o sarrafo - Companhia do Latão
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o sarrafo - Companhia do Latão
O SARRAFO 8 dezembro 2005 Um jornal pau-pra-toda-obra o número da retomada AOS TRABALHADORES DO TEATRO O S A R R A FO Editorial 2 Este número do SARRAFO dá continuidade ao projeto original e amplia seu alcance. Seu desejo coletivo é construir uma esfera pública de debate sobre as relações entre arte e sociedade. Se não formos capazes de produzir e organizar o pensamento crítico sobre o teatro que fazemos – e sobre o significado cultural e político da nossa simples existência – corremos o sério risco de sermos varridos da cena e de não garantir nem mesmo a memória de nossa passagem por ela. Todos vivemos na carne os efeitos destrutivos do processo devastador de privatização da esfera pública e da mercantilização absoluta de todas as práticas culturais. O mercado não apenas inviabiliza a nossa atividade cultural, ele inviabiliza a nossa própria vida. Para enfrentá-lo, precisamos organizar com conseqüência a oposição ao processo de desumanização em curso. Este jornal quer ser um instrumento de produção de pensamento crítico, tanto na estética quanto na política. Esta edição de retomada amplia o número dos grupos responsáveis por sua produção. Tentaremos incorporar de modo produtivo até mesmo a contribuição dos leitores. Queremos que militantes teatrais de todos os lados se envolvam nesse projeto que, concebido originalmente pelos grupos Ágora, Folias, Teatro da Vertigem, Companhia do Latão, Parlapatões e Fraternal, se abre agora para a comunidade teatral brasileira, assumindo feições e sentido novos. As lutas pela causa do teatro e da cultura são inúmeras e podem assumir as mais diversas formas. O SARRAFO está disposto a defender todas aquelas que apontem para a real democratização da produção cultural no Brasil. Número 8 • Dezembro 2005 Nossos endereços ÁGORA – CDT CENTRO PARA DESENVOLVIMENTO TEATRAL [email protected] • www.agoranarede.com.br ARLEQUINS [email protected] • www.arlequins.ato.br CANHOTO LABORATÓRIO DE ARTES DA REPRESENTAÇÃO [email protected] COMPANHIA CÊNICA FARÂNDOLA TROUPE [email protected] • www.farandola.com.br COMPANHIA DO FEIJÃO [email protected] • www.companhiadofeijao.com.br COMPANHIA DO LATÃO [email protected] • www.companhiadolatao.com.br COMPANHIA OCAMORANA DE PESQUISAS TEATRAIS [email protected] • www.ocamorana.com.br COMPANHIA SÃO JORGE DE VARIEDADES [email protected] • www.ciasaojorge.hpg.com.br DOLORES BOCA ABERTA MECATRÔNICA DE ARTES [email protected] • www.doloresbocaaberta.zip.net ENGENHO [email protected] • www.engenhoteatral.com.br FOLIAS [email protected] FRATERNAL COMPANHIA DE ARTES E MALAS-ARTES [email protected] • www.fraternal-cia.com GRUPO XIX DE TEATRO [email protected] • www.grupoxixdeteatro.ato.br NÚCLEO BARTOLOMEU DE DEPOIMENTOS www.nucleobartolomeu.com.br um jornal pau-pra-toda-obra Publicação independente produzida pelos grupos Ágora, Arlequins, Canhoto Laboratório de Artes da Representação, Companhia Cênica Farândola Troupe, Companhia do Feijão, Companhia do Latão, Companhia Ocamorana de Pesquisas Teatrais, Companhia São Jorge de Variedades, Dolores Boca Aberta Mecatrônica de Artes, Engenho, Folias, Fraternal Companhia de Artes e Malas-Artes, Grupo XIX de Teatro, Parlapatões, Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, Tablado de Arruar, Teatro de Narradores Editores: Sérgio de Carvalho e Daniele Ricieri (Mtb. 41.944) Coletivo Editorial: Iná Camargo Costa, José Fernando, Luís Carlos Moreira e Reinaldo Maia Coletivo de produção: Antonio Tadachi, Mariana Senne, Neto de Oliveira e Renata Zanetha PARLAPATÕES [email protected] • www.parlapatoes.com.br TABLADO DE ARRUAR [email protected] • www.tabladodearruar.com.br TEATRO DE NARRADORES [email protected] Ilustrações: Júlio Dojcsar Versão para internet: Márcio Boaro Colaboraram nesta edição: Ana Cristina Petta, Cecília Garcia, Celso Frateschi, Fernando Kinas, Marco Antônio Rogrigues, Matthias Pees, Ney Piacentini, Paulo Arantes e Paulo Flores Agradecimento: Beth Rabbeti, Carminha Gongora, Chico de Oliveira, Evelaine Martines, Márcio Aurélio, Rafael Villas Bôas, Sebastião Salgado, Tadeu de Souza, Thomas Miguez, Wagner Nabuco, Goethe Institut e MST Foto da capa: Sebastião Salgado em Terra, São Paulo, Companhia das Letras, 1997 (as fotos do MST foram gentilmente cedidas pelo Movimento) Diagramação: Pedro Penafiel Gráfica: Gazeta Mercantil Tamboré Tiragem: 10.000 exemplares Apoio cultural: Editora Casa Amarela e Pizza Filosófica Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores. Correspondência Para entrar em contato com O SARRAFO escreva para o email [email protected] Versão on-line do jornal pelo site www.jornalsarrafo.com.br Dezembro 2005 • Número 8 O S A R R A FO 3 Vamos encarar a politização? INÁ CAMARGO COSTA “O preço da liberdade é a eterna vigilância”. Com esta frase lapidar, os liberais brasileiros forjaram no século passado um ótimo álibi para apoiar a ditadura militar de 1964 a 1980. A jogada foi extremamente eficiente pois, além de assegurar com a força das armas a sua liberdade à custa da liberdade dos que pensavam diferente, essa gente conseguiu adestrar o conjunto da sociedade para viver segundo as suas deliberações sem risco de questionamentos radicais. Esquematizando a operação, digamos que primeiro eliminaram os divergentes, depois forçaram e cultivaram a mais radical despolitização e, finalmente, obtiveram o mais duradouro resultado: uma geração inteira despolitizada, que não tem a menor noção do que está em jogo na vida política (nem se interessa por ela) e, por isso mesmo, acredita piamente que política é votar em eleições ou que decisões como as tomadas pelo Ministro da Fazenda de plantão ou pelo Banco Central não são políticas. Para completar o quadro, desde a queda do muro de Berlim, seguida pelo fim do lado oriental da “cortina de ferro”, a maioria dos partidos ditos de esquerda jogou fora as suas bandeiras e lançou-se alegremente nas fileiras dos adoradores do Deus Mercado, abraçando a nova religião universal. Como demonstrou um dos mais profundos estudiosos das entranhas desse deus, cujo nome verdadeiro é modo de produção capitalista, seu móvel é a taxa de lucro e sua única finalidade é a valorização do capital. Como periodicamente aquela taxa cai, esta queda retarda a formação de novos capitais autônomos, promovendo, inevitavelmente, superprodução, especulação, crises, capital supérfluo e, para o que nos interessa diretamente, POPULAÇÃO SUPÉRFLUA. Na condição de parte da população supérflua, inúmeros grupos de teatro vêm se organizando em todo o Brasil desde os anos 90 do século passado. E como os demais supérfluos, sobrevivem, em total liberdade (sobretudo a de passar fome), à margem da esfera pública – esta inteiramente privatizada e entregue a todos os exploradores da nova religião: igrejas propriamente ditas, jornais, rádio, televisão, cinema e demais espaços, ditos convencionais, de circulação de espetáculos-mercadoria, popularmente conhecidos como teatros. Parodiando a frase dos nossos antigos liberais, não é excessivo dizer que o preço da nossa liberdade é a completa irrelevância. Como já somos supérfluos do ponto de vista econômico, não constituímos ameaça real aos negócios do ramo do espetáculo e, como estamos à margem da esfera pública privatizada, o Estado também não precisa se preocupar conosco. Isto posto, e considerando que entretanto continuar fazendo o que fazemos é para nós questão de vida ou morte, como reverter este quadro? A chave da porta é evidentemente a política, entendida não mais como fatalística submissão às regras do jogo e sim como amplo processo de questionamento não só do próprio jogo e suas regras, mas sobretudo da sociedade que os forjou e para a qual aparece como fatalidade a existência de uma população supérflua. No caso dos que fazemos teatro, esta idéia obriga a enfrentar uma ampla pauta de estudos, mas uma parte importante da nossa experiência e da história de nossos antecessores pode servir de horizonte para a nossa luta pelo direito à existência. Nossa experiência de grupo já ensinou a necessidade de combater os valores subjetivos que asseguram a existência da sociedade que fez de nós seres supérfluos. É o caso, por exemplo, do individualismo, da irresponsabilidade, do descompromisso com o coletivo, ou falta de solidariedade e do autoritarismo. Estes valores, todos a serviço da concorrência que é parte do funcionamento da sociedade capitalista, são uma permanente ameaça à sobrevivência de um grupo teatral. A eles, o trabalho coletivo opõe entre outros altruísmos, generosidade, responsabilidade, solidariedade e relações democráticas. Mas se a duras penas temos conseguido cultivá-los entre nós e em meio ao público que nos acompanha e apóia, sem conquistar a esfera pública propriamente dita, o sentido profundo das nossas experiências, que é político, corre o risco de se perder. Para dar o passo que falta, a história das lutas sociais do século vinte, envolvendo também artistas de teatro, apresenta alguns episódios capazes de no mínimo mobilizar a nossa imaginação. O primeiro ilustra o modo como o show business está sempre de olho em talentos individuais onde quer que estes se manifestem. Contam os livros de história do anarco-sindicalismo americano que uma jovem adolescente participava de um ato público em Nova Iorque e chamou a atenção de um produtor da Broadway. Seu desempenho oratório era tão brilhante que, ao final, ele tratou de convidá-la para integrar o elenco de sua próxima produção. A militante da IWW (Industrial Workers of the World ), organização que ainda existe, recusou a proposta e um salário milionário, respondendo sem pestanejar: “Eu só falo o meu próprio texto” ou, em inglês, I speak my own lines. Não se deve esperar de um ator a mesma capacidade de resistência ao canto de sereia do mercado sintetizada no gesto daquela militante anarquista, mas um ator com experiência em teatro de grupo, inspirado nele, pode negociar melhor os termos em que venderá sua força de trabalho se não se esquecer de que provém de um coletivo a parte decisiva de seu talento. Outro caso, que delineia um horizonte muito próximo do nosso, verificou-se em fins do século XIX e começo do XX. Quem conhece a história do Teatro Livre sabe que sua marca registrada foi a arregimentação de trabalhadores que gostavam de teatro a ponto de