Antologia de Ontologia, textos selecionados.

Transcrição

Antologia de Ontologia, textos selecionados.
Celso R. Braida
Antologia de
Ontologia
(textos selecionados)
Rocca Brayde
Os textos aqui publicados foram organizados e
traduzidos como parte de projetos de pesquisa e
ensino no Departamento de Filosofia da
Universidade Federal de Santa Catarina.
© Celso R. Braida, 2011.
Antologia de Ontologia
(textos selecionados)
organização e tradução
de
Celso R. Braida
ROCCA BRAYDE
Florianópolis
2011
Sumário
1.Prólogo.......................................................................................3
2.Sobre a própria ideia de um esquema conceitual.......................5
3.Quatro ontologias.....................................................................27
4.Classificação das asserções fundamentais...............................53
5.O modo como é o mundo.........................................................63
6.Filosofia e o conflito entre tendências de vida........................75
7.O pensamento e a estrutura do mundo: Discours d'ontologie..89
8.Identidade e igualdade...........................................................131
9.Além de ser e não-ser.............................................................163
10.Questões sobre a unidade da consciência............................181
11.Apresentação (da Teoria do objeto de A. Meinong)............189
12.Sobre a teoria do objeto.......................................................217
13.Para a doutrina do conteúdo e do objeto das representações
..................................................................................................271
14.Sobre a existência em Frege................................................317
15.Prólogo às Leis básicas da Aritmética.................................339
16.Lógica [1897]......................................................................369
17.Diálogo com Pünjer sobre a existência................................403
18.Proposições seminais sobre a Lógica...................................425
1
2
1.
Prólogo
Os textos aqui reunidos constituem fontes básicas
utilizadas nos meus cursos de Ontologia e de Filosofia da
Linguagem no Curso de Filosofia da UFSC. A seleção de
textos foi realizada com base nos objetivos de propiciar,
primeiro, a leitura em português de textos fundantes da
filosofia contemporânea e, segundo, oportunizar uma
introdução e uma iniciação nos conceitos e na discussão
contemporânea de ontologia. Nas traduções, todas elas
provisórias, como não poderia deixar de ser, procuro antes
de tudo explicitar e retextualizar os conceitos e as
proposições teóricas, com isso sacrificando muitas vezes a
palavra e a gramática, visto que, embora a tradução de
textos filosóficos não difira da tradução de outros textos, ali
o viés do conceito se sobrepõe ao da palavra.
3
4
2.
Sobre a própria ideia de um esquema
conceitual
Donald Davidson
Tradução de Celso R. Braida (Ufsc), tendo por base uma primeira
versão de Noeli Rahme e Rafael Azize, a partir do original “On the
very idea of a conceptual scheme”, in Inquiries into truth and
interpretation, Oxford, Clarendon Press, 1984, pp. 183-198.
Filósofos de diversas persuasões têm tendência a falar em
esquemas conceituais. Esquemas conceituais, dizem-nos, são
modos de organizar a experiência; são sistemas de categorias que
dão forma aos dados dos sentidos; são pontos de vista a partir dos
quais indivíduos, culturas ou períodos examinam a cena dos
acontecimentos. Pode não ser possível a tradução de um esquema
para outro e, nesses casos, as crenças, desejos, esperanças e partes
de conhecimento que caracterizam uma pessoa não têm uma
contrapartida verdadeira para o partidário de outro esquema. A
própria realidade é relativa a um esquema: o que é tomado como
real num sistema pode não o ser em outro.
Mesmo aqueles pensadores que estão seguros de haver
apenas um esquema conceitual estão sob a influência do conceito
de esquema; até monoteístas têm religião. E quando alguém se
propõe a descrever “o nosso esquema conceitual”, parte do
princípio, na sua prática habitual, se o tomamos literalmente, de
que possa haver sistemas rivais. O relativismo conceitual é uma
5
doutrina inebriante e exótica, ou sê-lo-ia se pudéssemos fazer
uma ideia clara dela. A questão, como é tão comum em filosofia,
é que é difícil aumentar a inteligibilidade e simultaneamente
manter a empolgação. Seja como for, é isto que eu tentarei
argumentar.
Somos encorajados a imaginar que compreendemos
mudanças conceituais expressivas ou profundos contrastes
através de exemplos legítimos de tipo familiar. Por vezes uma
ideia – por exemplo a da simultaneidade, tal como definida na
teoria da relatividade – é tão importante que, ao agregá-la, um
departamento inteiro da ciência assume uma nova configuração.
Outras vezes, revisões na lista de sentenças tidas por verdadeiras
numa disciplina são tão cruciais a ponto de acharmos que os
termos envolvidos tiveram os seus sentidos modificados.
Linguagens que se desenvolveram em períodos ou locais
distantes podem diferir extensamente quanto aos seus recursos
para lidar com esta ou aquela ordem de fenômenos. Pode ser
difícil exprimir numa linguagem o que, noutra, se exprime com
facilidade, e esta diferença talvez ecoe desigualdades importantes
de estilo e valor.
Mas exemplos como estes, impressionantes como eles
ocasionalmente são, não são tão extremos a ponto de não
poderem as mudanças e contrastes ser descritas usando-se os
recursos de uma só linguagem. Whorf, ao querer demonstrar que
o Hopi incorpora uma metafísica tão estranha à nossa que o
Inglês e o Hopi não podem, nas suas palavras, “ser calibrados”,
usa o Inglês para exprimir os conteúdos de exemplos de sentenças
do Hopi.1 Kuhn descreve com brilhantismo a forma como as
coisas eram antes da revolução utilizando – como não fazê-lo? –
o nosso idioma pós-revolucionário.2 Quine guia-nos até à “fase
pré-individuativa na evolução do nosso esquema conceitual”3, e
Bergson, por sua vez, diz-nos aonde devemos ir se queremos ter
1
2
3
B. L. Whorf, “The Punctual and Segmentative Aspects of Verbs in Hopi”.
T. S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions.
W. V. Quine, “Speaking of Objects”, p. 24.
6
uma visão de uma montanha que não sofra uma ou outra
distorção local de perspectiva.
A metáfora dominante do relativismo conceitual, a dos
pontos de vista diferentes, parece trair um paradoxo subjacente.
Pontos de vista diferentes fazem sentido, mas apenas se há um
sistema co-ordenado comum no qual situá-los; contudo, a
existência de um sistema comum desmente a proposta da
incomparabilidade drástica. Do que precisamos, ao meu ver, é de
uma noção das considerações que traçam os limites para o
contraste conceitual. Há suposições extremas que se afundam em
paradoxos ou contradições; há exemplos modestos que não temos
problema em compreender. O que determina o momento em que
passamos do meramente estranho, ou novo, ao absurdo?
Podemos aceitar a doutrina que associa a posse de uma
linguagem com a posse de um esquema conceitual. Pode-se supor
que a relação seja a seguinte: onde esquemas conceituais diferem,
assim também as linguagens. Mas falantes de linguagens
diferentes podem partilhar um esquema conceitual na medida em
que haja uma forma de traduzir uma linguagem para outra.
Estudar os critérios de tradução é, portanto, um modo de se
concentrar em critérios de identidade para esquemas conceituais.
Se esquemas conceituais não estão associados a linguagens desta
maneira, o problema original é desnecessariamente duplicado
pois, então, teríamos de imaginar a mente, com as suas categorias
ordinárias, a operar com uma linguagem com a sua estrutura
organizadora. Nestas circunstâncias, certamente quereríamos
perguntar quem é suposto ser o mestre.
Alternativamente, existe a ideia de que qualquer linguagem
distorce a realidade, o que implica que apenas sem palavras, se é
que, a mente apreende diretamente as coisas tais como realmente
são. Isto é conceber a linguagem como um meio inerte (ainda que
necessariamente deformador), independente dos agenciamentos
humanos que o empregam; uma visão da linguagem que
seguramente não pode ser mantida. Contudo, se a mente pode
7
lidar com o real sem distorção, a própria mente deve ser
desprovida de categorias e conceitos. Esta mente sem traços é
familiar a teorias situadas em pontos bastante diversos da
paisagem filosófica. Há teorias, por exemplo, que concebem a
liberdade como consistindo em decisões tomadas sem nenhuma
influência dos desejos, hábitos e disposições do agente; e teorias
do conhecimento que sugerem que a mente pode observar a
totalidade das suas próprias percepções e idéias. Em ambos os
casos, a mente está separada dos traços que a constituem; uma
conclusão incontornável a partir de certas linhas de raciocínio,
como já disse, mas que deveria sempre nos persuadir a rejeitar as
premissas.
Podemos então identificar esquemas conceituais com
linguagens, ou melhor, concedendo a possibilidade de que mais
de uma linguagem podem expressar o mesmo esquema, com
conjuntos de linguagens traduzíveis entre si. As linguagens não
serão pensadas como separadas de almas; falar uma linguagem
não é um traço que um homem possa perder ao mesmo tempo em
que retenha o poder de pensar. Portanto, não há hipótese de que
alguém possa assumir um ponto de vista vantajoso para comparar
esquemas conceituais, isolando-se temporariamente do seu
próprio esquema. Podemos, então, dizer que duas pessoas têm
esquemas conceituais diferentes se elas falam linguagens que não
logram ser intertraduzíveis?
Na sequência, considero dois tipos de casos cuja ocorrência
se pode esperar: falhas completas e parciais de traduzibilidade.
Haveria uma falha completa se nenhuma sequência importante de
sentenças numa linguagem pudesse ser traduzida para outra;
haveria falha parcial se alguma sequência pudesse ser traduzida e
outra sequência não pudesse (devo negligenciar possíveis
assimetrias). A minha estratégia será argumentar que uma falha
completa não faz sentido, e em seguida examinar com mais
brevidade casos de falha parcial. Primeiro, então, os alegados
casos de falha completa. É tentador tomar um caminho bastante
8
curto: nada, dir-se-ia, poderia configurar uma evidência de que
alguma forma de atividade não pudesse ser interpretada na nossa
linguagem que não fosse, ao mesmo tempo, evidência de que essa
forma ou atividade não fosse um comportamento de fala (speech
behaviour). Se isto fosse verdade, provavelmente seríamos
obrigados a manter que uma forma de atividade que não possa ser
interpretada como linguagem na nossa linguagem não é
comportamento de fala. Pôr as coisas nestes termos é contudo
insatisfatório, já que pouco mais faz do que transformar a
traduzibilidade para uma língua familiar num critério de
linguisticidade (languagehood). Como autorização, a tese carece
do atrativo da auto-evidência; se se trata de uma verdade, como
eu penso que é, ela deveria emergir como a conclusão de um
argumento.
A credibilidade da posição melhora se refletirmos nas
relações íntimas entre linguagem e a atribuição de atitudes tais
como crença, desejo e intenção. Por um lado, é evidente que a
fala requer uma miríade de intenções e crenças finamente
discriminadas. Uma pessoa que assevera que a perseverança
mantém a honra limpa deve, por exemplo, representar-se como
alguém que acredita que a perseverança mantém a honra limpa, e
deve tencionar representar-se como alguém que acredita nisto.
Por outro lado, parece improvável que possamos inteligivelmente
atribuir atitudes tão complexas como estas a um falante a menos
que possamos traduzir as suas palavras nas nossas. Não pode
haver dúvida de que a relação entre ser-se capaz de traduzir a
linguagem de alguém e ser-se capaz de descrever as suas atitudes
é muito próxima. Ainda assim, até que possamos dizer mais
coisas acerca do que esta relação é, o processo contra linguagens
intraduzíveis permanecerá obscuro.
Considera-se por vezes que a traduzibilidade numa
linguagem familiar, por exemplo o Inglês, não pode ser um
critério para se identificar a linguisticidade, baseando-se no fato
de que a relação de traduzibilidade não é transitiva. A ideia é a de
9
que uma linguagem, por exemplo o Saturniano, possa ser
traduzível para o Inglês, e de que alguma outra, como o
Plutoniano, possa ser traduzível em Saturniano, ao passo que o
Plutoniano não é traduzível em Inglês. Um certo número de
diferenças traduzíveis podem cumulativamente conduzir a uma
intraduzível. Ao imaginar uma sequência de linguagens, cada
uma suficientemente próxima da anterior de modo a ser
traduzível nela, podemos imaginar uma linguagem de tal forma
diferente do Inglês a ponto de opor uma total resistência à sua
tradução nesta última. Correspondendo a esta linguagem distante,
haveria um sistema de conceitos totalmente estranho ao nosso.
Este exercício não introduz, creio, nenhum elemento novo
na discussão. Pois deveríamos ter de perguntar de que maneira
teríamos reconhecido que aquilo que o Saturniano estava a fazer
era traduzir Plutoniano (ou qualquer outra coisa). O falante
saturniano poderia dizer-nos que era isto que ele estava fazendo,
ou antes, poderíamos por um momento partir do princípio de que
era isto que ele nos estava dizendo. Mas então poderia nos
ocorrer de perguntar se nossas traduções do Saturniano são
corretas. Segundo Kuhn, cientistas que operam em tradições
científicas diferentes (no interior de “paradigmas” diferentes)
“trabalham em mundos diferentes”.1 The Bounds of Sense, de
Strawson, começa pela observação acerca de “ser possível
imaginar tipos de mundos bastante diferentes do mundo tal como
nós o conhecemos”.2 Uma vez que há, no máximo, um mundo,
estas pluralidades são metafóricas ou apenas imaginárias. No
entanto, as metáforas não são de todo as mesmas. Strawson
convida-nos a imaginar mundos não-reais (non-actual) possíveis,
mundos esses que possam ser descritos, utilizando-se a nossa
linguagem atual, através da redistribuição, de variadas formas
sistemáticas, de valores de verdade atribuídos às sentenças. A
clareza dos contrastes entre mundos depende, neste caso, de se
supor que o nosso esquema de conceitos, os nossos recursos
1
2
T. S. Kuhn, The Structure of Scientific Revolutions, p. 134.
P. Strawson, The Bounds of Sense, p. 15.
10
descritivos, permanecem fixos. Kuhn, por outro lado, quer que
pensemos em diferentes observadores do mesmo mundo, os quais
abordam (come to) esse mundo munidos de sistemas conceituais
incomensuráveis. Os muitos mundos imaginados de Strawson são
vistos ou ouvidos ou descritos do mesmo ponto de vista; o mundo
único de Kuhn é visto de diferentes pontos de vista. Esta é a
segunda metáfora na qual gostaríamos de trabalhar. A primeira
metáfora requer a distinção, no interior da linguagem, entre
conceito e conteúdo: utilizando um sistema fixo de conceitos
(palavras com sentidos fixos), descrevemos universos
alternativos. Algumas sentenças serão verdadeiras apenas devido
aos conceitos ou sentidos envolvidos, outras devido ao estado das
coisas no mundo (the way of the world). Ao descrevermos
mundos possíveis, trabalhamos apenas com sentenças do segundo
tipo.
A segunda metáfora sugere, por outro lado, um dualismo de
tipo bastante diverso, um dualismo de um esquema (ou
linguagem) total e um conteúdo não interpretado. A adesão ao
segundo dualismo, ainda que não seja inconsistente com a adesão
ao primeiro, pode apoiar-se em ataques ao primeiro. Eis como
isto poderia funcionar.
Abandonar a distinção analítico-sintético como sendo
básica para a compreensão da linguagem é abandonar a idéia de
que possamos distinguir claramente entre teoria e linguagem. O
sentido (meaning), na acepção um tanto frouxa que possamos
dar-lhe, é contaminado pela teoria, pelo que é tido como
verdadeiro. Feyerabend expressa-o como se segue:
O nosso argumento contra a invariância do sentido é simples e
claro. Deriva do fato de que alguns dos princípios envolvidos nas
determinações dos sentidos de teorias ou pontos de vista antigos
são normalmente inconsistentes com as novas (...) teorias. Ele
assinala que é natural resolver esta contradição eliminando os
incômodos (...) princípios antigos e substituindo-os por princípios,
ou teoremas, de uma nova (...) teoria. E o argumento conclui
11
mostrando que este tipo de procedimento também conduzirá à
eliminação dos sentidos antigos1
Dir-se-ia que agora dispomos de uma fórmula para produzir
esquemas conceituais distintos. Extraímos um esquema novo a
partir de um velho quando os falantes de uma linguagem chegam
a tomar por verdadeiro um expressivo conjunto de sentenças que
eles antes tinham como falsas (e, é claro, vice-versa). Não
devemos descrever esta mudança apenas em termos de uma visão
de antigas falsidades como verdades, pois uma verdade é uma
proposição, e o que os falantes terminam por aceitar, ao aceitar
uma sentença como verdadeira, não é a mesma coisa que
rejeitaram quando, dantes, tinham a sentença como falsa.
Aconteceu uma mudança no sentido da sentença porque esta
pertence agora a uma nova linguagem.
Esta imagem acerca de como novos (quiçá melhores)
esquemas resultam de uma ciência nova e melhor é, em grande
medida, a concepção que nos foi avançada por filósofos da
ciência, como Putnam e Feyerabend, e historiadores da ciência,
como Kuhn. Uma ideia relacionada a esta emerge da sugestão de
alguns outros filósofos de que poderíamos melhorar os conceitos
de que dispomos se regulássemos a nossa linguagem segundo a
frequência de uma ciência melhorada.
Assim, Quine e Smart, de maneiras um tanto diferentes,
admitem com tristeza que os nossos modos atuais de falar tornam
impossível uma ciência rigorosa do comportamento.
(Wittgenstein e Ryle disseram coisas similares sem nenhum
pesar.) A cura é, pensam Quine e Smart, mudarmos a maneira
como falamos. Smart advoga (e prevê) tal mudança de molde a
por-nos diretamente no caminho científico do materialismo;
Quine está mais preocupado em limpar o caminho para uma
linguagem puramente extensional. (Talvez eu deva acrescentar
que julgo serem os nossos esquema e linguagem atuais melhor
compreendidos como extensionais e materialistas.)
1 P. Feyerabend, “Explanation, Reduction, and Empiricism”, p. 82.
12
Se seguíssemos este conselho, não creio que a ciência ou o
entendimento avançassem, embora a moral talvez. Mas a questão
aqui, caso tais mudanças tivessem lugar, é apenas a de termos ou
não justificativa para chamá-las de alterações no aparato
conceitual básico. Não é difícil perceber a dificuldade de assim o
fazermos. Suponha que eu, na minha administração como
Ministro da Linguagem Científica, deseje que o novo homem
pare de utilizar palavras que refiram, por exemplo, emoções,
sentimentos, pensamentos e intenções, e que ele em vez disto
passe a falar dos estados e acontecimentos fisiológicos que se
supõe serem mais ou menos idênticos ao murmúrio mental. Como
posso saber se o meu conselho foi seguido, já que o novo homem
fala uma nova linguagem? Tanto quanto eu possa saber, talvez as
sentenças novas em folha, embora roubadas à linguagem antiga,
na qual elas referem os sinais fisiológicos, desempenhem na sua
boca o mesmo papel dos intrincados conceitos mentais antigos. A
expressão crucial é: tanto quanto eu possa saber. O que está claro
é que a retenção de parte ou da totalidade do antigo vocabulário
não oferece, em si mesma, uma base para se determinar se o novo
esquema é o mesmo que, ou diferente do velho. Portanto, aquilo
que havia soado inicialmente como uma impressionante
descoberta – que a verdade é relativa a um esquema conceitual –
ainda não mostrou ser mais do que o fato pedestre e familiar de
que a verdade de uma sentença é relativa à linguagem (entre
outras coisas) à qual pertence. Ao invés de viver em mundos
diferentes, os cientistas de Kuhn talvez, assim como as pessoas
que necessitam de um dicionário do vernáculo, estejam apenas a
palavras de distância.
O abandono da distinção analítico-sintético não se revelou
útil ao esclarecimento do que seja o relativismo conceitual. A
distinção analítico-sintético é, contudo, explicada em termos de
algo que pode servir para reforçar o relativismo conceitual,
nomeadamente a idéia de conteúdo empírico. O dualismo do
sintético e do analítico é um dualismo de sentenças, algumas das
13
quais são verdadeiras (ou falsas) tanto por aquilo que significam
quanto pelo seu conteúdo empírico, enquanto que outras são
verdadeiras (ou falsas) apenas em virtude do sentido, não
possuindo conteúdo empírico. Se abandonamos o dualismo,
abandonamos a concepção de sentido que ele implica, mas não
temos de abandonar a idéia de conteúdo empírico: podemos
sustentar, se quisermos, que todas as sentenças têm conteúdo
empírico. O conteúdo empírico, por sua vez, explica-se por
referência aos fatos, ao mundo, à experiência, à sensação, à
totalidade dos estímulos sensoriais, ou algo similar. Os sentidos
(meanings) constituíram para nós maneiras de falarmos de
categorias, da estrutura organizadora da linguagem, e assim por
diante; mas é possível, como vimos, abandonar os sentidos e a
analiticidade e ao mesmo tempo reter a ideia da linguagem como
incorporando um esquema conceitual. Assim, no lugar do
dualismo do analítico-sintético, temos o dualismo de esquema
conceitual e conteúdo empírico. O novo dualismo é a fundação
dum empirismo despojado dos dogmas insustentáveis da
distinção analítico-sintético e do reducionismo – despojado, pois,
da impraticável ideia de que só possamos atribuir conteúdo
empírico sentença a sentença.
Gostaria de frisar que não é possível tornar este segundo
dualismo, o de esquema e conteúdo, o de sistemas organizadores
e algo à espera de ser organizado, inteligível e defensável. Ele
próprio é um dogma do empirismo, o terceiro dogma. O terceiro e
talvez o último, pois se o abandonamos não fica claro se resta
algo de distinto a ser chamado de empirismo. O dualismo
esquema-conteúdo já foi formulado de diversas maneiras. Eis
aqui alguns exemplos. O primeiro é o de Whorf, que constitui
uma elaboração de um tema do dualismo de Sapir. Diz Whorf que
(...) a linguagem produz uma organização da experiência.
Inclinamo-nos a considerar a linguagem uma mera técnica de
expressão, e não nos damos conta de que a linguagem é
primariamente uma classificação e um arranjo do fluxo da
experiência sensória que resultam numa certa ordem do mundo
14
(world-order) (...). Em outras palavras, a linguagem faz – de
maneira mais crua mas também mais ampla e versátil – o mesmo
que a ciência (...). Somos, assim, introduzidos a um novo princípio
de relatividade, que sustenta que os observadores não são
conduzidos pelas mesmas evidências físicas à mesma
representação do universo, a menos que os seus ambientes
lingüísticos sejam similares, ou possam ser de algum modo
calibrados1
Temos aqui todos os elementos requeridos: a linguagem
como a força organizadora, a não distinguir-se claramente da
ciência; aquilo que é organizado, referido alternadamente como
“experiência”, “o fluxo da experiência sensorial” e “evidência
física”; e, finalmente, o fracasso da intertraduzibilidade
(‘calibragem’). O fracasso da intertraduzibilidade é condição
necessária para a diferença de esquemas conceituais; a relação
comum com a experiência ou com a evidência é o que é suposto
ajudar-nos a perceber a tese de que o fracasso da tradução é uma
questão de linguagens ou esquemas. É essencial, nesta idéia, que
haja algo de neutro e comum exterior a todo esquema. Este algo
de comum não pode, obviamente, ser o conteúdo (subject matter)
de linguagens contrastantes, pois do contrário a tradução seria
possível. Assim, escreveu Kuhn recentemente:
Os filósofos já abandonaram a esperança de encontrar uma
linguagem do puro dado sensorial (sense-datum) (...) mas muitos
dentre eles continuam a partir do princípio de que teorias possam
ser comparadas por meio de um vocabulário básico constituído
inteiramente por palavras ligadas à natureza de maneiras não
problemáticas e, tanto quanto necessário, independentes de
teorias (...) Feyerabend e eu argumentamos extensamente no
sentido de que não dispomos de um tal vocabulário. Na transição
de uma teoria para outra, as palavras têm os seus sentidos e
condições de aplicabilidade sutilmente modificados. Embora a
maior parte dos signos usados antes e depois de uma revolução
sejam os mesmos – e. g. força, massa, elemento, composto, célula
1
B. L. Whorf, “The Punctual and Segmentative Aspects of Verbs in Hopi”,
p. 55.
15
–, o modo como alguns dentre eles se vinculam à natureza sofreu
uma certa mutação. Assim, dizemos que teorias sucessivas são
incomensuráveis.1
“Incomensurável” é, como se sabe, o termo de Kuhn e
Feyerabend para “não traduzível”. O conteúdo neutro, à espera de
ser organizado, é fornecido pela natureza. O próprio Feyerabend
sugere que possamos comparar esquemas contrastantes
“escolhendo um ponto de vista exterior ao sistema ou à
linguagem”. Espera que possamos fazê-lo porque “há ainda a
experiência humana como processo que existe de fato” 2
independentemente de todos os esquemas.
Os mesmos pensamentos, ou similares, são expressos por
Quine em muitas passagens: “A totalidade do nosso dito saber ou
crenças (...) é um tecido criado pelo homem que tangencia
(impinge) apenas as bordas da experiência”3; “... a ciência total
é como um campo de forças cujas fronteiras condiciona a
experiência”;4“Como empirista, (...) penso no esquema conceitual
da ciência como um instrumento (...) para a previsão da
experiência futura à luz da experiência passada”.5 E novamente:
Persistimos em de algum modo fragmentar a realidade numa
multiplicidade de objetos identificáveis e discrimináveis (...).
Falamos de tal forma inveteradamente de objetos que dizer que o
fazemos parece não querer dizer simplesmente nada, pois de que
outra forma poderíamos nos exprimir? É difícil dizer de que outra
forma poderíamos nos exprimir, não porque o nosso padrão
objetificante seja um traço invariável da natureza humana, mas
porque no próprio processo de compreender ou traduzir as
sentenças alheias estamos destinados a adaptar ao nosso um
padrão estranho.6
O teste da diferença continua sendo o fracasso ou a
1
2
3
4
5
6
T. S. Kuhn, “Reflections on my Critics”, p. 266-7.
P. Feyerabend, “Problemas do empirismo”, p. 214.
W. V. Quine, “Dois dogmas do empirismo”, p. 42.
Ibidem.
Ibidem.
W. V. Quine, “Speaking of Objects”, 1.
16
dificuldade da tradução: “ (...) falar daquele meio remoto como
sendo radicalmente diferente do nosso é não dizer outra coisa
senão que as traduções não se fazem sem dificuldades”. 1
Contudo, o embaraço pode ser de tal maneira grande que o
estrangeiro tenha um “padrão ainda não imaginado, para além da
individuação”.2
A ideia é, portanto, a de que algo é uma linguagem, e está
associado a um esquema conceitual, quer o possamos traduzir ou
não, se mantém uma certa relação predizendo (organizando,
encarando ou adaptando-se a) a experiência (natureza, realidade,
estímulos sensoriais). O problema é estabelecer o que seja a
relação, e ser mais claro quanto às entidades relacionadas. As
imagens e metáforas caem em dois grupos principais: esquemas
conceituais (linguagens) quer organizam alguma coisa, quer se
adaptam a ela (como em “ele deforma a sua herança científica de
forma a acomodar (...) os seus estímulos sensoriais”3). O primeiro
grupo contém igualmente sistematizar, fragmentar (o fluxo da
experiência); outros exemplos do segundo grupo são predizer,
explicar (account for), enfrentar (o tribunal da experiência).
Quanto às entidades que são organizadas, ou que o esquema deve
acomodar (fit), penso que uma vez mais podemos detectar duas
ideias principais: trata-se quer da realidade (o universo, o mundo,
a natureza), quer da experiência (a cena presente, irritações da
superfície, estímulos sensoriais, dados dos sentidos, o dado).
Não podemos atribuir um sentido claro à noção de
organização de um objeto simples (o mundo, a natureza, etc) a
menos que entendamos que o objeto consiste em, ou contém,
outros objetos. Alguém que se propõe a organizar um guardaroupas arruma nele as coisas. Se lhe fosse dito que organizasse,
não os sapatos e as camisas, mas o guarda-roupas em si, ficaria
atrapalhado. Como se poderia organizar o Oceano Pacífico?
Estreitando-se as suas costas, talvez, ou realocando as suas ilhas,
1
2
3
Ibid., p. 25.
Ibid., p. 24.
W. V. Quine, “Two Dogmas of Empiricism”, p. 46.
17
ou destruindo os seus peixes.
Uma linguagem pode conter predicados simples cujas
extensões não sejam correspondidas (matched) por nenhum
predicado simples, ou por quaisquer predicados, nalguma outra
linguagem. O que nos permite argumentar neste sentido em casos
particulares é uma ontologia comum às duas linguagens, com
conceitos que individuam (individuate) os mesmos objetos.
Podemos ser claros acerca de falhas de tradução quando elas são
suficientemente locais, pois um pano de fundo de tradução
geralmente bem-sucedida provê o necessário para que as falhas
sejam inteligíveis. Mas tencionávamos jogar uma carta mais
ambiciosa: queríamos dar conta do postulado de uma linguagem
que não pudéssemos, de todo, traduzir. Ou, para avançarmos o
argumento de outra forma, procurávamos o critério de
linguisticidade que não dependesse de, ou não implicasse,
traduzibilidade para um idioma familiar. Postulo que a imagem da
organização do guarda-roupas da natureza não proverá um tal
critério.
E quanto ao outro tipo de objeto, a experiência? Poderemos
nós pensar numa linguagem que a organize? As dificuldades que
recorrem são em grande medida as mesmas. A noção de
organização aplica-se apenas a pluralidades. Mas qualquer que
seja a pluralidade que julgamos consistir a experiência – eventos
como perder um botão ou dar uma topada com o dedo do pé, ter
uma sensação de calor ou ouvir um oboé – teremos de individuar
segundo princípios familiares.
Uma linguagem que organize tais entidades tem de
ser uma linguagem bastante assemelhada à nossa. A experiência
(e colegas suas, tais como irritações de superfície, sensações e
dados sensoriais) também acarreta um outro problema, mais
óbvio, para a ideia de organização. Pois como é que alguma coisa
poderia contar como uma linguagem que organizasse apenas
experiências, sensações, irritações de superfície ou dados
sensoriais? Certamente facas e garfos, carris de ferro e
18
montanhas, couves e reinos também precisam de organização.
Esta última observação soará, sem dúvida, inapropriada como
resposta ao argumento de que um esquema conceitual é uma
maneira de se lidar com a experiência sensorial; e concordo que
assim seja. Mas o que estava em consideração era a ideia de se
organizar a experiência, e não a ideia de se lidar com (ou
acomodar, ou fazer face a) a experiência. A resposta vinha a
propósito do primeiro conceito, e não do último. Vejamos então
se podemos fazer algo melhor com a segunda ideia.
Quando passamos da organização à adaptação, volvemos a
nossa atenção do aparato referencial da linguagem – predicados,
quantificadores, variáveis e termos singulares – para sentenças
inteiras. São sentenças que predizem (ou que são usadas para
prever), que esboçam ou lidam com as coisas, que se adaptam aos
nossos estímulos sensoriais, que podem ser comparadas ou
confrontadas com a evidência. São igualmente sentenças que
enfrentam o tribunal da experiência, embora, evidentemente,
devam fazê-lo em conjunto. A proposta não é que experiências,
dados sensoriais, irritações de superfície ou estímulos sensoriais
sejam o único conteúdo da linguagem. Existe, é verdade, a teoria
segundo a qual, quando se fala de casas de tijolo na rua Elm, é
preciso, no limite, considerar que se está falando de dados
sensoriais ou percepções, mas tais maneiras reducionistas de ver
não passam de versões extremas, e implausíveis, da posição geral
aqui em consideração. A posição geral é a de que a experiência
sensorial provê toda a evidência para a aceitação de sentenças
(onde sentenças podem incluir teorias inteiras). Uma sentença ou
teoria acomoda os nossos estímulos sensoriais, enfrenta com
sucesso o tribunal da experiência, prevê experiências futuras, ou
apanha o padrão das nossas irritações de superfície, desde que
seja sustentada pela evidência.
No curso normal das coisas, uma teoria pode ser sustentada
pela evidência disponível e ainda assim ser falsa. Mas o que está
em questão aqui não é apenas a atual evidência disponível: é a
19
totalidade de possíveis evidências sensoriais passadas, presentes e
futuras. Não precisamos deter-nos a refletir sobre o que isto possa
significar. O ponto é este: que uma teoria acomode ou dê conta da
totalidade das evidências sensoriais possíveis indica que ela é
verdadeira. Se uma teoria quantifica objetos físicos, números ou
conjuntos, aquilo que ela diz acerca destas entidades é verdadeiro
desde que a teoria como um todo se ajuste (fits) à evidência
sensorial. Deste ponto de vista, é concebível que tais entidades
sejam denominadas de posits. É razoável chamar alguma coisa de
um posits se ela puder ser contrastada com algo que não o é.
Aqui, este algo é a experiência sensorial – pelo menos a ideia é
esta.
O problema é que a noção de ajuste à totalidade da
experiência, como a noção de ajuste aos fatos, ou de ser
verdadeira para com os fatos, não acrescenta nada de inteligível
ao conceito simples de ser verdadeiro. Falar antes de experiência
sensorial e não de evidência, ou apenas dos fatos, expressa um
ponto de vista acerca da fonte ou da natureza da evidência, mas
não acrescenta uma nova entidade ao universo relativamente ao
qual os esquemas conceituais serão testados. A totalidade das
evidências sensoriais é do que necessitamos, desde que esta seja
toda a evidência que existe; e toda a evidência que existe é
precisamente o que é necessário para tornar as nossas sentenças e
teorias verdadeiras. Nada, contudo, nenhuma coisa, torna
sentenças e teorias verdadeiras: nem experiência, nem irritações
de superfície, nem o mundo podem tornar uma sentença
verdadeira. Que a experiência tome um certo rumo, que a nossa
pele seja aquecida ou perfurada, que o universo seja finito, estes
fatos, se assim quisermos exprimir-nos, tornam sentenças e
teorias verdadeiras. Mas este argumento é melhor construído sem
a menção a fatos.
A sentença “A minha pele está quente” é verdadeira se e
somente se a minha pele está quente. Aqui não há referência a um
20
fato, a um mundo, a uma experiência ou a uma peça de
evidência.1 A nossa tentativa de caracterizar linguagens ou
esquemas conceituais em termos da noção de ajuste a alguma
entidade veio dar, então, na simples ideia de que alguma coisa é
um esquema conceitual ou teoria aceitável se é verdadeira. Talvez
fosse melhor dizermos largamente verdadeira, de modo a permitir
que subscritores de um esquema difiram quanto a detalhes. E o
critério para se diferenciar um esquema conceitual do nosso agora
fica a ser: largamente verdadeiro mas não traduzível. A questão
acerca de ser este um critério útil é apenas a questão do quão bem
compreendemos a noção de verdade, tal como aplicada à
linguagem, independentemente da noção de tradução. A resposta
é, julgo, que de modo algum a compreendemos
independentemente.
Reconhecemos que sentenças como “ ‘A neve é branca’ é
verdadeira se e somente se a neve é branca” são trivialmente
verdadeiras. Contudo, a totalidade dessas sentenças portuguesas
determina a extensão do conceito de verdade apenas para o
Português. Tarski generalizou esta observação e fez dela um teste
de teorias da verdade: de acordo com a Convenção T de Tarski,
uma teoria satisfatória da verdade para uma linguagem L deve
implicar, para cada sentença s de L, um teorema de forma ‘s é
verdadeira se e somente se p’, onde ‘s’ é substituída por uma
descrição de s e ‘p’ pela própria s, se L é o Português, e por uma
tradução de s em Português se L não é o Português.2 É claro que
isto não é uma definição de verdade, e não insinua que haja uma
definição ou teoria sequer que se aplique a linguagens em geral.
Não obstante, a Convenção T sugere, embora não possa
explicitar, uma importante característica comum a todos os
conceitos especializados da verdade. Logra fazer isto ao tornar
essencial o uso da noção de tradução para uma linguagem que
conheçamos. Na medida em que a Convenção T concretiza a
1
2
Ver ensaio 3 (do livro Inquiries into truth and interpretation).
A. Tarski, “The Concept of Truth in Formalized Languages”.
21
nossa melhor intuição quanto à maneira como é usado o conceito
de verdade, não parece haver muita esperança de um teste se um
esquema conceitual é radicalmente diferente do nosso se este
teste depende da suposição de que nós podemos separar a noção
de verdade da noção de tradução.
Nem um estoque fixo de sentidos, nem uma realidade
teoricamente neutra, pode dar, então, uma base para comparação
de esquemas conceituais. Poderia ser um engano olhar além de
tais bases, se por elas nós entendemos alguma coisa comum aos
esquemas incomensuráveis. Abandonando esta pesquisa, nós
abandonamos a tentativa de dar sentido à metáfora de um só
espaço dentro do qual cada esquema tem uma posição e dá um
ponto de vista. Eu volto agora a abordagem mais modesta: a ideia
de falha parcial em vez de falha total de tradução. Esta introduz a
possibilidade de tornar mudanças e contrastes em esquemas
conceituais inteligíveis pela referência à uma parte comum. O que
nós precisamos é uma teoria da tradução ou interpretação que não
faça suposições sobre sentidos, conceitos ou crenças
compartilhadas. A interdependência de crença e sentido procede
da interdependência de dois aspectos da interpretação do
comportamento de fala: a atribuição de crença e a interpretação
das sentenças. Nós observamos anteriormente que nós podemos
associar esquemas conceituais com linguagens por causa destas
dependências. Agora nós podemos colocar o ponto de modo mais
preciso. Admitamos que a fala de um homem não possa ser
interpretada a não ser por alguém que conheça bem as crenças do
falante (e intenções e desejos), e que distinções bem definidas
entre crenças são impossíveis sem o entendimento da fala; como
então nós podemos interpretar fala ou inteligibilidade para
atribuir crenças ou outras atitudes? Claramente nós devemos ter
uma teoria que simultaneamente dê conta de atitudes e interprete
a fala, e que não assuma nenhuma delas.
Eu sugiro, seguindo Quine, que nós podemos sem
circularidade, ou suposições não garantidas, aceitar certas atitudes
22
muito gerais sobre sentenças como evidências básicas para uma
teoria da interpretação radical. Para o propósito desta discussão
ao menos nós podemos basearnos na aceitação como verdadeira,
direcionada para sentenças, como sendo a noção crucial. (Uma
teoria mais completa iria considerar outras atitudes em relação às
sentenças também, tal como desejar como verdadeira, duvidar se
é verdadeira, tentar tornar verdadeira, etc..) Atitudes estão de fato
envolvidas aqui, mas o fato de que a questão principal não é mal
entendida pode ser vista assim: se nós meramente sabemos que
alguém considera uma certa sentença verdadeira, nós não
sabemos nem o que ele significa com a sentença nem que crença
o seu ter por verdadeiro representa. O seu tomar a sentença por
verdadeira é assim o vetor de duas forças: o problema da
interpretação é abstrair da evidência uma teoria do sentido
utilizável e uma teoria da crença aceitável.
O modo como este problema é resolvido pode ser melhor
apreciado por exemplos não dramáticos. Se você vê um veleiro
navegando e sua companhia diz: 'olhe aquele bote', você pode
estar diante de um problema de interpretação. Uma hipótese
natural é que seu amigo tenha tomado um veleiro por um bote, e
tenha formado uma falsa crença. Mas se a visão dele é boa e seu
ponto de observação favorável, é mais provável que ele não use a
palavra 'bote' tal como você usa. Nós fazemos este tipo de
interpretação espontânea o tempo todo, reinterpretando palavras
para preservar uma teoria da crença razoável. Como filósofos nós
somos particularmente tolerantes com a distorção sistemática das
palavras, e peritos em interpretar o resultado. O processo é aquele
de construir uma teoria da crença e sentido viável para sentenças
tidas por verdadeiras.
Tais exemplos enfatizam a interpretação de detalhes
anômalos contra um pano de fundo de crenças comuns e um
método constante de tradução. Mas os princípios envolvidos
devem ser os mesmos em casos menos triviais. A questão é esta:
se tudo o que nós sabemos é quais sentenças o falante tem por
23
verdadeiras, e nós não podemos admitir que sua linguagem é a
nossa, então nós não podemos nem começar a interpretação sem
saber ou assumir um grande número de coisas sobre as crenças do
falante. Uma vez que o conhecimento de crenças vem somente da
habilidade para interpretar palavras, a única possibilidade no
começo é admitir uma concordância geral com relação às crenças.
Nós obtemos uma primeira aproximação para uma teoria acabada
pela atribuição de condições de verdade às sentenças de um
falante que se realizam (em nossa opinião) precisamente quando
o falante toma estas sentenças por verdadeiras. A disciplina é
fazer isso tanto quanto possível, levando em consideração a
simplicidade, considerando os efeitos do condicionamento social,
e é claro nosso conhecimento do senso comum, ou científico, de
erros explicáveis.
O método não é desenhado para eliminar discordância, nem
poderia; o seu propósito é tornar possíveis discordâncias
significativas, e isto depende inteiramente de uma fundação –
alguma fundação – na concordância (agreement). A
concordância pode ter a forma do compartilhar generalizado de
sentenças tidas por verdadeiras pelos falantes 'de uma mesma
linguagem', ou concordância em grande parte mediada por uma
teoria da verdade planejada por um intérprete para falantes de
outra linguagem. Uma vez que a caridade não é uma opção, mas
uma condição para se ter uma teoria utilizável, é irrelevante
sugerir que nós podemos cair em erro massivo ao utilizá-la.
Enquanto nós formos bem sucedidos em estabelecer uma
correlação sistemática de sentenças tidas por verdadeiras com
sentenças tidas por verdadeiras, não há nenhum erro. A caridade
impõe-se a nós; gostemos ou não, se nós queremos compreender
os outros, nós devemos tomá-los como corretos na maior parte
dos assuntos. Se nós podemos produzir uma teoria que reconcilie
caridade e as condições formais para uma teoria, nós fizemos
tudo o que pode ser feito para assegurar a comunicação. Nada
mais é possível, e nada mais é necessário.
24
Nós fazemos o máximo de sentido das palavras e
pensamentos dos outros quando interpretamos de uma maneira
que otimiza a concordância (isto inclui espaço, como dissemos,
para erros explicáveis, isto é, diferenças de opinião). Onde isto
afeta a questão do relativismo conceitual? A resposta é, eu penso,
que nós devemos dizer quase a mesma coisa sobre diferenças de
esquema conceituais que nós dizemos sobre diferenças em
crenças: nós aumentamos a claridade e o ponto das declarações
de diferenças, seja de esquema ou de opinião, alargando a base da
linguagem compartilhada (traduzível) ou da opinião
compartilhada. De fato, nenhuma linha clara pode ser traçada
entre os casos. Se nós escolhemos traduzir alguma sentença
alheia rejeitada por seus falantes, por uma sentença para a qual
nós estamos firmemente unidos numa base comunitária, nós
podemos chamar isto de uma diferença em esquemas; se nós
preferimos acomodar a evidência de outro modo, pode ser mais
natural falar de diferença de opinião. Mas, quando os outros
pensam diferentemente de nós, nenhum princípio geral, ou apelo
à evidência, pode nos forçar a decidir que as diferenças estão em
nossas crenças mais do que em nossos conceitos.
Nós devemos concluir, eu penso, que a tentativa de dar um
significado sólido para a ideia de relativismo conceitual, e
portanto para a idéia de esquemas conceituais, não é melhor
quando tratada do ponto de vista de falha parcial de tradução do
que quando baseada na falha total. Dada a metodologia
fundamental da interpretação subjacente, nós não podemos julgar
que os outros têm conceitos ou crenças radicalmente diferentes
dos nossos.
