Percursos Historiográficos e Metodológicos da Contemporaneidade

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Percursos Historiográficos e Metodológicos da Contemporaneidade
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Percursos Historiográficos e Metodológicos da Contemporaneidade.
Prof. Dr. Antonio Torrres Montenegro. (UFPE)
Introdução.
O texto que apresento foi pensado em dois planos, que embora separados se interconectam.
Inicialmente procuro traçar ou pontuar mudanças e deslocamentos metodológicos que vivenciei
nessas últimas três décadas. São fios ou linhas que se embaralham em temporalidades diversas,
associados à maneira como vivo e penso a história, escrito na forma de um breve relato de reflexões
teóricas relacionado a autores e obras que considero fundamentais a essa trajetória. Elegi esse
caminho de exposição, talvez por ser uma estratégia que ofereça uma maior visibilidade e força
argumentativa a essas reflexões. Ao mesmo tempo, é uma maneira de dizer de onde falo, em quais
autores me inspiro ou ainda como me aproprio dos mesmos para escrever a história.
O segundo plano tem como proposta operar como um artesão na oficina da história; nele
resgato os fios delineados no percurso metodológico e procuro estabelecer conexões com o artigo
Ação trabalhista, repressão policial e assassinato em tempos de regime militar. Em outros termos,
proponho uma discussão em que situo o passo a passo da pesquisa para a escrita deste artigo e como
as reflexões teórico-metodológicas foram informando, delineando, projetando esse labiríntico
percurso.
Primeiros passos impasses.
No início da década de 1980, quando me debruçava para escrever minha dissertação de
mestrado sobre o encaminhamento político do fim da escravidão, algumas obras como A Instituição
Imaginária da Sociedade de Cornelius Castoriads, A Formação da Classe Operária de Edward
Thompson e, principalmente, a Microfísica do Poder de Michel Foucault mesmo considerando as
grandes diferenças de posições teóricas entre esses autores produziram em mim uma grande
inquietação. De alguma forma, estava em pauta um debate que punha em questão algumas
perspectivas historiográficas e teóricas que havia estudado intensamente em anos anteriores.
Sobretudo, daqueles autores e suas obras que havíamos lido e debatido arduamente de maneira até
certo ponto clandestina durante a primeira metade da década de 1970; refiro-me as obras de
Gramsci, Lênin, Engels, Rosa de Luxemburgo e Marx que eram nesta época xerocadas e ou
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compradas quase como livros raros, pois a censura vetava sua circulação. Leituras por sinal
importantíssimas porque abriam todo um arco de análise, compreensão e critica da história presente
e passada e se constituíam em um suporte intelectual valioso para pensar e atuar politicamente
naqueles difíceis anos da ditadura civil militar que ocupara o poder desde 1964. No entanto, a década
de 1980, e suas transformações sociais e políticas que o Brasil assistia o fim da censura, a anistia
política, o fim do regime civil militar, possibilitava a circulação e a atualização de um debate que
vinha sendo realizado há pelo menos duas décadas na Europa. Assim, é que quando me debrucei, no
início da década de 1980, para escrever minha dissertação, vivi um paradoxo. Uma bagagem
intelectual que estudara, assimilara, passara a recorrer como instrumental para pensar e atuar no
mundo era rapidamente, em menos de uma década, colocado em cheque e considerado por alguns
grupos como insuficiente e porque não dizer inadequado para ler, refletir, analisar a realidade
presente e passada.
Mas, retornando ao início desse percurso, qual era o dilema que enfrentava no inicio da década
de 1980 para realizar a escrita da minha dissertação sobre o tema da escravidão no Brasil?
Fundamentalmente, sentia-me prisioneiro de um tempo cronológico que me enredava em formas de
pensar e ler a história relacionada a uma perspectiva causal e determinista. Embora o materialismo
histórico, a dialética e a luta de classes como motor da história fossem importantes referenciais
críticos, essas categorias teóricas marxistas não rompiam inteiramente com a perspectiva de tempo e
de sujeito naturalizados pela história narrada pelo senso comum.
Hoje, compreendo melhor como interiorizamos involuntariamente por meio da cultura, do
senso comum, dos diversos agenciamentos familiares, escolares, religiosos entre outras redes sociais
toda uma visão da história. A história do senso comum é sinônimo de formas de relacionar passado,
presente e futuro centrada em sujeitos, que também operam como causa e podem ser atribuído a
pessoas, classes, partidos, instituições. Esse reducionismo ao sujeito está relacionado a outras
múltiplas perspectivas que informam essa visão histórica, que se podia denominar de história do
senso comum. Apesar dela não ser inteiramente homogênea, guarda algumas características comuns,
como também o uso recorrente da idéia de essência que se encontra relacionada à visão fundacional
e purificadora das origens. Por outro lado, desconstruir essa perspectiva histórica que foi sendo
construída ao longo de nossa vida é uma tarefa complexa, árdua e não se realiza de forma automática
ao estudar determinados autores e suas obras. É imprescindível todo um esforço próprio de
aprendizagem, análise, um trabalho de dias e anos. E sempre que penso sobre como a aprendizagem
é um caminho longo, em que a informação, ou mesmo a erudição é meio e não fim, e nesse momento
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relembro Deleuze em Proust e os Signos, quando afirma: “Nunca se sabe como uma pessoa aprende;
mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela
assimilação de conteúdos objetivos.” (Deleuze, 2003, p. 21)
Assim, a apropriação que faço das obras de Castoriadis e Foucault autores de visões muito
distintas, me levaram a questionar muitas certezas, tanto as que tinha aprendido na última década,
como as que trazia comigo e que havia assimilado ao longo da vida sem que para isso me tivesse
dado conta. Agora, me debatia com o desafio de não mais pensar a história como totalidade, mas por
meio de questões e que as temporalidades não eram linearidades que se sucediam cronologicamente.
