Ressignificando a Roda

Transcrição

Ressignificando a Roda
UNP – UNIVERSIDADE POTIGUAR
ALQUIMY ART
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ARTETERAPIA
RESSIGNIFICANDO A RODA
JORNADA ARTETERAPÊUTICA RUMO AO SELF
GRAZIELA AYRES FERREIRA DIAS
NATAL
2005
GRAZIELA AYRES FERREIRA DIAS
RESSIGNIFICANDO A RODA
JORNADA ARTETERAPÊUTICA RUMO AO SELF
Monografia apresentada à Universidade Potiguar,
RN, e ao Alquimy Art, SP, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Especialista
em Arteterapia.
Orientadora: Profª. Drª. Cristina Dias Allessandrini.
NATAL
2005
UNP – UNIVERSIDADE POTIGUAR
ALQUIMY ART
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU
RESSIGNIFICANDO A RODA
JORNADA ARTETERAPÊUTICA RUMO AO SELF
Monografia apresentada pela aluna Graziela Ayres Ferreira Dias ao Curso de
Especialização em Arteterapia em __/__/____ e recebendo a avaliação da Banca
Examinadora constituída pelos Professores:
Profª. Drª. Cristina Dias Allessandrini, Orientadora e Coordenadora da Especialização.
Profª. MsC. Deolinda Florim Fabietti, Coordenadora da Especialização.
___________________________________________________________________
Profª. Dnda. Irene Gaetta Arcuri, leitora crítica.
“O esplendor de uma pessoa que descobriu tudo
que se passa dentro dela é extraordinário porque, ao
se tornar consciente, tudo que é falso desaparece e
tudo que é real desabrocha.
Exceto isso, não existe nenhuma transformação
radical possível.
Nenhuma religião pode lhe dar isso, nenhum
messias pode lhe dar isso.
É um presente que você tem que se dar”.
OSHO, 2003.
Aos meus filhos, Lucas e Gabriel,
Ao meu pai Ronaldo,
por terem me ensinado a amar.
A minha mãe, Genoveva,
que numa luta incessante,
me ensinou a me amar.
À
Lucia
Carvalho
que
me
falou
sobre
a
Especialização no momento certo.
A todas as colegas, professores, coordenadora e
supervisora do curso, pois cada um a sua maneira,
me ajudou a percorrer essa trajetória.
A Núbia Rabelo Bakker Faria pelo apoio e
orientação no trabalho.
A Djackon Rocha pelo incentivo e “grounding”
nessa jornada.
A Marcelo que com seus gingados e esquivas
participou da minha jornada.
A Allessandrini que com sua energia aquariana me
instigou a ir em frente.
Muito grata!!!
RESUMO
A presente monografia é um relato da trajetória da autora, ao longo do curso de especialização
em Arteterapia em que aponta aspectos de seu crescimento pessoal mobilizado pela vivência
do processo arteterapêutico. O trabalho faz uma analogia entre o símbolo da roda e uma carta
de tarô, explicitando o processo de individuação de Jung como base teórica dessa jornada. As
vivências mais significativas de alguns módulos do curso são descritas de modo a exemplificar
a prática arteterapêutica e a experiência pessoal da autora. Um trabalho de ateliê
arteterapêutico, no formato da Oficina Criativa (Allessandrini, 1996) foi realizado com um
grupo de funcionários de uma empresa, onde é destacada a participação de um dos integrantes
para a realização de um estudo de caso, com enfoque no processo de individuação.
Palavras Chave: roda, individuação, Arteterapia,
ABSTRACT
The authoress focuses on her own development through the art therapy process. She shows the
links between the wheel as a symbol and a tarot card, bringing Jung’s individuation process as
the theoric basis on this journey. Besides, she also brings a description of some workshops and
notes about a client that went through the same journey.
Key words: Art-therapeutics, wheel, individuação
SUMÁRIO
1 O SURGIMENTO DA RODA
10
1.1 TRAJETÓRIA DE VIDA
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1.2 ENCONTRANDO O TEMA
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2 TEORIZANDO SOBRE A RODA
18
3 FAZENDO A RODA GIRAR
28
3.1 VIVÊNCIAS PESSOAIS
29
3.2 O ESTÁGIO
37
4 COMPREENDENDO A RODA
49
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
51
6 ANEXOS
52
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1 O SURGIMENTO DA RODA
“Cada pessoa é um poema esperando para ser escrito”
(Hycner, 1995, p.119)
11
1.1 TRAJETÓRIA DE VIDA
Nasci em Brasília, quando a cidade também nascia. Filha única (com dois irmãos mais
novos) de um casal que estudava e trabalhava. Fui primeira filha, neta, sobrinha, o que não me
dava muitas possibilidades de parceiros para brincar em casa. Tinha uma babá que descia
comigo do prédio para o parquinho todas as manhãs. Dentre muitas brincadeiras, adorava
especialmente um lugar onde podia brincar no barro vermelho. Achava lindíssima aquela cor.
Quando chovia, então, era uma delícia, pois com o barro molinho eu mesma construía e
reconstruía brinquedos que levava para casa. Eram muitas as broncas para não brincar na
“lama suja”
A escola era a da quadra Escola Experimental 305 Sul – escola pública que naquela
época literalmente “experimentava” modelos educacionais para serem implementados no
Brasil afora. Adorei ser “cobaia” desses experimentos, pois a escola era repleta de material
didático, livros, teatro, quadra, e eu, muito “metida”, adorava participar de todos os projetos.
Era monitora da biblioteca, ajudava os professores nas decorações das festas, participava de
todas as peças de teatro, lia poemas durante a Hora Cívica (em plena ditadura, éramos
obrigados a hastear a bandeira numa cerimônia com todos os alunos fardados, com a mão no
peito, cantando o hino nacional em coro, uma vez por semana).
A partir da 5ª série, além do ensino regular, tínhamos no outro horário que freqüentar a
escola parque. Lá tínhamos aulas de Educação Física, Educação Artística (com aulas de
músicas, teatro e artes) e Artes Industriais (tipo profissionalizante) com oficinas de madeira,
couro, metal, cerâmica e confecção, em cursos oferecidos semestralmente. Tive professores
super “engajados”, que conversavam conosco sobre política, censura, explicavam peças de
teatro, filmes, “músicas proibidas”. Lá tive oportunidade de lidar com o barro novamente nos
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enormes tornos e fornos da oficina de cerâmica. Foram momentos fascinantes, eu os agradeço
até hoje.
Na adolescência, tive que mudar de escola, pois mudei de bairro. Não tive mais
contato com a arte dessa forma intensa. Entretanto, como minha mãe sempre gostou de arte,
minha casa sempre teve móveis e objetos antigos, livros de arte, música clássica (“As Quatro
Estações” – de Vivaldi tem “cheiro e gosto” de café de manhã de domingo). Íamos a todos os
balés e peças de teatro que chegavam até Brasília (naquela época eram raros!).
Ainda durante a adolescência, fomos morar na Inglaterra e lá tive oportunidade de
viajar, conhecer outros países, culturas, assistir concertos, óperas, balés, peças de teatro. Uma
vez, no museu de Van Gogh, em Amsterdã, cheguei a sentar na frente de um quadro e chorar
de emoção. O colorido da obra me fez penetrar nos campos floridos de trigo e girassóis. Ali
percebi como a arte tem o poder de mexer com a emoção.
Comecei a trabalhar aos 17 anos, recém-chegada desta temporada fora do país.
Sempre gostei de crianças e fui dar aula de inglês. Precisei fazer um treinamento em São
Paulo e me senti “adulta” nessa primeira viagem profissional. Dando aulas de inglês, tinha
autonomia para utilizar também outros recursos em sala de aula como pintura, desenho,
teatro, dança...
Voltei à Inglaterra para aperfeiçoar o inglês, e estudei turismo e dança. Tive algumas
experiências como garçonete, babá, vendedora de sorvete (aliás, num teatro maravilhoso) para
garantir meus cursos e não ter que voltar logo. Entretanto, fui “chamada” de volta para
gerenciar uma agência de turismo que meu pai estava abrindo em Brasília. Foi difícil voltar
para casa dos pais, depois de sentir o gosto de ter minha própria casa e sonhos.
Fui morar em Natal num impulso de “independência”. Trabalhei dando aulas de
inglês, conheci o pai dos meus filhos, casei e passei no vestibular para Pedagogia. Foi tudo
muito rápido. Abrimos, junto com outros sócios, uma filial da agência de turismo e em
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seguida tive meu primeiro filho, Lucas. Fui viver meu momento MÃE e entre fraldas, livros e
aulas de inglês fui seguindo na universidade. Veio o segundo filho, Gabriel, e continuei nesse
jogo corrido de trabalhar, estudar e cuidar de filhos pequenos. Foi um momento cheio de
“atribulações” mas ao mesmo tempo inesquecível. A carreira solo da maternidade, cuidar,
amamentar, ver o primeiro sorriso, primeiros passos, tombos e palavras é uma das “carreiras”
mais fascinantes que existem.
