Recordações de um Melómano

Transcrição

Recordações de um Melómano
Recordações
de um
Melómano
A leitura de «O Amador de Música», do Professor Jaime
Celestino da Costa (JCC), animou-me a escrever estas «Recordações de um Melómano». Justifica-se, porque penso que há diferenças entre o melómano que julgo ser e o amador de música tal
como definido e vivido por JCC.
Um melómano é alguém que ama a música, ouve música
com prazer e constância, precisa da música para seu equilíbrio
emocional e, por isso, adquiriu conhecimentos do mundo musical, principalmente no respeitante a compositores e intérpretes.
Um amador de música é isso e não só: conhece amplamente
os fundamentos da música, que sabe ler e executar, e na sua
vida a música ocupa um papel de grande importância.
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Joel Costa, um muito lúcido analista da relação música-sociedade, ao comentar este assunto, defende que na sua perspectiva a posição de
JCC
se aproxima mais do músico amador.
Estas diferenças não impedem que haja entre o melómano,
o amador de música e o músico amador pontos de contacto, gostos comuns e vivências partilhadas. Exemplos disso são, segundo
JCC,
a capacidade para ouvir de início com sofrimento para mais
tarde apreciar, e também o vício do diagnóstico musical, um
jogo que pode ser humilhante e é mais seguro praticar a solo.
Mas, voltando ao princípio,
JCC
diz numa outra sua obra,
A Formação dum Cirurgião, que desde que se conhece ouviu música.
Antes de o ler e referindo-me a mim próprio, também o disse muitas vezes e até usando as mesmas palavras. Na verdade, em minha
casa ouvia-se música. Meu avô paterno tocava violino e violoncelo
na Tuna Comercial de Lisboa. Ainda conservo o seu violoncelo e o
«seu» violino. As aspas provêm de uma história ‘edificante’.
Veio a Lisboa dar um concerto um célebre violinista espanhol. Meu avô convidou-o para jantar e, como seria natural, mostrou-lhe o seu violino e o seu violoncelo.
– É magnífico, este violino, nunca o empreste seja a quem
for – disse o convidado depois de o observar e experimentar.
No dia seguinte, dia do concerto, apareceu inesperadamente.
– O seu violino não me sai da cabeça. Gostaria muito de o
usar no concerto de hoje e deixo-lhe o meu como penhor – disse
a meu avô.
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É esse violino de penhor que hoje tenho em casa, pois o violinista e o violino de meu avô volatilizaram-se para sempre, o
que veio confirmar a pertinência do conselho. Não seria um
Stradivarius ou um Guarnerius, mas era provavelmente um muito
bom violino. Contei esta história a
JCC,
que me disse: «Parece
um conto do Maupassant.» Parecerá, mas a mim mais me parece
um conto do vigário.
Para além de meu avô, havia na família outros amadores de
música. Minha avó materna foi discípula de Francisco de Lacerda;
minha mãe, de Lucília Moreira; e uma tia, irmã de meu pai, de
Vianna da Motta. Tinham, tal como o meu padrasto, o Curso
Superior de Piano, e a minha tia fez a Virtuosidade. A minha tia
nunca a ouvi tocar. Uma promessa que não revelou, mas de cuja
origem suspeito, fê-la abandonar para sempre o piano. Dos restantes, a quem gostava mais de ouvir e ver interpretar, pela alegria e facilidade, era a minha avó. E digo ver, porque as suas
belas mãos – que mestre Teixeira Lopes lhe pedira para moldar, tranpondo-as na ‘nudez forte da verdade’ da estátua de Eça
de Queiroz, tantas vezes mutiladas por vândalos – ficavam ainda
mais belas a correr sobre o teclado.
Mas, de todos, o mais musical terá sido meu pai. Toda a
minha infância o ouvi cantar. Apesar do temperamento melancólico, ou porventura por isso mesmo, a todas as horas do dia a
sua voz de barítono enchia a casa de lieder de Schubert, de canções de Schumann, Rimsky-Korsakov, e Falla, ou de trechos de
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sonatas ou de sinfonias. Em geral, eram bem tristes. Ainda hoje
me persegue o terceiro andamento da 3.ª Sinfonia de Brahms.
No entanto, a melodia que desde sempre me acompanhou é sobre
todas a mais triste. Não a conseguia identificar. Inconformado,
e já passado dos cinquenta anos, entoei-a a minha mãe.
– São as Variações Sinfónicas de César Franck, que o teu pai
costumava cantar, e que também eu, quando eras bebé, cantava
para te adormecer – disse-me com naturalidade e como se fosse
coisa por de mais evidente. Foi sem dúvida por isso que a melodia ficou, para sempre, gravada em mim.
Teria eu doze anos quando meu pai comprou os seus primeiros discos. Eram «His Master’s Voice»: a 5.ª e a 6.ª Sinfonias
de Beethoven por Toscanini – que me provocavam arrepios em
todo o corpo –, a Sonata Clair de Lune, os Estudos e Prelúdios
de Chopin e o Carnaval de Schumann, por Alfred Cortot, e a
Sonata a Kreutzer, por Yehudi Menuhin e sua irmã. Era este
disco o meu favorito.