Ao mesmo tempo, uma frase de Castoriades me perseguia: Nenhuma obra deve ser tomada como
bíblia. Ou seja, não há obra que contenha um conhecimento final e conclusivo ou acabado. Ela é
sempre uma construção, uma produção situada historicamente e, portanto com as marcas do seu
tempo, do estágio do conhecimento naquele momento, portanto não deve ser lida, interpretada,
apropriada de maneira transhistórica.
Mas, muitos outros questionamentos estavam por vir e a exigir repensar o historiador natural
que descobria em plena atividade. Lia e relia os documentos da escravidão e não sabia como
escrever a história de uma maneira que não fosse aquela em que a explicação brotava do suceder de
causa e efeito que imaginava pertencer ao tempo. Em que os documentos operavam como evidências
a determinar previamente o caminho a ser trilhado. Enfim, minha escrita estava muito próxima de
um relatório de pesquisa. E essa foi a experiência da dissertação. As obras estudadas apontavam para
outros horizontes metodológicos do fazer historiográfico, mas ainda não sabia como fazer. Só alguns
anos depois, é que pude retomar toda aquela pesquisa da dissertação e reescrevê-la em dois pequenos
livros: Reinventando a Liberdade e Abolição. O primeiro, escrito para uma série de para didáticos,
coloco como questão a análise dos caminhos como no Brasil a escravidão foi adotada e naturalizada
como prática social desde a invasão dos portugueses no século XVI. Nesse período a Igreja Católica
também tinha seus escravos e produzia discursos e justificativas sagradas para a existência e
manutenção da prática escravista. No entanto, no decorrer do século XIX, modifica-se o cenário
mundial, criam-se outras práticas sociais, políticas, culturais e econômicas e a escravidão no Brasil
passa a ser questionada e combatida até mesmo pela Igreja Católica. Dessa forma, minha questão ao
estudar a escravidão em temporalidades diversas, é debater como a sociedade e inventa/reinventa
seus opostos. Quais discursos e práticas dão suporte a escravidão e depois a condenam radicalmente.
No segundo, Abolição, meu interesse era pensar como o tema da escravidão e da abolição ia sendo
construído e representado pela literatura no Brasil do século XIX. Talvez influenciado pelas leituras
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de Walter Benjamin, entre alguns autores, comecei a pensar como a literatura, entre outras leituras
que realizamos ao longo da vida, formam ou deslocam nossa visão sobre o mundo ao nosso redor.
Destaco ainda do campo da sociologia e da história, nesse livro Abolição analiso três obras que são
marcantes para o pensamento social no Brasil: Casa Grande e Senzala, Evolução Política do Brasil
e Raízes do Brasil. Obras produzidas na década de 1930, um período marcante na redefinição das
relações de poder no interior da classe dominante e na sociedade civil. Esses autores procuram de
alguma forma estabelecer um modelo e um perfil do que denominam povo brasileiro, sua cultura e
suas classes. Nesse momento, meu interesse maior ao debater essas obras era analisar a forma como
representavam a escravidão. Assim, diria, encerrei meu ciclo de estudos sobre o século XIX no
Brasil e o tema da escravidão.
Ao planejar meu doutorado, a leitura do romance 1984 de George Orwell me causou um
grande impacto. Muito provavelmente porque ela ocorria no final do período da ditadura no Brasil, e
quando eu já vinha realizando outras leituras que definitivamente desconstruíam em mim qualquer
idéia totalizante da história. Em outros termos, me digladiava com a idéia de que a história não era
objetiva, ou seja, o significado da história vivida no presente não resulta de uma apreensão passiva e
clara ou evidente de sentidos ou significados. Os fatos, os acontecimentos, as experiências não falam
por si. Antes, são construções ou produções de redes de informação, de instituições, grupos, enfim,
diferentes agenciamentos que disputam o controle acerca do que e como informar, noticiar,
significar. E nós, dos nossos lugares sociais, políticos, culturais, enfim das nossas redes, lemos,
relemos, resignificamos o que a mídia e as diferentes agências do estado e mesmo a sociedade civil
afirmam e apresentam como verdade evidente. Uma das frases do romance de Orwell me perseguia:
“Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado."
(George Orwell, 1984). A partir da idéia central que essa frase enunciava, a do controle sobre o
passado, me perguntava: e a população pobre, que não se escolariza, ou quando o faz é apenas por
poucos anos, qual é seu passado, o que se constitui em história para ela? Parecia-me naquele
momento, que para compreender um pouco a forma de agir e pensar dessa parcela da população no
presente e no futuro haveria que ouví-las, entrevistá-las. Foi então que parti para a rica experiência
de pesquisa, que foi ouvir a história de vida de homens e mulheres das camadas pobres da população
de Recife. Dessas histórias, privilegiei trechos de relatos em que esses homens e mulheres narraram
experiências que considerei significativas. Foram reconstruções mnemônicas pessoais que associei a
dimensões sociais mais amplas em períodos históricos diversos. O trabalho de análise dos relatos de
memória teve uma significativa influência da leitura do livro Memória Coletiva de Maurice
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Halbwachs. Este livro quando me foi indicado, por Edgar De Decca, (meu orientador na época), e
chegou às minhas mãos, eu já havia escrito grande parte da tese e tratado a memória e a história
como conceitos que se equivaliam e se comunicavam, embora distintos. Um pouco na linha do que
Jacques Le Goff havia amplamente apresentado e discutido em seu livro Memória – História. Assim,
quando li a primeira vez A memória coletiva, e em uma passagem Halbwachs afirmava que memória
e história eram termos antitéticos, tive um grande choque. Afirmava este que a memória era o que
estava vivo, e de certa forma informava, no presente, comportamentos e costumes das pessoas de
uma comunidade, e que esta, se tornava história, quando não era mais lembrado e se tornava
documento de arquivo. Foram muitas leituras até compreender que este autor operava com uma
concepção de história da década de 1920, muito diferente da maneira como operávamos no final do
século XX.