No mês da minha formatura me separei e logo em seguida, junto com três sócias, me
“casei” com uma escola. Iniciar um projeto como esse foi um trabalho árduo, mas também um
momento muito rico, com descobertas, novas amizades e muitos planos.
Tudo acabou sendo interrompido por questões financeiras e precisei me afastar da
escola e dos sonhos. Fui trabalhar no serviço público, numa área completamente diferente.
Tive que enfrentar muitos obstáculos para demarcar meu território. Fiquei por cinco anos,
venci meus limites e fiz um bom “pé de meia”.
Perdi meu pai (dor imensa!), saí desse emprego e não tinha para onde voltar: não era
mais sócia da escola, estava afastada de sala de aula há tempos e vivia um relacionamento
conturbado. Via minha vida girando como uma roda. Sentia-me perdida.
A contragosto, mas pensando nos meus filhos, vi-me forçada a voltar para Brasília e lá
trabalhei por quase um ano no governo. Apesar de ser na minha área, ter muitas viagens e um
salário razoável, tudo era muito maçante, sem vida e sem cor. Sentia-me como Chaplin em
“Tempos Modernos”, fazia tudo mecanicamente, sem pensar. Precisava “respirar” - encontrei
um atelier de cerâmica, perto da casa da minha mãe. Lá vivi momentos fortes onde pude
“amassar” todas essas emoções, angústias e dúvidas.
Decidi voltar para Natal/RN e retomei minha vida dando aulas de inglês. Não foi fácil
“engrenar” depois de tantos anos afastada. Recomecei a modelar e a pintar porcelana.
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Expunha em feiras nos finais de semana, consegui alguns clientes em hotéis e pousadas e ia
segurando meu orçamento com muita dificuldade.
Minha vida pessoal estava muito complicada, num relacionamento do qual não
conseguia sair. Sentia-me deprimida, sem perspectiva. Faltava alguma coisa que me movesse
e me tirasse desse estado de estagnação e me ajudasse a tomar algumas decisões.
Assim, por meio de uma amiga, soube da especialização em Arteterapia. Foi num
momento doloroso que iniciei o curso. Aproveitei minha fragilidade para mergulhar bem
fundo e redescobrir minha força interior e minha identidade.
Ao longo do curso, essas buscas e dificuldades não cessaram. Houve momentos muito
bons, onde pude “descansar” minha alma – como a reintegração com meus filhos, agora
adolescentes, o início de um novo relacionamento, a redescoberta dos livros e todo o
conhecimento por vir. Mas houve também muitos obstáculos, como um acidente que me
deixou “meio presa” por cinco meses e uma gravidez inesperada que não passou do terceiro
mês e me levou a uma cirurgia no útero.
Nesses momentos tropecei, caminhando entre o eixo e a ponta da roda da minha vida.
Precisava dar conta do estágio, mesmo que só com a mão esquerda ou vivendo mais uma
perda. Preparando as vivências, tinha que me submeter a elas primeiro e assim percebi o
“poder transformador” da Arteterapia. Ela me ajudava a transpor meus limites e transformálos em energia criativa. Isso me deu a força necessária para enfrentar os desafios e seguir em
frente.
Dessa forma percebi que Shakespeare tem razão quando diz que “o mundo não pára
para que você o conserte”. Assim, sigo caminhando, buscando, descobrindo minhas facetas,
me encontrando e reencontrando nessa jornada.
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1.2 ENCONTRANDO O TEMA
Diante de todas essas trans-form-ações, acontecidas com ensinamentos, descobertas,
crescimento, começo a descrever e compartilhar todo o significado desse processo e alçar vôo
rumo ao prazer da escrita que me permite, neste instante, reviver todas as etapas dessa
construção.
Assim, traço aqui o percurso de como cheguei ao tema.
No capítulo 2, faço uma analogia da minha roda com uma carta do tarô e trago o
processo de individuação de Jung como fio condutor teórico desse percurso.
O capítulo 3 versa sobre minhas vivências pessoais dentro da Arteterapia e da prática
no estágio, analisando o processo de uma cliente.
O capítulo 4 apresenta, de forma breve, minhas considerações finais dessa jornada.
Cheguei ao tema durante uma vivência no módulo “Álbum Pessoal” do curso de
especialização em Arteterapia, onde fizemos a seguinte vivência: pegávamos um papel e
fazíamos um círculo, em seguida fechando os olhos embarcávamos numa viagem de
helicóptero por cima de uma grande floresta com árvores frondosas, muito verde, paisagens
bucólicas. Percebendo essas árvores imaginávamos que estávamos descendo pela árvore,
sentindo-a e num flash tínhamos que abrir os olhos e dentro do círculo colocar um título, um
tema para a monografia. Depois, por 10 minutos, escrever sem parar e sem pensar tudo o que
viesse sobre esse tema, frases soltas que poderiam ser escritos como “raios” saindo desse
círculo.
Durante a vivência não consegui viajar pela floresta, ver nenhum verde, só via areia,
muita areia, vento e o barulho do helicóptero, eu estava no Kuwait – como estávamos em
plena guerra eu andava muito impressionada pelas imagens na televisão. Ouvia a voz da
professora ao fundo sugerindo as imagens bucólicas e pedindo que descêssemos pela árvore.
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Por mais que me esforçasse continuava vendo só areia e, de repente, me vi lá em baixo
tentando agarrar a corda e subir no helicóptero. A partir daí tracei um paralelo com minha
vida. Na verdade, estava saindo de um processo doloroso, uma verdadeira “guerra pessoal”
onde era uma “sobrevivente” buscando socorro e uma nova direção.
Ao olhar para o círculo escrevi RESSIGNIFICANDO MINHA VIDA e ao escrever
as frases em volta fui colocando coisas como: buscar o autoconhecimento, reconhecer meu
valor pessoal, meus medos, inseguranças; mudar padrões de pensamento, auto-aceitação,
melhorar auto-estima. Ao final da vivência, observando o desenho, vi que ficou parecendo
uma grande roda.
Alguns meses depois, durante o módulo de Metodologia Científica, fizemos nova
dinâmica retomando a anterior. Devíamos colocar o título no círculo e em volta escrever o
que ficou de mais significativo em cada módulo. Uma nova roda surgiu.
Folheando meu caderno, revendo anotações, desenhos, sonhos, “insights” descobri
muita riqueza produzida. Ficou difícil estabelecer o que era mais importante em cada módulo.
Penetrar no universo da Arteterapia me fez embarcar no meu interno. Entrar em
contato com minha história de vida, encontrar os “fantasmas”, os julgamentos, os medos de
não atingir determinadas expectativas, deu-me coragem de re-ver tudo, de tecer minha própria
história sob um novo olhar.
“Crescer, saber de si, descobrir seu potencial e realizá-lo é uma necessidade interna.
É algo tão profundo, tão nas entranhas do ser, que a pessoa nem sabe explicar o que
é, mas sente que existe nela e está buscando-o o tempo todo e das mais variadas
maneiras, a fim de poder identificar-se na identificação de suas potencialidades”.
(OSTROWER, 1995, p. 6).
Um olhar terapêutico sobre meu crescimento pessoal, mobilizada pelo processo de
Arteterapia, pelo acompanhamento psicoterápico (o qual nos foi sugerido desde o início do
curso para que trabalhássemos nossas questões pessoais para não “misturar” com a dos
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clientes), como também, por meio dos estudos teóricos, fui entrando em contato com partes de
mim adormecidas ou temerosas de vir à tona e, assim, podendo compreender melhor essa
busca.
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2 TEORIZANDO SOBRE A RODA
Tudo vai, tudo volta;
eternamente gira a roda do ser
Tortuoso é o caminho da eternidade.
(NIETZCHE apud NICHOLS, 1988, p.83)
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Ao buscar o tema da monografia, nas vivências já relatadas, os desenhos que surgiram
tinham a forma de RODA. A partir daí fui buscar sua simbologia.
“A roda participa da perfeição sugerida pelo círculo, mas com certa valência de
imperfeição porque se refere ao mundo vir-e-ser, da criação contínua. Portanto da
contingência e do perecível. Simboliza os ciclos, os reinícios e as renovações (...) os
raios da roda fazem com que ela apareça como um símbolo solar. Os raios indicam a
relação da circunferência com o centro. A personificação se completa e se
harmoniza quando uma dupla corrente se estabelece por meio de raios, do centro
para a circunferência e desta para o centro. A roda inscreve-se no quadro geral dos
símbolos de emanação retorno, que exprimem a evolução do universo e da pessoa.”
