disso, poderia mergulhar mais fundo para, com segurança, evadir-se dos navios e embarcações envolvidos na operação, no caso de se aproximarem dele. Súbito, o operador de sonar informou: 39 – Lancha se aproximando por boreste do alvo 33!...; mais de uma lancha se aproximando...; barco de pesca se aproximando por bombordo do alvo 33... Felipe, no periscópio de observação, avistou as embarcações apagadas chegando junto ao Altaneiro e atracando, a meia-nau, nos seus dois bordos. Rapidamente, transmitiu mensagem para o comandante do GT: – Meritíssimo, aqui Dedo-Duro: Malfeitor sendo cercado por ratos e baratas, todos apagados; observo grande movimento nos conveses navio. Ao que o comandante do GT respondeu: – Dedo-Duro, aqui Meritíssimo: ciente, ciente!... Informar quando desova completar dez minutos. A mensagem definitiva foi enviada pouco depois, precisamente à 0h15min de sábado: – Meritíssimo, aqui Dedo-Duro: Malfeitor com ratos e baratas atracados meia-nau; dois em cada bordo; mais ratos e baratas nas proximidades aguardando vaga para atracar contrabordo; desova em andamento acelerado! A resposta do comandante do GT foi: – Dedo Duro, aqui Meritíssimo: ciente; despachei Defensor e Promotor, alta velocidade, para interceptar e ocupar Malfeitor, ratos e baratas, prender tripulantes e apreender material contrabando; será empregado armamento necessário intimidação, evitando atingir navio, embarcações e, principalmente, pessoas. E concluiu: – Congratulo Dedo-Duro pelo excelente desempenho cumprimento missão; Dedo-Duro está autorizado regressar base; Bravo Zulu!5 A resposta de Felipe foi: – Meritíssimo, aqui Dedo-Duro: ciente. Agradeço palavras prezado chefe; desejolhe sucesso concluir missão “Riqueza Fácil”; retorno Base, navegando mergulhado até clarear área da ação. O sonar informou, de repente: – Hélices alta rotação aproximando, marcação três uno zero... Hélices característicos contratorpedeiros, 280 rotações... Dois CTs aproximando alta velocidade em silêncio sonar... O comandante Felipe designou os CTs como alvo 37 e alvo 38, tentando, sem sucesso, avistá-los no periscópio, na marcação indicada pelo sonar. O radar foi então empregado e os CTs apareceram na tela, com nitidez, navegando um ao lado do outro. A distância era de 15 mil jardas, diminuindo rapidamente, com velocidade calculada de 25 nós (46km/h). A chegada na área da ação ocorreria em 18 minutos. O comandante continuou no periscópio, na busca visual dos alvos 37 e 38. Com certeza, eles estavam navegando apagados. O operador do radar, a cada dois, três minutos, “cantava” as distâncias diminuindo: “12 mil jardas, 9 mil jardas, 6 mil jardas, 4 mil jardas, 3 mil, 2 mil”... Em seguida, o sonar informou: – CTs diminuindo rotações... Súbito, ouviram-se os ruídos abafados de dois tiros de canhão e Felipe viu um clarão surgir sobre Malfeitor, logo seguido de outro. Eram granadas iluminativas disparadas pelos CTs sobre Altaneiro e as lanchas e barcos diversos, em sua volta. Enquanto os paraquedas luminosos desciam lentamente, o cenário ficou todo visível, desnudando as atividades da desova, que pararam imediatamente. Os CTs entraram em cena, com luzes acesas, disparando rajadas de metralhadoras antiaéreas pesadas, com balas traçadoras vermelhas, por sobre a área. Estabeleceu-se o caos, semelhante a quando se acende a luz num quarto escuro cheio de baratas. Apavoradas, as embarcações fugiram em várias direções, freneticamente jogando a muamba n’água. Um dos CTs saiu perseguindo algumas delas, fazendo-as parar, a fim de embarcar fuzileiros navais para levá-las até o porto do Rio. O outro contratorpedeiro aproximou-se do Altaneiro, para apreendê-lo. O comandante e o imediato estavam nos periscópios, emocionados com o que viam, quando o operador de sonar avisou: – Alvo 33 deu máquinas atrás, com alta rotação do hélice!... Era o Altaneiro tentando fugir! O submarino estava pela popa dele, a cerca de 600 jardas. O brusco recuo do mercante poderia aproximá-lo perigosamente do S. Além disso, o CT, que cuidava dele, certamente o perseguiria na tentativa de fuga. Rapidamente, Felipe girou seu navio para fora e afastou-se da confusão, observando tudo pelo periscópio. O sonar informou: – Alvo 33 parou a máquina...; alvo 33 deu adiante com alta rotação, está se aproximando... O comandante assistiu pelo periscópio essa manobra do Altaneiro, que havia girado em sua direção e se aproximava perigosamente do submarino. O navio arrastava duas lanchas presas a ele, das quais eram jogadas n’água caixas e caixas de contrabando. Esse estranho conjunto era seguido pelo CT, que o iluminava com holofotes e lançava foguetes de sinalização sobre os tripulantes e a muamba empilhada em seus conveses. O outro CT também se aproximava, perseguindo uma lancha em alta velocidade, em violento ziguezague. Os riscos de colisão eram grandes e o comandante do S resolveu evadir-se. Para tanto, mergulhou fundo e pousou suavemente, suas 2.400 toneladas, na areia do solo submarino, a 60 metros de profundidade. Ali, permaneceram em silêncio, acompanhando, pelo sonar, a confusão na superfície. O pau estava comendo. De vez em quando, a 30 metros acima deles, passava uma lancha ou um CT em sua perseguição, parecendo uma locomotiva. Aos poucos, os ruídos foram enfraquecendo, indicando que o campo de batalha distanciava-se, na direção do Rio de Janeiro. O tempo de espera foi aproveitado, 40 por Felipe e sua valente tripulação, para relaxarem um pouco do duríssimo dia que haviam enfrentado. O imediato mandou servir sanduíches e uma calmante jacuba de maracujá, para todos os 75 homens a bordo. O comandante usou o fonoclama para informar-lhes o que tinha ocorrido, ressaltando o desempenho decisivo do submarino para o cumprimento da missão do Grupo-Tarefa. O imediato, em seguida, anunciou que o comandante havia concedido três dias de licença a todos, pelo excepcional desempenho na caçada dos contrabandistas criminosos. Um “viva” discreto percorreu todo o navio... Então, o sistema de som inundou o submarino com a “Tocata e fuga em ré menor” de Bach, da qual Felipe gostava muito. Baixinho... Algum tempo depois, o comandante trouxe seu submarino à superfície. O radar não indicou qualquer alvo na direção do Rio. Era sinal de que os CTs, o navio mercante e as embarcações apreendidas estavam na altura de Copacabana, prestes a entrar na Guanabara. O submarino navegou para o porto, na superfície e na maior velocidade possível, atracando, ao amanhecer, na Base de Submarinos, próxima a Niteroi. Houve licenciamento geral. Felipe chegou em casa, em Ipanema, com todos ainda dormindo. Beijou a mulher e os filhos, deitou-se e Revista do Clube Naval • 367 “apagou” até o meio-dia. Tomou um café reforçado e, como fazia com frequência, foi caminhar na praia, O comandante sentou-se na pedra do Arpoador, com uma sensação estranha. Quedou-se observando de perto o mar, sempre misterioso. Algumas horas antes, quando passara por aquele local, empenhara sua vida e de seus homens. Ficou, por algum tempo, repassando cada momento vivido daquela história meio louca. Sentia-se um tanto frustrado por ser absolutamente ignorado por todos que ali curtiam o espetacular cenário daquele dia de sol. Voltou para casa, almoçou tentando contar para a mulher e os filhos pequenos como tinha sido a “heroica” perseguição do bandido “malfeitor”. A reação mais esperta foi do filho mais velho, de seis anos, que lhe perguntou o de sempre, isto é, se vira algum tubarão... A mulher ouviu tudo um pouco ausente. Estava preocupada com a febre da caçula, de dois anos... Ao longo do dia, Felipe leu os jornais, viu televisão, arrumou alguns papéis, brincou um pouco com os filhos e foi dormir, sentindo um vazio e dominado pelo cansaço. Acordou cedo no domingo e foi comprar pão e leite, uma revista e jornais na banca junto a seu prédio. Os jornaleiros eram dois exuberantes italianos, calabreses, Carmelo e Annunciatto, Os pais deles, muito amigos, Revista do Clube Naval • 367 tinham lutado na II Guerra Mundial, embarcados nos cruzadores Zara e Fiume, afundados pelos ingleses na batalha do Cabo Matapan, ao sul da Grécia, em março de 1941. O pai de Carmelo morrera no combate e o de Annunciatto sobrevivera. Fora ele que trouxera as famílias para o Brasil, onde haviam se integrado totalmente. Ambos os jornaleiros estavam excitadíssimos quando Felipe se aproximou da banca. Começaram a lhe fazer uma série de perguntas sobre a “guerra dos contrabandistas”, mostrando um jornal com uma portentosa manchete: “Batalha naval! Navios brasileiros atiram em brasileiros”. Apanhado de surpresa, Felipe foi evasivo, comprou o jornal, dobrou-o e, constrangido, o colocou debaixo do braço, como que para escondê-lo. Alegou aos italianos que precisava levar o pão para as crianças e prometeu-lhes voltar a tratar do assunto mais tarde. Evitou o porteiro e os demais moradores e entrou em casa. Sentou-se no sofá e abriu o jornal, morto de curiosidade. Nas primeiras linhas, entendeu o que se passara. As palavras escandalosas da manchete traziam o apelo midiático para vender o jornal. Elas tinham sido pronunciadas pelo advogado (dos mais caros da praça) de um dos grandes contrabandistas envolvidos com a muamba. Era óbvia a estratégia do profissional: desviar o foco do assunto, condenando a ação dos navios da Marinha. A primeira página do jornal vinha recheada de fotografias de ações navais da II Guerra Mundial no Pacífico, incluindo desembarques de fuzileiros navais americanos. Não havia um contratorpedeiro brasileiro entre eles. Muito menos o submarino de Felipe. A Marinha recusara-se a tratar do assunto. A matéria era contada na versão dos contrabandistas. A enfase maior dizia respeito ao tiroteio havido no convés do Altaneiro, que fora iniciado por uma dúzia de mercenários, embarcados no Panamá, para proteger a muamba. Os criminosos, sem noção de 41 quem estavam enfrentando, tinham aberto fogo contra os fuzileiros navais, quando eles subiam a bordo para ocupar o navio. Um sargento fora ferido e o chefe dos mercenários morrera, com um tiro certeiro na cabeça, além de terem outros feridos menos graves entre eles. O falecido era sobrinho do contrabandista que contratara o advogado... Pior ainda, o jornal trazia, também, uma entrevista com um deputado federal, da oposição. Ele esbravejava contra a agressão aos brasileiros e os danos causados ao navio, patrimônio nacional. Teatralmente furioso, ameaçava pedir uma CPI no Congresso para apurar os fatos. Felipe foi relaxando, conforme lia as notícias. De repente, deu-se conta de que estava dando graças a Deus por nada ter sido mencionado sobre “seu navio”. Afinal, a principal característica dos submarinos é operar de modo furtivo. Os jornaleiros nunca souberam metade do que, de fato, acontecera. Além disso, os bravos submarinistas somos naturalmente modestos. É melhor assim... n *Contra-Almirante (Ref). [email protected] NOTAS • (1)1 pé = 0,305m • 1 jarda = 3 pés = 0,915 metros • 1milha marítima = 2.000 jardas = 1.852metros • 1 nó (velocidade) = 1 milha por hora • 10 nós = 18,5km por hora (valores aproximados). (2) No universo dos submarinistas, todos os navios, encontrados nos mares por submarinos, são chamados de “alvos” (inclusive os outros submarinos, muito a contragosto). (3) Cota periscópica – profundidade na qual um submarino pode atingir a superfície do mar com seus periscópios e demais “mastros operativos”, como radar, comunicações-rádio, contramedidas eletrônicas (CME) e “esnorquel” (aspiração de ar). (4) Lançar o ferro – jogar a âncora n’água; ancorar o navio (para mantê-lo em posição). (5) “Bravo Zulu” – Ação bem executada! Parabéns! – do Código de Sinais Táticos. Alemanha VIAGENS da Baviera a Berlim Texto e fotos: Rosa Nair Medeiros* Possuidora de uma grande diversidade de belezas naturais e atrações culturais, a Alemanha é um destino turístico fascinante. Cada região apresenta as suas singularidades, que vão de castelos de contos de fadas, vilas medievais românticas a cidades com requintada arquitetura e centros urbanos cosmopolitas, com edificações de design inovador. Seria necessária uma longa jornada para conhecer tantas atrações, o que torna a escolha do roteiro um delicioso desafio. C omeçamos essa viagem pela festiva Munique, capital do estado da Baviera. Famosa pela Oktoberfest e pelas casas de cerveja, a cidade tem muito mais a oferecer, apresentando um vasto patrimônio histórico e magníficas galerias de arte. A origem de Munique remonta ao século X, quando monges fundaram um assentamento às margens do rio Isar. Em 1158, o duque da Saxônia Heinrich der Löwe assumiu o controle do lugar. Um século depois, a cidade tornouse a sede principal da dinastia Wittelsbach; e em 1806 passou a capital do então Reino da Baviera. O coração de Munique é a Marienplatz, dominada pelo prédio neogótico da Neues Rathaus (Nova Prefeitura), construído entre 1867 e 1909. A sua torre abriga o relógio Glockenspiel, um dos maiores carrilhões da Europa, com 43 sinos de timbres distintos, acompanhados por um desfile de 32 figuras. Multidões reúnem-se para vê-lo entrar em ação. Atualmente, funciona no edifício o escritório de informações turísticas e no subsolo um restaurante e cervejaria. Na praça também destacam-se a Coluna de Maria, do século XVII, e a Altes Rathaus (Antiga Prefeitura), reconstruída após a Segunda Guerra Mundial. As cúpulas verdes das torres da Frauenkirche, um dos símbolos da cidade, são avistadas da Marienplatz. A Catedral de Nossa Senhora foi erguida no final do século XV, em estilo gótico com traços renascentistas. O seu interior é belo e iluminado, realçado pelos vitrais coloridos. A famosa cervejaria Hofbräuhaus também encontra-se nas imediações da Marienplatz. Fundada