Seria equivocado resumir dizendo que nós mostramos como
a comunicação é possível entre pessoas que têm esquemas
diferentes, um modo que trabalha sem necessidade daquilo que
não pode ser, a saber, uma base neutra, ou um sistema comum
coordenado. Pois nós não encontramos nenhuma base inteligível
a partir da qual se poderia dizer que esquemas são diferentes.
25
Seria igualmente errado anunciar a gloriosa novidade de que toda
a humanidade – todos os falantes de linguagem, ao menos –
compartilha um esquema e uma ontologia comuns.
Pois, se nós não podemos inteligivelmente dizer que os
esquemas são diferentes, nós também não podemos
inteligivelmente dizer que eles são um. Ao abandonar a
dependência em relação a um conceito de realidade nãointerpretada, alguma coisa fora de todos os esquemas e da
ciência, nós não renunciamos à noção de verdade objetiva –
muito pelo contrário. Dado o dogma do dualismo do esquema e
da realidade, nós temos relatividade conceitual, e verdade relativa
a um esquema. Sem o dogma, esta relatividade cai por terra.
Obviamente a verdade das sentenças permanece relativa à
linguagem, mas isto é tão objetivo quanto pode ser. Ao abandonar
o dualismo do esquema e mundo, nós não abandonamos o
mundo, mas restabelecemos o contato imediato com os objetos
familiares cujas graças fazem nossas sentenças verdadeiras ou
falsas.
26
3.
Quatro ontologias
Eddy M. Zemach
“Four ontologies”, The Journal of Philosophy, v.LXVII, n.8 (1970):
231-247.]
Neste artigo eu pretendo descrever quatro ontologias, as
quais são todas deriváveis de um princípio básico. Eu vou sugerir
que ordinariamente nós empregamos, de um modo um tanto
confuso, termos que designam entidades reconhecidas por cada
uma dessas ontologias. Vou sugerir, além disso, que a ontologia
pressuposta, ou implicada, por um grupo de termos
ordinariamente usados pode ser muito diferente da ontologia
pressuposta, ou implicada, por outro grupo de tais termos. Porém,
minha tese não está ligada à análise da linguagem ordinária. A
minha alegação principal é que cada uma dessas ontologias é
completa e auto-suficiente e que ela não precisa ser usada em
conjunção com nenhuma outra. Nossas razões para usar
ordinariamente todas essas ontologias (embora algumas delas
sejam usadas muito mais frequentemente que as outras) não é que
qualquer uma delas seja, em si mesma, deficiente ou defeituosa.
As razões são pragmáticas e históricas, e têm a ver com
naturalidade, facilidade e simplicidade de expressão, antes que
com adequação essencial.
27
Todas as ontologias a serem aqui consideradas podem ser
chamadas, grosseiramente, “nominalistas”, uma vez que nenhuma
delas é capaz de lidar com entidades não-espaço temporais tal
como classes, números, universais, ou deuses. Se isto é uma
deficiência, então, todas estas ontologias são deveras deficientes.
Eu acredito, contudo, embora eu não vá entrar nesse assunto no
presente artigo, que nenhuma ontologia deveria ser capaz de
acomodar tais entidades platônicas. De qualquer modo, no que se
segue eu vou assumir que todas as entidades que uma ontologia
deve acomodar são espaço-temporais. O ponto é, contudo, que
reconhecer que o domínio da ontologia deve ser o mundo espaçotemporal, não é igual a ter uma ontologia. Um mundo espaçotemporal pode ser “cortado” em entidades separadas de maneiras
radicalmente diferentes.
As quatro ontologias que eu discuto resultam da
possibilidade de referir a entidades espaço-temporais qua espaçotemporais, isto é, como estendidas no tempo e no espaço. Uma
ontologia pode construir suas entidades seja como limitadas ou
contínuas no tempo ou no espaço. Uma entidade que é contínua
em uma certa dimensão é uma entidade que se considera não ter
partes na dimensão em que ela é contínua. Pode-se dizer que ela
modifica-se ou que não se modifica nesta dimensão, mas o que se
encontra depois nesta dimensão é a inteira entidade como
modificada (ou não) e não uma certa parte dela. O oposto é
verdadeiro de uma entidade que é limitada. Se uma entidade é
limitada em certa dimensão, então os diferentes locais ao longo
dessa dimensão contêm suas partes, não a inteira entidade outra
vez. É possível que dois diferentes locais nesta dimensão
(limitada) contenham, cada um deles, a inteira entidade apenas se
também há entre estes dois locais uma distância em uma
dimensão na qual a dita entidade é contínua. Pois, se uma certa
entidade que é um F encontra-se em um certo local espaçotemporal i e se outro local espaço-temporal j está também Fmente preenchido, então pode-se dizer que é a mesma entidade, x,
28
que ocupa, toda ela, ambos i e j, se e apenas se há entre i e j uma
distância numa dimensão em os Fs não são limitados. Se,
contudo, não nenhuma distância entre i e j numa dimensão em
que os Fs são contínuos, então, nós devemos dizer ou que i e j
contêm diferentes partes do mesmo F ou então (e.g. no caso que
o conceito de ser F impeça que se tenha duas diferentes partes
como contidas em i e em j) contêm dois diferentes Fs.
Para definir 'contínuo com respeito a uma certa dimensão',
vamos referir à área espaço-temporal inteira ocupada por uma
dada entidade a (“em sua vida”, por assim dizer) como A . Agora,
I. Se a é contínua com respeito a uma certa dimensão x, então há
várias seções cruzadas de A, perpendiculares a x, tal que cada uma
delas contém a como um todo.
Vamos referir a cada uma de tais seções de A como B. Nós
podemos agora proceder a definição de 'limidada com respeito a
uma certa dimensão' do seguinte modo:
II. Se a é limitada com respeito a uma certa dimensão y, então, há
várias seções cruzadas de B perpendiculares a y, tal que cada uma
delas contém uma parte de a.
Se uma entidade não tem nenhuma dimensão com respeito
a qual ela é contínua, então, A=B. Desta entidade pode ser dada a
seguinte definição simples (que é mais forte do que pode ser
derivado apenas de I e II):
III. Se a é limitada com respeito a todas as suas dimensões, então,
cada seção de A contém uma parte de a.
Alguém provavelmente gostaria de ter o inverso desta
simples definição como uma definição de uma entidade contínua
com respeito a todas as suas dimensões, i.é., algo como
IV'. Se a é contínua com respeito a todas as suas dimensões, então,
cada seção de A contém a como um todo.
29
Contudo, como nós veremos na seção IV, estad definição é
muito estreita. Por conseguinte, nós retornaremos a uma
conjunção estrita de I e II para alcançar
IV. Se a é contínua com respeito a todas as suas dimensões, então,
há várias seções cruzadas de A, perpendiculares a alguma
dimensão de a (x,y,...), tal que há várias seções cruzadas daquelas
seções cruzadas, perpendiculares a outras dimensões de x (z,u,...)
tal que cada uma delas contém a como um todo.
Uma ontologia esculpe suas entidades seja como limitadas
seja como contínuas no espaço e no tempo. Logo, quatro tipos de
ontologias: uma ontologia cujas entidades são limitadas no
espaço e no tempo, uma ontologia cujas entidades são limitadas
no espaço e contínuas no tempo, uma ontologia cujas entidades
são limitadas no tempo e contínuas no espaço, e uma ontologia
cujas entidades são contínuas no espaço e no tempo.
I.
Entidades limitadas tanto no espaço como tempo podem ser
chamadas eventos ou não-continuantes (NCs). Eles entidades
definidas por sua extensão espaço-temporal. A entidade cujos
limites são dados em todas as quatro dimensões é um evento. Um
evento é uma entidade que existe, inteiramente, na área definida
por seus limites espaçotemporais, e cada parte dessa área contém
uma parte do evento completo. Obviamente, há indefinidamente
muitos modos de esculpir o mundo em eventos, alguns dos quais
são mais usáveis e interessantes (e.g., para os físicos) e alguns
dos quais – a vasta maioria – parecem criar coleções malucas de
nenhum interesse. Qualquer região espaço-temporal preenchida é
um evento. Uma vez que o termo ‘contínuo’ tem um significado
especial nesse artigo, eu vou usar o termo ‘contíguo’ para
representar aquilo que normalmente ‘contínuo’ significa, i.e., ser
30
ininterrupto e indiviso. Eventos, então, embora absolutamente
não-contínuos, podem ter partes contíguas ou não-contíguas. Um
evento não dura – ele não pode ser (todo ele) ou em muitos
lugares ou em muitos instantes.
Quando filósofos e físicos falam sobre vermes, sobre
pontos-eventos, ou sobre cordas-mundo, quando eles descrevem
coisas materiais como “processos fracos” e se referem a fatias de
entidades, eles estão usando a linguagem desta primeira
ontologia. As suas substâncias, i.e., as entidades das quais eles
dizem que o mundo é composto, são eventos (Ncs). Os eventos
são as únicas substâncias desta ontologia. Apenas eles podem ter
nomes próprios genuínos e ser objeto de predicação. Uma
descrição do mundo na linguagem desta primeira ontologia é uma
descrição de eventos, suas propriedades e relações.
A linguagem desta ontologia é relativamente nova. Embora
eu não esteja seguro sobre ela, penso que ela surgiu apenas com
Minkowski e seus diagramas espaço-temporais. Não há nenhuma
conexão essencial, contudo, entre a ontologia de eventos e a
Teoria da relatividade. Newton poderia tê-la usado tão bem como
Quine, Goodman, Willians, ou Taylor. O conceito de uma coisa,
ou uma substância, como qualquer região ou regiões limitada no
espaço e no tempo (e que, por conseguinte, tem partes
espaçotemporais e pode ser fatiada tanto espacial como
temporalmente) pode ser acomodada por vários sistemas de
pensamento. Eu não tenho nada a adicionar às várias provas de
que esta ontologia é adequada para descrever o mundo, formular
leis da natureza, etc., e uma vez que a maioria dos filósofos
contemporâneos não duvida que a linguagem de eventos é ao
menos tão adequada como qualquer outra linguagem que poderia
ser usada para categorizar a realidade, eu concluirei que a
possibilidade da primeira ontologia já está garantida.
31
II.
A segunda ontologia é uma que nós mais usamos e que nos
advém muito naturalmente. Se não fosse pela primeira ontologia,
que mais tarde tornou-se mais e mais entrincheirada em nossa
linguagem, nós não teríamos percebido que esta segunda
ontologia é apenas uma ontologia particular, baseada num certo
modo de lidar com a espaçotemporalidade dos objetos. As
entidades que ela reconhece são contínuas no tempo e limitadas
no espaço. Nós podemos chamá-las continuantes no tempo (CTs)
ou, simplesmente, coisas. Nós normalmente vemos quase a
maioria dos objetos com que nós nos deparamos como CT: esta
cadeira, minha caneta, meu amigo Richard Roe, a árvore na
esquina, a mosca pousada na página. Isto não quer dizer que essas
coisas não podem ser re-categorizadas e vistas como eventos.
Elas certamente podem ser. ‘Esta cadeira’, e.g., pode ser usada
para nomear um NC, e alguns filósofos realmente a usaram deste
modo: eles dizem que eles vêem uma fatia temporal da cadeira e
sentam em outra fatia temporal dela. Mas, este não é o modo mais
comum de usar ‘Esta cadeira’ ou ‘Fido’. Normalmente nós não
vemos cadeiras e cães como Ncs. Nós os consideramos como não
sendo eventos, mas um tipo de entidade muito diferente, e os
nomes que nós damos a eles, em nossa lingugem, obedecem uma
gramática que fundamentalmente distinta da gramática de nomes
de eventos.
Uma coisa, eu disse, é limitada no espaço. Minha
escrivanhia vai da janela até a porta. Ela tem partes espaciais, e
pode ser fatiada em duas (no espaço). Com respeito ao tempo,
contudo, uma coisa é um continuante. Quando eu olhar para
minha escrivanhia amanhã, eu não vou dizer que eu vejo uma
nova parte de minha escrivanhia – um novo segmento temporal
dela. Não, o que eu diria (falando na linguagem da segunda
ontologia) seria que eu agora vejo a escrivanhia outra vez. Notese: o que eu vejo (de acordo com esta ontologia) não é uma parte
ou uma fatia da escrivanhia, mas a escrivanhia inteira. Eu vi a
32
escrivanhia ontem, e aqui está ela, outra vez inteira, hoje. Dizer
(nesta linguagem) que, falando estritamente, que o que eu tenho
hoje é apenas uma parte da escrivanhia, seria ridículo e
francamente enganador; isto significaria que eu teria perdido
parte da escrivanhia – suas pernas, talvez, ou seu tampo – de tal
modo que agora eu não tenho uma escrivanhia completa, mas
apenas uma parte. Os conceitos cadeira, casa, meu amigo Roe,
etc., que usamos normalmente, não são conceitos de eventos
(embora tenha sido garantido que eles podem ser traduzidos na
linguagem de eventos). Quando você me apresentou a Richard
Roe, você disse, “Por favor, conheça meu amigo Roe.” e tanto eu
como você tenderíamos a dizer que o que nós vemos é o Sr. Roe
em sua inteireza, e não uma fatia ou parte dele.
O conceito de um CT é o conceito de algo que é definido
(limitado) com respeito a sua localização no espaço, mas que não
é definido com respeito a sua localização no tempo. A definição
de um pin especifica que o que quer que seja um pin tem que ter
uma certa forma característica espacial, mas ela não diz nada
sobre o tipo de carreira que um pin deve ter – ele pode ser
momentâneo ou eterno. Nós podemos tomar duas (idênticas)
entidades da forma pin como uma e a mesma apenas se existe
uma distância temporal entre suas localizações respectivas. Mas,
se elas co-existem, e não há distância temporal entre elas, nós
dizemos que elas são dois pins diferentes. A diferença em
localização espacial tem, portanto, um papel individuador com
respeito a Cts, que está ausente completamente da localização
temporal. O fato de que a e b tenham a forma humana e estejam
simultaneamente em diferentes lugares é suficiente para decidir
que a e b são humanos diferentes; mas o fato de que a e b tenham
a forma humana e estejam no mesmo lugar em diferentes
instantes não conta nem a favor nem contra eles serem diferentes
humanos.
Seria supérfluo, se não ridículo, tentar “defender” aqui a
ontologia de coisas. A linguagem ordinária e as linguagens da
33
maioria das ciências fornecem provas suficientes de sua
efetividade e auto-suficiência. Além disso, foi mostrado por
muitos filósofos (de modo mais claro, provavelmente, por Wilfrid
Sellars1) que a ontologia e a linguagem de eventos pode ser
definida usando-se a linguagem de coisas apenas: em outras
palavras, que todo fato que pode ser expresso usando-se nomes
de NCs pode em princípio ser expresso usando-se nomes de CTs
apenas.
III.
A terceira ontologia é muito pouco usada por nós, e quando
ela é usada os seus termos são seguidamente confundidos com
aqueles da primeira ontologia. Contudo, termos como “este
ruído”, “a revolução industrial”, “o calor”, “a chuva”, “a era
Roosevelt”, “a grande fome”, etc., não são usados em geral como
nomes de eventos (i.e., de Ncs). Porém, alguns dos usos mais
frequentes de termos como “a atual inflação”, “esta onda” ou
“Segunda Guerra Mundial” mostram que estes termos algumas
vezes servem como nomes de substâncias da terceira variedade,
i.e., entidades que são limitadas no tempo mas contínuas no
espaço. Nós podemos artificialmente expropriar o termo
“processo” para designar estas substâncias, os continuantes no
espaço (Css).
A lógica dos processsos constitui uma imagem de espelho
muito interessante da lógica das coisas. Uma descrição parcial
desta lógica foi dada por Bernard Mayo2, que tentou mostrar que
o que ele chamava “evento” (i.e., na terminologia do presente
ensaio, processos, ou CSs) são ontologicamente o reverso exato,
com respeito ao tempo e ao espaço, de objetos materiais.
1
2
W. Sellars, “Time and the World Order”, em H. Feigl and Grover Maxwell, eds., “Minnesota
Studies in the Philosophy of Science”, vol. III (Minneapolis: University of Mennesot Press,
1962), pp. 527-618.
B. Mayo, “Objects, Events and Complementarity”, Philosophical Review, LXX, 3 (jul 1961):
340-361.
34
Contudo, a defesa de Mayo da tese do paralelismo entre espaço e
tempo é, eu penso, não sistemática, e ela não pode decolar sem
fazer várias hipóteses para-mecânicas que estão longe de ser
óbvias e que, na discussão seguinte, eu vou tentar evitar. O que eu
tento fazer na presente seção não é provar a tese do paralelismo,
i.e., que o que pode ser dito sobre o espaço pode ser dito sobre o
tempo e vice-versa. (Parece-me que, nesta forma ingênua, a tese é
tão ambígua a ponto de ser nem verdadeira nem falsa; ela não tem
nenhum sentido preciso no final.) Eu vou tentar, em vez disso,
mostrar que sempre o que que que uma ontologia pode fazer com
CTs como substâncias básicas, outra ontologia pode fazer com
CSs, e fazê-lo do mesmo modo. Por conseguinte, estas duas
ontologias seriam formalmente (qua calculi) indistinguíveis uma
da outra.
Vamos tomar Fido como nosso exemplo de uma coisa (CT)
e a Revolução francesa como um exemplo de um processo (CS),
e apontar os seguintes dois pontos de comparação entre eles:
(a) Fido não pode ser ao mesmo tempo em muitos lugares,
mas ele pode ser no mesmo lugar em diferentes momentos de
tempo. Por contraste, a revolução pode ser ao mesmo tempo em
muitos lugares, mas ela não pode ser no mesmo lugar em muitos
momentos de tempo.
Este ponto, eu penso, é muito claro. Nós dizemos que a
revolução, ou a grande fome, ou esta chuva, ou este ruído, são no
lugar x tanto quanto eles são no lugar y. Nossa linguagem parece
estabelecer aqui um padrão lógico que é radicalmente diferente
do padrão usualmente seguido quando ela trata coisas. Se nos
dizem que Jack e John, que não vivem no mesmo lugar, ouviram
uma certa explosão (ou vivem sob a ocupação nazista) nós não
diríamos normalmente que Jack ouviu parte da explosão e John
ouviu outra (ou que Jack viveu sob parte da ocupação nazista
enquanto John viveu sob outra parte dela). Dizer isto significaria
algo inteiramente diferente, e.g., de John ouviu o início do ruído e
35
Jack ouviu apenas o final (e similarmente com a vida durante a
ocupação, seu começo e seu final). Desse modo, enquanto Fido
deve ser em qualquer tempo em um lugar apenas, um típico CS
como a Revolução Francesa pode ser, como um todo, em muitos
lugares ao mesmo tempo. Por outro lado, Fido pode ser, como um
todo, em muitos momentos de tempo. Ele pode ser em London
em 1969 e em New York no ano seguinte. Ele pode também
retornar a um lugar que ele habitou antes e assim ser, como um
todo, em dois momentos no mesmo lugar. Tudo isso é impossível
para um CS. Se a revolução é em Lyon entre 1798 e 1812, então,
nós diríamos que em 1798 Lyon presenciou o começo da
revolução enquanto em 1812 ela experimentou o seu fim. Agora,
sem em 1848 houve outro começo de uma revolução em Lyon,
nós normalmente não iríamos dizer que foi a mesma Revolução
Francesa que retornou a Lyon, mas antes que outra e nova
revolução é agora tomando a cidade. O papel individuador que o
espaço exerce com respeito a CTs é exercido pelo tempo com
respeito a CSs.
(b) Fido não precisa ter todas as suas partes em cada lugar
que ele ocupa, mas tem que ter todas as suas partes no tempo que
ele ocupa. Em contraste, a revolução tem que ter todas as suas
partes em cada lugar que ela ocupa, mas não precisa ter todas as
suas partes em qualquer tempo que ela ocupa.
Isto também é, eu penso, intuitivamente claro. Nós não
diríamos que Fido existe no momento t se não fosse o caso que
todas as suas partes (cabeça, pernas, pulmão, etc.) existissem no
temp t, ocupando, cada uma delas, um lugar diferente no espaço.
Por contraste, a revolução francesa pode muito bem existir no
tempo t embora nesse tempo algumas de suas partes (e.g. sua
degeneração final em uma ditadura imperialista) não existirem
ainda em nenhum lugar. Embora seja possível que num certo
tempo a revolução deva ter seus diferentes estágios presentes em
diferentes cidades, estes segmentos da revolução não necessitam
(embora possam) ser todos presentes em diferentes locais num
36
dado tempo. Considerando agora o outro lado dessa comparação,
é verdade que Fido pode comportar-se de tal modo que um certo
lugar que foi previamente ocupado por sua perna traseira
esquerda seja mais tarde ocupada por sua perna dianteira direita,
e depois por sua cabeça, etc., de tal modo que este lugar terá
eventualmente contido todas as partes de Fido. Mas este tipo de
comportamento seguramente não é necessário para Fido ser o que
ele é e não ocorre com respeito a maioria dos lugares que contêm
uma ou outra parte de Fido. A revolução, por outro lado, deve ter
cada uma de suas partes presentes exatamente no lugar que ela
ocupa, ou então nós não iríamos dizer que esta revolução
particular esteve realmente presente naquele lugar. Se uma cidade
a experimentou apenas dois dos cinco estágios que caracterizam
este processo revolucionário particular (ou esta particular
calamidade, ou esta explosão, etc.) nós normalmente iríamos
dizer que a experimentou apenas parte da revolução, não a
revolução (a explosão, inflação, etc.) como um todo.
A comparação entre um Cs e um CT ficará mais clara se
nós explanamos os pontos (a) e (b) acima em oito diferentes
proposições, arranjadas em dois grupos. Note-se que a negação de
cada uma das proposições A1-A4 é verdadeira de qualquer CS,
enquanto a negação de cada proposição B1-B2 é verdadeira de
qualquer CT.
A. 1. Em um tempo uma coisa não pode ser como um todo
em diferentes lugares.
2. Em diferentes tempos, uma coisa pode ser como um todo em um
lugar.
3. Em qualquer tempo, uma coisa deve ter todas suas partes em
diferentes lugares.
4. Em todos os tempos, uma coisa não necessita ter todas suas
partes em um lugar.
B. 1. Em um lugar, um processo não pode ser como um
todo em diferentes tempos.
37
2. Em diferentes lugares, um processo pode ser como um todo em
um lugar.
3. Em qualquer lugar, um processo deve ter todas suas partes em
diferentes tempos.
4. Em todos os lugares, um processo não necessita ter todas suas
partes em um tempo.
A estrutura das proposições A1-A4 é idêntica a das
proposições B1-B2. O único modo pelo qual elas diferem é que
ali onde nós temos “tempo” em A1-A4 está “lugar” em B1-B2, e
vice-versa. Isto, finalmente, conduz a uma definição geral de uma
entidade limitada com respeito a uma dimensão e contínua com
respeito a outra:
V. Com respeito a qualquer entidade a e a qualquer dimensão ou
grupos de dimensões x e y, a é contínua com respeito a x e limitada
com respeito a y, se e somente se:
1. Em uma posição-x, a não pode ser em muitas posições-y.
2. Em várias posições-x, a pode ser em uma posição-y.
3. Em qualquer posição-x, a deve ter todas suas partes em várias
posições-y.
4. Em nenhuma posição-x a deve ter tudas suas partes em uma
posição-y.
(onde ‘posição’ deve ser entendida como ‘posição ocupada
por a’.) Simbolicamente, estas condições podem ser apresentadas
como se segue:
1. □~(a, x, y1 ...yn)
2. ~□~(a, x1 ...xn, y)
3. □(Pa1 ... Pan, x,y1 ...yn)
38
4. ~□(Pa1 ... Pan, x1 ...xn,y)
Diferentemente de Cassirer, Whitehead, Bergson, ou
Schopenhauer, eu não defendo que a Ontologia de Processos seja
a ontologia correta. Mas, eu defendo sim que, se o mundo pode
ser visto como a totalidade de coisas, então, ele pode também ser
visto como a totalidade de processos. Uma sociedade que prefere
a linguagem de CSs iria provavelmente segmentar o mundo em
pedaços que difeririam muito das entidades que nós hoje
discernimos. Contudo, para provar a auto-suficiência da ontologia
de CS não é necessário construir efetivamente uma linguagem de
processos. Tudo o que nós temos de fazer é perceber que
processos, como coisas, são nada mais do que segmentos
dinâmicos de eventos. A auto-suficiência das ontologias I e II
logicamente implica a auto-suficiência da ontologia III: se as
ontologias I e II são auto-suficientes, então, toda sentença numa
linguagem de entidades completamente limitadas pode ser
traduzida numa linguagem de entidades parcialmente limitadas.
Esta tradutibilidade deve-se a considerações puramente formais, e
nada tem a ver com o espaço e o tempo. Não faz nenhuma
diferença em que dimensões as entidades parcialmente limitadas
são limitadas, e não existe nada que faça as entidades limitadas
em qualquer uma das dimensões, ou grupo de dimensões,
intrinsecamente mais auto-suficiente do que entidades limitadas
em outras dimensões. O ponto é, antes, que uma descrição
completa de um ocupante de uma certa área espaçotemporal pode
ser dada em uma linguagem cujos substantivos denotam
segmentos dinâmicos desse ocupante. Do mesmo modo que nós
podemos dizer que Kant nunca deixou Königsberg, nós podemos
dizer que certos processos que juntos podem ser chamados
‘Kantiando’ nunca ocorreram antes de 1724 e depois de 1804;
assim como dizemos que Kant viveu 80 anos, do mesmo modo
podemos dizer que o processo de Kantiar ocorreu numa área de
cerca de quatro milhas quadradas, a área de Königsberg. Se é
verdade que Kant foi encontrado junto a seu gato, Max, então
39
deve ser verdade que Kantiar incluía sendo-encontrado-junto*
Maxiar; se Max algumas vezes deitava no tapete, então,
seguramente em alguns lugares onde Maxiar ocorreu deu-se a
relação de sentar* com um certo tapetear*.1
IV.
Por fim, nós chegamos à quarta ontologia. As substâncias
reconhecidas por esta ontologia não são limitadas nem no espaço
nem no tempo. Elas são, então, continuantes puros (PCs) ou
tipos. Tipos tem sido, por muito tempo, a Cinderela da ontologia.
Eles foram considerados como sendo universais, entidades
abstratas, formas, classes, ou o que quiser. Por exemplo,
expressões como “O pinheiro comum é uma árvore verde” ou “O
cão é o melhor amigo do homem” são construídas como se
contivessem não nomes das entidades O Pinheiro Comum, O
Cão, Homem, etc., mas nomes de classes. Esta interpretação, eu
acredito, é contra-intuitiva. O Pinheiro Comum, nós dizemos, é
uma árvore verde, e o Homem tem um amigo, o Cão. Mas a
classe dos pinheiros nem é uma árvore nem é verde, e a classe
dos homens não pode ser amiga da classe dos cães. Uma classe
não pode ser persistente ou evasiva, e ainda mais nós dizemos
que O Inimigo pode ser ambos. O papagaio pode falar e a letra V
tem a forma de uma cunha. Mas, realmente classes falam, ou têm
figura e forma?
A abordagem de Frege-Russell dos tipos é ainda menos
atraente do que a anterior. Na abordagem deles, expressões
contendo nomes de tipos são completamente analisáveis em
expressões que incluem apenas variáveis ligadas e termos gerais.
1
Termos da linguagem-coisa não são automaticamente transferíveis para linguagem-processo
ou de eventos. “ser encontrado em” ou “sentar-se em” são relações que ocorrem entre duas
coisas e não se pode esperar sua ocorrência numa ontologia de eventos ou processos. Ao
contrário, o termo-processo correspondente “ser encontrado em*” e “sentar-se em*” podem
ser aprendidos, e.g., ostensivamente, em ocasiões similares àquelas em que “ser encontrado
em” e “sentar-se em” são aprendidos em nossa sociedade.
40
Dada esta análise, “O leão africano é feroz”, e.g., não é uma
sentença sujeito-predicado da forma “S é P”. Antes, esta sentença
é um modo de expressão “não-perspícuo” do enunciado
quantificado “Qualquer coisa que seja um Leão Africano é feroz”.
[No jargão do Principia, (x)(Ax ⊃ Fx).] Desse modo,
paradoxalmente, o “O” institucional (a expressão é de Langford 1)
foi vista como um quantificador universal de espécies. Os
proponentes dessa visão não perceberam que o que eles
ofereceram sob o inócuo título “análise” era de fato uma sugestão
de revisão lingüística, uma tentativa de forçar a linguagem na
camisa de força de uma e uma única ontologia. Uma vez que
Frege, Russell e seus seguidores acreditavam ser impossível
construir este uso de “Mulher”, “O pagador de impostos”, ou “O
Leão Africano” como nomeando indivíduos genuínos, eles
concluiram que a forma de predicação singular (... é ... ) usada
com estes termos deveria ser uma aberração!
Existem muitas outras dificuldades com esta redução. (O)
Chrisler é um bom carro, embora nem todo Chrysler seja bom. A
letra Q ocorre vinte vezes (??) página, mas não é verdade que
todas as ocorrências de Q ocorrem vinte (??) vezes nesta página.
Guerra e Paz foi concluído por Tolstoi em 1869, mas não é
verdade que todos os exemplares de Guerra e Paz foram
concluídos por Tolstoy em 1869. O Leão Africano pesa não mais
do que 500 libras. O Inimigo tomou o monte 69, mas não é o caso
que, para todo x, se x é um inimigo, x tomo o monte 69 (nem,
com efeito, é verdade que part do inimigo tomou o monte 69). Eu
não vou entrar em detalhes nesses exemplos. Eu estou seguro que
com suficiente engenhosidade lógica nós poderíamos analisar
todas estas expressões problemáticas (embora cada uma delas
requisesse um tipo de diferente de análise), de tal modo que na reescrição final nós nomeássemos apenas entidades do tipo
preferido pelo reducionista – muito provavelmente ou coisas ou
1
C. H. Langford, “The Institucional Use of The”, Philosophy and Phenomenological Research,
X, 1 (sept 1949): 115-120.
41
eventos. A questão é, todavia, por que nós deveríamos fazer isso?
Além disso, , mesmo que haja boas razões para a redução, o
reducionista deveria perceber que o que ele está fazendo não é
apenas clarificar o sentido de uma expressão obscura; antes, ele
está desenhando uma ontologia, todo um modo de esculpir a
realidade, que pode por si própria classificar, categorizar e
explanar o mundo em que nós vivemos. Verdade é que O Pagador
de Impostos, O Leão e their ilk (??) não são coisas; i.e., eles não
são CTs. Substratos ou objetos, todavia, eles são – uma vez que
tipos, i.e., PCs, são objetos. Eu defendo, então, que tipos como A
Letra A, ou A Mulher Americana, são objetos materiais (não
entidades abstratas) recorrentes tanto no espaço como no tempo.1
Eles são inteiramente entidades materiais, ou “primárias”, tanto
quanto o são os CTs.
Eu tentei argumentar que na linguagem cotidiana nós
ordinariamente usamos termos que nomeiam PCs e exibem o
peculiar tipo de lógica que típica dessas entidades. Meu único
exemplo foi entretanto o uso do “the” institucional, quer
1
O exame mais detalhado e meticuloso da lógica dos tipos que eu tenho conhecimento
encontra-se na dissertação não publicada de John B. Bacon (Yale University, 1965) Being and
Existence. Bacon também investiga a concepção de que os tipos são entidades singulares
genuínas. Contudo, após um longo exame ele acha a idéia insustentável, e alcança a conclusão
que “Frases institucionais não podem ser nomes; tipos não podem ser objetos” (p. 240). O seu
argumento principal é a antinomia que, se Homem é um objeto, “você seria eu, uma vez que
nós ambos incorporamos Homem. De fato, cada coisa seria todas as demais, uma vez que
todas instanciariam a Coisa. Em particular, X é X” (p. 239). Este argumento, contudo, está
baseado num erro categorial. ‘Zemach’ e ‘Bacon’ são nomes de coisas, e “Zemach é Bacon” é
um falso enunciado na linguagem da ontologia II. O mais próximo que se pode obter, na
linguagem de tipos, é “Homem é aqui, e Homem é ali”. Agora, é verdade que Homem é ali
louro (na linguagem de CT, Bacon é louro) e aqui negro (novamente, na linguagem de coisas,
Zemach é negro). Porém, o fato que Homem é louco ali e não é louro aqui não é mais
contraditório, ou problemático, do que o fato que Bacon é louro agora, mas pode não ser louro
10 anos mais tarde. “Bacon é louro e é idêntico com algo não louro” é problemático apenas se
falhamos em reconhecer a linguagem de coisas aqui usada e a mal-construimos como um
enunciado sobre eventos. Nessa (má-) interpretação, o enunciado feito seria que X (o estágio
louro de Bacon) é idêntico com X (o estágio não-louro de Bacon), o que é uma contradição
flagrante. O erro de Bacon é, portanto, sua falha em perceber que a linguagem de tipos é uma
alternativa a, antes que uma extensão da linguagem de coisas. As incongruidades que podem
ser descobertas entre as duas linguagens não descredenciam uma ou outra. Elas apenas
demonstram que termos de duas ontologias diferentes não podem sempre ser simplesmente
justapostos sem os termos de uma serem ou traduzidos ou reinterpretados nos termos da outra
ontologia.
42
explicitamente (como em “The Union Jack”) quer implicitamente
(como em “Man is mortal”). Mas, este de modo algum é o único
exemplo de uso cotidiano de nomes de tipos. O mais comum
exemplo de tal uso é o grupo de termos conhecido como nomes
de massa, que, eu defendo, comporta-se como nomes de PCs e
deveriam ser vistos como tais.1
Historicamente, massas tem sido experimentadas muito
melhor (diretamente) do que tipos. Embora o “o” institucional
nunca tenha sido reconhecido como um functor de termo singular
genuíno, os nomes de massa (‘água’, ‘areia’, ‘comida’, ‘couro’,
‘grama’, etc.) tiveram vários advogados que se recusaram a
descartá-los como um fenômeno lingüístico extravagante, como
formas plurais degeneradas, ou como nomes de classe,
reconhecendo seu valor como termos singulares genuínos. W. V.
Quine, e.g., tentou várias vezes2 interpretar os nomes de massa
como nomes de indivíduos completos. As suas tentativas,
contudo, falharam (um dos resultados estranhos por ele alcançado
é que Triangular pode ser, e.g., quadrado), e a razão para isto é
que ele identificou mal a natureza (kind) do objeto nomeado por
um nome de massa. Para Quine, nomes de massa nomeiam
indivíduos dispersos; ‘água’ nomeia a parte aquosa do universo;
‘vermelho’ (ou ‘pigmento-vermelho’) nomeia a parte vermelha do
universo. A principal diferença entre água e mamãe é que mamãe
é espacialmente contígua enquanto água é espacialmente dispersa
(Word and Object, p. 51). Agora, junto com a abordagem geral de
Quine, mantém-se a concepção de todo objeto como uma seção
quadridimensional do mundo (i.e., em minha terminologia, como
um evento). Mas esta abordagem não pode fazer justiça às massas
(i.e., aos tipos). A característica distintiva de continuantes é que,
com respeito às dimensões em que eles são contínuos ( e no caso
1
2
Novamente pode-se encontrar em Bacon, op. cit., uma discussão muito proveitosa da relação
entre massas e tipos. A conclusão de Bacon é que massas podem, sim, ser vistas como tipos.
Mais tardiamente em Word and Object (Cambridge, Mass.: MIT Press, 1960), pp. 90-110.
Anteriormente em “Speaking of Objects”, em J. A. Fodor and J. J. Katz, eds., The Structure of
Language (Englewood Cliffs, N. J.: Prentice-Hall, 1964, pp. 446-459, e em seu From a
Logical Point of View (New York: Harper & Row, 1963), pp. 65-79.
43
dos Continuantes Puros com respeito a todas as suas dimensões)
se considera que eles estão presentes em sua inteireza em todos os
lugares que eles ocupam nesta dimensão.1 Nesse ponto está a
principal diferença entre o rio Cayster e Água, entre Mamãe e
Vermelho. Não apenas é o caso que Cayster e Mamãe não são
dispersos enquanto Água e Vermelho o são. Eu concordo com
Quine que este é um ponto inconsequente. A diferença lógica
crucial, contudo, é que onde quer que água esteja presente, a
água (e não uma certa parte da água) está presente, e que o que
quer que seja vermelho é vermelho (e não um segmento de
vermelho). Isto não é o caso com o rio Cayster, Mamãe, Fido, ou
Londres. Embora nós possamos dizer, quando em Chelsea, “Esta
é Londres”, e depois dizer novamente, “Esta é London”,
apontando para Piccadilly, nós estamos prontos para admitir que
o que nós dissemos é que Londres tem muitas partes, de modo
que nós primeiro apontamos para uma parte de Londres e depois
para outra parte da mesma cidade. Isto vale para Fido (apontando
para suas orelhas e depois para seu rabo, dizendo em ambas as
ocasiões “Isto é Fido”), para Mamãe, para Cayster, e para todo
outro nome de um CT ou um NC. Por outro lado, se o diretor do
Zoo do Bronx diz “Eu vou lhe mostrar agora o urso polar, o leão
africano, o gorila, ...,” ele não admitiria prontamente que o que
ele nos mostra não é realmente o urso polar, mas tão somente
uma parte dele. Se Jones me diz que ele ouviu a Missa Solemnis
de Beethoven na noite passada, ele ficaria provavelmente muito
ofendido se eu respondesse, “Você quer dizer, naturalmente, que
você ouviu uma parte da Missa – você não pode ter ouvido ela
inteira!”. Ele protestaria imediatamente que ele realmente ouviu
a Missa inteira (i.e., ele não saiu na metade). Se eu insistisse que
para ouvir toda a Missa haveria que ouvir todas as suas
ocorrências, incluindo as do passado e do futuro, ele
provavelmente acreditaria que eu tinha enlouquecido. Agora, se
‘vermelho’ é aprendido como um nome de massa (i.e., ‘pigmento1
Esta formulação não é precisa. Ela será corrigida e ampliada depois.
44
vermelho’), ele também se comporta de uma maneira similar, e
assim também, naturalmente, ‘água’, ‘trigo’, ‘papel’, e todos os
outros nomes de massa. Se eu desejo água e você me traz um
copo cheio, eu não posso objetar dizendo, “você me trouxe
apenas uma parte da água, não a água mesma”; porém, eu faria
esta objeção se eu quisesse Fido e você me trouxesse suas
orelhas. Quando o geólogo diz que foi encontrado ouro no
Alaska, nós não diríamos que isto é impossível uma vez que o
ouro é encontrado também na Califórnia. Ouro (não uma parte
dele) é encontrado na Califórnia e no Alaska, assim como a
Quinta Sinfonia (não uma parte dela) pode ser ouvida na
Califórnia e no Alaska também. Os nomes de massa, pois, em
nossa linguagem seguem a gramática dos tipos. “O leite é
saudável” é, então, uma sentença sujeito-predicado genuína, e
assim também “O homem é mortal”; e o que elas referem é o
Leite e o Homem, respectivamente.
Uma das mais importantes obras sobre a questão dos nomes
de massa encontra-se no Individuals de Strawson,1 onde
argumenta-se que uma ontologia de massas (PCs), que não
reconhece o conceito de uma coisa, é perfeitamente possível e de
fato é absolutamente suficiente para todas as nossas necessidades.
Strawson argumenta que
Tudo o que é requerido é a admissão que o conceito de jogo-denomear é coerente, a admissão que a abilidade de fazer referências
identificadoras a coisas como bolas e patos inclui a abilidade de
reconhecer as características correspondentes, enquanto é
logicamente possível que se possa reconhecer as características
sem possuir os recursos conceituais para a referência
identificadora dos particulares correspondentes.
Eu acredito que esta linha de raciocínio é absolutamente
válida. Strawson, contudo, insiste em manter o termo honorífico
“individual” para aquelas entidades que caem sob termos sortais
1
P. F. Strawson, Individuals (London: Methuen, 1959), pp. 202-213.
45
genuínos – i.e., para cães, gatos, casas, e homens – e
consistentemente recusa reconhecer algo mais, e.g., as entidades
referidas por nomes de massa, como individuais. Nomes de
massa e outros nomes-tipo são por ele chamados ‘universais
caracteristíca’ ou ‘conceito característica’, e ele deixa de lado a
questão acerca do que são as entidades que os “feature concepts”
designam, usando apenas o modo formal de linguagem quando
discute este nível da linguagem e revertendo para o modo
material apenas quando ele alcança o nível onde a “inovação
conceitual” da introdução de coisa é finalmente feita. Pode-se
responder que o que nomes-tipo (os “feature placing concepts” de
Strawson) denotam é simplesmente coisas – gatos, cães, casas,
etc. Isto é, que ao usar seja o enunciado de posição de
característica ‘gato aqui’ seja a expressão uso-de-característica,
‘isto é um gato’, nós referimos a este gato. A resposta seria
verdadeira, mas ela não é a inteira verdade. Ela eleva uma das
ontologias ao pedestal de a ontologia, ao imporque sempre que se
quer discutir não os modos de referir mas as entidades referidas,
deve-se usar os termos de uma ontologia escolhida. Tal decisão
pode ser feita, mas ela é claramente arbitrária. Nós poderíamos de
modo similar dizer que em ambos ‘gato aqui’ e ‘isto é um gato’
nós referimos a O Gato (a entidade tipo). Strawson, então, fez
uma descoberta mas virou explicitamente as costas para ela. Em
vez de reconhecer que, uma vez que nós temos várias linguagens
ontológicas co-equivantes, deve existir uma pluralidade de tipos
de individuais, ele paparicou um deles (CTs), fazendo-se de surdo
para as alegações que ele mesmo formulou tão brilhantemente em
favor de alguns de seus rivais conceituais (os PCs).
A discussão de Strawson é também de ajuda para responder
uma das objeções que pode ser feita a tese da auto-suficiência da
linguagem dos tipos. A objeção é que, embora os nomes de tipos
possam ser usados com massas uniformes tal como água e
madeira, eles não podem fazer o trabalho de sortais como ‘gato’
ou ‘maçã’. “Pois, particulares tal como flocos de neve poderiam
46
ser fisicamente fundidos para se ter uma massa particular de
neve; mas nós não poderíamos juntar gatos para se ter um gato
enorme” (Individuals, p. 205). Porém, como Strawson observou,
na medida em que nós usamos apenas a lingugem de tipos, i.e.,
na medida em que nós dizemos “Neve – mais neve” e “Gato –
mais gato”, a analogia é preservada. O monte de neve é “mais
neve”, o monte de gato, “mais gato”.
Este ponto, contudo, necessita uma melhor elaboração. A
diferença entre tipos e massas parece ser que, com sangue,
algodão, pigmento-vermelho, etc., nós podemos apontar para
todo lugar que a dita matéria ocupa e veridicamente dizer “Isto é
sangue”, “Isto é algodão”, etc., sem ter que qualificar estes
enunciados dizendo “Falando estritamente, isto é apenas uma
parte de sangue (algodão, etc.)”. Mas, nomes de tipos como “O
Gato” (na terminologia de Strawson, ‘gato’ como um universal
feature-placing) comporta-se de maneira um pouco diferente.
Nós podemos dizer “Este é (O) Gato” apenas quando nós
apontamos para a área total ocupada pelo que é chamando na
lingaugem da ontologia II um gato singular. Não se pode apontar
para a cabeça, dizendo “Gato” e depois para a cauda, dizendo
“Mais gato”. Isto pode levar alguém a pensar que os nomes de
tipos não são independentes de nomes de coisas. Mas, isto seria
incorreto. No caso de ‘sangue’ e ‘água’ ‘suja’, etc. nós também
pomos limitações no tamanho da área que pode ser qualificada
como contendo a entidade em questão. Uma molécula de H2O
não é água, e um corpusculo não é sangue. Isto é, mesmo se o
denotata de nomes clássicos de massa não estejam presentes
(como um todo) em todo lugar espacial que eles ocupam, se nós
não pomos nenhuma restrição no termo ‘todo lugar espacial’.
