Percursos Historiográficos e Metodológicos da Contemporaneidade
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Percursos Historiográficos e Metodológicos da Contemporaneidade
1 Percursos Historiográficos e Metodológicos da Contemporaneidade. Prof. Dr. Antonio Torrres Montenegro. (UFPE) Introdução. O texto que apresento foi pensado em dois planos, que embora separados se interconectam. Inicialmente procuro traçar ou pontuar mudanças e deslocamentos metodológicos que vivenciei nessas últimas três décadas. São fios ou linhas que se embaralham em temporalidades diversas, associados à maneira como vivo e penso a história, escrito na forma de um breve relato de reflexões teóricas relacionado a autores e obras que considero fundamentais a essa trajetória. Elegi esse caminho de exposição, talvez por ser uma estratégia que ofereça uma maior visibilidade e força argumentativa a essas reflexões. Ao mesmo tempo, é uma maneira de dizer de onde falo, em quais autores me inspiro ou ainda como me aproprio dos mesmos para escrever a história. O segundo plano tem como proposta operar como um artesão na oficina da história; nele resgato os fios delineados no percurso metodológico e procuro estabelecer conexões com o artigo Ação trabalhista, repressão policial e assassinato em tempos de regime militar. Em outros termos, proponho uma discussão em que situo o passo a passo da pesquisa para a escrita deste artigo e como as reflexões teórico-metodológicas foram informando, delineando, projetando esse labiríntico percurso. Primeiros passos impasses. No início da década de 1980, quando me debruçava para escrever minha dissertação de mestrado sobre o encaminhamento político do fim da escravidão, algumas obras como A Instituição Imaginária da Sociedade de Cornelius Castoriads, A Formação da Classe Operária de Edward Thompson e, principalmente, a Microfísica do Poder de Michel Foucault mesmo considerando as grandes diferenças de posições teóricas entre esses autores produziram em mim uma grande inquietação. De alguma forma, estava em pauta um debate que punha em questão algumas perspectivas historiográficas e teóricas que havia estudado intensamente em anos anteriores. Sobretudo, daqueles autores e suas obras que havíamos lido e debatido arduamente de maneira até certo ponto clandestina durante a primeira metade da década de 1970; refiro-me as obras de Gramsci, Lênin, Engels, Rosa de Luxemburgo e Marx que eram nesta época xerocadas e ou 2 compradas quase como livros raros, pois a censura vetava sua circulação. Leituras por sinal importantíssimas porque abriam todo um arco de análise, compreensão e critica da história presente e passada e se constituíam em um suporte intelectual valioso para pensar e atuar politicamente naqueles difíceis anos da ditadura civil militar que ocupara o poder desde 1964. No entanto, a década de 1980, e suas transformações sociais e políticas que o Brasil assistia o fim da censura, a anistia política, o fim do regime civil militar, possibilitava a circulação e a atualização de um debate que vinha sendo realizado há pelo menos duas décadas na Europa. Assim, é que quando me debrucei, no início da década de 1980, para escrever minha dissertação, vivi um paradoxo. Uma bagagem intelectual que estudara, assimilara, passara a recorrer como instrumental para pensar e atuar no mundo era rapidamente, em menos de uma década, colocado em cheque e considerado por alguns grupos como insuficiente e porque não dizer inadequado para ler, refletir, analisar a realidade presente e passada. Mas, retornando ao início desse percurso, qual era o dilema que enfrentava no inicio da década de 1980 para realizar a escrita da minha dissertação sobre o tema da escravidão no Brasil? Fundamentalmente, sentia-me prisioneiro de um tempo cronológico que me enredava em formas de pensar e ler a história relacionada a uma perspectiva causal e determinista. Embora o materialismo histórico, a dialética e a luta de classes como motor da história fossem importantes referenciais críticos, essas categorias teóricas marxistas não rompiam inteiramente com a perspectiva de tempo e de sujeito naturalizados pela história narrada pelo senso comum. Hoje, compreendo melhor como interiorizamos involuntariamente por meio da cultura, do senso comum, dos diversos agenciamentos familiares, escolares, religiosos entre outras redes sociais toda uma visão da história. A história do senso comum é sinônimo de formas de relacionar passado, presente e futuro centrada em sujeitos, que também operam como causa e podem ser atribuído a pessoas, classes, partidos, instituições. Esse reducionismo ao sujeito está relacionado a outras múltiplas perspectivas que informam essa visão histórica, que se podia denominar de história do senso comum. Apesar dela não ser inteiramente homogênea, guarda algumas características comuns, como também o uso recorrente da idéia de essência que se encontra relacionada à visão fundacional e purificadora das origens. Por outro lado, desconstruir essa perspectiva histórica que foi sendo construída ao longo de nossa vida é uma tarefa complexa, árdua e não se realiza de forma automática ao estudar determinados autores e suas obras. É imprescindível todo um esforço próprio de aprendizagem, análise, um trabalho de dias e anos. E sempre que penso sobre como a aprendizagem é um caminho longo, em que a informação, ou mesmo a erudição é meio e não fim, e nesse momento 3 relembro Deleuze em Proust e os Signos, quando afirma: “Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos.” (Deleuze, 2003, p. 21) Assim, a apropriação que faço das obras de Castoriadis e