(CHEVALIER, 1994, P. 783)
Ainda observando os desenhos percebi a semelhança com uma carta do Tarô – Roda
da Fortuna. O dicionário dos símbolos traz a mesma como símbolo solar, roda dos
nascimentos e das mortes sucessivas no meio do cosmos. É, no plano humano, a instabilidade
permanente e o eterno retorno.
Em SHARMAN-BURKE E GREENE (1988), a carta que simboliza a roda da fortuna
(fig. 1) traz a imagem de três mulheres, as três deusas do destino, a quem os gregos chamaram
de Moiras. Segundo a mitologia, as Moiras são as filhas da mãe noite, concebidas sem pai. A
primeira delas, à direita, é Clotó – a fiandeira. A segunda, sentada à esquerda, já é mais
madura, ela é a medidora Láquesis. A terceira, Átropos (cujo nome significa aquela que não
pode ser evitada) já é bem mais velha e é a cortadora. As três idades das Moiras representam
as fases da lua – nova, crescente, cheia e minguante – e os estágios da vida. As três teciam o
fio da vida dos homens na escuridão de sua gruta e seu trabalho não poderia ser desfeito por
nenhum outro Deus. A partir do momento em que o destino do homem estava tecido, nada
mais poderia alterá-lo. O fio que as moiras tecem, medem e cortam está intimamente ligado
ao processo de composição do tecido do corpo dentro do útero, indicando que o destino está
ligado à hereditariedade e ao corpo propriamente dito. A gruta sugere tanto o útero que gera a
vida como a tumba a qual ela retorna. O começo e o fim do destino individual.
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As quatro figuras humanas presas à roda representam os vários estágios do destino. A
cada vez que a roda gira, um é lançado para cima e outro para baixo. Essas mudanças da vida
não são por acaso, as moiras as planejam ordenadamente.
De acordo com SHARMAN-BURKE e GREENE (1988), a imagem da roda é
profunda, pois as bordas representam o eterno ciclo da vida e o eixo, imóvel, representa o eu
oculto que escolhe ir na direção dos caminhos, das pessoas, embora não seja uma escolha
consciente. Sendo assim, o destino não vem ao nosso encontro, nós vamos ao encontro dele. E
o movimento da roda significa mais que mudança: é o indício de uma viagem interna em
busca de si mesmo.
Fig. 1 – A roda da fortuna
Fonte: SHARMAN-BURKE & GREENE (1988)
As autoras ainda colocam que a experiência da roda da fortuna é a vivência do “outro”
dentro de nós, aquela figura que costumeiramente projetamos no mundo visível, para assim
podermos culpá-la ou às circunstâncias pelas mudanças repentinas em nossas vidas. A virada
da roda nos força a entender esse “outro” como sendo um movimento inteligente por trás de
tudo, o destino que carregamos dentro de nós e o que nos leva a nossa jornada interior rumo à
consciência.
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Segundo NICHOLS (1988), a roda é trazida como um sistema de energia, cuja
essência é o movimento. Um sistema de constante transformação que envolve igualmente
integração, desintegração, geração e degeneração. As eternas revoluções da roda nos ajudam a
experimentar a simultaneidade de opostos como nascer e morrer, não como acontecimentos
que marcarão princípio e fim de uma experiência linear, mas como dois aspectos sempre
presentes de um processo contínuo.
Jung dava grande valor a todos os caminhos não racionais ao longo dos quais o
homem tentara, no passado, explorar o mistério da vida (...). Ele reconheceu que o
tarô tinha sua origem e antecipação em padrões profundos do inconsciente coletivo
(...). Era outra ponte não racional sobre o aparente divisor de águas entre
inconsciente e a consciência, para o que deve ser o crescente fluxo de movimento
entre escuridão e luz. (PROST apud NICHOLS, 1988, p. 16).
Silveira (1981), também fala no simbolismo do círculo – mandala em sânscrito. Ela
explica que seu centro representa o núcleo central da psique (self) e que é fundamentalmente
uma fonte de energia.
A energia do ponto central manifesta-se na compulsão quase irresistível para levar o
indivíduo a torna-se aquilo que ele é, do mesmo modo que todo organismo é
impulsionado a assumir a forma característica de sua natureza, sejam quais forem as
circunstancias. (JUNG apud SILVEIRA, 1981, p. 100).
Quando Jung fala dessa energia que se manifesta ajudando o indivíduo a tornar-se
aquilo que ele é, está se referindo ao que ele chamou de processo de individuação.
Segundo Hall (1996) este processo envolve um diálogo contínuo entre o ego (centro
responsável pela consciência) e o self (centro regulador da psique, também chamado simesmo). Ao longo da vida o self exerce uma espécie de “pressão” sobre o ego tanto para que
este enfrente a realidade, quanto participe do processo de individuação. Este ocorre em
qualquer estado da psique, quer a pessoa esteja consciente dele ou não. Entretanto é muito
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facilitado quando o ego assume uma atitude em relação a ele e participa na evolução da
psique.
O homem é capaz de tomar consciência desse desenvolvimento e de influenciá-lo.
Precisamente no confronto do inconsciente pelo consciente, no conflito como na
colaboração entre ambos é que os diversos componentes da personalidade
amadurecem e unem-se numa síntese na realização de um indivíduo específico e
inteiro. (SILVEIRA, 1981, p.87)
Jung (1975) narra suas próprias experiências internas, bem como a de seus
analisandos. Ele observou que o curso de desenvolvimento da personalidade, ou seja, o
processo de individuação, segue um “roteiro” que vai progredindo em direção ao centro. Esse
processo de ordenação do consciente e inconsciente em torno do self não é um processo
linear, assemelha-se a um movimento em círculos e vai acontecendo por etapas.
A primeira delas é a que Jung chamou PERSONA. Seria a máscara, aparência
artificial, o papel social incorporado pelo indivíduo derivado das expectativas da sociedade ou
do “treinamento” nos primeiros anos de vida. Essa máscara funciona como uma defesa para se
integrar nos diversos grupos. Porém, às vezes ela fica tão valorizada que a pessoa se confunde
entre aquilo que representa e aquilo que realmente é. Tirar essa máscara e se olhar
profundamente não é fácil, pois muitas vezes não verá só o que gostaria de ver. É inevitável
enxergar também outros aspectos seus até então desconhecidos.
Esses aspectos que correspondem ao que rejeitamos em nós, fazem parte da
personalidade total e é o que Jung chamou de sombra. Aquilo que não aceitamos em nós,
geralmente projetamos no outro, apontando defeitos, culpando, sendo preconceituosos.
Quanto mais reprimida e inconsciente, mais forte essa sombra se torna. Ao descobrirmos que
aquilo que rejeitamos são facetas de nós mesmos, tiramos a venda dos olhos, reconhecemos
que não é o “outro” e sim nossas projeções. Incorporando esse lado “negro”, aprendemos a
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lidar com ele e damos um salto majorante. A partir daí podemos enxergar também os traços
positivos na sombra, como qualidades ou aptidões reprimidas que não se manifestaram por
insegurança ou medo de quebrar padrões estabelecidos.
Segundo Franz, (1964) alguns problemas morais, difíceis ou confusos não são
invariavelmente provocados pela sombra. Muitas vezes emerge uma outra “figura interior”.
Se o sonhador for um homem irá descobrir a personificação feminina do seu inconsciente e
caso seja uma mulher, será uma personificação masculina. Muitas vezes este segundo
personagem simbólico aparece por detrás da sombra, trazendo novos e diferentes problemas.
Jung chamou às formas masculina e feminina, respectivamente, animus e anima.
Anima é a personificação de todas as tendências psicológicas femininas no psique
do homem – os humores e sentimentos instáveis, as intuições proféticas, a
receptividade ao irracional, a capacidade de amar e, por fim, mas nem por isso
menos importante, o relacionamento com o inconsciente. (FRANZ. In JUNG, 1964,
p. 177)
Silveira afirma que “o primeiro receptáculo da anima é a mãe, e isso faz com que aos
olhos do filho ela pareça dotada de algo mágico” (1981, p. 94).
Segundo a autora, a retirada desse receptáculo é uma etapa muito importante para o
homem e, se não acontece de fato, a imagem da mãe é projetada na esposa, namorada,
amante, ou seja, o homem vai sempre esperar que a mulher exerça esse papel protetor.
Quando a anima é conscientemente aceita e bem trabalhada, ela se torna uma
intermediária entre consciente e inconsciente e permite fazer surgir um homem com uma
sensibilidade diferenciada (sem deixar, entretanto, de ser masculino). Um homem mais
cooperativo, intuitivo, que sabe partilhar e acolher.