No entanto, um aspecto da maneira como Halbawchs estuda a memória foi de importância
crucial para meu estudo e análise dos relatos de memória. Refiro-me ao fato deste operar com a
representação de que a memória individual e a memória social são inseparáveis. Essa maneira de
tratar a memória por este autor me ajudava a resolver o grande problema da questão quantitativa, ou
do número de entrevistas necessárias para dar poder de realidade e de representatividade aquelas
memórias. Ao considerar que toda memória individual é também social, um entrevistado ao realizar
um relato de um acontecimento, ou de uma experiência, está também trazendo a memória de uma
parcela do grupo, da classe, da rede social da qual é parte. Foi com essa perspectiva, então, que pude
avançar nas análises dos relatos de memória dos homens e mulheres que entrevistei.
No período em que me dediquei a escrita da tese, o problema da narrativa prisioneira de um
tempo cronológico e causal havia sido resolvido. Aprendera, a duras penas, que uma das condições
para construir uma narrativa histórica que rompesse a linearidade temporal e sua forma de
explicação causal se encontra na construção de uma questão, na formulação de uma pergunta. Eu
tinha um problema, que me permitia priorizar o debate historiográfico da questão em tela e, dessa
forma, poder utilizar a temporalidade de modo múltiplo. O fio condutor da narrativa passava a ser o
debate histórico, a questão a ser narrada/analisada por meio da documentação selecionada apoiada
em um referencial teórico-metodológico. Por outro lado, essa operação atendia a forma como eu
concebia o percurso narrativo por mim escolhido na perspectiva de uma escrita que viesse a produzir
os melhores efeitos de verdade. A tese foi defendida em 1991, com o título, História em campo
minado: a cultura popular revisitada. Logo após a defesa recebi o convite para publicá-la pela
editora Contexto, e para efeito de comercialização, foi sugerido substituir o título para História oral
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e memória: a cultura popular revisitada. Na época aceitei prontamente a sugestão. No entanto,
passados alguns anos fui descobrindo toda uma corrente que defende a existência de uma maneira
própria de fazer história, que seria por meio da realização de entrevista e sua publicação, e que, dessa
forma, fundaria uma área própria do conhecimento, a história oral. Sou inteiramente contrário a essa
concepção, pois qualquer fonte, oral, imagética, impressa não funda por si qualquer área. Os relatos
de memória, bem como os jornais, os inventários, as imagens, entre outras fontes, caras ao
historiador têm suas especificidades que exigem que o pesquisador as conheça, para que possa
construir análises críticas e escritas historiográficas que não redundem em meros relatórios de
pesquisa. Logo, registro neste percurso historiográfico e metodológico que opero com a história oral
como uma técnica e uma metodologia e não como uma forma diferente ou própria de fazer história,
história oral, como defendem alguns. É importante ainda destacar que ao realizar entrevistas para
uma dissertação ou tese, o pesquisador entrecruze os relatos colhidos com outras fontes
documentais, pois do contrário corre o risco de cair na armadilha da fonte ou do relato único, que
dificulta (ou mesmo impossibilita) os deslocamentos analíticos.
Ainda no que tange ao texto da tese de 1991, há dois aspectos de dimensões metodológicas
que me parecem pertinentes a este itinerário comentar. O primeiro, é que embora estivesse operando
com a perspectiva de que as histórias são plurais, e, portanto como produção e como construção das
diversas redes sociais, políticas, culturais, econômicas em disputa, a minha escrita ainda era
prisioneira da concepção do documento como referência do real, como prova do acontecido. Nesse
sentido, nas análises que realizo dos relatos orais de memória, utilizo constantemente a expressão
resgate da memória, quando na realidade nenhuma memória se resgata, da mesma forma que não se
resgata o passado, ou a história. Podemos sim resgatar documentos para não serem destruídos. O
passado, a história vivida passou e o que o historiador tem acesso são aos registros diversos, os
documentos vários, que não é o acontecido, e não traz de volta jamais esse passado.
Ao longo desses últimos anos, tenho me debruçado para estudar e pensar a problemática
epistemológica do conhecimento, em especial, a questão e as implicações da perspectiva
construtivista e suas ressonâncias no campo da história. Contudo o fato de compreender, concordar e
pensar em adotar determinada perspectiva metodológica, não significa que minha escrita
historiográfica siga por essa trilha de forma mimética ou automática.
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Desafios e deslocamentos na escrita de um artigo.
