AS RASURAS NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DE POEMAS EM

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AS RASURAS NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DE POEMAS EM
Revista Eletrônica de Educação de Alagoas
Volume 01. Nº 01. 1º Semestre de 2013
AS RASURAS NO PROCESSO DE CRIAÇÃO DE POEMAS EM SALA DE AULA
Cyntya Mayryele Assis dos SANTOS1
Resumo
Nesse artigo iremos observar as rasuras que acontecem quando uma dupla de alunos cria um
poema, sem esquecermos que o processo de produção textual carrega uma “tensão” entre
aquele que escreve e aquilo que será escrito, buscando o sentido "correto", "justo" e/ou
"preciso" de cada termo que emerge no movimento próprio da redação de um texto que está
sendo produzido. Tomaremos como base teórica para as análises os estudos de Calil (2008),
Felipeto (2008), entre outros pesquisadores que estudam sobre erro, rasura e suas implicações,
entre outros temas que se referem ao processo de escritura de uma díade. Faremos uma
reflexão sobre a primeira e a segunda versão dos poemas de alunos de uma turma de 2ª série
do Ensino Fundamental de uma escola filantrópica do município de Maceió e mostraremos as
quatro operações linguísticas como método para analisar as rasuras apresentadas nas versões.
Os alunos dessa escola participaram do projeto intitulado “Equívoco, Erro e Cria(n)ção: os
(des)limites do texto”, coordenado pelo professor Eduardo Calil, nos anos de 2001 e 2002.
Usaremos o ELAN como suporte metodológico.
Palavras-chave: Poemas Inventados, Escritura, Rasuras, Operações Linguísticas e Tensão.
Introdução
A particularidade dos manuscritos escritos em contexto escolar abre um campo de
estudo tão amplo quanto pouco explorado até o momento, tanto por estudantes de linguística,
como outros pesquisadores.
A partir de Calil (2008), consideramos que a expressão “manuscrito escolar” está
longe de ter uma conotação negativa. Para o autor, “ela é proposta para que se marque uma
diferença com as outras condições de produção como aquelas ligadas ao “texto literário” e o
que ele guarda de seu valor estético”.
O processo de escritura e o ato de escrever, que acontecem na escola, são mobilizados
por razões das mais diversas. O aluno escreve porque é preciso, porque é condição para ficar
na escola, porque o professor solicita, porque o livro didático de língua portuguesa propõe,
porque está estudando, porque está na escola e por vários outros motivos.
Quando somos impulsionados, ou forçados, a escrever nos deparamos com as tensões
que o processo de escritura nos causa e muitas vezes interrompemos o fluxo do texto e
Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL, Especialista em
Docência do Ensino Superior pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL e Pedagogo pela
Universidade Federal de Alagoas – UFAL e Concursada pela Secretaria do Estado de Educação e do
Esporte – SEEE, desenvolvendo a função de Coordenadora Pedagógica.
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apagamos o que havia sido escrito. Dessa maneira temos que escolher novas palavras,
reservar outras, rasurar algumas, eliminar parágrafos inteiros, que possam causar qualquer
ameaça ao texto.
Concordamos com Calil e Felipeto (2008), quando colocam que “essa tensão pode ser
facilmente reconhecida em qualquer escrita cotidiana, mas também em processos mais
intensos e elaborados como aqueles que acompanham a produção literária, científica ou
publicitária, para as quais as rasuras – condição para a reformulação – são inerentes e
fundamentais”.
Essas forças que atuam nos escreventes durante o ato de escritura pode trazer dois
pontos diferentes, mas que fazem parte do mesmo processo. O escrevente tanto pode ser
“senhor” e “escravo” do seu próprio texto.
“A rasura é um dos fenômenos que marca essa tensão entre o lugar de controle e
índice de submetimento do sujeito.” (Calil e Felipeto, 2008).
Em nossas análises buscaremos mostrar as quatro operações lingüísticas que surgem
nas rasuras dos manuscritos. Essas operações são a supressão, a substituição, a adição e o
deslocamento, que serão detalhadas a seguir.
As operações lingüísticas
Na supressão o termo escolhido é riscado, rasurado e não é substituído: são rasuras
que marcam a mais radical das operações de reescrituras, pois o autor deixa de lado aquilo
que havia escrito e não o troca por outro termo, letra, palavra ou frase. Segundo Felipeto
(2008), “diante de uma dificuldade, o sujeito decide suprimir o fragmento e abandoná-lo”.
Nas versões analisadas, não encontramos nenhum vestígio de supressão, o que nos
surpreendeu e o que nos levou a supor que, como os alunos estavam no final do ano letivo,
estavam mais familiarizados a produção de textos poéticos. Porém, isso não passa de
suposições.
Na substituição um termo é trocado por seja por ele mesmo, seja por outro. Substituir
um elemento por outro é suprimir o primeiro desses elementos, enquanto que o segundo é
acrescentado e colocado no lugar do primeiro.
