Watunna – Medatia

Transcrição

Watunna – Medatia
CIVRIEUX, Marc de. Watunna. An Orinoco Creation Cycle. Edited and translated
by David M. Guss. Austin: University of Texas Press, 1997.
Tradução de Juliana Fausto,
(versão provisória, a ser revisada)
DA INTRODUÇÃO (por Marc de Civrieux)
[2] O Watunna é o compêndio de modelos religiosos e sociais da “gente de
verdade” [true people] ou So’to. São os feitos e ações sagradas dos heróis nos tempos
primordiais. Esses quatro grupos locais [Ihuruhana, Dekuhana, Yekuhana e Kunuhana]
todos falam a língua dos So’to, a mesma que os primeiros heróis do Watunna falavam e
pela qual ensinavam. So’to literalmente significa ‘gente’, ‘homem’, ‘ser humano’, mas
o uso da palavra está restrito àqueles que falam uma língua comum, unidos por sua
origem coletiva. Aqueles que não falam essa língua ou não conhecem o Watunna são
considerados animais. A palavra So’to também significa ‘vinte’, já que este é o número
de dedos de mãos e pés que um humano tem. Ela serve como a base natural para o
sistema de contagem indígena e também é o símbolo para homem.
Para os Marikitare, o termo So’to tem uma significação puramente linguística. O
conceito nativo de tribo não é racial. A tribo adota em várias ocasiões membros de
outras tribos, principalmente mulheres e crianças que, enquanto vivem com a tribo e
aprendem a língua So’to, tornam-se So’to. So’to, o membro da tribo ou o ser humano de
verdade, é reconhecido por sua maneira de falar e não por sua forma física. A mitologia
Marikitare está cheia de exemplos de seres considerados não-humanos (animais,
espíritos invisíveis, xamãs, demônios de toda a sorte) que, para enganar pessoas,
magicamente mudam suas formas e adotam a dos So’to. Qualquer espécie de ser pode
alterar sua forma, mas é a linguagem que a identifica. As tribos aparentemente
‘humanas’ que [3] falam línguas ininteligíveis para os So’to de fato pertencem à
categoria de não-humano. As tribos ocasionalmente assumem formas fictícias, mas sua
língua estranha sempre revelará sua verdadeira natureza. Esses seres são os inimigos das
pessoas reais e podem ser caçados como animais.
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[165] MEDATIA
O CONTO DO CANTOR
Um aichuriaha disse: vou falar sobre huhai e homens agora; sobre povos
[people] e xamãs e como é. Conheço a sabedoria dos antigos. Não sou um huhai. Sou
um aichuriaha, um cantor do Watunna. É por isso que sei alguma coisa. Por causa
disso, posso contar a vocês algo sobre os huhai e os so’to, nós-pessoas que vivemos na
Terra hoje.
Há todo o tipo de espíritos que pode nos ferir. Então temos gente sábia em nossa
própria casa. Esses são os huhai, os xamãs. Eles nos ajudam contra nossos inimigos
invisíveis. Eles nos dão boas colheitas e caça para que não tenhamos fome. Nós
dependemos [depend on] dos huhai para nosso bem-estar. Sem eles, não teríamos nada.
Estaríamos todos vivendo com Odosha e seu povo, os maus espíritos, os senhores das
outras casas.
Nós não sabemos como ver as outras casas. Somos cegos fora de nossas próprias
casas. Elas são todas invisíveis para nós. Também não conseguimos ouvir suas vozes.
Somos como pessoas surdas nas outras casas. Quando entramos nelas, nem sabemos.
Quando olhamos para dentro do céu, não vemos nada. Ele parece vazio. Não podemos
ver as casas deles. Não vemos os avôs daqueles outros povos, os animais e as plantas.
Eles são o Povo do Céu. Vivem lá em cima no Céu. Nós não sabemos deles. Somente
nossos huhai os conhecem. Eles conhecem tudo.
Os senhores [masters] daqueles outros povos, os avôs dos animais, eles sabem
que nós não sabemos. Eles nos apanham e fazem com que nos apaixonemos por suas
filhas. É assim que eles nos fazem seus genros. É por isso que precisamos dos nossos
huhai. Se não tivéssemos huhai, seríamos todos prisioneiros naquelas casas dos outros
povos.
O huhai tem sabedoria real. Ele vê todos os espíritos e fala com eles. Ele
consegue entender. Ele fala com os senhores deles. Ele consegue ver e escutar todo tipo
de pessoa. Ele viaja até o Céu e por toda a [166] Terra, pelos caminhos animais. Ele
conhece todos eles. Ele os vê como eles realmente são. Ele vê no escuro. Ele escuta
tudo. Ele sabe como mudar seus próprios olhos, suas orelhas, suas palavras. Ele bebe o
suco kaahi e aspira pó aiuku para dentro de seu nariz. Essas são as plantas medicinais
que mostram a ele como ver e ouvir. O corpo fica bêbado e cai. O corpo do huhai morre
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mas ele se levanta e vai direto para o Céu. Dá poder a ele, coragem. É assim que ele vai
para o Céu.
Kahu é como nós, gente comum, os so’to, chamamos o Céu. Mas Motadewa é o
nome real do Céu. É assim que os huhai o chamam em sua própria língua. Nós não
conhecemos aquela língua do Céu, a língua dos espíritos [spirit language]. Mas os
huhai, eles são espíritos. Motadewa,é esse o nome do Céu no Céu.
Nós não conseguimos entender a língua dos huhai. Quando eles chamam, eles
cantam como pássaros, como sapos na chuva. Eles nunca param de escutar. Eles nunca
dormem, noite ou dia. Eles veem tudo. Nós não os ouvimos, os senhores daqueles
outros povos. Mas eles o ouvem. Aqueles espíritos são todos uma família. São todos
huhai. Espíritos e huhai, é a mesma coisa. Cada um em sua própria casa. Nós não
conseguimos vê-los. Não conhecemos suas formas verdadeiras, sua língua real. Mas
quando nosso huhai chama aqueles huhai das outras casas na própria língua deles,
aqueles senhores lhe respondem. Eles vêm mansos e dançando, como se fossem
cunhados dele, amigos dele. Como se fossem os próprios filhos dele.
