paisagem_e_lugar002

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paisagem_e_lugar002
A PAISAGEM COMO FORMA DE
EXPRESSÃO ESTÉTICA E A PAISAGEM GEOGRÁFICA
Como vimos no capítulo anterior, o espaço geográfico é o objeto de análise da Geografia. Para
compreendê-lo, a Geografia se apoia em uma série de conceitos, de palavras-chave que apresentam
significados específicos e se baseiam em teorias.
Três conceitos em especial orientam os estudos geográficos: a paisagem, o lugar e a região. É
importante saber que esses conceitos não são exclusividade da Geografia, pois outras áreas do
conhecimento também os analisam e os utilizam.
Um conceito científico não possui o mesmo significado que consta do dicionário. Como você viu no
capítulo 1, a palavra "espaço"tem vários significados, mas, no caso da Geografia, ela constitui um conceito específico apoiado em teorias. O mesmo
vale para outros conceitos, tais como natureza,
sociedade, lugar, paisagem e região. Vejamos
o exemplo do conceito de paisagem.
A palavra "paisagem" geralmente é utilizada para se referir a lugares belos, amplos,
praias desertas, várzeas de rios, campos gramados ou com grandes plantações, casinhas
de taipa com pequeno lago ou com uma
montanha ao fundo, cidades turísticas etc.
Busca-se na paisagem o idílico, o bucólico,
a imagem do que não se pode observar no
cotidiano, especialmente quando se vive em
grandes cidades. Nessa perspectiva, a paisagem se torna algo desejável, por transmitir
sensação de tranquilidade e de prazer.
Canão-postai de Paris (França), em 1889.
Paisagens majestosas são exploradas por agências de turismo para mostrar as qualidades de um lugar
e, assim, vender pacotes de viagem. Os cartões-postais, por exemplo, costumam mostrar os aspectos
mais belos de um lugar, como céu azul ou o pôr do sol. Ao viajar, muitos também procuram retratar em
fotografias as paisagens, sejam elas urbanas, rurais, culturais ou naturais, de seu melhor ângulo.
Vista noturna em Nova Iorque
(Estados Unidos), em 2012.
Na arte, especificamente na pintura, a paisagem constitui um de seus géneros e foi bastante retratada ao longo da história e ainda o é nos dias atuais. Artistas do movimento impressionista, como
Van Gogh (1853-1890), Renoir (1841-1919), Monet (1840-1926) e Manet (1832-1883), representaram,
com precisão e destreza, a beleza de muitas paisagens. Mostravam a ideia de paisagem relacionada
ao belo, aos campos abertos, às cidades com luz e cores reluzentes, à luz do sol.
Paisagem de Auvers após a chuva, de 1890, do artista plástico holandês Vincent van Gogh.
Nos séculos XVI a XIX, paisagens
do Brasil e da América Latina também
foram retratadas em muitas obras de
artistas europeus. Aspectos da fauna,
da flora, das paisagens tropicais e do
povo que vivia nesses lugares aparecem representados em pinturas do
holandês Frans Post (1612-1680), do
francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) e do alemão Johann Moritz
Rugendas (1802-1858).
Essas imagens, como as pinturas
impressionistas e as paisagens que
surgem em guias turísticos, contribuem para a construção da ideia de
paisagem. Além disso, as experiências
sensoriais cotidianas, os aspectos percebidos pelos sentidos - especialmente a visão, a audição e o olfato - também influenciam a nossa percepção
de paisagem.
Paisagem na selva tropical brasileira em 1830,
de Johann Moritz Rugendas.
Para a Geografia, a paisagem não se refere apenas ao belo nem resulta somente das informações
apreendidas pela arte e pelas experiências sensoriais. A ciência que discute o espaço geográfico
considera a paisagem o primeiro elemento que nos permite ter contato com a realidade.
Para o geógrafo brasileiro Milton Santos, "a paisagem é um conjunto de formas que, num dado
momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem
e natureza".
A Geografia, diferentemente do turismo, de parte dos movimentos artísticos ou das pessoas em
geral, não busca somente o belo na paisagem, mas sim os elementos nela presentes que permitem
compreender o espaço geográfico, conceito que você estudou no capítulo anterior.
a em Calcutá (índia), em 2009. Nos países pobres, as paisagens dos bairros onde vivem as pessoas com menor poder aquisitivo
revelam aspectos das condições socioeconômicas, como falta de infraestrutura e moradias precárias. No caso desta paisagem de Calcutá,
oercebe-se a miséria económica das pessoas que habitam esse lugar.