também querer fazê-lo, a começar por André Antoine, um empregado da companhia de gás parisiense. Mas estes trabalhadores queriam encenar textos que tratava de assuntos censurados ou sem interesse para o mercado teatral. A versão alemã desta experiência em pouco tempo viu-se diante do desafio de politizar-se porque seus espetáculos atropelavam os critérios da censura, que reagiu com violência, e só os trabalhadores já organizados em partidos e sindicatos apoiaram a sua luta. O resultado desta aproximação entre teatro e trabalhadores organizados é a Volksbühne, que até hoje resiste e produz espetáculos que dão o que pensar, como vimos recentemente em São Paulo e outras capitais brasileiras. Um dos cartazes do espetáculo Isto não pode acontecer aqui, que estreou no mesmo dia em 18 cidades Um terceiro caso, um pouco mais complexo, deu-se nos Estados Unidos durante o governo Roosevelt. Como a crise de 1929 produziu uma verdadeira legião de artistas supérfluos, foi criado um programa federal de apoio às artes que os empregou aos milhares. Chamada Federal Theatre, a parte que nos interessa deste programa promoveu a mais ampla experiência teatral da história daquele país. Para ficar em apenas um exemplo: o espetáculo Isto não pode acontecer aqui (It can’t happen here) estreou no mesmo dia em 18 cidades, em 22 produções diferentes, quatro das quais em Nova Iorque e duas em Los Angeles. Isto aconteceu no dia 27 de outubro de 1936. Duas semanas depois estreou uma 23ª produção e nove delas ainda circularam pelo país uma vez encerrada a temporada de estréia. Ao final do processo, o espetáculo tinha sido visto por cerca de 500 mil pessoas. Este episódio único só se explica pelo alto grau de politização dos envolvidos no processo. Por muito suspeito que possa soar, não dá para resistir à tentação de dizer que o teatro tende a inspirar políticas democráticas radicais e que a mobilização política inspira práticas teatrais muito mais democráticas do que se pode imaginar. O caminho é a luta. 4 O S A R R A FO SARRAFO PERGUNTA COMO ORGANIZAR A LUTA? Número 8 • Dezembro 2005 O S A R R A FO Dezembro 2005 • Número 8 5 Como democratizar as políticas culturais? Não somos vítimas do destino CELSO FRATESCHI “...erguendo uma tal divisória Entre vocês e o mundo, apenas se lançam Fora do mundo. Negassem ser ele Um artista, poderia ele negar Que fossem homens, e isso Seria uma censura maior. B. Brecht 1. Antes de tudo, rejeitar de forma radical o papel de CLIENTE que historicamente somos forçados a representar e ao qual, por vezes, até nos afeiçoamos. 2. Construir de forma coletiva o papel de ARTISTA CIDADÃO DO SÉCULO XXI: uma personagem em aberto que nos responsabiliza na moldagem de seu caráter, na sua forma de agir, nas suas relações e na elaboração do seu pensamento. 3. Abdicar totalmente o trejeito da vítima do destino e assumir a responsabilidade da nossa condição em relação ao conjunto da sociedade. 4. Romper as divisórias que nos separam do mundo e entender nosso ofício como um trabalho dentro do mundo. Um trabalho tão necessário como todos os trabalhos de nossos semelhantes, exatamente porque o que fazemos “é algo universal, humano (...), para o homem tão bom quanto respirar e comer”. Não nos separemos de nossos semelhantes, pois se decidirem se separar de nós, nosso ofício perderá completamente o sentido. 5. Ao nos colocarmos dentro do mundo, recolocaremos a questão cultural na sua dimensão política e perceberemos que ela não deve se restringir ao âmbito das secretarias de cultura e sim impor a sua função estratégica na construção de nossa cidadania. Devemos entender e demonstrar que a política não é um fim em si, mas um instrumento para construirmos uma vida melhor no planeta. 6. Alinhar-se na construção da esfera pública rompendo o círculo estatal, atuando diretamente no legislativo e no executivo, criando e reforçando canais de participação direta dos cidadãos na elaboração de políticas e na sua implantação e controle. 7. Rejeitar o corporativismo estreito que limita nossa relação com o Estado apenas ao que diz respeito ao financiamento de nossas produções. 8. Construir propostas e soluções que efetivem a sustentabilidade de nossa atividade profissional e não apenas a realização de nosso próximo trabalho. 9. Compartilhar a construção de programas de aperfeiçoamento, de formação de público, de circulação, de reforço de um teatro vocacional, compartilhar a construção e manutenção de espaços cênicos e centros culturais nas mais diferentes regiões, de modo a apoiar e fomentar as mais diversas atividades culturais e realizar um trabalho conjunto com as outras áreas da atividade humana, principalmente com a área de educação. 10. Não esperar que as coisas aconteçam por reconhecimento da nossa condição. Nossa arte é um bisturi num mundo que se tornou espetáculo de mísseis transoceânicos . Nossa função nesse status quo é desnecessária. Tão desnecessária que pode se tornar inconveniente e é aí que reside a nossa importância e a nossa eficácia, pois podemos atingir cirurgicamente cada um, enquanto eles atingem indiscriminadamente. Nossa luta deve se organizar pelo aprendizado da essência de nossa atividade. Como dizia Heiner Müller, “formando ilhas de desordem nesse mar da ordem capitalista”, ao atuarmos como protagonistas e coadjuvantes no processo cultural, político e social. A dramaturgia deverá ser escrita na ação, num processo aberto e não necessariamente colaborativo, mas sem nenhuma dúvida, ao mesmo tempo individual e coletivo. Como construir programas públicos? Desnaturalizar a promiscuidade R EINALDO MAIA I maginemos o seguinte cenário. Uma empresa privada dirige-se a um membro do executivo e apresenta um projeto de investimento. Para realizá-lo impõe uma condição: receber durante 20 anos isenção de impostos, sejam eles municipais, estaduais ou federais. Em troca criará 100 empregos diretos. Não esqueçamos que a empresa privada ao se instalar já se beneficia com gastos públicos referentes a saneamento básico, iluminação pública etc. O desinformado ou o sujeito de má-fé dirão que o Poder Público não fez mais do que a obrigação em conceder a isenção dos impostos. Já o cidadão comum, a quem o ato simples da sobrevivência dá uma canseira danada, ficará com cara de otário vendo seus impostos contribuírem para engordar o capital do capitalista que veio para sua região aumentar seus lucros. O exemplo acima é importante para entendermos como opera o aparelho do estado, quando diz respeito a subsidiar o Capital: o Público serve para beneficiar o Privado; o esforço de muitos (de toda a sociedade) é direcionados para engordar poucos (os donos de empresas privadas). Isto é tão antigo que existe até uma canção popular que diz: “Uns com tantos e outros tantos sem nenhum...” E permanecemos calados, sem expressar nossa indignação com tamanha injustiça. Criouse em nosso inconsciente que o Poder Público serve somente para limitar os direitos e deveres do cidadão, quando o que está em jogo é o interesse dos “investido- res”. Vivemos em um verdadeiro “cortiço” político, onde, diariamente, os direitos elementares dos cidadãos são jogados na lata do lixo. Não é por outro motivo que, para enfrentar a miséria, não procuramos redistribuir a riqueza, mas criar os “fomes zero” que têm como maiores doadores e contribuintes os próprios miseráveis. Não é por outro motivo que o “pedreiro Waldemar constrói tantos edifícios e não tem onde morar”. Essa lógica é válida, também, quando se trata de negócios culturais. A área cultural ainda conta com uma facilidade que é a de não ser uma questão de Estado. O direito à cultura é entendido como o direito dos que “já tudo têm”: o cidadão comum é visto apenas como um consumidor, isto é, o seu direito ao bem simbólico resume-se àquilo que ele pode adquirir com seus recursos econômicos. A questão cultural é mais um grande negócio a aumentar e subsidiar o crescimento do capital privado. Não é por outro motivo que foram criadas as Leis de Incentivo à Cultura que não são nada mais do que a forma legal de se realizar a concentração de renda e de “bem simbólicos” para aqueles que já os tem em demasia. Não é por outro motivo que os investidores, os mercadores da cultura de plantão, ficam enraivecidos quando se aprova uma Lei como a do Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo. E o seu maior inimigo tem sido o Secretário de Finanças do Executivo (que é no interesse do governo, o fiscalizador dos interesses privados). Um exemplo concreto da promiscuidade entre interesses públicos e privados: uma notícia tirada de “O Estado de São Paulo” de 07 de outubro de 2005 afirma que “cidades do interior que não tem cinema vão receber uma sala itinerante, onde serão exibidos filmes e duas peças de teatro. O programa Estradafora em Todos os Cantos, parceria entre a Secretaria Estadual da Cultura e a ONG Teatro de Tábuas”. Custo do projeto R$ 1,8 milhões, para levar o projeto a 88 cidades. Agindo como um homem de teatro, questionarei. A escolha da ONG foi feita com licitação pública? As cidades sem salas não tinham outras dependências para serem usadas para se projetar filmes: salão de igrejas, praças etc? Não seria mais adequado, já que se quer dotar essas cidades de salas de cinema, doar os equipamentos, em vez de ser itinerante? Dos R$ 1,8 milhões, quanto serão, verdadeiramente, aplicados no projeto na medida em que a ONG deve ter seus custos administrativos? Com os R$ 20.454,54 não se construiria algo permanente? Os municípios contemplados com o projeto não têm Secretarias de Cultura ou “artistas locais” capazes de realizarem esse tão “complexo” projeto de se projetar um filme? O projeto, em sua essência, visa a que objetivo? O Projeto usado como exemplo é só uma forma de treinarmos o nosso olhar para enxergarmos como não-natural aquilo que nos é apresentado como natural. Não esqueçam que essa mesma Secretaria de Estado vem terceirizando (privatizando) todos os setores de uma administração que deveria ser pública. Essa é apenas a ponta do iceberg. Desconhece-se toda a sua verdadeira dimensão. E tudo propiciado pelo cortiço onde vivemos, em que a indistinção entre Público e Privado serve ao desrespeito dos direitos elementares dos cidadãos comuns. O S A R R A FO 6 Número 8 • Dezembro 2005 Como garantir a manutenção de um grupo? O teatro sem dono MARCO A NTÔNIO R ODRIGUES C omo um corpo que reaprende a andar depois de um