Uma vez quando eu era jovem, jejuei. Bebi o suco kaahi. Aprendi como ver e
ouvir. E então eu viajei. Eu queria me tornar um huhai, um espírito. O velho huhai me
disse: “Vou te fazer um huhai. Quando eu morrer, será você.” Foi o que ele me disse.
Fiz o que ele me mostrou. Fui a Motadewa, ao Céu. Fui a uma terra chamada
Iadinakuwa. Era cheia de comidas e tesouros de toda a sorte. Eu vi todos os tipos de
pessoa lá; pessoas que na Terra chamamos de tapir, pecari, veado. Eles eram pessoas.
Não tinham corpos animais. Eu os vi como eles realmente são no Céu. Eles são apenas
pessoas lá. Eu vi as casas deles e todas as estradas que levam até as casas deles. Eram as
casas dos senhores de cada espécie, os avôs de todos os diferentes tipos de animais. Eu
fiquei amedrontado.
Havia muitas pessoas todas ao meu redor. Elas olhavam para mim de um modo
muito estranho. “Quem é você?”, elas perguntaram. “Você é um so’to? É um huhai?”
Todo mundo falava ao mesmo tempo, cada um deles em sua própria língua. Alguns
deles estavam furiosos. Eles estavam dizendo: “O que você está fazendo aqui? Por que
veio e nos incomoda? Qual é o seu nome?”
[167] Não ousei dizer a eles quem eu era. Eu estava amedrontado demais para
falar. Havia muitos deles e eles eram grandes também. Eles tinham flechas e as estavam
apontando para mim, preparando-se para atirar. Eu só fiquei ali e não me movi. Mais e
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mais continuavam chegando. Eles eram como um bando de pecaris. Perdi minha
coragem. Eu estava enlouquecendo.
Então meu amigo disse: “Estou com você, irmão. Vou guardar você. Fique
calmo. Sou o akato de seu senhor, o duplo celeste dele. Controlo todas essas pessoas.
Essas flechas que você vê são minhas. Eu sei como cuidar deles. Não se preocupe, estou
aqui. Sou seu irmão.”
Eu olhei para ele. Ele não tinha arco nem flechas. Mas os outros tinham. Pensei
que ele estivesse mentindo. Ele não estava se movendo para me defender. Ele estava
apenas falando comigo, não com eles. Não acreditei nele. Eu estava com medo.
Eu disse a ele: “Não reconheço você. Se você é meu irmão, então me defenda.
Mostre-me suas flechas. Fale com eles. Diga-lhes quem eu sou. Diga-lhes para irem
embora.”
Ele não disse nada. Só ficou parado ali. Eu nunca tinha visto ninguém que se
parecesse com ele antes. Agora eu olhava para os senhores de novo. “Por que você
veio?”, eles diziam. “O que quer aqui?”
Aí eles viraram animais – jaguares, águias, pecaris, tapires... Eles estavam me
assustando. Fechei meus olhos. Fechei minhas orelhas. Vi uma investida de inimigos. O
suco kaahi estava me enlouquecendo. Gritei e comecei a correr. Corri para baixo em
direção à Terra. Escapei.
O velho estava me esperando embaixo. Ele havia me mostrado como voar para o
Céu. Ele estava furioso.
“Covarde!”, ele gritou para mim. “Eu estava com você. Você não me conheceu.
Não escutou o que eu disse. Você não tinha olhos nem orelhas, só medo. Eu tinha
flechas. Eram suas, para você. Era eu. Aquele era meu akato lá em cima com você.
Você apenas fechou os olhos e as orelhas. Você não é um huhai. Você é um so’to. Por
que você não respondeu a nenhuma das perguntas dos senhores? Para que você foi lá
em cima? Você não entendeu nada. Ok, agora você vai ficar aqui na Terra. É o lugar a
que os so’to pertencem. Quando quiser se embebedar, pode tomar iarake. É a bebida
para os so’to. O suco kaahi não é para eles. Deixa-os loucos. É apenas para nós huhai,
para nos dar coragem. Só deixa os so’to com medo.
“Agora você será um caçador na Terra. Vai chamar os animais durante os
festivais, dançando e cantando com os outros so’to. Vai apenas chamá-los para caçá-los.
Só será capaz de ver as formas terrenas deles. Você só os matará para comer. Não será
capaz de controlar os senhores ou encontrar o caminho para as casas deles. Se eles o
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apanharem, vão fazer de você seu pri[168]sioneiro. Eles vão levá-lo com eles. Essa é a
punição para o seu medo.”
E então é por isso que eu não sou um huhai. Eu sou apenas um so’to, um
caçador.
Agora estou velho. Eu sou um aichuriaha. É por isso que eu sei algo do
Watunna, um pouco de sua sabedoria. O velho me ajudou. Ele teve pena de mim. Mas
isso foi mais tarde.
Um dia eu estava fora, caçando na floresta. Eu estava chamando os animais em
sua língua terrena para atirar neles. Cruzei com um bando de pecaris. Eu não tinha
nenhuma sabedoria. Eu não conhecia o avô. Eu não conhecia a língua real deles. Os
pecaris me pegaram. Eu não podia controlá-los. Eles me viraram em pecari e me deram
uma mulher pecari. Ela me levou até a casa deles no céu. O senhor dos pecaris me fez
seu genro, um filho em sua casa. Ele soprou encantos em mim para me fazer esquecer.
Eu não lembrava que era um so’to. Eu pensava que era um pecari. Eu me esqueci de
minha própria casa, de minha mãe, de meus filhos, de minha esposa real. E então não
podia escapar. Eu nem queria. Aqueles pecarias me capturaram. Eles me
enlouqueceram.
O velho teve pena de mim. Era o mesmo huhai, o que tinha me mostrado como
voar para o Céu. Ele me viu quando ninguém mais podia. Ele viu que aquela mulher
pecari me tinha. O velho podia ver a casa pecari. Ele me viu indo para lá. Uma noite ele
me enviou um sonho. Ele fez meu akato viajar. Meu akato escapou daquela outra casa.