em 1589 pelo duque Wilhlem V, para atender à corte, a cervejaria foi aberta ao público somente em 1828. A animação fica por conta das bandas típicas que ali se apresentam. O amplo prédio, localizado na Platzl, precisou ser reerguido após a Segunda Guerra. Muitas das principais atrações da cidade estão situadas em uma área delimitada A imponente fachada da Neues Rathaus domina a Marienplatz 42 Revista do Clube Naval • 367 Revista do Clube Naval • 367 43 pela Odeonplatz (uma grande praça) e os portões antigos da cidade: Isator, a leste; Sendlingertor, ao sul; e Kalrstor, a oeste. A praça é cercada por edificações majestosas, como a impressionante Theatinerkirche, de estilo barroco. O interior da igreja é muito iluminado, decorado com detalhes em estuque branco. A partir da Odeonplatz pode-se acessar o magnífico Residenz, que foi sede da dinastia Wittelsbach durante séculos. O complexo palaciano abrange o Antiquarium (um grande salão renascentista), um teatro rococó, os aposentos reais, capelas e museus – destaca-se o Schatzkammer (Tesouro), repleto de joias, coroas e ornamentos. As cúpulas verdes das torres da Frauenkirche, um dos símbolos de Munique Prédio da BMW Welt e a torre do Olympiapark 1972. Os pavilhões em forma de tendas gigantes e a torre de 290 metros de altura figuram como símbolos de modernidade. Outro belo lugar, a pouca distância da cidade, é o Schloss Nymphenburg, um dos maiores palácios barrocos do país, construído no século XVII. A antiga residência de verão dos príncipes eleitores de Munique foi transformada em museu. Os visitantes podem conhecer a sua luxuosa decoração, o parque com árvores seculares e canais, a coleção de carruagens, de porcelanas e o Museu do Homem e da Natureza. Os castelos do rei Ludwig Há passeios organizados que partem de Munique com destino aos famosos castelos do rei Ludwig II. A primeira parada é no Schloss Linderhof, o menor dos palácios Preciosos acervos construídos pelo monarca, mas o único que viu concluído. O seu aprazível jardim, em estilo francês, apresenta construções ornamentais, como a Gruta de Vênus e a Casa Banda típica tocando na Hofbräuhaus Os moradores de Munique têm muito orgulho dos seus museus e galerias de arte, pois reúnem valiosos acervos. A Alte Pinakothek (Antiga Pinacoteca) possui centenas de telas de artistas europeus do século XIV ao XVIII, incluindo trabalhos de Peter Paul Rubens, Sandro Botticelli, Leonardo da Vinci. Na Neue Pinakothek (Nova Pinacoteca) O magnífico Antiquarium, salão renascentista da Residenz Marroquina. Construído entre 1869 e 1878, está localizado nas proximidades de Oberammergau, povoado famoso pela representação da Paixão de Cristo, que ocorre a cada dez anos, e por seu artesanato. A viagem prossegue em direção ao exuberante Schloss Neuschwanstein, situado em um cenário montanhoso, cercado por lagos. Erguido entre 1868 e 1886, na vila de Schwangau (cerca de 130 quilômetros de Munique), não chegou a ser inteiramente concluído – apenas 14 salas do castelo podem ser O Castelo de Neuschwanstein inspirou Walt Disney podem ser vistas pinturas e esculturas europeias do século XVIII ao início do século XX. Uma das mais importantes coleções de arte moderna e contemporânea tem como endereço a Pinakothek der Moderne. Esse espaço dedica várias salas ao expressionismo, com trabalhos de Emile Nolde e Max Beckmann. O circuito expositivo também apresenta a história do design. Voltado para as ciências e as tecnologias utilizadas em diferentes períodos, o Deutsches Museum é um dos mais visitados; o seu acervo inclui embarcações, automóveis e aviões antigos. Outra atração, especialmente para os aficionados por carros, é o Museu BMW, adjacente à sede da empresa. Do outro lado, fica o edifício da BMW Welt, onde o cliente pode conhecer e adquirir os novos produtos da marca. Nas imediações encontram-se as instalações do Olympiapark, palco dos Jogos Olímpicos de 44 Revista do Clube Naval • 367 Revista do Clube Naval • 367 45 visitadas, as demais permanecem vazias. A arquitetura e a decoração dessa imponente edificação são uma mescla de estilos: bizantino, no Salão do Trono; românico, nos aposentos privados; e gótico, no impressionante Salão dos Cantores. A sua arquitetura inspirou Walt Disney para a construção do Castelo da Bela Adormecida. A Marienbrücke (Ponte de Maria), construída 90 metros acima de um riacho, na vila de Schwangau, proporciona uma linda vista do Neuschwanstein. Menos pomposo, mas igualmente merecedor de uma visita, o Castelo Hohenschwangau foi onde Ludwig passou grande parte de sua juventude. A residência de verão da família do rei Maximillian II (pai de Ludwig) foi construída em estilo neogótico, entre 1832 e 1836, em Schwangau. Triberg, uma das pequenas e belas cidades da Schwarzwald A Floresta Negra Prosseguindo pelo sul da Alemanha, descortinam-se paisagens encantadoras. Além da Baviera, a região inclui o estado de Baden-Württemberg, onde está localizada a Schwarzwald (Floresta Negra), na fronteira entre a França e a Suíça. Essa impressionante área formada por montanhas e florestas constitui um dos grandes parques naturais da Alemanha. Várias cidadezinhas lindas, museus e fazendas centenárias integram-se à paisagem deslumbrante, onde se destaca o verde de tons escuros das árvores. A região também é famosa pelos relógios cuco; os “Bollenhut”, tradicionais chapéus com enormes pompons vermelhos, usado em ocasiões especiais; pelas fontes termais, localizadas especialmente na cidade de Baden-Baden; e, claro, pelo delicioso bolo Floresta Negra. Situada no lado ocidental da Schwarzwald, Freiburg im Breisgau constitui uma base para conhecê-la. Essa bela cidade, cercada por montanhas, foi fundada em 1120. Além de monumentos, museus, o centro histórico possui praças animadas com vários restaurantes e bares. O marco mais importante da cidade é a Münster, a catedral gótica, que começou a ser erguida no século XIII e levou 300 anos para ser concluída. Em frente à igreja, está a graciosa praça Münsterplatz, rodeada por construções imponentes. A Münster marca o horizonte de Freiburg Um dos maiores relógios cuco do mundo está em Triberg Outros destaques são o Augustiner Museum, com uma coleção histórica da região do Alto Reno, do século IX ao XX, e o Martinstor, um dos portões medievais. A pequena Titisee, às margens do lago de mesmo nome, recebe inúmeros visitantes. O portão medieval de Martinstor 46 Localizada na rota dos relógios, a cidade é voltada ao comércio desses tradicionais instrumentos de medição do tempo. O trajeto de trem de Freiburg a Titisee acompanha a floresta, revelando encantos da paisagem. Outra pitoresca cidade é Triberg, onde encontramos um dos maiores relógios cuco do mundo. Mais ao sul, em Fürtwangen pode-se visitar o Museu Alemão de Relógios, que possui um vasto acervo. Um belo lugar, especialmente no verão, para uma panorâmica da floresta e seus vilarejos é a montanha Feldberg. No inverno, a neve transforma a paisagem, atraindo os esquiadores. Outros pontos históricos são a Paulkirche, igreja construída entre 1786 e 1833 (não tem mais uso religioso); a Kaiserdom (século XIII), sede das coroações de reis germânicos entre 1562 e 1792; e o monumental prédio da antiga ópera. Todas essas atrações estão perto do moderno bairro dos bancos. A Goethe Haus, nos arredores do centro histórico, também recebe muitos visitantes. A casa, onde o escritor Johan Wolfgang Goethe nasceu em 1749 e morou até 1775, conserva móveis originais, como a escrivaninha de Goethe. Frankfurt possui excelentes museus; alguns dos melhores estão concentrados numa área na margem sul do rio Main, chamada Museumsufer. Encontram-se ali o badalado Städelsches Kunstinstitut, que abriga uma das mais importantes coleções de pinturas do século XIV ao XX, o Deutsches Architekturmuseum (Museu Alemão de Arquitetura), o Deutsches Filmmuseum, com exposições permanentes sobre o início do cinema, e outras instituições culturais. A melhor maneira de capturar o atual “skyline” de Frankfurt é do terraço da Main Tower. Dali, fica claro que é um grande centro de negócios, mas que possui também muito charme. Vale do Reno Pode-se conhecer a partir de Frankfurt um dos mais belos trechos do rio Reno. Os passeios organizados fazem de ônibus o trajeto até o povoado de Assmannshausen, de onde partem as embarcações. No percurso, que vai geralmente a St. Goar, sucedem-se As casas típicas da praça Römerberg Frankfurt am Main Deixando a região da Floresta Negra, o próximo destino é Frankfurt am Main, o coração financeiro da Alemanha, no estado de Hesse. A primeira vista impressiona por seus arranha-céus, sendo chamada pelos moradores de “Mainhattan”. No seu horizonte destacam-se o Commerzbank, a Main Tower, entre outros imensos edifícios. Sede do Banco Central Europeu, do Banco Federal Alemão, da Bolsa de Valores, essa capital de negócios, também conhecida por suas feiras comerciais, não tem propriamente um ambiente de metrópole; pois não é uma cidade grande. O melhor lugar para sentir-se em um “vilarejo” é a praça Römerberg, no compacto centro histórico. Ali está a antiga Prefeitura (Zum Römer) e um grupo de casas típicas com fachada de madeira, chamado Ostezeile. No centro, a Fonte da Justiça, monumento do século XVI. A maioria dos prédios precisou ser reconstruída após a Segunda Guerra. Também compõe a Römerberg, a Igreja de São Nicolau, consagrada em 1290 – hoje pertencente a uma congregação luterana. Revista do Clube Naval • 367 Frankfurt e seus arranha-céus Revista do Clube Naval • 367 colinas pontilhadas de vinhedos, vários castelos e vilarejos, cada um com seu próprio festival do vinho. Um pouco antes de St. Goar encontra-se o pitoresco Rochedo de Loreley, formação que se ergue sobre uma curva acentuada do rio. Segundo a lenda, uma ninfa loira atraía os marinheiros para a morte nesse local. Acima do povoado, mantêm-se firmes as ruínas do espetacular Burgs Rheinfels (século XIII), que foi o maior e mais importante castelo às margens do Reno. Castelos, vinhedos e vilarejos, atrações do Vale do Reno 47 O Tiergarten Berlim, uma cidade pulsante A capital da Alemanha impressiona pela variedade de museus, palácios, edifícios históricos e pelas construções com design de vanguarda. Sem esquecer do passado, Berlim redefine-se com olhar futurista e mostra-se uma cidade pulsante, com uma vida cultural efervescente. O melhor lugar para iniciar a jornada é pelo Brandenburger Tor (Portão de Brandemburgo), situado na extremidade ocidental da Avenida Unter den Linden. Erguido entre 1788 e 1791 para celebrar as vitórias bélicas prussianas, esse arco triunfal ficou durante muitos anos próximo ao muro, que dividia Berlim. A maioria das atrações históricas está numa área relativamente próxima, como o grandioso prédio do Reichstag (Parlamento Alemão). Na década de 1990, depois da queda do muro, o Reichstag recebeu uma nova ala, o Domo de Vidro, projetado pelo arquiteto britânico Norman Foster. A estrutura futurista, com cerca de 50 metros de altura, tem presença marcante. Também vizinho ao Portão de Brandemburgo encontra-se o Memorial do Holocausto, uma enorme e contundente sequência de estelas de concreto construída em memória aos judeus mortos sob o regime de Hitler. No subsolo funciona um museu. Seguindo na Unter den Linden, chega-se à Bebelplatz, rodeada de edifícios imponentes do século XVIII, como a Catedral de Santa Edwiges, a Antiga Biblioteca Real e prédios da Faculdade Humboldt. Outra praça especial, a barroca Gendarmenmarkt, encontra-se a pouca distância. Ela reúne a Catedral Francesa (Französische Dom) dos huguenotes, a Catedral Alemã (Deutscher Dom), ambas do século XVIII, e a Konzerthaus (1821), onde a Orquestra Sinfônica se apresenta regularmente. O maior e mais belo parque de Berlim é repleto de lagos, estátuas e monumentos. O Tiergarten fica no coração da cidade e abriga a Coluna da Vitória (Siegessäule), erguida para comemorar as conquistas da antiga Prússia em diversas guerras. No topo, destaca-se a estátua dourada da deusa Vitória. A partir do parque é fácil acessar o Kulturforum (Fórum Cultural), que reúne vários espaços como o inconfundível prédio da Filarmônica, projetado pelo arquiteto Hans Scharoun em 1961, com a melhor acústica da Europa. Destacam-se também a magnífica Gemäldegalerie, com 2.700 pinturas europeias dos séculos XIII ao XVIII, a Neue NationalGalerie (Nova Galeria Nacional), destinada a uma coleção de pinturas e esculturas do século XX, a Biblioteca Nacional e um museu de instrumentos musicais. Outro local que concentra os visitantes é a moderna Potsdamer Platz, situada a uma pequena distância do Fórum Cultural. Devastada durante a Segunda Guerra e abandonada na época da divisão entre Berlim Oriental e Ocidental, a praça é pontilhada por edifícios vanguardistas, resultado de um plano de rejuvenescimento. A linda Porta de Ishtar da cidade de Babilônia, no Pergamonmuseum A Ilha dos Museus Cinco instituições de importância mundial estão na Museumsinsel (Ilha dos Museus). A grande estrela é o Pergamonmuseum, erguido para abrigar o colossal Altar de Pérgamo, datado de 197 a 158 a.C., com belos frisos que ilustram a guerra entre deuses e titãs. Reúne outros tesouros como a Porta de Ishtar e mosaicos da Via das Procissões da Babilônia, o Portão do Mercado de Mileto e uma coleção de arte islâmica. O Altes Museum (Antigo Museu), em um prédio que lembra um templo grego, é também destinado a obras da antiguidade. O icônico Portão de Brandemburgo 48 No Neues Museum (Novo Museu) está o famoso busto da rainha Nefertiti, de aproximadamente 1340 a.C. A peça integra a coleção egípcia, que ocupa três andares desse belo espaço. As demais instituições são a Alte Nationalgalerie (Antiga