grave acidente, o teatro brasileiro que interessa vem, pouco a pouco, se recuperando. As condições físicas ainda são muito débeis, a fragilidade é imensa e sua recuperação é um fenômeno a interessar parapsicólogos e gente que aposta no sobrenatural. Sim, por que as condições em que se deram e estão se dando são absolutamente adversas: do ponto de vista governamental, exceção feita à Lei de Fomento ao Teatro que a atual administração da Prefeitura Municipal de São Paulo teve a dignidade de manter viva, as políticas públicas na área são dignas dos melhores tempos do autoritarismo. O Governador do Estado ressuscitando a censura policial impede a aprovação do Fundo Estadual de Arte e Cultura, lei criada pelo amadurecido trabalho de artistas de todas as áreas e que onera os cofres públicos em fantásticas quantias correspondentes à menos de 0,25% da arrecadação do ICMS. O Presidente Lula, que deve muitos dos seus milhões de votos ao avanço cultural do povo brasileiro , se mantém olimpicamente omisso na vergonhosa política para arte e cultura que seu governo herda e eterniza. (Se outros países, com mais problemas econômicos do que nós, como Portugal, por exemplo, tem políticas públicas decentes, por que não haveremos de ter?). Do ponto de vista das mídias, senhores absolutos submetendo a tudo e a todos, interessa é o mercado, ainda que ridiculamente não lhes tenha chegado a notícia que o mercado cá por estas terras, sequer nasceu. No campo do conhecimento, da reflexão, do pensamento, é o que se vê: literatura e produção editorial especializada enferrujaram, na melhor das hipóteses perdidas na gramática lá do século XX; os pensadores que valem a pena (e tire-se disto dois ou três) discutem, sim, em extensos artigos nos principais cadernos de literatura dominical, a produção artística contemporânea ... européia ou americana. Enfim, somos exóticos! E só o exotismo pode explicar a presença e a pujança de tantos trabalhos artísticos de qualidade, tanta gente envolvida! Sim, por que grana não é o número que explica esta equação. Olhe só: faço parte de um grupo que envolve por volta de 60 pessoas. Mesmo que beneficiados pelo Fomento, os recursos asseguram apenas a manutenção física do grupo. Não são suficientes para remuneração do trabalho artístico, o que é feito através de uma percentagem da bilheteria de um espaço de 100 lugares! Evidentemente ninguém “vive” disso. O fa- zer artístico do teatro que interessa em São Paulo põe em disputa uma questão aparentemente superada: ser é muito mais gratificante do que ter. É este querer vir a ser, a constituir uma arte, uma cultura, uma nação o que mantém de pé os ajuntados artísticos. Sob estas condições, experiências como o do Arte e Ciência no Palco, por exemplo, que mantém temporadas de terça a domingo com um repertório de cinco espetáculos, mais leituras dramáticas e edições. Ou o Oficina, com sua saga euclidiana que envolve um exército de mais de 100 pessoas. Ou o Tapa, que sem casa e sem patrocínio, consegue até por o pé na estrada com espetáculos invejáveis. Sem falar do Engenho , mais de dez anos com um circo-teatro que se desloca pela periferia. Ou o ajuntamento destes grupos que fazem o Sarrafo. Qual será o segredo destes tempos juntando tantos e tão bons? Quase com certeza, em cada agrupamento a idéia de coletivo deixou de ser teoria e passou a ser prática. Um espetáculo assim criado, não tem dono, nem assinatura; é de todos e de cada um e mais do que isso: faz parte de um projeto discutido, brigado, disputado e assim parido. Projeto , que filho de todos e pai de cada um, refunda a sensação de pertencimento que é o que de fato constitui uma ética, uma cultura e uma cidadania. Como produzir relevância histórica? Repartir indignação e esperança ELABORAÇÃO COLETIVA ÓI NÓIS A QUI TRAVEIZ O DA T RIBO DE A TUADORES teatro é instrumento de humanidade e este é o seu papel fundamental: restituir ao homem os valores éticos propositadamente esquecidos e desprezados na nossa sociedade consumista. Num mundo marcado pela exclusão, homogeneização, pelo pensamento único, pela desumanização e pela barbárie, cada vez mais é vital e necessário denunciar a injustiça, as vendas de opinião, o autoritarismo, a mediocridade e a falta de memória. A solidariedade, a honestidade pessoal e a liberdade são princípios para realização de um teatro comprometido com a vida. Os fazedores de teatro não podem perder de vista suas funções básicas: a estruturação e o desenvolvimento da sensibilidade e do pensamento, a análise crítica e a exposição das relações inter-humanas. Nesse sentido acreditamos que o Teatro de Rua traz intrínseco na sua manifestação valores significativos que expressam o combate à alienação e exclusão cultural, valorizando a nossa identidade e afirmando princípios libertários, criando um teatro popular, onde arte e política se fundem, voltado para a maior parte da população. Transformando a rua em palco de um teatro que se assuma como um constante repensar da sociedade, motivando uma releitura da vida cotidiana. No momento histórico em que vivemos, onde a grande maioria da população brasileira, por suas carências econômicas e culturais, não tem acesso as salas de espetáculos, o teatro de rua assume um papel fundamental na democratização da arte. O Teatro de Rua requer uma pesquisa estética levada às últimas conseqüências, onde surgem elementos como máscaras e bonecos de grandes proporções, pernas de pau e música, canto e dança, figurinos e adereços criativos e coloridos. O ator do teatro de rua precisa desenvolver diferentes técnicas expressivas que amplie o seu gesto e a sua voz, e pré-disposição para lidar com todo tipo de imprevisto. O cenário da rua exige um gesto ampliado capaz de prender a atenção de cidadãos que acorrem casualmente, formando a roda da brincadeira teatral. Digase, seguramente, não haver manifestação mais contundente do que ganhar a rua, encontrar as pessoas através de um teatro divertido e lúcido, repartir com elas a indignação com a injustiça e a esperança em um mundo mais solidário. A formação do ator para o teatro de rua tem sido conseqüência do aprendizado grupal. À margem das universidades, dos editais públicos e premiações, a história do teatro de rua vem sendo contada pelos grupos que se empenham em realizá-lo. Estes grupos vêm investigando incessantemente uma linguagem própria para o espaço urbano. O teatro nas ruas, praças e parques, bairros e vilas populares forma um público que, ao se perceber pela primeira vez assistindo teatro e gostando do que vê, o torna necessário em sua vida. Da mesma forma, são estes grupos a escola do teatro de rua, fomentando e multiplicando novos coletivos. São sobretudo os coletivos de trabalho continuado que apontam caminhos para os impasses que a arte mercadológica e a mídia nos impõem. Esses grupos, que repensam cotidianamente a sua prática, que percebem os erros e aprendem com eles, não se contentando com soluções superficiais, encarando o teatro como algo maior e mais importante que um simples entretenimento, são eles que garantem para a arte teatral relevância histórica. Existem, espalhados por todo país, grupos que apesar de todas as dificuldades, como o pagamento de onerosos aluguéis, constituíram espaços culturais autogeridos de forma coletiva que, além de local para apresentação de espetáculos, funcionam como escolas, formando novos atores e grupos, espaço para investigação, pesquisa e compartilhamento de experiências, e acervo de parte da história do teatro brasileiro. Em oposição à lógica capitalista, onde a propriedade é privada, os espaços desses grupos se abrem à população de suas cidades para o encontro e a comunhão. Hoje, quando são cada vez mais raros os verdadeiros encontros entre seres humanos, em que a criação de não-lugares onde não se estabelece contato, historicidade ou referência é a tônica de nossa arquitetura, organização e conseqüente relação, ou ainda, da incapacidade de estabelecê-la, se faz urgente e necessário a criação e manutenção de LUGARES, para que aconteça a retomada do homem na sua essência. O Teatro como arte artesanal e corpórea é fundamental para esta construção. Resignificar a existência do homem, constituir um espaço de possibilidades, talvez uma das características mais significativas do trabalho teatral, criar um campo fértil para semear as possibilidades do homem em todos os tempos. É preciso difundir o teatro de rua e o teatro de grupo e seus centros de criação e compartilhamento : é necessário que existam políticas públicas que garantam o desenvolvimento e a ampliação destas manifestações. Afirmar o teatro como arte singular e fundamental para o aprimoramento da condição de vida da maior parte da população, é contribuir para a emancipação do homem. O S A R R A FO Dezembro 2005 • Número 8 7 Como melhorar as relações de trabalho nos grupos? Transformar decisão coletiva em ação teatral A NA CRISTINA PETTA “Ele (o trabalho alienado) aliena o homem do seu próprio corpo, sua natureza externa, sua vida espiritual e sua vida humana.” Karl Marx A tores em movimento, visões sobre o mundo, olhares sobre o Brasil, possibilidades criativas, dificuldades financeiras, anseios e limites individuais, desejos e necessidades coletivas: surge um grupo de teatro. Assim surgiu nossa Companhia, a São Jorge de Variedades. Apoiados em uma direção que sempre apostou na inteligência dos movimentos coletivos, experimentamos sentimentalismo português, precariedade brasileira e inspirações brechtianas. Quando o desafio era penetrar a alma e o cotidiano do Brasil, fomos a um texto de raiz popular, nordestina e habitamos um cenário vivo, urbano. Foi a hora de nosso primeiro desafio nas relações internas de trabalho, contradição entre indivíduo e coletivo. O dilema era permitir à diretora, que também é atriz, atuar. “– E quem dirige?” A solução estava no grupo! Um ator saiu de cena e assume a direção do novo espetáculo. Ficou a lição de que para manter-se vivo o grupo precisa de uma organização capaz de transformar anseios individuais em desejos coletivos. Amparado pela necessária Lei de Fomento, o mergulho da Companhia na realidade dos albergues de São Paulo nos envolveu nas contradições de um país real, apresentou nova realidade cênica, desmoronou certezas e detonou um processo de construção de novos parâmetros para o trabalho do grupo. O espaço não é o palco, não há distinção entre cena e