Recentemente, publiquei o artigo Ação trabalhista, repressão policial e assassinato em
tempos de regime militar (2011). O tema ou o argumento deste texto é apresentado logo no início do
artigo, reproduzindo primeiramente as informações que haviam sido publicadas no jornal Estado de
São Paulo em 09 de novembro de 1972. A reportagem tinha como chamada, em letras com destaque,
Mortes num engenho em Pernambuco, e, além das informações sobre um ataque a trabalhadores
rurais do engenho Matapiruma na cidade de Escada (PE), a matéria era acompanhada de duas
fotografias dos parentes das vítimas. Narrava basicamente que um grupo de trabalhadores rurais de
um engenho de açúcar entrara na Justiça do Trabalho contra o arrendatário do Engenho Matapiruma
de Baixo. Este, ao perder o processo trabalhista e ser obrigado a pagar aos trabalhadores, passara a
ameaçá-los de morte, especialmente três irmãos, Luis Inocêncio Barreto, José Inocêncio Barreto e
João Inocêncio Barreto. No dia 05 de outubro de 1972, estes irmãos e mais um grupo de
trabalhadores que limpavam uma área do canavial, daquele engenho, foram abordados pelo vigia e
por policiais da delegacia de segurança pública de Pernambuco. Os três irmãos ao saírem do canavial
atendendo a um chamado do vigia, e caminharem em direção aos veículos onde este se encontrava
com um grupo de policiais, foram recebidos a bala, que resultou na morte de um dos três irmãos,
José Inocêncio Barreto. O segundo irmão, João Inocêncio Barreto recebeu oito tiros e foi internado
em um hospital público, mas sobreviveu, e o terceiro irmão Luis Inocêncio Barreto, foi ferido na
mão e escapou correndo por dentro do canavial. Apesar da forte desvantagem numérica e de
armamento, os trabalhadores reagiram ao ataque com seus instrumentos de trabalho, foice e
peixeiras, deixando morto o vigia e ferindo os agentes policiais José Timóteo e Pedro Vieira,
segundo relatava a reportagem no jornal Estado de São Paulo.
Meu conhecimento e envolvimento com o tema dessa reportagem são do período deste ataque
policial e patronal aos trabalhadores em outubro de 1972. Talvez em outras épocas, em que se exigia
do historiador isenção ou distanciamento do objeto a ser pesquisado, não pudesse (ou não devesse)
realizar esse tipo de pesquisa que resultou no referido artigo. No entanto, pontuo essa dimensão para
trazer outra vez ao debate a questão de que a relação próxima ou o envolvimento com o objeto da
pesquisa não se constitui num estatuto a priori que defini a possibilidade ou não da produção do
conhecimento sobre um determinado tema ou acontecimento.1 Pelo contrário, será na própria
1
Desde a década de 1930 a Escola dos Annales já sistematizava sua crítica a uma concepção de neutralidade e
objetividade como garantia para o uso de procedimentos adequados a fim de se alcançar a verdade histórica dos
acontecimentos. No entanto, mesmo na atualidade essa problemática continua presente. Não é fortuito o historiador Tony
Judt em seu livro Pós-Guerra – uma história da Europa desde 1945, escrever que o tema do seu livro é muito amplo e que
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maneira como procedemos a análise dos eventos estudados que poderemos apontar se determinados
tipos de relação com o objeto de estudo contribui de forma positiva ou negativa para a produção do
conhecimento. Na linha dessa reflexão, torna-se importante destacar as análises de Beatriz Sarlo em
Tempo Passado – Cultura da Memória e Guinada Subjetiva, quando recupera algumas publicações
de autores que transformaram sua própria experiência de militância e prisões, durante as ditaduras da
década de 1960/1970, em teses e artigos. Nesse aspecto, é que Sarlo comenta o artigo La bemba, em
que o militante político Emilio Ipola narra suas memórias acerca dos dois anos em que esteve preso.
Para Sarlo, Ipola escreve da posição de quem analisa seus materiais, não de quem quer testemunhar
como vítima...(Sarlo, 2007, p. 71) E, ainda, acrescenta...A experiência se mede pela teoria que pode
explicá-la, a experiência não é rememorada, mas analisada...(Sarlo, 2007, p. 79) Um outro texto
que Sarlo ressalta é a tese Poder y desaparición: Los campos de concentración em Argentina,
publicada em 1998, de Pilar Calveiro, que ficou presa durante um ano e meio durante a ditadura
argentina. A reflexão de Sarlo segue na mesma perspectiva ao apontar que: Calveiro está se
referindo a fatos excepcionais; mas não exige que ninguém acredite neles só pela carga de
sofrimento humano que (lhe) produziram, e sim pelo dispositivo intelectual que os incorpora a seu
texto.( Sarlo, 2007, p. 83)
Na trilha dessas leituras e inspirando-me nelas, posso dizer que, em 1972, o caso Matapiruma
entrou de porta adentro no meu cotidiano. Meu pai era advogado da Federação dos Trabalhadores da
Agricultura de Pernambuco (FETAPE) e quando houve o assassinato de José Inocêncio Barreto, ele
avaliou que o órgão de classe não estava tomando a defesa do trabalhador como deveria e se demitiu.
Sua indignação em face do que dizia ser a atitude pouco corajosa e o correto papel de uma Federação
de Trabalhadores Rurais foi o tema de muitos almoços e jantares, naquele período, tempos em que
ainda se tinha o hábito da família se reunir todo dia no horário das refeições. Meu pai, com a
colaboração de outros advogados e de membros da Igreja Católica2 passaram a defender Luis
Inocêncio Barreto. O outro irmão João Inocêncio Barreto, que tinha levado oito tiros e encontrava-se
entre a vida e a morte num Hospital Público era visitado constantemente por esse grupo. Meu pai se
dizia impressionado e comovido pela coragem de João Inocêncio Barreto, pois assim que conseguiu
falar, reafirmou a disposição de continuar a lutar pelos seus direitos.
essa tarefa é agravada pela sua proximidade. E em seguida se indaga: Isso facilita ou dificulta o meu entendimento da
narrativa atinente a Europa no pós-guerra? Não sei. O que sei é que, por vezes, tal condição impede o distanciamento
desapaixonado do historiador. (Judt, 2008, p11)
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O Arcebispo de Olinda e Recife nesse período era Dom Hélder Câmara que desde que chegou a Recife em março de
1964, passou gradualmente a ter uma posição crítica aos militares e de apoio as lutas de resistência ao regime civilmilitar.