Foucault autores de visões muito distintas, me levaram a questionar muitas certezas, tanto as que tinha aprendido na última década, como as que trazia comigo e que havia assimilado ao longo da vida sem que para isso me tivesse dado conta. Agora, me debatia com o desafio de não mais pensar a história como totalidade, mas por meio de questões e que as temporalidades não eram linearidades que se sucediam cronologicamente. Ao mesmo tempo, uma frase de Castoriades me perseguia: Nenhuma obra deve ser tomada como bíblia. Ou seja, não há obra que contenha um conhecimento final e conclusivo ou acabado. Ela é sempre uma construção, uma produção situada historicamente e, portanto com as marcas do seu tempo, do estágio do conhecimento naquele momento, portanto não deve ser lida, interpretada, apropriada de maneira transhistórica. Mas, muitos outros questionamentos estavam por vir e a exigir repensar o historiador natural que descobria em plena atividade. Lia e relia os documentos da escravidão e não sabia como escrever a história de uma maneira que não fosse aquela em que a explicação brotava do suceder de causa e efeito que imaginava pertencer ao tempo. Em que os documentos operavam como evidências a determinar previamente o caminho a ser trilhado. Enfim, minha escrita estava muito próxima de um relatório de pesquisa. E essa foi a experiência da dissertação. As obras estudadas apontavam para outros horizontes metodológicos do fazer historiográfico, mas ainda não sabia como fazer. Só alguns anos depois, é que pude retomar toda aquela pesquisa da dissertação e reescrevê-la em dois pequenos livros: Reinventando a Liberdade e Abolição. O primeiro, escrito para uma série de para didáticos, coloco como questão a análise dos caminhos como no Brasil a escravidão foi adotada e naturalizada como prática social desde a invasão dos portugueses no século XVI. Nesse período a Igreja Católica também tinha seus escravos e produzia discursos e justificativas sagradas para a existência e manutenção da prática escravista. No entanto, no decorrer do século XIX, modifica-se o cenário mundial, criam-se outras práticas sociais, políticas, culturais e econômicas e a escravidão no Brasil passa a ser questionada e combatida até mesmo pela Igreja Católica. Dessa forma, minha questão ao estudar a escravidão em temporalidades diversas, é debater como a sociedade e inventa/reinventa seus opostos. Quais discursos e práticas dão suporte a escravidão e depois a condenam radicalmente. No segundo, Abolição, meu interesse era pensar como o tema da escravidão e da abolição ia sendo construído e representado pela literatura no Brasil do século XIX. Talvez influenciado pelas leituras 4 de Walter Benjamin, entre alguns autores, comecei a pensar como a literatura, entre outras leituras que realizamos ao longo da vida, formam ou deslocam nossa visão sobre o mundo ao nosso redor. Destaco ainda do campo da sociologia e da história, nesse livro Abolição analiso três obras que são marcantes para o pensamento social no Brasil: Casa Grande e Senzala, Evolução Política do Brasil e Raízes do Brasil. Obras produzidas na década de 1930, um período marcante na redefinição das relações de poder no interior da classe dominante e na sociedade civil. Esses autores procuram de alguma forma estabelecer um modelo e um perfil do que denominam povo brasileiro, sua cultura e suas classes. Nesse momento, meu interesse maior ao debater essas obras era analisar a forma como representavam a escravidão. Assim, diria, encerrei meu ciclo de estudos sobre o século XIX no Brasil e o tema da escravidão. Ao planejar meu doutorado, a leitura do romance 1984 de George Orwell me causou um grande impacto. Muito provavelmente porque ela ocorria no final do período da ditadura no Brasil, e quando eu já vinha realizando outras leituras que definitivamente desconstruíam em mim qualquer idéia totalizante da história. Em outros termos, me digladiava com a idéia de que a história não era objetiva, ou seja, o significado da história vivida no presente não resulta de uma apreensão passiva e clara ou evidente de sentidos ou significados. Os fatos, os acontecimentos, as experiências não falam por si. Antes, são construções ou produções de redes de informação, de instituições, grupos, enfim, diferentes agenciamentos que disputam o controle acerca do que e como informar, noticiar, significar. E nós, dos nossos lugares sociais, políticos, culturais, enfim das nossas redes, lemos, relemos, resignificamos o que a mídia e as diferentes agências do estado e mesmo a sociedade civil afirmam e apresentam como verdade evidente. Uma das frases do romance de Orwell me perseguia: “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado." (George Orwell, 1984). A partir da idéia central que essa frase enunciava, a do controle sobre o passado, me perguntava: e a população pobre, que não se escolariza, ou quando o faz é apenas por poucos anos, qual é seu passado, o que se constitui em história para ela? Parecia-me naquele momento, que para compreender um pouco a forma de agir e pensar dessa parcela da população no presente e no futuro haveria que ouví-las, entrevistá-las. Foi então que parti para a rica experiência de pesquisa, que foi ouvir a história de vida de homens e mulheres das camadas pobres da população de Recife. Dessas histórias, privilegiei trechos de relatos em que esses homens e mulheres narraram experiências que considerei significativas. Foram reconstruções mnemônicas pessoais que associei a dimensões sociais mais amplas em períodos históricos diversos. O trabalho de análise dos relatos de memória teve uma significativa