platéia. O processo é aberto, não há diferenças entre ensaio e apresentação. O local é “casa temporária”, não há separação entre público e privado. O texto não é dramático, não há limites entre o que é dito e narrado. Uma concepção coletiva do espetáculo, inspirada nos processos colaborativos – que incluía adaptação dramatúrgica realizada por alguns atores – foi adicionada à nova direção. Atores em novas funções precisam organizar os ensaios, iluminar a cena, fazer opções de encenador e dramaturgo, registrar e fotografar o processo, escrever e refletir sistematicamente sobre os dilemas de todas as etapas da criação. Caminho escolhido: horizontalizar relações e superar a absoluta especialização de cada membro do grupo, permitindo novas vivências e a participação mais densa, pela inspiração de quem vê processos de lugares diferentes. O período de maior transformação das nossas relações de trabalho foi uma fase de acirramento das contradições internas e intensa politização do grupo. Experimentamos a crise, divergimos, questionamos nossa função social, deparamo-nos com nossos preconceitos. O momento exigiu longos debates, visão crítica, paciência e um ambiente sensível aos limites e conflitos de cada um. Sem perder o foco na construção do espetáculo e na capacidade de transformar decisão coletiva em ação teatral. Após dois anos da estréia de As bastianas, no albergue Canindé, estamos revisitando nossos espetáculos transformados por esta experiência. Em um processo de criação radicalmente horizontal, cada artista contribui livremente com todas as personagens em longas improvisações. Cada cena ganha diferentes visões. O material é organizado em uma relação de troca entre elenco, direção, iluminação e direção musical, com direito a territórios de intersecção. Durante os ensaios, todos entram em cena para propor e todos saem para observar. O espaço livre é construído a partir de um repertório de criação comum, consciente. A inquietação, o conflito, a diversidade são elementos fundantes do nosso trabalho. Não é possível ditar regras. É preciso fazer o grupo caminhar, abrir espaços para o crescimento dos indivíduos, torná-lo permeável, passível de mudança. Criar um ambiente solidário de debates e trocas artísticas fundadas na realidade, que exercite o espírito dialético e revele mecanismos. Assim poderemos organizar a luta e vivenciar no teatro a utopia de uma sociedade onde o trabalho seja a expressão da liberdade e criatividade humanas. Sem esquecer que o mundo está aí para ser transformado. Como renovar os sistemas de circulação cultural? Uma coletividade crítica NEY PIACENTINI E S ÉRGIO DE CARVALHO A chance de uma inserção mais viva do teatro no sistema das artes está na sua desmercantilização. É a partir de uma contradição que se abre alguma possível mudança: uma nova circulação em alguma medida será um retorno à produtividade, à não-circulação. Ela depende do fim do imperialismo do valor de troca, da negação do sentido mercantil do trabalho teatral. É do retorno a uma utilidade propriamente artística, uma utilidade afeita ao inútil, uma utilidade da ação supérflua em relação à sobrevivência física – mas necessária em relação à vida livre, que o teatro extrai a chance de um diálogo produtivo com sua época. Sempre que se sujeita acriticamente aos limites convencionais impostos pelo chamado mercado das artes (entidade mal formada num país sem burguesia liberal), o teatro reafirma a voz da mercadoria. As temporadas nos teatros centrais nas grandes cidades, quando não criam um novo lugar de encontro artístico, reproduzem a marca da instituição acolhedora. O dinheiro gasto com mídia paga, assessorias de imprensa e bajulação dos servidores das empresas jornalísticas acena para o céu dos grandes capitais como o primo pobre cumprimenta o grande parente financista e nesse gesto expressa sua aprovação invejosa. Enquanto isso, encalham os cartazes e filipetas que insistimos em manter como lembrança de uma época em que se tinha uma relação mais direta com o público, lembrança de um tempo pré-finan- ceirizado em que os produtores tinham o gosto de mercadejar porque na feira dos bens culturais ainda existia alguma relação viva para além da hegemonia das marcas. Nos antípodas disso, a recusa simples em participar do jogo, a decisão em se afastar dos centros urbanos e dos lugares marcados do teatro não garante a ninguém uma desmercantilização das relações. O movimento de fuga pode carregar consigo o horror de origem. Pode carregar o autoritarismo ideológico das falsas respostas ou o fetichismo da cultura autorizada. Para criar um novo lugar, o teatro não pode ignorar que o processo de mercantilização atravessa toda a vida subjetiva e objetiva da sociedade, nem deixar de se dirigir aos despossuídos. Se é verdade que o movimento vem das províncias e subúrbios, é também verdade que não devemos deixar de atuar nos centros da produção simbólica e dos debates críticos, porque é em relação a eles que os extremos se posicionam. Aos descontentes, em toda parte, nos dirigimos. A esperança para o teatro provém de seu potencial de dizer não às tendências dominantes do mundo da mercadoria – a especialização, a individualização, a serialização, a facilitação, a hedonização, a consumição. É porque esse potencial subsiste que não desistimos por completo da tentativa de uma relação direta com o público. Isso quer dizer – as companhias que pretendem superar os limites pré-estabelecidos pelo que se chama de mercado não devem só priorizar o seu aprimoramento estético mas também trabalhar para substituir o destino de todo produto (a circulação) por um destino de ativação da coletividade. A criação de coletivos de grupos teatrais, o cooperativismo, a junção com parceiros não habituados a partilhar do chamado universo cultural, o estabelecimento de objetivos produtivos que façam – de atores e publico – seres conscientemente ativos e responsáveis, tudo isso pode ser o ponto de partida para um trabalho desmercantilizado nos centros ou periferias das cidades. Não são produtos ou eventos culturais que devemos oferecer, mas processos de invenção livre de uma vida melhor. A elaboração de políticas públicas para o teatro só terá importância real quando liberar energias para uma democratização verdadeira das potencialidades críticas da sensibilidade. Não são aos consumidores de arte que nos dirigimos. Não deveríamos reforçar a ilusão de que o mercado oferece escolhas e autonomia, mas sim trabalhar para uma coletividade crítica. A capacidade de diálogo com espectadores se mede pela desautomatização de seus hábitos de consumo cultural, pela formação de novos modelos produtivos, pela flexibilização de suas estruturas de pensamento, imaginação e percepção, pela lembrança simbólica de que só existimos coletivamente. Cabe a nós – com nossa capacidade profissional, em meio ao mundo da mercadoria – produzir condições materiais para que o livre Amadorismo seja um direito de todos e um modelo para o ofício. Se as gerações anteriores encontraram saídas para o seu tempo, cabe a nós pôr em movimento nossa história. 8 O S A R R A FO Carta aos que retomam a ação teatral Número 8 • Dezembro 2005 PAULO EDUARDO A RANTES “B em-vindos ao deserto brasileiro do real”. Pensaria duas vezes antes de dar as boas vindas nestes termos a uma iniciativa tão urgente como a de retomar a ação teatral no âmbito mais enérgico da luta política organizada. Deixando portanto o pessimismo para dias melhores – sejam bem-vindos mais uma vez a uma animadora paisagem de ruínas e projetos carbonizados. No que segue, breve contribuição um tanto remota e nada prática para o projetado Manual da Retomada. Depois do longo inverno da nossa despolitização – foram 20 anos de simulação de uma realidade irreal de grandes gestos políticos coreografados pelos eternos artistas do possível, das Diretas-já à pirotecnia da campanha presidencial de 2002 –, o real desertificado para o qual afinal despertamos se reapresentou com a cara pré-histórica do reino da necessidade mais cega. Necessidade econômica por certo, que por definição exige total submissão ao “querer obscuro da riqueza que se valoriza”. Quer dizer, a fatalidade das mil formas de uma nova exploração econômica à qual veio se juntar outras tantas formas de poder e opressão, disseminadas pela soberania obscena das redes empresariais, semeando por sua vez todo tipo de hierarquias e violências entre os sobreviventes. Por mais assombroso que pareça, já vivemos tudo isto antes: na Colônia. Daí a forte impressão que se tem hoje em dia no coração do sistema mundial de que o deserto em expansão por estas terras de miséria e impotência na verdade parece anunciar uma dramática periferização do planeta. Por isso, numa hora limiar como a presente, vem mais do que ao caso insistir na atualidade da assim chamada Acumulação Primitiva, que de primitiva obviamente não tinha nada, como de resto o demonstra o caráter “avançado” do experimento colonial que engendrou a horrenda sociedade brasileira de ontem e de hoje. Me explico: enquanto a Europa ainda se arrastava no emaranhado do Antigo Regime, em sua franja colonial se encontrava em plena ebulição um verdadeiro laboratório de vanguarda do capitalismo total. Várias guerras bárbaras de limpeza étnica depois, a banalização de todo um território por força de uma razão econômica de novo tipo, repovoado por assentamentos humanos exclusivamente empresariais, e por isto voltados integralmente ao mister selvagem de extração de mais-valia com uma intensidade e crueldade jamais vistas na história do trabalho humano, pelo menos desde os tempos do trabalho escravo nas minas do Império Romano. O que antes se apresentava como uma zona residual de comportamentos extremos, a exceção que prosperava nos subterrâneos da normalidade burguesa em formação, desde então ameaça tornar-se a regra nos momentos de colapso do sistema. Foi assim com o apocalipse nazi: nunca é demais lembrar que a principal mágoa dos bons europeus com os hierarcas do Terceiro Reich era o tratamento “colonial” que lhes estava sendo dispensado. Completava-se assim o sentido da colonização. Quando se diz que o Imperialismo está de volta, impulsionado por novas rodadas de acumulação por espoliação – privatizações, ajustes fiscais, expropriações via patentes, guerras de pilhagem, etc. –, é novamente disto que se trata, da recaída em nossa condição originária de