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Em 1998, passados vinte e seis anos daquele trágico acontecimento, eu desenvolvia um
projeto sobre a atuação de padres vindos de outros países para atuar no Nordeste, antes e depois de
1964, quando o tema Matapiruma atravessou uma entrevista que realizava. Na oportunidade,
Matapiruma veio por meio das lembranças do Padre francês Joseph Servat que, em certo trecho do
seu relato de história de vida, recorda:
Na época fui informado que a orientação dada era para matar o trabalhador que
conseguiu fugir, Luís Inocêncio Barreto, pois era a única testemunha de valor
para o crime. Já o ferido (João Inocêncio, irmão de Luís) que estava em estado
grave e isolado pela polícia no hospital, não era grande ameaça. Partindo deste
fato, nasceu uma grande solidariedade em favor destes pobres camponeses.
Advogados, professores, paróquias, conventos, bispos, padres e principalmente
a ACR (Ação Católica Rural) fizeram tudo para salvar os trabalhadores e exigir
justiça. Os doutores Adalberto Guerra, Marcus Cunha e Antonio de Paula
Montenegro deram tempo e longas caminhadas sem nada exigir. Os conventos
da Madalena e de São Bento, tal como a paróquia do Morro da Conceição,
ajudaram a salvar Luís Inocêncio. Assumi a responsabilidade com o acordo e
com o apoio das equipes da ACR e cinco sindicatos, apesar da prudência da
Federação.3 Foi uma obra admirável onde o Deus dos pobres tornava-se
presente, quase visível. Transportávamos Luís Inocêncio com o Fusca da ACR
de um lugar para outro, pois era necessário salvar o companheiro e ganhar
tempo para que a justiça fosse feita ao trabalhador rural. Através do cardeal
Dom Eugênio Sales, o processo foi levado até Brasília e, após meses de
angústia e intensa solidariedade, Luís e seus companheiros foram declarados
não comunistas e anistiados.4
3
A historiadora Socorro Abreu em seu artigo O sindicalismo rural em PE e o golpe de 1964 aponta algumas
pistas para o que o Padre Servat cautelosamente chama de “a prudência da FETAPE”. Segundo ela “Durante os
anos 70 a entidade teve uma ação bastante moderada e mesmo subserviente em relação ao patronato, aos
militares e à Delegacia Regional do Trabalho”. In: ABREU, Socorro. O sindicalismo rural em PE e o golpe de
1964. Brasília: Desenvolvimento Rural, v. 1, n. x, p. 17, 2005.
4
Entrevista com Padre Servat para o Projeto Guerreiros do Além Mar em 1997, apoiado pelo CNPq. Arquivo do
LAHOI.
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Padre Servat mantinha esporádicos contatos com Luis Inocêncio Barreto, e me ajudou a
localizá-lo e entrevistá-lo em dois encontros em sua residência na cidade do Cabo de Santo
Agostinho, Pernambuco, ainda em 1998. Aquela entrevista de história de vida me marcou por
dois aspectos. Primeiro, o mundo da violência, principalmente contra os trabalhadores rurais,
que ele narrava sem que eu realizasse qualquer pergunta sobre esta temática. Relembrava
nomes de trabalhadores assassinados a tiro, a facada, e eventualmente alguma vingança contra
algum administrador ou patrão, como se estes acontecimentos estivessem integrados a
paisagem do mundo rural. Seu narrar não sofria modulações ao contar essas mortes. O
segundo aspecto que atraiu minha atenção está relacionado a disputa trabalhista que junto com
seus irmãos e um grupo de trabalhadores do Engenho Matapiruma iniciou contra o
arrendatário José Metódio. Luis dizia que ele e o advogado do sindicato realizaram inúmeras
viagens a Recife, para denunciar e solicitar proteção as autoridades policiais, militares e à
delegacia regional do trabalho em face das ameaças que estava sendo alvo. Isto porque desde
que a Justiça do Trabalho condenou o arrendatário a pagar os direitos trabalhistas
reivindicados por esse trabalhadores, este passou a ameaçar principalmente os três irmãos
José, João e Luis. E o ápice da tensão entre o arrendatário e aquele grupo de trabalhadores se
materializou quando a justiça do trabalho penhorou alguns bens por não cumprimento da
sentença condenatória.
Ao ouvi-lo rememorar com muitos detalhes a disputa trabalhista, a ênfase e um certo
orgulho como narrava sua visitas as autoridades principalmente policiais e do IV exército, me
soavam-me no mínimo algo estranho. Na minha leitura do presente, formada por meio da
significativa historiografia sobre o período do regime civil militar de 1964, julgava
inteiramente improdutiva e até ingênua aquela estratégia. Qual a força de um trabalhador e
um advogado de sindicato, para reverter um cenário de violência e desrespeito as normas
legais, quando as autoridades a quem se dirigiam para efetivar a denúncia compactuavam com
a quebra da ordem legal? Na minha avaliação, aquele tratamento estritamente jurídico, de
denunciar os abusos e violências cometidas, estava condenado ao fracasso. No entanto, dois
fatores que apresentarei ao longo deste texto concorreram para deslocarem esta minha análise.
Após a entrevista de história de vida de Luis Inocêncio Barreto, tinha em mãos uma
história exemplar, que poderia explorar comentando alguns aspectos ou temas. No entanto,
não visualizava naquele momento, como narrar essa história, alongar os fios, analisar aquele
relato além da parte visível do iceberg.