influência da leitura do livro Memória Coletiva de Maurice 5 Halbwachs. Este livro quando me foi indicado, por Edgar De Decca, (meu orientador na época), e chegou às minhas mãos, eu já havia escrito grande parte da tese e tratado a memória e a história como conceitos que se equivaliam e se comunicavam, embora distintos. Um pouco na linha do que Jacques Le Goff havia amplamente apresentado e discutido em seu livro Memória – História. Assim, quando li a primeira vez A memória coletiva, e em uma passagem Halbwachs afirmava que memória e história eram termos antitéticos, tive um grande choque. Afirmava este que a memória era o que estava vivo, e de certa forma informava, no presente, comportamentos e costumes das pessoas de uma comunidade, e que esta, se tornava história, quando não era mais lembrado e se tornava documento de arquivo. Foram muitas leituras até compreender que este autor operava com uma concepção de história da década de 1920, muito diferente da maneira como operávamos no final do século XX. No entanto, um aspecto da maneira como Halbawchs estuda a memória foi de importância crucial para meu estudo e análise dos relatos de memória. Refiro-me ao fato deste operar com a representação de que a memória individual e a memória social são inseparáveis. Essa maneira de tratar a memória por este autor me ajudava a resolver o grande problema da questão quantitativa, ou do número de entrevistas necessárias para dar poder de realidade e de representatividade aquelas memórias. Ao considerar que toda memória individual é também social, um entrevistado ao realizar um relato de um acontecimento, ou de uma experiência, está também trazendo a memória de uma parcela do grupo, da classe, da rede social da qual é parte. Foi com essa perspectiva, então, que pude avançar nas análises dos relatos de memória dos homens e mulheres que entrevistei. No período em que me dediquei a escrita da tese, o problema da narrativa prisioneira de um tempo cronológico e causal havia sido resolvido. Aprendera, a duras penas, que uma das condições para construir uma narrativa histórica que rompesse a linearidade temporal e sua forma de explicação causal se encontra na construção de uma questão, na formulação de uma pergunta. Eu tinha um problema, que me permitia priorizar o debate historiográfico da questão em tela e, dessa forma, poder utilizar a temporalidade de modo múltiplo. O fio condutor da narrativa passava a ser o debate histórico, a questão a ser narrada/analisada por meio da documentação selecionada apoiada em um referencial teórico-metodológico. Por outro lado, essa operação atendia a forma como eu concebia o percurso narrativo por mim escolhido na perspectiva de uma escrita que viesse a produzir os melhores efeitos de verdade. A tese foi defendida em 1991, com o título, História em campo minado: a cultura popular revisitada. Logo após a defesa recebi o convite para publicá-la pela editora Contexto, e para efeito de comercialização, foi sugerido substituir o título para História oral 6 e memória: a cultura popular revisitada. Na época aceitei prontamente a sugestão. No entanto, passados alguns anos fui descobrindo toda uma corrente que defende a existência de uma maneira própria de fazer história, que seria por meio da realização de entrevista e sua publicação, e que, dessa forma, fundaria uma área própria do conhecimento, a história oral. Sou inteiramente contrário a essa concepção, pois qualquer fonte, oral, imagética, impressa não funda por si qualquer área. Os relatos de memória, bem como os jornais, os inventários, as imagens, entre outras fontes, caras ao historiador têm suas especificidades que exigem que o pesquisador as conheça, para que possa construir análises críticas e escritas historiográficas que não redundem em meros relatórios de pesquisa. Logo, registro neste percurso historiográfico e metodológico que opero com a história oral como uma técnica e uma metodologia e não como uma forma diferente ou própria de fazer história, história oral, como defendem alguns. É importante ainda destacar que ao realizar entrevistas para uma dissertação ou tese, o pesquisador entrecruze os relatos colhidos com outras fontes documentais, pois do contrário corre o risco de cair na armadilha da fonte ou do relato único, que dificulta (ou mesmo impossibilita) os deslocamentos analíticos. Ainda no que tange ao texto da tese de 1991, há dois aspectos de dimensões metodológicas que me parecem pertinentes a este itinerário comentar. O primeiro, é que embora estivesse operando com a perspectiva de que as histórias são plurais, e, portanto como produção e como construção das diversas redes sociais, políticas, culturais, econômicas em disputa, a minha escrita ainda era prisioneira da concepção do documento como referência do real, como prova do acontecido. Nesse sentido, nas análises que realizo dos relatos orais de memória, utilizo constantemente a expressão resgate da memória, quando na realidade nenhuma memória se resgata, da mesma forma que não se resgata o passado, ou a história. Podemos sim resgatar documentos para não serem destruídos. O passado, a história vivida passou e o que o historiador tem acesso são aos registros diversos, os documentos vários, que não é o acontecido, e não traz de volta jamais esse passado. Ao longo desses últimos anos, tenho me debruçado para estudar e pensar a problemática epistemológica do conhecimento, em especial, a questão e as implicações da perspectiva construtivista e suas ressonâncias no campo da história. Contudo o fato de compreender, concordar e pensar em adotar determinada perspectiva metodológica, não significa que minha escrita historiográfica siga por essa trilha de forma mimética ou automática. 