exploração aberta, desavergonhada, direta e seca. De volta portanto ao deserto colonial de vanguarda da mais rasa necessidade econômica. Pois que de necessidade se trata, não há mais nada a fazer a não ser aquilo que deve ser feito, governa-se cada vez mais por medidas administrativas – exatamente como nas colônias. Deu-se então o grande disparate. Reconciliando gregos e troianos, a esse governo da coerção econômica pura, deu-se o nome de “consenso democrático”, em torno exatamente do interesse nu e cru do pagamento em dinheiro. Aqui no entanto, o paradoxo maior da nossa despolitização: não é bem o que parece. É que, ato contínuo, acionou-se o realejo do vazio político, das nossas escolhas confiscadas etc. E no entanto é muita lágrima derramada sobre esse famigerado vazio político. Dá para desconfiar do contrário, de que se trata de entupi-lo com mais política ainda. E se essa caixinha de música fosse de fato o mega-computador do tal filme, justamente um filme de ficção política? Tudo se passa como se a tal máquina de simulação da realidade fosse a própria Política. Estou é claro me fazendo de desentendido, nosso Manual para depois da Queda são outros quinhentos. Mesmo assim não custa o aviso aos navegantes: estamos carecidos mesmo é da providência contrária, de uma crítica em regra da Política e, em função dela, reorganizar nossa imaginação, extraviada faz tempo no mercado das responsabilidades públicas. Dezembro 2005 • Número 8 O S A R R A FO Enquanto o deserto crescia nos últimos quinze anos, nunca se viu tanta gente, do mais variado calibre e por todos os cantos do espectro ideológico, empenhada na promoção e venda de um sem número de artigos políticos, da “cidadania” às “refundações republicanas” a torto e a direito, sem falar nas “inclusões” assim ou assado, nas “injustiças” a reparar, nos “preconceitos” a denunciar, nos “direitos” a registrar em cartório, a começar pelo sacrossanto direito ao “dissenso”, democrático é claro. Tantos estremecimentos políticos mal abafavam o ruído festivo com que o capitalismo turbinado vinha mandando tudo que é moldura reguladora pelos ares, salvo é claro, o básico. Quer dizer, ficou a exploração, fragmentada por um sem número de redes de extração de mais-valia – sendo a rentista a mais invasiva dessas bombas de sucção da riqueza social. Exploração além do mais interiorizada até o fundo da alma. Ou da pele: “Todos se tornam o seu capital humano, ainda que seja simplesmente o corpo nu”. Se é assim, porque não tomar ao pé da letra o júbilo com que dez em cada dez colunistas da grande imprensa, para não falar nos sábios de sempre, dia sim dia não e nos últimos quatro meses de derrocada petista então nem se fala, provam por a+b que a democracia simplesmente faliu por inequívoco esgotamento histórico, já que absolutamente mais nada de relevante se decide no seu âmbito de representatividade nula? Mas quando o diabo entra em cena e sugere tirar conseqüências não triviais do mesmíssimo raciocínio tão esclarecido, porque o Deus nos acuda? Mesma réplica literal no que concerne o marketing corporativo. De tanto vender ao distinto público a idéia de que o lucro é um detalhe técnico, contando mesmo e exclusivamente o compromisso social da empresa com o consumidor, o meio ambiente e o seus funcionários, as pesquisas acabaram demonstrando que as vítimas finalmente se convenceram de que é assim que deve ser – entendendo-se que os acionistas também estão de acordo, já que não se desenhou tal estratégia sem a sua anuência. Nessas condições, teríamos apenas que fazer constar em ata esse imenso arquipélago de economia solidária, não é mesmo? Pelo menos de violência ideológica não se poderá falar, afinal estamos todos de acordo quanto aos termos de enunciado de fundo. Teríamos no mínimo duas fábulas a trançar em cena, algo como uma Comédia da Política, em cujo prólogo no céu poderíamos medir o tamanho de nossa despolitização pelo inchaço da falecida cultura da reclamação... política, que nos confiscaram, etc etc. Trocando em miúdos mais tangíveis, digamos que padecem todos os egressos da ressaca dos últimos 20 anos de uma espécie de nostalgia politicamente correta da luta de classes, como quem diz: no seu tempo, tais lutas foram formas integradoras – daí o mantra da “inclusão”. Os órfãos do dissenso não suspiram pelos combates sociais de ontem, contra cujos excessos de resto não havia garantia nenhuma, longe disto: a ausência pela qual vestem luto é outra, embora também da ordem da pacificação dos conflitos, a virtude inibidora das pulsões destrutivas que se foi com a sábia calibragem política da luta de classes. Vistas as coisas do ângulo oposto, o roteiro é mais familiar. Houve de fato um tempo em que as idas e vindas da luta de classes arrancavam, na forma de tréguas mais ou menos duradouras, “instituições” que não brotariam por geração espontânea no terreno adverso de uma sociedade antagônica: sindicatos, sufrágio universal, legislação do trabalho, seguridade social, etc. Como era de se prever, tais conquistas provaram não ser cumulativas nem irreversíveis, as que sobrevivem continuam a se esvaziar. No refluxo da maré, o que se vê na praia é o cenário de ruínas evocado linhas atrás. A luta simplesmente mudou de patamar. Onde antes parecia haver composição de interesses e a luta política assumia a forma de uma barganha, a atual ditadura da escassez parece estar imprimindo à política a matriz estratégica da guerra – imposta aliás pelo próprio campo inimigo quando iniciou o desmanche do arranjo anterior, alegando que num mundo globalizado de empresas soberanas (como nos tempos coloniais em que as grandes companhias comerciais dispunham de forças armadas privativas e controlavam territórios), o novo parâmetro passara a ser a guerra econômica total. Mal perguntando: nas presentes circunstâncias, qual o significado menos surreal de uma expressão como “disputa pelo fundo público”? Ou ainda, “nosso governo”? Bem-vindos, etc. é muita lágrima derramada sobre esse famigerado vazio político. 9 O S A R R A FO Thomas Aurin 10 Número 8 • Dezembro 2005 FRANK entrevista POR FERNANDO KINAS, INÁ CAMARGO COSTA , JOSÉ F ERNANDO E S ÉRGIO DE C ARVALHO Frank Castorf é um dos mais importantes encenadores da atualidade. Oriundo da Alemanha Oriental, foi por cinco vezes eleito diretor do ano pelos críticos teatrais da Alemanha . Sua sede de trabalho é o lendário Volksbühne (o Teatro do Povo), construído em 1914 por associações operárias e que continua a ser um dos espaços mais influentes do teatro europeu. Situado na Praça Rosa Luxemburg, no centro antigo de Berlim, o Volksbühne de hoje reinventa – sob a orientação de Castorf – o legado de artistas como Piscator, Besson e Heiner Müller. O conceito de “teatro expandido” praticado nessa casa abarca, além do trabalho de encenadores inventivos e polêmicos como Marthaler, Schlingensief, Gotscheff e René Pollesch, eventos culturais variados de literatura e música. Castorf esteve recentemente no Brasil com Estação Terminal América (Endstation Amerika ), adaptação livre da peça Um bonde chamado Desejo de Tennessee Williams. Esta entrevista a O Sarrafo foi realizada em 23 de setembro, em São Paulo, nos bastidores do teatro durante a apresentação do espetáculo. O SARRAFO – Numa palestra em São Paulo, o senhor se filiou a uma tradição teatral de esquerda da qual fazem parte Brecht e Piscator, referindo-se a si próprio como um “marxista ocidental”. Gostaríamos que, se possível, o senhor comentasse o que significa hoje ser um artista marxista. CASTORF – Certamente existem muitos diretores influenciados por um pensamento crítico que toma como ponto de partida o valor material das coisas. Existem muitos diretores que poderiam ser ligados ao nome de Marx. No entanto, entre Marx e o teatro existe uma mediação chamada Brecht que foi quem mais radicalmente estabeleceu um trabalho de arte decorrente dessa visão da sociedade. De fato eu me incluo nessa tradição e me sinto compromissado com esse pensamento. Acredito que muitos diretores, somente pelo fato de terem se aproximado dos textos de Brecht, se encaminharam para uma visão crítica da sociedade próxima do marxismo. Precisamente no atual momento histórico, na Alemanha depois da unificação, quando os blocos do Oeste e do Leste terminaram de existir, é que se poderá ler outra vez com interesse e atenção o “O Capital” de Karl Marx. Ainda que eu acredite que a teoria marxista deva ser completada no que se refere à idéia de que o mundo é cognoscível e transformável – o fato é que não estamos mais em condições de ordenar informações segundo as categorias de verdade e progresso surgidas no Iluminismo, e nem era exatamente esse o projeto de Marx – acredito também que suas análises da realidade continuam a abrir os mais potentes caminhos de diálogo produtivo com os processos do real. Em contraposição ao caminho norte-americano imposto ao mundo (uma via da valorização da individualização), os pensamentos marxistas ainda são os mais úteis instrumentos de compreensão e interferência nos acontecimentos da sociedade. Permitem-nos olhar para determinadas conexões sociais que de outro modo não seriam percebidas. Bem longe disso, a tendência mais freqüente no teatro alemão é pôr-se de fora dos problemas, recostar-se, tornar-se depressivo. Estabelece-se um curto-circuito entre vivência do capitalismo e depressão: as pessoas preferem se isolar em torno de sua maior ou menor capacidade individual de fazer sucesso. O SARRAFO – Dentro e fora do teatro, a realidade parece cada vez mais comprovar a observação de Marx de que as grandes disputas da sociedade ainda passam pela exploração Dezembro 2005 • Número 8 O S A R R A FO 11 K CASTORF O SARRAFO – Foi o interesse no que o senhor chama “caminho americano” de gestão do capitalismo mundial que o levou a encenar um texto de Tennessee Williams? CASTORF – O caminho americano é percorrido por uma sociedade quando mais e mais pessoas se retiram da política. Quando elas deixam de acreditar estar mudando alguma coisa ao se organizar, ao votar. Foi por isso que nessa peça existe a tentativa de conferir um perfil político a uma personagem como Stanley Kowalski, supostamente um polonês católico, tornado alguém com um passado radical do ponto de vista político-social. Como ocorre com tanta gente que se encontra num estado de isolamento e impotência, quando as pessoas chegam a um ponto em que pensam que não