A paisagem reproduz a expressão de vários tempos, ou seja, o contexto histórico em que ela foi
construída. Caracteriza-se pelos elementos que foram inseridos ao longo do tempo e que coexistem
com os atuais. Construções, casas, prédios, armazéns, ruas, praças e a distribuição deles no espaço
compõem os elementos de uma paisagem e podem sofrer transformações ou permanecer inalterados.
As funções desses elementos culturais podem também mudar com o tempo.
Além disso, a paisagem é a expressão do meio, ou seja, do ambiente natural e da cultura de uma
sociedade; resulta dos usos das técnicas desenvolvidas em cada período, da arquitetura, das atividades
económicas e das características presentes nesse meio.
O que define o nível de mudanças em uma paisagem é a atuação da sociedade, que contribui para
a formação e o desenvolvimento do espaço geográfico. Assim, para analisar o espaço geográfico,
é preciso compreender de que forma as sociedades se inserem nesse espaço e qual uso fazem das
paisagens.
Quanto mais intensas são as ações humanas no espaço, mais elas ficam evidentes na paisagem. De
outro lado, quanto menos intensas são essas ações, mais se pode observar a dinâmica da natureza
na transformação da paisagem.
É importante mencionar que os estudos geográficos não podem se basear apenas na observação
da paisagem e dos elementos naturais e culturais que a compõem. Uma dada realidade aparente
pode ocultar uma série de aspectos que não estão expressos diretamente na paisagem. Por exemplo,
ao se observar a construção de uma grande obra de engenharia, como uma usina hidrelétrica, não
se pode ver (no sentido literal) as relações sociais, económicas e de poder que aí se desenvolvem.
Para compreender o espaço geográfico, portanto, a paisagem é a "porta de entrada", mas muitas
vezes as respostas para questões que envolvem o espaço devem ser buscadas em elementos nem
sempre explícitos.
Algumas classificações da paisagem
Uma das mais comuns classificações de paisagem é a que distingue paisagem natural - onde há
predomínio dos aspectos naturais (relevo, vegetação, hidrografia, clima) - de paisagem humanizada
- onde há predomínio das ações humanas.
A ação da natureza transforma a paisagem, mas ela não é a única a ser analisada. Na foto, vulcão Llaima em erupção (Chile), 2009.
Essa classificação simplifica as análises sobre a paisagem e esconde questionamentos importantes
sobre a relação entre sociedade e natureza nos dias atuais. Ela não considera a intensidade da ação
humana nem o modo como essa ação se expressa na paisagem.
Pode-se perceber que hoje a ação humana no espaço geográfico é mais intensa do que no passado.
Após o advento do capitalismo e da Revolução Industrial, as sociedades modernas transformaram o
espaço geográfico de forma muito acentuada e veloz. Com isso, houve uma redução drástica das áreas
que poderiam ser consideradas naturais e, atualmente, quase inexistem porções do espaço geográfico
mundial que não recebam direta ou indiretamente as influências da ação da sociedade.
O próprio conceito de espaço geográfico não é levado em consideração nessa classificação. Pois,
compreendendo-se o espaço geográfico como aquele onde o ser humano imprime as suas marcas,
sabendo que a sociedade tem se apropriado direta ou indiretamente de todo o planeta, não haveria
mais, em princípio, paisagens naturais.
A ação humana está presente em vários domínios naturais e até mesmo nos locais destinados
1 preservação ambiental. São áreas cercadas, monitoradas, observadas, fotografadas e mesmo
disputadas.
Na Amazónia, por exemplo, observam-se as ações de cientistas, que pesquisam a floresta; de
grileiros, que pretendem ocupar as terras para em seguida comercializá-las; de madeireiros, que
juscam comercializar a madeira, muitas vezes devastando a floresta; e de ribeirinhos, que já vivem
lessas áreas há muitos anos e desenvolvem formas de agricultura de subsistência. Há ainda o inte•esse dos grandes proprietários de terras em mudar o caráter de preservação permanente das áreas
de proteção e a pressão internacional pelo aumento da produção de determinados alimentos em
áreas rurais. São ações intencionais de grupos sociais, motivo pelo qual as paisagens dessas áreas
Dodem ser consideradas humanizadas.
Além dessas ações humanas diretas no espaço geográfico, outras influências indiretas podem ser
:onsideradas, como, por exemplo, a poluição atmosférica que atinge até os pontos mais remotos
da Terra.