Galeria Nacional), com um rico acervo de pinturas e esculturas europeias do século XIX, e o Bode-Museum, que reúne coleções de arte antiga, bizantina, além de uma seção de numismática. Compõe a arquitetura da ilha, a belíssima Berliner Dom. A catedral protestante foi construída entre 1895 e 1905, em estilo neobarroco. Avista-se da Ilha dos Museus a futurista torre de TV, Fernsehturm, com 368 metros de altura, situada na Alexanderplatz. Elevadores possibilitam o acesso à plataforma mirante na esfera prateada (a 203 metros), onde se pode disfrutar de uma vista panorâmica. Acima do mirante há um restaurante giratório. Nos arredores da Alexanderplatz estão a Marienkirche, igreja do século XIII, em estilo gótico, e o enorme prédio vermelho da Rotes Rathaus (1865), sede oficial da Prefeitura de Berlim. O friso conhecido como “Crônica de Pedra” retrata figuras históricas e eventos que moldaram a região até a fundação do império alemão (1871). Revista do Clube Naval • 367 do muro era o lugar para achar roupas de grife. Embora vários designers e lojistas tenham migrado para outros bairros, ali ainda se encontram excelentes lojas e modernos centros comerciais. Reserve um dia para conhecer Potsdam, a capital do estado de Brademburgo, situada a menos de 30 quilômetros de Berlim, às margens do rio Havel. Repleta de arte e arquitetura, a cidade foi declarada Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco. Além do centro histórico com magníficos edifícios, possui lindos palácios. O Parque Sanssouci é um dos mais bonitos complexos palacianos da Europa. A primeira construção foi o Schloss Sanssouci (século XVIII), servindo como residência de verão de Frederico, o Grande. Videiras formam uma entrada grandiosa. Com o passar dos anos houve o acréscimo de outras edificações, como o Neues Palais (1763-1768), um edifício monumental em estilo barroco, e a Orangerie, amplo palácio para hospedar a realeza estrangeira e outros convidados. Charlottenburg e Potsdam Uma boa maneira de começar o dia em Berlim é passeando pelos jardins do Schloss Charlottenburg, ponto central do bairro de mesmo nome. Construído em estilo barroco italiano, no século XVII, era uma das residências dos reis da Prússia. Mobília requintada e obras de arte do século XVII ao XX ocupam os cômodos do grande palácio da dinastia Hohenzollern. Depois dirija-se à Kürfurstendamm, ou simplesmente Ku’damm, a grande rua do comércio berlinense. Antes da queda O magnífico domo de vidro do Reichtag O prédio do Reichtag (Parlamento) Ao retornar a Berlim, complete a visita com um passeio de barco e descubra encantos não tão evidentes. De forma discreta, podemos observar os sólidos alicerces de prédios centenários, a leveza dos modernos edifícios, o ritmo incessante das múltiplas obras, a serenidade bucólica do Tiergarten e a descontração dos berlinenses espraiando-se à beira do rio, no verão. Com essa esplêndida vista do Spree, nos despedimos da Alemanha, sabendo que ainda há muito a ser visto. Um convite para outras incursões por suas lindas paisagens, distribuídas pelas diferentes regiões. n. *Capitão-de-Corveta (T). Revista do Clube Naval • 367 49 FLORES AO MAR J segunda guerra 21 de julho DIA EM MEMÓRIA DOS MARINHEIROS MORTOS EM GUERRA Israel Blajberg* No friozinho da manhã uma neblina suave se estende pela baía de Guanabara. Faltando pouco para encerrar o turno de serviço, as sentinelas do 1o Distrito Naval aprestam-se para receber os primeiros visitantes que vão chegando para embarcar no Navio Patrulha (NPa) Gurupi. Sentado em um banco de cimento à beira do antigo Cais dos Mineiros, um senhor idoso nos sorri. Talvez tivesse sido um antigo marinheiro... 50 50 á se passaram 70 anos dos ataques traiçoeiros de submarinos nazistas que vitimaram quase 1.500 brasileiros. Mais de 30 navios foram torpedeados. A cada 21 de julho os últimos ex-combatentes ainda retornam para cumprir o ritual das flores ao mar, as medalhas reluzindo ao peito, boinas azuis e verdes, o reencontro com antigos companheiros na homenagem aos bravos que honraram o juramento de, ao prestar o serviço à pátria, defendê-la se for preciso com o sacrifício da própria vida. O pequeno ônibus conduz o grupo pelo cais estreito da ilha Fiscal, onde os navios patrulha do Grupamento Naval do Sudeste (SE) se encontram atracados. Um deles foi contemplado com uma missão honrosa, que culminará com o lançamento de flores e pétalas ao mar diante da praia de Copacabana. Chegamos. O Gurupi é um navio compacto de apenas 290tdw, com 25 tripulantes. O comandante nos recebe. É um jovem capitãotenente que se emociona ao saudar os excombatentes. Logo suspendemos e estamos singrando mansamente o canal ao longo da ilha das Cobras. A cada navio ultrapassado as continências e toques de apito renovam o antigo ritual das Marinhas executado pelo tenente encarregado da Divisão de Convés. A neblina não é muito intensa, ocultando a paisagem distante, mas permitindo divisar as silhuetas navais próximas. Descemos ao rancho, onde nos aguarda um bom café da manhã, e o carinho da tripulação. Todos são extremamente solícitos, revelando na conversa estarem evidentemente muito felizes em terem os veteranos a bordo. O Gurupi é um navio moderno, construído paradoxalmente em 1996 na mesma Alemanha que para essas mesmas águas enviou os seus U-boats para atacar sem Revista do Clube Naval • 367 aviso um país ainda rural, sem recursos para fazer frente à tecnologia nazista que pretendia impor a sua ideologia racista equivocada a um país de iguais. Mas grande esforço foi feito pelo povo brasileiro, e a vitória final foi conseguida com a participação de gente como os que aqui estão a bordo. Subimos ao passadiço acompanhando as operações do navio. O comandante observa pelo binóculo uma embarcação à entrada da barra atravessando o canal que iremos utilizar em seguida. Em princípio parece tratar-se do Felinto Perry, navio de socorro submarino da Marinha do Brasil, mas a identificação eletrônica na tela revela que se trata do Gyre, um navio de apoio que também tem um helipad à popa. Passando para mar aberto, observamos a distância um comboio. O tenente chefe de Máquinas informa tratar-se do Guajará, da mesma classe que o Gurupi, dirigindo-se para exercícios em Angra dos Reis, seguido por duas lanchas da Capitania. Divisamos ao longe a silhueta de um barco de pesca em meio à neblina. Parece bastante antigo, pintado de preto. Apareceu de repente, no momento anterior não estava ali. Alguns pescadores acenam para nós. Tomando o binóculo, conseguimos saber o seu nome: é o Shangri-la. A esteira do comboio do Guajará faz oscilar o pesqueiro lá próximo. As ondas encobrem por vezes a sua silhueta, enquanto os pescadores dão um último adeus, até que ele de repente desaparece, como se tivesse sido tragado pelo mar. Parecia que os homens queriam nos dizer alguma coisa, aparentavam cansaço, roupas simples, uma saudação, talvez. De repente o mar naquela direção ficou calmo, como se nenhuma embarcação tivesse jamais estado ali. O Gurupi chegou ao local da cerimônia diante de Copacabana. A tripulação formada no convés e os veteranos alinhados diante da coroa de flores ouvem a Ordem do Dia do comandante de Operações Navais, louvando os homens das Marinhas de Guerra e Mercante que se sacrificaram no cumprimento do dever, desde Greenhalgh e Marcílio Dias até os bravos da Corveta Camaquã, do Navio Auxiliar Vital de Oliveira e do Cruzador Bahia. A grandeza dos seus exemplos será a inspiração para vencer, com coragem, determinação, desprendimento e dedicação, os desafios que se apresentarem para a Marinha do Brasil. Revista do Clube Naval • 367 A coroa de flores é lançada às águas, perpetuando a homenagem aos bravos marinheiros ao oscilar suavemente no balanço do mar, junto com punhados de pétalas que, emocionados, os veteranos atiraram ao mar. Os banhistas em terra aproveitam o sol acolhedor da manhã, e, divisando ao longe um navio diante da praia, pouquíssimos se darão conta do que está acontecendo. A homenagem é praticamente anônima, invisível. Apenas um ou outro jornal dará uma pequena nota, perdida nas páginas internas, se tanto. Custa a crer que naqueles dias remotos da década de 40, todos os dias as manchetes dos jornais noticiaram os feitos da Marinha do Brasil. Mas a vida é assim, e fica a certeza de que, se um dia for preciso, os homens e mulheres de uniforme branco estarão sempre a postos. Pensativos, os veteranos recordam os tempos em que eles mesmos estavam ali, a bordo de pesadas belonaves, em comboios protegendo a navegação marítima, numa época em que não havia as estradas de hoje, garantindo a comunicação e o transporte de passageiros, mercadorias e cargas estratégicas entre os portos brasileiros e do exterior. Retornamos de volta ao cais. Logo chega a hora do desembarque. O Gurupi atraca ágil e fazem-se as despedidas. Na volta para casa, a esperança de que no próximo ano todos estaremos novamente aqui, para prestar mais uma merecida homenagem aos heróis do mar. Mais um pouco e a noite vai chegando. Os anjos do Senhor estão por ali aguardando a hora. No mar, os espíritos dos que partiram durante a batalha sobrepairam diafanamente. Eles se manifestam. Tentam nos enviar uma mensagem, reforçando que seu sacrifício não tenha sido em vão, que o entendimento prevaleça para todas as nações. Apenas as formas variam... Pode ser um velho marinheiro solitário, sentado à beira do cais... Pode ser um pesqueiro que reaparece, com a tripulação acenando ao longe... n N. do A. – Em junho de 1943, o pesqueiro Shangri-la desapareceu ao largo de Cabo Frio. Seus dez tripulantes jamais foram encontrados. O mistério foi esclarecido em 1999 quando os arquivos militares americanos foram abertos e revelaram que o Shangrila foi afundado a tiros de canhão pelo submarino nazista U-199. Mães e viúvas morreram na miséria, esperando. Desarquivado o inquérito, em 31 de julho de 2001, o Tribunal Marítimo finalmente reconheceu os dez pescadores como heróis de guerra, e seus nomes foram inscritos em junho de 2004 no Monumento Nacional aos Mortos da II Guerra Mundial. * [email protected] Professor da UFF e 2º diretor social da SOAMAR-RIO 51 51 FÉ CATÓLICA Papa Francisco poderia ser dividida entre dois Papas? O que teria provocado o anúncio da primeira renúncia, em 20 séculos. Voltando ao “nada por acaso”... O conclave para eleição de um novo Papa é um ritual inalterado desde 1274, iniciado com Papa Gregório X. Foi a Constituição Apostólica do Papa João Paulo II que consolidou a eleição por votação direta, com cédula em papel. Os Cardeais votam entre si, escrutinam, verificam a contagem e queimam as cédulas. A cor da fumaça, quando branca, informa uma escolha por maioria, quando negra, uma nova eleição. Ao renunciar, Bento XVI não perdeu sua qualificação. Continuou mantendo o Titulo Honorífico de “Sua Santidade”, ao qual foi acrescentado o de “Papa Emérito”. Solução, não por acaso..., criada em 2013. O seu Anel Papal foi destruído conforme a tradição e Bento XVI passou a trajar a ‘batina branca clássica’. Ele se instalou em sua residência de Castel Gandolfo, a 30km de Roma. O conclave, iniciado em 11 de março, elegeu em apenas dois dias um novo Papa. O comunicado do dia 13, Habemus Papam, o Pastor dos Jovens de Espírito Antonio de Oliveira Pereira* Cada um que passa em nossa vida passa sozinho... Porque cada pessoa é única para nós, e nenhuma substitui a outra... Cada um que passa em nossa vida passa sozinho, mas não vai só... Leva um pouco de nós mesmos e deixa um pouco de si. Há os que levam muito, mas não há os que não levam nada. Há os que deixam muito, mas não há os que não deixam nada. Esta é a mais bela realidade da vida... A prova tremenda de que cada um é importante e que ninguém se aproxima do outro por acaso! Antoine de Saint-Exupéry glio é homem de hábitos simples, próprios de um cidadão despojado, possui coragem para ouvir os menos favorecidos e promover ações, alicerçadas em sua fé, na busca de diálogo com os governantes. Eleito, ele solicita a substituição do trono dourado por uma cadeira de madeira e a retirada do tapete vermelho, demarcador de seu trajeto diário. Recusa-se a vestir a tradicional estola vermelha e continua usando calça e sapatos pretos. Não abandona sua cruz de prata e passa a usar um anel papal também de prata. Que mudanças ele fará além das de caráter pessoal? Ainda por não acreditar no “Por acaso...” devo informar que: O Papa Francisco foi eleito exatamente por ser um homem capaz de enfrentar de coração aberto a expressão máxima de sua fé em Cristo, seguir os passos do maior edificador de mudanças da história da humanidade. Em entrevista ao Fantástico, ele afirmou que, na reunião de trabalho dos Cardeais, antecedente ao conclave, os objetivos da Igreja e sua renovação junto aos fiéis foram amplamente discutidos. Parece existir o desejo de mudança na V ários leitores poderão afirmar terem lido o texto acima em outras publicações, Afinal seria horrível concordar que a vida acontece por acaso... ao sabor do vento, certamente eu não penso assim. Quando, em 11 de fevereiro, o Papa Bento XVI anunciou que iria renunciar no dia 28 do mesmo mês, dúvidas me abordaram a procura de motivos. Como um homem santo, segundo a Bíblia, poderia abdicar de seu poder divino? A santidade espiritual *Jornalista foi lido pelo cardeal protodiácono e decano, anunciando ao mundo, da varanda central da Basílica de São Pedro, no Vaticano, que o novo pontífice aceitou a eleição. O Papa Francisco foi apresentado ao povo e deu a sua primeira bênção Urbi et Orbi. Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, é argentino, torcedor de futebol, ativista político, contestador das ostentações. Um pastor obstinado pelo contato pessoal com as crianças, os jovens, os humildes. Único Papa nascido nas Américas e Jesuíta. Padre Bergo- 52 condução dos destinos da Igreja Católica, uma maior aproximação com o povo, um pastoreio mais efetivo, em busca de recuperação de fiéis. Podemos entender que os Cardeais eleitores de Francisco consideram a importância destas proposições. Ao chegar no Rio de Janeiro, em 22 de julho de 2013, na Jornada Mundial da Juventude, o Papa foi recebido com entusiasmo por uma multidão de católicos. Em poucos minutos conquistou a todos. Uma empatia imediata com o “povo do mundo”. Ele procedeu exatamente como na Argentina ou Roma, o mesmo modelo de conduta com o povo. Aproximou-se de todos, sem receio, com o coração transbordante de amor ao próximo. Despedindo-se do Rio de Janeiro e de aproximadamente três milhões de jovens, de 180 nações, em 28 de julho de 2013, após alguns dias de convívio, ficou a certeza de que o total respeito aos ensinamentos de Cristo, a simplicidade, o falar ao coração, a demonstração do afeto, do despojamento, da humildade e do amor ao próximo são os alicerces da fé. O “acaso”, especificamente, neste caso, foi um bem elaborado plano de Deus. O Papa Francisco, em atitude de exortação a cumplicidade com o povo, pediu que se rezasse muito por ele. Os jovens, inteiramente comprometidos, se integraram na missão de proclamar o evangelho para mundo. Missão cumprida, em 29 de julho de 2013, o Papa Francisco chegou ao Vaticano. Ficou a afirmativa cristã: Semeada a fé colher-se-ão os bons frutos... Papa Francisco, Sua Santidade passou em nossa vida sozinho..., mas não foi só... Levou um pouco de nós mesmos e deixou um muito de si. Cumpriu-se a mais bela realidade da vida... Cada um é importante e ninguém se aproxima do outro por acaso! n Revista do Clube Naval • 367 Revista do Clube Naval • 367 53 FÉ CATÓLICA A VIAGEM BRASILEIRA DO PAPA FRANCISCO EA JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE Sergio Tasso Vásquez de Aquino* O Rio de Janeiro viveu em estado de graça de 22 a 28 de julho de 2013, consequência da visita do Papa Francisco e da realização da Jornada Mundial da Juventude em terra carioca. Tal sublime sentimento foi transmitido ao Brasil todo e ao mundo pelos meios de comunicação social, num forte e comovido abraço de fé, esperança e caridade. Simples, bom, manso e humilde de coração como o doce Rabi da Galileia, de quem é o representante e vigário na Terra, Francisco desde o início de seu pontificado se revela como um dos grandes papas da Igreja e fiel seguidor dos exemplos de Pedro, Inácio de Loiola e Francisco de Assis. Conquistou de assalto o coração dos cariocas, dos brasileiros e dos peregrinos de 178 países que acorreram ao Rio, às centenas de milhares, que se apaixonaram e deixaram conduzir por sua pessoa, por seu testemunho de vida e maneira de proceder, por seus atos e atitudes, inspirados pelo Cristo Redentor e Salvador, por suas palavras iluminadas e abençoadas pelo Espírito Santo e pela sua fidelidade aos mandamentos de Deus Pai Todo-Poderoso. Exatamente como ocorre na praça de São Pedro, no Vaticano, desde que foi proclamado papa e bispo de Roma e passou a ser conhecido além dos ambientes da Igreja e dos limites da sua Argentina natal. Seguindo a síntese perfeita de Jesus para uma vida plena, “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como Eu vos amei”, o tema constante da sua pregação, na ordenação trinária tão jesuítica, foi o de abrir o coração ao amor infinitamente misericordioso de Deus, fazendo do Pai o centro e a motivação de nossas vidas, a conversão pessoal; de oferecer os dons e talentos com que fomos cumulados para o benefício dos semelhantes e a construção do bem comum, a evangelização; e de seguirmos a práxis do encontro, traduzida no generoso gesto de acolhimento, dos braços abertos sempre em busca da paz e da harmonia entre os seres humanos, nossos irmãos, e as nações. Sem medo ou receio, segundo a sua natureza, desde o primeiro momento em terra brasileira lançou-se aos braços do povo, sequioso por abraçá-lo e beijá-lo, como a um pai muito querido. Foi ao encontro, de braços sempre abertos, de crianças e adultos, pessoas saudáveis e enfermos, dignitários e simples representantes do povão sofrido, sem distinções ou restrições de qualquer espécie, com o sorriso que a todos conquistou nos lábios e a simplicidade na grandeza no coração. Quebrou todos os protocolos e se fez cada vez mais amado, com naturalidade e sem afetação, como é do seu feitio, por isso foi escolhido papa pelo Espírito Santo neste 54 Revista do Clube Naval • 367 Revista do Clube Naval • 367 55 momento crucial para a Igreja e o mundo. Não aceitou transitar em veículo blindado , de vidros fechados – “venho visitar amigos, como ficar separado numa caixa de vidro?” – e preferiu um simples carro popular a uma limusine de luxo. Definiu a Igreja como uma mãe, que necessita acarinhar seus filhos no regaço, bem junto ao coração, tratá-los com carinho e solicitude, nutri-los com seu amor incondicional, sempre presente e sem limites – “jamais se soube de uma mãe que se comunicasse com o filho apenas por carta!” Explicou a evasão de fiéis católicos para outras denominações cristãs pela falta de sacerdotes – ”as pessoas estão sedentas da mensagem do Evangelho; não tendo o padre a seu lado, buscam o pastor que está próximo”. Não opôs barreiras aos atos e gestos de amor e de dignificação humana – “se alguém tem fome ou precisa de educação, não importa quem venha em seu socorro, se católico, evangélico, judeu, muçulmano, budista... O importante é alimentá-lo e educá-lo”. Seguindo o tema da Jornada, que convida os católicos a serem missionários – “Ide, pois, fazei discípulos meus todos os povos (Mt 28, 19)” – explicou que não se precisa necessariamente ir a terras distantes. Basta cumprir a vocação missionária católica em família, no ambiente de trabalho, entre os amigos e conhecidos, por toda a parte que frequentarmos normalmente. Convidou os bispos e padres a irem ao encontro do povo de Deus – “não se fechar nas sacristias, esperando que nos venham procurar, mas sair ao encontro, de braços abertos, de quem precisa do amor de Deus e de consolação”. Instruiu os ministros de Deus a buscarem a simplicidade de vida, a fugirem da ostentação – “os bispos devem vencer a tentação de comportarem-se como príncipes, e todos os sacerdotes, que precisam de carro para seu trabalho evangelizador, devem buscar viaturas simples e, de resto, uma vida despojada”. Seguidamente, condenou a idolatria do dinheiro, do poder e da glória, que tem caracterizado o mundo e envenenado as relações humanas, e pregou a globalização do amor em lugar da globalização da cobiça e da escravização à pecúnia. Verberou a triste mentalidade materialista dominante, que considera descartáveis pessoas e grupos sociais, às vezes nações inteiras, apenas por critérios econômicos momentâneos e perversos – “não se pode aceitar que uma sociedade considere normal que se mantenha marginalizada uma parte de si mesma, as periferias”. “Uma sociedade que considera descartáveis seus dois extremos e deles descura, a juventude, que é o futuro, e os idosos, que são a experiência e a sabedoria, não pode subsistir.” Por tudo o que é, diz e faz, Francisco fazse cada vez mais amado e guia e farol para o povo que tem a bondade no coração, independentemente de crenças e outros rótulos e aspectos humanos, em sua peregrinação rumo ao infinito de Deus! Sua presença e seu testemunho de fé e de vida tocaram o coração do carioca, modificando seu comportamento para o bem. Nos últimos tempos, de ordinário mal-educado, egoísta e vítima de um mau humor que seguidamente descamba para a violência no relacionamento interpessoal do dia a dia, fruto das agruras, traições e desilusões por que tem passado e por culpa de péssimos líderes políticos e dirigentes - como de resto em todo o Brasil –, que geram desesperança, indiferença, descrença, revolta ou conformismo e acomodação, voltou a ser o que sempre foi, amistoso, acolhedor, presença de um bebê de menos de um ano de idade, o Emmanuel ou “Deus conosco”. Os exemplos foram abundantes: a senhora judia, mãe de família, que passou os dias inteiros diante da televisão, para nada perder da Jornada de fé; o jovem judeu que se condoeu de ver, tarde da noite, a multidão de peregrinos em longas filas pelas ruas, esperando a condução que não vinha; o rapaz flagrado pela TV, que desfraldou na praia de Copacabana a faixa com esses dizeres: “Sou evangélico, mas amo o papa Francisco. Ore pelo Brasil!” E o que dizer dos jovens, cariocas, peregrinos de todo o Brasil e de 178 países, que lotaram a cidade, suas ruas, praças, praias, meios de transporte, locais de turismo e de culto e deram um show de ordem, alegria, respeito ao semelhante e ao meio ambiente, paciência?.. Ajudaram até na limpeza da praia de Copacabana, após cada um dos quatro dias de eventos ali, com resultados exemplares e dignos de serem imitados diuturnamente: depois das aglomerações que chegaram até a congregar 3,5 milhões na última missa e um total de 5,5 milhões nas demais celebrações (1.500.000 + 1.500.000 + 2.500.000), a quantidade de lixo a ser retirado pela Comlurb era menor do que a do Réveillon de cada ano! Não houve registro de brigas, bebedeiras, qualquer tipo de violência, a despeito das notórias deficiências apresentadas pelos sistemas de transporte e de escoamento do trânsito e das dificuldades nas visitas aos monumentos, locais de turismo e até de encontrar lugares nos restaurantes, pelo incrível aumento de demanda de serviços! A paciência e a alegria dos jovens e demais simpático, solidário... Ao ponto de impressionar muito favoravelmente o papa, os peregrinos estrangeiros e o mundo. Voltou a ser, por todos aqueles dias mágicos, o carioca verdadeiro, espontâneo, alegre, prestativo e hospitaleiro, como festejado em verso e prosa pelos tempos afora! Esse povo carioca, assim tocado e transformado pela graça de Deus, deu testemunhos magníficos. Abriu suas casas, nos bairros nobres e nas favelas, para abrigar os 56 peregrinos, e do próprio povo carioca, foram constantes e contagiantes. Foi tudo uma grande festa de congraçamento, um grande encontro de amor baseado no ensinamento de Cristo: as bandeiras de Israel e da Palestina, juntas, portadas por fiéis de ambos os países, lado a lado; o abraço festivo de jovens dos Estados Unidos e do Irã, que, levando suas bandeiras nacionais, se encontraram na avenida Atlântica... Sim, a paz é possível, desde que os homens e mulheres sejam tocados pelo mandamento do amor em seus corações e renunciem ao ódio e outros sentimentos menores e mesquinhos! O último ato da visita do papa, sua despedida na Base Aérea do Galeão, foi muito simbólico e significativo. De um lado, o humilde servo de Deus, líder espiritual de 1,3 bilhão de fiéis, representante de Cristo na Terra e sucessor de Pedro, respeitado e amado por crentes de outras religiões e até ateus, mercê de sua pessoa e atitudes, abençoadas e conduzidas pela graça do Senhor. Com o sorriso cativante permanentemente nos lábios, modestamente, levava à mão a pasta contendo objetos pessoais, que o acompanhou desde a chegada. Do outro, o vice-presidente da República que o veio acompanhar à despedida, exemplarmente bem apresentado e trajado, autoconfiante e satisfeito consigo mesmo, dotado de bela e forte voz, fez magnífico discurso. Vencedor segundo os conceitos terrenos, é um dos A paz é possível, desde que os homens e mulheres sejam tocados pelo mandamento do amor em seus corações peregrinos do Brasil e do mundo, como fez meu cunhado e vizinho, que, por dez dias e com toda a alegria, recebeu seis italianos da cidade de Pescara, entre os quais dois sacerdotes. Nós mesmos, minha mulher e eu, que não nos havíamos inscrito junto à paróquia, modestamente tivemos a graça de acolher, por tempo menor, uma família de Maricá, com dois filhos menores, que veio ao Rio “para ver o papa” e ficaria mal alojada alhures. Sentimo-nos abençoados, pois, pela Revista do Clube Naval • 367 Revista do Clube Naval • 367 príncipes do mundo. A visita do papa ao Brasil e a Jornada Mundial da Juventude entre nós foram uma bênção, cujas boas sementes lançadas ainda nos darão muitos frutos e alegrias. O pontificado de Francisco será motivo de muitas transformações na Igreja e no mundo, para o bem e para a paz e a harmonia entre as pessoas e os povos e nações, segundo o mandamento do amor reafirmado e pregado por Nosso Senhor Jesus Cristo. Rezemos para isso e obremos com fé, esperança e caridade! Bem fariam presidentes, governadores, prefeitos, ministros, senadores, deputados, vereadores, secretários, juízes, enfim todas as pessoas investidas de poder e de autoridade com a exclusiva missão de realizarem o bem comum, e que estejam sendo infiéis ao mandato recebido por graça de Deus, em ajoelharem-se contritamente em penitência, cinzas à cabeça, e pedirem perdão ao Senhor por seus erros e pecados, de colocar seus pequenos interesses em primeiro lugar. Convertam-se, pois da vida nada levarão e serão julgados pelo bem e pelo mal praticados! Que o exemplo pastoral de Francisco lhes toque e modifique o coração! Assim seja! n 57 * Vice-Almirante (Ref) Da Academia Brasileira de Defesa e do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil REFLEXÃO As divisões humanas O ser humano sempre viveu dividido. Homem e mulher, negros, brancos e amarelos, baixos e altos, gordos e magros, são diferenças notórias entre os seres humanos. Seriam benéficas e estimulantes, se fossem assimiladas apenas como diferenças. No entanto, a educação competitiva que as sociedades impõem, as transformam em divisões. E as divisões implicam competição e