Quando um termo é eliminado e volta à cena, essa hesitação deixa clara a dificuldade
do escritor novato em escolher um termo melhor. Quando um termo é rasurado e substituído
por outro, essa correção seria indício da criatividade do escritor, mesmo se a forma final não
corresponder a mais correta.
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Esse tipo de operação aparece com mais freqüência, se fizermos a comparação entre as
duas versões. Na primeira versão a substituição é quase nula e na segunda versão as
substituições aparecem em cinco rasuras do poema. Essas substituições serão mostradas mais
a frente.
O deslocamento acontece quando um elemento escrito, seja ele uma letra, sílaba ou
palavra, é transferido de uma posição para outra.
A adição é definida como a operação de quando um elemento é acrescentado ao
escrito. Podemos dizer que, quando os alunos escrevem toda uma frase e retornam ao que
escreveram para fazer a leitura, por exemplo, e notam que “esqueceram” alguma letra e a
escrevem, mesmo que seja entre o que já está escrito, esses alunos fizeram uma adição.
Segundo Felipeto (2008), nos textos analisados por Fabre (1987), a adição é a
operação que responde pela reflexão metalingüística, ou seja, a adição estaria relacionada ao
tratamento do sentido. O mesmo não acontece com as outras operações, ao menos nos textos
analisados por Fabre. Assim, as outras operações lingüísticas – supressão, substituição e
deslocamento - não surgem de uma atividade metalingüística.
Para que haja uma melhor análise da ocorrência dessas operações é necessário que se
tenha acesso ao processo de escritura em ato. Esse acesso pode ser feito através de filmagens,
como é o caso de nossa pesquisa de mestrado, que aborda as rasuras escritas e orais nesse
processo tal complexo.
Segundo Calil (2008), essas operações podem ainda se manifestar das mais diversas
formas:
Rasura “riscada”: caso em que se anula o que se escreveu, de modo geralmente visível,
permitindo ao leitor recuperar o texto rasurado. Esta forma também poderia aparecer
como “rasura apagada”, quando o scriptor apaga com uma borracha, mas deixa os
vestígios que permitem ler o que havia escrito.
Rasura “borrão”: casos em que se anula o que foi escrito, mas que não é permitido ler o
que foi rasurado, cobrindo todo o escrito ou parte dele com uma mancha de tinta opaca ou
ainda apagando completamente os traços do escrito.
Rasura “branca” ou “imaterial”: somente se tem acesso a ela pela comparação de versões
sucessivas de um manuscrito, pois o scriptor a produz enquanto copia a versão anterior.
(Calil, 2008, p. 21)
Ainda para Calil (2008), “do ponto de vista do espaço da folha de papel, as rasuras
podem aparecer como:
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Rasura “linear”: aquelas apresentadas em uma mesma linearidade, em que um elemento
(letra, palavra, frase, parágrafo) pode ser riscado e imediatamente reescrito na
continuidade da linha.
Rasura “sobreescrita”: em geral incide sobre uma letra, uma parte da palavra ou sobre
palavras curtas, em que se escreve sobre aquilo que já estava gravado.
Rasura “interlinear”: marcas feitas entre o espaço de duas linhas.
Rasura “marginal”: escritos que aparecem à margem do texto, podendo referir-se um
comentário sobre o que foi escrito ou propor a entrada de um novo elemento ao texto;
geralmente elas são indicadas por setas, chaves, asteriscos, números e são produzidas
após a escrita do texto. (Calil, 2008, p. 21-22)]
Os dados e a análise
1. BEIJA-FLOR
2. O BEIJA-FLOR XUPA A FLOR
3. SEM QUERE PARAR, PEGA
4. O NEQUITA E VAI TRABALHAR.
5. O BEIJA-FLOR VAI PRO
6. TRABALHO SEM HORA SEM
7. PRESA PARA CHEGAR
8. SO QUE SUGA O NEQUITA
9. DAS FLOR QUEM TEM LA.
10. O BEIJA FLOR VAI PO
11. [C]JADIM SUGA O NEQUITA
(primeira versão)
Na 2ª linha da primeira versão, a dupla passa a caneta de uma maneira que a letra F, da
palavra FLOR, fica mais escura do que as outras letras da linha, e do poema. Não podemos
considerar que aqui exista uma operação lingüística, mas que existe uma rasura borrão.
Já na linha de número 11, a dupla realiza a operação lingüística de substituição quando
no lugar da letra C, coloca a letra J. Nesse mesmo episódio, podemos considerar acontece
uma rasura sobreescrita, pois a dupla escreve o J por cima da letra C, formando assim a
palavra JADIM (jardim).
Analisando a transcrição da 1ª versão, podemos observar que tanto as operações
lingüísticas e os tipos de rasuras não aparecem de forma considerável. Porém, quando
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passamos a comparar o que aconteceu na segunda versão em comparação a primeira, essa
incidência se torna mais relevante para o trabalho. Vamos agora, analisar a segunda versão
tendo como contrapartida a versão anterior.