Um questionamento que a classificação anterior traz é: as paisagens transformadas por essas
ações humanas, mesmo apresentando predomínio dos aspectos naturais, podem ser classificadas
:omo naturais?
Acredita-se que a ação da
sociedade na paisagem, direta
DU indireta, intencional ou não,
diminui o caráter de primeira
natureza, transformando-a em
segunda natureza, como você
aprendeu no capítulo anterior.
(Vtualmente são as paisagens
lumanizadas que predominam
2 elas podem ser classificadas
de acordo com a intensidade
da ação da sociedade. Assim,
existem:
• paisagens intensamente
transformadas: nelas se verificam mais intensamente
as transformações provocadas pela ação das sociedades. Quase não existem
os aspectos naturais, pois
predominam construções,
plantações, pecuária, mineração, entre outros elementos. Essas paisagens
podem ser rurais, urbanas e
até marítimas. Exemplos: cidades, grandes plantações,
plataformas de extração de
petróleo, áreas de extração
mineral etc;
As paisagens das granc(es
(China) em 2008.
cidades revelam a intensa ação humana. Na foto, cidade de Hong Kong
paisagens pouco transformadas: nelas percebe-se a ação humana, entretanto, ela ocorre com
menor intensidade. Apesar de haver ação da sociedade, nessas paisagens predominam os
aspectos naturais. Exemplos: algumas áreas de preservação ambiental, áreas onde se desenvolve o extrativismo vegetal, áreas de sistemas agroflorestais (onde há plantação associada à
vegetação natural) etc;
Nas áreas onde a
presença humana é
pouco intensa e as
atividades económicas
ainda estão muito
ligadas à natureza,
há predomínio dos
elementos naturais
na paisagem. Na
foto, comunidade
ribeirinha que pratica
a pesca artesanal, nas
margens do rio Negro,
próximo a Manaus
(AM), em 2012.
paisagens indiretamente transformadas: são aquelas nas quais a sociedade não atua efetivamente, mas já atua indiretamente. Essas paisagens apresentam predomínio da natureza,
como as matas, a presença do relevo etc. Exemplos: áreas da Antártida, áreas de preservação
permanente da Floresta Amazônica, do cerrado, da savana ou de qualquer outro bioma. No caso
da Antártida, por exemplo, alguns cientistas afirmam que a ação humana pode ser percebida
nesse continente por meio das estações de pesquisa e até mesmo da presença de restos de
lixo, levados pelas correntes marítimas, ou da concentração de poluentes, provenientes das
altas camadas da atmosfera.
As ações antrópicas se —
estendem por muitas
áreas do planeta,
mesmo distantes de
locais onde há grande
presença humana.
Na foto, uma enorme
quantidade de lixo
transportada por
correntes marítimas
se acumulam no atol
Midway, no oceano
Pacífico, em 2009.
As paisagens podem ser classificadas ainda de outra maneira, considerando as características dos
elementos que as compõem:
• paisagem urbana: são aquelas onde há o predomínio das atividades que se desenvolvem nas
cidades. Nessas paisagens destacam-se grandes construções, a concentração populacional, as atividades económicas (como o setor de serviços), parques industriais, entre outros elementos;
• paisagem rural: são aquelas onde há o predomínio das atividades rurais (agricultura, pecuária e
extrativismo). Nessas paisagens, em geral, observam-se plantações, áreas de criação de animais,
mineradoras, agroindústrias (especialmente ligadas à produção de alimentos).
•
NO LUGAR VI VENCI AMOS O COTIDI ANO
Veja os significados da palavra "lugar"que aparecem no dicionário Aurélio:
Lugar: l . Espaço ocupado; sítio. 2. Espaço. 3. Sítio ou ponto referido a um fato. 4. Espaço
próprio para determinado fim. 5. Ponto de observação; posição, posto. 6. Esfera, roda, ambiente. 7. Povoação, localidade. 8. Região, país. 9. Posição, situação. 10. Classe, categoria, ordem.
11. Ocupação, emprego, função, cargo .12. Assento marcado e determinado .13. Posição determinada
num conjunto, numa escala, numa série; colocação; entre outras definições.
Fonte: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa.
Edição eletrônica. Curitiba: Positivo, 2009.
Como você pode observar, a palavra "lugar" possui vários significados. Para a Geografia, o lugar
expressão da história cotidiana das pessoas, da maneira como elas ocupam o espaço, dos usos
fazem dele e a maneira de vivenciá-lo.