Mas, se nós introduzimos tais restrições, a diferença entre ‘água’
e ‘O Gato’ desaparece. Agora se pode dizer que as entidades
denotadas por esses termos estão presentes, como um todo, em
todo lugar que eles ocupam – onde o termo ‘todo lugar’ carrega o
adendo que este lugar deve ser de certo tamanho mínimo,
47
determinado pelo nome-tipo em questão. Pois, o lugar onde a
forma gato pode ser encontrar deve ser maior do que o lugar
onde a (mais simples) propriedade cevada pode ocorrer, o qual
por sua vez é ainda maior do que o lugar onde água pode estar.
Se apenas uma cauda de gato é aí, (O) Gato não é aí, e se nós
fazemos um monte de gatos, o resultado não seria a referência do
nome-tipo ‘(O) Gato’. Mas, por conseguinte, se nós pegamos uma
porção de cevada e amontoamos, nós não teríamos nada que seria
denominado ‘cevada’(seria farinha).
A interpretação liberal acima da demanda de que um PC
esteja inteiramente presente nos lugares que ocupa tem um
resultado imediato. De acordo com ela, todos os nomes próprios,
que até aqui foram considerados nomes de CTs, podem ser
qualificados como nomes de PCs também. Lyndon Baines
Johnson poderia ser um tipo, uma vez que, se nós exigimos
apenas que Lyndon Baines Jonhson esteja inteiramente presente
em cada lugar grande o suficiente para permitir a ocorrência da
propriedade complexa (ou a disjunção de propriedades) ser LBJ,
então, a pessoa ‘LBJ’ pode também ser qualificada como o tipo O
LBJ. O mesme vale para nomes de entidades maiores, e.g.,
‘Jerusalém’ ou ‘Uruguai’. A única diferença que poderia ser
detectada entre ‘LBJ’ como nomeando um PC e ‘LBJ’ nomeando
um CT é a condiçao de singularidade que limita o emprego do
segundo uso de ‘LBJ’. Isto é, no notório caso problemático
(tornado famoso por pela história de B. O. A. Williams dos dois
irmãos que “tornaram-se
Guy Fawkes”) de, seja, LBJ
desaparecer e duas (ou mais) pessoas, qualificadas igualmente
bem para ser, cada uma delas, LBJ showing up, a gramática de
‘LBJ’ como nome-tipo seria em parte ways com ‘LBJ’ como
nome-coisa. O nome-tipo seria aplicável a ambos os LBJs; que
LBJ (i.e., O LBJ) estaria presente em dois lugares distintos ao
mesmo tempo seria completamente não-problemático;
conceitualmente, seria similar a descobrir petróleo, ou a Peste
bubônica, em um novo local. Contudo, se ‘LBJ’ é usado como um
48
nome de coisa nós não seríamos capazes de usá-lo com respeito a
ambos os disputantes. Como Williams sugere, nós iríamos
provavelmente recusar o seu uso com respeito a ambos, e declarar
LBJ perdido ou morto.
A mesma solução é aplicável para problemas filosóficos
similares. Muitos termos são sucessivamente usados em
circunstâncias normais sem que se tenha que especificar se nós os
usamos como nomes-tipo ou como nomes-coisas. Contudo, em
casos limites, ou em casos problemáticos especialmente
construídos por filosófos, nós parecemos confusos, porque o
termo em questão agora tende a se comportar em dois modos
diferentes, dependendo se nós o construímos como um nome de
PC ou não. Estes problemas abundam especialmente na filosofia
da mente e em estética, onde o uso ordinário de um termo não
nos dá nenhuma pista acerca de que ontologia é pressuposta pelo
uso desse termo. Por exemplo, ‘pensamento’ nomeia um PC, um
CS, ou um CT? ‘Mente’ é nome-tipo, um nome-coisa, um nomeprocesso, ou um nome-evento? Guerra e Paz é um tipo ou uma
coisa, e a Eroica é um tipo ou um processo? A linguagem
ordinária não nos dá muitas pistas, e seguidamente as pistas que
ela dá vão em diferentes direções. O filósofo, por conseguinte,
seguidamente cai em armadilhas de falsos problemas quando ele
não percebe qual é a ontologia pressuposta em uma dada
elocução e qual é a estrutura lógica precisa dessa ontologia.
Tome-se, p.ex., o problema da posição ontológica das obras de
arte. Muitos filósofos defenderam que as obras de arte não podem
ser coisas materiais, porque quando nós discutimos os méritos
estéticos ou deméritos de um certo poema, pintura, ou
composição musical, nós estamos falando sobre um tipo, que é
realizável (ao menos em princípio) em muitos exemplares
(tokens). Então, os ditos filósofos concluem que a obra de arte
deve ser um universal ou um grupo de universais. Por outro lado,
aqueles que acham esta solução muito estranha para se adotar têm
tentado defender (não menos estranhamente)
que uma
49
reprodução exata de uma obra de arte não pode (logicamente)
jamais ser feita, ou, alternativamente, que falar sobre os méritos
de uma obra de arte, p.ex., a Quinta de Beethoven, é tão somente
falar de modo não-perspícuo sobre os méritos de cada
performance da dita obra. Contudo, todas essas revisões
ontológicas forçadas tornam-se redundantes no minuto que nós
percebemos que tipos são objetos materiais perfeitamente
legítimos, e que pronunciamentos sobre suas propriedades não
necessitam ser construídos como pressupondo Platonismo ou
então reduzidos a enunciados sobre coisas.
Obviamente, o filósofo pode recusar-se a aceitar a nossa
linguagem ordinária imprecisa, que torna constante o uso de
quatro ontologias diferentes. Ele pode, antes, adotar uma
linguagem ideal, tentando usar em toda parte a ontologia que ele
mais gosta. Em princípio não há nada de errado com esta
estratégia, desde que o filósofo que a adota perceba que as frases
em Inglês que ela “analisa” na armação ontológica de sua escolha
podem também ser diferentemente construídas. Isto é, ele deve
lembrar que as resoluções que ele oferece para tais problemas
filosóficos podem ser apanhadas por (pelo menos três) outras
soluções, que, dada a inteira ontologia que elas pressupõem, pode
lidar com aqueles problemas igualmente bem.1
1
Eu quero agradecer a meu amigo Eric Walther pelos vários comentários proveitosos que ele
fez sobre uma versão anterior desse artigo.
50
51
4.
Classificação das asserções fundamentais
J. Vuillemin
Nécessité ou contingence: l’aporie de Diodore et les systèmes
philosophiques; De Minuit, 1984, pp. 275-84.
Reduzida à sua estrutura mais simples, a asserção tem por
finalidade comunicar ao outro o saber ou a experiência, naquilo
que eles têm de singular, que um sujeito falante possui. Nós nos
perguntaremos aqui sobre as formas da predicação singular,
procurando classificar as formas fundamentais desta predicação.
Uma asserção singular subsumindo um particular ou
indivíduo sob um universal, nós classificamos as formas dessa
asserção utilizando dois critérios. O critério sintático, e
subordinado, considera os tipos de signos que se usa para
construir a asserção. O critério semântico, fundamental, considera
as condições de acesso à verdade que os locutores devem dispor
para atribuir à asserção o seu valor de verdade.
As palavras ordinárias pelas quais a linguagem faz
referência ao mundo são palavras designando universais. Nós
denominaremos frase ou enunciado nominal um enunciado
singular formado unicamente destas palavras, p.ex.: “A raiz
quadrada de dois é um número irracional” ou humilitas virtus. De
tais enunciados será dito exprimir a forma da predicação pura.
Eles são compostos de um universal, no papel de função, e de um
universal, transformado em nome de indivíduo (Raiz quadrada de
52
dois, humilitas), no papel de argumento. Em latim, estas duas
palavras combinam-se sem terem de ser ligadas pela cópula “é”.
Neste enunciado não tem lugar nenhum dos elementos
constitutivos do verbo: número, tempo, pessoa, aspecto, modo.
Semanticamente, é suficiente que os interlocutores compreendam
o código ordinário da linguagem utilizada – isto é, a lista de
palavras de universais – para ter acesso às condições de verdade
da asserção. O estado de coisas que reflete tal asserção é extranho
ao espaço e ao tempo. Os indivíduos que ela classifica em os
subsumindo sob o universal não relevam do conteúdo ou do
processo da percepção. A ontologia posta em obra pela
determinação do domínio de indivíduos é aquele das idéias. É por
relação ao que ela tem de extra-sistemático e em modificando a
predicação pura pela adição progressiva de determinações novas,
particularmente verbais, que se pode falar da percepção.
Denominaremos asserção de participação toda asserção que se
afasta da predicação pura e trata do mundo sensível.
Distinguiremos duas séries de formas fundamentais de
enunciados de participação. A primeira série ou série indicativa
tem por objeto comunicar os fenômenos percebidos, sem fazer
alusão ao processo da percepção. A segunda série ou série
reflexiva recusa, ao contrário, dissociar, na comunicação, o objeto
da comunicação do ato pelo qual ele é apreendido.
A primeira forma fundamental da série indicativa é a
predicação substancial. Ela difere da predicação pura pelo fato de
que a instância do universal não é mais uma idéia, mas um
indivíduo sensível.
A sintaxe que permite exprimir as asserções de uma tal
forma deve compreender o verbo substantivo é que permite dizer
a “essência” do indivíduo e, nesse caso, de o definir,
especificando a cláusula mais geral que caracteriza a existência
sensível, estranha à predicação pura. Ela compreende igualmente,
afim de designar a instância sensível do universal, os nomes
próprios, etiquetas adequadas para as substâncias. Do ponto de
53
vista semântico, uma vez que esta substância sensível é projetada
na duração e que ela é situada no espaço, os interlocutores, que
acedem às condições de verdade da predicação substancial,
devem poder, não somente identificar o indivíduo subsumido sob
o universal, mas ainda o reidentificar, estendendo o universo do
discurso para o passado e para o futuro.
Mas, pergunta-se, poderia ser que um universal estranho ao
tempo fosse individualizado por uma substância sensível e assim
submetido às vicissitudes da localização e da temporalidade? A
questão é suscetível de duas respostas. Ou bem, embora seja ela
sensível, a substância é suposta incorruptível. Tal é o caso
presumido das estrelas e átomos. Nessa suposição, quando se diz
que “Júpiter é uma estrela”, o predicado “é uma estrela” se
encontra sempre representado por Júpiter. “Sempre” é como que
o traço deixado pela eternidade no tempo. Denominaremos
elementar este tipo de predicação substancial, porque se admite aí
para sujeito indivíduos indestrutíveis, isto é, elementares ou
desprovidos de composição. Ou bem os sujeitos-substâncias se
corrompem. Quando se diz que Sócrates é um homem, confia-se
a Sócrates o poder de representar a humanidade durante um lapso
de tempo finito. Este tipo de predicação substancial será dito
compósito.
Quando ela é elementar, a predicação substancial varia
sobre todos os indivíduos subsumidos sob o universal na classe
de equivalência. Em virtude das definições por abstração, pode-se
então eliminar todo discurso que parece tratar de uma classe de
equivalência e o substituir por um discurso onde não figuram
senão os indivíduos providos de uma relação simétrica e
transitiva de semelhança exata: assim, no lugar de dizer que duas
linhas têm a mesma direção, dir-se-á que elas são paralelas.
Reduz-se assim o universal a um papel simplesmente virtual. O
que é impossível quando a predicação substancial é compósita.
Suponhamos, com efeito, que Sócrates e M. Dupont
individualizam a humanidade há séculos de distância. Para que
54
nós possamos tratar estes indivíduos como substâncias sujeitos de
uma predicação verdadeiramente substancial é necessário que a
instanciação da humanidade seja, enquanto tal, exatamente a
mesma, nos dois casos. Por conseguinte, a humanidade como
espécie deve ser suposta imutável. Certamente ela não existe
senão encarnada nos indivíduos transitórios. Mas uma
substancialidade de segunda ordem deve ser atribuída a ela, na
ausência da qual nós faríamos sossobrar o critério mesmo que
permite identificar e reidentificar uma substância “primeira”.
A predicação substancial perderia sua função própria se nós
a separássemos de seu correlato, a predicação acidental que
constitui um terceiro tipo de asserção fundamental. A percepção
coloca o acidente na substância. A linguagem transcreve esta
inerência modificando a natureza da instanciação. O predicado
essencial individualiza inequivocamente o seu objeto. Os
predicados “é uma estrela” e “é um homem” precisamente
permitem apreender uma substância pertencente a uma espécie
determinada. Por isso Aristóteles qualifica uma tal asserção de
“sinônima” em sentido forte. M. Dupont é um homem
exatamente no sentido em que Sócrates é um. Ao contrário,
mesmo que o enunciado “Este corre” consiga identificar
corretamente um indivíduo, a identificação aí não é sem equívoco
no que concerne ao modo como o indivíduo “representa” o
universal. Pois, um cavalo, um galo, um riacho, uma nuvem, um
rumor, são todos ditos correr. Por isso Aristóteles chama
“analógica” esta predicação, que ele opõe à predicação sinônima.
Para assegurar a univocidade da comunicação, deve-se então
colocar a predicação analógica sob a dependência da predicação
sinônima. Mesmo quando utiliza-se adjetivos qualificativos que
expressam uma qualidade permanente da substância, quando se
diz de Sócrates que ele é pequeno ou grande, supõe-se que ele é
pequeno ou grande enquanto homem e não à maneira da girafa ou
do elefante. Assim, recorre-se implicitamente à predicação
substancial para suprir a indeterminação da predicação acidental.
55
A sintaxe do acidente exige alguma coisa além da sintaxe
da substância. Faz-se necessário, agora, que entrem em jogo o
número, o aspecto e os elementos temporais objetivos da
conjugação verbal (em francês: aoristo, imperfeito, mais-queperfeito e prospectivo, com exclusão do presente e dos futuros
simples e passado). A semântica do acidente faz surgir,
diferentemente da semântica da substância, as modificações de
valor de verdade. O enunciado “Sócrates é um homem” conserva
invariavelmente o seu valor; ele é sempre verdadeiro. O
enunciado “Sócrates corre” é ora verdadeiro ora falso, mas esta
modificação do valor de verdade é objetivamente fundada e
independente de toda relação ao locutor.
Como a predicação substancial, a predicação acidental se
divide, não sem inverter os papéis do elementar e do compósito.
É por agregação ou composição, com efeito, que as substâncias
elementares tornam-se as instâncias de acidentes universais. Ao
contrário, a predicação acidental que convém às substâncias
compósitas é elementar. Estas disposições explicam-se dado que a
instanciação do acidente se opõe à instanciação da essência por
seu caráter transitório e temporal. A asserção “Júpiter está oculto
pela Lua” tem uma verdade datada e esta data é completamente
estranha à existência presumida sempiterna de Júpiter como
estrela. O acidente, nesse caso, requer uma composição ou uma
agregação externa. A vida de Sócrates, ao contrário, fixa os
limites do tempo durante o qual ele é uma instância de homem.
Mas, como esta duração que lhe é dada não afeta a espécie
humana ela mesma, ela deve-se a um acidente. A individuação
característica da predicação substancial compósita deve então ao
acidente as circunstâncias nas quais ela toma lugar. Para um tal
sujeito, a acidentalidade e as predicações que lhe correspondem
são assim elementares.
A terceira e última classe fundamental da série indicativa é
a predicação circunstancial. Do ponto de vista sintático, os
enunciados desta forma não somente exploram o resto das
56
determinações verbais tais como os tempos indexados por relação
ao tempo do locutor (presente, perfeito, futuro simples e
composto), mas eles recorrem aos “particulares egocêntricos” ou
dêiticos (aqui, agora, este,...) e introduzem as pessoas próprias ao
diálogo (eu, tu). A predicação transforma a incidência percebida
de dois singulares em tipo enfraquecido de instanciação do
universal. Do universal, nós nos contentaremos de afirmar que ele
acontece a tal momento e em tal lugar. Quando se diz que choveu
em Paris em 14 de julho, nem Paris e nem 14 de Julho podem
passar por instâncias da chuva e não se confunde ser em com ser.
Em realidade, uma vez localizado por um momento e um lugar, o
universal torna-se um evento singular. Este último é que é a
verdadeira instância do universal e é uma ontologia de eventos
que a predicação circunstancial supõe. Por isso, quando se
converte esta predicação em predicação acidental, transformandose o verbo impessoal em nome e o advérbio em adjetivo, o
enunciado “Chove torrencialmente” substitui “Esta chuva é
torrencial”, na qual não é um momento ou um lugar, mas uma
instância de chuva que torna-se sujeito.
Individualizar, nesse caso, não é instanciar, mas somente
localizar o universal. A instância singular não tem, pois, que ser
nomeada e sua condição transitória a exclui do universo das
substâncias para a colocar no dos eventos. Deve-se poder
reidentificar uma mesma substância. Não se reidentifica um
mesmo evento. O evento é, como a qualidade e contrariamente à
substância, suscetível de graus diferentes de intensidade. Como as
qualidades ainda, e contrariamente às substâncias, eventos
diferentes toleram, sob certas condições, de acontecer ao mesmo
tempo e no mesmo lugar, e esta lei de superposição, que os
caracteriza, permite de os decompor em elementos mais simples,
o que exclui o tipo de unidade que requerem as substâncias
sensíveis. Mas, a localização do evento exige um marco de
referência e este não será prático senão for móvel. Em lugar de
uma convenção relativamente estável, tal como a fornecida pelo
57
nome próprio, a linguagem tem necessidade de uma convenção
ajustável que dependa da ocasião. Por isso, ela recorre aos
particulares egocêntricos. A semântica da predicação acidental
não fixa, portanto, as condições não ambíguas de acesso ao valor
de verdade, senão para os protagonistas do diálogo. A
materialidade do diálogo fixa a cada vez estas condições e
determina, por conseqüência, uma modificação específica dos
valores de verdade própria à forma destes enunciados.
Denomina-se proposição uma asserção espontânea e juízo
uma asserção refletida. Um juízo se distingue de uma proposição
pelo fato de que ele explicita a expressão, isto é, o modo de
acesso cognitivo ao estado de coisas, modo este que a proposição
faz abstração. A expressão de seu autor coloca sobre o juízo a
mesma marca egocêntrica que colocam sobre as proposições
dêiticas o marco referencial em função da enunciação. Nos dois
casos as asserções perdem a simplicidade lógica característica dos
enunciados atômicos. Deve-se referir à origem à indexação
espaço-temporal que localiza os indivíduos das proposições
dêiticas e esta indexação parece inevitavelmente se analisar em
algum quantificador sobre uma variável de tempo e de espaço.
Quanto à expressão do modo de acesso cognitivo, ela parece
depender da modificação secundária que a reflexão aporta à
proposição espontânea e, por conseqüência, de uma reduplicação
da linguagem. Estas complexidades não produzem dificuldades, a
menos que se suponha que as asserções fundamentais devam ser
logicamente e gramaticalmente elementares. Então, haveria que
se excluir as proposições dêiticas e os juízos. Mas, propõe-se aqui
classificar sistematicamente as asserções, não a partir das formas
lógicas ou gramaticais impostas pelas coerções da comunicação,
mas a partir das diferenças ontológicas que revelam o recurso a
domínios de indivíduos diferentes. Disso segue-se que se possa
conhecer proposições da forma: “Há um t tal que f(t)” quando não
há, para fundá-la, proposição da forma “f(a)”, onde “a” seria um
nome próprio do vocabulário primitivo. Além disso, faz-se
58
necessário que se possa conhecer juízos da forma “Eu tive a
experiência p”, sem que, para fundá-los, haja proposições da
forma “p”.
Os juízos de método constituem a primeira classe da série
reflexiva. Eles se opõem às proposições dogmáticas
correspondentes ao explicitar as operações das quais depende o
valor de verdade do enunciado e que fazem parte integrante do
estado de coisas. Juízos de constatação, de reflexão propriamente
dita, de construção, supõem uma ação. 1 Quando Zenão diz que o
1
Reparte-se os juízos de método em três classes fundamentais distintas, segundo o que neles se
exprime seja o estado do conhecimento que produz o estado de coisas ao passar por ele, seja o
estado do conhecimento considerado em sua relação com o estado de coisas, mas enquanto ele
se encontra refletido por ele sobre ele mesmo, seja enfim a atividade de conhecimento
enquanto constitutiva do estado de coisas mesmo. Denomina-se, respectivamente, os juízos
representativos dessas classes juízos constatativos, reflexivos (no sentido restrito da palavra) e
construtivos. Os juízos constatativos agrupam os diversos procedimentos por meio dos quais
se constata um estado de coisas, seja diretamente e ao vivo (verbos de sensação e de
percepção), seja diretamente, mas no passado ou no futuro (verbos que exprimem memória e
antecipação), seja indiretamente pela interpretação de sinais apropriados a fundamentar a
existência do estado de coisas (verbos de opinião, verbos atestando que se está informado de
um fato, que se apreendeu um evento, etc.). Os juízos reflexivos manifestam o tipo e a
intensidade da reflexão; eles exprimem a certeza, a evidência, a dúvida, etc.. Os juízos
construtivos efetuam a construção pela qual o conhecimento produz seu objeto. Trata-se de
um tipo de performativo teórico, mas de operações que se fazem em as descrevendo. Como o
performativo, o processo de construção pode ser expresso em primeira pessoa (“eu ponho
isto”, “eu delineio isto”, “eu adiciono isto e aquilo”) ou ser descrito formalmente em termos
de identidade objetiva, como quando se define uma entidade matemática por seu processo de
construção (definição “real” em oposição à “definição nominal”).
As classes que distinguimos não correspondem, termo a termo, às classes de proposições.
Cada um dos três juízos de método pode aplicar seu procedimento de conhecimento a não
importa qual indivíduo, a qualquer domínio que lhe pertença. Uma constatação refere-se a
existência de uma substância, de um evento, ou mesmo de uma idéia. Cada um deles,
entretanto, marca também uma afinidade particular com os indivíduos de um domínio
específico e assim provavelmente mostra sua origem. Um constatativo é suficiente para
informar que um evento aconteceu ou teve lugar. Ao contrário, embora uma substância não se
manifeste senão por seus acidentes que estão nela, ela não se reduz a eles. Para assegurar sua
existência mesma, faz-se necessário um estado específico de reflexão que se deve consultar.
Quanto às idéias, sua transcendência em relação a todas as imagens sensíveis coloca-as como
objeto de uma construção apropriada a revelá-las, na falta da qual se pode rejeitá-las como
simples ilusões. Portanto, uma vez que entre os eventos, as substâncias e as idéias, os juízos
de método selecionam aqueles e somente aqueles que seu procedimento precisamente permite
atingir, pode-se crer que o domínio de indivíduos que os caracteriza seja simplesmente um
subconjunto, geralmente apropriado, do domínio de indivíduos das proposições
correspondentes. Talvez justificada, esta qualificação não é suficiente. Poderia ser, com efeito,
que por enumeração ou com a ajuda de um predicado descritivo estranho à realização do
processo cognitivo, chegar-se-ia a delimitar a expressão destes subconjuntos por meio de
proposições inteiramente objetivas. Faltaria-nos, então, tudo o que distinguiria o juízo: a
59
passo de Aquiles é indefinidamente divisível, nós não temos que
compreender que os segmentos decrescentes da divisão existem
previamente aos atos de bisegmentação, e é por isso que o
filósofo dirá que um tal infinito é em potência. O valor de
verdade dos juízos de método dependem, então, não da
correspondência entre enunciado e um estado de coisas
autônomo, mas da adequação entre o enunciado e a ação, entre o
que o sujeito diz e o que ele faz. E a sintaxe dos juízos de método
exige do interlocutor, que pretende apreciar o valor de verdade
daquilo que lhe é dito, efetue por sua própria conta a operação de
construção que lhe propõe o enunciado do outro.
Uma segunda classe de juízos fecha a série reflexiva e a
lista das asserções fundamentais. Trata-se dos juízos de
aparência. Como substituto das diferentes ocorrências da palavra
é, os verbos tais quais aparecer e parecer dão lugar a novas
asserções fundamentais. Diz-se, assim, que o sol parece girar ao
redor da terra, que a tormenta parece se aproximar, que isto
parece uma árvore, que este bastão dentro da água aparece torto,
ou, para tomar um exemplo entre as idéias, que o conjunto de
todos os conjuntos que contêm a si mesmos parece um conjunto.
Estes juízos distinguem-se precisamente das proposições
correspondentes, não pelo conteúdo, isto é, por seu domínio de
indivíduos, mas pela força que convém dar às cópulas aparecer e
parecer. Tal indivíduo dá-se como uma instância do universal,
mas, uma vez que ele pode ser em realidade uma outra coisa,
retira-se a força de assentimento, modificando-se o engajamento
ontológico que a proposição entreteria em relação ao domínio de
indivíduos. Esta interpretação, que segue fielmente as sugestões
da linguagem, resta muda sobre uma putativa relação à um
ordem das razões que ele produz, específica da análise e sem contrapartida no ser da coisa, a
referência aos atos de um je pense, responsável pelo método. Seguramente, da verdade de um
tal juízo, se está fundamentado para concluir pela verdade de uma certa proposição que se lhe
faz corresponder. Esta implicação não elimina, contudo, a irredutibilidade do juízo, em
benefício da proposição. Os domínios de indivíduos que se devem colocar não são, pois,
partes dos domínios de eventos, de substâncias e de idéias. Eles são domínios de
conhecimentos, atos, reflexões, sínteses produtoras, de um Eu cuja atividade liga-se à
passividade do “sujeito” das representações.
60
objeto, relação duvidosa, dir-se-ia, pois a aparência é tão
comunicável e pública quanto o ser.
Porém, façamos uma violência às formas. Traduzimos o
juízo em termos de proposição. Retiremos então da cópula de
aparência o que ela tem de específico. Esta especificidade reflui
agora sobre o domínio de indivíduos e faz-se necessário examinar
o que distingue este último do domínio que lhe corresponde na
proposição. A distinção salta aos olhos. Com efeito, é uma e a
mesma coisa dizer que o domínio dos indivíduos resta invariável
e varia a crença na realidade, ou dizer que a crença na realidade
do domínio de indivíduos permanece invariável e substitui-se
estes indivíduos pela sua representação para um observador. Uma
vez que se pergunta qual é o domínio de indivíduos atribuído,
quando se passa do juízo “o sol parece girar ao redor da terra” à
proposição correspondente, a noção de observador se impõe. A
aparência define, com efeito, a representação do observador
terrestre. Vê-se assim que a intervenção do sujeito não impede de
nenhum modo a comunicação e a publicidade do juízo.
O valor de verdade dos juízos de aparência depende então
de um sujeito, como dependem os dos juízos de método. Mas,
não se trata mais, agora, de efetuar uma ação apropriada para
instaurar o acesso ao estado de coisas ou o estado de coisas
mesmo. A aparência assegura automaticamente a adequação. Ou,
mais, ela faz economia. Uma ação produzida não seria senão um
estado dado do sujeito, e este estado é ou não apropriado à
atualização do verdadeiro. Uma representação passiva é tudo o
que ela é. Quando ela firma o assentimento, a aparência não se
engana. Quanto aquele que escuta e deve apreciar um tal
enunciado de aparência, ele sabe que um tal enunciado é
verdadeiro se e somente se o seu interlocutor é sincero em seu
dizer, sem ter que por isso compartilhar a crença que este
interlocutor lhe comunica.
61
5.
O modo como é o mundo
Nelson Goodman
Traduzido do original “The way the world is” por Celso R. Braida
e Noeli Ramme. GOODMAN, Nelson, 1972. Problems and
Projects, Indianápolis and New York, USA: The Bobbs-Merrill
Company.
1. Introdução
Filósofos algumas vezes confundem as características do
discurso com as características do conteúdo do discurso. Nós
dificilmente concluiríamos que o mundo consiste de palavras
apenas porque com elas fazemos as descrições verdadeiras, mas,
às vezes, supomos que a estrutura do mundo é igual à estrutura da
descrição. Esta tendência pode chegar
ao ponto do
línguomorfismo, quando concebemos o mundo como composto
de objetos atômicos correspondendo a nomes próprios
determinados e fatos atômicos correspondendo a sentenças
atômicas. Uma reductio ad absurdum emerge quando um filósofo
ocasional mantém que uma descrição simples pode ser adequada
somente se o mundo é simples; ou afirma (e eu tenho ouvido isto
ser dito com toda seriedade) que uma descrição coerente seria
uma distorção a menos que o mundo fosse coerente. De acordo
com essa linha de pensamento, suponho que antes de descrever o
62
mundo em inglês deveríamos decidir se ele está escrito em inglês,
e deveríamos examinar muito cuidadosamente como ele é
soletrado.
Obviamente, o idioma, a pronúncia, a tipografia e a
verbosidade de uma descrição não refletem nenhuma
característica paralela no mundo. Coerência é uma característica
das descrições, não do mundo: a questão importante não é se o
mundo é coerente, mas se a nossa explicação dele o é. E o que
chamamos de simplicidade do mundo é apenas a simplicidade
que somos capazes de alcançar ao descrevê-lo.
Mas confusão do tipo que estou falando é relativamente
transparente no nível de sentenças isoladas, e portanto
relativamente menos perigosa que o erro de supor que a estrutura
de uma descrição sistemática verídica espelha rigorosamente a
estrutura do mundo. Uma vez que um sistema tenha termos ou
elementos básicos ou primitivos e uma hierarquia gradual
construída a partir deles, facilmente chegamos a supor que o
mundo deve consistir de elementos atômicos correspondentes
colocados juntos de modo similar. Nenhuma teoria defendida em
anos recentes por filósofos de primeiro time parece mais
obviamente errada do que a teoria pictórica da linguagem. Apesar
disso, ainda encontramos filósofos perspicazes recorrendo sob
pressão à uma noção de qualidades ou partículas absolutamente
simples. E muitos daqueles que evitam pensar o mundo como
divisível de modo único em elementos absolutos ainda supõem
comumente que significados resolvem isto de modo único, e
assim aceitam o absolutismo escondido envolvido na manutenção
da distinção entre proposições analíticas e sintéticas.
Contudo, neste artigo, não estou preocupado com nenhum
destes problemas mais específicos que somente mencionei acima,
mas com uma questão mais geral. Tenho enfatizado os perigos de
confundir certas características do discurso com as características
do mundo. Este é um tema recorrente para mim, mas não é
mesmo meu principal interesse aqui. O que eu quero discutir é
63
um sentimento desconfortável que me aparece sempre que advirto
contra a confusão em questão. Posso ouvir o anti-intelectualista, o
místico- meu arquiinimigo- dizendo algo como isto: "Sim, isso é
exatamente o que eu venho lhe dizendo sempre. Todas as nossas
descrições são pobres paródias. Ciência, linguagem, filosofia,
percepção- nenhuma dessas jamais pode revelar fielmente o
mundo como ele é. Todas fazem abstrações ou
convencionalizações de um tipo ou de outro, todas filtram o
mundo através da mente, através dos conceitos, através dos
sentidos, através da linguagem; e todos estes meios de filtragem
de algum modo distorcem o mundo. Não é apenas que cada um
fornece uma verdade parcial, mas que cada um introduz uma
distorção própria. Nunca alcançamos mesmo em parte um retrato
realmente fiel do modo como o mundo é.”
Aqui fala o bergsoniano, o obscurantista, aparente repetindo
minhas próprias palavras e perguntando, com efeito, “Qual é a
diferença entre nós? Não podemos ser amigos?” Antes de desejar
admitir que a filosofia deve fazer alianças tão estranhas, devo
fazer um esforço para formular nossas diferenças. Mas começarei
discutindo algumas questões preliminares relacionadas a este
problema.
2. O Modo Como o Mundo é Dado
Talvez possamos lançar alguma luz sobre o modo como o
mundo é dado examinando o modo como ele nos é dado na
experiência. A questão do dado tem um som ligeiramente rançoso
nestes dias. Mesmo filósofos mais austeros tornaram-se um
pouco auto-conscientes acerca da futilidade de seus debates sobre
o dado e tiveram a graça de refrasear o tema em termos de
“elementos base” ou “sentenças protocolares”. Mas, de um modo
ou de outro, seguimos um bom conselho dedicando-nos aos
elementos originais, básicos e simples, a partir dos quais todo
conhecimento é construído. Conhecer é tacitamente concebido
64
como um processamento de material bruto em um produto
acabado; e uma compreensão do conhecimento supõe requerer
que nós descubramos o que é esse material bruto.
À primeira vista, isto parece muito fácil. Carnap desejava
que os elementos básicos do seu sistema no Aufbau chegassem o
mais próximo possível daquilo que é epistemologicamente
primário. Para chegar a isto, diz ele, devemos retirar da
experiência ordinária tudo que resulta de alguma análise a qual
tenhamos submetido o que recebemos inicialmente. Isto significa
eliminar todas as divisões entre limites espaciais ou qualitativos,
de tal modo que nossos elementos sejam grandes pedaços, cada
um contendo tudo da nossa experiência em determinado
momento. Mas, dizer isto é fazer divisões temporais artificiais; e
o dado real, Carnap infere, não consiste desses grandes pedaços,
mas de um único fluxo.
Porém, este modo de abordar o dado assume que os
processos de conhecimento são todos processos de análise.
Outros filósofos supõem, ao contrário, que os processos são todos
processos de síntese, e que o dado consiste então de partículas
mínimas que tem que ser combinadas umas com as outras no
conhecimento. Ainda, outros pensadores mantém que ambas estas
vias são muito extremas, e que o mundo é dado em peças mais
familiares de tamanho médio, às quais tanto a análise quanto a
síntese são aplicadas. Assim, com vistas à metafísica do dado,
encontramos duplicado o monismo, o dualismo e o pluralismo
intermediário. Mas, qual visão do dado é a correta?
Olhemos mais de perto a questão. Os vários pontos de
vista não diferem sobre o que é contido no dado, ou sobre o que é
encontrado ali. Uma certa apresentação visual, todos concordam,
contém certas cores, lugares, desenhos, etc.; ela contém ao menos
as partículas perceptíveis e é um todo. A questão não é se o dado
é um só pedaço indiferenciado ou contém muitas partes
pequenas; ele é um todo composto de tais partes. O problema não
é o quê é dado, mas como ele é dado. Ele é dado como um único
65
todo ou ele é dado como muitas pequenas partículas? Isto captura
o problema preciso – e ao mesmo tempo revela sua vacuidade.
Pois eu penso que nenhum sentido pode ser dado à frase “dado
como”. Que uma experiência seja dada em várias partes
certamente não significa que estas partes sejam apresentadas
separadamente; nem pode significar que estas partes são
separadas uma das outras por linhas perceptíveis de demarcação.
Pois, se tais linhas de demarcação estão lá, elas estão dentro do
dado, para qualquer visão do dado. O mais próximo que nós
podemos chegar para dar um sentido à questão de que mundo é
dado como seria dizer que isto resolve-se na questão de se o
material em questão é apreendido com um tipo de sentimento de
completude ou um sentimento de fragmentação. Chegar próximo
a encontrar um significado para dado como não é chegar
suficientemente próximo para fazer um juízo.
Assim, receio que não obtemos nenhuma luz sobre o modo
como o mundo é perguntando pelo modo como ele é dado. Pois a
questão sobre o modo como ele é dado evapora-se no ar.
3. O Modo como o Mundo é para Ser Visto
Talvez possamos avançar perguntando como o mundo é
melhor visto. Se podemos, com alguma confiança, graduar modos
de ver ou retratar o mundo de acordo com seus graus de realismo,
de ausência de distorção, de fidelidade em representar o modo
como o mundo é, então, seguramente podemos, fazendo uma
inversão destes, aprender alguma coisa sobre o modo como o
mundo é.
Precisamos considerar as nossas idéias sobre figuras apenas
por um momento para reconhecer isto como uma abordagem
encorajadora. Pois avaliamos figuras muito facilmente de acordo
com seu grau aproximado de realismo. A figura mais realista é
aquela mais semelhante à uma fotografia colorida; e figuras
66
tornam-se progressivamente menos realistas, e mais
convencionalizadas ou abstratas, na medida em que se afastam
daquele padrão. O modo como vemos melhor o mundo, o acesso
figurativo mais próximo ao modo como o mundo é, é modo como
a câmera o vê. Esta versão do problema é simples, direta, e aceita
geralmente. Mas, em filosofia, como em qualquer outro lugar,
toda linha prateada envolve uma grande nuvem negra - e esta
visão descrita tem tudo a seu favor, exceto que ela é, eu penso,
inteiramente errada.
Se tomo uma fotografia de um homem com seus pés na
minha direção, os pés poderão parecer tão grandes como seu
torso. Este é o modo como normalmente ou apropriadamente vejo
o homem? Se é, porque então chamamos tal foto de distorcida?
Se não, então não posso mais alegar tomar a visão fotográfica do
mundo como meu padrão de fidelidade.
O fato é que esta fotografia 'distorcida' chama nossa atenção
para algo sobre ver que tínhamos ignorado. Exatamente na
medida em que ela difere de uma representação 'realística'
ordinária, ela revela novos fatos e possibilidades na experiência
visual. Porém, a fotografia 'distorcida' é um exemplo muito trivial
de algo muito mais geral e importante. A 'distorção' da fotografia
é comparável com a distorção dos novos ou não-familiares estilos
de pintura. Qual é o retrato mais fiel de um homem- um feito por
Holbein ou por Manet ou um de Sharaku ou de Dürer ou de
Cézanne ou de um feito por Picasso? Cada diferente modo de
pintar representa um modo de ver; cada um faz suas seleções,
suas ênfases; cada um usa seu próprio vocabulário de
convencionalização. E precisamos apenas olhar a fundo nas
pinturas de tais artistas para ver o mundo também do mesmo
modo. Pois ver é uma atividade e modo como a executamos
depende em grande parte do nosso treinamento. Eu lembro J. B.
Neumann dizendo que quando ele viu pela primeira vez faces de
uma audiência cinematográfica no brilho refletido na tela ele
primeira vez compreendeu como um escultor africano via faces.
67
O que percebemos como as figuras mais realistas são meras
figuras do tipo pelas quais a maioria de nós foi, infelizmente,
educada. Um africano ou um japonês iria certamente fazer uma
escolha diferente quando solicitado a selecionar figuras que mais
proximamente reproduzem o que ele vê. Nossa resistência para
novos ou exóticos modos de pintura deriva da nossa normal
resistência letárgica ao retreinamento; e, por outro lado, há a
excitação na aquisição de novas capacidades. Assim, a descoberta
da arte africana mexeu com os pintores franceses e eles
aprenderam novos modos de ver e pintar. O que é menos
admitido é que a descoberta da arte européia é excitante para o
escultor africano pelas mesmas razões; ela mostra para ele um
novo modo de ver, e ele, também, modifica seu trabalho
respectivamente. Infelizmente, enquanto a absorção européia do
estilo africano geralmente resulta em um avanço artístico, a
adoção africana do estilo europeu em geral sempre leva à
deterioração artística. Mas isso é por razões acidentais. A primeira
é que a deterioração social dos africanos é geralmente simultânea
com a introdução da arte européia. A segunda razão é ainda mais
intrigante: que enquanto o artista francês foi influenciado pelo
melhor da arte africana, o africano foi sem dúvida alimentado
com arte de calendário de modelos. Tivesse ele visto escultura
grega ou medieval ao invés disso, o resultado poderia ter sido
radicalmente diferente. Mas eu estou fazendo digressões.
O resultado de tudo isso é que nós não podemos chegar a
alguma coisa sobre o modo como o mundo é perguntando sobre o
melhor ou mais fiel, ou mais realístico modo de vê-lo ou
representá-lo. Pois os modos de ver e figurar são muitos e
variados; alguns são fortes, efetivos, úteis, intrigantes ou
sensíveis; outros são fracos, cômicos, desanimados, banais ou
confusos. Porém, mesmo se todos os últimos fossem excluídos,
ainda assim nenhum dos outros pode fazer uma boa defesa de ser
o modo de ver ou pintar o mundo do modo como o mundo é.
68
4. O Modo como o Mundo deve ser Descrito
Chegamos agora à uma versão mais familiar da questão
acerca do modo como o mundo é. Como o mundo deve ser
descrito? Aquilo que nós chamamos uma versão verdadeira
representa fielmente o mundo?
A maioria de nós tem tinindo nos ouvidos a afirmação de
Tarski que "está chovendo" é verdadeira se e somente se está
chovendo, bem como sua observação (que eu penso ser errônea,
mas que está fora do ponto aqui) que a aceitação dessa fórmula
implica na aceitação de uma teoria da verdade como
correspondência. Este modo de por a questão encoraja uma
tendência natural de pensar a verdade em termos de espelhar ou
reproduzir fielmente; e nós temos um ligeiro choque quando nos
acontece perceber o fato óbvio que a sentença "está chovendo" é
tão diferente quanto possível da tempestade. Esta disparidade é a
mesma tanto para uma descrição falsa quanto para uma descrição
verdadeira. Felizmente, assim nós não precisamos aqui nos
preocuparmos com o difícil problema técnico da natureza da
verdade; nós podemos restringir nossa atenção às descrições tidas
como verdadeiras. O que devemos encarar é o fato de que mesmo
as descrições mais verdadeiras não chegam perto de reproduzir
fielmente o modo como o mundo é.
Uma descrição sistemática do mundo, como eu salientei
antes é mais vulnerável a esta pressão; pois ela tem primitivos
explícitos, rotas de construção, etc., nenhuma destas
características pertencem ao mundo descrito. Alguns filósofos
objetam, contudo, que se descrições sistemáticas introduzem uma
ordem arbitrariamente artificial, então nós deveríamos fazer
nossas descrições de um modo assistemático para torná-las mais
conformes ao mundo. Agora, a assunção tácita aqui é que os
quesitos nos quais uma descrição é insatisfatória são justamente
aqueles em relação aos quais ela falha em ser uma figuração
fiel; e o objetivo tácito é alcançar uma descrição que tanto quanto
69
é possível nos dá uma semelhança viva. Mas o objetivo é ilusório.
Por que nós temos visto que o modo mais realista de representar
acaba num mero tipo de convencionalização. Em pintura, as
seleções, as ênfases, as convenções são diferentes mas não menos
peculiares ao veículo, e não menos variáveis, que aquelas da
linguagem. A idéia de fazer descrições verbais se aproximarem de
pinturas figurativas perde seu ponto quando entendemos que
tornar uma descrição uma figuração o mais fiel possível
conduziria a nada mais do que trocar umas convenções por
outras.
Portanto, nem o modo como o mundo é dado, nem nenhum
modo de ver ou figurar ou descrever nos conduz ao modo como o
mundo é.
5. O Modo como o Mundo é
Agora chegamos à questão: qual, então, é o modo como o
mundo é? Estou eu ameaçado com a amizade dos meus inimigos?
Parece que sim, pois eu justamente cheguei à conclusão do
místico de que não existe representação do modo como o mundo
é. Mas, se na superfície nosso acordo parece ter sido reforçado,
uma segunda mirada mostrará como ele foi solapado pelo que nós
estivemos dizendo.
A acusação de que uma dada descrição verdadeira distorce
ou é infiel ao mundo tem importância em termos de alguma
gradação de acordo com fidelidade, ou em termos de uma
diferença em graus de fidelidade entre descrições verdadeiras e
boas pinturas. Mas se nós dizemos que todas as descrições
verdadeiras e boas pinturas são igualmente infiéis, então de que
exemplo ou padrão de fidelidade relativa nós estamos falando?