A manifestação do animus, masculinidade existente no psiquismo da mulher, também é
inconsciente e se destaca na mulher quando ela está brigando, querendo se impor de forma
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rude ou até violenta. Assim como o caráter da anima masculina é moldado pela mãe, o animus
é basicamente influenciado pelo pai da mulher. Assim explica Franz, “é o pai que dá ao
animus da filha convicções incontestavelmente “verdadeiras”, irretrucáveis e de um colorido
especial – convicções que nunca têm nada a ver com a pessoa real que é aquela mulher”
(FRANZ. In JUNG, 1964, p. 189) .Sendo assim, o animus projetado sobre o homem amado –
à imagem da figura paterna – faz dele um ser ideal, impossível de resistir à convivência
cotidiana, provocando inúmeras decepções.
Do mesmo modo que a anima, o animus a partir do momento que é incorporado, atua
como um mediador entre ego e self e traz à tona uma mulher que pode fazer uso da força para
torná-la mais determinada, corajosa, objetiva, dotada de sendo prático.
Segundo a trajetória do processo de individuação, Franz explica:
Se um indivíduo lutou séria e longamente com sua anima ou seu animus de maneira
a não se deixar identificar parcialmente com eles, o inconsciente muda seu caráter
dominante e aparece numa nova forma simbólica, representada pelo self, núcleo
mais profundo da psique. (FRANZ. In JUNG, 1964, p. 196).
Esse “encontro” com o self vem, em geral, através de sonhos. Nos sonhos da mulher este
núcleo é personificado por uma figura feminina superior (uma sacerdotisa, feiticeira, deusa).
No homem, manifesta-se como um iniciador ou guardião (velho sábio, espírito da natureza).
O self nem sempre toma essa forma de velho sábio ou deusa, essas personificações são para
exprimir uma entidade que não está inteiramente contida no tempo – algo que pode ser novo e
velho. Qualquer um dos tipos de personificação é sempre dotada de grande potencial
energético trazendo ao “sonhador” um profundo bem-estar.
Após essa “descida ao abismo”, que é o confronto entre consciente e inconsciente,
adquirimos uma percepção mais madura da nossa complexidade. Um “Alargamento do
mundo interior”, resultando que o centro da nova personalidade não mais coincida com o ego
e sim com o self. A partir daí o homem não estará mais fragmentado. “O homem torna-se ele
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mesmo, um ser completo, composto de consciente e inconsciente, incluindo aspectos claros e
escuros, masculinos e femininos”. (SILVEIRA, 1981, p. 100)
Allessandrini acredita que o indivíduo nesse estágio de desenvolvimento pode deixar o
criativo entrar em ação, evocando seus conteúdos internos.
“A medida em que se apropria daquele que é, reconhece suas amarras e suas
disponibilidades pode, então, entrar em contato com seu potencial criador, na construção do
que está por vir”. (ALLESSANDRINI, 2000, p. 53).
Para a autora, “criar é submeter nosso ser interior a um projeto criador de novos
sentidos” (2000, p.52). Podemos caminhar em direção ao novo, rompendo barreiras mas com
a segurança de que vai dar tudo certo porque conhecemos nossos limites. Indo mais fundo,
deixamos emergir o “ser-sélfico” (ALLESSANDRINI, 2000), que é o ser criador que emerge
a partir da experiência de tocar o que você é, de tocar seu self.
Essa experiência toca a necessidade de libertação de antigos padrões de ação, jeitos
de ser e de fazer, que acabem por aprisionar novas possibilidades. De certa maneira
o homem sente que pode evocar em seu potencial aquilo que lhe é inusitado,
permitindo a emergência do que jamais recebeu uma forma ou um contorno. Assim,
uma idéia surge, um gesto cria uma imagem, alguns traços configuram o que é novo.
(ALLESSANDRINI, 2000, p. 53).
Assim, traçando novos contornos da minha própria história, deixei-me girar na roda,
permitindo que simbolicamente, por meio do processo arteteraupêutico com suas atividades
expressivas diversas, fossem sendo retratadas transformações e descobertas desses giros,
como retratam alguns trabalhos meus ao longo do curso (fig. 2 a 4).
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Fig. 2 – Busca
Fonte: Graziela Ayres – colagem sobre papel
Fig. 3 – Labirinto
Fonte: Graziela Ayres – pastel seco sobre cartão
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Fig. 4 – Viagem
Fonte: Graziela Ayres – pastel seco sobre cartão
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3 FAZENDO A RODA GIRAR
“A arte não existe para reproduzir o visível, mas para
tornar visível aquilo que estar além dos olhos.”
(Klee apud Chiesa, 2003, p.31)
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3.1 VIVÊNCIAS PESSOAIS
Todos os módulos do curso foram determinantes para meu processo pessoal. Cada um
deles, dentro de suas especificidades, colocou-me em contato com diferentes facetas do meu
ser. Os diferentes recursos usados permitiram que essas descobertas se incorporassem em
mim como um todo. Entretanto, escolhi os que mais me marcaram para ilustrar essa minha
trajetória, tanto pessoal quanto teórico-profissional.
Minha primeira vivência foi o módulo do barro criativo. Foi muito forte, tanto por
estar vivendo um momento de plena mudança de vida, quanto pelo fato de o barro ser meu
instrumento de trabalho. Desta forma, já tendo afinidade com o material, sua maleabilidade,
sua textura, seu cheiro, permitiu-me mergulhar fundo no trabalho.
Durante a primeira sensibilização foi trabalhada a consciência da forma, do volume,
do peso e da fluidez do corpo. Senti em mim a fluidez se perder no volume e na forma, além
do incômodo com o meu excesso de peso. Em seguida, a música tribal me deu força, foi
subindo um “fogo”, uma vontade de lutar, de despertar minha guerreira para “ter minha vida
de volta”. No momento de parar e criar, uma imagem veio em minha mente FRAGMENTO.
A partir dessa imagem, fiz com o barro quatro peças soltas e as nomeei: dor  consciência 
luta  celebração. Repensando hoje esse momento, reconheço o que Jung diz:
Na medida em que conseguia traduzir as emoções em imagens, isto é, ao encontrar
as imagens que se ocultavam nas emoções, eu readquiria a paz interior. Se tivesse
permanecido no plano da emoção, possivelmente eu teria sido dilacerado pelos
conteúdos do inconsciente. Ou talvez, se os tivesse reprimido seria fatalmente vítima
de uma neurose e os conteúdos do inconsciente destruir-me-iam do mesmo modo.
Minha experiência ensinou-me o quanto é salutar, do ponto de vista terapêutico,
tornar conscientes as imagens que residem por detrás das emoções. (JUNG, 1964, p.
158).
30
Pude sentir a sutileza do barro ao esculpir o mundo, na proposta da vivência seguinte.
O mundo girava com leveza, livremente, dava voltas e voltas, para cima, para baixo, não tinha
eixo, girava solto a favor do vento, sem base, sem firmeza. Ao transformar o mundo numa
bola e aí em PEDRA – representando o reino mineral, emergiu sensação de FORÇA – A
pedra com suas ranhuras e rachaduras é firme no chão, desafia e sobrevive ao tempo. “O
trabalho com o barro mobilizou sensações, sentimentos e imagens, trazendo a possibilidade de
uma nova descoberta, um ressignificar da própria história” (CHIESA, 2003, p. 19) Eu fiz a
pedra e eu era a pedra!
A pedra, ao se transformar em algo do reino vegetal, tornou-se uma couve-flor, veio a
sensação de PERTENCER. A pedra foi se abrindo como os gomos de uma couve-flor.
Cheguei a sentir seu gosto e seu cheiro. Esse vegetal, bonito e harmônico, tem seus gomos
como filhos que saem de uma base forte. Os gomos são iguais e diferentes ao mesmo tempo,
uns mais fortes, outros menos. A sutileza dessas diferenças é que o torna bonito. A união dos
gomos transmite força e a folhagem por cima os protege.
A couve-flor se transformou em SAPO, algo do reino animal, deu sensação de NOJO.
Ao amassar e bater na massa ela simplesmente ficou tal e qual um sapo, sem que eu o
moldasse de fato. Resolvi observar o sapo que surgiu, pois é um animal que detesto. Peguei-o
e senti um arrepio, embora não fosse gelado e sim quente, por ser de barro. O sapo é um
animal mutante: é forte porque pode viver na água e na terra, pode encontrar alimento nos
dois espaços, pode se esconder de seus predadores, é livre, pode escolher onde estar, sabe
observar, é paciente, fica imóvel esperando o inseto que passa para rapidamente capturá-lo.
Sapos também viram príncipes quando beijados, nos contos de fadas... já beijei muitos
“sapos” e nenhum deles virou príncipe. Também já “engoli muitos sapos”. Não quero mais
sapos na minha vida.