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Passaram-se, então, doze anos, quando no segundo semestre de 2010 recebi um
convite do Nucleo de Estudos Agrários (NEAD) do Ministério do Desenvolvimento Agrário
para participar de um livro que trataria sobre tortura e assassinatos de trabalhadores rurais.
Imediatamente, informei que aceitava participar do projeto, mas se fosse apenas para
trabalhar o caso de Matapiruma. No entanto, cheguei a torcer para que não aceitassem, pois
como poderia escrever um artigo apenas com a entrevista de um trabalhador e trechos da
entrevista de um padre? No entanto, os coordenadores do projeto do livro aceitaram minha
proposta e me vi diante da terrível angústia e do desafio de ir à busca de outras fontes que
fornecessem uma base documental àquela história que desejava narrar. Inicialmente, solicitei
a meus bolsistas de Pibic uma ajuda, para tentar localizar nos jornais de Pernambuco, nos
meses de outubro, novembro e dezembro de 1972, alguma reportagem ou notícia sobre aquele
assassinato. Porém eles nada encontraram. Afinal aquele era um dos períodos mais intensos
da censura a imprensa5. Encaminhei-os então ao Arquivo Público, para que pesquisassem nos
prontuários do DOPS a palavra Matapiruma ou mesmo pelo nome de Luis Inocêncio Barreto.
E qual não foi minha surpresa e alegria em certa manhã uma das bolsistas6 me entregou um
CD com mais de cem documentos digitalizados sobre o caso Matapiruma7.
Iniciou-se, então, uma nova etapa de desafios metodológicos e narrativos. A primeira
leitura dos documentos encontrados me causou perplexidade, pois se apresentavam como um
verdadeiro labirinto, ou mais propriamente um quebra-cabeça a ser remontado. A numeração
que estabelecia uma seqüência nessa documentação não tinha correspondência com a ordem
temporal com a qual os mesmos estavam datados, ou mesmo, em relação ao conteúdo. Dessa
forma, foi necessário ler cada documento, escrever breves notas sobre cada um e depois então
ir relacionando-os, organizando-os por assuntos e datas.
5
Aquino, M. A. de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da
dominação e da resistência – O Estado de São Paulo e o Movimento. Bauru: Editora da Universidade do
Sagrado Coração, 1999, p. 38. Ver também. Smith, A-M. Um acordo forçado: O consentimento da
imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 102.
6
A bolsista de Pibic na época, Giuliana da Matta (atualmente realiza seu mestrado em história) após uma
intensa procura localizou no Arquivo Público de Pernambuco dois Prontuários (Fundo SSP Nº 1357,
29541) que continham uma vasta documentação sobre o conflito no Engenho Matapiruma.
7
Nesse momento o NEAD modifica seus planos e decidi produzir o livro sobre assassinatos no campo
não mais com a colaboração de diversos autores. Solicita então ao Prof. Moacir Palmeira (Museu
Nacional/UFRJ) supervisionar a pesquisa sobre esse tema e este indica as pesquisadoras Ana Carneiro e
Marta Cioccari para recolherem a documentação em vários estados do Brasil e realizarem entrevistas e
escreverem o texto que resultou no importante livro: Retrato da Repressão Política no Campo – Brasil
1962 – 1985 – Camponeses Torturados, Mortos e Desaparecidos. Repassei as pesquisadoras todo o
material que tinha em mãos sobre o caso Matapiruma e também escrevi o artigo já citado Ação
trabalhista, repressão policial e assassinato em tempos de regime militar.
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Lá estavam as cópias, os documentos que Luis Inocêncio disse em sua entrevista ter
levado às autoridades policiais e militares, e ao próprio delegado regional do trabalho e que
eu julgara muito estranho. Eram vários, em datas distintas e com conteúdos que apresentavam
pequenos acréscimos ou mesmo alterações quando comparados entre si, o que revelava a
evolução da luta trabalhista e sindical. No entanto, após cuidadosas leituras dessa
documentação descobria que ela continha muitas outras informações, que propiciava outro
entendimento da entrevista de Luis Inocêncio. Foram escritos em diferentes momentos da luta
trabalhista e traziam as denúncias dos trabalhadores contra as muitas arbitrariedades do
arrendatário do engenho a que tanto meu entrevistado se referia.
Este foi o primeiro deslocamento analítico, pois a entrevista na medida em que era
relacionada a essa documentação permitia compreender como um trabalhador e um advogado,
ao se dirigirem àquelas autoridades, informando e denunciando a quebra da ordem legal e
trabalhista, concorriam para pelo menos, minimizar os efeitos da representação da
impunidade patronal. Ao mesmo tempo, estes, ao adentrarem o edifício das instituições
policiais, militares e da delegacia do trabalho para encontros com essas autoridades, poderiam
pelo menos momentaneamente desfazer a aura de medo, intimidação e terror que se
constituíam num dos pilares mantenedores do regime que se instalara.