Meu corpo continuou dormindo em sua rede, mas meu akato foi viajar. Falei com minha
mãe, meus filhos, minha esposa real. Pela manhã estava de volta na casa pecari. Voltou
para o meu corpo e eu acordei em minha rede. Quando levantei, lembrei-me de minha
casa de novo. Meu akato me contou sobre seu passeio. Eu me senti triste. Queria voltar
para casa também, com meu próprio corpo. Eu não sabia como escapar. O velho homem
pecari tinha meu corpo prisioneiro.
Na noite seguinte eu sonhei de novo. Era o velho huhai chamando meu akato de
novo. O akato foi para a casa do velho.
“Você está aqui,” disse o velho. “Aquele huhai pecari tem seu corpo. Você está
aqui porque eu controlo você. Mas seu amigo ainda está adormecido na casa pecari. Ele
não sabe como escapar. Agora eu vou lutar com aquele huhai pecari. Vou tirar o
controle dele. Agora volte para a casa pecari. Entre no corpo de seu amigo e o acorde de
novo. Diga a ele: ‘Esta noite eu fui à casa do velho. Ele quer ajudar você. Ele diz que o
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pecari te possui. Acorde. Lembre-se. Você é um so’to. Você não é um pecari. Sua casa é
na Terra. Peça permissão para retornar. O velho controla o avô do pecari. Ele lhe dará
permissão se você pedir a ele.”
[169] O velho fez o que disse. Ele invadiu a casa pecari e lutou com o avô. Eu
estava dormindo. Foi assim que ele me salvou. Então, imediatamente, meu akato voltou
para a casa. Ele me acordou e me contou sobre a viagem (adekato, sonho). E então eu
escapei da casa pecari. Eu voltei para minha própria casa. O velho estava esperando por
mim com minha mãe e meus filhos e minha esposa real. Minha memória voltou. Eu
sabia onde estava.
Mais tarde, o velho me disse: “Agora eu vou contar a você a história da incrível
jornada de Medatia. Você não pode ser um huhai porque você teve medo lá em cima no
Céu. Mas você teve a coragem de escapar daquela outra casa, então você será um
aichuriaha agora, um guardião do Watunna.”
E foi assim que eu cheguei a ouvir a história de Medatia, o primeiro homem a
viajar para as casas invisíveis. É por isso que eu vou contá-la a vocês agora.
MEDATIA
Quando Wanadi foi embora, a Terra ficou abandonada. Nós chamamos isso de
Wanadi Nistama, “o adeus de Wanadi”. A mandioca secou nos conucos. Nós todos
ficamos doentes. Ninguém mais tinha a sabedoria. Odosha tornou-se o senhor da Terra.
Não havia ninguém mais para lutar contra ele. Wanadi tinha-se ido. Os sábios estavam
todos vivendo no Céu. Não havia nenhuma doença lá; apenas sabedoria, boas colheitas
e felicidade. Wanadi tinha voltado para o Céu. Odosha não podia persegui-lo lá. Ele não
tinha o poder para ir lá. Ele ficou com as pessoas. Ele tornou-se nosso senhor. É por isso
que ficamos doentes e sofremos tanta fome e tristeza. Nós não sabíamos mais. Nós não
sabíamos nada sobre o Céu.
Mediatia era um homem que se virou em huhai por sua própria coragem, por seu
próprio conhecimento. Ninguém mostrou a ele como, porque depois de Wanadi, ele foi
o primeiro. Ele apenas sentou-se em seu banco mágico e foi procurar por Wanadi. Ele
foi direto através do teto de sua própria casa e para cima dentro do Céu naquele banco.
Ele foi para o Céu do mesmo modo que Wanadi. Mas Wanadi não voltou. Medatia
voltou. Ele aprendeu todas as línguas e então voltou para cá no aberto. Ele ficou na
Terra para nos curar, para nos ajudar.
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Depois de Medatia, houve muitos outros huhai na Terra. Eles fizeram a mesma
coisa que ele fez. Eles foram até o Céu para encontrar seu próprio maracá, seus wiriki,
seu poder. Agora eles estão conosco. Eles veem e cantam e curam. Medatia mostrou a
eles todo o caminho.
No começo, ninguém sabia como ir ao alto e entrar na [170] casa dos avôs. No
começo faziam como Mediatia lhes mostrou. Eles iam com seus akato e seus corpos.
Depois eles esqueceram algo. Eles não conseguiam mais ir para o Céu com seus corpos.
Eles apenas enviavam seus akato para lá. É por isso que os huhai hoje sabem menos que
os antigos sabiam. Eles deixam seus corpos dormindo na Terra. Então seus akato
voltam aqui para baixo e os acordam.
No começo, ninguém conhecia a estrada para Motadewa. Medatia a descobriu.
Primeiro ele foi a uma casa chamada Huecheti demadi. Os ventos viviam ali. Eles são
os filhos de Odosha. Eles tentaram soprá-lo para baixo. Medatia apenas se segurou em
seu banco e continuou voando. Então ele chegou a outra casa, chamada Sakihaña. É
onde o Povo Tesoura vive. Eles só ficam pendurados no teto de sua casa, abrindo e
fechando, tentando cortar fora a cabeça das pessoas.
“Fiquem quietos!” Medatia gritou pra eles, e o Povo Tesoura parou. Ele
continuou voando.
Então ele chegou à casa de Medenawa. Ela é uma bela mulher que faz amor com
todo mundo que passa. Se você cair em sua armadilha, ela o leva. Ela vira você em
jaguar e devora. Ela é um mau espírito que apenas se parece com uma mulher. Medatia
não foi enganado por Medenawa. Ele escapou das garras curvas do jaguar. Ela não
conseguiu apanhá-lo.
Então ele chegou a outra casa. Nuna, a lua, vive ali. Ele passou todo o seu tempo
agachado embaixo de uma armadilha, esperando por sua presa. Ele espera pelos
espíritos viajantes que sobem e descem entre o Céu e a Terra. Aqueles que não são
cuidadosos caem dentro de sua armadilha. Nuna os pega e os devora. Medatia não caiu
na armadilha. Ele empurrou Nuna e escapou. Então ele chegou à margem do rio. Ele o
cruzou. Imediatamente, ele chegou a uma encruzilhada. É aí que os viajantes escolhem
seu caminho. Um dos caminhos é preto. Leva até Koiohiña, a Terra Sem Aurora. As
casas são todas cavernas lá. É aí que Odoshankomo vive. O outro caminho é branco. Ele
leva até Motadewa, a Terra Sem Noite. É aí que os sábios vivem.