31
Durante essa vivência da transformação, amassando modelando e desmanchando as
peças pude perceber o objetivo de Chiesa em sua pesquisa: existe a possibilidade de um
mergulho nas origens na intenção de uma maior conscientização do processo de evolução.
“No momento de dar forma às sensações experimentadas, às emoções escondidas e à imagem
em ação, pode-se libertar e transformar a energia que estava bloqueada” (CHIESA, 2003, p.
20).
A segunda parte da dinâmica, em que objetos não mais se desmanchavam, foi
totalmente diferente, pareceu mais rápida e consciente. À medida que a vivência evoluía,
passando de bola para mineral, vegetal, animal, as imagens de como transformar surgiam de
imediato, como esclarece Jung: “Nós não somos criadores de nossas idéias, mas seus portavozes, são elas que nos dão forma” (1975, p. 8).
A bola foi muito rápida e segura de si. O mineral veio a mim como uma
ESTALACTITE, o que se forma no teto das cavernas, parece frágil ali pendurado, mas se
sustenta por anos. O vegetal foi uma FOLHA, que também é algo pendurado, preso ao caule,
fica ali quieta e depois cai, respeitando seu ciclo. O animal foi um CARAMUJO, que se
arrasta no chão e carrega sua própria casa, seu abrigo protetor.
Pude concluir com os efeitos provocados em mim por essa vivência, que estava
precisando de raiz, sentia-me insegura nesse mundo que girava sem eixo – precisava desse
girar livre, como o da roda que tem seu próprio eixo. Queria me sentir mais protegida, dona
das minhas pernas, precisava acreditar mais na minha força pessoal para encontrar meu eixo.
A oficina com o barro facilitou a ida às raízes das dores e temores para que um
diálogo profundo pudesse fazer uma modificação radical. Um processo de mudanças
e transformação só pode ocorrer de um encontro profundo interno. Com o caminho
mais desbloqueado, é possível aprofundar, buscar e reconhecer as qualidades e
talentos que servirão de apoio para nortear estradas da vida. (Chiesa, 2003, p. 90)
32
O meu segundo módulo – oficina do corpo – foi tão importante quanto o primeiro. Na
verdade foi um aprofundamento do anterior, uma vez que o recurso utilizado também foi
argila.
Ao chegar à sala de aula encontramos palavras de boas vindas no quadro e uma poesia
do Drummond (1984).
As contradições do corpo
“Meu corpo não é meu corpo
é ilusão de outro ser
sabe a arte de esconder-me
E é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta
Meu corpo, não meu agente
meu revolver de assustar
Tornou-se meu carcereiro
me sabe mais que me sei”.
A primeira dinâmica do módulo quebrou de imediato o protocolo, ao propor um
exercício no escuro. O fato de manipular o barro sem ver tirou a preocupação com a estética,
com a forma perfeita, o que me deixou muito à vontade. Foi uma sensação diferente. Fiquei
algum tempo só sentindo o barro nas mãos e pensando na poesia que me fez refletir sobre o
fato de que o corpo realmente sabe mais de nós que nós mesmos, ele reflete como você está
por dentro – ele não usa máscaras. Passei muito tempo querendo “proteção”, ou fugindo de
mim mesma. Acho que o excesso de peso reflete isso. É realmente sagaz o corpo!
Comecei a modelar um corpo, partindo do todo (ou seja, toda a quantidade de barro
que tinha nas mãos) – (figura 5) não gostei, parecia sem forma. Desmanchei e comecei por
partes: fiz pernas, braços, cabeça, tronco e fui novamente juntando no todo. Consegui fazer
um corpo, MEU CORPO, como estou me percebendo – pesada, sem mobilidade, sem viço.
33
Fig. 5 – Mulher
Fonte: Graziela Ayres – imagens em argila
Procurei levar a peça que modelava todas essas sensações e pensamentos. Tratei a
peça com carinho virando de um lado e outro, buscando dar forma por completo. Fiquei o
tempo todo com os olhos fechados, mesmo a sala estando escura. Gostei muito dessa
sensação, percebi que meu tato ficou mais aguçado.
No dia seguinte, fizemos nova vivência com o barro, que foi precedida de uma
sensibilização para nos preparar para esse momento. Durante a sensibilização o sujeito é
“convidado a tocar si-mesmo – seu mundo INTRA (...) esse perceber implica o uso de canais
sensoriais integrados aos sentimentos, proporcionando a organização das impressões no nível
das imagens” (ALLESSANDRINI, 1996, p. 41).
Caminhamos pela sala, olhos fechados, vivenciando por meio de músicas diferentes,
os quatro elementos da natureza. Na música TERRA, um som tribal permitiu um caminhar
firme, batendo os pés no chão. Fui me percebendo mais forte e confiante. Na música FOGO,
34
ainda um pouco tribal, paramos o caminhar e deixamos vir a fluidez, mexendo o quadril,
aflorando a feminilidade e a sensualidade. Na música ÁGUA, o som dos golfinhos me fez
mergulhar literalmente na minha fluidez e pude sentir meu corpo muito leve. Durante a última
música, AR, estava tão leve que parecia poder voar. Fui me alongando, sentindo meu corpo,
acariciando e abraçando a mim mesma. As diferentes músicas provocaram movimentos
diversos e ao final uma sensação de completude fechou a dinâmica.
Ao passar para o exercício de respiração, estava tão leve e relaxada que percebia o ar
entrando e saindo com fluidez. Após esse exercício, fizemos um outro, em dupla, cujo
objetivo era nos transformarmos num bloco de argila e nos deixar modelar pela parceira. Foi
uma sensação gostosa de entrega, permitir ser transformada, tocada, modelada. Ao inverter os
papéis, um calor incrível veio às minhas mãos, como se cada parte que eu tocasse ganhasse
vida própria. Senti-me criança, cheia de vitalidade e energia ao esculpir e ser esculpida.
A última dinâmica fechou com “chave de ouro” o processo desse módulo. Repetimos
a modelagem com olhos fechados e parecia que mergulhava mais fundo que na primeira. O
meu tato estava ainda mais aguçado e de pronto comecei a esculpir uma mulher cheia de
curvas nas proporções exatas, com movimentos e sensualidade, mesmo estando deitada. Ao
terminar, fiquei encantada com a peça e todo o prazer que aquela mulher, EU, transmitia.
Gouvêa explica bem o que senti nessa vivência:
Na alma do barro desvela-se a alma do homem na natureza do barro a psique do
homem se refugia. O obscuro da matéria se vê preenchido, fecundado pelo obscuro
do homem e numa espécie de participação mística, a identificação inconsciente
acontece (...). Na relação dialética que acontece entre matéria e indivíduo, o
momento criativo produzirá algo concreto que testemunhará o novo, o produto, a
imagem concreta da emoção. É a arte como testemunha do si-mesmo. (GOUVÊA,
1990, p. 59-60).
O módulo Personagens e História de Vida aconteceu quase um ano após o início do
curso, já tinha passado por outros tantos que igualmente me mobilizaram, mas esse nos
possibilitou entrar em contato com o SER TERAPEUTA pela primeira vez.
35
Durante as vivências, tivemos momentos de troca com os parceiros relatando nossas
experiências e exercitando a compreensão, o ouvir, o saber “escutar as pedras”.
Para entrar no mundo do cliente, o terapeuta deve estar completamente PRESENTE
para ele, não apenas ser amigável, mas estar disposto a contribuir com seu próprio self para o
encontro.
Segundo Juliano (1999) a principal característica do terapeuta para executar bem esse
trabalho e a qualidade de sua presença, uma atitude descontraída e atenta, inteira, disponível,
energizada. Ficando com o fenômeno tal qual ele se apresenta, tal qual ele é, mas do que
aquilo que foi, poderia ou deveria ser. Em outras palavras estar em contato com o outro, mas
ainda assim, centrado no seu próprio eixo.
Numa vivência construímos, em grupo, um boneco englobando características que
achávamos ser importantes para constituir o ser terapeuta. Nas diversas observações de cada
um do grupo, pude perceber que cada pessoa experiência uma situação de forma única. A
tarefa do terapeuta é descobrir e entender qual o significado de um evento para aquela pessoa
em particular, compreender seu ponto de vista, de acordo com sua história de vida. Sentir o
que ela sente, com total “esvaziamento” do seu eu para perceber a realidade do outro.
A vivência mais significativa do módulo foi a construção do personagem. Seguindo as
orientações dadas, utilizando material disponível e após longa sensibilização fomos dando
forma aos bonecos. Começando pela cabeça, rosto, cabelo, ombro (onde ficava o encaixe do
resto do corpo) braços, mãos e roupas que davam o toque final.
Ao confeccionar o boneco, vivi momentos de intensa relação comigo mesma. Revi
momentos de minha infância, no meio das minhas bonecas, quando fazia roupas e penteados
diferentes. Manuseando esses materiais, retornei ao universo infantil e dele trouxe para o
presente a alegria ingênua de menina, sem julgamentos de valor. (fig. 6).