O segundo deslocamento foi e continua sendo construído a medida em que li os
documentos, recuperando alguns livros de Michel Foucault, como As Palavras e as Coisas,
Arqueologia do Saber e a Ordem do Discurso. Em todos esses textos, uma das dimensões que
me marcavam era a perspectiva de ruptura com o objetivismo, com a concepção de que os
significados advêm do mundo ou da realidade exterior a nós. Longa caminhada até conseguir
pensar historicamente que são os discursos produzidos por pessoas, instituições, meios de
comunicação e toda uma complexa e ampla rede que agenciam e produzem os significados,
os sentidos, a forma e o conteúdo do mundo, daquilo que se denomina realidade. São esses
discursos autorizados que constroem, produzem o mundo como evidência, nomeando-o de
claro e objetivo. No entanto, foi outro trabalho de Foucault – Isto não é um cachimbo – que
de forma mais radical me fizeram entender como as palavras, a linguagem, o discurso ou
mesmo o que se diz não tem relação efetiva ou de pertencimento com as coisas, os objetos, as
práticas. O detalhado estudo realizado por Foucault do quadro de René Magritte se tornou
para mim numa referência importante para desnaturalizar a relação da linguagem com o
mundo, com suas práticas e objetos. Todas essas leituras me ajudaram e entender como e
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porque o regime militar necessitava da censura, da violência, do controle do judiciário e de
outras instituições para que todas as leis e práticas autoritárias pudessem se construir como
verdade. O discurso oficial do regime operava por meio de suportes institucionais para que o
que dizia e fazia pudessem ser considerados como verdades evidentes. Não se permitia a
divergência, o debate, a discordância; esse era um dos traços constitutivos e exemplares
do regime autoritário no Brasil.
Por outro lado, o estudo da documentação arquivada no prontuário pesquisado,
permitia analisar os efeitos que as denúncias encaminhadas por Luis Inocêncio Barreto, com
apoio do advogado do sindicato, produziam. Estas ao serem recepcionadas pelos órgãos civis
e militares geravam ofícios, comunicados internos e ações de averiguação que transformavam
e resignificavam aquela disputa trabalhista. Para os órgãos militares e policiais o senhor José
Metódio era um patrão exemplar, que estava sendo vítima da ação de trabalhadores formados
nas antigas Ligas Camponesas (Montenegro, 2010).
No artigo que venho comentando, uma série documental adquire uma grande
centralidade na narrativa então escrita. Poder-se-ia afirmar que esta série inicia com o
documento-denúncia dos trabalhadores aos militares do IV Exército , em que relatam que dois
homens vestidos à paisana se apresentaram no engenho identificando-se como pertencendo
àquela arma. Acompanhados então do vigia do engenho, de posse de uma lista com o nome
de determinados trabalhadores, dirigem-se a casa dos mesmos e confiscam seus revólveres,
chegando mesmo a espancar um deles que se negara a entregar. No mesmo documento, havia
ainda outra denúncia contra o delegado de polícia da cidade de Escada, que era acusado pelos
trabalhadores de acobertar todas as arbitrariedades cometidas pelo vigia do referido engenho e
mesmo por seu arrendatário. No entanto, este documento não estava isolado, pois, lendo e
relendo inúmeras vezes aquele prontuário, fui remontando o quebra-cabeça. Pude então
encontrar uma verdadeira rede de informações interna na qual o documento inicial de
denúncia dos trabalhadores se conectava aos documentos gerados pelo próprio IV Exército.
Estabelecia, assim, o fio que ligava o documento dos trabalhadores a outros produzidos pelas
autoridades militares. Estes revelavam como foi recepcionado o documento denúncia dos
trabalhadores e quais ações de busca e averiguações foram realizadas, além de indagar sobre
o discurso que os militares produziram e enviaram a outros órgãos de informação em
Pernambuco e em Brasília acerca daquele embate trabalhista (Montenegro, 2011).
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No entanto, a leitura de cada documento dessa coleção surpreendia pelas
arbitrariedades com as quais era jogada a vida dos trabalhadores. E também me defrontava
com a difícil aprendizagem das práticas sindicais, trabalhistas e políticas, próprias naquele
período. E por fim, destacaria a descoberta da amplitude dos meandros internos a rede policial
e militar.
No meio dos documentos aparecia uma delação de um trabalhador, morador do engenho
Matapiruma contra Luís Inocêncio Barreto, informando ao delegado de polícia da cidade de
Escada que este fazia reuniões à noite em sua casa de portas fechadas com outros
trabalhadores. Este depoimento, registrado como tendo ocorrido em junho de 1972, e
imediatamente enviado a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco, possibilitava
alongar os fios de um novelo de muitos cruzamentos.8
Após a construção/organização dessa cartografia, fui percebendo que aquela
documentação possibilitava-me visualizar a rede de comunicação e procedimentos da polícia
militar e federal, do IV exército e da delegacia regional do trabalho, ao serem instadas a
responderem às demandas trabalhistas daqueles trabalhadores rurais. Eram por meio dos mais
diversos tipos de documentos que os discursos e as práticas passavam a ser construídos e,
sobretudo, acionados para transformar um processo trabalhista em subversão da ordem. Ao
mesmo tempo, esse movimento de resignificação não poderia prescindir da censura, da
intimidação, do seqüestro e de outras práticas autoritárias, como os documentos denúncias
dos próprios trabalhadores arquivados no mesmo prontuário, registravam.
Longe se vai o tempo em que me debruçava diante de uma série documental e me via
prisioneiro da ordem cronológica com a qual ele se apresentava. Mas, outros deslocamentos
metodológicos foram sendo operados e continuam objeto de reflexão e aprendizagem como
assinalamos.
Foi em torno dessa problemática dos mecanismos de produção discursiva e práticas
arbitrárias que um regime autoritário opera, associando-se a diferentes instâncias e órgãos
civis e militares do estado, recorrendo a violência e a censura para garantir a efetivação de
muitos dos seus atos, que nossa análise do caso Matapiruma, alicerçada nas entrevistas de
José Inocêncio Barreto, do Padre Servat e nesse prontuário do DOPS, desenvolveu-se.
8
Prontuário Município de Escada. Engenho Matapiruna de Baixo. Fundo 29541. Pág. 86.
15
Considerações Finais.
Ao recorrermos a memória como fonte documental, considerando inclusive os seus mais
diversos suportes materiais, devemos estar atentos as suas múltiplas dimensões cognitivas.