Medatia parou para decidir. Então ele tomou o caminho branco. Ele passou pelas
provas. Agora ele estava no Céu. Imediatamente ele chegou a Iahuakuda hana, a
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primeira casa do Céu. Os Attitiudi hana vivem ali. Esse povo é muito sábio. Eles
assopram e cantam e curam as pessoas. Eles são os senhores do ahenomadi (sopro) e
adeu (linguagem) e wedinakana (balanço). Os povos nas outras casas todos os escutam.
Eles cantam em línguas estranhas, estrangeiras. Eles nunca dormem ou comem. Eles
ensinaram Medatia todas as línguas das diferentes casas da Terra e do Céu. Eles
disseram [171] a ele: “Mude sua audição”. A princípio Mediatia não entendeu. Então
eles cantaram de novo. Ele mudou sua audição. Agora ele os entendia.
“Agora você pode entrar em todas as casas”, disse o Attitiudi hana. “Você será
capaz de entender as músicas de todo mundo, as músicas de todos os pássaros que são a
família de Wanadi. Você pode chamá-los com suas próprias músicas. Eles virão te
servir.”
Medatia mudou sua garganta também, então ele podia cantar como os pássaros.
Então todos os pássaros começaram a descer da casa deles. Eles chegaram dançando,
encantados pelo canto dele. Eles pensaram que outro pássaro os estava chamando.
“Aqui estamos”, eles disseram. “Você nos chamou. Nós iremos ajudá-lo. Nós somos
seus irmãos.”
Medatia cantou como os sapos, os pecaris, os veados, os mawadi que vivem sob
a água. Ele chamou cada um deles em sua própria língua. Eles responderam ao seu
chamado. Eles lhe ofereceram ajuda. Eles disseram que eram seus irmãos.
Aí eles começaram a falar com Medatia. Medatia entendia suas palavras, mas o
que eles diziam parecia louco. Aquelas pessoas confundiam tudo. Elas não chamavam
nada pelo seu nome certo. Elas não entendiam a maneira pela qual Mediatia chamava.
Os mawadi vieram. Eles disseram: “Aqui estamos. Nós trouxemos alguns
presentes para você. Aqui estão alguns cães e um pouco de mandioca.” O que eles
trouxeram não eram cães, mas jaguares. Não era mandioca tampouco, mas peixe.
Então os Teditumadi, o Povo Relâmpago, veio. “Aqui estamos”, eles disseram.
“Aqui estão algumas redes”. Eram teias de aranha. Não eram redes.
Aí o Povo trovão apressou-se, assustado. “Proteja-nos”, eles disseram a Medatia.
“Este falcão quer nos comer”. Mas aquilo de que eles estavam fugindo não era um
falcão. Era apenas um mosquito.
Aí o avô dos tatus veio. “Estou aqui”, ele disse para Medatia. “Vou te ajudar a
matar aqueles veados”. Mas os veados que ele lhe mostrou eram ratos.
As Estrelas vieram em seguida. “Olhe para nossas lágrimas caindo”, elas
disseram. Mas não eram lágrimas. Eram apenas gotas de orvalho.
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Então Medatia cantou para a avó das abelhas. Imediatamente ela veio dançando.
Ela era mansa. Quando ela chegou, disse: “Cá estou. Estou com sede. Me dê aquela
cabaça cheia de iukuta.” Mas não era uma cabaça cheia de iukuta. Era um casco de
tartaruga cheio de farinha...
Medatia estava triste. Ele não podia entender essas pessoas. Ele disse aos
senhores da linguagem: “Eu não sei o que está acontecendo. Eles estão todos vindo
[172] aqui, falando como loucos. Eu não sei quem é louco, eles ou eu.”
Os senhores disseram a ele: “Aquelas são as línguas dos espíritos [spirit
languages]. Você mudou sua audição e sua garganta. É por isso que você consegue
entender suas palavras e falar com eles. Agora você tem que mudar seus olhos. Mude-os
e você vai entender o que eles estão dizendo. Você vai ver as coisas como realmente
são.
Então os Attitiudi hana assopraram sobre Medatia. Eles assopraram o sopro
ahenomadi, que cura todas as doenças e dá entendimento.
Aí Medatia disse adeus aos Attitiudi hana. O sopro o levou até a casa seguinte,
chamada Iadekuna hana. Outra família de pessoas sábias, chamadas Setawa Kaliana,
vive ali. Eles deram a Medatia algo com que lavar os olhos. Era suco de gengibre e de
pimenta e muito quente. Imediatamente eles disseram: “Você vai mudar seus olhos com
isso. Você será capaz de ver no escuro. Você entenderá tudo. Você os mudará em cada
casa. Cada povo tem seus próprios olhos. Quando você falar com os papagaios, você
verá exatamente como eles. Quando você chegar às cobras, tornar-se-á como elas. Você
será capaz de falar com qualquer um. Você entrará nas casas deles como se elas fossem
suas.”
Esses Setawa Kaliana eram os senhores dos huhai, tanto na Terra como no Céu.
Eles não comem. Eles não dormem. Eles não falam. Eles não trabalham. Eles apenas
ficam sentados ali; suas mãos sobre as cabeças, os cotovelos nos joelhos. Eles veem
tudo. Isso é tudo.
Aí Medatia descobriu por que os homens têm inimigos em todas as outras casas.
Os sábios disseram a ele: “Os senhores das outras casas não são maus. Eles ficam
furiosos quando pessoas que não sabem os machucam. É por isso que eles machucam as
pessoas também. Isso é tudo. Eles entendem as pessoas, mas as pessoas não os
entendem porque elas carecem de sabedoria. Quando elas pescam nos lagos e nos rios,
elas não acham que estão fazendo mal a ninguém. Mas na verdade o que elas estão
fazendo é roubar mandioca dos conucos dos mawadi.”
