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Mensagem
NO ANO SANTO DA MISERICÓRDIA, O OITAVO
CENTENÁRIO DA INDULGÊNCIA DA PORCIÚNCULA
Caríssimos irmãos e irmãs,
Que o Senhor lhes dê a Paz
e todo o Bem!
A Ordem Franciscana, neste ano
de 2016, faz memória dos 800 anos da
“Indulgência da Porciúncula”, também
conhecida pelo nome de “O Perdão de
Assis”. Mesmo conhecendo, não é demais repetir a essência desta “Indulgência” que a história franciscana nos
transmitiu pelo testemunho tardio de
Bartolomeu de Pisa (+1401?). Ele nos
relata:
Uma noite, do ano do Senhor de
1216, Francisco estava compenetrado
na oração e na contemplação na igrejinha da Porciúncula, perto de Assis,
quando, repentinamente, a igrejinha
ficou repleta de uma vivíssima luz e
Francisco viu sobre o altar o Cristo e à
sua direita a sua Mãe Santíssima, circundados de uma multidão de anjos.
Francisco, em silêncio e com a face por
terra, adorou a seu Senhor.
Perguntaram-lhe, então, o que ele
desejava para a salvação das almas.
A resposta de Francisco foi imediata:
“Santíssimo Pai, mesmo que eu seja um
mísero pecador, te peço, que, a todos
quantos arrependidos e confessados,
virão a visitar esta igreja, lhes conceda amplo e generoso perdão, com uma
completa remissão de todas as culpas”.
O Senhor lhe disse: “Ó Irmão Francisco, aquilo que pedes é grande, de coisas maiores és digno e coisas maiores
tereis: acolho portanto o teu pedido,
mas com a condição de que tu peças
esta indulgência, da parte minha, ao
meu Vigário na terra (Papa)”.
E imediatamente, Francisco se
apresentou ao Pontífice Honório III
que, naqueles dias encontrava-se em
Perusa e com candura lhe narrou a viJULHO / 2016 [COMUNICAÇÕES]
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Mensagem
teve. O Papa o escutou com atenção e, depois de alguns esclarecimentos, deu a sua aprovação e disse: “Por
quantos anos queres esta indulgência”?
Francisco destacadamente respondeulhe: “Pai santo, não peço por anos, mas
por almas”.
E feliz, se dirigiu à porta, mas o
Pontífice o reconvocou: “Como, não
queres nenhum documento”? E Francisco respondeu-lhe: “Santo Pai, de
Deus, Ele cuidará de manifestar a obra
sua; eu não tenho necessidade de algum documento. Esta carta deve ser
a Santíssima Virgem Maria, Cristo, o
Escrivão, e os Anjos, as testemunhas”.
E poucos dias mais tarde, junto aos
Bispos da Úmbria, ao povo reunido na
Porciúncula, Francisco anunciou a indulgência plenária e disse entre lágrimas: “Irmãos meus, quero mandar-vos
todos ao paraíso!”
A Ordem dos Frades Menores, na
busca da aproximação dos Irmãos ao
apelo de Jesus Cristo, “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc 6,36), elegeu para este ano o
tema “Irmãos e Menores rumo à Misericórdia e ao Perdão”, procurando
unificar o ano do Jubileu da Misericórdia aos 800 anos do Perdão de Assis. Nas “Linhas Guias do Definitório
Geral para a animação nos anos 2016
e 2017”, se afirma: “No pensamento de
São Francisco a misericórdia é antes
de tudo um atributo de Deus e depois
é também uma qualidade necessária em nossas relações interpessoais”.
Vejamos, portanto, como fazer esta
leitura da misericórdia e do “amplo e
generoso perdão” a partir dos Escritos
de São Francisco de Assis.
“Misericórdia e perdão, um
atributo de Deus”
São Francisco de Assis, no final da
sua vida, junto à capelinha da Porciúncula (local onde, segundo o testemunho de Bartolomeu de Pisa, suplicou “o amplo e generoso perdão”),
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[COMUNICAÇÕES] JULHO / 2016
recorda a todos o quanto a misericórdia de Deus determinou toda a sua
vida penitencial, na obediência a Jesus Cristo, “o rosto da misericórdia do
Pai” (EV 1): “O Senhor me concedeu
a mim, Frei Francisco, iniciar uma
vida de penitência: como estivesse em
pecado, parecia-me deveras insuportável olhar para leprosos. E o Senhor
mesmo me conduziu entre eles e eu
tive misericórdia com eles” (Test. 1).