vão mais conseguir mudar nada na sociedade, já muito distantes de um passado em que participaram de greves ou de uma comunidade qualquer (como um partido ou igreja ou até a família), esse Stanley Kowalski é também aquela pessoa que vê uma época acabada e se sente isolado e doente. Como lidar com esse tipo de doença varia muito – existem aqueles que tentam produzir alternativas e até mesmo aqueles que produzem arte como uma alternativa de compensação ilusória. Gente que cria mundos imaginários. Que prefere viver em mundos de arte, mundos de arte feita para drogados, que oferecem imagens muito falsas da realidade. Esses são os artistas cúmplices daqueles que têm o poder. São idiotas úteis. Mas o fato é que essas doenças só podem ser bem avaliadas dentro de um sistema de coordenadas – daí a importância do valor material das coisas. Quando as neu- roses de uma peça se desenvolvem, a realidade das lutas psíquicas só terá sua real dimensão dentro de uma localização social aberta a processos mais amplos. O SARRAFO – O que você parece estar fazendo é traduzir Brecht para a Alemanha atual, aplicando seu método a uma forma de encenação que – para instaurar um novo distanciamento – chega ao ponto de romper com as técnicas tradicionais de fabulação. Para se aproximar de Brecht o senhor chega a romper com o “classicismo” épico. CASTORF – A base, no entanto, é a mesma. A hipótese com que eu trabalho é que a influência mais importante de Brecht para o teatro alemão atual pode ser percebida naqueles que definem o homem a partir de uma relação materialista. Aí está o ponto importante. As pessoas não existem através do seu espírito: o que as define como indivíduo é a situação e condições na qual se movem e o que elas fazem. É nessa perspectiva que eu e outros na Alemanha procuramos fazer teatro. te daquela de Tennessee Williams, as palavras da peça têm seu sentido modificado. Criamos uma ativação. É complicado falar sobre isso. Mas é mesmo muito importante no meu trabalho esse tipo de articulação crítica do material. O SARRAFO – Como é possível pôr em prática essa atitude teatral radical num espaço como a Volksbühne, mantido pelo Estado alemão? CASTORF – Isso tem a ver com uma certa herança feudal das instituições públicas alemãs. Quando você atinge um patamar alto de liderança dentro dessas instituições, você se torna alguma coisa parecido com o rei. Um intendente de um teatro público alemão tem o direito absoluto de decidir tudo. Daí é que surge a chance de praticar a “longa marcha através das instituições” para lhes conferir uma utilidade realmente pública. Dessa contradição é que surge a chance de reestruturar a instituição teatral de acordo com as necessidades políticas daqueles que nela trabalham. Também fiz isso na República Democrática Alemã, mesmo quando eram instituições pequenas. Nós conseguíamos por dois, três, até quatro anos trabalharmos com independência e liberdade, em desacordo com o estado totalitário. Até o momento em que fomos politicamente despedaçado e proibidos de seguir com liber- O SARRAFO – A sua técnica de encenador pode ser comparada à de outro artista interessado em Brecht, como Mathias Lahgoff. Mas tanto o senhor como ele trabalham à maneira de Müller: é como se vocês estabelecessem uma tensão entre planos, mais de uma trilha histórica, que formam uma meta-narrativa, não linear. A cena não é um veículo, não está “de acordo com a peça”. Ela aparece contraposta, oscilando em relação aos materiais do texto. CASTORF – Acredito que de fato exista essa semelhança de método. No fundo sempre procuro construir um meta-nível cênico. Existe a história e existe o comentário sobreposto. O diálogo é que é importante. Com estas tensões crio uma determinada dinâmica. Ao atribuir uma biografia política a Kowalski diferen- Edifício da Volksbühne na década de 1920 dade. Na Volksbühne de hoje, em função dessa herança arcaica, podemos determinar as condições do trabalho, suas formas de produção, definir as relações e programas. Isso significa conquistar a grande independência de se trabalhar livre da pressão capitalista, sem a preocupação em atingir índices de espectadores, números de visitantes, quantidades de edição ou de retorno de mídia, metas que as empresas culturais costumam ter. Esta é uma situação atípica e provém de uma estrutura feudalista. É isso que nos confere esse grande privilégio. O SARRAFO – Não existe nenhum tipo de censura? CASTORF – A censura política não funciona hoje como na época do comunismo, não é exercitada de forma clara. Ela tem caminhos mais curvos para exercer sua destruição. Nosso maior problema está na pressão de um gosto mediano burguês, que se manifesta tanto na política quanto na estética. Esse gosto, formado no círculo daqueles que ganham mais dinheiro e ainda freqüentam teatro, se converte às vezes em rejeição direta. Eles assistem aos espetáculos e depois vão ao prefeito, aos partidos, e dizem: “Isto não é o que queremos. Não é para nós. Isso não é feito para o povo.” Falam em nome do povo, mas faz tempo que o povo não vai mais ao teatro. O teatro se tornou um gueto. A influência de Brecht está em definir o homem a partir de uma relação materialista. Aí está o ponto importante . do trabalho, mesmo quando esse trabalho se mostra cada vez mais fragmentado e precarizado. Essa depressão não decorre de uma relação de trabalho tornada o tempo todo concorrencial e competitiva? CASTORF – Também na Alemanha, não só no Brasil, o trabalho está sumindo. O trabalho que permite o encontro das pessoas, que reúne suas atividades em uma ação conjunta, esse sistema de produção da riqueza pouco a pouco desaparece, sem que a maioria da população possa de fato desfrutar do tempo livre. Cada um está sendo jogado para o isolamento e se sente mais e mais impotente. É dessa forma que as pessoas passam a ser governadas mais facilmente, quando submetidas a uma sensação de impotência. O individualismo extremo é o outro lado da moeda. O S A R R A FO 12 Hoje nosso maior problema está na pressão de um gosto mediano burguês, que se manifesta tanto na política quanto na estética. Thomas Aurin O SARRAFO – Na Volksbühne o povo não ocupa a platéia? CASTORF – Tentamos romper com essa tendência oferecendo entrada a preços muito baixos. Começamos isso em 1992, cobrando cinco marcos, algo como dois dólares e meio. Hoje os ingresso custam cinco euros para estudantes, desempregados, aposentados, soldados. Para aqueles que podem pagar, cobramos 20 euros. Há um certo tempo realizamos trabalhos com moradores de rua. Acolhemos um diretor que trabalhava com atores à margem da sociedade. Tivemos este grupo durante quase dez anos. Temos também teatro com jovens estudantes. O teatro é pensado como uma espécie de centro cultural com atividades artísticas variadas, um lugar aonde se vai também para dançar, festejar, conversar, discutir filosofia, viver. Como uma grande casa de cultura com interesses muito diversos, tentamos tirar dos freqüentadores o medo do teatro, romper com aquela imagem comum a muita gente de que “sou ignorante demais para o teatro, não entendo isto”. Foi isso que tentamos durante os últimos anos. Recentemente perdemos um pouco o fôlego. Essa tentativa já não tem a mesma intensidade. Entretanto, percebemos que se perdêssemos esta energia, entraríamos numa crise. Porque agora é o público burguês – que no fundo só quer a bela aparência – que não vem mais. Pelo menos não em massa. E por aí somos forçados a continuar o caminho de uma casa cultural aberta. Podemos fazer isso porque temos essa chance de contar com um bom dinheiro que nos permite manter uma enorme equipe trabalhando. Número 8 • Dezembro 2005 Cena de Estação Terminal América da Alemanha Oriental. E naquele tempo já recebiam mais dinheiro. E é assim que continua. Em relação ao resto da Alemanha, porém, somos um teatro bem abastado. O SARRAFO – A Volksbühne nasce em 1890 da vontade de romper com o monópolio cultural da burguesia. Nasce como uma cooperativa de organização do público operário: pequentas cotas mensais mantinham os espaços e repertórios teatrais. O senhor poderia contar rapidamente essa história? CASTORF – A associação “Freie Volksbühne” era uma organização de massa por volta de 1913, com mais de 70 mil associados, quando consegue juntar dinheiro e construir o prédio. Foi o primeiro teatro construído com dinheiro de operários na Alemanha. Nos anos 20, quando a associação conO SARRAFO – Como é a utilização ta com mais de meio milhão de intedo orçamento do teatro? grantes, acolheu artistas muito difeCASTORF – A maior parte de nos- rentes, por exemplo, Max Reinhardt e sa verba não vai para a arte, vai para Piscator. Mas as lideranças da associaos trabalhadores, os artesãos, para ção “Freie Volsbühne” no fundo titodas as pessoas que trabalham jun- nham uma imagem de teatro muito tas dentro do teatro. Nas áreas artís- tradicional. A política cultural dos ticas somos no máximo 50. E exis- social-democratas, o partido de Franz tem mais de 180 pessoas nas outras Mehring, rebatia no teatro e eles imaáreas. Somos 25 atores, dramaturgos, ginavam que o operário – que não tidiretores, músicos, administração, nha estante de livros – deveria ver enequipes técnicas. Ao todo mais de 250 cenado seu “Goethe puro”. Entretanfuncionários. Para tanto contamos to, pessoas como Erwin Piscator quecom um orçamento anual de aproxi- riam um teatro de vanguarda, polítimadamente 14 milhões de euros. co, voltado para o novo por meio da literatura. Os nazistas, no poder deO SARRAFO – Isso é inacreditável pois de 1933, desapropriaram a assopara os padrões brasileiros! ciação e fazem da Volksbühne um TeaCASTORF – E dentro de Berlim tro de Estado. Depois da Guerra, na somos um teatro estatal pobre. A República Democrática, é assim que a Schaubühne recebe mais do que nós, casa permanece, enquanto a “Freie em termos percentuais, mas é pou- Volksbühne”, a associação dos fundaca coisa. Quem recebe bem mais di- dores, migra para Berlim ocidental. nheiro são o Deutsches Theater e o Depois de 1961, Erwin Piscator volta Berliner Ensemble. Somos um tea- para a Alemanha e funda a “Freie tro do Oriente, e antigamente rece- Volksbühne de Berlim Ocidental”. Enbíamos o dinheiro do Município de tão passam a existir duas VolksbühBerlim oriental. Já o Berliner Ensem- ne. A Volksbühne Oriental retorna a ble era um teatro estadual na época um espírito aburguesado de repertó- rio, parecido