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Então eles disseram: “Os mawadi realmente ficam com raiva de vocês. Por que é
que as pessoas veem algo e pensam que é peixe quando realmente é a colheita dos
mawadi? É por isso que eles ficam tão furiosos e vêm à terra para machucar vocês. Eles
estão apenas se vingando. Isso é tudo. As pessoas não conseguem entender os mawadi
porque eles têm olhos diferentes. Os mawadi, quando estão com fome, saem para a terra
e caçam pessoas. Isso porque os homens são pecaris para eles. Eles pensam que [os
homens] são pecaris e então eles não estão fazendo nada errado.”
Essas foram as palavras que os sábios disseram a Medatia no Céu. Eles
mudaram seus olhos. Eles ensinaram aos huhai que sobem da Terra. [173] Medatia foi o
primeiro huhai, o primeiro a ir ao céu e ouvir suas palavras.
Imediatamente ele quis experimentar o que havia aprendido. Ele cantou. Ele
chamou os senhores das outras casas. Alguns viam-no como um veado quando vieram.
Outros pensaram que ele era uma aranha. Medatia começou a se admirar: “Talvez eu
não seja um homem”, ele disse.
“Não se preocupe”, os Setawa Kaliana disseram. “Ambos estão certos. Você é
tanto um homem como um veado e uma aranha. Você é tudo da maneira como eles
veem. Você não é um so’to. Você é um huhai. Você pode se mudar em qualquer coisa
que queira. Você é tudo o que os olhos das pessoas veem como, na Terra como no Céu.”
Então Medatia começou a entender os senhores. Suas palavras não pareciam
mais loucas. Eles eram todos seus irmãos, sua família. Ele podia ver e falar como os
mawadi. Ele viu seus cachorros como cachorros, não como jaguares. E ele viu os
mawadi como eles realmente são em sua própria casa, não como sucuris, mas como
pessoas. Ele podia finalmente ver as casas deles também. Ele entrou nelas. Ele sabia que
não estava debaixo d’água, mas no Céu, na casa dos povos, na casa dos huhai.
E esse foi o modo como ele se tornou um huhai. Ele desceu cada caminho e
conheceu sua família de cada uma das casas. Ele falou com todos os huhai, os avôs e
senhores de todos os animais e plantas que vivem na Terra.
Então Medatia entrou em outra casa no Céu chamada Mahekuna hana. Foi onde
ele pediu por seu maracá. Os senhores maracá, os Dedawashi iamo, vivem lá. Esses são
o Povo Morcego que passa todo o seu tempo apenas segurando os maracás. Eles nunca
os balançam. Seus maracás não têm nenhum wiriki. Eles são vazios. Eles cantam
sozinhos sem se moverem. Os senhores apenas têm que os segurar, eles têm tanto poder.
Eles atraem os maus espíritos. Capturam-nos e os fazem seus servos. É assim que eles
curam. Eles tiram fora todo o mal e doença.
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Aqueles Dedewashi iamo deram a Medatia um maracá vazio. Ele tentou fazê-lo
cantar. Não conseguiu. Somente os senhores conseguem. Eles lhe disseram: “Nossos
maracás são vazios. Você vai ter que encontrar seus wiriki em outra casa. Então será
capaz de balançá-lo. Isso lhe dará poder. Os wiriki são espíritos de poder. Eles cantam
dentro do maracá.”
Medatia sentou-se em seu banco e voou para procurar pelos wiriki. Ele foi
procurar outras casas. A viagem foi dura. Tomou toda a sua força. Ele pensou que
estivesse morrendo. Ele prosseguiu. Então, completamente exaurido, ele chegou à terra
mais bonita no Céu, Iadinakuwa.
[174] É aí que todos os sábios vêm encontrar com os akato das pessoas, seus
espíritos guardiães, aqueles que sabem tudo e nunca morrem. Essa terra é cheia de luz.
Não há noite. Nenhum mau espírito jamais vai lá. Os sábios vivem lá em paz. Ninguém
os perturba. Eles nunca ficam doentes.
Um grande lago azul chamado Akuena brilha no centro de Iadinakuwa. Mahewa,
a grande borboleta morfo, com suas celestiais asas azuis, é o senhor do lago. Ele é o
senhor da água do Céu. Ele brilha à medida que voa. Seus servos são Muna, o peixe-boi,
o senhor do leite e da vida e da saúde, e Dinushi, o peixe elétrico que se chama enguia.
Às margens do Lago Akena vive a planta kaahi que ensina como ver. Ela dá
entendimento. Suas raízes bebem o akene, a água do lago.
Medatia estava exausto. Ele perguntou se podia banhar-se no akene. É uma água
muito azul que brilha como Mahewa quando ele voa. Tem sua própria luz. Os huhai de
todas as casas vão ali e atiram dentro os corpos de seus mortos. Eles voltam à vida
imediatamente. Eles [os huhai] trazem os corpos dos feridos também, para os curar, e os
ossos dos animais que eles comem para que a carne cresça neles de volta.
Medatia entrou no akene. Mahewa, a borboleta, voou em sua direção. Ele tinha
uma pequena cabaça azul cheia de água azul. A cabaça era o ovo de Karaneiru, do
macuco. Continha suco kaahi. Era o akene ele mesmo, a água da vida.
“Beba!”, disse Mahewa. E Medatia bebeu.
No mesmo momento sua força retornou. Ele estava saudável de novo. Então
Dinushi tocou seu corpo e soltou um relâmpago. “Neumai”, ele disse. “Ele está morto.”
Então o corpo de Medatia flutuava no akene, mas seu akato ainda estava vivo e
podia ver tudo. Subitamente, Medatia sentiu-se louco. Seu akato saiu voando através de
todas as casas. De uma só vez ele viu luz e escuridão. Ele viu os povos no Céu e o
Odoshankomo em suas cavernas pretas. Ele viu seus pais mortos. Ele viu os espíritos, os
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animais, as plantas. Ele viu a doença e a mágica que mata gente. E estava tudo ali junto
na frente dele, girando e rodando e voando em torno da água do Akuena, no suco kaahi.
Então o akato de Medatia foi para a casa Ennemadi, onde os guardiães dos
wiriki vivem. Esses wiriki são pedras de luz, pequenos pedaços de cristal. Medatia os
pegou e os pôs em seu maracá. Ele tornou-se seu senhor. Seu maracá cantou com a voz
daqueles wiriki.