36
Fig. 6 – Kaya
Fonte: Graziela Ayres
“Para a confecção de um boneco é necessário que se façam escolhas pessoais, pois é
decidido desde e expressão do rosto, até a cor da roupa. As escolhas pessoais promovem o
desenvolvimento da identidade, pois a presença do “eu” é fundamental em qualquer
experiência” (SANTOS, 1999, p. 111).
No momento de “dar vida” ao personagem – atribuindo-lhe identidade própria, percebi
muito de mim em KAYA (nome dado ao personagem criado): “Ela é uma mulher de 38 anos,
leonina, extrovertida, que gosta de fazer amigos, viajar. Atualmente é repórter da revista
“National Geographic”, o que lhe permite viajar pelo mundo, conhecendo várias culturas”.
Quando a pessoa se expressa plasticamente, a imagem criada traz elementos de seu
universo pessoal. Observando o produto da criação, a pessoa é auxiliada a ver e
dizer coisas de si própria, observando-se mais (...) as pessoas vão partilhando
37
descobertas, colocando em seus bonecos várias facetas de si mesmo. (SANTOS,
1999, p. 121).
Na vivência de construção dessa personagem fui fazendo reflexões sobre minhas
atitudes, posturas, escolhas. Fui reconhecendo meus passos e tentando não mais me criticar e
cobrar tanto e sim aprendendo a ter mais paciência comigo, me aceitar e cuidar mais de mim
buscando fazer e batalhar pelas coisas que realmente me interessam, aprendendo a dar limites
e a me respeitar mais.
Aprendendo mais sobre mim e a ouvir o outro, todas essas descobertas e conquistas
descortinam um novo horizonte à minha frente. Percebo que criando, representando
simbolicamente, temos a oportunidade de deixar de lado estereótipos e expectativas e passar a
ser o que realmente somos. “Desde o momento que nascemos, nossa tarefa é trilhar o caminho
da individuação, esse é um longo caminho, caminho de desenvolvimento de um modo de ser
no mundo que seja só nosso” (JULIANO, 1999, p. 132).
Percebendo-me melhor, passo a enxergar o outro também em sua totalidade com todas
as suas expressões, atitudes e o que tiver por vir. É necessário que o terapeuta esteja aberto à
possibilidade de se surpreender, dispor-se a ser tocado pelo mistério e grandeza da pessoa
com quem está trabalhando. Essa sensibilidade do ser terapeuta me fez ficar mais “AWARE”1
2
do meu próprio processo e levá-lo adiante sem deixar interferir no do outro, mas crescendo
junto com ele. A partir daí aceitei dar o próximo passo, o desafio da prática no estágio.
3.2 O ESTÁGIO
1
Palavra em Inglês que significa atenta.
38
O estágio foi desenvolvido em dupla, uma colega do curso e eu. Nosso projeto,
ARTETERAPIA E QUALIDADE DE VIDA: EM BUSCA DO EQUILÍBRIO INTERNO NA
ROTINA PROFISIONAL, tinha por objetivo o alívio do stress acumulado na rotina diária,
oportunizando aos clientes administrarem sua carga de trabalho de forma mais saudável,
conseguindo tirar proveito das situações estressantes, transformando-as criativamente.
Foi realizado com um grupo de adultos, funcionários da COSERN – Companhia
Energética do Rio Grande do Norte, por um período de quase um ano, dividido em duas
etapas, com dois grupos diferentes, em encontros semanais de 90 minutos na própria empresa,
no horário de expediente.
Ao iniciarmos a primeira fase do estágio de junho a novembro de 2003, com 22
encontros, recebemos um grupo de seis funcionários indicados pelo setor médico (RSM). A
segunda fase, entre fevereiro e maio de 2004, foi mais curta com apenas 10 encontros e dois
clientes também convidados pelo RSM.
A princípio notamos uma certa curiosidade por parte de todos, pois estavam ansiosos
para saberem como seria esse atendimento em Arteterapia. Em suas falas, ficou claro que
buscavam um espaço que proporcionasse momentos de relaxamento e autoconhecimento.
Durante os encontros, percebemos, inicialmente, o comprometimento de todos. Aos
poucos, fomos observando o desenvolvimento individual e à medida que o processo de
Arteterapia foi avançando, a entrega pessoal foi se diferenciando. Alguns mantiveram uma
freqüência constante e outros, aos poucos, se distanciaram, alegando doenças ou
compromissos em seus respectivos departamentos.
Nas vivências, observamos o processo de cada um, fazendo referências e reflexões nos
relatórios para supervisão. Foi possível perceber o “despertar” do potencial criativo de alguns
mais claramente do que de outros. Nas atividades que demandaram atitudes de observação,
percepção, interação, integração e contato com as próprias emoções, os indicativos de
39
mudança ao longo do processo foram bem visíveis. Inclusive nos que não tiveram tanta
entrega e se ausentaram do grupo, bem como no grupo da segunda fase do estágio (mesmo
com menos encontros).
“Hoje tenho a consciência e reconheço que os outros são diferentes e não iguais a
mim. Antes eu sempre cobrava atitudes iguais às minhas nas pessoas com quem convivo. Mas
todo mundo tem limitações, temos que aceitar”. (Depoimento de S.)
Muitas vezes em suas falas iniciais, alguns relataram estar saindo dos atendimentos
mais relaxados e até mesmo mais dispostos do que quando chegaram:
“Hoje cheguei muito cansada e agora estou ótima, esse momento de Arteterapia é
meu refresco da semana”. (Depoimento de LI).
É importante ressaltar que tivemos, por parte da empresa, bastante receptividade e o
oferecimento de excelente estrutura para realizarmos nosso trabalho.
Antes de entrar nos “estudos de casos” farei uma breve descrição da forma como
estruturávamos as sessões, fundamentada na Oficina Criativa (ALLESSADRINI, 1996).
No primeiro momento sentávamos juntos, em roda, para um acolhimento.
Conversávamos sobre o atendimento anterior, como se sentiram, como passaram a semana, se
surgiram sonhos, “insights”. Deixávamos que ficassem à vontade para compartilhar somente
se quisessem.
Em seguida, fazíamos a sensibilização, quase sempre um trabalho corporal, com
música de apoio. Neste momento convidávamos para que entrassem em contato com seu
corpo, sentimentos presentes, percepção da respiração. Usávamos dinâmicas como
automassagem, exercícios de relaxamento, meditações ativas, visualizações e danças
circulares com objetivo de prepará-los para a etapa seguinte. Segundo Allessandrini “O
trabalho de corpo dinamiza mudanças na forma de sentir e viver as dificuldades... dissolvendo
amarras ou atenuando sensações...” (1996, p. 19).
40
As vivências em si eram preparadas de acordo com a demanda do grupo,
possibilitando-lhes a expressão de emoções e imagens latentes de forma não-verbal. Era uma
etapa de “expressão livre”, onde utilizamos argila, lápis cera, pastel seco e óleo, colagem,
sucata, diversos tipos de papel, histórias, mosaicos, em trabalhos individuais, duplas e grupos.
Nesse momento “O sentimento eclode como imagem e toma forma” (op cit, p. 43).
Ao término da vivência, sentávamos novamente em roda e abríamos espaço para que
olhassem seus trabalhos e o dos colegas, revendo etapas, reelaborando seus conteúdos tanto
de forma verbal quanto escrita (escritas criativas – que é uma forma de escrita sem “pensar”,
sem ser necessário pontuar, acentuar ou qualquer preocupação com a forma, é pura expressão
de sentimentos). Nesse momento também pedíamos para que falassem uma palavra de
fechamento para aquela sessão.
Essa fase final de verbalização oportunizou ricas trocas de experiências e reflexões,
além de “quebrar barreiras” entre eles e de fortalecer o sentimento de equipe no grupo.
A seguir, relatarei algumas vivências de uma cliente procurando mostrar seu
crescimento pessoal durante o trabalho com Arteterapia.
Esta cliente, AL, é mulher, 43 anos e 23 na empresa. Trabalha no setor de
Atendimento ao Consumidor em regime de escala. Desde o início colocou-se como tendo um
trabalho estressante, sentia-se sufocada com o volume e a intensidade do trabalho – tanto com
relação a “ouvir reclamações” o tempo todo, quanto ao esquema de plantão que deixava sua
rotina sempre alterada. Nos primeiros encontros se manteve afastada e distante, não se soltava
muito nos trabalhos de corpo, falava muito ao mostrar seus trabalhos, mas sua fala
demonstrava muita angústia, ansiedade e opressão.