Assim, na leitura sequencial do Testamento, constatamos que o Senhor
misericordioso foi para Francisco e
é para todos os frades: o referencial
da vida de oração; o fundamento da
fé à santa Igreja que se faz visível na
Eucaristia, no anúncio da Palavra,
nos sacerdotes e teólogos; a origem
da nova família chamada ‘Fraternidade’ que vive segundo a forma do
santo Evangelho e que asceticamente
se empenha para viver a pobreza pela
graça do trabalho; o impulsionador de
uma evangelização que começa pelo
anúncio da Paz, para animar os frades
a irem pacificamente pelo mundo e
protagonizarem em todos os tempos
da história a utopia da Paz, cantada na
noite do nascimento do Verbo que se
fez carne: “Paz na terra aos homens de
boa vontade”.
Esta Misericórdia, como atributo
divino, também é contemplada na Regra não Bulada, quando São Francisco
convoca os frades a perseverarem na
verdadeira fé e penitência como condição salvífica: “Amemos todos, de
todo coração... o Senhor nosso Deus...
que nos criou e nos remiu e só por sua
misericórdia nos salvará” (Cf. RnB
23, 23-26). Francisco de Assis, ao inserir nesta Regra a belíssima “Oração
de louvor e ação de graças”, contempla a “misericordiosa salvação” como
um dom que procede do “Onipotente,
altíssimo, santíssimo e sumo Deus”,
revelada na ação das Pessoas da Santíssima Trindade (“Trindade perfeita
e Unidade simples” cf. CtOr 53): o
Pai santo e justo que é Rei e Senhor,
Criador do céu e da terra; o Filho
Redentor e Salvador, pois Nele todos
fomos criados e amados; e o Espírito
Santo Paráclito que anima e santifica
todos os seres espirituais e corporais.
Portanto, é a totalidade da vida, isto é,
toda a criação que necessita da misericórdia e do perdão. Esta reflexão é
retomada pelo Papa Francisco na Encíclica Laudato Sì.
Misericórdia e perdão também
são rezados e contemplados por São
Francisco na assim chamada “Paráfrase à Oração do Senhor”. Quando
Bartolomeu de Pisa relata que o Pobre de Assis intercedeu pelo “amplo
e generoso perdão, com uma completa remissão de todas as culpas”,
isto se torna evidente nesta meditação franciscana que encontramos na
Paráfrase ao Pai-nosso: “Perdoai-nos
as nossas dívidas: pela vossa inefável misericórdia, pela virtude da
paixão de vosso dileto Filho e pelos
méritos e intercessão da beatíssima
Virgem Maria e de todos os vossos
eleitos. Assim como nós perdoamos
aos nossos devedores: aquilo que não
conseguimos perdoar plenamente,
fazei vós, Senhor, que perdoemos
plenamente”. O perdão pleno muitas
vezes se torna difícil porque, mesmo
dizendo que perdoamos a quem nos
tem ofendido, guardamos no coração
mágoas ou ressentimentos passados.
Logo, o perdão pleno é acima de tudo
uma ação da “inefável misericórdia”
do Pai celestial: “Sede misericordiosos, como é misericordioso vosso Pai
celestial” (Lc 6,36), “clemente e compassivo, lento para a cólera, grande
em misericórdia” (Sl 145, 9).
O que não dizer dos muitos atributos divinos cantados por São Francisco nos “Louvores a Deus Altíssimo”?
E no verso deste pergaminho se encontra a belíssima bênção do Senhor
compassivo e misericordioso que o
Estigmatizado do Alverne deu
Mensagem
“ Ouvi-me, Senhor, pois vossa bondade é compassiva; em nome de
vossa misericórdia voltai-vos para
mim” (Sl XII, 7).
“A vós, salmodiarei, ó meu auxílio,
pois sois o Deus que me acolhe, meu
Deus, minha misericórdia” (Sl XII,
10).
“ Eu, porem, esperei em vossa misericórdia” (Sl XIII 5).
“ Naquele dia, o Senhor enviou sua
misericórdia e de noite o seu cântico” (Sl XV, 5).
Misericórdia e perdão,
virtudes necessárias nas
nossas relações interpessoais
a seu companheiro e amigo Frei
Leão. Depois da experiência transfiguradora no Monte Alverne, onde
o amante e o Amado se fundem no
mistério do amor e da dor, o “angélico
Francisco” elenca nesta oração de louvor vários atributos ou propriedades
divinas e a conclui com esta exclamação: “Tu és nossa vida eterna: grande
e admirável Senhor, Deus onipotente,
misericordioso Salvador”. O coração
compassivo (miserior+cor) do Senhor
Deus Santo se visibiliza como Salvador (salvator), ou seja, o médico que
cuida, sana as feridas, cura as enfermidades e as culpas.