Ele foi para Matawahuña, à casa dos três pássaros, onde os parentes de Wanadi –
Mudo, Höhöttu e Tawadi – vivem. Com a ajuda do [175] kaahi, ele vomitou todo o
veneno para fora de seu corpo. Seu corpo estava ainda distante, flutuando no topo do
Akuena. Então o akato de Medatia voltou para seu próprio corpo. Ele acordou e o fez
levantar. Não estava morto. Estava ainda vivo. Não tinha ido a lugar algum. Ninguém o
havia movido do Akuena. Agora Medatia tinha o poder de curar os vivos e trazer os
mortos de volta à vida.
Ele então foi para Shiriche Kumenadi, a cada das Estrelas. O avô desse povo é
Hadewa, o peixe. Ele disse a Medatia: “Você veio. Ninguém precisa de você aqui. Nós
temos nossa própria sabedoria. Não precisamos de você. Wanadi é nosso huhai. Ele nos
protege. Odosha não pode vir aqui. Nós não temos nenhuma doença. Nenhuma morte.
Nenhuma escuridão. Mas as pessoas na Terra estão esperando pelo seu maracá, seu
chakara, seus wiriki. Volte para a Terra. Plante suas sementes de kaahi e aiuku a partir
das quais outros huhai aprenderão a ver. Deixe as pessoas ouvirem a seu maracá para
que elas possam ser curadas. Vá! Essa é a casa das Estrelas! Você tem tudo agora.”
Medatia ficou triste. Ele não queria deixar a casa das Estrelas. Então ele pensou:
“Vou fazer o que Hadewa diz.”
Se Medatia tivesse ficado naquela casa, nós não teríamos nenhum huhai. Ele foi
o primeiro professor de nossos huhai. Se ele não tivesse voltado, nós teríamos morrido.
Teríamos passado fome e adoecido Não teríamos nem conucos nem caça. Tudo nos
machucaria. Estaríamos todos vivendo como servos nas casas dos animais. Toda a Terra
ainda pertenceria a Odosha e seu Odoshankomo.
Então Medatia pegou o cabo de seu maracá e desceu de volta à Terra, deixando
seus wiriki cantarem. Ele voltou à casa escura, para Koiohiña onde Kahushawa vive.
Eles também o chamam de Odosha. Ele mora em cavernas e tem muitas pessoas.
Odoshankomo é como os chamam. São maus espíritos que enviam todos os tipos de
doença.
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Medatia entrou nas cavernas e viu todos os prisioneiros e servos de
Odoshankomo lá. Odosha os havia levado da Terra e os virado em Odoshankomo. Eles
não conseguiam se lembrar de que eram pessoas. Eles haviam esquecido tudo. Eles só
conseguiam falar Odoshankomo.
Medatia balançou seu maracá nas fendas, nas cavernas, nos covis dos maus
espíritos. Ele penetrou fundo nas cavernas e expulsou os demônios. Eles voaram
sibilando como tornados, como redemoinhos. Então ele falou com os prisioneiros. Ele
lhes disse: “Lembrem-se, vocês são homens. Vocês não são Odoshankomo.” Ele
devolveu-lhes as memórias e os libertou da escuridão. Eles sonharam com suas próprias
casas na Terra. Lembraram-se do caminho e retornaram para sua própria gente.
[176] Então Medatia entrou nas águas e corredeiras e chegou a Huiio, a casa da
grande cobra onde ela vive com seu povo mawadi. Nós vemos Huiio e os mawadi como
sucuris. Às vezes nós vemos Huiio como o arco-íris. Ela nos traz chuva e colheitas. Ela
também leva doenças às nossas crianças. Medatia viu os mawadi como eles realmente
são – pessoas enormes, poderosas, que caçam e pescam e fazem conucos embaixo
d’água.
Eles tinham muitas mulheres lá. Medatia perguntou-lhes: “Quem são vocês?”
“Nós somos as mulheres”, elas responderam. “As mães e esposas dos mawadi.”
Isso era verdade, mas elas eram mulheres que os mawadi tinham roubado da
Terra. Elas tinham esquecido tudo. Elas não sabiam quem eram. Mas Medatia sabia. Ele
entendia. Ele tinha seus wiriki. Ele podia ver dentro.
“Não”, disse Medatia. “Vocês não pertencem a essas pessoas. Vocês não
nasceram nesta casa. Os mawadi roubaram vocês, foi o que aconteceu. Eles saíram de
suas corredeiras à noite como sucuris e tombaram suas canoas. Eles pegaram seus filhos
e seus maridos. Eles cuspiram o suco de uma planta em seu rosto. Foi assim que eles
tiraram sua memória. É assim que eles lançam feitiços quando roubam mulheres da
Terra. Vocês esqueceram tudo. Vocês se deram a eles. Foi assim que eles arrastaram
vocês para debaixo d’água. Então eles as trouxeram para esta casa. Vocês esqueceram
de sua própria casa lá fora. Vocês perderam sua memória. Estão vivendo na escuridão
aqui.”
As mulheres ouviram as palavras de Medatia e choraram. Então elas foram
dormir e sonharam. Sonhando, elas voltaram para suas casas reais na Terra.
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Quando acordaram, disseram a Medatia: “Acordamos. Agora nos lembramos de
tudo. Recuperamos nossa memória. Nós sonhamos que íamos às nossas próprias casas.
Tudo voltou para nós agora.”
Uma mulher disse: “Eu era só uma menina quando aconteceu. Estávamos fora,
pegando água. Os mawadi saíram das corredeiras e arrastaram-se até a margem. Eles
deslizaram em nossas barrigas. Eles nos engravidaram. Mataram todos os homens.
Então viraram ventos, como furacões. Eles tomaram nossa casa e nossos conucos. Não
sobrou nada.”
Então outra mulher disse: “Nós estávamos pegando água em cabaças na beira do
rio. Eu era muito jovem. Subitamente comecei a sangrar. Era meu primeiro sangue. Os
mawadi sentiram o cheiro lá embaixo na sua casa na água. Quando o sangue caiu no rio,
eles ficaram loucos de desejo. Vieram lá de baixo em turbas. Inundaram as margens e
nossa casa. Levaram-nos para baixo na água.”