Na primeira vivência, após uma conversa de como seria o trabalho, “regras” do
processo e uma sensibilização ela fez um desenho com lápis cera enfatizando o que
41
representava para ela a Arteterapia (fig. 7). Na sua fala disse: “estava me sentindo perdida,
essa terapia é a luz, a resposta às minhas preces, o senhor me ouviu”.
Fig. 7 – giz de cera sobre papel
Fonte: trabalho de AL – 43 anos
Numa vivência seguinte, ao final da sensibilização, foi pedido que pensassem numa
situação da vida deles e a partir daí fossem “voltando”, abrindo os olhos. Oferecemos revistas,
papel, tesoura e cola e pedimos que trouxessem em imagem o que vivenciaram na
sensibilização. AL neste trabalho quase não usou imagens e sim muitas frases falando em
capitalismo, dinheiro, opressão. Durante sua fala demonstrou uma agressividade contida,
falava e apontava suas frases com veemência, até seu olhar demonstrava raiva “eles são como
feras primitivas”, “esse mundo é sem moral e cheio de hipocrisia” (fig. 8).
42
Fig. 7 – colagem sobre papel
Fonte: trabalho de AL – 43 anos
Nessa vivência específica, Al pode confrontar sua sombra.
Geralmente, antes de as pessoas acessarem emoções mais positivas, têm de passar
através das desconfortáveis emoções escondidas, como raiva, hostilidade, dor e tudo
que estiver armazenado na SOMBRA. Depois que essas emoções forem
descarregadas, outras mais positivas emergirão da sombra. Ninguém será capaz de
pintar amor próprio, se estiver sentindo confusão ou raiva. A resposta de cada pessoa
ao aquecimento se relaciona às emoções que precisam ser expressas no seu processo
de autorealização. (BELLO, 1996, p. 93).
No encontro utilizando tintas, percebi que AL estava pensativa. Na roda inicial ela
colocou que durante a semana tinha tido uns “estalos” de que ela é que tinha que mudar, não
podia mudar os outros, nem o sistema. Durante a vivência pareceu muito tocada pela música.
Depois verbalizou que não gostou de trabalhar com esse material e que não sabia desenhar,
nem pintar, nem passar para o papel o que estava sentindo, “eu prefiro falar do que ter que
desenhar”.
43
Da pintura que fez (fig. 9), falou dos pássaros que aparecem em cima bem pequenos:
“Eles são felizes, podem fazer o que querem, na vida não é assim”.
“Nós temos que cumprir ordens, fazer o que a sociedade quer”
“Os jovens também procuram liberdade, mas do jeito errado”.
Fig. 9 – guache sobre papel
Fonte: trabalho de AL – 43 anos
No dia da vivência da árvore, conduzi a sensibilização e usei uma dança circular com
passos muito simples, com leves batidas no chão, favorecendo um “grounding”, um chão para
eles. Percebi Al bem diferente, veio com uma roupa bem confortável (neste dia iria trabalhar
só a partir de meia noite), ficou descalça (pela primeira vez) e dançou bem solta. Parecia uma
menina num baile. No final disse que se sentiu ofegante e contou-nos que era hipertensa e não
tinha tomado seus remédios. Entretanto disse que, apesar da taquicardia, estava se sentido
muito bem.
44
Entregamos os materiais (papéis, lápis de cor, de cera, tintas, areias, cola, tesoura,
revistas) para que escolhessem o que usar para fazer sua ÁRVORE pessoal. Ela foi logo
pegando as tintas (na vivência anterior disse que não tinha gostado desse material), depois
areia e ao final fez colagem também (figura 17). Sua fala foi bem contraditória, disse que
“não gostei de fazer esse trabalho, ficou muito feio”. Entretanto, seu gestual ao fazer
demonstrava satisfação e prazer.
Suas falas ao longo do processo foram se modificando, diminuindo a angústia e
opressão e aos poucos deixando de atribuir responsabilidades aos outros, a Deus, ao sistema e
fazendo algumas reflexões mais profundas nas suas verbalizações. Por meio de imagens que
trazia, ela parecia descobrir uma nova mulher. Confirmando o que disse Pain: “No processo
de elaboração da representação simbólica o sujeito encontra uma melhor imagem de si
mesmo” (1996, p.57)
Seguem algumas falas de Al com a referência das figuras para demonstrar essas
mudanças:
“Gostei muito desse trabalho, junto com todos. Fiz minha fruta a uva e depois quis pintar tudo em volta de vermelho. A uva é para fazer o
vinho. Os deuses antigos celebravam tudo com festas”.
“Essa é minha obra prima, parece comigo. Gosto de cores vibrantes assim, as cores pastéis deixam a gente apagada. E também sou assim,
às vezes aberta e às vezes fechada”. (Fig. 10).
45
Fig. 10 – giz de cera sobre papel
Fonte: trabalho de AL – 43 anos
“É bom ficar aqui só preocupada em encher espaços vazios, não dá tempo de encher a cabeça. Aqui me desligo de tudo, esse tempo é só
meu”.
“Esse trabalho foi muito difícil, os pedacinhos não se encaixavam. Ficou tudo uma bagunça”.
“Estou muito cansada e cheia de problemas” – “Isso aqui ficou parecendo minha cabeça, um amontoado de perguntas, uma confusão”
(Fig. 11).
Fig. 11 – mosaico
46
Fonte: trabalho de AL – 43 anos
Bello explica a força da linguagem simbólica promovendo mudanças, como as de AL:
Existe um fenômeno ligado a nossa inerente habilidade de criar imagens, ainda não
explicado cientificamente, em que a energia do inconsciente se liga a um arquétipo e
o expressa numa linguagem simbólica. A arte é um canal para esse nível não verbal
de percepção que existe na psique. Acredito, assim, que esse tipo de arte vem de um
profundo nível neurológico do cérebro, que faz emergir, através de símbolos vivos,
conteúdos que vão se transformar e direcionar a pessoa no seu processo de
individuação. (BELLO, 1996, p. 16).
O processo de AL foi muito interessante. No início era muito tensa, evasiva, passos e
gestos pesados. Passava nas suas falas e demonstrava nos primeiros trabalhos uma angústia
que a consumia visivelmente – tinha sempre olheiras e aspecto de cansaço. Ao longo do
processo isso foi se modificando, como já apontei. Seu depoimento final foi intenso falando
em como o trabalho tinha ajudado-a a se perceber como pessoa única e como mulher. Viu que
precisava desse tempo para si mesma e começou a se respeitar mais, mesmo em detrimento de
certos afazeres domésticos. Viu suas crises de enxaqueca e pressão alta diminuírem e venceu
o desafio da dieta. Disse que a Arteterapia em muito contribuiu para ter conseguido levar
adiante e “enxugar” quase 10 quilos. Ao receber seus trabalhos de volta, percebemos seu
“encantamento” ao observar o que produziu. Neste momento, muitos dos trabalhos que não
tinha gostado antes, pareceram-lhe “obras primas”.
Ao longo do estágio fui percebendo as transformações ocorridas em AL. Procurei
estabelecer uma relação com os tipos psicológicos de Jung. Ele propôs que cada individuo
desenvolve em “tipo psicológico”, uma maneira própria de aprender o mundo, a maneira
como a pessoa “funciona”. Para caracterizar essa tipologia, Jung descreveu duas atitudes e
quatro funções da consciência.
47
As atitudes propostas por ele são extroversão e introversão: O Extrovertido tem mais
facilidade de se relacionar com o outro, de tomar a iniciativa, de fazê-lo. O Introvertido
depende mais, conscientemente, da iniciativa do outro. Ambas são maneiras de se relacionar o
“eu” e o “outro” e todos nós temos sempre as duas atitudes com o predomínio consciente
tipológico, de uma delas.
Jung diferenciou quatro funções da consciência, dispostas em dois pares de opostosracional e irracional. O par racional é composto pelo Pensamento (razão da cabeça) e o
Sentimento (razão do coração). O par irracional é composto pela Sensação (capacidade de
perceber “fotograficamente as coisas”) e intuição (pessoa que tem “feeling” ou faro para as
coisas). Esses dois pares se distribuem como uma espécie de cruz, em seus opostos
caracterizando o que Jung chamou de função superior (dominante) ou inferior (menos
desenvolvida).
Embora o tipo psicológico, fundamentalmente herdado permaneça o meso ao longo da
vida, com o amadurecimento há uma tendência à maior integração à consciência das funções
menos desenvolvidas.
Diante da observação da cliente e seu crescimento durante o processo, estabeleci
conexões com a tipologia Junguiana e poderia descrevê-la como tendo o Tipo Pensamento
Introvertido como função principal. Como base no que foi descrito em seu processo poderia
acrescentar dados relacionados a esse tipo psicológico.