A misericórdia de Deus também
é invocada na oração conclusiva da
Carta a toda a Ordem: “Eterno Deus
onipotente, justo e misericordioso,
concedei-nos a nós míseros praticar
por vossa causa o que reconhecermos ser a vossa vontade... para seguir
as pegadas de vosso Filho, nosso Senhor Jesus Cristo”. A misericórdia
do Senhor é fundamental para que a
Ordem se coloque no seguimento de
nosso Senhor Jesus Cristo, pois o justo e misericordioso Deus purifica-nos
dos pecados, nos dá o discernimento
do coração e nos abrasa com o fogo do
Espírito Santo.
Enfim, dada a sua familiaridade
com a Palavra de Deus, mais especificamente na oração do Ofício Divino, São Francisco compõe para sua
devoção pessoal e da fraternidade o
chamado “Ofício da Paixão do Senhor”. Nesta oração, ele reza e contempla o Senhor Misericordioso em
todos os Tempos Litúrgicos e nas diversas Horas Canônicas. Sem entrar
em detalhes, apenas elenco alguns
versículos:
“ Deus enviou sua misericórdia e sua
verdade, arrancou a minha alma dos
meus fortíssimos inimigos, pois se
tornaram mais fortes do que eu...”
(Sl III, 5).
“ Porque aos céus se eleva a vossa
misericórdia, até às nuvens a vossa
verdade” (Sl III, 11).
“ Naquele dia, o Senhor enviou sua
misericórdia e na noite foi cantado
o seu louvor (Sl IX,4).
“A vós, meu Deus, cantarei salmos
porque sois minha defesa, vós sois
meu Deus e minha misericórdia” (Sl
XI 9).
A segunda afirmação das Linhas
Guias do Definitório Geral para a animação nos anos 2016 e 2017, é que a
“misericórdia é uma qualidade necessária em nossas relações interpessoais”. E isso para dar visibilidade concreta ao apelo de Jesus Cristo: “Sejam
misericordiosos como é misericordioso o vosso Pai celeste” (Lc 6,36).
Em primeiro lugar, nessa linha
de pensamento, eu diria que a misericórdia é uma virtude a ser cultivada. Na 27ª Admoestação, quando São
Francisco descreve as “Virtudes que
afugentam os vícios”, afirma: “Onde
há misericórdia e discernimento,
aí não há nem superfluidade nem rigidez (Adm 27,6). No pensamento e
na lógica do Santo de Assis, cada virtude é um ‘anjo protetor’ das demais
virtudes, como ele mesmo nos atesta em outro escrito, assim chamado
“Elogio das Virtudes”. Ao saudar as
virtudes parceiras, onde uma virtude é irmã e protetora da outra, assim
escreve: “Quem possuir uma de vós e
não ofender as demais, a todas possui;
e quem a uma ofender, nenhuma possui e a todas ofende. E cada uma por
si destrói os vícios e pecados” (EV 6).
Em outras palavras, o cultivo de uma
virtude qualifica o irmão a ser um
“Frade perfeito”, tão bem descrito
JULHO / 2016 [COMUNICAÇÕES]
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Mensagem
e formulado no Espelho da Perfeição: “Francisco examinava em si
mesmo as qualidades e as virtudes de
que deveria ser dotado o bom frade
menor” (cf. EP 85).
Assim, por ser uma virtude de
fundamental importância, a misericórdia é determinante nas relações interpessoais na fraternidade. Quando
a virtude da misericórdia adormece,
adoece e desaparece na vida do frade menor, a superfluidade e rigidez
minam e destroem as sagradas relações fraternas. Consequentemente
se evidenciam várias fragilidades: os
rancores pessoais que turbam a limpidez da alma ou a pureza de coração;
a dureza de coração que nos torna
rígidos e inclementes; a insensibilidade diante das necessidades físicas e
espirituais do irmão; a dificuldade de
perdoar e de oferecer o perdão; a inclemência diante do erro do confrade,
os julgamentos duvidosos e desnecessários; a invejosa desconsideração
da virtude que potencializa o irmão,
etc. São males que destroem em nós o
profetismo da misericórdia de um Pai
Misericordioso. O Papa Francisco, no
último Capítulo Geral da Ordem, nos
recordava: “É importante recuperar a
consciência de que somos portadores
de misericórdia, de reconciliação e de
paz”.