7 Desafios e deslocamentos na escrita de um artigo. Recentemente, publiquei o artigo Ação trabalhista, repressão policial e assassinato em tempos de regime militar (2011). O tema ou o argumento deste texto é apresentado logo no início do artigo, reproduzindo primeiramente as informações que haviam sido publicadas no jornal Estado de São Paulo em 09 de novembro de 1972. A reportagem tinha como chamada, em letras com destaque, Mortes num engenho em Pernambuco, e, além das informações sobre um ataque a trabalhadores rurais do engenho Matapiruma na cidade de Escada (PE), a matéria era acompanhada de duas fotografias dos parentes das vítimas. Narrava basicamente que um grupo de trabalhadores rurais de um engenho de açúcar entrara na Justiça do Trabalho contra o arrendatário do Engenho Matapiruma de Baixo. Este, ao perder o processo trabalhista e ser obrigado a pagar aos trabalhadores, passara a ameaçá-los de morte, especialmente três irmãos, Luis Inocêncio Barreto, José Inocêncio Barreto e João Inocêncio Barreto. No dia 05 de outubro de 1972, estes irmãos e mais um grupo de trabalhadores que limpavam uma área do canavial, daquele engenho, foram abordados pelo vigia e por policiais da delegacia de segurança pública de Pernambuco. Os três irmãos ao saírem do canavial atendendo a um chamado do vigia, e caminharem em direção aos veículos onde este se encontrava com um grupo de policiais, foram recebidos a bala, que resultou na morte de um dos três irmãos, José Inocêncio Barreto. O segundo irmão, João Inocêncio Barreto recebeu oito tiros e foi internado em um hospital público, mas sobreviveu, e o terceiro irmão Luis Inocêncio Barreto, foi ferido na mão e escapou correndo por dentro do canavial. Apesar da forte desvantagem numérica e de armamento, os trabalhadores reagiram ao ataque com seus instrumentos de trabalho, foice e peixeiras, deixando morto o vigia e ferindo os agentes policiais José Timóteo e Pedro Vieira, segundo relatava a reportagem no jornal Estado de São Paulo. Meu conhecimento e envolvimento com o tema dessa reportagem são do período deste ataque policial e patronal aos trabalhadores em outubro de 1972. Talvez em outras épocas, em que se exigia do historiador isenção ou distanciamento do objeto a ser pesquisado, não pudesse (ou não devesse) realizar esse tipo de pesquisa que resultou no referido artigo. No entanto, pontuo essa dimensão para trazer outra vez ao debate a questão de que a relação próxima ou o envolvimento com o objeto da pesquisa não se constitui num estatuto a priori que defini a possibilidade ou não da produção do conhecimento sobre um determinado tema ou acontecimento.1 Pelo contrário, será na própria 1 Desde a década de 1930 a Escola dos Annales já sistematizava sua crítica a uma concepção de neutralidade e objetividade como garantia para o uso de procedimentos adequados a fim de se alcançar a verdade histórica dos acontecimentos. No entanto, mesmo na atualidade essa problemática continua presente. Não é fortuito o historiador Tony Judt em seu livro Pós-Guerra – uma história da Europa desde 1945, escrever que o tema do seu livro é muito amplo e que 8 maneira como procedemos a análise dos eventos estudados que poderemos apontar se determinados tipos de relação com o objeto de estudo contribui de forma positiva ou negativa para a produção do conhecimento. Na linha dessa reflexão, torna-se importante destacar as análises de Beatriz Sarlo em Tempo Passado – Cultura da Memória e Guinada Subjetiva, quando recupera algumas publicações de autores que transformaram sua própria experiência de militância e prisões, durante as ditaduras da década de 1960/1970, em teses e artigos. Nesse aspecto, é que Sarlo comenta o artigo La bemba, em que o militante político Emilio Ipola narra suas memórias acerca dos dois anos em que esteve preso. Para Sarlo, Ipola escreve da posição de quem analisa seus materiais, não de quem quer testemunhar como vítima...(Sarlo, 2007, p. 71) E, ainda, acrescenta...A experiência se mede pela teoria que pode explicá-la, a experiência não é rememorada, mas analisada...(Sarlo, 2007, p. 79) Um outro texto que Sarlo ressalta é a tese Poder y desaparición: Los campos de concentración em Argentina, publicada em 1998, de Pilar Calveiro, que ficou presa durante um ano e meio durante a ditadura argentina. A reflexão de Sarlo segue na mesma perspectiva ao apontar que: Calveiro está se referindo a fatos excepcionais; mas não exige que ninguém acredite neles só pela carga de sofrimento humano que (lhe) produziram, e sim pelo dispositivo intelectual que os incorpora a seu texto.( Sarlo, 2007, p. 83) Na trilha dessas leituras e inspirando-me nelas, posso dizer que, em 1972, o caso Matapiruma entrou de porta adentro no meu cotidiano. Meu pai era advogado da Federação dos Trabalhadores da Agricultura de Pernambuco (FETAPE) e quando houve o assassinato de José Inocêncio Barreto, ele avaliou que o órgão de classe não estava tomando a defesa do trabalhador como deveria e se demitiu. Sua indignação em face do que dizia ser a atitude pouco corajosa e o correto papel de uma Federação de Trabalhadores Rurais foi o tema de muitos almoços e jantares, naquele período, tempos em que ainda se tinha o hábito da família se reunir todo dia no horário das refeições. Meu pai, com a colaboração de outros advogados e de membros da Igreja Católica2 passaram a defender Luis Inocêncio Barreto. O outro irmão João Inocêncio Barreto, que tinha levado oito tiros e encontrava-se entre a vida e a morte num Hospital Público era visitado constantemente por esse grupo. Meu pai se dizia impressionado e comovido pela coragem de João Inocêncio Barreto, pois assim que conseguiu falar, reafirmou a disposição de continuar a lutar pelos seus direitos. essa tarefa é agravada pela sua proximidade. E em seguida se indaga: Isso facilita ou dificulta o meu entendimento da narrativa atinente a Europa no pós-guerra? Não sei. O que sei é que, por vezes, tal condição impede o distanciamento desapaixonado do historiador. (Judt, 2008, p11) 2 O Arcebispo de Olinda e Recife nesse período era Dom Hélder Câmara que desde que chegou a Recife em março de 1964, passou gradualmente a ter uma posição crítica aos militares e de apoio as lutas de resistência ao regime civilmilitar. 