Quando aborda um problema procura, antes de tudo, situar idéias e pontos de vista
que lhe permitam uma visão panorâmica dos temas a estudar. Idéias gerais mal
digeridas, mal diferenciadas, confundidas umas nas outras põem os indivíduos desse
tipo irritadíssimo contra quem as apresenta em tal estado (...) O pensador
introvertido interessa-se principalmente pela produção de idéias novas (...). Seus
sentimentos são fortes e genuínos, manifestam-se de modo primitivo.(SILVEIRA,
1981, p.62)
48
Todo o processo de estágio foi enriquecedor em todos as instâncias: chegar numa
empresa grande e “defender” uma idéia nova foi instigante. Fazer o trabalho em dupla foi
muito bom, pois uma tem o suporte da outra por gestos e até por um olhar. Nos planejamentos
ficávamos atentas ao que o grupo “pedia”, mas também a cada um em particular. Trocávamos
dúvidas e partilhávamos observações deles e nossas durante a condução das vivências. Por
vezes também foi difícil, tínhamos maneiras diferentes de nos posicionar, de perceber o outro
e tivemos que fazer inúmeros acordos, fazer e ouvir críticas, mas sempre com a sensação de
crescer com elas.
E assim, a roda girou mais uma vez fechando esse ciclo para iniciar um outro. A partir
daqui seguirei profissionalmente nesse caminho do “construir-me” e “transformar-me” pela
via das imagens.
Nesse novo percurso, faz-se necessário alguns pontos imprescindíveis: continuar em
processo terapêutico, uma constante reciclagem em atelier expressivo, aprofundar o
conhecimento de algumas linguagens plásticas para dominá-las melhor, além de contínuo
estudo teórico para nortear a prática.
49
4 COMPREENDENDO A RODA
“É preciso vivenciar o caos para fazer nascer uma nova
estrela”.
(Nietzsche apud Bello, 1996, p36)
50
Ao final dessa jornada por meio de Arteterapia compreendi que os momentos da
minha vida não foram acontecimentos que, de repente, jorraram do nada numa determinada
data. Eles são parte de um processo em permanente mutação onde passado, presente e futuro
se fundem.
Muitas vezes tive a impressão de que minha roda pessoal estava presa, que as
“mesmas” experiências aconteciam repetidamente e me cobrava e culpava por isso.
Entretanto, ao me conhecer melhor durante esse processo, vi que era importante observar
essas repetições, esses movimentos de ir e vir que aconteciam e “ler” as “mensagens” vindas
do inconsciente (insights, sonhos ou pesadelos).
Durante o processo arteterapêutico tive a oportunidade de transformar essas imagens
em símbolos, utilizando diversos materiais para criar esculturas, desenhos, pinturas. A partir
dessas imagens concretas, fui percebendo pequenas transformações e as incorporando a uma
nova mulher que emergia, à medida que a roda girava.
Esse movimento da roda nunca volta ao mesmo ponto, ele abre em espiral e fica
sempre numa outra elevação, num outro ângulo. Há sempre um salto majorante. A Arteterapia
me possibilitou esse salto. Faço minhas as palavras de um artista mineiro2.
Faço arte para me situar e me ver no mundo, por instinto de sobrevivência. Através
dela aprendi, sobretudo o sentido de transitoriedade e mais, que não há nada além de
recomeçar, que a vida em todas as suas pulsações está aí e que este é meu grande
desafio: estar sempre oscilando entre os extremos, tentando romper as amarras e ir
além do que conquistei, esgotando-me e renovando-me.
A cada novo giro da roda é possível confrontar novas situações e experiências e dar
novo salto amadurecendo e seguir nessa lenta e árdua tarefa que aponta o caminho rumo à
individuação, rumo ao centro da personalidade, o self.
2
Depoimento de Marco Túlio Rezende registrado no encarte da exposição do artista Zello Visconti. Brasília
2001
51
REFERÊNCIAS
ALLESSANDRINI, Cristina Dias. Oficina Criativa e Psicopedadagogia. São Paulo: Casa
do Psicólogo, 1996.
________. Oficina criativa e Análise Microgenética de Projeto de Modelagem e Argila.
São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
BELLO, Susan. Pintando sua alma. Distrito Federal: Brasília, 1996.
FRANZ, Marie Louise Von. O processo de individuação. In: JUNG, Carl Gustav. O homem
e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.
GOUVÊA, Álvaro Pinheiro. Sol e Terra. São Paulo: Summus, 1989.
HALL, James A. Jung e a Interpretação dos Sonhos. São Paulo: Cultrix, 1996.
HYCNER, Richard. De Pessoa a Pessoa, Psicoterapia dialógica. São Paulo: Summus, 1995.
JULIANO. Jean Clark. A arte de restaurar histórias. São Paulo: Summus, 1999.
JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.
_____. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.
NICHOLS, Sallie. Jung e o Tarô – Uma Jornada Arquetípica. São Paulo: Cultrix, 1988.
OSHO, Rajneesh Bagwan Shrre. O livro da transformação. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.
OSTROWER, Fayga. Acasos e criação Artística. São Paulo: Campus, 1995.
SANTOS, Dilaina. A arte de construir bonecos e de contar a própria história. In:
ALLESSANDRINI, Cristina Dias (org.).Tramas criadoras na construção do “ser si
mesmo”. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.
SHARMAN-BURKE, Burke e GREENE, Liz. Tarô Mitológico. São Paulo: Siciliano, 1988.
SILVEIRA, Nise. Jung Vida e Obra. Rio de Janeiro, 1981.
52
ANEXO
53
UNIVERSIDADE POTIGUAR
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ARTE TERAPIA
ALUNAS ESTAGIÁRIAS: GRAZIELA AYRES DIAS E LUCIANE Mª B. DE
MEDEIROS
PROJETO ARTE TERAPIA E QUALIDADE DE VIDA
MAIO/2003
Local
Empresa Privada
Público Alvo: Atendentes de telemarketing
Setor médico – RSM
Apresentação
A rotina diária dos profissionais demanda um movimento intenso, pois envolve
compromissos diários e responsabilidades, entre outros.
Com o passar do tempo vão sendo geradas tensões que se não forem trabalhadas de
forma sistemática e equilibrada poderão resultar em stress exaustivo chegando até a causar
doenças. É preciso que dentro da rotina desses sujeitos, haja momentos em que seja resgatado
o contato com suas emoções possibilitando-os perceberem a si mesmos, ao outro e ampliarem
suas interações com o meio de vivência. Dessa forma será oportunizado a esses sujeitos que
administrem suas rotinas diárias de forma mais saudável e consigam tirar proveito das
situações estressantes, transformando-as criativamente.
Com base nessa reflexão faremos um trabalho nesta Instituição que venha a valorizar a
condição de cada indivíduo como único e potencialmente criativo, promovendo a
possibilidade de uma melhoria em sua qualidade de vida através da Arte Terapia.
O trabalho será desenvolvido por dois profissionais em formação nessa área, através
de encontros semanais com duração de 90 minutos cada. O estágio terá a carga horária de 80
horas. Cada atendimento será computado como 150 minutos, pois os minutos restantes serão
para a realização de estruturação interna do trabalho pela dupla facilitadora
54
Objetivos
- Trabalhar um grupo de profissionais tendo em vista o alívio do stress acumulado ao
longo da rotina diária de trabalho.
- Facilitar o desenvolvimento do auto conhecimento.
- Promover aos sujeitos através de atelier terapêutico, momentos de contato entre si,
podendo possibilitar a cada um deles a visão consciente de integração e interdependência
(visão sistêmica) que estabelecem com os outros.
- Proporcionar melhor qualidade de vida aos sujeitos, tornando-os seres mais criativos
em suas atuações profissionais e na resolução de problemas.
Metodologia
O trabalho será iniciado sempre com uma dinâmica de sensibilização e preparação do
grupo através da percepção de seus corpos, convidando-os a entrar em contato com os
sentimentos estados presentes.
A cada encontro serão realizadas várias atividades com materiais expressivos a serem
escolhidos de acordo com a demanda do grupo. Estes serão entregues aos participantes
visando possibilitar-lhes a expressão das emoções e imagens latentes.
Recursos
Modelagem, desenho, pintura, expressão corporal e demais recursos expressivos.
Materiais
Argila, giz de cera, lápis de cor, tinta guache, aquarela, pastel seco, pastel a óleo,
cartolinas brancas, papel Canson (formato A4 e A3), revistas, jornais, cola e tesoura.
Avaliação
Haverá um momento após as atividades em que cada participante poderá fazer uma
reflexão sobre a vivência e dividir com o grupo sua experiência.
55
Referências
GOLEMAN, Daniel. Emoções que curam: conversas com o Dalai Lama sobre mente alerta,
emoções e saúde. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
POLITY. E. (org). Psicopedagogia: um enfoque sistêmico – terapia familiar nas
dificuldades de aprendizagem. SP: Empório do livro, 1998.

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