Nós não temos mais diante de nós nenhuma noção clara do que a
fidelidade deveria ser. Assim eu rejeito a idéia de que existe
algum teste de realismo ou fidelidade juntamente com testes de
70
boa pintura e verdade descritiva. Há muitas descrições
verdadeiras igualmente diferentes e verdadeiras do mundo, e sua
verdade é o único padrão de sua fidelidade. E quando nós
dizemos delas que todas elas envolvem convencionalizações, nós
estamos dizendo que nenhuma destas descrições diferentes é
exclusivamente verdadeira, pois as outras também são
verdadeiras. Nenhuma delas nos diz o modo como o mundo é,
mas cada uma delas nos diz um modo como o mundo é.
Se eu fosse perguntado qual é o alimento para o homem.
Eu deveria responder "nenhum". Pois existem muitos alimentos.
E se me perguntarem qual é o modo como o mundo é, eu devo
igualmente responder "nenhum". Pois o mundo é de vários
modos. O místico mantém que há algum modo como o mundo é e
que este modo não é capturado por nenhuma descrição. Para mim
não existe nenhum modo que seja o modo como o mundo é; e
assim obviamente nenhuma descrição o pode capturar. Mas, há
muitos modos como o mundo é, e toda descrição verdadeira
captura um deles. A diferença entre o meu amigo e eu é, em
suma, a enorme diferença entre o absolutismo e o relativismo.
Desde que o místico está preocupado com o modo como o
mundo é e ele que o modo não pode ser expresso, sua última
resposta à questão sobre o modo como o mundo é deve ser, como
ele reconhece, o silêncio. Como eu estou mais preocupado com
os modos como o mundo é, minha resposta deve ser construir
uma ou mais descrições. A resposta à questão "Qual é o modo
como o mundo é? Quais são os modos como o mundo é?" não é o
emudecimento, mas uma tagarelice.
6. Pós-escrito
No começo deste artigo, falei da falsidade óbvia da teoria
pictórica da linguagem. Eu declarei muito presumidamente que
uma descrição não figura o que ela descreve, ou mesmo
71
representa a estrutura do que ela descreve. A objeção devastadora
contra a teoria pictórica da linguagem era que uma descrição não
pode representar ou espelhar realmente o modo como o mundo é.
Porém, ainda observamos que uma pintura também não faz isso.
Comecei abandonando uma teoria pictórica da linguagem e
acabei adotando uma teoria lingüística das pinturas. Eu rejeitei a
teoria pictórica da linguagem pela razão de que a estrutura de
uma descrição não se conforma à estrutura do mundo. Mas então
eu concluí que não existe tal coisa como a estrutura do mundo
com relação a qual algo poderia ou não estar conforme. Você
pode dizer que a teoria pictórica da linguagem é tão falsa e tão
verdadeira quanto a teoria pictórica da pintura; ou em outras
palavras, que o que é falso não é a teoria pictórica da linguagem
mas uma certa noção absolutista com relação à pintura e à
linguagem. Talvez eventualmente eu possa aprender que o que
parece mais obviamente falso algumas vezes não o é.
72
73
6.
Filosofia e o conflito entre tendências de
vida
Dieter Henrich
“Philosophy and the conflict between tendências de vida” in: D.
Henrich, Konzepte; Frankfut A. M., Suhrkamp, 1987.
Introdução
A seguinte sequência de teses procura esboçar uma
concepção para a compreensão da origem do ideal de harmonia
na vida humana e a natureza da dificuldade que emerge
inevitavelmente com ela. Ela concentra-se sobre a estrutura da
“vida consciente”, a vida do indivídio, e sobre a dinâmica que
surge de aspectos de sua constituição básica. Apenas no final
emergirão visões sobre a vida social e sua história. Referências
serão feitas do início ao fim aos problemas e teoremas de
filósofos modernos que se preocuparam com a compreensão das
fundações conceituais necessárias para compreender processos de
desenvolvimento.
74
1. Concepções de unidade como harmonia
Nós temos que distinguir pelo menos três diferentes noções
de unidade que podem ser usadas na definição do conceito de
harmonia.
A. Unidade como compreensividade
“Aspectos” ou “momentos” parciais têm que ser mantidos e
concebidos dentro de uma forma unitária de coordenação e
interação tal como ordem social ou o sistema de necessidades e o
exercício de talentos. Tal unidade se estabiliza para seus
componentes por meio de moderação e modificação. Unidade
deste tipo varia em graus dependendo da extensão das
modificações mútuas de seus componentes. Nesse sentido,
unidade do tipo A são capazes de dar origem a graus de
harmonia. O processo de aumento da unidade, contudo, é
essencialmente um processo que os componentes como tais
sofrem. A unidade mesma não é afetada por um dinamismo.
Antes, ela permanece um ideal estático – seu paradigma é a
natureza como um “sistema cósmico”.
B. Unidade como complexidade
De acordo com esta segunda noção, unidade é ela mesma
essencialmente também um ideal com respeito a multiplicação e
expansão de seus componentes. Quanto mais componentes uma
forma unitária permite e mais independente, surgimento
imodificado desses componentes ela permite, tanto mais a
unidade é realizada em seu interior e em virtude dela. Harmonia,
então, torna-se livre interação. Seus graus são indicados pelo grau
de complexidade não-antagônica. Mas, nesse caso a noção de
unidade mesma é associada com a noção de mudança dinâmica:
as formas unitárias enquanto tais diferem pela medida da
modificação do número, tipo e graus de independência dos
componentes. O seu paradigma é obra de arte (clássica).
75
C. Unidade como a resolução final de conflito
Esta unidade é essencialmente um resultado. Ela é defindia
com respeito a elementos que podem ser modificados ou
integrados nem em um sentido direto nem no mesmo nível em
que eles se originaram e desebrocharam. Se eles fossem se
modificar mutuamente um ao outro ou procurassem um equilíbrio
através de interação, eles se destruíriam um ao outro. Então, eles
têm que desenvolver antagonisticamente até um ponto onde ou
eles transformam a si mesmos em uma forma diferente que lhes
permite ser compatíveis ou eles revelam sua dependÊncia sobre
uma unidade subjacente que é operante dentro deles. Esta unidade
pode também se tornar realizada ou manifesta ou através da
explicitação do conflito mesmo ou então junto com a explicitação
do conflito. Unidade neste sentido é uma correlação de opostos
no primeiro nível e reconciliação no final ou no segundo nível. O
seu paradigma é o insight (histórica e filosófica).
2. Vida consciente e unidade como reconciliação
Um tratamento completo da estrutura da vida consciente
requer o emprego da noão de unidade do tipo C. Definir e
determinar sua condição e sua origem é uma das preocupações da
filosofia. Nossa vida é tal que tendências conflituosas (princípios
ativos) de conduta e orientação emergem dela e ganham força
persuasiva igualmente justificadas. Analisar a vida emt ermos
destes conflitos foi uma possibilidade descoberta pela filosofia
pós-kantiana. Ela mostrou também que cada uma dessas
tendências tende a gerar uma descrição do mundo humano em
que uma vida que é dominada e orientada por uma tendência
particular pode ser concebida como estando em casa e em paz
dentro dele. Estas descrições ou visões de mundo estão, portanto,
engajadas no mesmo conflito e excluem uma às outras tão
completamente como as tendências elas mesmas.
Uma primeira análise da vida consciente empregando este
arcabouço é a distinção do filósofo-poeta Holderlin entre (1) o
76
esforço pela infinita auto-perfeição, (2) a dedicação da vida à
aparência da beleza e (3) a vida vivida a partir da ciência da base
comum de todo ser.
Tendências como estas não redutíveis uma as outras. Elas
são igualmente primordiais e intrinsecamente estabilizadas em
virtude de uma visão de mundo metafísica. Elas podem ser
reconciliadas apenas através de uma intuição (insight) de segundo
nível em sua origem, a inevitabilidade de seu conflito e a
probabilidade de que irá encontrar qualquer vida que tentar
permanecer cegamente fiel à orientação de uma das tendências
uma vez que ela seja adotada. A imagem do mundo que
eventualmente torna-se estável através dessa intuição é
essencialmente um resultado – ele é uma “recoleção” da história
da vida consciente através do curso de suas tendências e, logo,
uma intuição na natureza, fonte e significância de processos
antogônicos.
3. A origem do conflito na auto-descrição
Pode-se compreender a multiplicidade de tendências bem
como porque o conflito entre elas não pode ser resolvido no
mesmo nível em que eles se originam por meio de uma análise
elementar da constituição da própria vida consciente. Pois, nós
temos que conceber nós mesmos (o referente de um pronome da
primeira pessoa) em um duplo modo: nós somos (1) entidades no
interior de um mundo e entre outros do mesmo tipo (pessoas) e
(2) pontos de vistas e âncoras de referência em relação a todas as
coisas e qualquer mundo (sujeitos). É impossível reduzir uma
dessas facetas a outra. Ambas, antes, pressupõem a sua oposta,
embora elas também tendam a subsumi-la sob sua respectiva
dominância. Desde o início de nossa vida consciente nós somos
torturados entre auto-descrições conflituosas que estão associadas
com estes aspectos primários de eudade.
Dentro desse conflito outros conflitos ganham forma. Um
77
deles é o antagonismo entre estados definidos de nossa vida no
mundo. Se nós experienciamos um mundo particular de um modo
que permite uma afirmação derradeira e definitiva do curso de
nossa vida, nós podemos conceber tal estado como felicidade.
Mas, nós nunca sabemos com segurança em que consiste a
felicidade e nós podemos sempre suspeitar que todo mundo
imaginável é basicamente incompatível com a constituição de
nossa vida. Nessa perspectiva, qualquer estado definitivo de
nossa vida poderia ser somente uma negação definitiva dela da
parte da constituição do mundo. Boa sorte é, então, nada senão
uma feliz fuga de nossa condição genuína, e o nihilismo, embora
possivelmente apenas latente, a única resposta experiencial
apropriada para o que nós de outro modo poderíamos tomar por
um destino significativo.
Ainda outro conflito emerge no contexto de normas. Vidas
conscientes devem ser levadas e, assim, são essencialmente
sujeitas à normas. Mas, uma norma não pode ser experienciada
como válida exceto sob a luz do que pode ser chamado
“condições-de-aceitação”. E estas, por sua vez, novamente
consistem parcialmente em auto-descrições do agente.
Dependendo ou da prevalência de noções da pessoa ou do sujeito
ou de várias tentativas de integração desses dois aspectos, normas
conflituosas – tal como prudência, irmandade ou direitos
universais – tornam-se centrais. Se claridade sobre suas condições
e alcance deve ser mais do que simplesmente sobre fatos
psicológicos e históricos, uma imagem compreensiva de ambas a
constituição e a fonte da vida consciente tem que ser alcançada.
Ela novamente deve ser baseada sobre uma noção de unidade do
tipo C.
4. A rejeição do fundacionalismo e o desenvolvimentismo
Embora dificilmente mais do que um esboço mínimo e
esquemático, o tratamento precedente da origem do conflito na
78
vida consciente tem implicações filosóficas. O seu método é o da
análise transcendental. Mas, o resultado da análise descobre uma
constituição que é essencialmente insuficiente para acomodar e
reconciliar as tendências da vida consciente que se originam dela.
Além disso, nós não podemos pensar estas tendências como tendo
a capacidade de se reconciliarem automaticamente por seu
desenvolvimento intrínseco.
Consequentemente, nós necessitamos partir de concepções
mais poderosas da filosofia contemporânea – da confiança de
Heidegger e de Wittgenstein na firmeza e compreensividade da
dimensão primária do nossa compreensão bem como da crença de
Hegel e Marx na ultimacy de um processo linear da origem à
reconciliação que caracteriza realidade e experiência.
Estas duas concepções, embora opostas sob um aspecto,
ainda compartilham a característica da uni-dimensionalidade: o
fundacionalismo concebe conflito e irritação em termo de um
abandono (possivelmente inevitável) de uma origem autocontida, seja ela concebida como o evento de abertura de um
mundo à luz de uma experiência do “ser” (Heidegger) ou como o
funcionamento de linguagens no interior de instituições da vida
cotidiana (Wittgenstein). A harmonia está na origem,
reconciliação é retorno.
O desenvolvimentismo concebe o conflito como
essencialmente transitório. Ele dissolve-se na medida em que o
processo avança através dos conflitos. A harmonia emerge no
final; reconciliação é chegada ao objetivo.
Mas, contrário a estas doutrinas, a estrutura fundamental da
vida é tal que ela dá origem à tendências que são irrenconciliáveis
no nível em que eles são operantes. E não há razão para se
assumir que estas tendências irão se fundir através de sua lógica
desenvolvimental intrínseca. Consequentemente, uma concepção
que permanece capaz de envisaging e justificar uma perspectiva
de unidade harmônica deve se fiar na coordenação e cooperação
de pelo menos dois princípios que são ambos princípios79
unidades, mas diferem em condição e função. A harmonia resulta
com a intuição da origem; a reconciliação é então uma conclusão,
o resultado de uma reflexão consciente sobre o conflito e sua
origem.
5. A situação da Metafísica
A origem é unitária e a emergência de várias tendências de
vida não é acidental e, a despeito de seu conflito, tem uma ordem
interna. Isto explana o fato de que o propecto por harmonia e
reconciliação emerge nas raízes da vida consciente. Mas, para
estabelecer uma harmonia que nem seja forçada nem ilusória é
diferente. Isto requer pelo menos que a origem possa ser
compreendida de um modo que não está disponível dentro das
dismensões de usa análise primária (a transcendental). Portanto, o
processo enquanto tal, que emerge da constituição da vida
consciente, direciona-se e extrapola ele mesmo em cada estágio
de seu desenvolvimento para uma compreensão invertida de si e,
logo, também da natureza e da significância de sua origem.
Deixe-me dizer algumas palavras sobre o que é significado com
“compreensão invertida”.
Uma tal compreensão é organizada, antes de tudo, em torno
de um princípio-unidade que não coincide com a unidade
intrínsecamente múltipla da proópria vida consciente, embora ele
deva ser capaz de compreendê-la. Nós podemos plausivelmente
assumir que a vidad consciente concebe uma tal unidade e,
portanto, uma resposta última para si tão logo ela emerja.
Nós temos que tratar, em segundo lugar, dos recursos
conceituais que estão disponíveis na vida consciente para
apreender e desenvolver a noção de tal unidade. A unidade
pessoal/subjetiva está entrelaçada /interwoven com esquemas
conceituais que são essencialmente aristotélicos – com mundos
de substância, eventos e tipos de relações em que eles existem e
ocorrem. Mundos como esses são mundos que a pessoa/subjeito
80
concebe, mas não mundos cujas noções podem compreender e
dar conta da pessoa/sujeito e das tendências de sua vida. Porém,
nenhuma ontologia supramundana é acessível por meio de algum
tipo de intuição intelectual. A vida consciente é orientada para um
princípio de unidade em função de seu indispensável /prospecto
de reconcialição. Mas, este princípio de unidade tem que se tornar
operatório através de um processo de reestruturação das
ontologias daqueles mundos com os quais a vida consciente está
entrelaçada nos vários estágios de seu desenvolvimento. A
metafísica é, pois, onipresente na vida, mas também por sua
própria natureza revisionária.
A natureza revisionária (ou “espectulativa”) da metafísica é,
contrariamente a opinião comum, um pré-requisito para ela ser
adotada e realmente tida como verdade num estágio da vida
consciente.
Terceiro, a metafísica revisionária é interpretação da vida
consciente da parte da vida consciente. De modo algum ela é a
descoberta de um reino supramundano que nós poderíamos
conceber como o domínio em que nós temos que nos transformar.
O que provoca modificações é o nossa compreensão de nós
mesmos e de nossa condição. Pois, o mundo real em que nós
vivemos aparece em uma nova luz uma vez que ele é submetido a
uma nova descrição. Em virtude dessa nova descrição a
constituição da vida consciente e seu curso torna-se
/encompassado no interior de uma concepção unitária do que há
que é tornada possível por meio de uma ontologia reestruturada.
Com este passo torna-se compreensível em que sentido a
metafísica funciona como uma compreensão “invertida” da vida
consciente. Tal metafísica desdobra-se em quatro estágios: (1)
análise da constituição da vida consciente em correlação com o
mundo “natural”, (2) a projeção de um princípio de unidade que é
apropriado para acomodar cursos de vida consciente e mundos
simultaneamente, (3) uma reestruturação de ontologias naturais e
depois uma interpretação atual da vida consciente em seus
81
mundos, (4) adoção do princípio de unidade do estágio (2) como
a origem real do inteiro progresso de interpretação invertida e,
então, como o ideal que dá à vida consciente a sua orientação.
Esta noção de estrutura metafísica é, seguramente, básica e
geral. Ela evita atribuir conteúdos específicos para o princípio de
unidade e não especifica os detalhes de nenhuma possível
ontologia revisionária capaz de acomodar a vida consciente.
Porém, ela não é sem conteúdo signicativo. Pois, ela captura a
motivação por detrás da metafísica genuína e a dinâmica através
da qual ela evolui e ganha força. E esta motivação é racional uma
vez que uma metafísica é uma reação à incompreensibilidade de
nossa condição em todo primeiro nível de interpretação. Além
disso, a dinâmica de seu desenvolvimento é também racional, até
e incluindo a eventual incorporação de seus resultados na vida
consciente. Logo, a metafísica surge e se completa na própria
vida consciente. Por esta razão, ela não pode facilmente ser
rejeitada como uma forma de sublimação ou ideologia (o
materialismo sério é também uma metafísica no sentido acima
delineado). Mas, a sua origem, desenvolvimento e culminação faz
e mantém-na como um componente indispensável em qualquer
análise profunda da vida consciente enquanto tal. A seguidamente
presumida incompatibilidade entre o que tem sido chamada
“análise existencial”, de um lado, e o pensamento racional e
metafísico, por outro, desaparece.
6. Em que consiste a harmonia
Nós podemos agora enunciar com mais detalhe o que está
envolvido na harmonia para uma vida cuja real natureza dá
origem a conflitos entre tendências divergentes de orientação e
conduta que estão a princípio igualmente justificadas. Tornou-se
claro porque o princípio de unidade que é requerido para
conceitualizar um panorama do conflito entre tendências de vida
tem que ser do tipo C. Nenhuma chegada a uma “consonância”
82
entre as tendências conflitantes deve ser esperada. A vida que nos
toca com seus giros e surpreendentes reorientações não pode
possivelmente englobar tudo o que é legítimo ou alcançar um
relacionamento harmonioso com todas as orientações que ela
mesma incapaz de adotar e atualizar. Neste sentido a harmonia
como um estado atual e especialmente como um estado universal
sempre será apenas imposta e nunca livremente alcançada.
Porém, isto não torna a harmonia em seu sentido próprio um ideal
vazio e fútil ou mesmo danoso. Enquanto ideal ele simplesmente
não pode ser abandonado. Porém, o ideal pode se tornar atual
apenas através de uma intuição da “totalidade da vida” que é ela
mesma antogonicamente organizada. Mas, por que uma tal
intuição é atingível, o antogonismo toma lugar entre partes cuja
legitimidade pode ser reconhecida pelos pontos de vista em
conflito, dado que a sua origem na e sua contruibuição para o
desenvolvimento da vida consciente já tenha sido reconhecido e
compreendido.
Se a harmonia depende de um reconhecimento mútuo que
por sua vez depende de uma intuição de uma origem comum, o
domínio primário onde a harmonia pode ocorrer é a própria vida
consciente, na medida em que ela é capaz de e depende da
perspectiva de uma resposta final e última às suas dificuldades.
Nós podemos chegar à conclusão que “harmonia” possivelmente
não é o melhor termo a ser utilizado nesse contexto. A intuição
mencionada é a intuição de uma constituição harmônica de um
mundo que por sua vez dá origem a conflitos. Esta intuição nos
permite perceber a paz no meio da luta. E pode ser preferível
referir a este estado de intuição da harmonia do mundo como
“estar em paz” ou ter alcançado a “clareza final” em vez de
simplesmente um estado de harmonia.
7. Sistemas sociais e compromisso
As reflexões precedentes podem nos perturbar como sendo
implausíveis por que elas enfatizam a auto-orientação de
83
indivíduos isolados. Mas, duas aplicações em relação a sistemas
sociais sugerem a si mesmas imediatamente.
(A) A vida consciente tem uma complexidade interna
essencial. Ela tende a se realizar em sociedades complexas.
Afirmar esta alegação não implica negar que explanações em
termos de produção material, divisão do trabalho, diferenciação
funcional de sistemas, etc., são dispensáveis para uma
compreensão adequada do desenvolvimento cultural. Mas, eles
não são suficientes poruqe tais sistemas não são auto-suficientes e
a explanação nesses termos é, portanto, metodologicamente
obscura. Embora eles possam em algum sentido explanar a
necessidade de geração de sistemas simbólicos tal como as
religiões, eles não podem explanar sua possibilidade e acima de
tudo a credibilidade universal. Para este propósito nós devemos
primeiro compreender a ligação interna entre vida consciente e
orientação metafísica.
(B) Sociedades complexas baseiam-se em uma capacidade
de auto-limitação e “compromisso” da parte de seus membros e
sub-sistemas. Mas, se o compromisso não é sustentado por uma
visão de muno que lhe fornece um lugar e um conteúdo positivo e
significância, então, ele deve ser experienciado como uma
invevitabilidade cega que deve ser limitado ao mínimo e não
respeitado por ele mesmo. O compromisso, então, torna-se um
/stalemate desafortunado e /hopefully transitório dentro da
realidade primária e única legítima, a saber, a luta pela
supremacia. O compromisso sem um conteúdo positivo nesse
sentido é cego enquanto que o inverso conteúdo sem a
possibilidade de ser adotado dentro dos conflitos da vida
consciente permanece irreal e portanto vazio (Cf. o dictum de
Kant sobre conceito e intuição).
A profunda diferença entre compromissos que pressupõem
a incompatibilidade entre orientações igualmente primordiais e
modificações mútuas que pressupõem o oposto não deveriam,
portanto, ser menosprezada. O primeiro pertence à unidade do
84
tipo C, o último à unidade do tipo A. Mas, unidade de acordo
como o tipo C é unidade real também e possivelmente (como,
p.ex., Hegel pensava) uma unidade “mais profunda” do que
qualquer uma que é disponível dentro das fronteiras do tipo A.
Não se trata absolutamente de unidade funcional da interação
social. A interação social mesma, ao contrário, está baseada e,
logo, tornada possível, não camuflada e distorcida, por uma
metafísica implícita e onipresente, uma metafísica que por sua
vez ganha estrutura de um conceito de unidade do tipo C.
8. Cultura e estilo
Complexidade e compromisso não são suficientes para
constituir uma cultura. Uma cultura é, ao menos, um modo de
coordenação e de dar forma à todas as manifestações da vida
consciente dentro de um dado domínio de interação. Como se
pode compreender a cultura se a vida consciente diverge por
causa de sua própria constituição em direções fundamentalmente
incompatíveis? A verdadeira noção de cultura e sua importância
universal nos compromete com o emprego exclusivo do conceito
de unidade do tipo A?
Pode ser possível compreender o fato da cultura se nós
percebermos que a vida consciente é governada por dois
diferentemente formados, mas também correlacionados princípios
de unidade, um instanciado na origem da vida consciente, o outro
disponível para a conclusão que aquela origem sempre projeta
diante de si. A origem tem a sua unidade no conjunto de
tendências de vida igualmente justificadas e no fato de que elas
são a atualização da vida consciente, a despeito de seu
antogonismo. A segunda unidade é estabelecida através da
introdução da primeira unidade em uma visão de mundo na qual a
vida consciente pode estar ela própria “em casa”. O modo como
estas duas unidades são integradas e assim constituem uma
resposta última da vida consciente para a sua condição sempre
depende de como a própria vida consciente avança e experiencia
85
sua viabilidade e sua significância através de conflito e
reconciliação. Por isso, uma cultura nunca é uma estrutura
estática, mas, antes um processo continuamente repetido.
Mas, antes que o processo comece os dois princípios de
unidade já estão estabelecidos e à vista. Eles guiam e permeiam a
vida consciente através de todos os estágios de seu
desenvolvimento. Por esta razão a vida consciente é desde o
início capaz de antecipar os modos pelos quais uma reconciliação
pode ter lugar, um acabamento que ela está essencialmente
desejando e comprometida com.
Estilos delineiam a resolução do problema que a vida
consciente tem que resolver durante o seu curso. Culturas são
essencialmente tais estilos. Eles não podem absorver todas as
possibilidades da vida consciente. E onde quer que vivam
humanos, eles são, ao menos implicitamente, cientes de que
diferentes tipos de respostas são possíveis. Tais respostas diferem
de todas as possibilidades fornecidas pela sua própria cultura,
embora elas irão normalmente ser concebidas tanto como
inacessíveis e quanto impróprias. Mas, seres humanos também
dependem de uma cultura. Pois, culturas fornecem um modo
efetivo e provavelmente indispensável de averiguação de
possibilidades de alcançar uma conclusão estável para o curso da
vida que está estruturado pela efetividade recíproca dos dois
princípios de unidade e do conflito entre as tendências de vida.
Estilos e obras de arte são correlatos. Seria equivocado
pensá-los como um acabamento da própria vida. A sua
constituição é tal que eles antecipam estruturalmente a
reconciliação. E isto implica que eles não incorporam, mas, antes
ficam longe de qualquer resposta desejada e alcançada pela
experiência vivida. Mas, eles também asseguram a sua
possibilidade e eles abrem caminhos para uma solução que uma
comunidade de vidas conscientes não pode ignorar, mas, antes
deve explorar em primeiro lugar.
Porém, nem estruturas antropológicas profundas nem
86
estruturas políticas maduras podem ser acomodadas por meio de
categorias estéticas. Mas, nós podemos ver porque uma sociedade
que não pode mais dar origem a um estilo e a uma arte que
apreende a experiência que foi delivrada dentro dela aprofunda a
dificuldade humana. Ela não destrói a possibilidade de que a vida
consciente propere. Mas, ela torna imensamente difícil esta
properidade e assim ameaça a vida consciente com um colapso na
facticidade cega. (A civilização mundial que está em emergência
até agora tornou familiar precisamente este perigo.) Nem é ela
também desprovida de estilo ou desprovida da potencialidade
para chegar a um estilo por si mesma. Mas, no momento nós
observamos que o poder antecipador da cultura está diminuindo e
que a própria cultura foi afetada pela insegurança que acompanha
a vida consciente em seu curso entre suas tendências conflituosas.
Pois, a cultura pode ter chegado perto da verdade, mas, pelo
mesmo movimento mais distante de sua anterior forma e
efetividade. Mais do que tudo a vida consciente necessita de
coragem e claridade.
87
7.
O pensamento e a estrutura do mundo:
Discours d'ontologie
Hector-Neri Castañeda
“Thinking and the Structure of the World”, Philosophia 4, 1 (1974).
Il faut donc considérer ce que c'est que d'estre attribué
véritablement à un certain sujet. (Leibniz, Discours de
métaphysique, viii.)
Este artigo formula um sistema básico de ontologia que tem
várias qualidades interessantes: (1) ele é sugerido muito
fortemente pelas considerações mais ingênuas e simples de certas
perplexidades envolvendo estados psicológicos: (2) o sistema faz
justiça a intuições aparentemente conflitantes que têm sido
debatidas por muitos filósofos; (3) o sistema separa o a priori de
elementos empíricos do mundo de modo muito elegante e claro;
(4) além disso, o sistema concentra todos os elementos empíricos
do mundo em dois predicados diádicos irredutíveis; (5) por esta
razão o sistema parece ser uma elegante formulação de uma
concepção do mundo que foi iniciada por Platão, foi visualizada
por Leibniz, direcionada por Frege, e ao menos em parte,
defendida por Meinong. O sistema parece, por conseguinte, ter o
88
valor histórico-filosófico de iluminar a longa e importante
tradição abstracionista e racionalista. Eu sugiro o seu
desenvolvimento com uma discussão inicial de um problema
muito discutido atualmente. Isto pretende homenagear aqueles
grandes metafísicos em sugerindo quão contemporâneas são as
suas intuições para esse problema, mesmo que suas soluções não
sejam adotadas.
Entre outras coisas, o sistema realiza o seguinte: (i) provê
uma abordagem dos objetos possíveis; (ii) provê uma abordagem
da predicação; (iii) fornece uma análise dos particulares
ordinários; (iv) preserva as características fundamentais da
identidade, a saber, a identidade dos indiscerníveis; (v) evita o
representacionalismo; (vi) elimina a dicotomia sentido-referência,
ao fazer, por assim dizer, o sentido de um termo singular o seu
referente; (vii) explica a conexão fundamental entre actualidade,
concretude, e existência; (viii) caracteriza a objetivação de
indivíduos impossíveis pelo pensamento; (ix) provê uma
abordagem fácil da identidade transmundana, para aqueles que
gostam da assim chamada semântica dos mundos possíveis; (x)
produz uma abordagem da identidade transitória para entidades
fictícias; (xi) fornece um novo fundamento para a assimilação de
dados sensíveis e objetos físicos.
1. Dados ontológicos e problemas
1.1 A tríade Fregeana
Como é bem conhecido, Frege ficava perplexo com a
aparente verdade de três proposições como essas:
(1) Tom acredita que a estrela da manhã é Vênus.
(2) Tom não acredita que a estrela da tarde é Vênus.
(3) A estrela da manhã = a estrela da tarde.
Ele não podia entender como uma coisa a e uma coisa b
podem ser realmente idênticas e ainda assim diferirem em alguma
89
propriedade, por exemplo, a propriedade de ser tomada por Tom
como sendo Vênus. Frege insistiu corretamente, como Quine o
fez em anos recentes, que a indiscernibilidade dos idênticos é a
parte central do conceito de identidade. Como é bem conhecido,
Frege tentou resolver a perplexidade da tríade (1) – (3)
defendendo que os termos 'estrela da manhã' e 'estrela da tarde'
são ambíguos, tendo em (3) um sentido e um referente, e outro de
cada em (2), ou (1), respectivamente. Eu proponho não seguir os
detalhes de sua teoria nesse ponto.
Há, contudo, uma solução ingênua para a perplexidade de
Frege. Tomar (1) e (2) como prova de que (3) é falsa se '=' é para
ser tomada como significando identidade literal. Por um lado, (3)
é verdadeira se ela é uma proposição sobre uma relação mais
fraca do que identidade. Nessa solução ingênua, as proposições
de Frege (1) e (2) estabelecem que a estrela da manhã e a estrela
da tarde são realmente diferentes entidades. Obviamente, a
identidade é governada pelo princípio de Leibniz da
indiscernibilidade dos idênticos. O que quer que seja
genuinamente idêntico com a estrela da manhã é também tido por
Tom como sendo Vênus, se (1) é verdadeira.
Esta solução ingênua foi considerada rapidamente por
Quine em seu curto ensaio, “The problem of interpreting modal
logic”1, para o caso de outra tríade similarmente perplexadora:
(4) É necessário que a estrela da manhã seja a estrela da manhã.
(5) Não é necessário que a estrela da manhã seja a estrela da tarde.
(6) A estrela da manhã é a estrela da tarde.
Quine sugeriu, aparentemente mordendo a língua (?), que a
consistência de (4) – (6) poderia ser explanada tomando-se o 'é'
da sentença (6), não como expressando a boa e honesta
identidade, mas uma relação mais fraca, para a qual ele propôs o
nome 'congruência'. Ele usou a letra 'C' para representar
1
W. V. O. Quine, “The problem of interpreting modal logic”, The Journal of Symbolic Logic 12
(1947): 43-48.
90
perspicuamente o 'é' de (6). O objetivo de Quine era,
aparentemente, desacreditar a lógica modal interpretada, em
mostrando como ela envolve o repúdio de objetos materiais na
melhor interpretação.
Pode-se protestar, contudo, que a concepção de que a
estrela da manhã e a estrela da tarde não são genuinamente
idênticas não implica o repúdio de objetos materiais. É a estrela
da tarde material que não é genuinamente idêntica, um filósofo
poderia sustentar, com a estrela da manhã material, mesmo que
elas sejam congruentes e, se você quiser, sejam os mesmo objeto
material. Mas, nós não queremos prosseguir com essa discussão
agora.
1.2
O argumento de Quine contra as entidade
intensionais
Mais tarde Quine foi capaz de fazer um ataque mais forte,
tanto contra a lógica modal como contra a quantificação em
contextos de crença, do que sua acusação de repúdio a objetos
materiais. Ele descobriu um argumento persuasivo para mostrar
que a introdução de entidades intensionais como valores das
variáveis de quantificação não resolvia as perplexidades originais.
Este argumento Quine reiterou várias vezes. Uma das primeiras
versões aparece em From a Logical Point of View1:
[if] A é qualquer objeto intensional, seja um atributo, e 'p' esteja por
uma sentença arbitrariamente verdadeira, claramente
(35) A = (ix) [p . (x = A)].
Ora, se a sentença verdadeira representada por 'p' não é analítica,
então, nem (35) é, e os seus lados não são mais intersubstituíveis em
contextos modais do que 'A estrela da manhã' e 'A estrela da tarde',
ou '9' e 'o número de planetas'. (p. 153)
Quine está falando sobre contextos modais como (4) – (5),
mas o seu ponto é aplicável à tríade de Frege. Seja A a estrela da
1
W. V. O. Quine, From a Logical Point of View (New York: Harper & Row, 1963), p. 153.
91
manhã, e 'p' esteja por qualquer proposição sobre a qual Tom não
tem absolutamente nenhuma ideia. A identidade (35) deve
requerer que Tom acredite que (x) [p . (x = A)] é idêntica à
estrela da manhã, mas uma vez que Tom não tem nenhuma ideia
do que 'p' representa, não é o caso que ele acredita nesta
identidade.
Obviamente, o argumento de Quine deve ser lido como
negando que (35) seja verdadeira se '=' expressa identidade
genuína. Mas, para defender isto deve-se explicar porque isto é
assim, e isto requer uma teoria tanto sobre o que um indivíduo é
exatamente como sobre o que é para um indivíduo ter
propriedades. Em suma, a solução ingênua para o enigma de
Frege tem que ser sofisticada: Não há realmente nenhuma solução
ingênua sem uma teoria da predicação e da individualidade: Mas,
antes de embarcar na formação de uma tal teoria, vamos
considerar outros enigmas que parecem requerer uma solução
muito semelhante à solução ingênua sugerida para a perplexidade
de Frege. Uma solução comum a todos seria definitivamente
superior, ao ser sistemática e não ad hoc.
1.3 O enigma de Geach
Em “Intentional Identity”1, Geach levantou um lindo
problema. Ele o apresentou por meio de um exemplo sobre
bruxas, que por não existirem tornam o enigma de certo modo
mais dramático, mas também confundiu alguns críticos por
sugerir a eles que o enigma pertencia às entidades fictícias. Uma
ilustração pedestre é esta:
(7) John acredita que há um homem na porta, e Paul acredita que ele
(aquele homem) é um ladrão.
(8) Mas, não há nenhum homem na porta.
O problema é precisamente o quantificador existencial 'há
1
P. T. Geach, “Intentional Identity”, The Journal of Philosophy 64 (1967): 627-32.
92
um homem', que em (7) aparece no escopo de “John acredita' e
ainda liga a ocorrência da variável de quantificação 'ele [aquele
homem]' que aparece no escopo de 'Paul acredita'.
Claramente, o quantificador 'há um homem' não pode ser
colocado no começo de (7) e lhe ser dado (7) inteira como seu
escopo, se aquele quantificador é suposto variar sobre pessoas
existentes. Fazer isto iria conflitar com (8). Então, nós temos o
problema de Geach de identificar a entidade que é o objeto das
crenças de John e Paul. Este problema permanece mesmo se o
problema sobre o escopo do quantificador desaparecesse.
Uma solução ingênua é esta: Tomar o quantificador 'há um
homem' como variando não apenas sobre objetos existentes, mas
também sobre objetos não-existentes possíveis. Esta solução é
como aquela discutida na seção 1 no sentido de que ela introduz
objetos não-materiais em nosso inventário ontológico. Se, no caso
da tríade de Frege, nós tomamos a estrela da manhã como um
objeto existente (material), que é o mesmo quer ele exista ou não,
nós podemos tomar os objetos possíveis requeridos para a
solução do problema de Geach para constituir o mesmo domínio
de objetos requerido para a solução da perplexidade de Frege.
1.4 Objetos impossíveis
Nós falamos de objetos possíveis. Mas, nós devemos contar
também com objetos impossíveis. O problema de Geach não
precisa ser apenas o criado por dois homens pensando em um
homem possível. Ele pode surgir quando dois homens pensam
sobre objetos impossíveis.
(9) John acredita que há um quadrado redondo azul e Paul pensa que
ele é oco.
Seguramente, todos os tipos de solução suportadas por suas
teorias correspondentes da predicação e da individuação podem
ser construídas. O ponto aqui é que uma vez que se adota o
caminho das entidades intensionais para os enigmas de Frege e
93
Geach, se deve naturalmente ir além nesse caminho e considerar
os objetos impossíveis meinongianos.
1.5 Referências de atitudes cruzadas
O problema levantado por Geach envolve dois pensadores.
Mas, o problema é mais geral. Ele aparece também no caso de
uma pessoa que tem várias atitudes diferentes em relação a uma
entidade e suas atitudes formam parte de uma mente ou
consciência unitária. Considere, por exemplo,
(10) Benjamin acredita que há uma fonte da vida e ele espera beber
dela.
O quantificador 'há (uma fonte da vida)' tem que ser o
operador dominante de tal modo que ele possa ligar as referências
à mesma entidade tanto no interior do escopo de 'acredita' como
no escopo de 'espera'. Assim, parece que nós nos comprometemos
com a introdução de objetos inexistentes outra vez como valores
de variáveis de quantificação. Claramente, tais objetos
inexistentes podem muito bem ser impossíveis, objetos autocontraditórios.
1.6 Realidade e pensamento
O pensamento é orientado para o mundo, e seguidamente é
bem sucedido em atingir uma coisa real. Um problema central é a
natureza e a estrutura desse sucesso. Em particular, nós devemos
explicar como a mesma entidade que existe no mundo é
exatamente aquilo sobre o que é um episódio de pensamento.
1.7 Existência
O pensamento é orientado para o mundo, para os existentes
no mundo: pensar em um objeto e pensá-lo como existente
parecem ser a mesma coisa. Todavia, de algum modo, o
pensamento é impérvio à existência. O pensamento está muito
94
confortável tanto na contemplação do existente quanto na
contemplação do não-existente. Assim, a existência parece ser
tanto uma característica diferenciadora que alguns, mas não
todos, objetos de pensamento possuem, como uma nãocaracterística de todo incapaz de diferenciar um objeto de outro.
Em termos tradicionais, a existência não é um predicado real;
com efeito, ela não é um predicado lógico ou formal, pois
existência, isto é, a existência de coisas materiais, mentais e
eventos, é precisamente o cerne mais recôndito da contingência.
1.8 O problema fundamental
A natureza da existência é um problema mais sério. Mas,
subjacente a ele há o problema da constituição de um objeto. A
unidade de uma coisa e sua posse de propriedades é o problema
primário da filosofia. Consiste a unidade de uma coisa em um
substrato subjacente? Ou alguma outra coisa? Como as
propriedades compõem uma coisa? Estas questões incluem como
um caso especial o modo como a existência entra nos objetos ou
como a existência advém aos objetos. O problema fundamental é,
portanto, o problema da mais elementar (e trivial) conexão
estrutural entre as categorias básicas do mundo: Coisa,
Propriedade, Predicação, Existência, Identidade, e Pensamento.
Trata-se do problema da conexão entre o Pensamento e a
Estrutura Fundamental do Mundo que aparece para a consciência
ou que o pensamento mesmo cria. Qual desses disjuntos é o caso
pertence a um discours de métaphysique, e vai além de nossa
presente consideração ontológica (isto é, ontológicofenomenológica). (A ontologia fenomenológica é anterior
epistemo-logicamente à ontologia metafísica.)
95
2. A ontologia abstracta: apresentação informal
2.1 Átomos ontológicos
No bom e velho estilo platônico, a concepção abstracta do
mundo toma as propriedades por elas mesmas, isto é, separadas
de particulares, como sendo os últimos componentes do mundo.
Há uma questão verbal quanto a serem os quantificadores
propriedades. Para evitar isso, vamos dizer que os últimos
componentes do mundo são Formas, e estas se dividem em
propriedades e operadores. As primeiras são hierarquizadas em
monádicas, diádicas, triádicas, ..., em suma, propriedades nádicas para qualquer número natural n.
Entre os operadores estão aqueles que operam sobre
propriedades gerando propriedades complexas. Alguns, como
quantificadores não-vazios, rebaixam o nível n-ádico de
propriedades. Outros, como conectivos lógicos, elevam o nível de
uma propriedade. Indivíduos são operadores que rebaixam o nível
de uma propriedade, também. (Formalmente, o mecanismo mais
elementar de composição de propriedade pode ser ordenadamente
descrito por sistemas de quantificação que usam operadores em
vez de variáveis, como, por exemplo, em “Variables explained
away”1 de Quine.
Por conveniência, nós usaremos variáveis de quantificação.
Ontologicamente, nós podemos considerar a introdução de
variáveis, permitam-nos chamar variabilização, como operações
que transformam propriedades abstractas em funções
proposicionais que são propriedades concretas que entram na
composição de indivíduos.
2.2 Indivíduos
Há um operador, vamos representá-lo com colchetes, que
opera sobre entidades e forma conjuntos. Os conjuntos primários
1
W. V. O. Quine,“Variables explained away”, Selected Logic Papers (New York, Random
House, 1966).
96
são compostos de propriedades concretas. Conjuntos são
indivíduos abstractos.
Outro operador, vamos representá-lo por c, opera sobre
conjuntos
de
propriedades
monádicas
(ou
funções
proposicionais), simples ou complexos, e gera indivíduos
concretos. A partir de agora 'indivíduo' significa indivíduo
concreto. Estes são, grosseiramente, sentidos fregeanos de
descrições definidas. Por exemplo, o quadrado redondo é o
indivíduo c{ser quadrado e redondo}. O indivíduo composto das
propriedades redondeza e quadratidade é c{ser redondo, ser
quadrado}. Eles são diferentes porque os conjuntos de
propriedades que os compõem são diferentes: o primeiro é
conjunto unitário, o último é um par. Há, obviamente, uma
conexão íntima entre eles, e nós a discutiremos na seção 2.6.
Suponha que, como parece ser o caso, que o quadrado
redondo era o objeto impossível favorito de Meinong. Isto quer
dizer, considere o indivíduo c{ser o objeto impossível favorito de
Meinong}. Este é, obviamente, um indivíduo bem diferente de
c{ser redondo e quadrado}. Então, a ocorrência em itálico da
palavra 'era' na primeira sentença desse parágrafo não expressa
identidade genuína. Nós devemos falar mais sobre identidade no
que se segue.
2.3 Predicação meinonguiana
Um indivíduo é em um sentido óbvio uma penca de
propriedades. A maioria deles são pencas finitas. Claramente,
para qualquer propriedade F-dade que se considere, o Fer é F, e
necessariamente, se “é” tem o sentido de composição ontológica.
Assim, a alegação persistente de Meinong de que “o Fer é F” é
analiticamente, ou logicamente, verdadeira, é correta no sentido
primário de “é”.
Denominemos a predicação primária de Predicação
meinongiana, e vamos representá-la por expressões da forma
“a(F)”, onde o 'a' denota um indivíduo e 'F' uma propriedade.
97
Assim, a proposição expressa por uma sentença dessa forma é
verdadeira se e somente se a propriedade denotada por 'F' é
elemento do conjunto de propriedades que constituem o indivíduo
denotado por 'a'.
Muitos de nós estamos inclinados a pensar que o Monte
Everest nem possui a propriedade de ser um número par nem
possui a propriedade de não-ser um número par, mesmo que as
duas propriedades pareçam ser mutuamente excludentes. Esta
inclinação é na sua base uma intuição da predicação meinongiana
primária. Evidentemente, para qualquer propriedade F-dade que
nós consideremos, muitos indivíduos concretos não a incluem em
seus conjuntos de propriedades constitutivos nem a sua negação
não-F-dade.