Muitos anos depois, estava em Nova Iorque a estagiar no
Columbia Hospital, soube que Menuhin ia tocar no Carnegie
Hall. Sem conhecer o programa, mas com a certeza inabalável
de que iria interpretar a Sonata a Kreutzer, mandei comprar
bilhetes e fui com o Rui Valentim Lourenço, que também trabalhava no Columbia. E o milagre aconteceu. A Sonata a Kreutzer
fazia parte do programa e os dois irmãos tocaram-na só para
mim, a tremer de emoção, empoleirado lá no alto.
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Por volta dos meus dezassete anos, comecei a frequentar os
concertos do Círculo de Cultura Musical, em São Carlos. Herdara,
por intermédio do João Aires Soveral, um cartão de uma figura
bem conhecida no meio musical, a Senhora D. Madalena Martel
Patrício, que tinha um camarote. Refiro-o, porque sabendo que
os meus avós e pais iam com os amigos ouvir a Orquestra de
Pedro Blanc para a geral do São Luís, sentia uma certa culpabilidade, que se dissipou ao ser informado por minha mãe e
agora também por JCC, de que a intelligentsia frequentava a geral
por ali a acústica ser melhor.
Em São Carlos ouvi grandes intérpretes. Lembro-me de David
Oistrakh e de Walter Gieseking – frios, seguros e serenos. Lembro-me de Rubinstein. Sentou-se ao piano, fez uma escala e, sem
retirar a mão dos agudos, cravou, com a arrogância de um membro da aristocracia musical, um olhar severo na plateia. E não
começou a tocar enquanto não se extinguiram ‘as tosses do São
Carlos’.
Muitas vezes pensei nas célebres ‘tosses do São Carlos’.
O meu diagnóstico é que não são somente falta de civismo. São
também a consequência de Portugal ter, relativamente aos outros
países da Europa, meio século de atraso no tratamento das sinusites e bronquites da infância, as quais evoluíram para a cronicidade. Por isso somos, ainda hoje, um povo encatarroado.
Lembro-me também de Moiseiwitsch. Passava a tarde a beber
no Rex Bar. Quando entrava no palco fazia alguns bordos, até
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se agarrar ao piano. Mas, uma vez sentado e em segurança,
interpretava Chopin com um fascínio que me enchia os olhos
de água.
A verdade é que sempre tive um fraco por artistas ‘malditos’, marginais, drogados. A lista é interminável – Poe, Baudelaire,
Thomas de Quincey, Coleridge, Verlaine, Rimbaud, Jack London,
Fitzgerald, Steinbeck, Hemingway, Norman Mailer, para só referir os de maior nomeada. Acho que a droga lhes conferiu algo
de supranatural.
Depois, já adulto, ouvi grandes solistas e grandes orquestras. De todas as orquestras, a que mais me impressionou foi a
Orquestra de Bamberg, dirigida por Clemens Krauss, em Lisboa,
no Coliseu dos Recreios, na década de quarenta. Mais maturo,
terei ouvido muito superior, mas nenhuma despertou tanto a
minha sensibilidade. Efeitos da adolescência.
Porém, as audições que mais me marcaram foram as
inesperadas.
JCC
menciona dois episódios desse tipo que lhe
aconteceram, um na catedral de São Marcos, outro na de
Estrasburgo. Curiosamente, também a mim sucederam dois episódios similares.
Numa manhã fria e cinzenta, entrei com a Tereza na catedral de Utreque – toda pedra, enorme e austera. Parecia deserta,
mas alguém, invisível, afinava o órgão. Então, subitamente, como
que saturado por tanta afinação, a personagem invisível lançou-se numa fuga de Bach – e uma onda sonora invadiu a catedral,
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ricocheteando nas abóbodas, paredes, colunas e vitrais, espantando os pombos que pela nave desabalaram em voos quebrados e sem rumo, criando uma atmosfera mágica, impossível de
conseguir se preparada.
Outra vez, em Dubrovnic, numa maravilhosa noite de Verão,
passeávamos por uma rua cujo pavimento e fachadas das casas,
ou góticas ou Renascença, eram do mesmo mármore branco.
Uma iluminação discreta realçava a beleza dos relevos. De súbito,
às luzes juntou-se o som – os acordes de um quarteto de Beethoven
que provinham de um palácio da Renascença. Entrámos afoitamente. Num pátio interior, sob um céu azul-turquesa, fazia-se
música para algumas pessoas, que não eram certamente turistas mas a elite social local, e que, com sorrisos, nos animaram a
avançar. Apesar das condições, a acústica era comparável à de
Wigmore Hall. Nunca a música de câmara me deu tanto prazer.