9 Em 1998, passados vinte e seis anos daquele trágico acontecimento, eu desenvolvia um projeto sobre a atuação de padres vindos de outros países para atuar no Nordeste, antes e depois de 1964, quando o tema Matapiruma atravessou uma entrevista que realizava. Na oportunidade, Matapiruma veio por meio das lembranças do Padre francês Joseph Servat que, em certo trecho do seu relato de história de vida, recorda: Na época fui informado que a orientação dada era para matar o trabalhador que conseguiu fugir, Luís Inocêncio Barreto, pois era a única testemunha de valor para o crime. Já o ferido (João Inocêncio, irmão de Luís) que estava em estado grave e isolado pela polícia no hospital, não era grande ameaça. Partindo deste fato, nasceu uma grande solidariedade em favor destes pobres camponeses. Advogados, professores, paróquias, conventos, bispos, padres e principalmente a ACR (Ação Católica Rural) fizeram tudo para salvar os trabalhadores e exigir justiça. Os doutores Adalberto Guerra, Marcus Cunha e Antonio de Paula Montenegro deram tempo e longas caminhadas sem nada exigir. Os conventos da Madalena e de São Bento, tal como a paróquia do Morro da Conceição, ajudaram a salvar Luís Inocêncio. Assumi a responsabilidade com o acordo e com o apoio das equipes da ACR e cinco sindicatos, apesar da prudência da Federação.3 Foi uma obra admirável onde o Deus dos pobres tornava-se presente, quase visível. Transportávamos Luís Inocêncio com o Fusca da ACR de um lugar para outro, pois era necessário salvar o companheiro e ganhar tempo para que a justiça fosse feita ao trabalhador rural. Através do cardeal Dom Eugênio Sales, o processo foi levado até Brasília e, após meses de angústia e intensa solidariedade, Luís e seus companheiros foram declarados não comunistas e anistiados.4 3 A historiadora Socorro Abreu em seu artigo O sindicalismo rural em PE e o golpe de 1964 aponta algumas pistas para o que o Padre Servat cautelosamente chama de “a prudência da FETAPE”. Segundo ela “Durante os anos 70 a entidade teve uma ação bastante moderada e mesmo subserviente em relação ao patronato, aos militares e à Delegacia Regional do Trabalho”. In: ABREU, Socorro. O sindicalismo rural em PE e o golpe de 1964. Brasília: Desenvolvimento Rural, v. 1, n. x, p. 17, 2005. 4 Entrevista com Padre Servat para o Projeto Guerreiros do Além Mar em 1997, apoiado pelo CNPq. Arquivo do LAHOI. 10 Padre Servat mantinha esporádicos contatos com Luis Inocêncio Barreto, e me ajudou a localizá-lo e entrevistá-lo em dois encontros em sua residência na cidade do Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, ainda em 1998. Aquela entrevista de história de vida me marcou por dois aspectos. Primeiro, o mundo da violência, principalmente contra os trabalhadores rurais, que ele narrava sem que eu realizasse qualquer pergunta sobre esta temática. Relembrava nomes de trabalhadores assassinados a tiro, a facada, e eventualmente alguma vingança contra algum administrador ou patrão, como se estes acontecimentos estivessem integrados a paisagem do mundo rural. Seu narrar não sofria modulações ao contar essas mortes. O segundo aspecto que atraiu minha atenção está relacionado a disputa trabalhista que junto com seus irmãos e um grupo de trabalhadores do Engenho Matapiruma iniciou contra o arrendatário José Metódio. Luis dizia que ele e o advogado do sindicato realizaram inúmeras viagens a Recife, para denunciar e solicitar proteção as autoridades policiais, militares e à delegacia regional do trabalho em face das ameaças que estava sendo alvo. Isto porque desde que a Justiça do Trabalho condenou o arrendatário a pagar os direitos trabalhistas reivindicados por esse trabalhadores, este passou a ameaçar principalmente os três irmãos José, João e Luis. E o ápice da tensão entre o arrendatário e aquele grupo de trabalhadores se materializou quando a justiça do trabalho penhorou alguns bens por não cumprimento da sentença condenatória. Ao ouvi-lo rememorar com muitos detalhes a disputa trabalhista, a ênfase e um certo orgulho como narrava sua visitas as autoridades principalmente policiais e do IV exército, me soavam-me no mínimo algo estranho. Na minha leitura do presente, formada por meio da significativa historiografia sobre o período do regime civil militar de 1964, julgava inteiramente improdutiva e até ingênua aquela estratégia. Qual a força de um trabalhador e um advogado de sindicato, para reverter um cenário de violência e desrespeito as normas legais, quando as autoridades a quem se dirigiam para efetivar a denúncia compactuavam com a quebra da ordem legal? Na minha avaliação, aquele tratamento estritamente jurídico, de denunciar os abusos e violências cometidas, estava condenado ao fracasso. No entanto, dois fatores que apresentarei ao longo deste texto concorreram para deslocarem esta minha análise. Após a entrevista de história de vida de Luis Inocêncio Barreto, tinha em mãos uma história exemplar, que poderia explorar comentando alguns aspectos ou temas. No entanto, não visualizava naquele momento, como narrar essa história, alongar os fios, analisar aquele relato além da parte visível do iceberg. 