Nós também temos uma inclinação a dizer que para
qualquer propriedade F-dade, algo ou tem F-dade ou tem não-Fdade. Esta inclinação é a intuição de que em nosso confronto com
o mundo nós também usamos uma outra concepção de
predicação. Nós a discutiremos abaixo na seção 2.5.
2.4 Identidade
A identidade genuína é concebida como normalmente ela o
é. Trata-se de uma relação diádica muito especial, que é reflexiva
e é governada pela Lei de Leibniz da indiscernibilidade dos
idênticos. Em suma, nós temos os seguintes dois princípios
ontológicos:
Id. 1. x = x
Id. 2a. (x = x) ≡ (x (F) = y (F))
Fazer parte de um fato não é, obviamente, uma
propriedade. Mas, a identidade requer a indiscernibilidade
fática dos idênticos. Tome-se ' [a]' como expressando um
fato, simples ou complexo, do qual o indivíduo denotado por
'a' faz parte, e ' [a/b]' o mesmo fato com o indivíduo
98
denotado por 'b' entrando nas posições no lugar do
indivíduo denotado por 'a'. Desse modo, nós temos a lei:
Id. 2b. (x = y) ⊃ ( [x] ≡  [x | y])
2.5 Atualidade
A atualidade, que advém a indivíduos concretos, é
mais misteriosa. Ela é o último ato, em sentido aristotélico,
que contrasta ato com potencialidade, e está interamente
fora do domínio dos abstracta. (Note-se que, como Platão
observou, o domínio dos abstracta é tão confortável para a
mente que ele parece seu habitat natural. A atualidade deve,
obviamente, ser pelo menos apreensível obscura e parcialmente.
De outro modo, não haveria nem mesmo uma referência ao
mundo real. A atualidade tem que ser pensável, e isto significa
que há uma Forma, um tipo de propriedade, sob a qual ela é
concebível. Isto sugere outra forma de predicação, conectando
um indivíduo concreto com outras propriedades, as quais não o
constituem. Agora, a caracterização prévia de um indivíduo torna
um indivíduo limitado, determinado exatamente por um conjunto
de propriedades que pode ser finito e, logo, nem mesmo seja
fechado sob implicação lógica. Pois, a atualidade deve não
somente conectar um indivíduo a outras propriedades nele não
inclusas, mas deve conectá-los de um modo externo. Além disso,
este modo externo tem que preservar a total individualidade de
cada indivíduo, a saber, a indiscernibilidade requerida pela autoidentidade, isto é, pela Lei de Leibniz.
Bem, todas essas considerações vagas ganham corpo na
tese de que entre as propriedades há uma relação diádica, a qual
eu denomino consubstanciação ou co-atualidade. Esta é a única
relação que conecta diferentes indivíduos concretos, e faz com
que ambos existam.
Vamos representar consubstanciação com o símbolo 'C*'.
99
(O asterisco vem depois da letra 'C' para indicar que nós estamos
lidando com uma relação a posteriori ou contingente. O fato de
que há apenas um asterisco indica que esta é a fundamental, a
relação contingente número um: em um mundo desprovido de
pensamento ela seria a única). Assim, se 'a' denota a estrela da
manhã e 'b' a estrela da tarde, o que ordinariamente é dito pela
sentença “A estrela da manhã é a estrela da tarde”, ou pela
sentença “A estrela da manhã é a mesma que a estrela da tarde”,
pode ser mais precisamente colocada como o fato que
C* (a, b).
Para explanar melhor a natureza da consubstanciação
vamos analisar alguns enunciados ordinários. Considere
(11) O diretor é calvo.
Em geral uma pessoa ao fazer um enunciado por meio da
sentença (11) não quer asserir o enunciado meinongiano
(11a) O diretor (calvície).
Em geral, uma tal pessoa estaria querendo asserir que o
diretor existe e tem calvície, e não como uma propriedade
ontológica constitutiva, mas como uma propriedade contingente.
Assim, o seu enunciado seria dessa forma:
(11b) Há um indivíduo y tal que: tanto C* (y, o diretor) e y (calvície).
Considere agora a proposição relacional:
(12) O diretor beijou a professora de arte.
Novamente, há as proposições meinongianas triviais a
priori, que são palpavelmente falsas:
(12a) O diretor (beijou-a-professora-de-arte-dade);
(12b) A Professora de arte (sendo-beijada-pelo-diretor-dade);
(12c) (12a) & (12b).
100
Mas, em geral, quem usa a sentença (12) para fazer um
enunciado na vida prática quer expressar alguma informação nãotrivial como esta:
(12d) Há um indivíduo y e há um indivíduo z tal que: C* (y, o
diretor) & C* (z, a professora de arte) & y (beijando-aprofessora-de-arte-dade) & z (sendo-beijada-pelo-diretor-dade).
A consubstanciação é uma relação de equivalência dentro
do atual. Ela conglomera infinidades de indivíduos. Assim, a
antiga ideia platônica de que atualidade é comunidade recebe aqui
a sua mais clara expressão.
2.5.1 Existência
Na presente concepção ontológica, a existência é analisada
como auto-consubstanciação. Assim, nós podemos introduzir a
abreviação linguística:
Def. X existe = def. C* (x, x)
Nós também temos a lei, ou axioma:
C*.1. C*(x, x) ⊃ C*(x, x)
2.5.2 Consubstanciação: propriedades de equivalência
Porque a consubstanciação é uma propriedade de
equivalência dentro do domínio dos existentes, com efeito, a mais
importante das propriedades de equivalência do ponto de vista da
contingência do mundo, a palavra “é” a expressa. Assim, ao lado
de C*.1, nós temos as leis:
C*.2 C*(x, y) ⊃
C*(y, x)
C*.3 (C*(x, y) & C*(y,z)) ⊃
C*(x, z)
2.5.3 Consubstanciação: propriedades de atualidade
A consubstanciação é governada pela lei de consistência,
isto é, que apenas conjuntos de propriedades logicamente
101
compatíveis determinam indivíduos concretos actualizáveis.
C*.4a C* (x, x) ⊃ (x(F) ⊃ ~ x (~F))
C*.4b C* (x, x) ⊃ (x(~F) ⊃ ~ x (F))
Para simplificar o enunciado das próximas leis de
consubstanciação, vamos introduzir uma convenção simples:
Convenção. Uma expressão da forma “a[ϕ]” é uma abreviação de
uma expressão com o operador 'c' prefixado a uma expressão da
união do conjunto de propriedades constitutivas do indivíduo
denotado pelo sinal a e o conjunto unitário cujo membro é a
propriedade denotada pelo símbolo ϕ. Por exemplo, se a é
c{Redondo, Quadrado}, a[Dourado] é c{Redondo,
Quadrado, Dourado}.
Eu me referirei ao indivíduo denotado por uma
expressão da forma “a[ϕ]” como a ϕ-protracção do
indivíduo denotado por a.
O caráter comunicizador da atualidade é exposto
pelas seguintes leis:
A lei da contiguidade:
C*.5. C* (x, y) ⊃ (y(F) ⊃ C*(x,x [F]))
A lei da completude:
C*.6. C* (x, x) ⊃ C*(x,x [F]) ∨ C*(x,x[~F]))
A lei de fechamento lógico:
C*.7. C* (x, x) ⊃ C*(x,x [F1]) & ... & C* (x,x[Fn]) ⊃ C* (x,x[G ])),
dado que “F1 & ... & Fn ⊃G )” é um teorema na lógica
quantificacional padrão.
A Lei de Fechamento C*.7 é, obviamente, apenas a mais
geral e fundamental lei de fechamento que há. Leis da natureza
são casos específicos da lei de fechamento. O padrão da lei é o
102
mesmo em toda parte. Tudo o que nós necessitamos é a ressalva
de que uma certa fórmula seja um teorema em algum sistema de
leis da natureza, em vez de ser um teorema em lógica
quantificacional.
2.5.4 Consubstanciação: unicidade
Um dos erros de Meinong foi confundir o objeto
incompleto o Círculo com a propriedade circularidade. A última
está presente em todo círculo existente, mas o primeiro não. A
entidade o Círculo é c{Círculo}, isto é, o indivíduo que é apenas
um círculo. Logo, se o Círculo existe, há apenas uma penca de
consubstanciação da qual a circularidade faz parte. Então, nós
temos a lei:
C*.8. C*(x,x) ⊃ (∀y) (C*(y,y) & (∀y) (x(F)) ⊃ y(F) ⊃ C*(x,y))
Se x existe, então, qualquer existente que tenha
meinongianamente todas as propriedades que x tem
meinongianamente é consubstanciado com x.
2.5.5 Consubstanciação: compossibilidade
Algumas relações requerem que se um relatum existe
também existam outros. Se o Diretor beija a Professora de Arte, a
Professora de Arte existe e é em realidade beijada pelo Diretor.
Por outro lado, se o Diretor procura pela professora de Arte de
seus sonhos, esta última não precisa existir. Logo, para algumas
relações, 'u' e 'y' sendo variáveis ligadas pelo indivíduo ou
implícito em 'x' e 'yi':
S. C*.9. C* (x,x[Ry1, ..., yi, u, yi+1, ..., yn] ⊃ C* ( yi , yi[R y1, ..., y,x,
yi+1, ..., yn], para todo i= 1, ..., n.
Esta lei combina a redução de relações a qualidades feita
por Leibniz com os e-atributos de Nino Cochiarella, isto é,
103
atributos que implicam existência.1
2.6 Objetificação ou consociação
Indivíduos concretos são objetos de pensamento e, como
tais, eles estão todos em pé de igualdade, sejam eles impossíveis,
meramente possíveis, ou atuais. Obviamente, alguns indivíduos
raramente são pensados, e alguns provavelmente nunca serão
pensados. Aqueles que são pensados entram em uma vinculação
empírica com uma mente. E esta relação requer análise. A
primeira coisa a notar acerca da objetificação de um indivíduo é
que, como Meinong observou, pensar de um indivíduo (um
objeto em sua terminologia) é conferir ao indivíduo algum tipo de
existência, mesmo se o objeto é não-existente, alas!, mesmo se
ele é impossível. Então, objetificação é como atualidade, mas ela
não é atualidade. Logo, objetificação tem que ser analisada como
envolvendo uma relação diádica empírica especial, simbolizada
por 'C**', onde a letra 'C' indica novamente a comunidade de ser,
e o duplo asterisco indica o caráter secundário da comunidade em
questão, e sua posposição ao 'C' indica a natureza a posteriori da
comunidade. Vamos chamar esta relação co-objetificação ou
consociação. Considere a sentença:
(13) Meinong costumava pensar no quadrado redondo.
Uma análise ontológica parcial do que (13) expressa é
revelado por:
(13a) Há um indivíduo x, tal que: x(ser pensado por Meinong) & C**
(x, c {ser quadrado e redondo}).
Naturalmente, (13a) não analisa o modo em que o indivíduo
Meinong entra naquilo que (13) expressa. À luz de nossa
discussão da atualidade, presumivelmente outra parte de (13) é:
1
N. Cocchiarella, “Some remarks on second-order logic with existence attributes”, Noûs 2
(1968): 165-75.
104
(13b) Há um indivíduo y tal que: y (pensar no quadrado redondo) &
C* (y, Meinong).
Eu submeto que (13) é simplesmente uma abreviação de
(13c) Há indivíduos x e y tal que: x(ser pensado por Meinong) &
y(pensar de c {ser quadrado e redondo}) & C* (y, Meinong) &
C** (x, c {ser quadrado e redondo}).
Um entendimento completo de (13c) e (13) requer uma
compreensão do papel do nome próprio 'Meinong'. Na seção II.13
nós dizemos alguma coisa sobre o papel dos nomes próprios.
Usando uma mistura de linguagem ordinária e notação
introduzida acima na seção II.5.3, nós podemos abreviar (13c) do
seguinte modo:
(13c') C* (Meinong, Meinong [pensar no quadrado redondo]) & C**
(o quadrado redondo, o quadrado redondo [sendo pensado por
Meinong]).
A consociação é como a consubstanciação, não apenas por
ser uma relação diádica externa genuína, mas também por ser
uma relação de equivalência dentro de seu domínio. Assim, nós
temos as leis:
C**.1. C** (x,y) ⊃ C** (x,x)
C**.2. C** (x,y) ⊃ C** (y,x)
Por outro lado, consociação não é consubstanciação. Ela
não tem os aspectos consistência, fechamento, contiguidade, e
completude.
2.7. Conflação
Ao lado da identidade genuína ou auto-igualdade,
caracterizada na seção II.4, há uma outra importante relação a
priori. Ela é como a identidade, uma vez que ela lida com os
constituintes internos de um indivíduo. Mas, ela tem caráter de
105
algum modo externo, sendo um mecanismo genuíno de uma
comunidade pervasiva e a priori de ser. Eu a chamo conflação, e
a represento com o símbolo '*C'. Ela é, como a identidade, uma
relação irrestrita de equivalência:
*C.1. *C(x,x)
*C.2. *C(x,y) ⊃ *C(y,x)
*C.3. (*C(x,y) & *C(y,z)) ⊃ *C(y,z))
A lei da internalidade que governa a conflação é esta:
*C.4. *C (c{..., F, ..., G}, c{..., F & G, ... }).
As leis *C.4 e *C.1 juntas justificam a alegação trivial que
o homem que matou ambos Napoleão e César é o mesmo que a
entidade que sozinha tem apenas as seguintes propriedades:
primeiro, é um homem; segundo, matou Napoleão; e terceiro,
matou César.
A seguinte lei pode ser chamada de “propriedade da autoidentidade de conflação”:
*C.5. *C(x, c{x = −})
que é *C(x, cy{x = y}), em uma notação com variáveis em
vez de operadores.
A lei *C.5 estabelece a conflação de cada indivíduo com o
indivíduo constituído pela propriedade de ser idêntico com o
primeiro. Obviamente, os dois indivíduos são diferentes, uma vez
que eles têm diferentes propriedades como constituintes. A sua
comunidade é, contudo, trivial e profunda; isto é, eles conflaem.
A lei *C.6 é o mais óbvio caso da lei geral da conflação de
auto-congruentes:
*C.6 *C(x, c{C(x, −)}), ou *C(x, cy{C(x, y)})
onde 'C' é ou '*C', 'C*' ou 'C**' ou '=' ou, noutros casos,
alguma outra relação de congruência que constitui a comunidade
de ser.
106
Esta lei mostra parte da redundância das relações de
congruência ontológica. Outra parte de tal redundância é
capturada pela lei:
*C.7. *C(x,x[ser C com x]),
onde 'C' é como em *C.6.
2.8. Existência outra vez
O caso especial da lei *C.6, envolvendo a relação *C, é
digna de menção especial. Ele está no centro das disputas perenes
sobre se a existência é um predicado (isto é, uma propriedade) ou
não. Na presente teoria ontológica este problema recebe uma
resposta “sim e não”.
Por um lado, a existência é uma propriedade, uma vez que
ela é concebida por meio da propriedade Forma C*. Ela é uma
propriedade componencial, uma vez que ela é o caso monádico
especial de C* operado pela Reflexividade.
Por outro lado, a existência não é uma propriedade, uma
vez que é a contingência do mundo subjacente à propriedade C*,
mas restando de outro modo insondável para além da jurisdição
da mente como o alvo do pensamento. Parte dessa
insondabilidade da existência é capturada pela lei C*.6, da
completude da co-atualidade. Ainda assim, a existência tem que
ser de algum modo dócil e acessível à mente que não deve ficar
perseguindo-a com o desespero do fracasso. Essa docilidade
parcial da existência é capturada pelas outras leis da coatualidade, especialmente as leis de consistência e de fechamento.
(São estas leis impostas pela mente mesma a uma realidade
subjacente de algum modo complacente?)
A existência é misteriosa. Ela é rica e complexa como se
mostra pelas suas leis; ela é o que, no final, a totalidade daquilo
sobre o que é o pensamento e o agir. Ainda assim ela parece
redundante e vazia. Como Kant dizia, “o real contém não mais do
107
que o meramente possível”1. Mais especificamente, para qualquer
propriedade F-dade, o Fer existente é o mesmo que o Fer. No
exemplo que interessava a Meinong, o quadrado redondo
existente é o mesmo que o quadrado redondo. (Eu não estou
seguro que Meinong concordaria suficientemente rápido com esta
igualdade em sua disputa com Russell). Esta igualdade, i. é., a
redundância fundamental da propriedade da existência, é
parcialmente capturada pelas leis especiais:
*C.6 *C(x, cy{C* (x, y)})
*C.7 *C(x, x[ser C* com x])
Uma abordagem alternativa, que eu acho tentadora, é
revisar a noção de indivíduo e requerer que C* seja um membro
do conjunto de propriedades constitutivas de um indivíduo. Isto
tornaria a existência mais claramente redundante.
2.9 O debate Meinong-Russell sobre a existência
Pode não ser impróprio fazer alguns comentários sobre a
disputa Meinong-Russell acerca do quadrado redondo existente.
Lembre-se que Meinong asseverava tanto que o quadrado
redondo é redondo quanto que ele é quadrado. Russell
argumentou que o princípio de Meinong de que o Fer é F conduz
a contradições. O primeiro argumento de Russell era que é uma
contradição dizer que o quadrado redondo é ambos redondo e
quadrado. O seu segundo argumento era que, por aquele
princípio, o quadrado redondo existente, que nós sabemos não
existir, é existente; logo, nós temos outra contradição. As réplicas
de Meinong foram as seguintes: (1) a lei de contradição aplica-se
apenas ao real, não ao mero possível ou ao impossível; (2) há
uma diferença entre dizer (a) o quadrado redondo existente é
existente, e (b) o quadrado redondo existente existe.2
1
2
I. Kant, Critique of Pure Reason, A599.
Para um resumo da disputa e referências bibliográficas veja R. Chisholm, “Editor's
Introduction”, Realism and the Background of Phenomenology (Glencoe, Ill.: The Free Press,
1960), p. 9s.
108
No ponto (1) a presente teoria ontológica fica do lado de
Russell nessa questão: a lei de contradição deve valer em todo o
domínio da verdade. Mas, ela concede um ponto a Meinong: ela
reconhece objetos impossíveis. No ponto (2) Russell contentou-se
em dizer que ele não via nenhuma diferença entre (a) e (b).
Contudo, a presente teoria ontológica pode formular a diferença e
conceder um ponto para Meinong. A sentença
(14) O quadrado redondo existente é existente
pode naturalmente ser entendida como expressando uma
proposição sobre uma predicação meinongiana, de tal modo que
ela devesse ser analisada como:
(14a) o quadrado redondo existente (ser auto-consubstanciado).
Obviamente, a sentença (14) pode ser interpretada também
como expressando uma proposição diferente, a saber, uma que
naturalmente seria expressável pela sentença (15) abaixo:
(15) O (existente) quadrado redondo existe.
Esta sentença expressa uma proposição sobre atualidade, de
modo que ela deve ser reformulada como
(15a) C* (o (existente) quadrado redondo, o (existente) quadrado
redondo).
Nós podemos eliminar a palavra 'existente' entre parêntesis,
movendo-se de (15) para (15a), em virtude da lei *C.7. De
qualquer modo, Meinong parece estar certo em insistir na
distinção entre duas interpretações naturais de (14) e (15). Se
nossa exegese de sua alegação estiver correta, a saber, que ele
entendia (14) como (14a) e (15) como (15a), então, ele está certo
em manter que aquilo que (14) expressa é verdadeiro enquanto
que aquilo que (15) expressa é falso.
Meinong não explanou a sua alegação sobre a diferença
entre (14) e (15) como a diferença entre (14a) e (15a). Ele falou
de um aspecto modal no pensamento da proposição expressa por
(15). Mas esta é uma doutrina obscura.
109
2.10. Objetos materiais ordinários e contagem
Na teoria ontológica aqui desenvolvida, os indivíduos
concretos a que nossas descrições definidas referem são os
mesmos quer eles existam quer não. Nossos indivíduos concretos
são entidades materiais quando eles são realizados (actualized).
Desse modo, o termo 'a presente Rainha da Inglaterra' refere-se
ao indivíduo constituído pela propriedade presente-Rainha-daInglaterra-dade, ou a função proposicional de ser a presente
Rainha da Inglaterra. Aquele termo não se refere, ao menos não
em seu uso ou significado primário ou básico, ao indivíduo
esposa do presente Duque de Edinburgh. Nem o termo 'a presente
Rainha da Inglaterra' refere-se em seu uso ou significado primário
ao conjunto de todos aqueles indivíduos concretos
consubstanciados com a esposa do presente Duque de Edinburgh.
Obviamente, este conjunto de indivíduos está consubstanciado
com o conjunto de indivíduos consubstanciados com a presente
Rainha da Inglaterra. Mas, o termo 'a presente Rainha da
Inglaterra' nem mesmo refere-se, em seu uso ou significado
primário, a este último conjunto.
Todavia, há ocasiões em que um proferimento do termo 'a
presente Rainha da Inglaterra' pode talvez se referir ao conjunto
de indivíduos concretos consubstanciados com a presente Rainha
da Inglaterra. Se ele realmente existe, tal uso do termo é derivado
e depende de seu uso primário e básico. Claramente, o uso de um
termo 't' como abreviação para uma expressão da forma 'o
conjunto de indivíduos concretos consubstanciados com t' pode
ser entendido apenas sob a suposição de que o uso de 't' na
descrição não abreviada é tanto compreensível quanto diferente
de seu uso abreviado. De qualquer modo, quando nós contamos
“A (presente) Rainha da Inglaterra, o Rei da Dinamarca, o
Imperador do Japão, a Duquesa de Tuscany, o Ditador da
Nicarágua, ...,” parece que nós estamos contando o conjunto de
indivíduos consubstanciados com os indivíduos listados.
Deve-se enfatizar que a teoria que nós estamos expondo
110
não identifica objetos materiais com os conjuntos de indivíduos
mutuamente consubstanciados. Conjuntos são sempre indivíduos
abstractos. Assim, quantificação sobre os nossos indivíduos
concretos é quantificação sobre objetos materiais, e quantificação
sobre conjuntos de indivíduos concretos mutuamente
consubstanciados não é quantificação sobre objetos materiais.
Um objeto material ordinário é em seu cerne um agregado
de propriedades, ou funções proposicionais. Com efeito, nós
podemos dizer que um objeto ordinário, material ou não, é uma
penca (bundle) de propriedades, incluindo propriedades
relacionais, para sublinhar o fato de que ele não é um mero
agregado ou conjunto de propriedades: o conjunto deve ser
operacionalizado pelo operador de concretização c. Além disso,
um indivíduo ordinário real, material ou não, é ele mesmo
enfeixado, isto é, consubstanciado com uma infinidade de outros
indivíduos.
Portanto, a presente teoria ontológica está em parte ao lado
dos teóricos das feixes-de-universais, mas em parte com aqueles
teóricos que identificam feixes com conjuntos. Aparentemente
nossa teoria também difere das teorias padrão dos feixes em sua
concepção de feixidade. Nossa teoria também difere da teoria
proposta por Platão no Fédon1 de que um objeto ordinário é um
conjunto de particulares que exemplificam apenas uma
propriedade. Ela também difere da teoria em geral atribuída a
Stout de que um objeto ordinário é uma aglomeração de
propriedades particularizadas. (Eu seguidamente perco a distinção
entre uma propriedade particularizada e um particular simples ou
perfeito que exemplifica apenas uma propriedade.)
2.11 Indivíduos leibnizianos
A partir das leis da contiguidade e da consistência que
governam a consubstanciação, segue-se que cada indivíduo, seja
1
Veja-se H.-N. Castañeda, “Plato's Phaedo theory of relations”, Journal of Philosophical Logic
1 (1972): 467-80.
111
Fer, que existe determina um conjunto de sequências de
indivíduos mutuamente consubstanciados que culmina em um
indivíduo infinito, isto é, um indivíduo que é constituído por um
conjunto consistente maximal de propriedades. Tais indivíduos
infinitos eu denomino indivíduos concretos leibnizianos.
Naturalmente, eles estão para além da apreensão de mentes
finitas. Para apreender um indivíduo leibniziano deve-se ser
capaz de contemplar o conjunto de propriedades in propria
persona, com todos os seus membros numa visão completa.
Como Leibniz notou, tais indivíduos (que ele denominou
conceitos completos, por razões que estão além da presente
consideração) são objetos ajustados para um entendimento
divino.
Como Leibniz também notou, dado que um indivíduo
leibniziano contém em seu conjunto constitutivo de propriedades
todas as suas relações com todos os outros indivíduos, cada
indivíduo leibniziano contém em seu interior a história completa
de um mundo possível. Quaisquer dois indivíduos leibnizianos
espelham um ao outro. Um indivíduo leibniziano pode pertencer
apenas a um mundo possível.
Indivíduos leibnizianos estão completamente fora do nosso
alcance. Bem, sim, eles estão fora do nosso alcance direto. Mas
eles são indiretamente acessíveis: eles são indicáveis. Uma vez
que conjuntos de propriedades constituem o cerne de indivíduos
concretos, eles são indivíduos quase-leibnizianos disponíveis para
nós. Estes são os indivíduos cujo cerne é uma propriedade da
forma ter todas as propriedades de um certo indivíduo
leibniziano. Tais indivíduos quase-leibnizianos devem
forçosamente existir e ser consubstanciados com os indivíduos
leibnizianos reais. Por exemplo, considere o indivíduo a presente
Rainha da Inglaterra. Ela é consubstanciada com a presente
Rainha da Inglaterra casada, com a presente Rainha da Inglaterra
que é casada e tem um marido vivo e teve dois filhos que estão
vivos de tal modo que um deles é consubstanciado com (se você
112
quiser, é o mesmo que) o Príncipe de Wales, e ... . A sequência
termina com o indivíduo leibniziano. Eu não posso apresentá-lo
aqui ou em qualquer lugar. Mas, o quase-leibniziano c{ser a
culminação leibniziana da sequência de indivíduos mutuamente
consubstanciados que começa com a presente Rainha da
Inglaterra} é consubstanciado com o indivíduo leibniziano no
final dessa sequência de indivíduos.
Indivíduos quase-leibnizianos são muito baratos e obscuros.
Mas, eles são a nossa única conexão com indivíduos leibnizianos.
Eles nos asseguram uma orientação em nossa formidável tarefa
de aumentar nossa familiaridade com correntes de indivíduos
finitos mutuamente consubstanciados.
Nós dissemos acima que quando nós estamos engajados na
assim chamada contagem de objetos materiais nós parecemos
estar contando conjuntos de indivíduos mutuamente
consubstanciados. Obviamente, nós estamos. Mas, nós estamos
também contando indivíduos leibnizianos tanto quanto quaseleibnizianos. Pois, quando nós contamos “A Rainha da Inglaterra,
o Rei de Nairobi, o Presidente da Venezuela, o Ditador de
Portugal, ...” nós podemos tomar cada uma dessas descrições
definidas como sendo usada num sentido especial como
abreviação para descrições referindo indivíduos quaseleibnizianos. Isto é perfeitamente adequado. O que se deve ter em
mente é que este uso abreviado, novamente, deve ser derivado e
pressupor o uso primário de referir a um indivíduo tendo
exatamente a propriedade mencionada – meinongianamente.
Muitos indivíduos leibnizianos são indivíduos materiais.
Logo, se nós aceitamos que há um espaço tempo absoluto no qual
indivíduos consubstanciam-se, nós podemos pensar que nossa
ontologia contradiz o princípio da impenetrabilidade da matéria.
Obviamente, não há tal contradição. Este princípio tem que ser
analisado em termos de indivíduos. O que ele diz é que uma
região R do espaço não pode ser ocupada em um dado tempo t
por indivíduos materiais que não são mutuamente
113
consubstanciados. Mas, um indivíduo leibniziano, os indivíduos
finitos consubstanciados com ele, e os indivíduos quaseleibnizianos consubstanciados com ambos, pode, e deve, ocupar a
mesma região de espaço no mesmo tempo.
Objetos existentes pertencem a semi-treliças de
consubstanciação, no vértice dessas semi-treliças subjazem
indivíduos leibnizianos.
2.12. Tempo e consubstanciação
Não há espaço aqui para discutir tempo e espaço. Há nessa
junção duas concepções para explorar. Uma é internalizar tempo
e espaço em cada feixe de indivíduos consubstanciados. Outra é
tratá-los como uma armação absoluta dentro da qual a existência
se desdobra. (Eles mesmos não existem em qualquer caso). Em
tal concepção o enfeixamento de feixes consubstanciados ao
longo de um vetor espaço-temporal deve ser visto como outra
relação contingente genuína: a transubstanciação de feixes de
consubstanciação.
2.13. Nomes próprios
Há várias teorias sobre como nomes próprios referem a
indivíduos e como eles se relacionam com descrições definidas.
Muitas das teorias existentes são construídas na base da nãodiferenciação entre a referência pura ou estrita de um nome, isto
é, a referência feita pelo falante, e a referência feita pelos
ouvintes de um nome. Obviamente, nomes não referem a nada
por eles mesmos. Também é óbvio que o mero emparelhar nomes
e entidades, algumas vezes chamado de funções semânticas ou
interpretações sobre um conjunto de nomes, não induz nenhuma
força referencial nos nomes. As referências expressas por um
nome são referências feitas por um pensador que usa o nome.
A concepção que eu acho congenial é esta. (i) sentenças
contendo nomes de indivíduos não expressam proposições (fatos,
ou estados de coisas), mas funções proposicionais. (ii) Um nome
114
tem o papel lógico de uma variável livre de quantificação,
indicando a posição de um elemento que ele deixa inexpresso.
(iii) Um nome também tem o papel lógico de expressar que o
elemento inexpresso é um indivíduo quase-leibniziano. (iv) Um
nome próprio tem um papel causal intencional, a saber, que a
percepção do nome causará no ouvinte a apreensão de uma
proposição que converge com a proposição na mente do falante.
Por convergência eu aqui quero dizer que a proposição P na
mente do falante e a proposição P' na mente de um ouvinte, no
caso que a causalidade pretendida do nome seja bem sucedida,
tem como componentes as mesmas operações lógicas, a mesma
cópula e comunidade de relações, e difira no máximo por ter
diferentes
indivíduos,
mas
estes
indivíduos
sejam
consubstanciados, ou consociados, ou conflatados, dependendo
de qual tipo de proposição o falante tenha em mente. Em suma, P
pode ser obtida de P' pela substituição de algumas ocorrências de
indivíduos por ocorrências de indivíduos congruentes
apropriados, e o ser apropriado da congruência ontológica é
determinada pelas intenções de comunicação do falante.
Quando eu penso em Leibniz, eu estou pensando em um ou
mais indivíduos finitos, por exemplo, o autor de Discours de
métaphysique, ou o inventor da notação padrão para o cálculo
diferencial, ou o homem que se engajou com Clarke numa
correspondência sobre tempo e espaço. Em diferentes momentos
eu indubitavelmente penso em diferentes indivíduos dentro do
mesmo conjunto de indivíduos mutuamente consubstanciados.
Quando eu digo “Leibniz foi diplomata habilidoso” eu não estou
revelando para minha audiência o indivíduo que é o sujeito da
proposição que eu estou pensando. Minhas palavras revelam a
função proposicional “C*(x,x[ser um diplomata habilidoso])”.
Esperançosamente, minha audiência seria composta de pessoas
que possuem o nome 'Leibniz' em sua linguagem. Mas, ter um
nome na própria linguagem não é nada mais do que ser parte de
uma rede causal tal que a própria percepção do nome causa em
115
circunstâncias normais a apreensão de uma proposição tendo
como componente um certo indivíduo. Então, se minha audiência
adquiriu o nome, isto é, sofreu um re-arranjamento apropriado de
capacidades tal que possui o mecanismo para reagir ao meu
proferimento tendo pensamentos sobre indivíduos congruentes
com aquele em que eu estou pensando, eu fui bem sucedido em
comunicar por meio do uso do nome. Meu ouvinte irá, então,
pensar duas proposições, justamente como eu faço. Ele pensa a
proposição “C*(o autor da Monadologie, o autor da Monadologie
[ser um diplomata habilidoso])”. E, acreditando que tal autor
existiu, ele também pensa a proposição quase-leibniziana “C*(o
indivíduo leibniziano no qual culmina o autor da Monadologie, o
autor da Monadologie [ser um diplomata habilidoso]).
Nesta concepção, nomes próprios referem sim, a saber, a
qualquer indivíduo que o falante está referindo quando ele usa o
nome. Igualmente, uma vez que variáveis de quantificação são
essencialmente mecanismos de referência, pode-se dizer que
nomes próprios têm um papel primariamente ou essencialmente
referencial. Um nome próprio tem, por um lado, um sentido geral,
a saber, um certo indivíduo leibniziano no qual uma certa
corrente ontológica de consubstanciação culmina. Este aspecto do
significado dos nomes igualmente acrescenta-se ao aumento de
seu papel referencial. Em referindo a um indivíduo quaseleibniziano eles apontam, por assim dizer, para o indivíduo
leibniziano que subjaz a todos os indivíduos que o falante ou o
ouvinte está referindo durante o ato de comunicação. Contudo, é
crucial ligar a ideia de que sentenças da forma “Nome s” não
expressam uma proposição: o que elas expressam não é nem
verdadeiro nem falso: não há proposições tendo como
componente especial indivíduo não completamente especificado
por descrições a que o nome refere.
2.14. Proposições
Na presente concepção, proposições são exatamente o que
116
em geral é chamado estado de coisas. Nós não precisamos de uma
dualidade representacionalista entre estados de coisas e
intermediários
diante-da-mente.
Nós
somos
realistas
epistemológicos: os conteúdos do pensamento são estados de
coisas. Além disso, fatos são proposições verdadeiras.
2.15. Conceitos
Os indivíduos da presente concepção são indivíduos
genuínos, e não os assim chamados conceitos individuais. Nós
pensamos em indivíduos tendo-os diante da mente. Não há
sentidos fregeanos ou conceitos carnapianos mediando entre os
indivíduos pensados e o pensamento. O pensamento é sempre
direto em sua referência a objetos, sempre bem sucedido em
atingir um objeto, sempre transparente em seu conteúdo, sempre
translúcido em sua referência. Pensar na Rainha da Inglaterra é
apreender a Rainha da Inglaterra (isto é, ter a Rainha da Inglaterra
diante da própria mente) em pessoa, quer ela exista ou não. Esta
tese realista é a única que se ajusta a concepção de existência,
claramente contemplada por Kant, de acordo com a qual a
existência não adiciona nada ao conteúdo do que é pensado.
2.16. A distinção sentido-referência de Fregeanos
Como é bem conhecido, Frege postulou dois tipos de
entidades, sentidos e referentes, parte sob a pressão do
representacionalismo, mas parte sob a pressão das assim
chamadas descrições sem denotação. Como você lembra, sua
concepção do significado de uma descrição definida D atribui a D
duas séries de entidades: seus referentes e seus sentidos. Se D
aparece em uma sentença S subordinada em construções de n
oratio obliqua, então, D tem em S como referente e como sentido
o n-tuplo referente e o n-tuplo sentido, respectivamente, das
precedentes séries. Frege simplifica sua ontologia identificando o
n-tuplo referente com seu (n+ 1)-tuplo sentido, para n maior que
1. Ao contrário, na presente concepção ontológica, todas estas
117
“entidades” são expurgadas. Posto inexatamente, na presente
concepção o referente de uma descrição definida D é seu sentido
fregeano. Mas, isto é inexato, uma vez que os sentidos fregeanos
são necessariamente não-materiais, e eles se relacionam com seus
referentes por meio de alguma coisa como instanciação, quando
as descrições de que eles são referentes denotam. Em nossa
concepção, se uma descrição definida D denota, então o que ela
denota tanto existe como é, como Kant diria, genuinamente
idêntico com o indivíduo que D refere em qualquer caso.
Na presente concepção, na sentença
(16) Meu amigo chegou, mas enquanto Jones acredita que meu
amigo chegou, Marta não acredita que Jones acredita que ele
chegou.
A cláusula 'ele chegou' tem exatamente o mesmo sentido
nas três ocorrências. Do mesmo modo, as duas ocorrências do
termo 'meu amigo' e a ocorrência do pronome 'ele' referem todas
a um certo indivíduo, o indivíduo finito c{ser meu amigo, },
onde  é uma tripla ordenada de um indivíduo concreto, um
lugar, e um tempo.1 Sem dúvida, qualquer um que use (16)
assertoricamente irá assumir que tal indivíduo é consubstanciado
com uma infinidade de indivíduos. Mas, em qualquer caso, o
nexo predicativo entre esse indivíduo e a propriedade de ter
chegado é a mesma em (16) inteira.2
A presente concepção ontológica, por conseguinte, restaura
(ou preserva) a unidade da oratio recta e da oratio obliqua.
1
2
Para a discussão da referência indexical que pode ser acomodada à presente concepção
ontológica, veja-se H.-N. Castañeda, “Indicators and quasi-indicators”, American
Philosophical Quartely 4 (1967): 85-100; “On the phenomeno-logic of the I”, Proceedings
XIVth International Congress of Philosophy (Vienna: Herder, 1968), vol. 3, 260-66; and “On
the Logic of attributions of self-knowledge to others”, The Journal of Philosophy 65 (1968):
439-56.
Para uma consciência clara do problema da cópula em oratio obliqua, quando se introduzem
os assim chamados conceitos individuais como os referentes de descrições definidas em
oratio obliqua, veja-se W. Sellars, “Some problems about belief”, em D. Davidson and J.
Hintikka (eds.) Words and objections: Essays on the work of W. V. O. Quine (Dordrecht: D.
Reidel, 1969), p. 193.
118
2.17. Proposições existenciais negativas
A presente concepção ontológica, por tratar a existência
como uma relação externa aos particulares concretos, fornece
uma solução simples para o problema das proposições
existenciais negativas. Nesta concepção, uma descrição definida
não tem um significado diferente, em sentenças atribuindo uma
forma ou cor para a entidade que ela refere, do significado que ela
tem em sentenças negando a existência de tal entidade. Assim,
considere:
(17) O homem mais alto de Brasília gosta de morangos.
E
(18) O homem mais alto de Brasília não existe.
Em ambos os casos a descrição definida 'O homem mais
alto de Brasília' refere-se a uma e a mesma entidade, a saber, o
óbvio: o homem mais alto de Brasília, quer ele exista ou não. As
duas sentenças são, em seu sentido mais natural, parcialmente
analisáveis assim:
(17a) C*(o homem mais alto de Brasília, o homem mais alto de
Brasília[gostar de morangos])
(18a) Não é o caso que C*(o homem mais alto de Brasília, o homem
mais alto de Brasília).
Portanto, a presente concepção mantém a concretude dos
indivíduos ordinários e mantém a unidade de pensamento e fala
sobre existência: a negação e a afirmação de existência são ambas
sobre a mesma entidade.
2.18. Generalização singular
Na presente teoria pode-se generalizar a partir de
indivíduos, quer eles ocorram em proposições sobre estados
psicológicos ou não. Assim,
119
(19) Anthony acredita que o espião mais velho é um espião
implica a proposição generalizada singularmente
(20)
Há [não, obviamente, existe no sentido de autoconsubstanciação] um indivíduo concreto x tal que Anthony
acredita que x é o espião mais velho.
Tanto (19) como (20) são sentenças ambíguas, dependendo
se o “é” predicando a propriedade de ser espião é pensado no
sentido de cópula meinongiana primária, ou no sentido de
consubstanciação. Mas, esta ambiguidade não afeta a validade da
passagem de (19) para (20), supondo que a mesma cópula é usada
em ambos os casos.
Sleigh e Kaplan objetaram ambos contra uma passagem de
(19) e
(21) O espião mais velho existe.
para
(22) (∃x) (Anthony acredita que x é um espião).
Aqui o quantificador (∃x) é um quantificador singular
existencial.1
Na presente teoria a intuição original de Quine de que
(19) e (21) implicam (22) é restituída. E esta implicação vale,
não obstante a cópula expressa pelo “é” antes de “um espião”.
Logo, a implicação de (22) por (19) e (21) envolve dois casos:
(I) (19a) e (21) implicam (22a):
(19a) Anthony acredita que o espião mais velho (ser um espião)
(21) C*(o mais velho espião, o mais velho espião)
(22a) Há um indivíduo x tal que: C*(x,x) e Anthony acredita que x
[ser um espião]).
1
Veja-se Robert C. Sleigh, “On quantifying into epistemic contexts”, Noûs 1 (1967): 28; e
David Kaplan, “Quantifying In”, em D. Davidson and J. Hintikka (eds.) Words and
objections: Essays on the work of W. V. O. Quine (Dordrecht: D. Reidel, 1969), p. 220. Veja-se
também W. V. O. Quine, “Reply to Sellars”, ibid, pp. 337Ss, e Quine, “Reply to Kaplan”, ibid,
pp. 341ss. Nestas réplicas Quine aceita a alegação de invalidade feitas por Sleigh e Kaplan.
120
(II) (19a) e (21) implicam (22b):
(19b) Anthony acredita que C*(o espião mais velho, o espião mais
velho [ser um espião])
(22b) Há um indivíduo x tal que: C*(x,x) e Anthony acredita que
C*(x,x[ser um espião]).
Como ficam então os argumentos de Sleigh e Kaplan? Por
uma coisa, os seus argumentos parecem ser montados em termos
de quantificadores que tem como valores estranhas entidades que
parecem ser um cruzamento entre indivíduos leibnizianos e
conjuntos de indivíduos auto-consubstanciados. Eles iriam os
denominar provavelmente “indivíduos ordinários”. Mas, o leitor
das seções precedentes irá sem dúvida achá-los misteriosos. Não
é fácil determinar qual é exatamente a sua constituição interna.
Por outra, Sleigh e Kaplan parecem pensar que quantificar em
contextos psicológicos deve atribuir aos sujeitos capacidades
especiais de identificação. Esta ideia foi promovida em uma base
ampla por Hintikka, com efeito, esta ideia é uma das mais
fundamentais subjacentes a seu sistema de lógica epistêmica e
doxocástica em seu Knowledge and Belief,1 bem como em seus
escritos posteriores nesse tópico. Hintikka argumentou com força
que a lógica da quantificação em contextos epistêmicos é
precisamente a lógica do conhecer-quem. Todavia, parece-me que
se deve resistir a esta ideia. Naturalmente, esta ideia tem um
importante grão de verdade em sua base. Este grão de verdade é
isto: há uma diferença crucial de sentido entre
(23) Anthony acredita que existe alguém que é um espião
e
(24) Existe alguém que Anthony acredita ser um espião.
Como Quine diz, (24) veicula
que não é veiculada por (23). Mas,
diferença gritante em informação
indeterminação de (23) e a
1
certa “informação urgente”
qual é esta informação? A
entre (23) e (24) é a
determinidade de (24).
J. Hintikka, Knowledge and Belief (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1962).
121
Evidentemente, (23) atribui a Anthony uma crença sobre ninguém
em particular, enquanto que (24) atribui a ele uma crença sobre
uma pessoa particular. Fica-se tentado a tornar o significado de
(23) e (24) mais explícito em desenvolvendo-as como segue:
(23a) Anthony acredita que existe alguém, seja ele quem for, que é
um espião
(24a) Existe alguém, a saber ..., que Anthony acredita ser um espião.
A frase “seja ele quem for” em (23a) sugere que de acordo
com (23a) Anthony não precisa ter uma resposta para a questão
“Quem é esta pessoa?”. Por contraste, se é levado a pensar que
(24a) e (24) devem, forçosamente, diferir de (23) e (23a),
requerendo-se que Anthony tenha uma resposta àquela questão.
Se é assim, Anthony deve, então, se (24) é verdadeira, ter algum
modo de identificar o espião em questão.