[177] É por isso que agora os homens não deixam as mulheres nos rios ou nas
casas quando elas menstruam. É para que os mawadi não as encontrem; então eles não
as levam nem inundam as casas.
Aí Medatia disse às mulheres: “Isso é bom. Vocês se lembram agora. Agora
vocês podem fugir daqui e voltar para suas casas.”
Então Medatia viu os cachorros que os mawadi usam como servos. Não são
realmente cachorros, mas crianças que os mawadi roubam da Terra juntamente com as
mulheres. Os mawadi os enviam de volta à Terra à noite para procurarem outras
crianças. Os homens não os veem como cães quando eles voltam à Terra, mas como
bandos de jaguares.
Medatia balançou seu maracá para chamar Huiio, a senhora da casa mawadi.
Huiio veio imediatamente. Medatia disse a ela: “Diga aos cães para irem todos à
margem do rio e trazerem alguns pecaris para o jantar.”
Não são realmente pecaris que os cachorros caçam quando vão à terra, mas
pessoas.
Então Medatia saiu da água. Ele se escondeu na margem para esperar pelos cães.
Huiio fez o que ele disse. Um mawadi saiu do rio como uma sucuri. Ele dançou.
Cantou. Chamou os cães para fora do rio. Eles vieram todos, dançando e uivando.
Quando chegaram à margem, não se pareciam nada com cães, mas com jaguares.
Medatia estava esperando ali. Ele atirou nos jaguares com suas flechas. Mas ele
não os matou. Ele os virou em crianças. Ele deu-lhes suas formas antigas através do
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poder de suas flechas. O mawadi ficou com medo. Ele arrastou-se. Ele era como uma
sucuri ali à beira do rio. Então ele entrou na água e virou uma pessoa de novo. Ele
voltou para a casa de seu povo e lhes contou o que havia acontecido, sobre Medatia e os
cães.
Então Medatia entendeu tudo. Ele soube que os so’to não vivem apenas na casa
dos so’to ao ar livre, na Terra. Os so’to estão espalhados em todas as casas, tanto as
escondidas quanto as vistas. Eles vivem com toda a sorte de povos como genros e
servos. Eles perdem sua memória e língua. Eles não sabem como voltar para sua própria
casa, para os so’to de novo.
Medatia entendeu. Ele foi à casa de todos os animais, um por um. Ele foi à casa
dos ratos e à casa dos tatus e à casa das corujas. Em cada casa era o mesmo: homens
virados em ratos, tatus, corujas, levados pelos animais enquanto os caçavam na Terra.
Suas famílias não sabiam o que tinha acontecido a eles. Eles estavam perdidos.
Medatia falou com todos eles. Libertou-os dos feitiços.
“Agora nós nos lembramos de tudo”, eles disseram. “As mulheres tatu [178] nos
seduziram. Nós estávamos caçando tatus. As mulheres cuspiram folhas mágicas em
nossas faces. Nós esquecemos que éramos homens caçando tatus. Essas folhas que elas
cuspiram em nossa face nos enlouqueceram. Foi assim que elas nos apanharam e
mudaram nossos olhos. Nós não as vemos mais como tatus, mas como belas mulheres.
Apaixonamo-nos e elas nos levaram para casa com elas para falar com seu pai, o senhor
dos tatus. Então nós nos tornamos genros daquele homem. Esquecemos de nossas
próprias mulheres. ‘Quero ser seu genro’, dissemos ao pai. ‘Ok. Tudo bem’, ele
respondeu, ‘minha filha concordou. Você é meu genro agora.’ E assim nós esquecemos
tudo.
Então Medatia lhes disse: “Eu vim às casas dos animais para resgatá-los. Eu sou
o huhai das pessoas. Eu posso fazer com que os senhores de todas aquelas casas enviem
vocês de volta à Terra com meu maracá. Agora vocês vão deixar essas casas. Vocês vão
encontrar seu caminho de volta sonhando. Vocês vão para casa e vão ver suas mães,
seus filhos, suas esposas de novo.”
Imediatamente os homens viram sua casa em sonhos e quiseram retornar. Eles
disseram a seu sogro, o senhor da outra casa: “Sonhei com minha mãe. Deixe-me ir
visitar minha mãe. Então voltarei.”
“Ok, genro”, ele disse. “Você pode ir.”
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Ele disse isso porque Medatia, o huhai dos so’to, estava controlando aquela
outra casa com seu maracá.
Agora o homem estava realmente feliz. “Bom”, ele diz, “Vou voltar direto pelo
caminho que vi em meu sonho.”
“Ok. Está bem”, responde o sogro. “Mas seja cuidadoso. Não saia falando na
casa dos homens. Esta é a condição. Fique quieto. Não responda às suas perguntas. Eles
não sabem nada de nós. Eles apenas nos caçam para comer nossa carne, isso é tudo.
Você viu nossa casa. Você conhece nossos modos. Guarde nosso segredo. Minha filha
vai com você. Ela é sua esposa. Vai cuidar de você.”
Agora muitos dos prisioneiros humanos nas outras casas são libertados e podem
retornar para suas próprias casas, porque Medatia ensinou outros homens e fez deles
huhai. Eles controlam as outras casas e ajudam as pessoas que foram pegas a escapar. É
por isso que às vezes um homem chega errando de volta para a casa dos humanos. Ele
esteve perdido há muito tempo. Sua família estava de luto. Pensavam que ele estivesse
morto. Agora, porque o huhai foi buscá-lo na outra casa, ele volta.
Sempre que um homem perdido volta para sua própria casa, sua família se
regozija. “Você está aqui! Então você não estava morto afinal. Onde você esteve?
Conte-nos o que aconteceu.”
[179] É isso que todos dizem a ele, sua mãe, seus filhos, sua esposa.
Mas ele não responde. Ele não diz nada por medo da vingança de seu sogro.
Então ele diz: “Eu estava caçando. Aqui está sua filha, mãe. Eu a trouxe comigo. Esta é
minha esposa. Mas tenha cuidado. Não vá olhar para ela durante a noite ou você
morrerá.”
“Ok, filho”, diz a mãe.