Nesse aspecto, não se deve esquecer que a memória oral é uma reconstrução do presente, em
que o narrador relembra algo vivido. No entanto, aquilo que ele diz ter vivido,
necessariamente, não significa que, o que se passou ocorreu da forma narrada. Dessa
perspectiva metodológica, gostaria ainda nesse artigo de retornar a um trecho da memória de
Luis Inocêncio Barreto em que ele relata um diálogo com o juiz da cidade de Escada/PE, em
que o mesmo desejaria qualificá-lo de comunista.
(...) Não me lembro a data, ele com raiva, mandou eu tirá os meus animal, e eu não
plantava mais. O vigia vivia olhando, nem eu plantava e nem criava. Doutor Humberto era
o juiz, aí mandou me chamar. Ele me denunciou lá ao juiz, e o juiz mandou me chamar.
Disse para eu tirar os animal. Eu disse: “Tá certo doutor, eu tiro, com sua ordem, agora o
senhor me dê por escrito. Por que eu vou tirar? Qual é o mais certo, é eu tirar, ou eu deixar
meus animal? Eu sou nascido e criado, estou com trinta e sete anos dentro do engenho. Eu
vou botar esses animal aonde?” Ele disse: “Você leva os animal e bote dentro da solta de
doutor Zé Maria”. Eu disse: “Tá certo, me dê uma carta, me dê por escrito que eu vou.”
Ele disse: “Não, eu não estou mandando!” Eu disse: “Nem tudo o que se manda fazer
doutor, a gente não faz não, verbal não!” Aí o oficial de justiça, Amaro Nogueira, que
tinha trabalhado comigo no engenho Três Braças e Caçoá disse: “Mas ele não tá
mandando?!”. Eu digo: “É você serve de testemunha contra ele, você vai testemunhar
contra mim ou contra ele?” “Não posso ser testemunha.” Eu disse: “Então não se meta
nisso! Me dê por escrito doutor Humberto a carta que eu vou, lá e entrego a doutor Zé
Maria.” Ele disse: “Não, mas você pode chegar lá e soltar.” Eu disse: “Não.” “Mas você
tem que tirar os animal de lá!” Eu digo:“Matar eu não vou eu não vou matar um cavalo,
nem um burro. Não posso soltar dentro da fazenda dos outros.” Eu disse a ele: “Doutor o
senhor quer que eu seja, o que o senhor tá pensando, mas eu não sou! Eu sou o que eu sou,
não é o que o senhor pensa!” Ele disse: “Você quer dizer com isso o quê?” Eu disse: “Eu
quero dizer com isso o seguinte: que o senhor quer, que eu prove, que eu seja comunista e
eu não sou. O senhor não quer ser comunista e como quer que eu seja? O senhor não quer
me dar uma carta de garantia por escrito, e como eu vou soltar os animal dentro das
fazenda dos outros. Quer dizer que aí eu vou provar que sou comunista! Eu sou nascido e
criado doutor, lá no engenho. Agora o senhor me dê por escrito. Ele disse: “Mas você não
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tem outro lugar pra botar?” Eu digo: “Não senhor, eu não tenho fazenda, eu não tenho
sítio.“Agora se o senhor me der por escrito eu vou.” Ele disse: “Não, por escrito eu não
dou!” Eu digo: “Então, também não vou!” Disse : “Então, continue lá dentro com os seus
animais!”.9
Ao lermos esse trecho da entrevista, é possível perceber como Luis Inocêncio
reconstrói um significativo sentimento de medo do perigo de ser nomeado ou
considerado comunista. Essa dimensão da reconstrução mnemônica da experiência
vivida poder-se-ia considerar como uma das potencialidades dos relatos orais de
memória, sobretudo, quando estes contemplam situações e acontecimentos que emitem
signos associados a fortes sentimentos.
Nesse aspecto, ao encontrar na coleção do DOPS um documento10 com o
depoimento de um vizinho de Luis Inocêncio Barreto ao delegado de polícia de Escada
– como já comentado anteriormente –, de que este realizava reuniões a portas fechadas,
com a participação de outros trabalhadores, pode-se entender como há nesse período
uma série de signos possíveis de serem lidos como comunismo e, portanto, passíveis de
prisão, interrogatórios, torturas e até assassinatos. O delator, ao final do depoimento ao
delegado, solicitava que não fosse divulgado o teor daquela denúncia, pois correria risco
de vida. Este pedido permite avaliar como este trabalhador tinha plena consciência da
gravidade do seu ato, e como a própria vida de Luis Inocêncio Barreto corria perigo.
Por outro lado, o diálogo que Luis Inocêncio narra com o juiz, nunca saberemos
se realmente ocorreu. Porém, podemos analisá-lo historicamente e cruzá-lo com outras
fontes documentais e, mesmo com outros relatos orais ou escritos. Isto nos obriga a
estabelecer múltiplas ligações com as práticas políticas e culturais imperantes naquele
momento histórico específico. Assim nos desvencilhamos da concepção do documento
como prova do real, e apontamos muito mais para a possibilidade de operar com os
documentos como índices ou sinais que nos possibilitam construir ou reconstruir
significativas experiências historiográficas.
9
Idem, pág. 44.
Prontuário Município de Escada. Engenho Matapiruna de Baixo. Fundo 29541. Pág. 86.
10
17
Este texto se encontra publicado como capítulo do livro Depois da
Utopia: história oral em seu tempo. Ricardo Santhiago & Valéria
Magalhães (Orgs.). São Paulo: Letra e Voz/Fapesp, 2013. Pags. 55 à 70.
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