com o dos social-democratas dos anos 20 e os políticos da antiga RDA aprovam, ao mesmo tempo em que a platéia se esvazia. Somente nos anos 70 houve um período importante com Benno Besson, um encenador suíço discípulo de Brecht. Foi uma época muito produtiva. Ali trabalhou Heiner Müller, o poeta e dramaturgo mais importante da Alemanha no pós-guerra. Houve uma renovação progressista, todos eram de esquerda. Mas tão de esquerda que não agradavam aos dirigentes comunistas da RDA, com sua concepção pequeno-burguesa. No fim dos anos 70 o teatro estava politicamente quebrado. E com ele muitos daqueles que tinham feito um teatro importante no Leste depois de 1945. O SARRAFO – O senhor assume o teatro no fim dos anos 80... CASTORF – Quando já tinha se esvaziado. Ofereceram-me e eu disse: “Bom, está vazio. E mais vazio do que o vazio não há.” Eu me esqueci que as coisas atingem às vezes superlativos inesperados. Era, contudo, o teatro que tinha me atraído quando eu era estudante e assistia o trabalho de Besson e de tantas pessoas do mundo inteiro que por ali passaram. O que era incomum na RDA, um país cercado. Foi esse teatro que nos anos 70, na minha juventude, me deu coragem para continuar. Era também o teatro da história recente da Alemanha: foi reconstruído em 1954 com mármore retirado do palácio de governo de Hitler, da sua chancelaria. O exército soviético pegou parte daquele monte de mármore para construir o monumento da libertação da Alemanha, no parque do bairro de Treptow, e a outra parte está na Volksbühne. Anda-se ali em cima das lâminas da memória do palácio de Adolf Hitler. É sempre bom não esquecer essa camada. O SARRAFO – Na Alemanha unificada pelo capitalismo, a Volksbühne permanece como um corpo vivo da história. Como o passado do teatro se relaciona com os anos 90? CASTORF – De certo modo é um teatro que continua a se dirigir a uma parte da Alemanha inadaptada para as condições burguesas, tanto pelo passado como por sua atitude crítica. Houve ocasiões em que esse confronto com o sistema de gestão capitalista teve dimensões diretamente políticas, no intuito de apontar as injustiças da nova sociedade. Certa vez, recebi um telefonema do chefe de um partido pós-comunista, esse homem tinha sido meu parente e me ligou às seis horas da manhã. Ele liderava um grupo que tinha sido politicamente castigado porque seu partido tinha ganhado as eleições. Estavam sendo perseguidos, foram despedidos das instituições públicas onde trabalhavam. Iam dar início a uma greve de fome como protesto. Eu tinha acabado de sair do show de um grupo folkpunk escocês e estava bêbado. Nesse estado, como um zelador, fui abrir o teatro de manhã. Eles levaram suas camas de campanha, tiraram as roupas, revelaram as cuecas já feitas do típico algodão branco de uma marca clássica alemã. Vi que estavam bastante bem alimentados. E imediatamente o governo de Berlim me ordenou que eu os pusesse na rua. Então eu disse: “Sou o primeiro que vocês podem botar para fora.” Também abrigamos uma rádio pirata na nossa casa, que fez programas proibidos. Tentamos dar proteção a esse tipo de pessoas. Por aí se percebe que em tal tipo de instituição se pode fazer muito mais do que se pensa. É como uma igreja. Os anos noventa foram muito interessantes em Berlim. Agora tudo se torna normal demais. O SARRAFO – De que jeito se dá essa normalidade? Dezembro 2005 • Número 8 CASTORF – Não se tenta mais fazer coisas juntos. Cada um só pensa em sua aposentadoria, em sua prosperidade, como é que vai continuar até o fim. Não existe mais otimismo. São poucos os que dizem: “Não estou bem, mas gosto de viver e quero fazer alguma coisa outra, por exemplo, com arte.” Pessoas com 20 anos de idade já estão pensando na aposentadoria. Isso é horrível. Nem se começa a viver. O SARRAFO – Não faz falta na Alemanha de hoje um tipo de provocação mobilizadora como as feitas por Heiner Müller? CASTORF – Enquanto havia o comunismo, Müller foi um analista O S A R R A FO muito exato e polêmico. Tentava incluir tudo em sua observações, de Auschwitz até o Gulag, o campo de concentração comunista. Ele era o artista de uma esquerda que se dissipava. Confrontava-se, também, muito abertamente e de maneira cínica, com a auto-satisfação dos comunistas alemães. Era o oxigênio dele. Depois da queda do muro, com o fim do estado comunista, o “pessimismo histórico” de Müller (não sei se seria exato chamar assim!), enfim, sua maneira de encarar a história se tornou obsoleta. Aí ele ficou doente. E não apenas por causa do câncer. Mas para mim o pensamento de Müller até hoje tem grande força. Porque certamente trata-se de um artista marxista, que nos mostra em suas peças, junto aos movimentos das pessoas, os interesses materiais e o interesses do poder. Eu encenei a peça “A Missão” duas vezes. Ela trata de uma revolução exportada. Mas no meio da peça tem uma interrupção. O nobre sonha com o futuro. Diz: “Tive um sonho. Estive em Nova Iorque. E o asfalto estava fervendo.” É uma imagem muito linda. “Sonhei com três cobras. Uma era azul, a outra dourada, e outra branca.” Pressentimos os três continentes: Ásia, Europa e África. O sonhador diz: “Porque me esqueci que saímos de mundos muito diversos.” Mas por um determinado tempo, apesar de 13 tamanhas diferenças, conseguiram fazer algo juntos. Justamente porque tiveram o sonho de fazer algo juntos. Esses três – se quisermos dizer assim – revolucionários estavam praticando uma forma útil de solidariedade. Acredito num renascimento da obra de Müller. Como marxistas não devemos nos acomodar em nada. Não compartilho de nenhuma crença no determinismo da decadência ou coisa do tipo. Sinto falta, às vezes, em certas obras, da interferência de uma dimensão ética ou moral que nos lembre da nossa responsabilidade nesse conjunto de coisas e condições. Edição de Sérgio de Carvalho Processo criativo na Volksbühne MATTHIAS P EES U m livro que, já nos primórdios, apresentou o trabalho de Frank Castorf na Alemanha tinha o título “Teatro do momento”. Como dramaturgista acompanhei nos anos 90 durante cinco anos as fases de ensaio de suas produções, e todas elas se caracterizavam por um trabalho voltado para o momentâneo. Concretamente, tratava-se em geral do seguinte procedimento: os atores, sentados na sala de ensaios ou no palco, já estão esperando que o diretor chegue atrasado. Quando este finalmente aparece, alega ignorância, diz que está despreparado, declara-se incompetente, e todos esperam juntos que alguma coisa aconteça. Talvez esperem momentos. Alguns experimentam figurinos, fazem-se comentários sobre inúmeros problemas de outra natureza, que parecem muito mais importantes, contam-se episódios ocorridos na noite anterior; os atores, cenógrafos, dramaturgistas, pontos, assistentes são instados a fazerem sugestões “construtivas” sobre a maneira de prosseguir, mas estas são rejeitadas logo em seguida em tom irônico, o que acaba provocando perplexidade ainda maior, aprofundando a crise. A crise, a imobilidade, a impossibilidade do teatro – é esse o verdadeiro ponto de partida do trabalho; motivação, engajamento e boa vontade já são o princípio do fim, condição infalível para um teatro ruim – por isso precisam ser combatidos desde o início. Heiner Müller afirmou certa vez que somente uma peça “irrepresentável” serve realmente para fazer teatro; se na leitura da peça já posso imaginar o que vai acontecer no palco, dispensa-se desde logo a sua encenação. Devemos encenar somente o inimaginável, porque só ele merece ser levado ao palco. Talvez seja por isso que o diretor Frank Castorf começa descartando em bloco tudo o que lhe “veio à mente” sobre os personagens, a peça ou determinada cena antes dos ensaios. Porque aquilo que pode ser imaginado antes é apenas o esperado, o calculável, o previsível. Em certo momento, depois de muita repetição quase ritualística da mesma pergunta: “E agora?”, Castorf posiciona os atores no cenário, lançandolhes na cara textos ligados à respectiva cena. Ele declama, resmunga, grita, mastiga o texto para eles, esse texto que vira uma mistura de original literário e comentário espontâneo e que encontra o ator completamente despreparado. É a única maneira que o diretor usa para “mostrar” o que quer (dificilmente ele se levanta da cadeira durante os ensaios, nunca sobe ao palco, para mostrar ao ator o que deve fazer, como se este devesse imitá-lo). Mas o texto, sim, ele o lança no ensaio com uma dicção e uma energia que serve ao ator como modelo de aprendizagem e de interpretação, às vezes depois de semanas, quando estuda a gravação do respectivo ensaio. É raro também Castorf aparecer no ensaio com um texto pronto. As versões de suas peças e até mesmo das dramatizações de romances vão surgindo no momento do ensaio. Nem tampouco fica repetindo as cenas encontradas durante os ensaios, pois segue rigorosamente a cronologia do desenrolar da futura peça. Quando falta um dos atores, ele não pula seus trechos, prefere alterar definitivamente o desenrolar da peça, cortando personagens ou invertendo simplesmente a seqüência. Só bem mais tarde, pouco antes da estréia, começa a repetir, selecionar, descartar, cortar, quando monta as cenas em seu conjunto, lançando então o grupo em novas crises e perplexidades, porque, apesar da eficácia probatória das gravações e das anotações de roteiro feitas por seus assistentes durante os ensaios, ele questiona a exatidão daquilo que está sendo repetido, põe em dúvida o acerto de detalhes ou da seqüência que começa a se definir. Só então fica pronta a estrutura de sua peça. Muitas vezes é só depois da estréia que se pode fazer um balanço geral da peça como um todo, porque antes faltou tempo para um ensaio geral. E aí começa outra crise. Trata-se, agora, de uma crise de energia, de um questionamento geral: será que os atores estão em condições de reunir energia e coragem e compreensão suficientes para enfrentar o construto todo dessa encenação que acaba de erguer-se diante deles como um monstro, será que conseguirão “passar” tudo isso ao público, de uma maneira viva e inteligente, sem afetação, com sinceridade? Castorf é rápido. Pode ser que seus “lances de xadrez” não tenham sido planejados estrategicamente de antemão, mas parece que ele, como um campeão mundial de xadrez, já consegue prever, no momento do lance, ou seja, a partir de um fato cênico ocorrido durante o ensaio, todas as combinações