Eu penso que alguma coisa como esta sedução exerceu o
seu poder. Todavia, eu proponho resistir a ela a qualquer custo.
Eu irei resistir a ela mesmo se a concepção ontológica que eu
venho desenvolvendo não possa ser defendida em última
instância. Sem dúvida, (24) tem algo a ver com identificação.
Mas, não se trata de identificação por Anthony, mas possível
identificação por aquele que assere (24). Note-se que a cláusula 'a
saber' está fora do escopo do operador de crença 'Anthony
acredita que'. Todavia, ainda se pode aduzir, a indeterminação de
(23) que contrasta com a determinidade de (24) tem a ver, não
com o falante, mas com Anthony. Isto é verdade. Mas, este
contraste não é nada senão o seguinte:
(A) Cada proposição normalmente expressável com (24) implica que
há uma proposição verdadeira da forma “Anthony acredita que
 é um espião” para qualquer termo singular substituindo
''.
(B) Nenhuma proposição normalmente expressável com (23) implica
que haja uma proposição da forma “Anthony acredita que  é
um espião” para qualquer termo singular substituindo ''.
122
2.19. Conhecer-quem e identificação do sujeito
Em Inglês nós atribuímos a capacidade de identificar um
indivíduo por meio da locução 'conhecer-quem'. Sem dúvida, esta
locução está conectada com 'conhecimento'. Mas, ela é mais
complicada. Não me parece que conhecer-que pertence ao nível
proposicional e que conhecer-quem ao quantificacional. Parece
evidente que há um nível quantificacional de conhecer-que. Não
há tempo para entrar num exame da concepção que equaciona
quantificação-em com a posse por um sujeito de capacidade de
identificação. Eu vou simplesmente esboçar o que me parece uma
teoria satisfatória de conhecer-quem.
Conhecer-quem requer uma concepção relativizada de
conhecimento-que. Esta é uma relativização a um conjunto de
procedimentos de identificação. Vamos usar a letra 'w' para
representar conjuntos de procedimentos de identificação, e vamos
escrever 'Sabew' para denotar conhecimento-que relativizado a
algum de tais conjuntos w. Então, parte da análise de conhecerquem é isto:
(K.C*) X sabew quem o  é = Há uma propriedade -dade tal que
-dade pertence a w e X sabe que C*(o , o [-dade]).
(K.C*) representa a análise da parte mais empírica e
ordinária do conhecer-quem. Há outras partes e elas podem ser
obtidas de (K.C*) por substituição de 'C*' por um signo de
alguma outra congruência ontológica.
2.20 Entidades ficcionais
Entidades ficcionais tem sido sempre um problema. Eu
costumava pensar que o melhor tratamento delas consistia em
supor que para cada história há um operador intencional, como
Pensa-se que, o qual seria implicitamente enunciado em
enunciados sobre personagens de ficção. Desse modo, por
exemplo, a sentença
123
(25) Don Quijote gozou suas desventuras
é verdadeira e deve, nessa concepção, ser entendida como
abreviação de
(26) Em Don Quijote, Don Quijote gozou suas desventuras.
Em assumindo um operador de história (story) implícito,
pode-se rejeitar, por um lado, a implicação de que existe um
homem que é Don Quijote, e pode-se, por outro, defender que
todas as palavras em (25) tem seu significado ordinário. Este
segundo ponto é importante, porque alguns de nós não querem
aceitar que a verdade de (25), com seu não comprometimento
existencial, requeira que nela 'gozar de suas desventuras' tenha
um significado especial.
Indubitavelmente, há operadores de história, como em (26).
Mas, esta análise de (25) não é suficiente para elucidar
proposições sobre personagens de ficção. Por uma coisa, há
histórias ficcionais sobre pessoas e coisas reais. Por outra, há
enunciados que se referem a personagens através de diferentes
histórias. Por exemplo:
(27) Don Juan tornou-se mais humano e sensível nas obras dos
escritores alemães do que ele era nas peças espanholas sobre ele.
Aqui nós precisamos de um indivíduo, que, embora nãoexistente, seja o sujeito de várias histórias, e que permanece de
algum modo o mesmo enquanto sofre todo o tipo de mudanças.
Nós temos, por conseguinte, no caso de ficção, um problema
análogo ao discutido acima nas seções 1.3-1.5.
A abordagem em termos de operadores de história está,
contudo, correta em explicitar que histórias são criações da
mente, de tal modo que uma história é simplesmente um conjunto
de proposições contempladas por um criador de histórias. Logo, a
conexão entre as proposições que constituem uma história não é
senão a conexão criada pelo pensamento, e a unidade de um
personagem ficcional é, por conseguinte, nada senão a unidade de
124
uma corrente de consociações. Uma vez criada por um autor,
uma corrente de consociações constituidora de um certo
personagem ficcional torna-se disponível para examinação
pública em uma peça escrita ou na memória de um contador de
histórias. Logo, (25) acima, que depende de (26) para sua
verdade, é
(25a) C**(Don Quijote, Don Quijote [gozar suas desventuras]).
Claramente, o original Don Quijote é apenas a corrente de
consociações criada por Miguel de Cervantes, mas ele ganhou
outros elos de consociação em diferentes autores e críticos. Don
Quijote mesmo, como qualquer outro persistente herói fictício,
desenvolve-se ao longo de Don Quijote: entre outras coisas, ele
torna-se mais tolerante e mais sensível a outras dimensões da
natureza humana, além daquelas de ser um inimigo, ser um
amigo, ser objeto de injúria ou proteção. Este desenvolvimento
não pode ser, naturalmente, transubstanciação, mas é algo
semelhante. Nós podemos chamá-lo transconsociação. Este é o
fenômeno descrito em (27) acima.
É importante prestar atenção no fato de que atitudes
proposicionais e atos, quer sejam ou não massivos o suficiente
para constituir a criação de uma história, envolvem consociação
(e
transconsociação),
e
não
consubstanciação
(ou
transubstanciação). Considere (19) e (21) acima outra vez:
(19) Tom acredita que o espião mais velho é um espião;
(21) O espião mais velho existe.
Considere a propriedade de ser tal que Tom acredita que ele
é um espião, isto é, a propriedade Tom acredita que u é um
espião. Indubitavelmente esta propriedade é possuída pelo espião
mais velho. Mas, esta posse não é, obviamente, de predicação
meinongiana. Mas, ela também não é consubstanciação: ela é
consociação. Logo, (19) e (21) falham em implicar, juntos ou
separadas, que C* (o espião mais velho, o espião mais velho
[Tom acredita que u é um espião]). Elas implicam juntas, e (19)
125
por si mesma, que
(28) C**(o espião mais velho, o espião mais velho [Tom acredita
que u é um espião]).
Lembre-se que consociação não é governada pelas leis de
fechamento ou consistência ou transitividade.
3. Propriedades: um vislumbre metafísico
Nós assumimos que propriedades são os blocos de montar
do mundo e da armação de possíveis e impossíveis objetos que o
sustentam. Ao lado dos filósofos com inclinação nominalista, esta
assunção central tem sido questionada por outros filósofos
também pertencentes à tradição abstracionista. Eles pensam que
as propriedades ordinárias são muito concretas, que as
propriedades que nós encontramos no mundo são de fato
complexos de algum componente mais básico do mundo. Eles
podem mesmo adicionar a tese kantianesca de que as
propriedades que nós encontramos são o produto da interação da
mente e da Realidade, e que outras Mentes iriam encontrar, ou
atualmente encontram, análises para as nossas propriedades.
Outros mantêm que não há átomos absolutos, de tal modo que
qualquer “átomo metafísico” que uma criatura possa encontrar,
no seu nível de penetração, outra criatura pode tomá-los como
sendo complexos.
Nós não podemos discutir estas teses aqui. (Nós não
estamos
fazendo metafísica aqui,
apenas
ontologia
fenomenológica.) Mas, nós podemos observar que a estrutura do
mundo desenvolvida na Parte II¥ é compatível com a tese de que
as propriedades assumidas ali são complexos de micro-entidades
metafísicas. Além disso, o mesmo tipo de análise poderia aplicarse à propriedades de tal modo que elas se tornassem conjuntos
especiais de proto-propriedades, e o mesmo para estas. Do
mesmo modo, nossas treliças de consubstanciação e correntes de
¥
N. T. O autor está se referindo à Parte II do Livro Thinking, Language & experience.
126
consociação podem também formar entidades mais complexas.
Portanto, o esquema ontológico da seção 2 deste texto é
compatível com a tese metafísica de que, dado o tipo de mente
que nós temos, nós zeramos em um certo nível de complexidade
metafísica numa hierarquia de ser que é infinita em todas as
direções.
Nós também deixamos em aberto se a estrutura ontológica
desenvolvida acima é uma mera imagem, um modo de imaginar,
que é quando muito um produto derivado estéril e epifenomenal
em meio da interação do exercício humano de sua complexa
capacidade de lançar ruídos uns para os outros. Esta é uma
metafísica nominalista liberal o suficiente para reconhecer o fato
da consciência.
O sistema da Parte II entrelaça as intuições das grandes
figuras históricas mencionadas na Parte I ou na Parte II.
Naturalmente, a assunção fundamental do sistema, a saber, seu
Platonismo, tem sido firmemente questionada ao longo da
história da filosofia por Nominalista e Materialistas (ou
Fisicalistas). Nós não podemos aqui nos engajar num ataque ao
Nominalismo. Esta é uma questão perene, e talvez ela não seja
passível de uma solução total. Talvez, nós estejamos condenados
a ver os dois tipos de natureza metafísica sempre lutando uma
com a outra em uma dialética histórica auto-anulável por meio da
qual clarificações e desenvolvimentos dos dois tipos de
concepção devem acontecer. Talvez, neste caso o progresso
filosófico consista em ver mais claramente e mais de cada uma
das duas principais concepções do mundo.
4. Conclusão
O esquema ontológico exposto na seção 2 deste texto
conforma-se aos dados apresentados na seção 1. Ele soluciona os
enigmas discutidos ali bem como os problemas mencionados na
seção 2 mesma. O leitor pode assegurar-se por si mesmo que isto
127
é assim. [Posteriormente indivíduos concretos foram chamados
perfis individuais.]
128
129
8.
Identidade e igualdade
Hector-Neri Castañeda
“Identity and Sameness”, Philosophia, v5, n1-2 (1975): 121-150.
No entity without identity (W. Quine)
... na medida em que nós lidamos apenas com os assim chamados
contextos extensionais, nós podemos ter a ilusão de que nós
estamos intelectualmente manipulando propriedades neutras (e
particulares). Contudo, tão logo nós nos movemos para o nível do
discurso sobre relações cognitivas e linguísticas, nós precisamos
encarar o fato de que nos encontramos em predicações
parcialmente egocêntricas de propriedades (e particulares).
(“Indicadores e quase-indicadores”).
Como todos sabem, identidade e igualdade são dois dos
mais pervasivos e mais fundamentais aspectos dos objetos do
mundo e mesmo fora do mundo. Sem os conceitos de identidade
e igualdade, uma criatura não pode pensar e não tem, por
conseguinte, nenhum mundo para confrontar. Não espanta, então,
que reflexão na identidade e na igualdade termina, seguida e
rapidamente, em confusão e enigma.
A maioria dos problemas e enigmas que cercam a
identidade e a igualdade foram ultimamente discutidos
abundantemente nos jornais profissionais e em livros. Meu
propósito aqui é tentar resolver estes problemas e enigmas por
130
meio de uma virada copernicana em nossa concepção de
indivíduos e de identidade e igualdade. A abordagem padrão,
ptolomaica, trata a identidade do ponto de vista de uma
consciência senhorial que inspecciona o mundo em sua espantosa
totalidade. Eu proponho, ao contrário, tomar-se tanto a nossa
dependência do mundo como a nossa finitude muito seriamente.
Nós somos criaturas imersas no mundo, em um pequeno canto do
mundo; nós podemos perceber apenas uma pequena seção
transversal desse canto; nós podemos ver apenas aspectos parciais
dos objetos do mundo, e nós podemos vê-los apenas pouco a
pouco, circulando ao redor dos objetos no mundo. (O mundo é o
cerne daquilo que Sellars chama a Imagem Manifesta. Ele é o
fundamento do universo que é o tema de pesquisa da ciência.)
O principal resultado da investigação é a separação da
identidade em relação a outras três relações de igualdade que são
usualmente predicadas de indivíduos pela locução “é o mesmo
que” e “é idêntico a”. Uma vez que não há identidade ou
igualdade sem as correspondentes entidades, a destilação dos
membros da família da identidade nos leva a algumas distinções e
teses ontológicas básicas. Estas são discutidas em detalhe em
“Thinking and the Structure of the World”.1 Assim, o presente
artigo é uma introdução a este ensaio.2
I. Identidade
Identidade é a relação reflexiva par excellence, e esta é a
fonte do primeiro enigma que ela cria. 3 A identidade exaure-se na
sua reflexividade. Identidade não é realmente senão autoidentidade.4 Isto é espantoso. Pois, enquanto a fala acerca da
identidade, sem qualificações, soa instingante, a fala acerca de
1
2
3
4
H.-N. Castañeda, “Thinking and the Structure of the World”, Philosophia, 4, 1974, 3-40.
Outra introdução ao “Thinking and the Structure of the World”, do entreponto do problema da
individuação, é “Individuation and Non-Identity: A new look”, American Philosophical
Quarterly (forhtcoming). Haverá outras introduções. “Existence” será apresentado no
encontro do Grupo de Discussão de Ontologia, em 24 de abril de 1975.
Cf. para isso a primeira página do “Sobre o sentido e a referência” de Frege.
Para modificar uma frase de meu amigo Donald Nute.
131
auto-identidade é inevitavelmente enfadonha e banal. Porém, eu
não vou adentrar-me nesse enigma. Ele receberá sua clarificação
no devido tempo. Aqui nós devemos começar com a importante e
crucial verdade acerca da identidade. Esta é a assim chamada Lei
de Leibniz da indiscernibilidade dos idênticos, a saber:
(LL) Se x é idêntico a y, então, tudo o que é verdadeiro de x é
verdadeiro de y e tudo o que é verdadeiro de y é verdadeiro de x.
A maioria das dificuldades ou enigmas acerca da identidade
tem a ver com (LL). Acontece que pode haver casos em que um
objeto ordinário x seja naturalmente tido como idêntico a um
objeto ordinário y e ainda assim parece que algo verdadeiro de x
não é verdadeiro de y. Tais casos são referidos seguidamente
como situações descritas em contextos intensionais. É importante,
contudo, manter em mente que a Lei de Leibniz acima, isto é,
(LL) acima, não é um princípio de substituição de expressões por
outras expressões em contextos sentenciais ou frasais: ela é uma
lei sobre entidade e suas propriedades, e se o-que-é-verdadeiro de
uma entidade não necessita ser uma propriedade, (LL) é também
sobre estruturas de características de entidades não-linguísticas e
não-propriedade.
Desde que os fenômenos mentais são filosoficamente mais
intrigantes, o mais importante tipo de contexto intensional é
aquele ilustrado por proposições mentais (ou sentenças, se você
quiser). Estas são as proposições (ou sentenças) cruciais que
melhor revelam a necessidade de nossa virada copernicana.
Então, para focalizar nossa atenção, considere um caso simples de
crença, tal como apresentado por Sófocles em sua Édipo Rei:
(1) Antes da peste Édipo acreditava que o Rei de Tebas
estava morto.
(2) O rei de Tebas e o pai de Édipo eram o mesmo.
Então,
(3) Antes da peste Édipo acreditava que o pai de Édipo 1
1
Eu coloco aqui 'Édipo' ao invés de 'seu (próprio)', porque as sentenças 'Édipo acreditava que o
132
estava morto.
Além disso,
(4) Não é o caso que antes da peste Édipo acreditava que
o pai de Édipo5 estava morto.
Como se sabe, certamente desde Frege, se a igualdade de
(2) é a identidade estrita, então, por (LL), tudo o que é verdadeiro
do rei de Tebas é também verdadeiro do pai de Édipo. Por (1),
parece ser verdadeiro do rei de Tebas que antes da peste Édipo
acreditava que ele estava morto; logo, isto deveria ser verdadeiro
do pai de Édipo; isto parece ser o que (3) diz. Mas, (3) conflita
com a verdade crucial de (4) em Édipo Rei. Este conflito é parte
da opacidade referencial, como Quine a chama, dos contextos de
crença.
Há três tipos de solução formal para este enigma: (a) tomar
os contextos referencialmente opacos como criando exceções à
Lei de Leibniz; (b) assumir que sentenças incompletas como
“Édipo acreditava que ____ estava morto” não expressam
propriedades, ou algo verdadeiro, de entidades referidas por meio
de expressões que ocupam a posição “___”; (c) adotar o ponto de
vista de que (2) é falsa, de tal modo que o rei de Tebas não seja
realmente idêntico ao pai de Édipo. Em qualquer caso nós
devemos desenvolver uma abordagem ou teoria geral.
A solução (a) não é realmente uma solução para o problema
representado por (1)-(4), a menos que as condições para a
limitação de (LL) sejam completamente especificadas. E esta é
para mim a verdadeira dificuldade desta abordagem. A identidade
é caracterizada pela Lei de Leibniz. Então, adotar o curso (a)
equivale a dizer que as locuções “é idêntico com” e “é igual a”,
pai de Édipo estava morto' e 'Édipo acreditava que seu (próprio) pai estava morto' expressam
em seu sentido normal diferentes proposições. Razões para esta contenção veja-se “On the
Phenomeno-logic of the I”, Proceedings of the XIVth International Congress of Philosophy,
(1968), vol. III: 260-266; “On the Attributions of Self-Knowledge to Others”, The Journal of
Philosophy, 65 (1968): 439-456; “Indicators and Quasi-Indicators”, American Philosophical
Quarterly, 4 (1967): 85-100; e “He': A study in the Logic of self-consciousness”, Ratio,
8(1968): 130-157.
133
bem como qualquer outra que pareceria expressar identidade,
realmente não expressam identidade. Assim, a alternativa (a)
colapsa em uma versão da alternativa (c), com a decisão
terminológica de continuar a usar as palavras “identidade” e “é
idêntico com” -- mas referindo-se agora a alguma relação
diferente da identidade. Claramente uma teoria de uma tal relação
deve ser desenvolvida. Mas, há a ameaça de um sério problema.
Há a ameaça de ao alijar a Lei de Leibniz se alije junto a
identidade. Uma vez que não há entidade sem a sua identidade,
alijar a identidade implica em alijar o mundo com todos os seus
objetos. Então, me parece, qualquer teoria relevante que
desenvolva a alternativa (a) terá que reinstituir a identidade e com
a ela a Lei de Leibniz. Qualquer de tais teorias relevantes, então,
seria uma teoria que iria acabar por ser uma teoria que desenvolve
a alternativa (c).
A alternativa (b) parece mais promissora. Ela cria o sério
problema de explanar o que uma propriedade é e como sentenças
incompletas as expressam. Mas, estes problemas aparecem para
toda concepção em todo caso. O que necessita uma abordagem
cuidadosa é a situação específica. Édipo tem um estado de crença
cujo “conteúdo” é uma proposição, ou um estado de coisas, que
envolve seu pai, mas sob (b) este pai não pode ser parte ou
parcela daquela proposição ou estado de coisas, nem pode ser ele
envolvido na crença de Édipo acerca dele! Isto sugere que o
estado de crença não conecta com entidades acerca de que são as
crenças – ao menos não em um modo direto e originalmente
natural. Esta não é certamente uma objeção a alternativa (b), a
menos que nós queiramos logo de início algum “contato” direto
entre crer e seus objetos, ou algum envolvimento do último com o
primeiro. Mas, isto é uma barreira séria.
A alternativa (c) considera o rei de Tebas anterior a Édipo
como uma entidade diferente de o pai de Édipo. Claramente,
então, estas duas entidades não podem ser objeto ordinário dotado
com muitas e infinitas propriedades, especialmente relações, que
134
nós seguidamente referimos, ou aludimos, ou assim pensamos,
quando nós usamos locuções “O rei de Tebas anterior a Édipo” e
“O pai de Édipo”. Nós podemos dizer que o rei de Tebas anterior
a Édipo, que é diferente de o pai de Édipo, e este, também, são
diferentes perfis (guises)¥ do objeto ordinário que nós
normalmente temos em mente. Eles são diferentes possíveis
“aparências” de um e o mesmo particular – onde “aparência” não
significa aparência visual, mas apresentação à mente, seja à
sensibilidade seja ao intelecto. Esta é uma solução ao enigma de
Frege sobre (1) – (4). Os dois perfis o pai de Édipo e o rei de
Tebas anterior a Édipo são diferentes, e seja lá o que for que
Édipo faça, ele não pode sair de seu embaraço: sempre que ele
pensa no objeto ordinário que nós estamos discutindo, ele apenas
o pode fazer em tendo diante de sua mente uma “aparência”, um
perfil daquele objeto. Desse modo, quando nós consideramos o
estado mental de alguém, que envolve o pensamento, nós estamos
ipso facto considerando um sistema de perfis. Os estados mentais
cognitivos são, pois, prismas metafísicos que refractam objetos
ordinários em espectros de perfis ontológicos.
A abordagem precedente que desenvolve a alternativa (c) é
essencialmente de Frege. Algo como o que eu denominei perfis
(ontológicos) ele chamou sentidos. Mas, ele não esclareceu a
conexão entre um objeto ordinário e um correspondente conjunto
de sentidos. Eu proponho desenvolver mais a alternativa (c).
Uma mente, então, uma mente finita não pode encontrar,
em conexão com cada objeto ordinário, a não ser um sistema de
perfis. Agora nós temos uma escolha teorética. Nós podemos
postular os perfis como intermediários entre uma mente e os
objetos ordinários. Ou nós podemos, ansiosos por não separar a
conexão direta entre a mente e seu mundo, construir objetos
ordinários como sistemas de perfis com os quais nós em cada
caso temos de lidar. Frege, parece, adotou a visão intermediária;
¥
N. T. A palavra inglesa “guise” pode ser traduzida literalmente pela palavra “guisa” do
vernáculo. Todavia, optei pela palavra “perfil” tendo em vista o conceito que Castañeda está
instaurando e também o fato de “guisa” estar em franco desuso.
135
eu proponho desenvolver e explorar a não-intermediária, a visão
realista. Esta é uma espécie de tipo generalizado de
fenomenalismo não-só-dados-dos-sentidos.
A visão intermediária tem um dualismo que eu acho
embaraçoso em razão de sua arrogância ptolomaica. Nessa visão
uma expressão referencial singular como “o pai de Édipo” refere
quando eu a utilizo in oratio recta a um objeto ordinário
infinitamente dotado de muitas propriedades; mas, quando eu a
uso in oratio obliqua ela refere a um sentido, o qual alguém mais
tem, ou pode ter, em mente ou diante de sua mente. Para ilustrar,
considere meu proferimento de
(5) O pai de Édipo morreu, mas Jocasta pensa que o pai
de Édipo está vivo.
A primeira ocorrência de “O pai de Édipo” expressa, na
visão intermediária, o meu pensamento de um certo objeto
ordinário real, enquanto a segunda expressa o sentido que Jocasta
tem diante de sua mente. Mas, seguramente eu não sou melhor do
que Jocasta é em questões de visão. Minha atribuição de
pensamento a ela torna transparente que ela lida com sentidos, ou
perfis, eu deveria dizer (desde que eu agora estou me movendo
em direção da visão realista). Mas eu também lido com perfis –
Eu “revolvo” em torno de perfis. A visão fregeana dá à parte da
oratio recta uma posição olímpica ou ptolomaica. Entretanto, o
fato é que eu sou um self finito e empírico em meio a um vasto
mundo, e eu tenho que tatear nele o meu caminho do mesmo
modo que os demais que eu encontro nesse mundo. Parece que
uma compreensão correta da estrutura ontológica do mundo em
que nós mesmos nos encontramos é alcançada ao envolvermo-nos
na humildade copernicana de tratar nossas referências em oratio
recta como referências, também, a perfis (guise), desse modo
restaurando a unidade de oratio obliqua e oratio recta.
A minha virada copernicana na concepção de indivíduos,
envolve, então, dois passos: Primeiro, eu reconheço com Frege
que a atribuição de atos de pensamento ou estados de crença a
136
outros (i.é., mentes finitas) envolve situar tais outros no sério
emaranhado de perfis; isto é, os seus atos proposicionais e
atitudes lidam diretamente e primariamente com perfis, os quais
são assumidos como conjuntamente pertencentes a algum
indivíduo complexo inalcançável in toto. Segundo, eu reconheço
que eu mesmo sou parte da comunidade de mentes finitas e estou,
por conseguinte, inescapavelmente no centro do mesmo
emaranhado de perfis. Nós lidamos com perfis ontológicos
diretamente e assumimos que eles pertencem juntos a um
indivíduo complexo que nós assumimos ser um tipo de limite
assintótico de nossos esforços epistêmicos. Nossos enunciados
em oratio recta são o que eles parecem ser: enunciados sobre
perfis, mas, subjazendo a eles está a nossa tácita suposição de que
eles são elementos em estruturas assintóticas. Então, estas
estruturas são referidas secundariamente quando nós referimos
primariamente a perfis que nós tomamos como existentes. Porém,
isto é também verdadeiro dos outros, e nós lhes atribuímos
também esta referência secundária. Nossos enunciados em oratio
recta estão, por assim dizer, para levar a idéia de Frege um pouco
adiante, apenas aparentemente fora do escopo de um prefixo
psicológico. Eles estão implicitamente embutidos no escopo da
oratio obliqua de um Eu penso (como Kant já notara antes, em
1781). Nossas referências em oratio recta são, então, realmente
referência em oratio obliqua e, portanto, mesmo em uma
concepção como a de Frege, elas referem a sentidos e não àqueles
indivíduos infinitamente multidotados de propriedades que são
em sua concepção as referências denotadas em oratio recta.
Ontologicamente falando, não há oratio recta genuína. Então,
meus perfis estão, grosseiramente, como os sentidos primários de
Frege, sob um escopo de subordinação implícita à representação
Eu penso de Kant. Este Eu é um eu empírico finito, não um
infinito e transcendente intellectus agens cujo eu penso é
redundante, isto é, para quem há referência em oratio recta
genuína. Ele é transcendental, tendo em vista que a despeito de
137
quantos Eu penso alguém é consciente na corrente da autoconsciência, a última ou mais abrangente consciência tem a
unidade de um Eu penso que permanece fora da corrente em
questão.
Em suma, a abordagem do tipo (c) proposta aqui como uma
solução para o enigma de Frege, ilustrado em (1)-(4) acima,
contém as seguintes teses:
1. Os indivíduos com infinitas propriedades que nós
assumimos como sendo membros, elementos ou
componentes diretos do mundo, a partir de agora
denominados objetos do mundo, são compostos de
infinitamente muitos indivíduos finitos, denominados aqui
perfis ontológicos.
2. Perfis são as unidades de individuação utilizáveis por
mentes (finitas): eles são os objetos primários de
referência e, portanto, de percepção e crença.
3. Perfis são exatamente o que as expressões referenciais
da forma “O F” referem, ou seja, “O homem próximo a
porta (no momento)”, “A Rainha da Inglaterra em 1973”.
4. Os objetos do mundo são objetos secundários de
referência; quando alguém pensa em tal-e-tal tomando-o
como existente, primariamente ele refere ao tal-e-tal
(perfil) e secundariamente à postulada estrutura infinita de
perfis que supostamente inclui (contém ou envolve) o tale-tal. (Isto é uma inversão de Frege, e tem a consequência
de extirpar a sua hierarquia infinita de sentidos; então,
aqui está uma razão, entre outras, de porque os seus
sentidos não são a mesma coisa que meus perfis
ontológicos. Veja-se também a parte IV abaixo.
138
5. Expressões referenciais da forma “O F” têm a mesma
referência tanto em oratio recta como em oratia obliqua.
6. Construções em oratio recta são construções
implicitamente subordinadas a um “Eu penso aqui e
agora”.
7. Nós referimos explicitamente a objetos do mundo por
meio de quantificadores.
8. Os termos referenciais singulares da forma “O F” não
são analisáveis, como proposto por Bertrand Russell,
como sentenças incompletas “Há apenas um F e ele
(é ...)”. As razões principais são: (i) o termo refere
primariamente a um perfil, enquanto que a sentença não
refere a ele absolutamente; (ii) o termo tem referência
secundária, implícita, a um objeto do mundo, enquanto
que a sentença tem uma referência explícita a um tal
objeto.
9. Nosso conhecimento empírico é conhecimento das
conexões entre perfis ontológicos, e ele é guiado pela
postulação de objetos do mundo como assintotas.
10. A identidade, naturalmente, é como sempre
exaustivamente e totalmente reflexiva e consiste na assim
chamada Lei de Leibniz.
II Um argumento de Quine
Perfis ontológicos são entidades intensionais. Eles são as
unidades de individualidade envolvidas no lidar consciente de
uma mente finita com particulares. Eles são as unidades tanto da
identidade de indivíduos atuais como de identidades de crenças.
Eles mantêm intacta a força da Lei de Leibniz. Algo muito
139
semelhante aos perfis ontológicos foi discutido por Quine, com o
propósito de descredenciá-lo. Ele formulou um argumento
premente para mostrar que a introdução de entidades intensionais
não resolve o problema da substitutividade de identidade, ou o
problema da quantificação, em contextos modais ou de crença. 1
Incumbe a nós, então, parar e considerar a relação desse
argumento com nossos perfis ontológicos.
Vamos aplicar o argumento de Quine no nosso exemplo. Do
Édipo Rei de Sófocles nós temos:
(1) Antes da peste Édipo acreditava que o rei anterior de
Tebas estava morto.
(4) Não é o caso que antes da peste Édipo acreditava que
o pai de Édipo estava morto.
Nós tomamos (1) e (4) para estabelecer que:
(2') (Perfil) o anterior rei de Tebas ≠ (Perfil) o pai de
Édipo.
Agora, aplicando o seu argumento geral, Quine iria
interpelar-nos para considerar algum termo tal como:
(T) O único perfil individual x tal que x é idêntico ao pai
de Édipo e que é o caso que a axiomatização do cálculo
proposicional de Whitehead-Russell é completo.
Claramente, Édipo não sabia nada sobre provas de
completude. Logo, Édipo não poderia acreditar, nem acreditou
que o perfil (T) refere ao (perfil) pai de Édipo. E este perfil é
aquilo, obviamente de acordo com Quine, que (T) refere. Logo,
Quine concluiria, a identidade entre (os perfis) o pai de Édipo e
(o perfil) (T) não era uma crença de Édipo, e nós voltamos outra
vez ao ponto inicial, a saber, com uma identidade que não permite
a substituição de idênticos.
Este é um argumento poderoso. Considere-se a expressão
que (T) representa. Realmente parece que ela apenas pode referir1
Veja-se, e.g., W. V. O. Quine, From a Logical Point of View (New York: Harper and Row
Publishers, 1963), pp. 152s.
140
se ao pai de Édipo, uma vez que a axiomatização do cálculo
proposicional de Whitehead-Russell é de fato completa. O cálculo
básico de quantificação com descrições definidas tem como um
teorema a fórmula “p → x = ιy (y = x & p)”, que é em geral lida
como “Se p, então, x = a única coisa que é idêntica com x e é o
caso que p.” Quine está simplesmente aplicando este teorema
para perfis e outras entidades intensionais. Agora, o
intensionalista rejeita este teorema, se “=” significa identidade
genuína: embora o teorema possa ainda valer para uma relação de
congruência mais fraca.6a O intensionalista alega que aquele
teorema entra em conflito com a Lei de Leibniz quando se trata
de proposições psicológicas. Logo, o uso de Quine desse teorema
não o impressiona: trata-se de novo da mesma posição objetada.
O intensionalista inteiramente consistente apenas irá repetir o seu
movimento original acerca do pai de Édipo e o rei anterior de
Tebas. Claro, como Quine diria:
(4) Não é o caso que Édipo acreditava que (T) era seu
pai.
Mas, certamente,
(a) Édipo acreditava que o pai de Édipo era seu pai.
O intensionalista tem que, por consistência, repetir este
movimento quando confrontado com o argumento de Quine.
Então, o argumento de Quine não mostra que o intensionalista
está envolvido em uma contradição, ou em um projeto autosolapador. A força do argumento de Quine não está no que ele
diz, mas na exposição da necessidade de uma elucidação
profunda da noção de perfil ontológico. Pois, a iteração do
intensionalista de seu movimento não pode ser a solução do
problema. Ele tem que providenciar uma abordagem dos perfis e
da predicação para produzir uma elucidação do seu movimento.
Tal abordagem eu a desenvolvi em “O pensamento e a estrutura
6a A relação de congruência que Russell e Quine tinham em mente é consubstanciação, a qual é
discutida em IV.3. Veja-se, para a discussão de “=” e a análise das descrições definidas de
Russell, “Existence” mencionado na nota 2 acima.
141
do mundo”. A abordagem envolve dois tipos de predicação:
predicação interna e externa. As relações de identidade e de
igualdade discutidas nesse artigo são todas instâncias de
predicação externa.
III Algumas dificuldades para os perfis ontológicos
Nós vimos como o enigma de Frege sobre as crenças de
Édipo concernentes ao pai de Édipo e o seu predecessor como rei
de Tebas recebe uma solução ao se tomar as entidades que são
objeto das crenças de Édipo, acima reportadas, como sendo
diferentes. Eles são perfis, nós dissemos, de uma entidade
complexa a que as crenças de Édipo referem de um modo
secundário. A solução nesse estágio é apenas local, embora o
problema da estrutura de crença e pensamento seja em si mesmo
um problema difícil. Não obstante isso, se há outras motivações
para a adoção dos perfis ontológicos, então a solução acima para
o enigma de Frege sobre as crenças ganharia em importância. Ela
não seria uma mera solução ad hoc, mas uma que mostraria uma
unidade interna sob um certo modo de ver o mundo. Este é o
caso. Há outras pressões para o reconhecimento dos perfis
ontológicos e seu papel crucial. Eu proponho discutir algumas
delas rapidamente nesta seção do artigo.
1. Identidade contingente. Considere a alegação feita pelo
proferimento do enunciado precedente de “identidade”:
(2) O rei de Tebas anterior a Édipo era o mesmo que o pai
de Édipo.
Se (2) é uma alegação, i.é., um registro informativo, ele diz
algo que de início não é reconhecido como verdadeiro. Nós
podemos estar pensando no rei de Tebas que precedeu Édipo, e
nós podemos estar pensando no pai de Édipo. Nós podemos
brincar com a ideia de que eles podem ser o mesmo e examinar
esta ideia sem tomar (2) por verdadeira. Entretanto, se pensar no
142
pai de Édipo é pensar em um indivíduo infinitamente dotado de
propriedades por completo, por assim dizer, então, se a igualdade
em questão é a identidade genuína, seria factível ver a infinita
verdade de (2). Parece, então, que quando nós pensamos (2) nós
pensamos primariamente no perfil finito o rei de Tebas que
precedeu Édipo, e apenas derivativamente, no indivíduo
infinitamente dotado de propriedades que de algum modo
envolve este perfil. E nós, também, do mesmo modo pensamos
primariamente o perfil o pai de Édipo e secundariamente, com o
fundo de nossa mente, por assim dizer, pensamos naquele
misterioso objeto que subjaz atrás de seus perfis. Grosseiramente,
então, o que a verdade da proposição expressa pela sentença (2)
importa é a verdade de que os dois perfis mencionados
pertencem, de modo apropriado, ao objeto infinitamente dotado
de propriedades que é referido apenas de modo secundário.
O precedente provê a racional e a correção para a descrição
de Quine da situação:
Efetivamente os enunciados de identidade que são verdadeiros e
não vazios (i.é., contingentes) consistem de (i.é., são expressos por
sentenças compostas de) termos singulares diferentes que referem
(secundariamente, eu acrescentaria) a mesma coisa.1
Claro, não é a presença física de diferentes termos
singulares que importa. A informatividade do enunciado consiste
em equacionar dois diferentes itens para o pensamento – mesmo
se as duas ocorrências do termo singular sejam fisicamente
indistinguíveis – exceto na posição espaço-temporal. Enunciados
(ou proposições) são unidades de informação: então, um
enunciado não-vazio é toto coelo diferente de um que seja vazio.
A análise ontológica precedente da proposição (2) é muito
semelhante a de Frege. A diferença está em que os nossos perfis
ontológicos não são exatamente os seus sentidos individuais. O
ponto que eu estou enfatizando é que mesmo que a sentença (2)
esteja em oratio recta, a análise ontológica da proposição que ela
1
W. V. O. Quine, Word and Object (Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1960), p. 117.
143
expressa a toma em oratio obliqua. A sentença (2) está em oratio
recta apenas porque ela está subordinada a um “eu penso”
implícito¥. O comentário no parágrafo precedente foi
precisamente a discussão desse “eu penso”. Agora, uma vez que
se perceba que a oratio recta é apenas um caso especial de oratio
obliqua, nós ganhamos tanto a unidade das duas construções
quanto aceitamos o impacto de nosso embaraço copernicano.
Em suma, por conseguinte, a perplexidade da
informatividade que se encontra em enunciados sobre identidades
contingentes é simplesmente o resultado do caráter implícito da
obliquidade da oratio recta. Uma vez que esta obliquidade seja
explicitada, então, nós podemos ver que nós estamos lidando
primariamente com perfis ontológicos e secundariamente com
objetos infinitamente dotados de propriedades. Percebe-se
também que a assim chamada identidade contingente não é a
estrita ou identidade genuína.
2. O “é” de composição. Considere:
(6) A bola de gude azul na caixa é idêntica à peça de
vidro azul na caixa.
Um pouco de reflexão revela que a bola de gude, com a
qual Johnny brinca e o vidro com o qual ele brinca ao mesmo
tempo, em um ato de brincar perceptualmente indistinguível, são
realmente entidades diferentes. Isto é, eles não são idênticos
genuinamente, no sentido fundamental de identidade em que a
identidade é caracterizada pela Lei de Leibniz. Ao menos por uma
coisa, a bola de gude pode ser destruída ao ser derretida em uma
chama muito quente, enquanto que o vidro permanece incólume
exceto por perder sua forma. Alguns filósofos aceitam que a bola
de gude e a peça de vidro são genuinamente entidades diferentes.
Mas, outros estão inclinados, segundo uma certa tradição
aristotélica, a tratar o vidro como particular e o resto como
¥
N. T.: Esta frase certamente está errada. Ela deveria dizer que a sentença (2) está em “oratio
obliqua”.
144
propriedades: ser uma bola de gude, ser usada em jogos por
Johnny, etc.
Em outras situações, contudo, alguns filósofos estão mais
inclinados a distinguir o indivíduo que é a peça de vidro, seja
esférica ou não, de outros indivíduos. Considere, por exemplo:
(7) A peça de vidro que é a bola de gude azul de Johnny
era no ano passado a menor estátua de Sócrates.
Neste caso, a menor estátua de Sócrates do ano passado
parece ser não apenas uma propriedade de uma peça de vidro,
mas um particular legítimo. Ela tem certamente uma grande
independência em relação a, e de algum modo mais estabilidade
do que, a peça de vidro mesma. De fato (de acordo com a história
que eu estou recontando), seis meses atrás aquela estátua perdeu
um braço, que foi inteiramente estilhaçado ao cair no chão; os
cacos de vidro foram perdidos e outro braço, feito de um vidro
diferente, foi anexado à estátua que, em todos os momentos,
permaneceu a menor estátua de Sócrates. A estátua perdeu outras
partes sucessivamente e, finalmente, somente neste ano a menor
estátua de Sócrates e o vidro que é a bola de gude de Johnny
foram separados completamente um do outro. Por causa dessa
interessante história, alguns filósofos falam da sentença (7) como
tendo o “é” (“era”) de composição ou de consistência. Esta é uma
boa terminologia até um certo ponto. Ela sugere uma concepção
de acordo com a qual a menor estátua de Sócrates do ano passado
é um particular mais importante ou básico do que a peça de vidro
na qual ela está incorporada. Pois, claramente, a relação consistir
de e sua conversa compor não são simétricas. A peça de vidro
compôs por um momento no ano passado a menor estátua de
Sócrates, e a estátua consistia da peça de vidro, mas não viceversa.1
1
David Wiggins em sua bela e estimulante monografia Identity and Spatio-temporal Continuity
(Oxford: Basil Blackwell, 1967), fala do “é” constitutivo que aparece em sentenças como
'John Doe é uma certa coleção de células' e 'O Cornish Riviera Express é uma certa coleção de
vagões e locomotiva'. Eu suponho que a relação de constituição que ele tem em mente é
assimétrica. Eu aceito as razões de Wiggins para distinguir o “é” de composição do “é” de
identidade. Elas depreendem-se de sua aderência direta a lei de Leibniz como caracterizando
145
Presumivelmente, as duas entidades, a menor estátua de
Sócrates do ano passado e a peça de vidro que é a bola de gude de
Johnny não estão relacionadas apenas nesta relação assimétrica
agora discutida, mas elas são elas mesmas entidades infinitas, isto
é, entidades que possuem uma infinidade de propriedades,
algumas das quais são ocasionalmente conhecidas por nós. Então,
estes dois particulares relacionados por composição não são
perfis ontológicos tal como estes foram caracterizados na Parte I
acima. Estas duas entidades que estão relacionadas por
composição parecem-me misteriosas e instáveis. Isto é assim,
novamente, por causa de seu caráter inexaurível, de tal modo que
contextos de crença e de pensamento terão que quebrá-los em
seus próprios perfis ontológicos. Entretanto, é esclarecedor
demorar-se neles independentemente de como eles são afetados
pelo pensamento.
Ambas, a peça de vidro que compunha o ano passado a
menor estátua de Sócrates e a estátua ela mesma, são objetos
materiais? A peça de vidro parece ser claramente um objeto
físico, material. Por outro lado, a nossa inclinação primária a
pensar que a estátua também é um objeto material tem que ser
testada, uma vez que nós assumimos que ela não é genuinamente
idêntica com o material que a compõe. Uma vez que esta
distinção é feita parece que se retirou o aspecto material da
estátua. A estátua parece ser uma estrutura geral que pode ser
incorporada em diferentes materiais. Seguramente, que se quer
distinguir a estátua do mero padrão geométrico abstrato que é
também de certo modo parte dela, e esta distinção pode ser feita,
entre outras coisas, em se insistindo que a estátua, como um
particular, tem que ter uma incorporação, enquanto que a sua
forma geométrica é, entretanto, uma entidade abstrata cuja
incorporação não é crucial, ou não crucial do mesmo modo.
Então, pode-se dizer que a estátua é um objeto material na
medida em que ela somente pode existir em seu presente pedaço
identidade.
146
de vidro ou em algum outro material. Mas, dizer isto é dizer que
ela é material em um sentido derivado com respeito ao modo em
que o vidro que a compõe é material. Não há dificuldade
nenhuma aí. Os problemas estão na especificação da diferença
entre o modo como várias coisas são materiais, e o modo como a
estátua difere da forma geométrica, etc.. Até que isso seja feito,
nós temos algum mistério acerca das entidades que entram na
relação de composição.
Entidades relacionadas por composição são instáveis, eu
disse. Eu queria dizer que nós temos que distinguir outras
entidades em composição. Obviamente, o inteiro objeto ordinário
que é o compósito da convergência da menor estátua de Sócrates
do ano passado e da peça de vidro que era a bola de gude azul de
Johnny não é a mera composição desses dois particulares. O
mesmo princípio que levou à “descoberta” de que estavam
escondidas naquele objeto duas entidades relacionadas por
composição leva a “descobertas” similares. Considere, por
exemplo, as seguintes outras verdades sobre aquele objeto:
(8) A menor estátua de Sócrates do ano passado era (o
mesmo que) o último presente de Paul para Mary.