11 Passaram-se, então, doze anos, quando no segundo semestre de 2010 recebi um convite do Nucleo de Estudos Agrários (NEAD) do Ministério do Desenvolvimento Agrário para participar de um livro que trataria sobre tortura e assassinatos de trabalhadores rurais. Imediatamente, informei que aceitava participar do projeto, mas se fosse apenas para trabalhar o caso de Matapiruma. No entanto, cheguei a torcer para que não aceitassem, pois como poderia escrever um artigo apenas com a entrevista de um trabalhador e trechos da entrevista de um padre? No entanto, os coordenadores do projeto do livro aceitaram minha proposta e me vi diante da terrível angústia e do desafio de ir à busca de outras fontes que fornecessem uma base documental àquela história que desejava narrar. Inicialmente, solicitei a meus bolsistas de Pibic uma ajuda, para tentar localizar nos jornais de Pernambuco, nos meses de outubro, novembro e dezembro de 1972, alguma reportagem ou notícia sobre aquele assassinato. Porém eles nada encontraram. Afinal aquele era um dos períodos mais intensos da censura a imprensa5. Encaminhei-os então ao Arquivo Público, para que pesquisassem nos prontuários do DOPS a palavra Matapiruma ou mesmo pelo nome de Luis Inocêncio Barreto. E qual não foi minha surpresa e alegria em certa manhã uma das bolsistas6 me entregou um CD com mais de cem documentos digitalizados sobre o caso Matapiruma7. Iniciou-se, então, uma nova etapa de desafios metodológicos e narrativos. A primeira leitura dos documentos encontrados me causou perplexidade, pois se apresentavam como um verdadeiro labirinto, ou mais propriamente um quebra-cabeça a ser remontado. A numeração que estabelecia uma seqüência nessa documentação não tinha correspondência com a ordem temporal com a qual os mesmos estavam datados, ou mesmo, em relação ao conteúdo. Dessa forma, foi necessário ler cada documento, escrever breves notas sobre cada um e depois então ir relacionando-os, organizando-os por assuntos e datas. 5 Aquino, M. A. de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação e da resistência – O Estado de São Paulo e o Movimento. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1999, p. 38. Ver também. Smith, A-M. Um acordo forçado: O consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 102. 6 A bolsista de Pibic na época, Giuliana da Matta (atualmente realiza seu mestrado em história) após uma intensa procura localizou no Arquivo Público de Pernambuco dois Prontuários (Fundo SSP Nº 1357, 29541) que continham uma vasta documentação sobre o conflito no Engenho Matapiruma. 7 Nesse momento o NEAD modifica seus planos e decidi produzir o livro sobre assassinatos no campo não mais com a colaboração de diversos autores. Solicita então ao Prof. Moacir Palmeira (Museu Nacional/UFRJ) supervisionar a pesquisa sobre esse tema e este indica as pesquisadoras Ana Carneiro e Marta Cioccari para recolherem a documentação em vários estados do Brasil e realizarem entrevistas e escreverem o texto que resultou no importante livro: Retrato da Repressão Política no Campo – Brasil 1962 – 1985 – Camponeses Torturados, Mortos e Desaparecidos. Repassei as pesquisadoras todo o material que tinha em mãos sobre o caso Matapiruma e também escrevi o artigo já citado Ação trabalhista, repressão policial e assassinato em tempos de regime militar. 12 Lá estavam as cópias, os documentos que Luis Inocêncio disse em sua entrevista ter levado às autoridades policiais e militares, e ao próprio delegado regional do trabalho e que eu julgara muito estranho. Eram vários, em datas distintas e com conteúdos que apresentavam pequenos acréscimos ou mesmo alterações quando comparados entre si, o que revelava a evolução da luta trabalhista e sindical. No entanto, após cuidadosas leituras dessa documentação descobria que ela continha muitas outras informações, que propiciava outro entendimento da entrevista de Luis Inocêncio. Foram escritos em diferentes momentos da luta trabalhista e traziam as denúncias dos trabalhadores contra as muitas arbitrariedades do arrendatário do engenho a que tanto meu entrevistado se referia. Este foi o primeiro deslocamento analítico, pois a entrevista na medida em que era relacionada a essa documentação permitia compreender como um trabalhador e um advogado, ao se dirigirem àquelas autoridades, informando e denunciando a quebra da ordem legal e trabalhista, concorriam para pelo menos, minimizar os efeitos da representação da impunidade patronal. Ao mesmo tempo, estes, ao adentrarem o edifício das instituições policiais, militares e da delegacia do trabalho para encontros com essas autoridades, poderiam pelo menos momentaneamente desfazer a aura de medo, intimidação e terror que se constituíam num dos pilares mantenedores do regime que se instalara. O segundo deslocamento foi e continua sendo construído a medida em que li os documentos, recuperando alguns livros de Michel Foucault, como As Palavras e as Coisas, Arqueologia do Saber e a Ordem do Discurso. Em todos esses textos, uma das dimensões que me marcavam era a perspectiva de ruptura com o objetivismo, com a concepção de que os significados advêm do mundo ou da realidade exterior a nós. Longa caminhada até conseguir pensar historicamente que são os discursos produzidos por pessoas, instituições, meios de comunicação e toda uma complexa e ampla rede que agenciam e produzem