preconceitos. Na mente predominantemente egoísta do ser humano, as divisões acontecem por querermos impor aos outros a nossa maneira de ser. Consideramos uma ameaça e nos sentimos humilhados em aceitar as diferenças alheias, sejam elas a cor da pele, o corte de cabelo, o modo de falar, a cultura, a classe social, a posição religiosa ou política. Somente quando o outro aceita a nossa imposição, aprecia nossos gostos e concorda com nossas opiniões, julgamos encontrar nele um amigo e podemos considerá-lo um aliado. E isso é recíproco. Quando o próximo não nos aceita, por conta de alguma diferença, criamos imediatamente a divisão. Conforme a gravidade que atribuímos ao fato e a insistência do outro em não aceitar o que tentamos impor, podemos considerálo desde um simples opositor – pertencente a outro grupo, outra corrente ideológica, outra “tribo” – até um inimigo. Nesse caso, haverá um confronto direto, que em casos graves pode levar até a morte. Divisão entre os sexos Uma das divisões mais básicas do ser humano é a do homem e da mulher. No início da existência humana provavelmente existissem apenas as diferenças físicas, mas com o passar dos séculos foram surgindo as psicológicas. Nos outros animais, embora em alguns casos haja também diferenças de comportamento, macho e fêmea seguem seus instintos determinados pela natureza e, por serem animais irracionais, é impossível que um deles se compare ao outro, sinta-se “superior” ao outro. Opostamente, no ser humano as diferenças de comportamento ditadas pela natureza, tanto do homem quanto da mulher, são avaliadas segundo o critério da competição. Há uma comparação constante entre ambos, cada um querendo demonstrar ao outro a sua “superioridade”. Por muito tempo, o homem agiu como um ser superior à mulher, já que possuía mais força física. Exerceu sobre ela um total domínio e a mulher se acostumou a aceitar esse domínio, pois não havia como reagir, a não ser muito esporadicamente – e nesses raros casos, eram consideradas excêntricas e castigadas pela sua ousadia. Felizmente, desde algum tempo, as mulheres conseguiram se impor, lutando por seus direitos. Atualmente, é mantida uma certa igualdade entre ambos, porém, longe de se colocarem lado a lado, ou seja, longe de acabar com a divisão. Não! A vontade de dominar persiste, por isso há tanta ironia de parte a parte. A divisão ainda está presente. O homem, em seu discurso, reconhece os direitos da “opositora”, mas, ao mesmo tempo, ironiza o comportamento feminino, ou então assume uma posição paternalista e protecionista, na tentativa de manter sua “superioridade”, sem abrir mão de se considerar mais inteligente e objetivo. A mulher, usando o mesmo recurso da ironia, por qualquer divergência rotula seu “opositor” como “machista” e não perde oportunidade de se autoconsiderar mais sensível e mais inteligente. A competição, fruto do egoísmo humano, continua cada vez mais acirrada entre o homem e a mulher. A igualdade entre ambos, existente nos outros animais, está cada vez mais longe de ser alcançada. Mais forte ainda é a divisão entre os hetero e homossexuais. Essa enorme divisão é ainda fortalecida pelo pensamento religioso moralista, que em geral rejeita 58 veementemente o homossexualismo. Até mesmo entre os homossexuais há subdivisões, pois os chamados “gays” não aceitam os “transformistas”. Essas diferenças de sexo, hoje aceitas cientificamente como provocadas por combinações genéticas e não por “deformações” de origem moral, causam nas sociedades humanas muitas divisões e subdivisões, ou seja, preconceitos e mais preconceitos. Divisão racista Uma terrível divisão é a causada pelas diferenças de raças. Os preconceitos criados de parte parte sempre causaram e ainda provocam muitas tragédias. Como a discriminação de pessoas por sua cor já foi considerada um crime, tomaram-se medidas legais para conter esse preconceito. As leis contra o racismo, apesar de não modificarem as mentes preconceituosas, inibem algumas atitudes, o que já é bastante louvável. Acontece que algumas delas são elaboradas justamente por pessoas ainda preconceituosas e, por isso, ao invés de reduzirem o preconceito, o aumentam ainda mais. É o caso de se denominar “afrodescendente” as pessoas da raça negra, como se isso, por si, acabasse com o preconceito. Ora, se um oriental é chamado de “amarelo”, se um nórdico é “branco”, por que evitar dizer que alguém seja “negro”? Por que rotulá-lo de “afrodescendente”? Isso sim, é um mero disfarce Revista do Clube Naval • 367 preconceituoso, pois considera desprezível o termo “negro”. As diferenças de cor da pele entre os humanos, enquanto representarem divisões, sempre serão racistas, não importa quantas leis sejam promulgadas. Divisão política Outra grande divisão humana se dá na política, nas diferenças entre os diversos sistemas de governo. Muitos existiram através dos tempos, e atualmente essa grande divisão está focada, principalmente, entre o capitalismo e o comunismo. O capitalismo é visto pelos seus adeptos como um regime aberto e democrático, com total liberdade de expressão, onde as oportunidades são disputadas por todos os cidadãos, e o sucesso depende do preparo e do empenho de cada um. O lucro é determinado pela lei da oferta e da procura e cada um se torna dono daquilo que consegue conquistar. Veem no comunismo uma grande e constante ameaça. Consideram que, ao banir totalmente o comunismo do planeta e instaurar a democracia, o mundo terá eliminado uma praga e dado um grande passo no sentido do progresso e do bem-estar coletivo. Por sua vez, os comunistas veem os adeptos do capitalismo como indivíduos totalmente insensíveis à pobreza e ao bemestar do povo, que visam exclusivamente ao lucro, sem terem nenhum escrúpulo. Revista do Clube Naval • 367 A liberdade de expressão é uma farsa, pois os veículos de comunicação são totalmente controlados pelo poder do dinheiro. Consideram o capitalismo um mal devastador, que precisa ser eliminado do planeta para instaurar nele um governo onde os dirigentes sejam os trabalhadores. Em ambas as facções, os dirigentes parecem dispostos a usar seu arsenal de armas, caso necessário, para impor seu regime e expandir seu domínio. O confronto entre as duas ideologias já esteve a ponto de destruir o mundo, e isso só não aconteceu porque a maior potência comunista de desfez. No entanto, ainda paira uma ameaça comunista, quase tão ameaçadora e agressiva como antes, agora mascarada de outros nomes e adepta da democracia. Tal ameaça alimenta as mentes dos anticomunistas e os aguça a lutarem contra a possibilidade de uma volta ao “maléfico” regime. Por conta dessa diferença, que gerou uma divisão radical, muitos milhares de pessoas já morreram em confrontos, em guerras e guerrilhas, em várias partes do mundo. Conclusão Existem inúmeras divisões humanas. Na verdade, nós temos imensa dificuldade em aceitar qualquer forma de viver diferente daquela que consideramos correta. Na religião ou na corrente política, no time esportivo, no estilo de arte ou na forma de se vestir, quando nos deparamos com alguém que não comungue com a nossa maneira de ser, com alguém diferente de nós, em vez de observarmos apenas uma diferença, criamos uma barreira. Essa barreira é a divisão, que gera o preconceito. As diferenças humanas deveriam ser saudáveis e prazerosas. Serviriam para quebrar a rotina e enriquecer a vida, caso os seres humanos já tivessem evoluído a ponto de viverem em colaboração uns com os outros. 59 As diferenças de comportamento entre a mulher e o homem podem ser um tempero a mais para o amor entre ambos, desde que os dois se aceitem, vivendo em mútua colaboração, deliciandose com as diferenças. As diferenças entre as raças amarela, branca e negra, cada qual com suas características, uns mais propensos aos esportes ou à música, outros exibindo mais os dotes físicos, uns sendo mais introspectivos, outros mais propensos às ciências... Enfim, quando não há divisões, as diferenças físicas e psicológicas podem ser motivo de admiração, não de preconceito. As diferenças entre os regimes políticos, caso não fossem criadas as radicais e perversas divisões, em nada impediriam a convivência pacífica dos povos. A monarquia, o presidencialismo, o comunismo e o capitalismo, poderiam coexistir sem conflitos, pois seus âmagos são semelhantes, se considerarmos que o “âmago” é o ser humano. São as pessoas que formam os regimes, e os seres humanos, basicamente, são bem semelhantes. Os dirigentes que possuam mentes altruístas, seja qual for o regime político de seu país, estarão sempre prontos a trabalhar pelo bem-estar da população, mantendo a paz e até colaborando com outros países de regimes diferentes. Já terão aprendido que os diferentes regimes atendem à preferência ou à vocação de cada povo, por isso não devem ser impostos aos outros. O único regime pelo qual vale a pena lutar, é o regime de colaboração mútua. Porém, trata-se de uma luta individual travada na mente de cada um. É uma luta por compreensão humana, por lucidez, onde o vencedor adquire altruísmo e liquida com seu próprio egoísmo. Viver em regime de colaboração é estar sempre disposto a ajudar o próximo, pensando acima de tudo no bem-estar coletivo, respeitando e até admirando as diferenças das outras pessoas e dos outros povos, não importa a cor de sua pele nem o regime político adotado no seu país. As diferenças enriquecem a vida, as divisões a destroem. n *Diretor de arte e cartunista [email protected] MONISMO FILOSOFIA Christian Wolf Sobre a definição e o papel da filosofia monista Walter Arnaud Mascarenhas * O propósito deste artigo é conceituar a Filosofia Monista, os princípios em que se fundamenta, bem como os principais termos associados ao seu domínio ou campo de definição. A ideia de descortinar a origem do Universo (mundo, cosmos ou natureza) constitui uma preo c upação que remont a muitos séculos. Todos nós já tivemos a oportunidade de interrogar como tudo começou: onde, como, por que surgiram todas as coisas. Trata-se daquilo que vamos chamar de a “tríplice problemática filosófica”. Mais especificamente: 1. O que é o Universo? 2. Como surgiu? 3. Para quem? Essas três perguntas básicas se desdobram em muitas outras. Interroga-se (por exemplo) sobre a origem do ser no cosmos e o sentido de sua existência. O que é afinal a existência? O mundo físico existiu sempre, ou foi criado? Terá um fim? Quando? Há outros mundos? São habitados ou vazios? Qual a diferença entre aparência e realidade? E o tempo, o que é? Há relação entre espaço e tempo? O que significa relatividade? Há diferença entre perceber e conhecer? Quais são as categorias do conhecimento cientifico? Essas são perguntas filosóficas decorrentes da reflexão “raciocinante”. Os homens que as formulam são geralmente conhecidos como filósofos, os que têm amizade pelo saber, ou seja, os verdadeiros amigos da sabedoria. As respostas a tais indagações, a quem caberá? Desde a Antiguidade, muitos ramos do saber – entre os quais a história, a religião, as artes, os mitos, a filosofia e a ciência – estavam engajados em encontrar respostas para essas questões primordiais, e também para muitas outras que surgiram posteriormente. Os primeiros filósofos gregos são frequentemente chamados de filósofos da Mileto natureza porque suas atenções se voltaram fundamentalmente para a origem do mundo e as causas de suas mudanças ou transformações. Vale lembrar que a filosofia de Mileto era originariamente científica e materialista. Ela se diz científica porque está baseada exclusivamente na razão cognoscente, e materialista porque afirma que a única causa das coisas é a matéria. “É típico de quase todos os materialistas entender a matéria ao mesmo tempo como fundamento de qualquer realidade e como causa de qualquer transformação” (Dicionário de filosofia, de José Ferrater Mora). Os materialistas negam a existência de espíritos, isto é, a existência de Deus e da alma, e só admitem no Universo a matéria. Contam que os povos mesopotâmios (sumérios, assírios e babilônios) inventaram a astrologia, a escrita, a burocracia e as matemáticas. Dizem também que os egípcios se consagraram à elucidação do Universo (e dos problemas éticos e sociais do homem) bem antes de os gregos se preocuparem Egito 60 Revista do Clube Naval • 367 advertência às cidades ainda não conquistadas. Absorvidos sobretudo em atividades militares, descuraram das artes pacíficas. Em consequência, o período de esplendor durou pouco mais de um século. (Consulte: BURN. História da civilização ocidental, v. 1, 40 ed.