Porque não me sinto, excepto para uso próprio, com autoridade para dar opiniões sobre música, relatarei alguns incidentes curiosos que testemunhei.
Uma noite, em Londres, fui ouvir a London Symphony com
Claudio Arrau, ao Royal Festival Hall. A assistência era quase
exclusivamente constituída por súbditos de Sua Majestade
Britânica. Durante o larghetto do 2.º Concerto de Chopin, um
senhor idoso, de aspecto venerável e que aparentemente não
estava acompanhado, deixou cair levemente a cabeça, adormeceu e começou a ressonar. Era um ressonar suave e, dir-se-ia,
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a compasso com a batuta do maestro. A reacção do público foi
invulgar. Em cada face havia um sorriso benévolo, ninguém protestou, fez tchiu ou acordou o senhor – e o concerto prosseguiu,
maravilhoso, agora para piano e nasofaringe.
E lembrei-me então de que, segundo James Boswell, apesar da insistência de Voltaire, o Dr Samuel Johnson recusou dar
no seu Dictionary of the English Language à palavra «civilization» o sentido que hoje tem, para lhe dar o de lei que transforma em cível um processo penal; mas aceitou a palavra «civility», ou seja, exercício da cidadania com cortesia e delicadeza.
Nesse momento, senti-me bem entre aquela gente, herdeiros dos
valores sociais e intelectuais do Renascimento.
Uma noite, no Coliseu dos Recreios, tinha Henryk Szering
iniciado uma sonata para violino-solo de Bach, eis que um gato
atravessa devagar a cena, miando lamentosamente. Szering teve
um gesto de irritação, parou e disse: «Esta sonata não é para
gato. Vou recomeçar.» A audiência ficou pávida de vergonha. Mas,
verdade seja, o artista podia ter tido mais humor e, como era óbvio
que o gato estava com o cio, não lhe faltava matéria bem oportuna
para inspiração.
Mas a mais extraordinária aconteceu também no Coliseu,
durante um concerto da Filarmónica de Filadélfia dirigida por
Eugène Ormandi. Numa frisa de boca estava um homem em que
eu já reparara noutros concertos. De meia-idade, magro, macilento, envergando sempre a mesma capa de chuva, tão surrada
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que já nem cor tinha e que nunca retirava, único ocupante da
frisa, semioculto na obscuridade, costumava reger com uma
longa boquilha de espuma.
Mas, nessa noite, certamente por entusiasmo melómano,
perdeu a cabeça, saiu da obscuridade e com metade do corpo
debruçado para fora do parapeito, dirigia com vigor, agitando a
sua longa ‘batuta’. Aconteceu então o impensável. A dada altura,
todo o público estava fixado nele e, muito mais grave, a própria
orquestra renegou o seu maestro titular, rendida à boquilha de
espuma do maestro espontâneo.
Eugène Ormandi, de costas, não podia ver o que se passava,
mas sentia-se o seu mal-estar perante a para si inexplicável
deserção da orquestra. A cena terminou como terminam as desordens no Bairro Alto. Um guarda da
PSP
retirou o improvisado
maestro e a normalidade voltou ao Coliseu.
No que respeita a ouvintes raros, tive duas experiências pessoais.
Na Maternidade Dr Alfredo da Costa mandei colocar, dentro das incubadoras dos recém-nascidos pré-termo, transístores
ligados à Rádio Clássica. A minha impressão depois de muitos
anos de experiência é que a música os tranquilizava, que respiravam melhor e até tinham preferências musicais. Pareciam
gostar de Vivaldi e Mozart, ficavam tensos com Beethoven e
Brahms e irritados com a música rock. Receando graves sequelas cerebrais, nunca permiti que ouvissem sessões de propaganda eleitoral.
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A outra experiência passou-se durante a guerra de Angola.
Em São Salvador do Congo prestava assistência a uma companhia de bailundos. Para lhes observar o comportamento, lembrei-me de lhes fazer ouvir música clássica e, curiosamente, reagiram como os prematuros. Batiam o ritmo com Vivaldi e Mozart,
diziam de Bach e Beethoven que era a trovoada e, ao ouvirem
Debussy, dançavam com movimentos que sugeriam os de Serge
Lifar em Prélude à l’après-midi d’un faune.
Finalmente,
JCC
afirma que a música lhe deu coragem para
enfrentar as grandes provações da vida, e ele sabe do que fala.
Comigo não aconteceu. Não porque a música me traísse,
antes porque deliberadamente lhe voltei costas, de tal modo
recusei tudo o que fosse lúdico e me pudesse levar a esquecer.
Durante anos não ouvi música, tendo oferecido todos os meus
discos – alguns, gravações históricas – à Fundação Nuno Belmar
da Costa, uma residência para adultos com paralisia cerebral.
Presentemente, já consigo ir, de vez em quando, a concertos; e oiço música no carro. Portanto, também neste aspecto
estou em consonância com
JCC
dicar a condição de melómano.
e julgo que posso ainda reivin-