os significados, os sentidos, a forma e o conteúdo do mundo, daquilo que se denomina realidade. São esses discursos autorizados que constroem, produzem o mundo como evidência, nomeando-o de claro e objetivo. No entanto, foi outro trabalho de Foucault – Isto não é um cachimbo – que de forma mais radical me fizeram entender como as palavras, a linguagem, o discurso ou mesmo o que se diz não tem relação efetiva ou de pertencimento com as coisas, os objetos, as práticas. O detalhado estudo realizado por Foucault do quadro de René Magritte se tornou para mim numa referência importante para desnaturalizar a relação da linguagem com o mundo, com suas práticas e objetos. Todas essas leituras me ajudaram e entender como e 13 porque o regime militar necessitava da censura, da violência, do controle do judiciário e de outras instituições para que todas as leis e práticas autoritárias pudessem se construir como verdade. O discurso oficial do regime operava por meio de suportes institucionais para que o que dizia e fazia pudessem ser considerados como verdades evidentes. Não se permitia a divergência, o debate, a discordância; esse era um dos traços constitutivos e exemplares do regime autoritário no Brasil. Por outro lado, o estudo da documentação arquivada no prontuário pesquisado, permitia analisar os efeitos que as denúncias encaminhadas por Luis Inocêncio Barreto, com apoio do advogado do sindicato, produziam. Estas ao serem recepcionadas pelos órgãos civis e militares geravam ofícios, comunicados internos e ações de averiguação que transformavam e resignificavam aquela disputa trabalhista. Para os órgãos militares e policiais o senhor José Metódio era um patrão exemplar, que estava sendo vítima da ação de trabalhadores formados nas antigas Ligas Camponesas (Montenegro, 2010). No artigo que venho comentando, uma série documental adquire uma grande centralidade na narrativa então escrita. Poder-se-ia afirmar que esta série inicia com o documento-denúncia dos trabalhadores aos militares do IV Exército , em que relatam que dois homens vestidos à paisana se apresentaram no engenho identificando-se como pertencendo àquela arma. Acompanhados então do vigia do engenho, de posse de uma lista com o nome de determinados trabalhadores, dirigem-se a casa dos mesmos e confiscam seus revólveres, chegando mesmo a espancar um deles que se negara a entregar. No mesmo documento, havia ainda outra denúncia contra o delegado de polícia da cidade de Escada, que era acusado pelos trabalhadores de acobertar todas as arbitrariedades cometidas pelo vigia do referido engenho e mesmo por seu arrendatário. No entanto, este documento não estava isolado, pois, lendo e relendo inúmeras vezes aquele prontuário, fui remontando o quebra-cabeça. Pude então encontrar uma verdadeira rede de informações interna na qual o documento inicial de denúncia dos trabalhadores se conectava aos documentos gerados pelo próprio IV Exército. Estabelecia, assim, o fio que ligava o documento dos trabalhadores a outros produzidos pelas autoridades militares. Estes revelavam como foi recepcionado o documento denúncia dos trabalhadores e quais ações de busca e averiguações foram realizadas, além de indagar sobre o discurso que os militares produziram e enviaram a outros órgãos de informação em Pernambuco e em Brasília acerca daquele embate trabalhista (Montenegro, 2011). 14 No entanto, a leitura de cada documento dessa coleção surpreendia pelas arbitrariedades com as quais era jogada a vida dos trabalhadores. E também me defrontava com a difícil aprendizagem das práticas sindicais, trabalhistas e políticas, próprias naquele período. E por fim, destacaria a descoberta da amplitude dos meandros internos a rede policial e militar. No meio dos documentos aparecia uma delação de um trabalhador, morador do engenho Matapiruma contra Luís Inocêncio Barreto, informando ao delegado de polícia da cidade de Escada que este fazia reuniões à noite em sua casa de portas fechadas com outros trabalhadores. Este depoimento, registrado como tendo ocorrido em junho de 1972, e imediatamente enviado a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, possibilitava alongar os fios de um novelo de muitos cruzamentos.8 Após a construção/organização dessa cartografia, fui percebendo que aquela documentação possibilitava-me visualizar a rede de comunicação e procedimentos da polícia militar e federal, do IV exército e da delegacia regional do trabalho, ao serem instadas a responderem às demandas trabalhistas daqueles trabalhadores rurais. Eram por meio dos mais diversos tipos de documentos que os discursos e as práticas passavam a ser construídos e, sobretudo, acionados para transformar um processo trabalhista em subversão da ordem. Ao mesmo tempo, esse movimento de resignificação não poderia prescindir da censura, da intimidação, do seqüestro e de outras práticas autoritárias, como os documentos denúncias dos próprios trabalhadores arquivados no mesmo prontuário, registravam. Longe se vai o tempo em que me debruçava diante de uma série documental e me via prisioneiro da ordem cronológica com a qual ele se apresentava. Mas, outros deslocamentos metodológicos foram sendo operados e continuam objeto de reflexão e aprendizagem como assinalamos. Foi em torno dessa problemática dos mecanismos de produção discursiva e práticas arbitrárias que um regime autoritário opera, associando-se a diferentes instâncias e órgãos civis e militares do estado, recorrendo a violência e a censura para garantir a efetivação de muitos dos seus atos, que nossa análise do caso Matapiruma, alicerçada nas entrevistas de José Inocêncio Barreto, do Padre Servat e nesse prontuário do DOPS, desenvolveu-se. 8 Prontuário Município de Escada. Engenho Matapiruna de Baixo. Fundo 29541. Pág. 86. 