-São Paulo: Globo, 2000.) Revista do Clube Naval • 367 com a natureza física do mundo. Os pioneiros no desenvolvimento da civilização mesopotâmica foram os chamados sumérios ou sumerianos, que se estabeleceram na parte baixa do vale do Tigre-Eufrates por volta de 3500 a.C. Os antigos babilônios (de pouca cultura) quando chegaram ao vale, de modo geral, simplesmente assimilaram e modificaram o que os sumerianos já haviam desenvolvido. Entre os mesopotâmios, foram os assírios (nação guerreira) que, depois dos sumerianos, passaram pela mais completa evolução autônoma. O Estado era para eles uma grande máquina militar. Os comandantes do exército constituíam a classe mais rica e poderosa do país: seu exército permanente excedia em tamanho o de qualquer outra nação do Oriente Próximo. Lançavam mão do terror como meio de subjugar o inimigo. Infligiam aos capturados crueldades formidáveis: esfolamento em vida, empalação, amputação das orelhas, narizes e órgãos sexuais e depois exibiam, em gaiolas, as vítimas mutiladas, para que servissem de 61 O monismo é um tipo especial de filosofia, baseado no princípio de unicidade, e é conhecido como doutrina, ideia, princípio ou teoria, mas sempre como uma atividade puramente intelectual de conhecimento. O Livro da filosofia (São Paulo: Globo, 2011) na p. 342 nos dá a definição de monismo: “Concepção de algo como se formado por um único elemento; por exemplo, a concepção de que os seres humanos não consistem de elementos que são essencialmente separáveis, como corpo e alma, mas de uma única substância”. É a doutrina filosófica segundo a qual o conjunto das coisas pode ser reduzido à unidade, quer do ponto de vista da sua substância (e o monismo poderá ser um materialismo ou um espiritualismo), quer do ponto de vista das leis (lógicas ou físicas) pelas quais o Universo se ordena, e o monismo poderá ser lógico ou físico. Em metafísica, a doutrina monista sustenta que toda realidade pode ser reduzida a uma única substância básica ou princípio, como o espírito (idealismo), ou a matéria (materialismo), ou algo que não seja nem espírito nem matéria, mas constitua a base de ambos. O termo monismo (ao que consta) foi introduzido pelo alemão Christian Wolff (1677-1754) para designar as teorias que admitem a existência de uma única substância. Também se aplica o termo às teorias que sustentam que existe uma substância de um único tipo ou espécie. Opõe-se ao dualismo, afirmação de duas substâncias de natureza distinta, e ao pluralismo que admite uma multiplicidade de substâncias. Mesmo nas antigas filosofias (chinesa, indiana e grega) monismo é a expressão representativa da necessidade de dar uma explicação unitária da totalidade do Universo. O estudo da filosofia grega é geralmente feito sob quatro períodos: 1. período présocrático ou cosmológico (se ocupa fundamentalmente com a origem do mundo e as causas das mudanças na natureza física do Universo); 2. período socrático ou antropológico (investiga as questões humanas, inclusive o lugar do homem no mundo; 3. período sistemático (procura organizar tudo quanto foi pensado pela cosmologia e investiga as ações humanas na ética, na política e nas técnicas; 4. período helenístico ou greco-romano (se preocupa com as questões da ética, do conhecimento humano e das relações entre o homem e a natureza, e de ambos com Deus). Obs.: Saiba mais lendo: Iniciação à filosofia. Marilena Chauí, São Paulo: Ática, 2010. Classificação da filosofia monista Cabe distinguir entre diferentes tipos de monismo: 1. monismo panteísta, tendência representada por Parmênides (tudo é Ser e nada há diferente dele) e principalmente por Espinoza, para quem toda realidade reduz-se a uma única substância (Deus); 2. monismo do absoluto, próprio do idealismo alemão. Schelling preconizou a identidade do espírito e natureza, e Hegel descreveu o desmembramento da ideia como sujeito-objeto, espírito-matéria, que encontra seu momento culminante no Absoluto; 3. monismo naturalista, iniciado por Ernest Haeckel, que afirmou que a matéria é o único existente. Dentro da tradição empírico-criticista se pode falar ainda de um 4. monismo neutralista, que nega a distinção entre o físico e o psíquico. Do século VI em diante os filósofos começaram a considerar se o Universo era formado de uma única substância fundamental. Os gregos eram essencialmente teóricos: o Saber para eles era desinteressado. O Ser é eterno, a ideia de criação lhes era estranha, não a conheciam. Todo Ser tem potência – eles se transformam uns nos outros. O mundo está em contínua mutação. Todos os seres têm movimento, são dinâmicos. Eles buscaram a origem de todas as coisas até encontrar um princípio (physis) e interpretaram a natureza em função desse único princípio. “Qual é a matéria prima básica do cosmos?” Essa intrigante pergunta foi respondida, de várias formas, por uma plêiade de filósofos, na Antiguidade (sem um consenso), e por uma constelação de cientistas e cosmólogos, na atualidade (sem um ponto de convergência). Seguem-se algumas respostas às indagações formuladas: 1. Tales de Mileto: a água é a origem de todas as coisas. 2. Anaximandro de Mileto: o princípio originário seria o apeíron. Como Tales, julgava que existia uma única Parmenides como matéria primordial porque ele está sempre em movimento e assume diversas formas, conforme a condensação e a rarefação. 4. Pitágoras de Samos: “O número é o regente das formas e ideias”. Para ele tudo no Universo se conforma às regras e relações matemáticas. Se compreendermos o número e as relações matemáticas, compreenderemos também as estruturas do cosmos. A matemática é, portanto, o modelo para o pensamento filosófico. 5. Xenófanes de Colofão: o Uno é a divindade. Xenófanes escreveu em versos sua oposição às ideias de Tales, Anaximandro e Anaxímenes. 6. Heráclito de Éfeso: o fogo é a substância primordial. Considerava a natureza (o mundo, a realidade) um “fluxo perpétuo”, o escoamento contínuo dos seres em mudança perpétua. 7. Parmênides de Eléia: afirma a unidade do Ser (Tudo é Um). Colocava-se na posição oposta à do “Obscuro” Heráclito. Dizia que só podemos pensar sobre aquilo que permanece idêntico a si mesmo, que o pensamento não pode Tales Hegel substância básica, a partir da qual tudo tinha evoluído. Decidiu que ela seria infinita e eterna e a chamou de apeíron (“indefinido”). 3. Anaxímenes de Mileto: O princípio originário seria o ar. Elegeu o ar (elemento gasoso) Pitágoras Heráclito Schelling Haeckel Zenão pensar sobre coisas que são e não são, que ora são de um modo e ora são de outro, que são contrárias a si mesmas e contraditórias. 8. Zenão de Eléia: discípulo de Parmênides, defensor incondicional do monismo, nega a realidade do movimento. 9. Melisso de Samos: foi um dos filósofos da Escola Eleática, sendo, provavelmente, discípulo de Parmênides. 10. Empédocles de Agrigento: postulava a existência de quatro elementos imutáveis: terra, água, ar e fogo. Os princípios motores do Universo seriam o ódio, que dissocia, e o amor, que unifica. 11. Filolau de Crotona: foi o primeiro pensador a atribuir movimento à Terra: esta girava em torno do Sol; entre o Sol e a Terra existe o planeta Atiterra. 1 2. Arquitas de Tarento: é considerado o iniciador da mecânica científica. Foi filósofo, 62 Revista do Clube Naval • 367 Revista do Clube Naval • 367 63 num mundo desesperançado de Deus. Insurgiu-se contra a tradição metafísica. Voltou-se para o Ser (ontologia), desejando identificar os valores da religião e da metafísica que haviam sido abalados até as suas Aristóteles Demócrito cientista, estratego, estadista, matemático e astrônomo grego. É considerado o mais ilustre dos matemáticos pitagoricos. Acredita-se ter sido discípulo de Filolau de Crotona. Foi amigo de Platão, fundou a mecânica matemática e influenciou Euclides. 13. Anaxágoras de Clazômena: dois são os princípios: a substância do infinito e o espírito. Como primazia, ele põe o espírito acima de todas as coisas; pois, é o único dos seres que é simples, puro e sem mistura. O espírito movimenta tudo. Foi professor de Péricles, achava que os elementos constitutivos do mundo são orientados por uma Inteligência cósmica ordenadora, o Nous. 14. Leucipo de Mileto: Aristóteles considera Leucipo, o criador da teoria dos átomos. A teoria concebida por Leucipo e Demócrito, oferece uma primeira visão mecanicista completa do Universo, sem qualquer recurso à noção de um ou mais deuses. O mundo já tinha sido explicado pela mitologia e pela religião. 15. Demócrito de Abdera: é considerado o sistematizador da doutrina atomista. Demócrito tenta conciliar as duas doutrinas (a da mobilidade universal [de Heráclito] e a teoria do Ser único, imóvel e eterno [de Parmênides e Zenão]) por intermédio de sua filosofia dos átomos (elementos eternos, cujas combinações mutáveis são infinitas). 16. Platão: nunca deixou inteiramente clara sua concepção de Deus, mas é certo que concebia o Universo como sendo de natureza espiritual e regido por desígnio inteligente. Sua filosofia das ideias não aceitava o conceito de realidade como um fluxo desordenado. As coisas que percebemos por meio de nossos sentidos são apenas cópias imperfeitas das realidades supremas: as ideias. A causa primordial das coisas estaria, portanto, fora do nosso mundo real. 17. Aristóteles: sua concepção do Universo era teleológica, isto é, governado com uma finalidade. (Entendemos por teleologia o conjunto das especulações que se aplicam à noção de finalidade, de causa final.) O Deus de Aristóteles era simplesmente o primeiro motor, imóvel, fonte Platão Espinoza Kant Stephen Hawking Conclusão n Embora a maioria de nós agora se volte para a ciência contemporânea em busca de uma explicação sobre como o Universo teve início, os argumentos de Aquino mostram que a filosofia ainda é relevante no modo como pensamos sobre a questão. Ele demonstra como a filosofia pode fornecer ingredientes para uma investigação do que é possível e o que é impossível acontecer, bem como quais são as questões relevantes e assimiláveis a serem formuladas. Por todas essas considerações, pergunta-se: é ou não é coerente acreditar que o Universo teve um começo? Essa ainda permanece uma questão para filósofos, e nem mesmo a física quântica (ou a teoria quântica), como “o mais bem-sucedido conjunto de idéias articulado pelos seres humanos”, seria capaz de respondê-la. n Anaxágoras original do movimento orientado que se achava contido nas formas. Estas são as causas de todas as coisas. 18. Heidegger é um filósofo monista, no sentido de que para ele só existe o mundo da existência humana temporal, com todas aquelas características ontológico-existenciais. Quando Heidegger procura reduzir as três faculdades cognoscitivas de Kant à força da imaginação transcendental, atribui também a Kant um monismo. Kant, porém, não foi monista, mas dualista. O filósofo alemão Martin Heidegger foi um dos mais influentes pensadores do século XX (faleceu em 1976). Abandonando a teologia, procurou encontrar nos gregos a substância que de alguma forma amparasse o homem Heidegger 64 raízes. 19. Espinoza é um completo monista, no sentido em que admite a existência de apenas uma substância. “Uma única causa de si mesma que é a causa de tudo mais, na qual tudo mais é meramente uma modificação ou atributo dessa substância.” A substância única é também infinita com atributos e modificações infinitos. Não é de surpreender que a ela seja dado o nome de Deus. (Ver: Uma história da filosofia ocidental, de D. W. HAMLYN, Zahar, p. 180). Ele afirmou que “Deus ou natureza” era um Ser de infinitos atributos, entre os quais a extensão e o pensamento. A sua visão da natureza da realidade, considera os mundos – fisico e mental – como dois mundos diferentes, que nem se sobrepõem nem interagem, mas coexistem em uma coisa só que é a substância. Essa formulação é muitas vezes considerada panteísta e monista. (Não por Espinoza, que era um racionalista.) Hoje não procuramos a filosofia para que ela diga se o Universo sempre existiu ou não, e a maioria de nós não se volta para a Bíblia (Gênesis), como São Tomás de Aquino e outros pensadores medievais fizeram. Em vez disso, buscamos a física, em particular a teoria do Big Bang ou Grande Explosão, proposta por cientistas modernos, incluindo o físico e cosmólogo britânico Stephen Hawking. Essa teoria afirma que “o Universo se expandiu a partir de um estado de temperatura e densidade altíssimas num instante particular no tempo”. Revista do Clube Naval • 367 *Capitão-de-Mar-e-Guerra (Ref-FN) Professor do magistério superior (Inativo). Revista do Clube Naval • 367 65 direito O exercício da cidadania na era digital ea democracia participativa Xisto da Silva Mattos* “O sentimento de justiça ficará satisfeito se, depois de uma luta prolongada, nada obtenho dessas pessoas senão aquilo que desde o início me pertencia?” Rudolf Von Ihering O s últimos dias ficarão marcados para sempre na mente dos brasileiros, principalmente dos representantes legítimos do cidadão. Ninguém de sã consciência imaginava que o povo brasileiro tivesse a coragem de ganhar as ruas e exercer a cidadania como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil em um Estado Democrático de Direito para pleitear direitos que sempre foram objeto de inércia do poder público. O que se vê no Brasil é o resultado de uma solidariedade para além da tolerância de um povo sofrido pela crise de representatividade. A cidadania está elevada à categoria de princípio fundamental ligada aos direitos fundamentais sociais em sua manifestação mais nobre. Consoante às palavras de Ricardo Lobo Torre, “a cidadania hoje recupera a sua consistência jurídica e se caracteriza por ser cidadania multidimensional ou múltipla, na qual podemos distinguir as dimensões temporal, espacial, bilateral e processual”. Do ponto de vista da dimensão temporal, a cidadania compreende os direitos fundamentais, entre os quais se compreende o mínimo existencial, que exibe: a) o status negativus, que impede a constrição do Estado, máxime na via dos impostos sobre os direitos fundamentais sociais stricto sensu; o status positivus libertatis; que postula a entrega de prestações de assistência social aos pobres, de auxílios financeiros a entidades filantrópicas e de bens públicos (roupas, remédios, alimentos etc.) à população carente. No que se refere a dimensão espacial da cidadania, a questão rompe fronteiras, e tanto o mínimo existencial quanto os direitos 66 sociais devem ser garantidos nos planos local, nacional e mundial, havendo prevalência de interesse local para as prestações sociais que não ganham a dimensão universal, ao passo que o mínimo existencial, por absorver as condições da liberdade e gozar de jusfundamentalidade, se projeta também para a esfera nacional e mundial. No plano da dimensão bilateral da cidadania, a assimetria entre