Para entender melhor esse conceito, vamos imaginar uma pequena cidade. Uma pessoa que
mora ali vivência esse lugar na sua totalidade, pois, como há poucas opções de serviços (comércio, lazer, educação, saúde, entre
outros), as pessoas se encontram mais, frequentam os mes- DS estabelecimentos, há mais
aproximação entre indivíduos de
diferentes classes sociais, origens
e etnias. Além disso, a distribuição das moradias e das demais
construções, ou seja, a ocupação
do espaço, ocorre de forma diferente em comparação às grandes
cidades; nas pequenas cidades, as
moradias são mais próximas umas
às outras. Contudo, é preciso destacar que, nas cidades pequenas,
assim como nos demais lugares,
ocorrem usos distintos do espaço,
pois tudo depende das condições
,
seus habitantes.
.
,
Famílias em parque de Águas de São Pedro (SP), 2009. É comum as pessoas se conhecerem e
conviverem cotidianamente, encontrando-se com regularidade. Pode-se dizer que os indivíduos
vivenciam esses espaços na sua totalidade.
As pessoas que moram no campo, próximo das cidades pequenas, também as vivenciam como
um todo, pois de certa forma dependem delas - vão às compras, ao médico, à escola e buscam o
lazer ou outros serviços nessas cidades, onde eles são oferecidos. A melhoria dos meios de transporte
tem possibilitado ainda mais esse contato entre o campo e a cidade.
Já as grandes cidades são vivenciadas de forma fragmentada e são compostas, portanto, de vários
lugares. Isso ocorre em função das distâncias entre os lugares e das condições socioeconômicas dos
grupos que aí vivem e, desse modo, cada lugar é usado por distintos grupos de pessoas. Uma rua,
diferentemente da cidade pequena, é vivida somente por aqueles que lá moram, trabalham ou são
obrigados a percorrê-la para algumas de suas atividades cotidianas. As praças são pontos de encontro
de moradores de rua, de transeuntes e de pessoas que moram perto, e não da população como um
todo; existem diversos centros comerciais e os moradores dessas cidades não vão a todos, mas sim
buscam aqueles que apresentam maior facilidade de acesso, entre outros fatores.
Nessas cidades, portanto, nem todos se conhecem, em geral não frequentam os mesmos ambientes
e vivenciam os diferentes lugares a partir da disponibilidade de serviços ofertados. Desse modo, cada
lugar torna-se um fragmento da cidade grande, constituindo uma "colcha de retalhos", um conjunto
de pedaços que se relacionam entre si.
Paisagem urbana
na orla marítima de
Maceió (AL), em 2009.
A divisão das cidades grandes em zonas (norte, sul, leste e oeste; cidade baixa, cidade alta; cidade
velha, cidade nova) e a organização em bairros demonstram um pouco a existência desses fragmentos,
dos diversos lugares que constituem um espaço. Além disso, esse modo de organização espacial
demarca, em muitos casos, a identidade dos grupos de moradores. Essa identidade envolve a história dos lugares e se expressa na cultura, na linguagem, nos sotaques, nas tradições e nos hábitos
dos grupos sociais. É preciso analisar também de que forma se dão a constituição e a produção
dos lugares.
Observe nas fotos da avenida São João, em São Paulo, na página a seguir, como as transformações
urbanas podem modificar um lugar. As intervenções decorrentes do desenvolvimento do capitalismo
industrial naquela cidade modificaram a relação das pessoas com esse lugar. Nas primeiras décadas
do século XX, a avenida São João era uma rua com pequenos prédios, apresentava circulação de
veículos e de bondes. Era um lugar de passagem, mas também de compras, de encontros para um
café. Como não existiam muitos lugares com essas características na cidade, era frequentada por
boa parte da população.
Após a década de 1950, essa mesma
rua se transformou num espaço de lazer, com teatros, cinemas, cafés e bares,
marcado por encontros entre jovens da
época. Os encontros noturnos atribuíram
outra feição ao lugar. Depois da construção de um grande viaduto nos anos
1970, o elevado Costa e Silva, que ocupa praticamente toda a extensão dessa
avenida, houve mudanças significativas
no uso espacial. Surgiu um grande número de marginalizados, moradores de
rua, usuários e traficantes de drogas que
vivem embaixo desse grande viaduto e,
nos fins de Semana, especialmente na
Avenida São João, no centro de São Paulo (SP), em 1973.
parte superior do viaduto, o espaço exerce uma função antiga: moradores se reúnem para a prática
de esportes, caminhadas e outras atividades.
rlistas e pedestres sobre o elevado Costa e Silva, em São Paulo (SP),
Morador de rua sob o elevado Costa e Silva, na avenida São João,
12012.
em São Paulo (SP), em 2010.