15 Considerações Finais. Ao recorrermos a memória como fonte documental, considerando inclusive os seus mais diversos suportes materiais, devemos estar atentos as suas múltiplas dimensões cognitivas. Nesse aspecto, não se deve esquecer que a memória oral é uma reconstrução do presente, em que o narrador relembra algo vivido. No entanto, aquilo que ele diz ter vivido, necessariamente, não significa que, o que se passou ocorreu da forma narrada. Dessa perspectiva metodológica, gostaria ainda nesse artigo de retornar a um trecho da memória de Luis Inocêncio Barreto em que ele relata um diálogo com o juiz da cidade de Escada/PE, em que o mesmo desejaria qualificá-lo de comunista. (...) Não me lembro a data, ele com raiva, mandou eu tirá os meus animal, e eu não plantava mais. O vigia vivia olhando, nem eu plantava e nem criava. Doutor Humberto era o juiz, aí mandou me chamar. Ele me denunciou lá ao juiz, e o juiz mandou me chamar. Disse para eu tirar os animal. Eu disse: “Tá certo doutor, eu tiro, com sua ordem, agora o senhor me dê por escrito. Por que eu vou tirar? Qual é o mais certo, é eu tirar, ou eu deixar meus animal? Eu sou nascido e criado, estou com trinta e sete anos dentro do engenho. Eu vou botar esses animal aonde?” Ele disse: “Você leva os animal e bote dentro da solta de doutor Zé Maria”. Eu disse: “Tá certo, me dê uma carta, me dê por escrito que eu vou.” Ele disse: “Não, eu não estou mandando!” Eu disse: “Nem tudo o que se manda fazer doutor, a gente não faz não, verbal não!” Aí o oficial de justiça, Amaro Nogueira, que tinha trabalhado comigo no engenho Três Braças e Caçoá disse: “Mas ele não tá mandando?!”. Eu digo: “É você serve de testemunha contra ele, você vai testemunhar contra mim ou contra ele?” “Não posso ser testemunha.” Eu disse: “Então não se meta nisso! Me dê por escrito doutor Humberto a carta que eu vou, lá e entrego a doutor Zé Maria.” Ele disse: “Não, mas você pode chegar lá e soltar.” Eu disse: “Não.” “Mas você tem que tirar os animal de lá!” Eu digo:“Matar eu não vou eu não vou matar um cavalo, nem um burro. Não posso soltar dentro da fazenda dos outros.” Eu disse a ele: “Doutor o senhor quer que eu seja, o que o senhor tá pensando, mas eu não sou! Eu sou o que eu sou, não é o que o senhor pensa!” Ele disse: “Você quer dizer com isso o quê?” Eu disse: “Eu quero dizer com isso o seguinte: que o senhor quer, que eu prove, que eu seja comunista e eu não sou. O senhor não quer ser comunista e como quer que eu seja? O senhor não quer me dar uma carta de garantia por escrito, e como eu vou soltar os animal dentro das fazenda dos outros. Quer dizer que aí eu vou provar que sou comunista! Eu sou nascido e criado doutor, lá no engenho. Agora o senhor me dê por escrito. Ele disse: “Mas você não 16 tem outro lugar pra botar?” Eu digo: “Não senhor, eu não tenho fazenda, eu não tenho sítio.“Agora se o senhor me der por escrito eu vou.” Ele disse: “Não, por escrito eu não dou!” Eu digo: “Então, também não vou!” Disse : “Então, continue lá dentro com os seus animais!”.9 Ao lermos esse trecho da entrevista, é possível perceber como Luis Inocêncio reconstrói um significativo sentimento de medo do perigo de ser nomeado ou considerado comunista. Essa dimensão da reconstrução mnemônica da experiência vivida poder-se-ia considerar como uma das potencialidades dos relatos orais de memória, sobretudo, quando estes contemplam situações e acontecimentos que emitem signos associados a fortes sentimentos. Nesse aspecto, ao encontrar na coleção do DOPS um documento10 com o depoimento de um vizinho de Luis Inocêncio Barreto ao delegado de polícia de Escada – como já comentado anteriormente –, de que este realizava reuniões a portas fechadas, com a participação de outros trabalhadores, pode-se entender como há nesse período uma série de signos possíveis de serem lidos como comunismo e, portanto, passíveis de prisão, interrogatórios, torturas e até assassinatos. O delator, ao final do depoimento ao delegado, solicitava que não fosse divulgado o teor daquela denúncia, pois correria risco de vida. Este pedido permite avaliar como este trabalhador tinha plena consciência da gravidade do seu ato, e como a própria vida de Luis Inocêncio Barreto corria perigo. Por outro lado, o diálogo que Luis Inocêncio narra com o juiz, nunca saberemos se realmente ocorreu. Porém, podemos analisá-lo historicamente e cruzá-lo com outras fontes documentais e, mesmo com outros relatos orais ou escritos. Isto nos obriga a estabelecer múltiplas ligações com as práticas políticas e culturais imperantes naquele momento histórico específico. Assim nos desvencilhamos da concepção do documento como prova do real, e apontamos muito mais para a possibilidade de operar com os documentos como índices ou sinais que nos possibilitam construir ou reconstruir significativas experiências historiográficas. 9 Idem, pág. 44. Prontuário Município de Escada. Engenho Matapiruna de Baixo. Fundo 29541. Pág. 86. 10 17 Este texto se encontra publicado como capítulo do livro Depois da Utopia: história oral em seu tempo. Ricardo Santhiago & Valéria Magalhães (Orgs.). São Paulo: Letra e Voz/Fapesp, 2013. Pags. 55 à 70. Bibliografia. Benjamin, W. Obras Escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: editora brasiliense, 1985. Castoriads, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. Deleuze, G. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. 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