(9) A peça de vidro que era a bola de gude azul de Johnny
é (o mesmo que) o brinquedo que Peter comprou dois
anos atrás;
(10) A menor estátua de Sócrates do ano passado era (o
mesmo que) o objeto no canto esquerdo da escrivaninha
de Johnny.
Considere-se (8). O último presente de Paul para Mary
também tem uma história própria, primeiro foi a menor estátua de
Sócrates, depois foi uma estátua quebrada e emendada; mais
tarde, ele não era mais a menor estátua de Sócrates (porque este
ano uma menor foi moldada); por uma série de alterações ele se
tornou um peso de papel na forma de um elefante, apenas em
parte composto de vidro. Nós temos, então, o importante
147
particular o último presente de Paul para Mary preservado na
existência através de uma variegada carreira devida à profunda
afeição de Mary pelo recém falecido Paul. Considere (9) agora. O
brinquedo que Peter comprou dois anos atrás foi primeiro a bola
de gude azul de Johnny, em uma peça indivísivel no começo,
depois uma bola de gude emendada com goma de colar. Então,
ele quebrou outra vez e parte dele foi substituída por um pedaço
de vidro verde, e lentamente ele tornou-se um gude tricolor, feito
de diferentes vidros; e agora ele é uma esfera grosseira que
Johnny aprecia como o brinquedo que Peter comprou dois anos
atrás. Examine-se (10). O objeto no canto esquerdo da
escrivaninha de Johnny também teve uma história fascinante,
especialmente porque em alguns momentos ele pareceu ter
desaparecido no ar para logo depois retornar novamente,
seguidamente sob uma forma e tamanho muito diferentes. Dois
anos atrás ele era a famosa bola de gude azul de Johnny. Uma
noite, seis meses depois, Mary derrubou a bola de gude, e plá, o
objeto no canto esquerdo de escrivaninha de Johnny desapareceu.
Mary colocou o gude de volta na escrivaninha, desse modo
criando a reconvergência do gude azul e do objeto no canto
esquerdo da escrivaninha de Johnny. E assim por diante.
Isto é espantoso. A bola de gude e a menor estátua de
Sócrates, mencionadas na sentença (7), eram ambas compostas,
em diferentes tempos, do mesmo pedaço de vidro. Mas, a estátua
compunha o último presente de Paul para Mary, ou era o inverso?
Pareceria que o particular mais abstrato é composto do
menos abstrato. Se isto é conjugado com o princípio aristotélico
de que a realidade básica é concreta, nós podemos ser levados
facilmente a conceber que os particulares últimos e fundamentais
são pedaços de uma matéria prima aristotélica, ou substratos
simples.
3. O “é” teorético. Há outros tipos de casos que têm sido
utilizados para motivar a introdução do sentido de composição do
148
verbo “ser”. Há proposições que conectam teorias científicas (e
propostas) com a experiência ordinária. Um exemplo é:
(11) Água é H2O, isto é, uma peça de água é um
complexo de moléculas feitas de dois átomos de
hidrogênio e um de oxigênio.
Isto é seguidamente tomado como uma redução filosófica
da água a hidrogênio e oxigênio, onde pela palavra “filosófica” se
quer expressar que em algum sentido o que foi reduzido não
existe, ou realmente não existe. Não há tempo ou espaço para
discutir esta tese ontológica importante. O meu ponto aqui é
simplesmente que alguns filósofos que não acreditam em
eliminação ontológica por meio de proposições que
correlacionam, ou equacionam, entidades observáveis com
entidades não-observáveis, ou científicas, vêem enunciados como
(11) sob uma ótica diferente. Tais filósofos são em geral
empiristas e querem defender a primazia da experiência. Eles
interpretam (11) como estabelecendo uma convergência de
porções de água com complexos de moléculas H2O. Esta
convergência é mais ou menos como a convergência entre a
menor estátua de Sócrates do ano passado e a peça de vidro que
era a bola de gude azul de Johnny. Novamente, a relação de
composição que “é” expressa em (11) é assimétrica. Água é
composta de, ou consiste de, moléculas de H 2O, mas não o
inverso. Aqui a assimetria em questão é suportada pelas enormes
considerações científicas que estabelecem uma dependência e
uma ordem entre observação e teoria. Isto torna a assimetria mais
restritiva, e nós não somos imediatamente autorizados a
generalizar a racional para este “é” de consistência de modo a
gerar imediatamente uma enorme multiplicidade de entidades
relacionadas por composição, como nós fizemos acima com a
bola de gude azul de Johnny e suas entidades convergentes.
O resultado é, em qualquer caso, significativo. Na
interpretação precedente de (11), nós quebramos uma porção
ordinária de água em dois particulares: a água ordinária
149
observável e sua análise química. O último pode ser ela mesma
quebrada na estrutura química e um sistema de partículas
atômicas, e o último pode também ser analisado ainda mais. O
resultado é que cada objeto ordinário do mundo é realmente uma
hierarquia de estruturas de entidades teoréticas ou científicas.
4. Entidades-sob-descrição. Grande parte da literatura
recente acerca de tópicos que envolvem alguma opacidade
referencial, como explanação e causalidade, e acerca de tópicos
que não a envolvem, como obrigação8a, está cheia de tentativas no
que parece ser ou uma limitação da Lei de Leibniz ou um tipo de
intermediário Fregeano. Eu estou falando sobre muitas discussões
em que os autores falam de muitas entidades misteriosas como
objetos sob descrições ou objetos qua isto ou aquilo.
Seguidamente os filósofos que introduzem as expressões em
itálico não param para examinar que tipo de criaturas eles estão
considerando. A discussão corre do seguinte modo: de Jones sob
uma certa descrição D algum F é verdadeiro, o qual não é
verdadeiro de Jones sob outra descrição D'. Então, Jones-sob-D é
diferente de Jones-sob-D'. logo, Jones-sob-D não é idêntico a
Jones simpliciter. Mais, muitos desses filósofos continuam e
dizem que não há realmente Jones-sob-D, mas apenas Jones –
então, parece que no final das contas é Jones simpliciter, e não
Jones-sob-D, que é F. Obviamente, nem toda discussão de
entidades sob descrições é problemática. Alguns autores usam
esta terminologia como um modo rápido de referir a propriedades
de indivíduos que estão envolvidos em certas conexões.
Seguidamente, contudo, os autores estão pressionando em direção
aos perfis (guises); mas, nesses dias de fisicalismo, behaviorismo,
e nominalismo, a maioria das pessoas não está disposta a ser
apanhada vendendo outras entidades que não objetos materiais,
ou partículas micro-físicas. O meu ponto aqui é simplesmente
8a Para uma discussão detalhada da extensionalidade da obrigação, veja-se H.N. Castañeda,
Intentions and Actions, and Philosophical Foundations of Institutions (Dordrecht: Reidel
Publishing Co. 1975), 7, §15-16 e 8, §5.
150
este. Nós não podemos manter uma conversa literal sobre
objetos-sob-descrições e produzir iluminação filosófica – a
menos que nós percebamos que objetos-sob-descrição são,
primeiro, não objetos físicos ordinários, mas, segundo, são ou
sentidos (em uma concepção fregeana intermediária) ou perfis
(em uma ontologia realista) ou algo desse tipo. Eu devo avisar
que o reconhecimento de entidades abstratas e de, por assim
dizer, entidades micro-metafísicas como perfis, não precisa ser
temido. Deve-se ser humilde o bastante para deixar o mundo ter
todas as entidades que nossa experiência encontra nele.
Em suma, perfis ontológicos como constituintes dos objetos
ordinários são um modo em que nós podemos converter a
conversa literal provisória de objetos-sob-descrição e de quaseobjetos. Considere, por exemplo, as seguintes proposições
causais, que são verdadeiras de Richard Nixon-sob-a-descrição
'Vice-presidente dos Estados Unidos em 1955':
(12) As atividades do Comitê para a reeleição do
Presidente causaram (que) o Vice-presidente de 1955 dos
Estados Unidos se tornasse (o mesmo que) o Presidente
dos Estados Unidos em 1973.
(13) As atividades do Comitê para a reeleição do
Presidente não causaram (que) o Vice-presidente dos
Estados Unidos em 1955 se tornasse (o mesmo que) o
Vice-presidente dos Estados Unidos em 1955.
Aqui nós temos evidências de que se pode interpretar, em
uníssono com a abordagem copernicana da Parte I, como se
estabelecendo que o Vice-presidente dos Estados Unidos de 1955
não é literalmente ou genuinamente idêntico ao Presidente dos
Estados Unidos em 1973. Em geral, a causalidade, parece, é uma
conexão envolvendo perfis ontológicos. Em particular, em tornarse o F, o F é um perfil.
5. Referência demonstrativa. Uma das mais importantes
áreas de discurso em que se faz necessário falar de qua151
indivíduos é a referência demonstrativa. Sob esta rubrica estão
inclusos os tempos verbais e a distinção entre as assim chamadas
três pessoas gramaticais. Habitualmente estes mecanismos não
são chamados descritivos, de tal modo que não se lê que a
referência em primeira pessoa é referência sob a descrição da
primeira pessoa.
A irredutibilidade dos demonstrativos ou referências
dêiticas (indexical) a referências não-dêiticas torna claro que tais
referências são primariamente referências a perfis. Eu não vou
discutir isto aqui, pois eu já tratei desse assunto em detalhe em
outro lugar.1 Eu quero mencionar apenas que nossas próprias
auto-referências são fundamentalmente referências em primeira
pessoa. Nós pensamos a nós mesmos antes de tudo como um Eu e
derivadamente como tendo as propriedades de nossos corpos.
Sem considerar o quanto eu possa perder minha conexão com o
mundo e meu lugar histórico nele, por esquecer meu passado e
onde e o que eu sou, eu ainda me tenho como o sujeito que eu
quero identificar com respeito a seu passado, presente e futuro, o
sujeito cuja situação cósmica eu quero reencontrar. Normalmente,
obviamente, eu sei o suficiente sobre minha situação cósmica
para seguir minhas rotinas diárias e gozar ou dar curso às minhas
relações habituais. Mas, a estrutura de crenças e conhecimento
deve ser compreendida como uma rede de crenças sobre a
convergência de alguns de meus perfis em primeira pessoa e
alguns de meus perfis em terceira pessoa. Para mim, eu sou
primariamente e incontornavelmente o que aparece para mim em
primeira pessoa – isto é, uma penca de perfis em primeira pessoa,
convergentes entre si e convergentes com o perfil nuclear e focal:
eu-agora-aqui. Nos artigos mencionados na nota 5, eu argumentei
que a compreensão da referência dêitica, a compreensão da
1
Minha discussão geral da referência indexadora aparece em “Indicators and Quasi-Indicators”.
Os outros artigos mencionados na nota 5 acima lidam com a referência de primeira-pessoa,
sua irredutibilidade e as peculiaridades de nossa atribuição dela a outros. “On the Phenomenologic of the I” é um artigo introdutório. Uma introdução complementar para “Indicators and
Quasi-Indicators” é “Omniscience and Indexical Reference”, The Journal of Philosophy, 64
(1967): 203-210, no qual eu discuto o indicador 'agora' e o quase-indicador 'então'.
152
estrutura do mundo no qual nós nos encontramos, e a
compreensão de nosso lugar cósmico e nossas relações com
outros egos (selves) ou pessoas, requer o reconhecimento de que
propriedades ordinárias envolvem uma dimensão perspéctica.
Desde que os indivíduos são completamente determinados por
suas propriedades, aqueles artigos contêm a concepção de que
indivíduos ordinários são, como indivíduos que aparecem para
nós no mesmo mundo, realmente um sistema de indivíduos
perspécticos. Estes são o que eu nesse artigo estou chamando
perfis ontológicos. Então, os indivíduos qua egos, qua pessoas
das quais se fala, qua objetos de referência demonstrativa, ou qua
objetos especificados por descrição, dêitica ou não, daqueles
artigos, são todos perfis ontológicos ou conjuntos de perfis
ontológicos.
6. Raciocínio prático. O pensamento contemplativo requer
que nós distingamos perfis ontológicos, incluindo nossos perfis
em primeira pessoa. Mas, alguém poderia pensar que a ciência
nos diz tudo o que há para saber sobre o mundo, e uma vez que a
ciência não tem lugar para referência dêitica e ela não respeita o
nosso lugar central no mundo como nós o experimentamos, podese ter a ilusão de que perfis não são necessários. Bem, talvez eles
não sejam necessários para um grande segmento da atividade
científica, mas eles são necessários se nós quisermos conectar
teorias científicas com nossa experiência que suporta essas
teorias. Entretanto, eu não planejo argumentar em favor disto, que
é um tema muito vasto, aqui.
Nesse ponto eu apenas insisto que a nossa compreensão
completa do mundo requer que nós compreendamos o nosso
papel no mundo como agentes. Eu quero dizer o nosso papel
como agentes racionais no sentido fundamental em que nós
possuímos a capacidade de raciocínio prático. Esta é a capacidade
que nós temos de adotar intenções, tomar decisões e de agir a
partir da contemplação de nossas intenções. Esta última,
153
dimensão crucial de nosso raciocínio prático, é um pensamento
causal cuja causalidade é interna: nosso raciocínio é
sistematicamente capacitado a deslanchar nossos mecanismos de
ação de tal modo a estar ao menos em prontidão para realizar a
ação que é pensada naquele mesmo raciocínio. Agora, eu não
posso entrar nesse tópico aqui.1 O meu ponto é que este raciocínio
é um raciocínio em primeira pessoa. Ele é um pensamento
relacionado ao perfil ontológico nuclear de primeira pessoa, euaqui-agora. Isto significa dizer, o meu pensamento em algum
tempo t, de alguma intenção ou proposição “eu devo A”, tem o
poder de causalidade interna. Intenções são justamente conteúdos
de pensamentos em primeira pessoa.
7. A unificação ontológica dos perfis. Em suma, há várias
motivações para se distinguir diferentes componentes ou
elementos ontológicos, que são particulares, nos objetos
ordinários que nós cremos compor o mundo. Há outras
motivações além dessas que eu discuti brevemente. Por exemplo,
há segmentos (slices) temporais de objetos. Em qualquer caso, a
minha alegação geral é que os componentes, ou particulares
simples, introduzidos por qualquer de tais motivações são melhor
concebidos como os perfis ontológicos discutidos na Parte I
acima. O meu argumento é que todas estas fragmentações dos
particulares ordinários do mundo são na base fundadas em
considerações epistemológicas. Isto é, todas essas fragmentações
dependem da introdução de atitudes proposicionais, com sua
característica finitude. Portanto, nós temos apenas um e o mesmo
1
Para o esboço da estrutura meta-psicológica da conexão entre pensamento prático e ação,
veja-se “Purpose, Action, and Ought: An Integrated Theory of Action”, apresentado no
Oberlin Philosophy Colloquium e a ser publicado em um volume contendo os trabalhos lá
apresentados. Artigos importantes nesse tópico, lidando com juízos de dever, em vez de
intenções, são: David Falk, “'Ought' and 'Motivation'” e Wilfrid Sellars, “Obligation and
Motivation”, ambos em W. Sellars e J. Hospers, eds., Readings in Ethical Theory (New York,
Appleton-Century-Crifts, Inc., 1st ed. 1952, 492-510 e 511-517, respectivamente. Para o perfil
de primeira pessoa envolvido em intenções veja-se H.N. Castañeda, “Intention and the
Structure of Intending” Journal of Philosophy, 68 (1971): 453-466, and “Intentions and
Intending”, American Philosophy Quarterly 9 (1972): 139-149. Veja-se o livro mencionado na
nota 8a, capts. 10 e 6, e as seções ali indicadas.
154
fenômeno subjacente: a finitude das operações mentais requer a
fragmentação de um suposto particular massivamente dotado de
propriedades em particulares menores que a mente pode
manipular. Em todos os casos de fragmentação nós estamos
lidando, portanto, com um aspecto de nosso embaraço
epistemológico copernicano. Isto é óbvio no caso das identidades
contingentes, como nós já apontamos. É também latente no caso
de identidades teoréticas:
Considere-se novamente a dualidade da proposição mista
científica:
(11) Água é H2O.
Os filósofos que alegam que a sentença (11) tem, não um
“é” literal de redução e eliminação, mas um “é” de
correspondência teorética, estão, ao alegar isso, enfatizando o
contraste entre observação e teoria. Mas, este contraste é o
contraste entre o que um homem pode saber (crer, pensar) como
experimentador e o que ele pode saber (crer, pensar) como teórico
científico. Os aspectos interessantes de (11) são tanto a sua
implícita subordinação ao verbo de conhecimento (crença, ou
pensamento), na base, uma subordinação a um “eu penso”, e, por
causa disso, a sua implícita (embora parcial) adoção de uma
concepção copernicana, antes que uma ptolomaica, de objetos.
Eu proponho que nós não paremos na metade do caminho,
mas avancemos até o completo reconhecimento tanto de nosso
embaraço copernicano e, por causa dele, da primazia de nossa
referência a perfis ontológicos, os quais são, portanto, os átomos
ontológicos de individualidade. A iluminação ontológica (se
alguma) a ser provida pela proposta de fragmentação parcial dos
objetos ordinários massivos do mundo será produzida apenas na
contemplação da abordagem unitária completa do mundo da
perspectiva copernicana.
155
IV A família da igualdade
Nós discutimos os perfis ontológicos, e advogamos que eles
tanto são as unidades fundamentais, ao menos na medida do que
concerne a mentes (finitas), quanto que eles compõem os objetos
ordinários do mundo infinitamente dotados de propriedades. Isto
implica uma sugestão e um problema. Implicitamente há a
sugestão de que a identidade genuína é trivial e no caso dos perfis
ontológicos é trivialmente apreensível mesmo para mentes finitas.
Esta sugestão conforma-se ao fato crucial de que a identidade
genuína é exaurida pela reflexividade. O problema é: Como os
perfis ontológicos constituem
os misteriosos objetos
infinitamente dotados de propriedades? Parte da resposta a esta
questão consiste na formulação das leis fundamentais da
constituição dos objetos ordinários. E outra parte da resposta
consiste no contraste entre esta relação de constituição e cada
uma das outras relações da família Igualdade (Sameness), isto é,
relações que são naturalmente expressas pela locução 'é o mesmo
que'.
A família Igualdade inclui pelo menos os seguintes
membros:
I.
II.
III.
IV.
V.
Identidade;
Conflação;
Consubstanciação;
Consociação;
Transubstanciação.
1. Identidade é caracterizada pela lei de Leibniz e pela
absoluta e total reflexidade.
2. Conflação, que eu represento por '*C', para indicar por
pré-fixação do asterisco ao 'C' que ela vale prior,
156
independentemente da contingência do mundo, é ilustrada pelos
exemplos seguintes:
(14) *C (o homem que pesa 120 kg e ama ouvir óperas
de Mozart, o homem que ama ouvir óperas de Mozart e
pesa 120 kg).
(15) *C (o livro que ninguém lê, o livro que ou tem capa
vermelha e ninguém lê ou que ninguém lê).
Perfis conflacionados são, por assim dizer, logicamente
equivalentes, isto é, são caracterizados por propriedades
logicamente equivalentes. Há uma área de indeterminação que
será deixada aqui não resolvida, a saber: o que precisamente
conta como equivalência lógica. Seguramente, equivalência
lógica é determinada por leis proposicionais e quantificacionais,
mas eu vou deixar em aberto o que são exatamente essas leis, por
exemplo, intuicionistas ou clássicas. Leis de modalidades devem
ser incluídas. Mas, nós talvez tenhamos que decidir traçar uma
linha precisa um tanto arbitrária para separar, além da
modalidade, o lógico do não-lógico. Isto pode resultar em termos
de reconhecer outras relações não-contingentes, ao lado da
identidade e da conflação, no interior da família Igualdade, na
qual todos os membros apenas podem ser predicados
externamente dos perfis.
3. Consubstanciação. Esta é a relação contingente primária
e eu a represento com 'C*'. Com efeito, ao lado da contingência
da consociação, toda a contingência do mundo em qualquer
tempo determinado está concentrada na consubstanciação. Esta é,
grosseiramente, o estar junto de perfis existentes que constituem
os objetos ordinários infinitamente dotados de propriedades.
Etimologicamente, a palavra é excelente: dois perfis são
consubstanciados se e somente se eles formam a mesma
substância. Consubstanciação é a relação que une a estrela da
manhã e a estrela da tarde. É a relação que une uma porção de
água e uma certa estrutura de moléculas de hidrogênio e de
157
oxigênio. Em geral, quaisquer dois indivíduos que, como
costuma-se dizer, são contingentemente idênticos num dado
tempo, são consubstanciados. Posto de modo inexato, todas as
assim chamadas identidades contingentes que se aplicam
sincronicamente, antes que diacronicamente, são ou casos de
consubstanciação ou casos de consociação.
Perfis não necessitam estar consubstanciados com nada
para manter a sua posição como objetos de crença e como
possíveis membros do mundo. Claramente, o rei da França de
1973 tem permanecido, e irá permanecer, distante não
consubstanciado. Um perfil existe se e somente se ele está
consubstanciado com outro perfil. Mas, se é assim, ele é
consubstanciado consigo mesmo. Logo, existência é
simplesmente auto-consubstanciação – e existência é
comunidade.
As leis fundamentais da consubstanciação são: (1)
reflexividade em seu domínio; (2) simetria; (3) transitividade; (4)
consistência; (5) fechamento lógico, e (6) fechamento
nomológico. As primeiras três leis são claras. Mas, note-se como
a consubstanciação, sendo simétrica, difere da relação de
composição ou consistência que nós mencionamos na Parte II, §
2. A quarta lei diz que os perfis caracterizados por conjuntos
logicamente inconsistentes de propriedades não podem existir, i.
é., não podem ser consubstanciados. A quinta lei é uma versão do
terceiro excluído que requer que um perfil se consubstancie com
um perfil caracterizado pela propriedade P ou pela propriedade
não-P. A sexta lei é o esquema para a consubstanciação de um
perfil com perfis caracterizados por certas propriedades
envolvidas em leis da natureza de um certo modo. Detalhes destas
leis aparecem em “Thinking and the Structure of the World”.
O grande problema é, naturalmente, o de prover uma
abordagem da estrutura interna dos perfis ontológicos. Parte do
problema é elucidar suas relações com conjuntos de propriedades
que os caracterizam. Novamente, isto é enfrentado em “Thinking
158
and the Structure of the World” e a visão lá exposta é depois
defendida em “Individuation and Non-Identity: A New Look”.
Resumidamente, a idéia é que o conjunto de propriedades que
caracterizam um perfil é o cerne (core) desse perfil. Um
desenvolvimento importante disto é a formulação de uma teoria
da predicação externa, de acordo com a qual proposições
singulares contingentes da forma “a é F” são analisadas como
proposições sobre consubstanciação. Seja a[F] o que eu chamo de
protracção-F de a, isto é, o perfil cujo conjunto cerne de
propriedades é a união do conjunto cerne de a e F. Então, a
proposição contingente expressa por uma sentença da forma
(16) a é F
tem a seguinte forma lógica profunda, i. é., ontológica:
(16a) C* (a,a[F]).
Os fatos empíricos de percepção são da forma (16a). Ver
que a caneta na minha mão é amarela é justamente ver que C*(a
caneta na minha mão, a caneta na minha mão [amarelo]). A
consubstanciação é perceptível.
4. Consociação. Esta é uma relação empírica, mas ela é
secundária. Eu a represento com 'C**', para indicar sua natureza
secundária contingente a posteriori. Ela ocorre entre perfis que
uma mente colocou junto como formando um indivíduo maior,
seguidamente em desconsiderando a sua existência. Logo, ela se
dá entre Hamlet, o príncipe da Dinamarca e o amado de Ofélia.
Mas, ela também se dá entre certos perfis psicológicos e perfis
pensados na consubstanciação de tais perfis psicológicos. Por
exemplo, ela se dá entre Dom Quixote e o personagem favorito
de Cervantes, e entre o quadrado redondo e o objeto impossível
discutido por Meinong e atacado por Russell.
A Consociação é claramente contingente e qualquer um
pode unir quaisquer dois objetos não-existentes com ela. No caso
de indivíduos impossíveis, a consociação é o único contato
contingente que eles podem ter com o mundo empírico, por um
159
lado, e com outros perfis, por outro. Consociação está na
fundação ontológica da literatura. Mas, a mesma consociação
relaciona tanto pensamentos de perfis existentes como de nãoexistentes. A relação da mente com indivíduos é indiferente à
existência.
5. Transubstanciação. Esta é a relação que seguidamente é
expressa em alegações sobre identidades contingentes
diacrônicas. Trata-se do que seguidamente é chamado de “genidentity”. Enquanto a consubstanciação junta sujeitos (subjects)
infinitamente dotados de propriedades, a transubstanciação junta
os seguimentos (slices) integrando-os em enormes entidades
espaço-temporais misteriosas com uma história.
V Epílogo
Há muitos problemas em aberto para completar o esboço de
nosso sistema ontológico copernicano. Eu explanei como um
objeto infinitamente dotado de propriedades é composto de perfis
tomados conjuntamente por conflação, consubstanciação e
transubstanciação. Mas, há mais por dizer. As leis de
consubstanciação tornam cada um dos objetos infinitamente
dotados de propriedades uma semi-treliça (semi-lattice) de
consubstanciação cujo ápice são infinitos indivíduos leibnizianos
que espelham o inteiro universo. Mas, para isto o leitor deve ir ao
“Thinking and the Structure of the World”.1
Eu não vou formular aqui um modelo formal conjuntista
para o precedente sistema de perfis e objetos infinitamente
dotados de propriedades. A razão principal é que o modelo
conjuntista é apenas isso: um modelo, e o que eu quero é
precisamente elucidar os próprios conceitos que o modelo toma
como primitivos. Entre esses estão os conceitos de indivíduo e
1
Cf. nota 1, acima.
160
mundo possível. Como filósofos nós temos que ir mais fundo, ou
mais além da estrutura modelada, para elucidação dos primitivos.
O que eu discuti nas páginas precedentes é uma tentativa de tal
elucidação. Em vez de fazer uma assunção cega de um dado
domínio de indivíduos, eu argumentei que os perfis ontológicos
são as “partículas” micro-ontológicas que nós encontramos em
nosso mundo. Em vez de postular uma função conjuntista que
toma como valores indivíduos infinitamente dotados de
propriedades e perfis como argumentos, eu providenciei uma
abordagem intencional de como os últimos entram, não como
argumentos para valores-de-função, mas como constituintes dos
primeiros. Eu detalhei, depois, as relações que unem os perfis
conjuntamente em um objeto ordinário do mundo. Em vez de
postular misteriosos mundos possíveis, eu tomo mundos possíveis
como ou conjuntos maximais consistentes de indivíduos
infinitamente dotados de propriedades ou como conjuntos
maximais consistentes de estados de coisas (ou proposições). E
assim por diante.
A modelagem conjuntista é de muito valor para estabelecer
consistência e técnica para testar implicação. Mas, ela não pode
fazer o trabalho ontológico. Felizmente é fácil construir um
modelo para as principais distinções desse escrito.
161
9.
Além de ser e não-ser*
Roderick M. Chisholm
“Beyond being and nonbeing”, em R. M Chisholm, Brentano and
Meinong Studies, Amsterdam, Rodopi, 1982, pp. 53-67.]
“... das Universum in der Gesamtheit des Wirklichen
noch lange nicht erschöpf ist.”
Meinong
Meinong escreveu: “há objetos dos quais é verdade que não
há tais objetos”1. Mas, ele estava bem consciente de que este
enunciado de sua doutrina do Aussersein era desnecessariamente
paradoxal. Outros enunciados são: “O não real” não é “um mero
nada” e “Os objetos enquanto tais ... estão 'além de ser e nãoser'”2. Talvez o mais claro enunciado foi proposto pelo discípulo
*
1
2
Eu quero expressar minhas dívidas para com o último Dr. Rudolf Kindinger. Certas partes
desse artigo foram adaptadas de meu “Jenseits von Sein und Nichtsein”, Dichtung und
Deutung: Gedächtisschrift für Hans M. Wolff, editado por Karl S. Guthke, Bern-Munich:
Francke Verlag 1961.
A. Meinong, “Über Gegenstandstheorie”, Gesammelte Abhandlungen, Leipzig: Johann
Ambrosius Barth 1929, Meinong Gesamtausgabe, Graz: Akademische Druck- und
Verlagsanstalt 1971, vol. II, p. 490. Esta obra apareceu primeiramente em 1904, na coletânea
Untersuchungen zur Gegenstandstheorie und Psychologie, Leipzig: Johann Ambrosius Barth,
editada por Meinong. Ela foi traduzida como “The theory of Objects”, em Realism and the
Background of Phenomenology, Glencoe, III., The Free Press 1960, editda por R. M.
Chisholm; a citação acima aparece na página 83.
Gesammelte Abhandlungen, vol. II, pp. 486, 494; tradução inglesa em Realism and the
Background of Phenomenology, pp. 79, 86.
162
de Meinong, Ernst Mally: “Sosein is independent of Sein.”1. Nós
poderíamos parafrasear o enunciado de Mally dizendo: “Um
objeto pode ter um conjunto de caracteristicas quer ele exista ou
não, quer ele tenha ou não qualquer outro tipo de ser”.
Supõe-se comumente que esta doutrina do Aussersein é
absurda e que sejam quais forem as razões que Meinong possa ter
tido para afirmá-la, elas foram demolidas pela teoria das
descrições de Russell. Eu acredito, contudo, que esta suposição é
falsa. Eu vou tentar aqui expor a doutrina em sua forma mais
extrema e, então, considerarei o que pode ser dito em seu favor.
I.
As teses fundamentais da teoria dos objetos de Meinong são
(1) que há objetos que não existem e (2) que objetos tais que não
há tais objetos são, mesmo assim, constituídos de algum ou outro
modo e, desse modo, podem ser feitos sujeitos de predicações
verdadeiras. A segunda destas duas teses é a doutrina do
Aussersein. A primeira tese, como Meinong diz, é familiar à
metafísica tradicional. Mas, a metafísica tradicional, ele
acrescenta, tinha “um pré-juízo em favor do atual” 2. Embora ela
tivesse uma consideração própria para “objetos ideais”, aquelas
coisas que meramente subsistem (bestehen) e não existem, ela
negligenciou aquelas coisas que absolutamente não têm ser. Por
isso, a necessidade de uma teoria dos objetos mais abrangente.
Entre os princípios característicos da teoria dos objetos
estão os seguintes.
Objetos, alguns existem e outros não existem. Assim,
cavalos são incluídos entre os objetos que existem, e unicórnios e
montanhas de ouro são incluídos entre os objetos que não
1
2
“Untersuchungen zur Gegenstandstheorie des Messens”, em Untersuchungen zur
Gegenstandstheorie und Psychologie, pp. 51-120; a citação pode ser encontrada na página
127.
Gesammelte Abhandlungen, vol. II, p.485; tradução inglesa, p. 78.
163
existem.
Dos objetos que não existem, de alguns se pode dizer ainda
que são, ou que subsistem, e de outros não se pode dizer que são
absolutamente.
Assim, se existência é pensada como implicando um locus
espaço-temporal, então, há certos objetos ideais que não existem.
Entre esses estão as propriedades ou atributos e os objetos da
matemática, assim como os estados de coisas (que Meinong
denomina “Objektive”). Desde que há cavalos, por exemplo, há
também o ser de cavalos, o ser do ser de cavalos, o não-ser do
não-ser de cavalos, e o ser do não-ser do não ser-ser de cavalos.
E, desde que não há unicórnios, há, portanto, o não-ser de
unicórnios, o ser do não-ser de unicórnios, o não-ser do ser de
unicórnios, e o não-ser do não-ser de unicórnios.1
Porém, embora de todo objeto se possa corretamente dizer
ser alguma coisa ou outra, não é o caso que de todo objeto se
pode corretamente dizer ser.2 Unicórnios, montanhas de ouro, e
quadrados redondos não podem ser ditos ser absolutamente.
Tudo, porém, é um objeto, quer exista ou não, ou tenha qualquer
outro tipo de ser, e mesmo também quer ele seja pensável ou não.
(O que é impensável, afinal, ao menos tem a propriedade de ser
impensável.) E todo objeto, claramente, tem as características que
ele tem, quer ele tenha ou não qualquer tipo de ser. Esta última é
a proposição que Mally expressou dizendo que o Sosein de um
objeto é independente de seu Sein.
A teoria do Aussersein, por conseguinte, deve ser
distinguida tanto do platonismo, no sentido em que este termo é
atualmente interpretado, como do reismo, ou concretismo, de
Brentano e Kotarbinski. Pois, do platonista pode-se dizer que ele
1
2
Veja Gesammelte Abhandlungen, vol. II, pp. 486-8; tradução inglesa, pp. 79-80. O enunciado
mais completo da teoria de Meinong dos estados de coisas, ou Objektive, pode ser encontrada
no Capítulo III (“Das Objektiv”) de Über Annahmen, Segunda Edição, Leipzig: Joann
Ambrosius Barth 1910.
“Jeder Gegenstand ist etwas, aber nicht jedes Etwas ist”. Mally, op. cit., p. 126.
164
raciocina assim: “(P) Certos objetos que não existem tem certas
propriedades; mas (Q) um objeto tem proprieades se e somente se
ele é real; logo, (R) há objetos reais que não existem.” O reista,
por outro lado, raciocina de não-R e Q para não-P; isto é, ele
toma como suas premissas a segunda premissa de Platão e a
contraditória da conclusão de Platão e, então, deriva a
contraditória da primeira premissa de Platão. Mas, Meinong,
como Platão e diferentemente dos reistas, aceita P tanto quanto R;
diferentemente tanto de Platão como dos reistas, ele rejeita Q; e,
então, ele deriva a conclusão que é inaceitável tanto para o
platonista como para o reista, a saber, “(S) A totalidade dos
objetos extende-se para muito além dos confins daquilo que é
meramente real.”1
Uma vez que esta conclusão é aceita, um número de
distinções interessantes pode ser feito. Estas parecem ser
peculiares à teoria dos objetos de Meinong.
Assim, objetos podem ser subdivididos naqueles que são
possíveis e naqueles que são impossíveis. (Nós devemos notar,
incidentalmente, que dizer de um objeto que ele é sosmente um
objeto possível não é dizer dele que ele é apenas possivelmente
um objeto. Pois, objetos possíveis, tanto quanto objetos
impossíveis, são objetos.) Objetos possíveis, diferentemente de
objetos impossíveis, têm Soseins não-contraditórios. Montanhas
de outro, por exemplo, embora não tenham nenhum tipo de ser,
podem ser objetos possíveis; pois, o Sosein de uma montanha de
ouro necessariamente não obstrui seu Sein. Mas, algumas
montanhas de ouro são objetos impossíveis – por exemplo,
aquelas que são tanto douradas quanto não-douradas, e aquelas
que são tanto redondas quanto quadradas. Um objeto impossível
é, pois, um objeto com um Sosein contraditório – um Sosein que
1
Compare com a citação no início desse artigo; a citação é da obra póstuma de Meinong Zur
Grundlegung der allgemeinen Wettheorie, Graz: Leuscher & Lubensky 1923, editada por
Ernst Mally, p. 158; Meinong Gesamtausgabe, Graz: Akademische Druck- u. Verlaganstalt
1968, vol. III, p. 638.
165
obstrui o Sein de seu objeto.1
Soseins, também, são objetos e, por conseguinte, todo
Sosein tem um Sosein. Um objeto que não é ele mesmo um
Sosein é um objeto impossível se ele tem um Sosein contraditório.
Pode um Sosein, também, ser um objeto impossível? A resposta
de Mally para esta questão é um parágrafo notável que pode ser
assim parafraseado:
“Como qualquer outro objeto, um Sosein é um objeto
impossível se ele tem um Sosein que obstrui seu Sein; isto é, um
Sosein é um objeto impossível se o seu próprio Sosein é
contraditório. Um Sosein teria um Sosein contraditório se ele
tivesse a propriedade de ser o Sosein de um objeto que não tem
aquele Sosein. A circularidade de um quadrado possível é, assim,
um Sosein impossível. Pois,a circularidade de um quadrado
possível tem ela mesma um Sosein contraditório: aquele de ser a
circularidade de algo que não é circular. Mas, um Sosein
impossível não é o mesmo que um Sosein contraditório. A
circularidade de um quadrado possível deve ser distinguida da
circularidade (e quadracidade) de um quadrado redondo; a
primeira é um Sosein impossível, mas a última não é. A
circularidade de um quadrado redondo é um Sosein contraditório,
mas não um Sosein impossível. O que é impossível é que haja um
objeto que é ambos redondo e quadrado. Mas, não é impossível
que um quadrado redondo seja ambos redondo e quadrado. Mais
ainda, é necessário que um quadrado redondo seja ambos
redondo e quadrado.”2
Objetos podem ser também classificados como sendo ou
1
2
Uma vez que nós apreendemos a natureza de um objeto impossível, de acordo com Meinong,
nós nos tornamos cientes da “necessidade de seu não-ser”. Meinong não usa a expressão
“objeto necessário”, mas ele diz, com respeito aos objetos abstratos, que uma vez que nós
apreendemos sua natureza, nós nos tornamos cientes “da necessidade de seu ser”. Veja Über
die Stellung der Gegenstandstheorie im System der Wissenschaften, Leipzig: R. Voitländer
Verlag, 1970, p. 76.
Parafraseado de Ernst Mally, op. cit., pp. 128-9. Eu traduzi “Viereck” por “quadrado”,
adicionei itálico, e escrevi “quadrado possível” em dois lugares onde Mally escreveu apenas
“Viereck”.
166
completos ou incompletos. Ali onde um objeto impossível é um
objeto com um Sosein que viola a lei de não-contradição, um
objeto incompleto é um que tem um Sosein que viola a lei do
terceiro excluído. Dos quadrados redondos que foram
considerados acima, não pode ser nem verdadeiro nem falso dizer
de um dos considerados por Você que ele é maior do que um dos
que foram considerados por mim.1
De todos os objetos, o mais pobremente favorecido parece
ser o que Meinong denominou objetos defectivos. Com efeito,
eles são tão pouco favorecidos que Meinong parece estar em
dúvida se eles são objetos afinal. Se eu desejo que o seu desejo
seja realizado, então, o objeto de meu desejo é qualquer coisa que
por ventura você deseje. E, se, sem eu saber, seu desejo é que
meu desejo se realize, então, o objeto de seu desejo é o que eu por
ventura deseje. Mas, este objeto, nas circunstâncias imaginadas,
pareceria ter muito pouco Sosein para além de ser nosso objeto
mútuo. Meinong percebeu, incidentalmente, que este conceito de
objeto defectivo poderia ser usado para esclarecer os paradoxos
lógicos.2
É um erro, portanto, expressar a doutrina do Aussersein
dizendo que, de acordo com Meinong, tais objetos como
montanhas de ouro e quadrados redondos têm um tipo de ser
diferente de existência e subsistência. O ponto de Meinong é que
eles não têm absolutamente nenhum tipo de ser. Eles são “objetos
apátridas”, nem mesmo encontráveis no céu de Platão.3
1
2
3
Sobre objetos imcompletos, veja o texto de Meinong Über Möglichkeit und
Wahrscheinlichkeit, Leipzig: Johann Ambrosius Barth 1915, pp. 179-80, e também Über die
Stellung der Gegenstandstheorie im System der Wissenschaften, pp. 118-123.
Meinong discute objetos defectivos em Über emotionale Präsentation, Vienna: Alfred Hölder,
1917, pp. 10-26; Meinong Gesamtausgabe, Graz: Akademische Druck- und Verlagsanstalt
1971, vol. III, pp. 294-310.
Veja Über die Stellung der Gegenstandstheorie im System der Wissenschaften, seção I
(“Heimatlose Gegenstände”), p. 8 ss. Em Introduction to Mathematical Philosophy, London:
George Allen & Unwin, Ltd. 1919, Russell disse que, de acordo com Meinong, tais objetos
como a montanha de ouro e o quadrado redondo “devbem ter algum tipo de ser lógico” (p.
169). Mas, em “On Denoting” e em seus escritos anteriores sobre Meinong, ele não comete
este erro.
167
Por que assumir, então, que um objeto possa ter um Sosein
e ainda assim nenhum Sein – que um objeto possa ter um
conjunto de características e ainda assim absolutamente nenhum
tipo de ser?
II.
O caso imediato para esta doutrina do Aussersein está no
fato que há muitas verdade que parecem, ao menos, pertencer a
objetos que são tais que não há tais objetos. É razoável assumir
que este caso imediato poderia ser enfraquecido se nós
mostrássemos, com respeito a estas verdades, que elas não
precisam ser construídas como pertencendo a tais objetos
apátridas. É razoável também assumir, eu penso, que o caso de
Meinong seria fortalecido caso nós fôssemos incapazes de
mostrar, com respeito a qualquer dessas verdades, que ela não
precisa ser construída como pertencendo a tais objetos.
Há pelo menos cinco grupos de tais verdades que tem sido
isolados na literatura recente. (Os grupos não são mutuamente
exclusivos e eles podem não ser exaustivos.) Pois, pareceria haver
ao menos cinco diferentes tipos de coisas que nós podemos dizer
de um objeto que não existe ou não tem nenhum outro tipo de ser:
(1) nós podemos dizer que o objeto não existe; (2) nós podemos
dizer que o objeto é sem implicar ou que ele existe ou que ele não
existe; (3) nós podemos notar que expressões em nossa
linguagem são usadas para referir a este objeto; (4) nós podemos
dizer que o objeto está envolvido em mito ou ficção e que, sendo
assim envolvido, ele está ricamente dotado de atributos; ou (5)
nós podemos dizer que a atitude intencional de alguém está
dirigida para tal objeto.
O melhor caso de Meinong, eu penso, está no grupo final –
com aquelas verdades que parecem pertencer aos objetos
inexistentes de nossas atitudes intencionais. Mas, consideremos
168
todos eles sob uma luz tão favorável quanto seja possível.
(1) Exemplos do primeiro grupo são “Coisas que são tanto
redondas como quadradas não existem” e “Unicórnios não
existem”. Podemos parafrasear estes de tal modo que possa ser
mostrado que eles não envolvem nenhuma referência a objetos
inexistentes? O primeiro exemplo apresenta menos problemas do
que o segundo, mas, é dubitável que nós possamos parafraseá-los
de um modo que satisfaria Meinong.
A paráfrase óbvia de “Coisas que são tanto redondas como
quadradas não existem” seria “Tudo o que existe é tal que não é
redondo e quadrado”. Mas, Meinong iria dizer, onde o termosujeito da paráfrase pode ser tomado como referindo a qualquer
item da realidade que se escolha, o termo-sujeito do original
pretende referir a “o que não existe e absolutamente não é, por
conseguinte, um item da realidade”.1
A paráfrase óbvia de “Unicórnios não existem” seria “Tudo
o que existe é tal que ele não é um unicórnio”. Mas, isto,
Meinong poderia dizer, deixa-nos com uma referência a objetos
inexistentes. Dizer de uma coisa que ela não é um unicórnio é
dizer dela que ela não é idêntica com nenhum unicórnio é
relacioná-la com objetos que não existem.
Por isso, nós poderíamos querer substituir “um unicórnio”
em “Tudo o que existe é tal que ele não é um unicórnio”, por
certos predicados. Mas, que predicados, e como nós vamos
dicidir? Vamos supor (para simplificar um pouco) que nós
estamos satisfeitos com “mono-cornado” e “equino”. Então, nós
parafraseamos “Unicórnios não existem” como “Tudo o que
existe é tal que ele não é mono-cornado e equino”. Meinong
poderia agora repetir a objeção que ele fez contra nossa tentativa
1
Über die Stellung der Gegenstandstheorie im System der Wissenschaften, p. 38. As
observações de Meinong estão direcionadas para a distinção entre “Fantasmas não existem
(Gespenster existieren nicht)” e “Nenhuma coisa real é fantasma (Kein Wirkliches ist
Gespenst)”. Compare-se com Richard L. Cartwright, “Negative Existentials”, Journal of
Philosophy, v. LVII (1960), pp. 629-639.