1. O BEIJA-FLOR (operação de adição)
2. O BEIJA-FLOR [X]SU[P]GA A FLOR
3. SEM QUERER PARA[ ] PEGA
4. O NEQUITA E VAI TRAB[O]ALHAR.
5. O BEIJA-FLOR VAI P[O]ARA O
6. T[A]RABALHO SEM HORA
7. SEM PRESA PARA CHEGAR
8. SÓ QUE SUGA O NECTA
9. DAS FLOR QUE[ ] TEM LÁ.
ES
10. O BEIJA-FLOR VAI
11. POR JADIM SUGA O NEQUITA
12. O NECTA DA FLOR
13. DE JASMIM
14. O BEIJA FLOR NO
15. JARDIM, NÃO TEM
16. MUITA SAIDA
17. PEGAAFLOR PREFERIDA
(segunda versão)
Na segunda versão as operações lingüísticas começam a aparecer desde o título do
poema quando a dupla acrescenta o artigo O antes da palavra BEIJA – FLOR. Na linha 2, os
alunos fazem duas operações de substituição na palavra XUPA (1ª versão), trocando as letras
X e P, pelas letras S e G, respectivamente, dando origem a palavra SUGA. As letras foram
escritas umas sobre as outras e dessa maneira são rasuras sobreescritas. Então, na linha 2,
existem duas operações de substituição e duas rasuras sobreescritas.
Na linha 3, ocorre a operação de adição na palavra QUERER (2ª versão) e tinha sido
escrita anteriormente QUERE (1ª versão) e uma operação de supressão, já que a dupla tinha
escrito na primeira versão PARAR e na segunda versão escrevem PARA, retiram o R.
Nas linhas 4, 5, 6, 8 e 11 as operações de substituição: “O” substituído por “A” (linha
4), “O” substituído por “A” (linha 5), “A” substituído pelo “R” (linha 6) e “NEQUITA”
(linhas 8 e 11 da primeira versão) substituído pela palavra “NECTA” (linhas 8 e 11 da
segunda versão).
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Já na linha 9, a dupla adiciona a letra “S” ao “DA” (primeira versão), “RES” a palavra
“FLOR” (primeira versão) e retira a letra “M” da palavra “QUEM” (primeira versão),
deixando-a “QUE” (segunda versão). Assim as operações são de adição, adição e supressão,
respectivamente.
As linhas 14, 15, 16 3 17, são adicionas na segunda versão, criando assim uma nova
estrofe para o poema da que havia sido escrito anteriormente. Na linha 17, observamos que há
uma adição da letra “A” entre a palavra “PEGA” e a palavra “FLOR”. Podemos observar
também que a letra “A” foi adicionada depois das outras duas palavras por que não existe um
espaço entre as três palavras. Dessa maneira, existe na linha 17 mais uma operação de adição,
além de toda a estrofe.
Apesar de acreditarmos que a análise foi bem sucedida, ela poderia ter sido mais
detalhada se tivéssemos acesso à filmagem da 2ª versão do poema “beija-flor”, escrito pela
dupla.
Não tratamos aqui das rasuras orais que ocorrem durante os dois processos, pois não é
nossa intenção para esse trabalho, porém elas são bastante relevantes para entendermos como
as operações lingüísticas surgem.
Algumas considerações
As rasuras, ou suas formas, operações lingüísticas, nos mostram o quando é doloroso
escrever um texto, porém se vivemos em situação escolar ou acadêmica não conseguimos
parar de produzir, mesmo que essas produções não sejam consideradas corretas.
Como vimos na análise dos dados, nem toda operação lingüística de rasura aparece no
poema, nem na primeira, nem na segunda versão, como é o exemplo da operação de
deslocamento, que pode ter se perdido por não termos acesso ao processo de produção da
segunda versão do poema.
Portanto, não é só observando o texto em seu estado final que podemos analisar todas
as operações de rasura, mas sim através de todo o seu processo, desde a consigna do
coordenador da atividade.
Referencias Bibliográficas
CALIL, Eduardo. Escutar o invisível: escritura & poesia na sala de aula. São Paulo: Editora
da UNESP; FUNARTE, 2008.
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FELIPETO, Sônia Cristina. Rasura e Equívoco no processo de Escritura em Sala de Aula.
Londrina: EDUEL, 2008.
CALIL, Eduardo; FELIPETO, Cristina. “Derrapagens do dizer em processos de escritura a
dois: efeitos de escuta, índices de não-coincidência”. In: DEL RE, Alessandra;
FERNANDES, Sílvia Dinucci (orgs.). A linguagem da criança: sentidos, corpo e discurso.
Trilhas Lingüísticas, série 15, Cultura Acadêmica Editora, Laboratório Editorial, FCLUNESP-Araraquara, (pp. 135-164), 2008.
Anexos
Primeira versão:
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Segunda versão:

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