Como se pode observar, historicamente, os lugares se transformam à medida que o desenvolvimento económico se expressa nas paisagens e as funções e os usos dos lugares vão tomando
novas configurações. As relações socioculturais e político-econômicas vão se transformando e
transformando o lugar. Sobre isso, leia o texto a seguir.
Ampliando conceitos
O lugar é a base da reprodução da vida e pode ser
analisado pela tríade habitante-identidade-lugar. A cidade, por exemplo, produz-se e revela-se no plano da
vida e do indivíduo. Este plano é aquele do local. As
relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se exprimem todos os dias nos modos de usos,
nas condições mais banais, no secundário, no acidental.
E o espaço passível de ser sentido, pensado, apropriado
e vivido através do corpo.
Fonte: CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo. São
Paulo: Hucitec, 1996. p. 19-20.
Nesse texto está expressa uma perspectiva que entende o lugar como a "base de reprodução
da vida". Desse modo, pode-se afirmar que, na Geografia, o conceito de lugar vai além daqueles
apresentados no dicionário Aurélio, como vimos anteriormente. Para compreender o lugar, busca-se
analisar os usos que as pessoas fazem dele, as relações entre os indivíduos, as marcas deixadas, a
cultura construída, a forma como se dá a apropriação do espaço, além das atividades económicas
desenvolvidas.
Não é somente a ciência que busca compreender o conceito de lugar. A Literatura também se
utiliza dele. Observe como a rua, expressão de um lugar, é abordada neste fragmento da obra de
João do Rio (1881 -1925), escritor brasileiro que viveu na cidade do Rio de Janeiro.
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Interdisdplinaridade-^
1 LITERATURA 1
A rua
A verdade e o trocadilho! Os dicionários dizem: "Rua
do latim ruga, 'suco'. Espaço entre as casas e as povoações por onde se anda e passeia" [...]
Ora a rua é mais do que isso, a rua é um fator da
vida das cidades, a rua tem alma! Em Benarés ou em
Amsterdã, em Londres ou em Buenos Aires, sob os céus
mais diversos, nos mais variados climas, a rua é agasaIhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de
todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus
olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos
medíocres, dos infelizes, dos miseráveis, da arte. [...] A
rua é generosa. O crime, o delírio, a miséria - ela não os
denuncia. A rua é a transformadora das línguas.
A rua nasce, como o homem, do soluço. Do espasmo. Há suor humano na argamassa de seus calçamentos. Cada casa que se ergue é feita do esforço
exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias,
cantarem, cobertos de suor, uma elopeia tão triste que
pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos
nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais
igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das
obras humanas [...]
Balzac dizia que as ruas de Paris nos dão impressões
humanas. São assim as ruas de todas as cidades, com
vida e destinos iguais aos do homem.
Por que nascem elas? Da necessidade de alargamento
das grandes colmeias sociais, de interesses comerciais,
dizem. Mas ninguém o sabe. [...] nasceu mais uma rua.
Nasceu para evoluir, para ensaiar os primeiros passos,
para balbuciar, crescer, criar uma individualidade. Os
homens têm no cérebro a sensação dessa semelhança,
e assim como dizem de um rapagão:
- Quem há de pensar que vi este menino a engatinhar?
Murmuram:
- Quem há de dizer que esta rua há dez anos só tinha
uma casa!
Fonte: ANTELO, Raul (Org.). João do Rio: a alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 45-84. l
Esse olhar poético de João do Rio sobre a rua, que pode ser a rua de qualquer cidade, pode
orientar a análise geográfica sobre os lugares. O autor busca compreender o que ocorre na rua, as
relações que aí se desenvolvem, sejam elas de afetividade, agressividade ou solidariedade, de poder,
económicas ou de outra ordem; ele desnuda a rua e mostra os sujeitos que a fazem e suas relações
mais íntimas, a convivência dos sem-teto, o trabalho dos artistas, dos pedreiros, a cantoria desses
últimos e, finalmente, a compara com o próprio desenvolvimento humano. Assim, ele está falando
de um lugar: a rua.

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