direitos e deveres conduz muitas vezes à confusão do mínimo existencial com os direitos sociais e econômicos. Há dois sistemas para garanti-los: a) o dos impostos, que recaem sobre toda a população, destinados a financiar as prestações gratuitas para alguns; b) o de tipo securitário, no qual os próprios titulares dos direitos contribuem para a sua manutenção. Não é aqui o lugar propício para avançarmos sobre o tema, mas esse prelúdio se faz necessário Revista do Clube Naval • 367 para elucidar a importância do exercício da cidadania. A Constituição Federal inaugura outro fundamento do Estado brasileiro como sendo a democracia (art. 1o), conceito que, significando originariamente governo do povo, foi tendo seu conteúdo projetado como instrumento de afirmação da liberdade, na concepção de Wilhelm Henke, citado por Ricardo Lobo Torres em sua magistral obra denominada O direito ao mínimo existencial. Revista do Clube Naval • 367 O cidadão brasileiro sempre se quedou inerte no pleito de seus direitos fundamentais e sociais. Os avanços da democracia trouxeram-nos ao presente após trilhar por uma socialdemocracia com viés político empregado no século XX para caracterizar os partidos à esquerda do espectro político e os movimentos quase-socialistas, atingindo a democracia social, entendida como coincidente com a ideia de liberalismo social. A democracia social se propõe a abrir o caminho político para a afirmação dos direitos sociais, que se harmonizam com o mínimo existencial. Sob o aspecto funcional a democracia pode ser vista como: democracia participativa e democracia deliberativa. Esse espaço será ocupado apenas para a democracia participativa, pois é o que interessa no exíguo limiar deste artigo, pois é esta fundada na cidadania ativa e procura a afirmação 67 dos direitos sociais e revela a forma de reinvindicação social corrente utilizada pelos socialistas e social-democratas, por oposição à democracia liberal e representativa. Com esse introito, é possível entender, sem necessidade de aprofundar o debate sobre o tema, que o Estado Democrático de Direito, conforme leciona Torres, representa um novo momento da história política do país pós 88. O que caracteriza o Estado Democrático de Direito é que concilia o Estado Social, podado em seus aspectos de insensibilidade para questões financeiras, com as novas exigências para garantia dos direitos fundamentais e sociais. Enfim, o Estado Democrático de Direito passa a garantir o mínimo existencial, em seu contorno máximo, deixando a questão da segurança dos direitos sociais para o sistema securitário e contributivo, baseado no princípio da solidariedade. No mesmo sentido, leciona Gilmar Ferreira Mendes, afirmando que, “Considera-se democrático aquele Estado de Direito que se empenha em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo dos direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos”. Postas as noções, é possível entender as razões pelas quais o cidadão brasileiro sempre se quedou inerte no pleito de seus direitos fundamentais e sociais. A política do assistencialismo se arraigou e vem causando enorme prejuízo aos brasileiros que dela se utilizam como apanágio de política capaz de retirar da miséria uns e nela instalar tantos outros. Nenhum país desenvolvido adota esse tipo de política perpétua, pois ela é nefasta e subtrai do homem a sua dignidade. Em primeiro lugar a Constituição é um manancial de promessas cujo cumprimento, desde 1988, ficou a cargo de lideranças políticas enraizadas na República e sem qualquer renovação. Ao longo desse período o país teve o impeachment de um presidente da República, a prisão de um deputado federal no exercício do mandato, a exploração de mão de obra escrava no país, a disseminação da pobreza e a manutenção da concentração da riqueza nas mãos de poucos em detrimento de uma maioria miserável. E o povo, como mandatário, havia de se manifestar, é um verdadeiro amadurecimento da sociedade, e para isso faltava um meio para atingir o seu desiderato. Dizia Nicholas Negroponte que: “Os bits não podem ser comidos, ninguém pode vestir-se com eles ou usá-los como refúgio (...) Sou alérgico à palavra ‘política’”. Vê-se nas palavras de Nicholas uma crítica política à ideia de democracia digital na era da informação. A realidade é outra. Vive-se um mundo onde a informação foi globalizada e poucos são os cidadãos que não têm acesso aos meios de comunicação por meio da rede mundial de computadores. Esse sim é um canal da verdadeira democracia participativa, pois tem seu núcleo de ação nascido da vontade do povo de participar de um sistema que se tornou anacrônico e vencido pelo enraizamento das lideranças que se perpetuam no poder desde a Constituição dita cidadã que foi entregue por Ulisses ao povo brasileiro. Hoje, o cidadão é afetados diretamente pelo surgimento da internet no processo eleitoral brasileiro como instrumento de democracia participativa. É uma democracia digital, eletrônica ou virtual, conforme o desejo, pois o nomem fica a gosto do freguês. O mais importante é que é uma democracia voltada para disseminar informações e chamar a atenção dos representantes, cujo verdadeiro poder emana do povo. O cidadão da atualidade tem informações as mais diversas, pois basta consultar o portal da Transparência Brasil e analisar informações sobre o que se faz Poucos são os cidadãos que não têm acesso aos meios de comunicação por meio da rede mundial de computadores. Esse sim, é um canal da verdadeira democracia participativa. com o dinheiro público, a menos que se trate de financiamentos secretos com dinheiro do povo que o governo brasileiro tem feito a países como Cuba e Angola. Não vou me ocupar desse tema para não fugir ao objeto deste artigo, mas fica apenas para reflexão dos contribuintes. Voltando ao tema. No atual processo de mobilização social a coisa tomou outro rumo, o cidadão utilizou a ferramenta para organizar os seus pleitos pelo Brasil afora. E, diga-se de passagem, o sucesso já foi garantido, pois para viabilizar a retirada da PEC 37 da pauta de votação não se teria outro meio tão eficaz quanto a internet. É a sociedade da informação em pleno movimento rumo ao poder. E é preciso que a resposta ocorra de acordo com o pedido da sociedade, e não para atender pleito obscuro de reforma política por meio de plebiscito, baseada talvez em modelo utilizado por países da América Latina, a exemplo de Venezuela e otros mas. Os partidos políticos nada podem fazer, pois suas presenças são indesejadas pelos ativistas. O que podem e devem, é agir para mudar completamente suas práticas radicais, baseadas num sistema arcaico de quadros e caciques locais e reconquistar a sua legitimidade. Caso contrário, sofrerão um recall natural pela sensibilidade social. Os movimentos sociais, como ações de caráter popular, são orientados para a finalidade de transformações políticas e atuam de forma organizada. Visam apontar aos mandatários do poder suas deficiências no mister de representar. É como já dizia Rudolf Von Ihering, que “Nem mesmo o sentimento de justiça mais vigoroso resiste por muito tempo a um sistema jurídico defeituoso: acaba embotando, definhando, degenerando”. Os políticos se preocuparam e passaram a entender que o verdadeiro titular do poder é o povo e eles (políticos) são apenas representantes, e que sua relação com o mandante está em crise de existência e, para conter a revolta, é preciso agir, é preciso concordar com a voz do povo expressa nas ruas, vez que vox populi vox Dei. Considera-se agora a questão de um possível sistema político para a sociedade da informação. A esperança é que esse meio utilizado pela sociedade para manifestar seus reclamos deva ser o tipo de democracia participativa mais efetivo e que o sistema político atual, onde todo o poder emana do povo por meio de seus representantes não exclua o seu fim específico que é o atendimento da necessidades básicas da sociedade que a muito vem assistindo, passivamente, os desmandos com a Res Publica. Por fim, resta a certeza de que “nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia”, Lulu Santos. n É preciso concordar com a voz do povo expressa nas ruas, vez que vox Populi vox Dei. *Advogado Pos-Graduando em Direito e Processo Penal Lato Senso • Membro da Comissão de Ética e Disciplina da Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil na Barra da Tijuca. Referencias Bibliográficas: TORRES, Ricardo Lobo, O Direito ao Mínimo Existencial, RENOVAR, 2009. IHERING, Rudolf Von, A luta pelo Direito, Introdução de Roberto de Bastos Lellis, LIBER JURIS. JR, Nerione Cardoso, Crítica Política à ideia de democracia digital, Revista de Informação Legislativa do Senado Federal. BARROSO, Luís Roberto, O Novo Direito Constitucional Brasileiro, Forum. MENDES, Gilmar Ferreira, Curso de Direito Constitucional, Editora Saraiva, 2007. 68 Revista do Clube Naval • 367 Revista do Clube Naval • 367 69 PERSONALIDADE SIMCH VENERÁVEL MESTRE Este artigo está fundamentado na excelente crônica do CMG (EN-Ref.) Walter Sanches Sanches cujo texto vem a seguir. Quem teve a oportunidade de assistir ao filme Madadayo, do magnífico Akira Kurosawa, sobre a homenagem de alunos japoneses ao velho mestre irá perceber o espírito de reverência ao CMG (Ref.) Alaor Simch de Campos que marcou profundamente uma geração de aspirantes como professor de Mecânica e Física da Escola Naval nas décadas de 50 e 60. O aspecto sereno e simpático expresso na suave figura octogenária esconde o rigoroso mestre, cuja trajetória na Escola Naval fazia os aspirantes sentirem a sensação de grande vitória quando passavam em suas matérias. Todavia, esse rigor era acompanhado de permanente admiração e respeito de seus alunos. Seu extenso currículo de professor vai muito além da Marinha, havendo ministrado aulas na PUC do Rio de Janeiro e a Universidade Católica de Petrópolis, entre outros. Cumpre ressaltar em especial seu grande trabalho na sede do Clube Naval. Desde 1986, por meio de cursos como Astronomia, equações de Maxwell, teoria da Relatividade, vem dinamizando as atividades de cultura científico profissional, agregando grande número de sócios em seu entorno. Atualmente o Comte Simch coordena o Grupo de Interesse em Matemática e Física cuja importância é ressaltada pelo Comandante Sanches na crônica que segue. 70 Revista do Clube Naval • 367 WALTER SANCHES SANCHES Ao mestre Simch A ntes de tudo, parabéns pelo seu aniversario, 19 de setembro; que o Criador continue a lhe agraciar com saúde, paz de espírito, amor e lucidez para nossas aulas ou, também dizendo, “bate-papos” das segundas-feiras aqui no Clube Naval. Temos, nos dez anos desse salutar convívio enveredado pela relatividade com as teorias de Hubble, Einstein, Lorentz e outros. Depois nos aprofundamos nas moléculas e Revista do Clube Naval • 367 átomos com as teorias da antiguidade (Thales de Mileto, Demócrito...), início do século XIX com Dalton, Thomson, e já no século XX, com Rutherford, Bohr, Cezar Lates. Foram aulas magníficas onde nos imaginamos com velocidades próximas da luz, quando grandezas como comprimento e volume tendem a sumir, crescendo infinitamente a massa, e alterando a noção de tempo. Baixamos à Terra para falarmos das teorias dos complexos, logaritmos, cálculo vetorial, equações do eletromagnetismo, de Napier, Briggs, Leibniz, Maxwell, e das vantagens em se usar essas ferramentas da matemática, que muitas vezes custaram a ser elaboradas. Especulamos sobre circuitos elétricos com 71 CA, e seus idealizadores (Faraday, Ohm etc.). Suas aulas, mesmo abordadas de maneira profunda e rica em detalhes técnicos e históricos, se amenizam com os “causos” da vida cotidiana, como a do seu professor de desenho, que preconizava cinco regras para um bom trabalho: exatidão, traço fino, traço fino, traço fino, traço fino; ou do seu colega que pediu explicações sobre mecânica dos fluidos, e reclamava por não ter visto, em toda a apostila, a palavra água. Analisamos as equações algébricas, principalmente as do 3o grau, motivo, talvez, do surgimento dos números complexos ou imaginários. Calculamos integrais com seus boundary layer, procurando sempre uma aplicação prática, real. homenagem Passamos então a viajar pela Terra, em ortodrômicas e loxodrômicas, calculando rumos e distâncias. Cada vez que era mencionado um local por onde passaríamos, e um dos seus alunos havia por lá passado, você ficava entusiasmado. Assim foi com o Estreito de Magalhães e Anchorage, nas viagens Atlântico-Pacífico e Via Polo Norte. Novamente relaxávamos a aridez das equações da trigonometria esférica, comentando filmes das décadas de 50 ou 60, quando sua memória foi posta à prova, com sucesso, mencionando nomes de artistas, detalhes do filme, títulos originais e no Brasil. Atendendo ao pedido de um dos colegas mais antigos foram estudadas as funções hiperbólicas, que usaríamos mais tarde na catenária. Passamos às curvas crônicas: elipse, parábola, hipérbole, e seus estudiosos: Euclides, Arquimedes, Apolinio, Hughes, Irmão Bernoulli, Leibniz, Galileu. A catenária teve papel destacado pois se apresenta na natureza, nos cabos entre postes e reboques. E aí seus ouvintes, oficiais de Marinha, interagiram com suas experiências em Marinharia. Sempre você cita livros, autores e edição, ao que um nosso colega retruca dizendo ter uma edição mais antiga. Sinto seu olhar meio invejoso e desapontado. A sua solicitação por auxílio da internet vai para um dos nossos colegas argonautas, que sempre o atende com verdadeiros tratados: assim foi com o filme Intermezzo, grafia de palavras e nomes em inglês ou francês. Alias, seu gosto por esses idiomas, e um pouco de espanhol e alemão é notório. Sua turma de alunos, composta por oficiais da Marinha e Exército, engenheiros civis e militares, médicos de clínica geral, psiquiatra, psicólogo, pediatra, professores, é sempre muito liberal, cabendo perguntas e diálogos, onde o assunto sempre é esclarecido com dados matemáticos e físicos. Por sinal, já entendemos que não é de seu gosto especulações sobre os assuntos de ciência, e discussões sobre religião, política e esporte. Aguardamos, ansiosos, o início das aulas sobre as leis de Kepler, e das naves que serão ejetadas no espaço calculando as velocidades de escape, e outras surpresas. O seu gosto por musica clássica é sempre exaltado, ao comentar a elaboração das apostilas, ouvindo os clássicos: Mozart, Wagner, Bach, ou as músicas americanas dos idos 50 ou 60. UM EXEMPLO AO PAÍS Havia esquecido o nosso estudo sobre ótica, lentes, espelhos, reflexão, refração, efeito Doppler, teoria ondulatória de Huygens, e corpuscular de Newton, e o éter, o famoso éter, que tanto propiciou discussões entre os sábios, e que Einstein não utilizou nas suas teorias. Lembrei-me ainda das séries de Taylor, McLauren e suas aplicações na confecção de tábuas de logaritmos, funções trigonométricas, valor do “e” e “pi”. Novas piadas e causos como do seu colega que disse a um renomado mestre: “Senhor, não consigo entender as equações”. Ao que o mestre respondia: “Meu filho, elas falam, às vezes baixinho”. E o caso da astróloga que perguntou a um astrônomo se acreditava no que os astros diziam, ao que ele respondeu “que não podia ouvir, pois os astros não falam!!”