Então, à noite, a mãe começa a ficar curiosa. “Onde meu filho esteve todo esse
tempo?” ela se pergunta. “Por que ele não quer me dizer onde esteve? Quem é aquela
mulher? Por que ele me diria para não olhá-la à noite? Quero saber. Está escuro agora.
Todos dormem. Vou pegar uma tocha e olhar.”
Agora a mãe vai até a rede da estranha com uma luz. Mas ela não é mais uma
mulher. Ela é um tatu. A mãe fica com medo e começa a gritar. Ela acorda toda a casa.
“Ficou louco, menino? Isso não é uma mulher que você trouxe. É um tatu! Onde
você esteve? Os tatus te pegaram?” E ela apanha uma vara e começa a bater no tatu. A
mulher tatu sai da rede e corre para fora da casa. Ela segue direto para o caminho
secreto de volta à sua própria casa.
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O filho corre atrás dela, meio louco, gritando. Ele tenta segui-la. Ele não quer
perdê-la.
“Mãe, você afugentou minha mulher!” É isso que ele grita em sua ira.
“Aquela não é minha nora, filho. Aquela não é sua mulher. Aquela é um tatu.
Ela te enfeitiçou. Ela te deixou louco.”
O rapaz segue os rastros do tatu. Então ele os perde. Ele não pode mais ver
aquele caminho invisível para a casa do tatu. Ele perdeu aquela memória da outra casa,
o conhecimento do tatu. É isso que a loucura é para os humanos. Agora ele está feliz.
Ele está livre do feitiço. Ele vê como outras pessoas. Ele fala como um humano. Ele
vive na casa dos so’to. Ele não é mais um prisioneiro.
*
*
*
DO GLOSSÁRIO [191-211]
Adekato: a jornada do akato, que é recontada para seu corpo na forma de sonhos. O
adekato é considerado uma jornada perigosa, pois, sempre que sai do corpo, o akato
está em constante perigo de ser capturado por Odosha.
Aichudiaha [aichuriaha]: Literalmente o ‘aichudi’ ou ‘homem da música’ [song man],
este termo refere-se ao guardião do Watunna. Posição que não é nem hereditária nem
paga, há, no entanto, em cada aldeia um pequeno grupo que anciãos que guarda e
perpetua a tradição; Apesar de aichudi referir-se às músicas curtas e mais orientadas ao
ritual, o aichudiaha é o guardião tanto dessas quanto das mais publicamente apreciadas
Watunna. Esse termo é sinônimo de ademi e edamo.
Akato: o espírito ou duplo companheiro do corpo, que desce do Céu para ocupá-lo no
nascimento. Todos os akato são eternos, e, quando o corpo morre, o akato retorna para
viver no Céu mais uma vez. Uma causa principal de morte é a perda do akato, que gosta
de viajar à noite, e por isso corre o risco de ser capturado por Odosha.
Conuco (Adahe): Grandes roçados encontrados por toda a região da grande bacia
Amazônica. Conuco é o termo usual espanhol, apesar de seu uso ter sido de fato
adotado por muitos índios. Entre os Makiritare, os conucos são limpos pelos homens e
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plantados e mantidos pelas mulheres. O principal cultivo é a mandioca amarga, mas
mandioca doce, banana, abacaxi, cana-de-açúcar, pimenta, abóbora, batata doce, tabaco
e cabaça também são encontrados.
Hana (também Ana): Sufixo que significa pessoas, ou povo, como em Kahuhana, 'povo
do Céu (Kahu)'.
Huhai (pronuncia-se 'Fhufhai'): O xamã ou curandeiro que é responsável pela saúde e
bem-estar de sua aldeia. Ele cura e defende contra xamãs inimigos e Odoshankomo,
resgata akatos sequestrados, avalia e vinga todas as mortes, e controla a caça. O
primeiro huhai humano foi Medatia, que começou a linha dos huhai que foram os
primeiros chefes dos so'to. Diz-se que os huhai de hoje são consideravelmente menos
poderosos que esses primeiros grandes chefes-xamãs.
Kaahi: Um alucinógeno feito dos cipós de uma Malpighiaceae do gênero Banisteriopsis
(há várias espécies), que é preparado e tomado em forma líquida. Como com aiuku e
akuhua, o uso de kaahi entre os Makiritare é restringido aos huhai, que o usam para
viajar ao Céu e fazer contato com o mundo invisível. Intimamente relacionada com a
palavra para Céu, Kahu, kaahi é seu equivalente, crescendo em seu centro, ao lado do
Lago Akuena, e misturando-se com suas águas. Um dos alucinógenos mais difundidos
entre os povos nativos da América do Sul, também é conhecido como caapi, yage e, no
Equador, como ayahuasca, o 'cipó do homem morto'.
Maracá: O chocalho de cabaça do xamã, cujas grandes propriedades mágicas são
atribuídas ao wiriki dentro dele. O maracá, que foi criado Wanadi, é usuado
virtualmente em todas as atividades xamânicas.
Odosha: Também conhecido como Kahu e Kahushawa, Odosha é o mestre do mal e é a
encarnação de todas as forças negativas do universo. Nascido da placenta de Seruhe
Ianadi, Odosha vive com seu Odoshankomo em cavernas escuras, em uma terra
chamada Koiohiña e está envolvido em uma constante luta para dominar a Terra.
Odoshankomo: O povo de Odosha, os demônios ou maus espíritos.
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Wanadi: Deus, herói da cultura e proto-xamã, todos em um, Wanadi é a força ('luz')
incognoscível e não vista no Céu, que desde o seu adeus à Terra não toma parte nos
assuntos dos humanos. Criado por Shi, o sol, foi Wanadi (através de seus damodedes)
que estabeleceu a ordem como ela é conhecida hoje entre os so'to.
Wiriki: Pequenos cristais de quartzo conhecidos como as 'pedras de poder do xamã',
com as quais Wanadi ele mesmo foi criado por Shi. Cada xamã, durante sua iniciação,
deve viajar ao Céu para receber seus próprios wiriki, que ele então põe em seu maracá
junto com as raízes das drogas do xamã, aiuku e kaahi. Quando um xamã morre, seu
maracá permanece na Terra, mas seus wiriki retornam ao Céu com ele. Os Makiritare
dizem que há muito tempo todas as pessoas foram criadas de wiriki.
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