decorrentes, por isso decide na hora, se um episódio eventual se encaixa ou não no contexto total, se vale a pena levar adiante e desenvolver a idéia. Nesses momentos, os atores, que precisam mostrar autonomia em suas propostas cênicas, se orientam totalmente nele e estão dispostos a acatar cegamente as suas decisões. Não parecem levar para o lado pessoal a “rejeição” de uma proposta feita por eles, antes se submetem ao princípio de uma inteligência superior, de uma vista do alto em quarta dimensão, olhando uma cena virtual como que numa perspectiva do futuro. Esse impulso produtivo em que se realiza o que chamamos de “teatro do momento” dura, até mesmo nos dias com oito horas de ensaio, no máximo 30 a 40 minutos, mas é o que basta. Esses momentos não podem ser repetidos, mas são perceptíveis. E mais tarde, lembrando esses momentos no contexto geral, pode-se tentar produzir novos momentos, para combiná-los. Tudo isso não dura mais que quatro a seis semanas. Quanto mais curta a fase de ensaios, mais longa será a peça. O início é protelado indefinidamente, é preciso evitar que se comece, que sejam tomadas decisões, que se estipule quem faz o que e como começar. No fim, a situação se inverte: é preciso evitar que se termine, que a panela perca a pressão, que os atores se sintam (supostamente) “seguros”, que se decida cedo demais a luta pelo todo. Recorte da foto de Sebastião Salgado, publicada no livro Terra Dezembro 2005 • Número 8 O S A R R A FO O exemplo da ação teatral no MST DANIELE R ICIERI E MARIA CECÍLIA G ARCIA U ma das grandes lições práticas que um movimento como o MST pode dar aos artistas, para além da ativação histórica da luta de classes, está na sua capacidade de organização. O crescimento do papel da cultura dentro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, nos últimos anos, é um bom exemplo de uma impressionante capacidade de acumular esforços de aprendizado. Ainda que a ação cultural tenha sempre existido no MST, originalmente ligada às chamadas Místicas e a uma produção espontânea de canções, poesias e peças comunitárias, formadas da experiência de vida dos acampamentos ou assentamentos, foi nos últimos anos que essa produção se sistematizou com a criação do Coletivo Nacional de Cultura do MST. Segundo Rafael Villas B ôas, um dos responsáveis pelas atividades culturais no MST, o Coletivo de Cultura, trabalha com três eixos programáticos: qualificação estética e política de militantes nas linguagens culturais com o objetivo de formação de multiplicadores; produção de um referencial de cultura que se contraponha à lógica da produção cultural do capitalismo; e fortalecimento do contato entre população rural e urbana. O grande crescimento do teatro dentro do projeto cultural do MST dá uma boa imagem desse processo de acúmulo cultural em bases políticas. Desde 2001, o MST tem procurado com mais constância estabelecer parcerias com artistas e intelectuais interessados na produção de uma arte crítica. No caso do teatro, a primeira parceria de cooperação regular, para além das eventuais colaborações com grupos como Ensaio Aberto e Companhia do Latão, ocorreu com uma série de oficinas a partir do método de Augusto Boal. Membros do Centro do Teatro do Oprimido (CTO) trabalharam com os integrantes da Brigada Patativa do Assaré, representante dos 23 estados em que MST atua, num contato que produziu de início várias cenas de Teatro Fórum, sendo os temas das peças definidos pelos participantes. Um desses assuntos recorrentes foi a discriminação racial. O Teatro Fórum demonstrou, assim, “capacidade de identificar problemas de opressão e discriminação que as comunidades acampadas e assentadas tinham dificuldade de expor em reuniões e assembléias”, nas palavras de Villas Bôas, apontando ainda outras questões críticas do cotidiano das pessoas, como machismo, violência doméstica, discriminação dos semterrinha nas escolas da cidade e o preconceito em torno da educação sexual. Este exemplo ilustra bem o potencial de uma técnica teatral para identificar e mobilizar problemas do próprio movimento: “Notamos que no decorrer desses cinco anos de atuação da Brigada Patativa do Assaré começou a se esboçar uma espécie de sistema interno no MST, em que grupos produzem peças, que são registradas por escrito, e o texto é enviado para outros coletivos. Nos encontros nacionais e regionais esses grupos apresentam-se e trocam experiências.” O crescimento do interesse por teatro dentro do movimento fez com que o Coletivo de Cultura passasse a procurar intercâmbios com outros grupos de trabalho e com intelectuais como Iná Camargo Costa, o que representou a abertura de uma frente de estudos ligada ao teatro épico. Nas várias regiões passaram a se organizar trabalhos teatrais com perspectivas de continuidade. Uma oficina coordenada pelo grupo paulista Teatro de Narradores, em outubro de 2004, em Sidrolândia, no Mato Grosso do Sul, bem como seu trabalho com textos de Brecht, estimulou que os grupos já existentes e os multiplicadores passassem a trabalhar o teatro épico. A peça Trapulha, da Brigada de agitprop do pré-assentamento Gabriela Monteiro Distrito Federal exemplifica uma apropriação da técnica épica do texto O círculo de giz caucasiano. A partir de casos como esse, processos de criação coletivizados se expandiram em outros trabalhos apresentados em encontros, mobilizações, cursos, festas e marchas do movimento. Debates com o público sobre os processos artísticos amplificaram o sentido crítico do aprendizado. “Nos debates é estabelecido um processo formativo que qualifica o senso estético dos participantes e proporciona a eles a oportunidade de deixar de ser meros consumidores para se tornar também produtores de peças, músicas, poesias, enfim, de narrativas e imaginários. E, naturalmente, com a circulação das produções, há um processo de aperfeiçoamento constante, de consciência das carências e de tomada de providências para supri-las, seja por meio de oficinas, de leituras teóricas, de debates”, informa Villas Bôas. Foi desse modo que a produção teatral no MST aos poucos abandonou o caráter espontaneísta e assumiu uma perspectiva consciente de sua responsabilidade política e estética. Outros exemplos dessa cooperação ocorreram no estado de São Paulo, a partir de oficinas coordenadas por Douglas Estevan, ex-integrante da Companhia do Latão, que se tornou membro do Coletivo de Cultura do MST e realizou com o grupo Filhos da Mãe Terra, de Sarapuí (SP), a montagem da peça Posseiros e fazendeiros, criativa adaptação da peça Horácios e Curiácios de 15 Brecht. Analogamente, no Rio Grande do Sul foi encenada Paga Zé, livre adaptação da peça Não tem imperialismo no Brasil, de Augusto Boal, feita pela militante Denise Cornelli, do coletivo Peça Pro Povo. A incorporação de procedimentos do Teatro ÉpicoDialético à base do Teatro do Oprimido já formada no MST tem gerado um debate crítico sobre as possibilidades formais e técnicas da experiência teatral do movimento. A principal tentativa tem sido conjugar e não rejeitar experiências, desde que elas sirvam à luta pela emancipação. Esse processo culminou recentemente na Marcha Nacional pela Reforma Agrária, em 2005, em Brasília, quando 270 militantes de mais de 15 estados do país atuaram no Teatro Procissão. O tema previsto era a história da luta pela terra contada do ponto de vista dos camponeses. Para isso, houve a colaboração do Centro do Teatro do Oprimido no estabelecimento da base geral da procissão e os grupos de cada grande região brasileira, já incorporando o teatro épico, desenvolveram as etapas da encenação: a região Amazônica construiu o Balé do genocídio; a região Centro-Oeste trabalhou a etapa Falsas promessas, e contou com a orientação de uma integrante do grupo americano Art and revolution para a construção dos bonecos gigantes; a região Sul produziu a etapa Imperialismo, em parceria com o grupo gaúcho Ói Nóis Aqui Traveiz; e a região Sudeste construiu A farsa da justiça burguesa, encenação originada de uma oficina sobre teatro e dialética ministrada pela Companhia do Latão . A organicidade do MST é calcada no método do centralismo democrático. Isso implica distribuição de tarefas e responsabilidades e o estabelecimento de funções de coordenação para todas as tarefas. A tentativa fundamental é fazer com que o projeto se construa a partir do diálogo com a militância de base. Uma das coordenadoras do Coletivo de Cultura do MST, Evelaine Martines, lembra que a tarefa de desenvolvimento do projeto cultural do movimento exige uma crítica da cultura dominante em seu caráter de classe: “a cultura pode formar identidade desde que não desconsidere seu processo histórico de elitização, em que ela foi tirada da mão dos trabalhadores. E é essa situação que precisa se transformar”. A fundação recente da Escola Nacional Florestan Fernandes (SP), destinada à formação geral de militantes, assinala um momento do MST em que ganha nova importância a formação cultural como um todo. Quando organizada politicamente, a produção cultural revela seu real sentido comunitário. “O ato de ver seus colegas camponeses, vizinhos, familiares, produzindo cultura é potencialmente desalienador, pois em primeiro lugar mostra que todos podem fazer, e a depender de como for feito, mostra que podem existir outras formas estéticas, não contempladas pelos veículos da indústria cultural”, diz Villas B ôas. A aplicação prática do projeto cultural do MST exige um novo modo de organização do imaginário, acentuadamente anticapitalista. Contar a própria história, ser o protagonista na construção do sentido e não apenas um mero consumidor de bens culturais são as tentativas fundamentais dessa luta cultural que deve servir de exemplo ao movimento teatral brasileiro. O S A R R A FO 16 Número 8 • Dezembro 2005 POR UM FOMENTO NACIONAL O movimento Arte Contra A Barbárie fará no dia 25 de novembro um ato público em São Paulo. Assembléia Legislativa, Parque do Ibirapuera, 15 horas É hora! Da aplicação dos recursos previstos em lei para o Fundo Nacional de Cultura Do Fundo Nacional de Cultura atuar exclusivamente por meio de editais públicos Espetáculo A saga de Canudos, do grupo gaúcho Oi Nóis Aqui Traveiz. Foto de Claudio Etges Da imediata aprovação do Prêmio Teatro Brasileiro destinado a núcleos de trabalho, produção e circulação de espetáculos Não à mercantilização! Não à corrupção! Não à despolitização!