. Você enfatiza que quando alguém diz que o assunto é fácil, é porque não o entendeu. Nada é fácil, tudo requer análise, reflexão, aplicação para ser bem entendido. Uma vez você abriu a guarda perguntando a um colega, seu ex-aluno, sobre suas provas na Escola Naval. O colega pensou dois segundos e disse “Mestre, o senhor era uma fera!!”. Você não se perturbou, aceitou humildemente a crítica, e, provavelmente num exame de consciência, explicou que hoje agiria de outra maneira. Essa humildade e sinceridade são próprias dos simples, dos sábios. Sua admiração por colegas de magistério na EN, como Werneck, Morrisse, Primo Nunes, Castilho é sempre exaltada, como nós o fazemos quando falamos de suas aulas. Por que vamos a essas aulas? E para quê? A resposta é simples, o prazer de reaprender o ginásio, a Escola Superior agora com outra visão, e aprender novas coisas, ou as velhas com mais riqueza de detalhes, a história dos cientistas e da própria ciência. É um prazer imenso e uma honra estar aqui todas as segundas-feiras e sem provas e sem pagamentos. Suas aulas são um misto de poesia pela música e filmes, filosofia quando atenta entender os cientistas e suas dificuldades, e muita ciência. Prossiga assim, a meia força, para que possamos acompanhar os ensinamentos. Obrigado. Parabéns. Luiz Sérgio Silveira Costa E uclides Quandt de Oliveira, nascido em 23 de novembro de 1919, faleceu recentemente, na madrugada de 19 de julho, aos 93 anos. Foi oficial de Marinha, alcançando o posto de capitão de Mar e Guerra, tendo sido comandante do Navio Aeródromo Minas Gerais. Especialista em eletrônica, du- rante seu tempo na Marinha fez vários cursos nessa área, no Brasil e nos Estados Unidos. Tendo passado para a reserva, exerceu, de 1965 a 1967, no governo Castelo Branco, o cargo de presidente do Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel); de 1972 a 1974, foi o 1º presidente da Telebrás e, de março de 1974 a março de 1979, foi ministro das Comunicações do governo Geisel. É autor dos livros Renascem as telecomunicações – volume 1 e 2, que narram os acontecimentos a partir de 1967, tendo como tema principal a criação do Sistema Telebrás. Bem poucos no Brasil sabem o que o Comandante Quandt de Oliveira representou para o desenvolvimento das telecomunicações no país. Se hoje temos as facilidades de comunicações em computadores, telefones e celulares muito a ele se deve, pela reestruturação da telefonia no país, então dominada pelas concessionárias estrangeiras. Em depoimento, Quandt dissera que “Devia Capitão-de-Mar-e-Guerra (Ref-EN) 72 Revista do Clube Naval • 367 Revista do Clube Naval • 367 existir cerca de mil empresas no Brasil, mas empresinhas isoladas. Havia um sistema telefônico na cidade X que só falava dentro daquela cidade X, não falava nem com a cidade vizinha”. Quem viveu aquela época, sabe como era difícil e demorada uma simples ligação interestadual. E mais: fez a reestruturação da ECT, colocando-a com a credibilidade do US Post e do Royal Mail. O atual ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, afirmou que a sua morte é uma perda para o setor das telecomunicações, reafirmando que “O ex-ministro Quandt deu grandes contribuições para a organização desse setor, hoje tão importante para o Brasil. Nós nos encontramos no fim de 2011, em um evento da Associação Comercial do Rio de Janeiro. E ele estava bastante lúcido, analisando e comentando os acontecimentos da área”. Tudo isso pode ser obtido nos sites de busca. O que bem poucos no Brasil sabem, porém, é que, mesmo tendo a sua promoção a almirante mais do que esperada, decidiu passar para a reserva, pois dizia que, com cinco filhos, não teria condições de, com o soldo militar, dar-lhes adequada formação universitária, tendo ido trabalhar na Siemens. Como presidente da empresa, em 24 de fevereiro de 1974, salvou cerca de 12 pessoas no incêndio do edifício Andraus, carregando-as, desmaiadas pela fumaça, nos ombros até o heliporto no alto do prédio. Tendo participado do recebimento do Cruzador Tamandaré, e morando em Petrópolis, vinha sempre ao Rio para participar dos almoços dos que serviram no navio, sempre dizendo que queria ser tratado como “comandante”, e não como “ministro”. Em Petrópolis, sua rotina diária era acordar, visitar o túmulo de sua esposa e, então, voltar para casa para tomar o seu café. Mesmo nos últimos anos de vida, nunca perdeu contato com os avanços tecnológicos, pois comentava, com lucidez, as decisões políticas e os assuntos mais relevantes do setor. Poucos sabem, também, que Quandt, ao morrer, morava em um pequeno e 73 73 simples apartamento de dois quartos em Petrópolis, e que seu carro era um velho e deficiente Santana. Por isso, o que ressalta na vida de Quandt, especialmente quando se compara com os tempos de hoje, é que, bem-nascido de caráter, e bem formado pela Marinha – essa instituição de excelência e a indiscutível reserva moral do país –, e tendo exercido importantes cargos públicos, lidando com empresas e empresários, licitações e contratos, procuras e ofertas, no ambiente do “é dando que se recebe”, nunca se corrompeu ou usou desses cargos para proveito e enriquecimento pessoal. Sua vida espartana, de servir ao país, e não se servir dele, contrasta com o que se vê hoje de nossos políticos: as casas e apartamentos alaranjados, de frente para o mar, os escarpins de solas avermelhadas nos pés das madames deslumbradas, os restaurantes estrelados, as viagens de jatinhos e helicópteros, os sanguessugas, as ligações espúrias com empresários, o nepotismo, os trens da alegria, os sítios, as ilhas, as fazendas, os bois, as rãs, as rádios, jornais e emissoras de TV, os castelos, o exibicionismo etc., nada podendo ser comprovado apenas pelas remunerações pessoais. Quandt, pelo contrário, além de marido, pai e militar exemplar, foi a própria essência do espírito republicano, um brasileiro com a estatura moral do tamanho do país, gigante pela própria natureza! Deus, na sua infinita bondade, reconhecendo a sua vida digna e dedicada ao bem comum, resolveu homenageá-lo, ao enviar o papa Francisco aqui, no justo momento em que o levava para a vida eterna. Certamente descansará em paz, com a benção papal, e embalado pelo sublime sentimento de satisfação do dever cumprido. E nós, por aqui, com esse triste sentimento de perda, reverenciamos o nosso velho e competente marinheiro, esse brasileiro altaneiro e exemplar, que professou e exaltou a profundidade do recado de Roosevelt, de um político do passado para os de hoje, via as telecomunicações: “É melhor morrer de pé do que viver de joelhos”! * Vice-Almirante (Ref) última página OPINIÃO Do leitor Será bem-vinda a sua opinião sobre qualquer artigo ou assunto tratado nesta edição. Enderece seu e-mail para revistaopiniao@ clubenaval.org.br com o máximo de 1.500 caracteres. A Editoria da RCN se reserva o direito de publicar ou não, na íntegra ou em parte, a sua mensagem. Não será revelado o seu endereço. C omo leitor assíduo da Revista do Clube Naval, achei muito louvável a ideia de abrir esse canal de comunicação, publicando nossas opiniões e sugestões. De maneira geral gosto das matérias publicadas, mas faço uma ressalva. Tenho me deparado com artigos excessivamente técnicos, que apenas especialistas no assunto conseguem entender. Principalmente os de Direito, de Medicina e Economia, que apesar de abordarem temas relevantes, se perdem em detalhes técnicos compreendidos somente por advogados, médicos e economistas. Imagino que a revista se dirija a um público amplo, incluindo toda a família dos militares a também muitos civis. Por essa razão, sugiro que tratem esses temas de forma mais simples, procurando cativar o leitor (na maioria leigo no assunto), usando somente os termos técnicos imprescindíveis; e nesses casos, colocando uma explicação em linguagem simples do que ele significa. Finalmente, quero deixar claro que encontro virtudes na revista, bem mais do que defeitos. A sugestão acima, foi com a intenção de tornar a leitura mais atraente para todos. José Bonifácio da Costa (Advogado). S ou leitora antiga da revista e aproveito a nova seção Opiniões do Leitor, para enviar uma crítica a um tipo de matéria que me tem intrigado. Tenho preferencia por artigos de Política Internacional ou Atualidade, que costumam fazer uma análise clara e impartidária da situação mundial, apesar de que os mais amenos, como a costumeira Viagem – por vários recantos do mundo são também necessários e atraentes. Mas os artigos sobre alguns setores da Marinha, costumam ser verdadeiros “relatórios de diretora”: começam invariavelmente com a data de fundação, seguem-se as mudanças através dos anos, novas e velhas diretorias, benfeitorias executadas durante as gestões etc. Um relatório enfadonho que estende-se por muitas páginas... Seria, a meu ver, muito mais interessante, que resumissem essas informações num pequeno box ou tabela, concentrando o texto em descrever como é prestado o serviço, dando exemplos de casos reais e mostrando as pessoas sendo atendidas. Exatamente como costumam ser tratadas – pelo que observo – assuntos semelhantes nas revistas de grande circulação, como Veja, Isto É etc. Ângela da Nova (Secretária executiva). A proveito a oportunidade que essa revista nos ofertou para manifestar minha opinião. Considero a Revista do Clube Naval uma revista sobretudo de opinião. Os poucos assuntos de amenidades servem apenas para fazer uma pausa na leitura, para acalmar as mentes aguçadas pelo teor de matérias, sobretudo as que falam sobre a situação das Forças Armadas, do Brasil e do mundo. A minha sugestão é que também os 74 74 editoriais, por coerência, reflitam a opinião da revista, do Clube Naval ou mesmo da Marinha, não necessariamente sobre política, mas sobre cidadania, comportamento humano e outros assuntos relevantes. Isso me ocorreu porque, na imprensa em geral, os editoriais costumam cumprir essa função, haja vista o recente (e desastroso) editorial da TV Globo. Agradeço a oportunidade e parabenizo a revista, que está sendo a cada dia mais bem executada. CMG (Ref) Nei Dantas. E m nota na página 5 da edição anterior desta revista os leitores são convidados a opinar sobre as matérias editadas. No artigo do CMG Sergio L. Y. dos Guaranys, Karl Heinrich Marx é retratado sem as referências que o fizeram, durante os séculos XIX e XX, o filósofo mais lido, mais citado e mais influente em todas as comunidades do globo. Entendemos que os leitores da RCN merecem conhecer outras opiniões sobre Carl Marx. Aqui vai a minha. E vai com os cumprimentos ao novo diretor cultural do clube, Comte Boavista, pela inovadora oportunidade concedida aos leitores da revista. Qualquer que seja a formação ideológica, um pesquisador em Ciências Sociais não irá longe sem considerar o que Marx ensina: “Não é a consciência que faz a realidade social. É a realidade que faz a consciência”. Aí está apenas um exemplo. Entre cientistas políticos existem críticos à obra de Marx. Mas não pela análise do capitalismo que se fez até o presente e sim ao Marx futurista. Sua imaginada sociedade igualitária a que se chegaria na última etapa da revolução socialista foi e é chamada de utopia. Não houve nem há, em lugar algum do mundo, qualquer sociedade comunista tal como preconizado por Marx. Pode-se imaginar por aí, o tipo de capitalismo que então se praticava. E o que seria das sociedades de hoje sem a valorização do trabalho, conquista inconcebível sem as ideias daquele que, em pesquisa da BBC de Londres em 2005, foi considerado o filósofo de todos os tempos. CC (Ref-T) José Alves de França. Revista do Clube Naval • 367 Revista do Clube Naval • 367 75 JURAMENTO “Incorporando-me à Marinha do Brasil, prometo cumprir rigorosamente as ordens das autoridades a que estiver subordinado, respeitar os superiores hierárquicos, tratar com afeição os irmãos de armas e com bondade os subordinados; e dedicar-me inteiramente ao serviço da Pátria, cuja honra, integridade e instituições defenderei com o sacrifício da própria vida.” Estas palavras são ditas uma só vez na nossa vida. 76 Revista do Clube Naval • 367
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