Francisco de Assis, profundo conhecedor da fragilidade humana, nos
ajuda a pensar e agir misericordiosamente. Cito alguns textos, com exemplificações concretas:
Na 2ª Carta aos Fiéis, dirigindo-se
aos cristãos que vivem religiosamente,
recorda a caridade e a misericórdia às
pessoas que estão investidas do poder:
“Aqueles que receberam o poder de
julgar os outros exerçam o julgamento com misericórdia, como eles próprios gostariam de obter do Senhor
a misericórdia. Pois, julgamento sem
misericórdia terão os que não fizeram
misericórdia” (2CtFi 28-29).
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[COMUNICAÇÕES] JULHO / 2016
Na Carta que escreveu a um Ministro dos Frades Menores, a chamada carta-magna da Misericórdia,
São Francisco acolhe na misericórdia
as reais dificuldades de um superior
colocado como servidor de uma
determinada fraternidade. Na vida
cotidiana, no enfrentamento das dificuldades e diferenças, há algo mais
importante que deve prevalecer, que
está até mesmo acima do valor da
vida contemplativa num eremitério.
Este algo ‘mais’ (plus = soma) é a vida
fraterna! “E nisto quero reconhecer
se tu amas o Senhor e a mim, servo
dele e teu, se fizeres isto: não haja no
mundo irmão que pecar, o quanto
puder pecar, que, após ter visto teus
olhos, se sinta talvez obrigado a sair
de tua presença sem obter misericórdia se misericórdia buscou. E se não
buscar misericórdia, pergunta-lhe se
não na quer receber...” (Ct Min 5-7).
E ainda: se alguém pecar, “não o envergonhem nem descomponham.
Tenham antes grande misericórdia
com ele e mantenham oculto o pecado... O Custódio, por sua vez, o atenda com misericórdia, como desejaria
ser tratado se estivesse em idêntica
situação”. E Francisco conclui o texto
com a orientação e indução ao rito
sacramental da reconciliação e da absolvição, acrescentada da recomendação evangélica: “Vai e não peques
mais” (cf. CtMi 13-15).
Ser misericordioso, indulgente, compreensível, amável não significa ser conivente
com o pecado, nem mesmo permitir que
o irmão fique vagando fora da obediência
e da Regra. “Aqueles irmãos que não os
quiserem observar (exercícios regulares
da vida penitencial, vaguear pelo mundo
sem se importar com a disciplina da Regra) não os considerarei como católicos
nem como irmãos: não quero vê-los nem
falar-lhes, enquanto não mudarem de atitude” (cf. CtOr 40-46). Portanto, oferecer
misericórdia e corrigir se complementam
no exercício do amor fraterno.
Conclusão
Na celebração do Ano Santo da
Misericórdia e dos 800 anos da Indulgência da Porciúncula, que também
entre nós celebremos o “Perdão de
Assis”. Reviver o perdão com a mesma
audácia com que São Francisco o celebrou no Cântico das Criaturas, num
momento crítico de divergências nas
relações humanas: “Louvado sejas,
meu Senhor, pelos que perdoam por
teu amor, e suportam enfermidades e
tribulações. Bem aventurados os que
as sustentam em paz, que por ti, Altíssimo, serão coroados”.
Que entre nós resplandeçam as
obras de misericórdia dentro e a partir das nossas fraternidades. “É bom
perseverar nas obras de misericórdia e
ter tempo para os bons frutos, ajudar
os necessitados e dar alguma coisa aos
pobres”, nos recorda o Sacrum Commercium (n 39). As obras de misericórdia nos obrigam a viver no espírito de pobreza, libertando-nos da das
doenças da autorreferencialidade, da
sede do poder e do egoísmo. Por isso
as obras e gestos de misericórdia, dentro e fora das nossas fraternidades, não
são ações facultativas. A misericórdia é
uma seta de fundamental importância
no discurso das Bem-aventuranças,
logo, consequência do amor fraterno.
São Francisco de Assis, depois de
falar do Misericordioso Redentor nos
“Louvores a Deus”, soube compreender a dificuldade do seu companheiro
Frei Leão. Por isso, com um coração
terno e misericordioso, oferece-lhe
em forma de bênção a face misericordiosa de Deus: “O Senhor te abençoe e
te guarde; te mostre a sua face e tenha
misericórdia de ti. Volva para ti o seu
olhar e te dê a paz. Frei Leão, o Senhor
te abençoe”.
Meu irmão e minha irmã, o Senhor
vos abençoe!
Frei Fidêncio Vanboemmel, OFM
Ministro Provincial

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