169
de parafrasear o primeiro exemplo acima. E ele poderia adicionar
ainda uma outra.
Como nós escolhemos os predicados particulares “monocornado” e “equino”? Nós os escolhemos, Meinong diria, porque
nós conhecemos, a priori, que todos e somente unicórnios são
ambos mono-cornados e equinos. E este enunciado a priori “Todos e somente unicórnios são equinos e mono-cornados” - é
um em que, outra vez, nós temos um termo-sujeito que refere, ou
pretende referir, a objetos inexistentes. Este enunciado, contudo,
pertence ao segundo grupo e não ao primeiro.
(2) Meinong escreve: “se alguém julga que uma máquina
perpetuum mobile não existe, então, é claro que o objeto cuja
existência ele está negando deve ter certas propriedades e também
certas propriedades características. De outro modo, o juízo que o
objeto não existe nem teria sentido nem justificação”. 1 Aplicando
uma observação similar ao nosso exemplo anterior, nós podemos
dizer, do juízo que unicórnios não existem, que ele pressupõe que
unicórnios são tanto mono-cornados como equinos. “Unicórnios
são tanto mono-cornados como equinos” pode ser também
expresso como “Toda coisa existente é tal que ser ela fosse um
unicórnio, então, ela seria equina e mono-cornada”. Mas, a
presença de “um unicórnio” na última sentença, como nós
observamos, permite a Meinong dizer que a sentença sim nos diz
algo sobre unicórnios – a saber, que se qualquer coisa existente
fosse idêntica com qualquer um deles, então, esta coisa seria tanto
equina como mono-cornada.2
Estas verdades sobre objetos inexistentes que são
pressupostas, sempre que nós dizemos de algo que ele não existe,
1
2
Über Annahmen, p. 79.
Confundindo uso e menção, pode-se tentar transpor “Unicórnios são mono-cornados e
equinos” em um enunciado que menciona apenas palavras. (Um tal enunciado como “A
palavra ‘unicórnio’ refere a coisas que são mono-cornados e equinos” pertence ao nosso
terceiro grupo, abaixo).
170
são a priori, de acordo com Meinong. Muito do que nós
conhecemos sobre objetos, diz ele, é portanto “daseinfrei”.1
Há alguns enunciados a priori, de acordo com Meinong, em
que objetos inexistentes são isolados por meio de descrições
definidas. “Não apenas é a muito noticiada montanha de ouro
feita de ouro, mas o quadrado redondo é tão seguramente redondo
quanto ele é quadrado.”2 O que diremos de “A montanha de ouro
é de ouro”? De acordo com a teoria das descrições de Russell,
algumas sentenças da forma “A coisa que é F é G” podem ser
parafraseadas em sentenças da seguinte forma: “Existe um x tal
que x é F e x é G”, e para todo (existente) y, se y é F, então, y é
idêntico a x.” Portanto, se nós parafraseamos “A montanha de
ouro é de ouro” desse modo, nós teríamos: “Existe um x tal que x
é de ouro e x é uma montanha, e x é de ouro, e, para todo
(existente) y, se y é tanto de ouro como uma montanha, então, y é
idêntico a x. A sentença resultante pareceria referi apenas a
objetos que existem. Mas, é ela uma paráfrase adequada?
“A montanha de ouro é de ouro”, de acordo com Meinong,
é verdadeira. Mas, a paráfrase de Russell implica “Existe um x
tal que x é tanto de ouro como uma montanha” e é portanto falsa.
Como pode um falso enunciado ser uma paráfrase adequada de
1
2
Uma parte considerável da obra de Meinong Über die Stellung der Gegenstandstheorie im
System der Wissenschaften, é dedicada a “Daseinsfreiheit” e “Apriorität”.
Tradução inglesa da Teoria dos objetos, página 82; Gesammelte Abhandlungen, vol. II, pp.
490. Russell disse que se “O quadrado redondo é redondo” é verdadeiro, então, “O quadrado
redondo existente é existente” é também verdadeiro; e o último enunciado, argumentou ele,
implica que existe um quadrado redondo; veja sua resenha de Untersuchungen zur
Gegenstandstheorie und Psychologie, Mind, vol. XIV (1905), pp. 530-538, esp. p. 533.
Meinong respondeu que “existente” não é um predicado, não um “Soseinsbestimmung”, e
portanto ele deveria ter dito que “O quadrado redondo existente é existente” é falso.
Infelizmente, contudo, ele tentou esboçar uma distinção entre “é existente” e “existe” e então
disse que embora o quandrado redondo existente é existente ele não existe. Veja Über die
Stellung der Gegenstandstheorie im System der Wissenschaften, pp. 16-19. Revisando a última
obra, Russell replicou: “Eu devo confessar que eu não vejo nenhuma diferença entre existir e
ser existente; e além disso eu não tenho mais nada a dizer”, Mind, vol. XVI (1907), pp. 436439. Meinong também tem dificuldades com “O quadrado redondo possível é possível”; vejase Über Möglichkeit und Wahrscheinlichkeit, pp. 277-289. O que ele deveria ter dito, penso
eu, é que “possível” não é um predicado, não uma “Soseinsbestimmung”, e portanto que “O
quadrado redondo possível é possível” é falso.
171
um verdadeiro?
Russell, naturalmente, diria que Meinong está errado em
insistir que “A montanha de ouro é de ouro” é verdadeira. Mas,
como nós iremos decidir que tem razão sem já responder a
questão que está envolvida?
(3) Enunciados semânticos podem sugerir outro tipo de
referência a objetos que não existem ou a objetos tais que não há
tais objetos. Por exemplo, “A palavra 'Einhorn' em Alemão
designa unicórnios”; ou “A palavra 'Einhorn' em Alemão
pretende designar unicórnios”; ou “A palavra 'Einhorn' em
Alemão é usada ostensivamente para designar unicórnios”. E
analogamente para a palavra “unicórnio”
e seu uso em
Português. Mas, Meinong diria – corretamente, me parece – que
enunciados semânticos são realmente uma subclasse de
enunciados intencionais, enunciados sobre atitudes psicológicas e
seus objetos, e por conseguinte que eles pertencem ao nosso
quinto grupo abaixo. Dizer que “Einhorn” é usada para designar
unicórnios, de acordo com Meinong, é dizer que “Einhorn” é
usada para expressar os pensamentos e outras atitudes
intencionais que tomam unicórnios como seu objeto.1
(4) Enunciados sobre objetos de ficção e mitologia são
algumas vezes tomados como casos paradigmáticos de
enunciados sobre objetos inexistentes. Exemplos são “Sam Weller
foi servo de Mr. Pickwick” e “Sam Weller era um personagem
fictício que realmente não existiu”. Mas, se eu não estou
enganado, estes pertencem aos nossos enunciados intencionais,
abaixo. Pois, o primeiro exemplo, como ele ordinariamente seria
usado, pertence a um dos objetos de uma certa história (se nós
tomamos “história” no sentido mais largo da palavra). Mas, dizer
de uma coisa que ela é um objeto de uma certa história é dizer ou
que alguém contou uma história sobre aquela coisa ou que
alguém pensou acerca de uma história sobre aquela coisa. E dizer
1
Veja Über Annahmen, 2.ed., p. 26.
172
que alguém contou uma história, ou que alguém pensou numa
história, é fazer um enunciado intencional. Quando nós dizemos
“Sam Weller era um personagem fictício que realmente não
existiu”, nós não estamos apenas fazendo um enunciado
intencional, sobre um objeto da história de alguém, mas, nós
estamos também fazendo um enunciado que pertence ao nosso
primeiro grupo acima – um enunciado dizendo que o objeto não
existe. Enunciados sobre objetos de mitologia são análogos,
exceto que pode ser necessário adicionar, novamente
intencionalmente, que a história em questão é uma em que
alguém acredita.
(5) O melhor caso de Meinong, então, parece estar com
aqueles enunciados intencionais legítimos que parecem pertencer
a objetos que não existem. Eu vou distinguir quatro tipos de tais
enunciados.
O primeiro tipo é exemplificado por
(a) João teme um fantasma.
Aqui, nós parecemos ter uma afirmação direta de uma
relação entre João e um objeto inexistente. Pertence à essência de
uma atitude intencional, de acordo com Meinong, que ela pode,
pois, “ter” um objeto “mesmo que este objeto não exista”. 1
Poderíamos parafrasear nosso enunciado (a) de modo tal que o
resultado pudesser ser lido como não envolvendo essa aparente
referência a um objeto inexistente? Tanto quanto eu sou capaz de
ver, nós não podemos. (Verdade é que, obviamente, filósofos
seguidamente inventam novos termos e então professam ser
capazes de expressar o que é dito em tais enunciados como “João
teme um fantasma” em seu próprio vocabulário técnico. Mas,
quando eles tentam nos comunicar o que seus termos técnicos
supostamente significam, então, eles, também, referem a objetos
inexistentes tais como unicórnios).
1
Veja Gesammelte Abhandlungen, vol. II, p. 383.
173
Diz-se, às vezes, que Meinong não compreendia
apropriadamente o uso de palavras em contextos intencionais –
ou, em termos de nosso exemplo, que ele não compreendia
apropriadamente o uso das expressões “um fantasma” em
sentenças como “João teme um fantasma”. Ele erradamente
supunha, sugere-se, que a palavra “fantasma” tem um uso
referencial em “João teme um fantasma”. Mas, qual é realmente o
erro que Meinong cometia? Ele não cometeu o erro de supor que
a palavra “fantasma” em “João teme um fantasma” é usada para
referir a algo que existe ou a algo que é real. Teria esta palavra
um certo uso não-referencial nessa sentença e Meinong não se
deu conta desse uso? Mas, qual é este uso não-referencial –
diferente daquele de ser usado para nos dizer que João teme um
fantasma? Eu conheço quatro sugestões positivas, mas todas elas
parecem deixar Meinong imperturbado. Nesse sentido, foi dito (i)
que a palavra “fantasma”, em “João teme um fantasma”, é usada,
não para descrever o objeto que João teme, mas, apenas para
contribuir para a descrição do próprio João. Esta foi
essencialmente a sugestão de Brentano.1 Mas, realmente como
“fantasma” contribui aqui para a descrição de João? Ela não está
sendo usada para nos dizer que João é um fantasma, ou que o
pensamento de João é um fantasma, pois estas coisas são falsas,
mas “João teme um fantasma”, nós podemos supor, é verdadeira.
Seguramente, o único modo pelo qual a palavra contrigui aqui
para a descrição de João é em nos dizendo que objeto é que ele
teme. Foi sugerido também (ii) que a palavra “fantasma”, em
“João teme um fantasma”, funciona apenas como parte de um
expressão mais longa, “teme um fantasma”, e que o seu uso em
tal contexto não tem nenhuma conexão com o uso que ela tem em
sentenças como “Existe um fantasma”. (Compare-se o uso de
“unicorn” em “The Emperor decorated his tunic ornately”.) Que
esta sugestão é falsa, contudo, pode ser visto em notando-se que
“João teme um fantasma” e “O temor de João está dirigido
1
Veja Franz Brentano, The True and the Evident, London: Routledge Kegan Paul, 1966, Eng.
ed. Por R. M. Chisholm, pp. 68-69.
174
apenas para coisas que realmente existem” implicam juntas “Há
um fantasma”. Também foi sugerido (iii) que a palavra
“fantasma”, em “João teme um fantasma”, é usada para referir ao
que em outros usos constituiria o sentido ou conotação de
“fantasma”.1 Nesse caso, “João teme um fantasma” seria
construída como nos dizendo que há uma certa relação entre João
e um certo conjunto de atributos ou propriedades. Mas, que
atributos ou propriedades, e que relação? O próprio João pode
nos lembrar nesse ponto que o que ele teme é um certo concretum
e não um conjunto de atributos ou propriedades. Foi sugerido (iv)
que a palavra “fantasma”, em “João teme um fantasma”, está
sendo usada no “modo material” para referir a si mesma. 2 Mas,
João, obviamente, pode não temer a palavra “fantasma”. Para
dizer o que sobre João e a palavra “fantasma”, então, “João teme
um fantasma” estaria sendo usada?
O segundo tipo de enunciados intencionais é exemplificado
por
(b) A montanha que eu estou pensando é de ouro.
Para prover um contexto para um tal enunciado, nós
imaginamos um jogo em que os participantes têm que contemplar
uma montanha, tal como se poderia encontrar em Atlântida, e
então são levados a descrever a montanha que eles contemplaram.
O exemplo de Meinong, “A montanha de ouro é de ouro”, do
nosso segundo tipo acima, bem pode nos deixar mudos, mas
seguramente “A montanha que eu estou pensando é de ouro”
pode expressar uma proposição verdadeira.
A teoria das descrições de Russell não nos proporciona um
1
2
Esta interpretação pode ser sugerida pelo texto de Frege “Über Sinn und Bedeutung”,
Zeitschrift für Philosophie und philosophische Kritik, vol. C (1892), pp. 25-50; traduzido
como “On Sense and Nomination”, em Readings in Philosophical Analysis, New York:
Appleton-Century-Crofts, Inc. 1949, editado por H. Feigl e W. Sellars, pp. 85-102.
Carnap uma vez sugeriu que “Charles pensa (assere, acredita, admira-se com) A”, onde “A” é
pensado como sendo a abreviação de alguma sentença, poderia ser traduzida como “Charles
pensa ‘A’”; The Logical Syntax of Language, New York: Harcourt, Brace and Company 1937,
p. 248.
175
modo de parafrasear o enunciado, pois, outra vez, o procedimento
de Russell nos proporcionaria um enunciado que é falso (“Existe
um x tal que x é uma montanha que eu estou pensando e x é de
ouro, e para todo y, se y é uma montanha que eu estou pensando,
então, y é idêntica a x”).1
Os participantes do jogo que nós imaginamos bem podem
comparar montanhas: “A montanha que você está pensando difere
em aspectos importantes da montanha que eu estou pensando”.
Nós também podemos dizer que o objeto inexistente da atitude
intencional de alguém é idêntico ao objeto inexistente da atitude
intencional de outro? Eu penso que nós podemos seguidamente
assumir que isto é o caso. Tais enunciados de identidade nos
proporcionam um terceiro exemplo de um enunciado intencional
meinonguiano. Pois, nós podemos ser agnósticos e ainda assim
afirmar
(c) Todos os maometanos adoram o mesmo Deus.
Mas, eu penso que este exemplo é mais problemático do
que os outros. Se o enunciado em questão fosse verdadeiro, nós
poderíamos dizer de dois maometanos quaisquers que o Deus que
1
Em “On Denoting” Russell disse que “a objeção principal” aos objetos não existentes de
Meinong “é que tais objetos, reconhecidamente, são aptos a infringir a lei de contradição”;
veja B. Russell, Logic and Knowledge, London: George Allen and Unwin 1956, p. 45. Pois, o
quadrado redondo em que eu estou pensando pode um objeto que tanto redondo quanto nãoredondo. A réplica de Meinong foi que a lei de contradição (na forma, “Para qualquer atributo
F, não existe nada que exemplifique F e também não exemplifique F”) aplica-se somente ao
que é real ou possível; dificilmente alguém poderia esperar que ela se aplicasse a objetos
impossíveis tais como o quadrado redondo. Veja Über die Stellung der Gegenstandstheorie im
System der Wissenschaften, p. 16. Pode-se também argumentar que certos objetos possíveis
pareceriam infringir outras leis lógicas. Suponha que Jones, que erradamente acredita que F.
D. R. foi a assassinado, nos diz que o homem em que ele está pensando agora é o assassino de
F. D. R.; do enunciado verdadeiro de Jones segue-se que o homem em que ele está pensando
assassinou F. D. R.; mas, para qualquer x e y, se x assassinou y, então, y foi assassinado por x;
então, F. D. R. foi assassinado – e por um objeto não existente! Veja James Mish’alani,
“Though and Object”, The Philosophical Review, vol. LXXI (1962), pp. 185-201. A réplica
de Meinong poderia ser: o enunciado “Para qualquer x e y, se x assassinou y, então, y foi
assassinado por x” é verdadeiro apenas se nossas variáveis variam sobre objetos que existem;
e, mais genericamente, do fato que é uma parte do Sosein de um objeto não existente x que x
está em uma certa relação R com um objeto existente y, não se segue que é uma parte do
Sosein de y nem que y está relacionado pela relação conversa de R a x nem que x relacione-se
por R a y.
176
é adorado por um é idêntico ao adorado pelo outro. Mas,
realmente nós podemos dizer isso, se, como nós também estamos
inclinados a dizer, “O Deus que é adorado pelos maometanos não
existe”? Nós não deveríamos dizer, no máximo, que para dois
maometanos quaisquer, x e y, o Deus que x adora é muito
parecido com o Deus que y adora?1 (E, em vez de dizer “O Deus
que é adorado pelos maometanos não existe”, nós poderíamos nos
expressar mais precisamente em dizendo “Todo maometano é tal
que o Deus que ele adora não existe”.) Mas, para os propósitos de
Meinong, obviamente, é suficiente dizer que um objeto
inexistente é “muito parecido” a outro.
Se nós nunca podemos estar seguros de que o objeto
inexistente para o qual as atitudes intencionais de alguém estão
direcionadas é idêntico ao objeto inexistente para o qual as
atitudes intencionais de outro estão direcionadas, nós podemos
estar seguros, ocasionalmente, de que o objeto inexistente para o
qual as atitudes intencionais de alguém estão direcionadas é
idêntico a outro objeto inexistente para o qual as atitudes
intencionais desse mesmo alguém estão direcionadas. Assim, nós
podemos dizer de um crente obsessivo:
(d) A coisa que ele mais teme é a mesma coisa que ele mais
ama.
Qualquer teoria adequada das emoções pareceria implicar
1
P. T. Geach cita este exemplo: “Hob pensa que uma bruxa adoeceu a égua de Bob, e Nob
suspeita que ela (a mesma bruxa) matou a porca de Cob”; em “ Intentional Identity”, Journal
of Philosophy, vol. LXIV (1967), pp. 627-632. Há uma certa ambiguidade neste exemplo, pois
ele pode ser tomado como implicando seja que o objeto do pensamento de Hob é idêntico ao
objeto da suspeita de Nob, ou apenas que Nob pensa que ele é. Tomando-o no primeiro
sentido, como nós poderíamos alguma vez pensar que ele é verdadeiro? Hob pode assegurarnos que ele pensa existir uma e uma única bruxa que adeceu a égua de Bob e que ele também
pensa que esta bruxa é FGH, e ... (onde ‘F’, ‘G’ e ‘H’ podem ser pensadas como abreviações
de certos predicados); e Nob pode assegurar-nos que ele, também, pensa existir uma e uma
única bruxa que adoeceu a égua de Bob e que ele também pensa que esta bruxa é FGH, e ..., e
também, talvez, que ele, Nob, pensa que esta bruxa é a mesma que Hob acredita ter adoecido a
égua de Bob. Mas, nosso enunciado desses fatos não implica que o objeto do pensamento de
Bob é idêntico ao objeto da suspeita de Nob. E, dado que não existe nenhuma bruxa, é difícil
pensar alguma coisa que nós poderíamos aprender de Hob e Nob que iria implicar isso.
177
que um homem pode ter a qualquer tempo particular uma grande
variedade de atitudes e sentimentos direcionados para um único
objeto – mesmo que o objeto não exista.1
O último exemplo nos lembra do que Meinong observou
em uma conexão um pouco diferente - “nós também podemos
contar o que não existe”.2 Pois, um homem pode ser capaz de
dizer verazmente “Eu temo exatamente três pessoas” e todas as
três pessoas serem objetos que não existem.
Tais enunciados intencionais, então, são os que
proporcionam os melhores casos possíveis para a doutrina do
Aussersein de Meinong. Eu penso que deve ser concedido a
Meinong que não há nenhum modo de parafrasear qualquer um
deles de tal modo que nós saberíamos tanto (i) que é adequado
para a sentença que se pretende parafrasear, quanto (ii) que a
paráfrase não contém termos referindo ostensivamente a objetos
que não existem. Sem dúvida muitos filósofos estão préjudicados contra a doutrina de Meinong por causa do fato da
teoria das descrições de Russell, bem como pela teoria da
quantificação no modo como ela é interpretada nos Principia
Mathematica, não ser adequada aos enunciados com os quais
Meinong está lidando. Mas, este fato, Meinong poderia dizer, não
significa que os enunciados em questão são suspeitos. Apenas
significa que tal lógica, tal como ela é geralmente interpretada,
não é adequada aos fenômenos intencionais.
1
2
Pois a teoria de Meinong do valor está baseada nessa suposição; veja Zur Grundlegung der
allgemeinen Werththeorie, Parte II (“Die Wert-erlebnisse”).
“The Theory of Objects”, tradução inglesa, p. 79; Gesammelte Abhandlungen, vol. II, p. 487.
178
179
10.
Questões sobre a unidade da consciência
Roderick M Chisholm
“Questions about the unity of consciousness”, em Theorie der
Subjektivität, hrsg. von K. Cramer, H. F. Fulda, R.-P. Horstmann e
U. Pothast; Suhrkamp, 1990, pp. 95-101.
A conscienciosidade de um sujeito
Hume disse, no Tratado da Natureza Humana, que “quando
eu entro mais intimamente naquilo que eu chamo eu-mesmo, eu
sempre tropeço numa outra percepção particular, de calor ou frio,
luz ou sombra, amor ou ódio, dor ou prazer”. 1 Este não foi um
começo muito bom, pois o que Hume disse deve ser corrigido em
muitos aspectos.
(1) Ele não encontra amor ou ódio, dor ou prazer; tais
entidades são objetos abstratos – propriedades ou atributos. Se ele
não achasse que ele amava ou odiava, que ele tinha dor ou prazer,
então ele acharia ao menos que algo amava ou odiava e que
alguma coisa tinha dor ou prazer. Como disse Leibniz, de um
exemplo diferente, “o que chega a nossa mente é antes o
concretum concebido como sábio, quente, brilhante, do que
abstractions ou qualidades tais como sabedoria, calor, luz, etc.,
1
Tratado da Natureza Humana, livro I, parte IV, sec. VI, “Da identidade pessoal”.
180
que são muito mais difíceis de apreender.”1 Nós podemos ser
tentados a colocar as coisas tal como Russell o fez uma vez: “... o
dado quando nós somos conscientes de experimentar um objeto O
é o fato 'algo está familiarizado com O'. O sujeito aparece aqui,
não em sua capacidade individual, mas como uma 'variável
aparente'; assim tal fato pode ser um dado a despeito da
incapacidade de familiarização com o sujeito”.2 Se nós paramos
aqui, nós diríamos que o que Hume encontrou foi alguém
amando, alguém odiando, alguém com dor, alguém com prazer.
Esse modo de colocar as coisas abre a questão de que a
experiência de Hume envolvia vários sujeitos.
(2) Elizabeth Anscombe perguntou: “Como, sempre,
alguém pode justificar a suposição, se é uma suposição, que
existe apenas um pensar que é esse pensar desse pensamento que
eu estou pensando, apenas um pensador? Como eu sei que 'eu'
não é dez pensadores pensando em uníssono?” 3 Não poderia
haver, por exemplo, uma pessoa que está fazendo o que eu chamo
o meu ver e uma segunda pessoa que está fazendo o que eu
chamo o meu ouvir? Lembremos o que Brentano disse sobre a
unidade da consciência no seu Psicologia de um ponto de vista
empírico:
Quando alguém pensa sobre e deseja algo, ou quando ele pensa sobre
vários objetos ao mesmo tempo, ele está consciente não apenas de
diferentes atividades, mas também de sua simultaneidade. Quando
alguém ouve uma melodia ele reconhece que tem a apresentação de
uma nota como ocorrendo agora e de outras notas como tendo já
ocorrido. Quando uma pessoa é consciente de ver e ouvir, ela é
também consciente que está fazendo ambos ao mesmo tempo. Agora,
se nós colocamos a percepção de ver em uma coisa e a percepção de
ouvir em outra, em quais dessas coisas nós encontramos a percepção
de sua simultaneidade? obviamente, em nenhuma delas. Claro é, antes,
que a cognição interna de uma e a cognição interna de outra deve
1
2
3
Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, livro II, cap. XXIII, sec. I.
“Sobre a natureza da familiaridade”, The Monist, v. 24 (1914): 435-453, p. 441.
“A primeira pessoa”, p. 58.
181
pertencer à mesma unidade real.1
“Como eu sei que 'eu' não é dez pensadores pensando em
uníssono?” O fato da unidade da consciência nos dá uma peça de
informação que é relevante: se houvesse dez pensadores pensando
em uníssono, então eu saberia, com respeito a cada um desses
pensadores que ele estava pensando. Um desses pensadores, pelo
menos, teria um acesso privilegiado aos outros.
(3) Agora vamos considerar um outro princípio ao qual
Brentano apela.
É certo que nenhum de nós nem nenhum outro ser que apreende algo
com evidência direta como um fato pode ter alguma coisa que não a si
mesmo como objeto de seu conhecimento. (...) Para clarificar isso
deixe-me enfatizar que não é suficiente para o conhecimento fatual
direto que aquilo que é conhecido seja idêntico com o conhecedor. Nós
devemos, portanto, conhecer que aquilo que é conhecido é idêntico
como o conhecedor.2
De acordo com o primeiro ponto de Brentano, se houvesse
dez pensadores “pensando em mim”, então eu saberia
diretamente, com respeito a cada um deles, que ele estava
pensando e eu também saberia o que ele estava pensando. E de
acordo com o seu segundo ponto, se eu sei diretamente com
respeito a algo, que ele está pensando, então eu sou esse algo. E
isso é como eu sei, com respeito aos pensadores que eu encontro
pensando em mim, que existe apenas um deles e que eu sou esse
pensador.3
Portanto, há maneiras pelas quais a proposição de Hume
deveria ser modificada.
Mas novos estudos em psicologia e fisiologia colocaram em
questão a tese da unidade da consciência.
1
2
3
Psicologia de um ponto de vista empírico, p. 226.
“Consciência sensorial e noética”, p. 6.
Brentano conclui, por conseguinte, que a proposta de interpretação do cogito cartesiano de
Lichtenberg como “Algo pensa em mim” é uma “melhoria agravadora”.
182
Consciência e o fenômeno do cérebro bipartido
A descoberta nos anos quarenta do século passado de certos
fenômenos cerebrais inesperados – fenômenos que resultam do
corte da conexão entre os dois hemisférios do cérebro – levou
alguns a colocar em questão a tese da unidade da consciência.1
No tratamento de certas desordens cerebrais, o órgão que
conecta os hemisférios direito e esquerdo do cérebro é cortado. 2
O resultado é que os dois hemisférios perdem a sua comunicação
normal um com o outro. O assim chamado “fenômeno do cérebro
bipartido” aparece quando um tal paciente é submetido a certos
experimentos. Um tipo de experimento é esse. O paciente é
submetido a certos estímulos sensíveis que afetam o hemisfério
direito e a certos outros estímulos que afetam o hemisfério
esquerdo. Isso é feito rapidamente de tal modo que cada um dos
dois conjuntos de estímulos afeta apenas um hemisfério e não o
outro. Assim, se os estímulos envolvidos são visuais, o
experimento é realizado de tal modo a prevenir a possibilidade de
movimentos dos olhos (assegurando assim que cada conjunto de
estímulos atue apenas sobre um dos dois hemisférios). O
resultado de tais estímulos são exemplos do assim chamado
“fenômeno do cérebro bipartido”.
Vamos considerar um experimento visual típico.
O paciente é colocado numa posição tal que normalmente
uma pessoa que está nessa posição veria ambos um anel e uma
chave.3 Ela veria um anel em virtude da estimulação daquelas
partes de seu olho esquerdo que afetam o hemisfério direito; e ela
veria uma chave em virtude da estimulação daquelas partes do
seu olho direito que afetam o hemisfério esquerdo. Mas o
paciente, quando perguntado, relata que ele viu um anel e nega
1
2
3
Um sumário útil dos dados relevantes foi providenciado por Thomas Nagel, em Brain
Bisection and the Unity of consciousness, que primeiramente apareceu em Synthese, v. XXII
(1971), e foi re-impresso em John Perry (ed.), Personal Identity, University of California
Press, 1975, pp. 227-245.
O órgão é chamado “corpus callosum” e a operação em questão uma “comissurotomia”.
Comparar C. F. Marks: Commissurotomy Consciousness and Unity of Mind (Bradford Books,
1980).
183
que ele viu uma chave. Logo, pareceria que ele estava no estado
de consciência que seria normalmente produzido pelo efeito sobre
o hemisfério direito (ver um anel) e que ele não estava no estado
de consciência que seria normalmente produzido pelo efeito sobre
o hemisfério esquerdo (ver uma chave). Ainda haveria outra
evidência sugerindo que o sujeito sim vê uma chave e logo que o
efeito sobre o hemisfério esquerdo é acompanhado pelo tipo de
consciência que normalmente o acompanha. Por exemplo, quando
perguntado se pode alcançar a chave que ele viu ele a apanha e
não o anel.1 Pareceria, então, que quando o hemisfério direito faz
o trabalho então o paciente tem uma consciência normal do
objeto relevante. Mas quando o hemisfério esquerdo faz o
trabalho, nenhuma consciência é relatada. E ainda assim pode
haver comportamento conectado com o que seria normalmente
associado com a consciência do objeto relevante.
Os três momentos do fenômeno pode agora ser resumidos
assim:
(a) “Você vê um anel?”, “Sim”.
(b) “Você vê uma chave?”, “Não”.
(c) “Pegue a chave que você viu.” O paciente apanha a
chave.
O que não é esperado é a ocorrência concomitante desses
três momentos.
O fenômeno pode ser interpretado de tal modo que eles
sejam inconsistentes com a tese da unidade da consciência. Mas,
eles não precisam ser tomados desse modo.
Vamos agora considerar os possíveis tipos de explanação.
1
“O que é iluminado para a metade direita do campo visual, ou sentido como não-visto pela
mão direita, pode ser relatado verbalmente. O que é iluminado para a metade esquerda do
campo ou sentido pela mão esquerda não pode ser relatado, embora se a palavra “chapéu” é
iluminada para o esquerdo, a mão esquerda irá encontrar um chapéu num grupo de objetos
ocultos se é dito para a pessoa para apanhar o que ela está vendo. Ao mesmo tempo ela irá
insistir verbalmente que ela não via nada.” Nagel, em Perry, op. cit., p. 231.
184
(I) Uma possível resposta seria que a tese da unidade da
consciência é aqui falsificada. Em tal caso, nós deveríamos dizer
do paciente que (i) ele vê um anel, (ii) ele vê uma chave, (iii) ele
considera a questão de se ele vê ambos um anel e uma chave, e
(iv) ele conclui que ele não vê ambos um anel e uma chave.
(II) A segunda possível resposta tem a ver com nossa
interpretação do segundo momento do fenômeno – nossa
interpretação do fato que o paciente diz que ele não vê uma
chave. O problema, nós podemos dizer, tem a ver com um
sistema defeituoso de resposta – com a inabilidade ou
indisposição de relatar aquelas experiências conscientes que são
condicionadas pelo hemisfério esquerdo. Esse modo de
considerar o assunto é consistente com a tese da unidade da
consciência. Muitos investigadores irão salientar que ela não é
muito plausível. A questão é, contudo, se ela é menos plausível
que suas alternativas.
(III) De acordo com a terceira hipótese, o paciente é
consciente de ver um anel e alguém (algo) outro que não o
paciente é consciente de ver uma chave. Esta hipótese é algumas
vezes tomada como implicando que o paciente tem “duas
mentes”.1 Pressupõe-se, aparentemente, que há uma distinção
entre uma “mente” e uma “pessoa” – que a mente e não a pessoa
é o sujeito de experiência. Mas qual razão existe para supor que
em adição à pessoa e seu corpo há tal coisa como sua mente?
Uma interpretação alternativa dessa terceira hipótese seria
dizer que existem duas pessoas compartilhando o mesmo corpo.
(Esta possibilidade sugeriu para alguns que se o cérebro de
alguém poderia ser propriamente e permanentemente bipartido,
então alguém poderia “tornar-se duas pessoas”.) Há dois casos a
1
A interpretação “duas mentes” do fenômeno do cérebro bipartido é sugerida por R. Pucceti,
em Brain Bisection and Personal Identity, British journal for the Philosophy of Science, v. 24
(1973), 330-355. Comparar com L. W. DeWitt, Consciousness, Mind and Self, mesmo jornal,
v. 26 (1975), 41-47, e com B. Rose, The split brain concept, Scientific Forum, v. 12, 30-33. O
último artigo é um panorama geral.
185
serem distinguidos aqui. Nós podemos concluir que a segunda
pessoa entra em cena apenas depois da operação. Ou nós
podemos concluir que a segunda pessoa está lá nos casos normais
– uma pessoa fazendo uma parte da percepção e a outra pessoa
fazendo a outra.
Estaria essa interpretação multiplicando pessoas para além
da necessidade?
(IV) De acordo com uma quarta hipótese, o paciente é
consciente de ver um anel, enquanto o ver uma chave é objeto de
consciência mas não objeto de nenhuma consciência do sujeito.
Mas o que significa dizer que uma coisa x pode ser um objeto de
consciência sem que exista uma coisa y tal que y é consciente de
x?
(V) De acordo com a hipótese final, o paciente é consciente
de ver um anel e não há nenhuma consciência de ver uma chave.
Isto é inconsistente com aquela teoria filosófica que diz, de certos
tipos de respostas ou certos tipos de fenômenos cerebrais, que tais
fenômenos são sempre acompanhados por estados de consciência
de um certo tipo. Ela pode ser tomada como confirmando uma
abordagem “epifenomenalista” de estados de consciência – ou de
certos estados de consciência. Isso significa dizer, ela pode ser
tomada como confirmando a teoria de acordo com a qual tais
estados sobrevêm sobre os estados fisiológicos sem que eles
mesmos exerçam nenhum papel causal no comportamento. Pois,
se a teoria é verdadeira, então o fato de que não há nenhuma
consciência de ver uma chave não afeta o ajustamento do
paciente à presença da chave.
Portanto, não é a segunda hipótese a que é a menos
implausível? Se é assim, não existe nenhuma necessidade de
rejeitar a tese da unidade da consciência.
186
187
11. Apresentação (da Teoria do objeto de A.
Meinong)
Jean-François Courtine
“Présentation” in A. Meinong, Théorie de l’objet et Présentation
personnelle; trad. J.-F. Courtine et M. de Launay; Paris, J. Vrin,
1999. pp13-39)
(...)
II.
O ser tão pouco “é” quanto o nada. Mas, dão-se ambos. (M. Heidegger)
A história da problemática da objetalidade é longa e
complexa, pois, em um sentido ela se abre por uma pista
platônica, fechada logo depois de ter sido aberta: o Sofista pode
bem ser considerado como o primeiro grande tratado de
ontologia, depois do Poema de Parmênides. Nesse diálogo – subintitulado (mesmo que se saiba que estes títulos são escolásticos e
tardios): u@  u@- aparece
uma passagem geralmente pouco notada, sobre a qual P.
Aubenque chama a atenção em seu seminário do Centre Léon
Robin: o estrangeiro pergunta (237 A), quando se trata do 
ou, mais prudentemente, deste nome, deste grupo de paralavras
188
, se se pode dizer, enunciar, proferir ()?
Perguntado de outro modo: a que se aplica, sobre o que remete
() este nome? Seguramente não sobre o que é, ao ente
(). Mas, então, a quê? @? “A que,
a qual objeto?”, traduz com uma segurança sonâmbula M. Diès.
A que e como qualificar a atribuição deste “nome”:  ?
Consideremos a resposta, mais erudita do que ingênua, do
interlocutor Teeteto: talvez ao . Se não é , pois que
se trata justamente do não-ser, talvez seja:  que aplicase o , a atribuição referencial? Mas, o estrangeiro
fecha logo a via, encontrada, de uma teoria do objeto:
É claro ainda para nós (...) que este vocábulo “qualquer” (), é ao
ser
que
nossas
expressões
se
aplicam
(). Formulá-lo isoladamente, com
efeito, nu, desprovido de tudo o que é, é impossível, não é verdade?
O argumento platônico é aqui o seguinte: dizer qualquer
coisa(), é sempre na verdade dizer “um” (). O  é,
assim, ele mesmo necessariamente @u@1 E
dizer um é dizer também o outro (Cf. 238 B): para nós, o número
em
seu
conjunto,
é
do
ser:
u@.
Ora, é este interdito platônico da “tino-logia” 2 que será,
1
2
Cf. também Parmênides, 132 B-C: “Nesse caso, teria replicado Parmênides, cada um desses
pensamentos é um pensamento uno, mas pensamento de nada? – Não, impossível, responde
Sócrates. Então, pensamento de um objeto? – Seguramente, - Que é ou que não é? – Que é!”
(trad. Diès).
Cf. Pierre Aubenque, “Une occasion manquée: la genèse avortée de la distinction entre
l”étant” et le quelque chose””, Études sur le Sophiste de Platon, publicado sob a direção de P.
Aubenque e M. Narcy, Bibliopolis, Naples, 1991, p365-85. Além desta “ocasião perdida”, a
história da “tino-logia” resta por ser escrita: ela deve ser orientar não mais sobre Platão e
Aristóteles, mas sobre a doutrina estóica das categorias, do e do , como sobre a
distinção do u e do u, sobre a doutrina do dictum propositionis em
Abélard, e do complexe significable em Grégoire de Rimini, passando pelo estudo dos seres
de razão, das ficções e dos impossibilia (Quimera e bode-cervo). Cf. sobre este último aspecto
a brilhante perspectivação de Sten Ebbesen, “The Chimera’s Diary”, em The Logic of Being,
op.cit, p115-143, e tos trabalhos muito documentados de John P. Doyle, notadamente:
189
precisamente, e que deverá ser levantado bem mais tarde na
escola de Brentano, pelo fato precisamente que o ensinamento de
Brentano renovará a questão do objeto ou da objetalidade, ou
simplesmente a abrirá novamente. Pode parecer paradoxal ver se
desenvolver na escola de Brentano uma disciplina nova chamada
a tomar o lugar da ontologia, se lembramos o aristotelismo
constantemente afirmado e afixado por Brentano: depois de sua
dissertação de 1863 até as notas póstumas Sobre Aristóteles,
publicadas em 1986 por R. George. Porém, é mesmo Brentano,
desde antes de sua Psicologia de um ponto de vista empírico, que
contribuiu para abrir em nova roupagem a questão do objeto e da
objetalidade. Desde seus primeiros trabalhos consagrados a
Aristóteles (a tese de habilitação de 1863, Dos múltiplos sentidos
do ser em Aristóteles, e a obra de 1867 sobre a Psicologia de
Aristóteles), Brentano redescobre, com efeito, aquilo que se
denomina a estrutura intencional de toda consciência, ou mais
exatamente a “inexistência intencional” do objeto, característica
de toda representação, na medida em que esta constitui, por outro
lado, o traço fundamental de todos os fenômenos psíquicos. Por
isso mesmo, Brentano lega a sua escola ou aos seus discípulos um
problema enorme, o do estatuto deste objeto ou de sua
“objetidade” específica. Relembremos a passagem de Aristóteles
sobre
a
qual
se
apóia
Brentano:
u
u@(Metafísica,  9, 1074 b35). (N.T.
“Evidentemente, o conhecimento e a percepção têm sempre algo como seu
objeto”)
O que significa dizer, agora positivamente, tratando-se do
“Another God, Chimerae, Goat-Staggs, and Man-Lions: a seventeenth-century debate about
impossible objcts”, em Review of Metaphysics, v.48, n4, 1995, p771-808. – Este desideratum
evocado ligeiramente, deve-se ter em muito maior conta a observação de Kenneth J. Perszyk e
de sua aobrdagem: “ ... seria interessante ter um estudo detalhado da história da noção de
objetos não-existentes, mas eu estou seguro de que isto seria a culminação do trabalho de uma
vida se bem feito...; Deve-se estar ciente dos perigos que esperam aquele que penetra nas
águas turbulentas entre a Scylla da ignorância da história da filosofia e a Charybis das
formulações simplistas dessa história”, em Nonesistent Objects: Meinong and Contemporary
Philosophy, Dordrecht, Kluwer, 1993, p68.
190
intelecto ou do u@, que o intelecto (ou o entendimento) não é
ele mesmo em realidade nada, nada senão o objeto que ele
conhece. Se ele é em potência (u) todas as coisas
(u, Da Alma III, 431 b 21), ele
não é senão o que ele pensa e não poderia se referir a si mesmo
ou se conhecer na ausência de seu “objeto”. O mesmo se dá com
a análise aristotélica da percepção (), ao menos
segundo o modo como Brentano a compreende (Da Alma, 425 b
23 sg.): a presença física de uma qualidade no órgão sensorial (a
mão tocando que pode ser fria ou quente) deve ser
cuidadosamente distinguida da atualização objetiva de tal ou tal
qualidade ou de sua forma sensível tal qual ela reside objetiva no
sentido ou no sentir (uu).
Nós queremos agora defender a idéia de que a Teoria do
objeto, abordada ou desenvolvida mais ou menos completamente
por Kasimir Twardowski, Alexius Meinong, Ernst Mally et
Edmund Husserl, é uma consequência da caracterização de
Brentano da intencionalidade e do problema, legado desta vez por
Bernard Bolzano, das representações sem objeto1; a questão agora
é de saber em que medida esta teoria do objeto não faz senão o
papel de substituta da ontologia moderna (clássica-moderna), tal
qual ela encontra sua primeira sistematização com Suárez e se
desenvolve até Kant2.
Porém, para começar: que quer a teoria do objeto? E
porque houve a necessidade de uma teoria geral do objeto na
escola de Brentano?
A tese brentaniana fundamental da intencionalidade da
1
2
Bolzano, Wissenschaftslehre, I, §66: “Vorstellung, die einen oder mehrere Gegenstände
haben, nenne ich gegenständliche oder Gegenstandsvorstellungen; solche dagegen, die keinen
ihnen entsprechenden Gegenstand habem, gegenstandlos”. Em realidade, este parágrafo é
ininteligível sem as definições dos §48-50, eles mesmos tão cheios de dificuldades que
mereceriam uma explicação detalhada que nós não podemos entrar aqui.
Nós tivemos a ocasião de esboçar este ponto na conclusão de nosso Suárez et le système de la
métaphysique, Paris, PUF, 1990. – Sobre a radicalidade da ruptura kantiana com a escolástica
tardia e a neo-escolástica, vide Jocelyn Benoist, “Sur une prétendue ontologie kantienne: Kant
e la néoscolastique”, em Kant et la pensée moderne: alternatives critiques, texto apresentado
por Ch. Ramond, Bordeaux, Presses Universitaires de Bordeaux, 1996, p 137-163.
191
consciência, a tese da in-existência intencional do objeto, é que
torna necessária a elaboração de uma tal teoria. Com efeito, se os
fenômenos psíquicos são aqueles que contêm intencionalmente
neles um objeto, abstração feita do ponto de saber o que é
realmente a existência do objeto, no mundo, ou fora da
consciência, e se há representações sem objetos no sentido real e
mundano da objetividade referencial, a questão de saber como
fixar essencialmente e entitativamente este “objeto” se põe
naturalmente. O horizonte brentaniano e sua tese fundamental:
todo ato mental é uma representação (Vorstellung), ou é fundado
sobre uma representação, permanece determinante em
Twardowski e em Meinong.
Em sua Psychologie, Brentano expôs nestes termos a
divisão das atividades psíquicas:
Deve-se distinguir a partir de seu modo de relação com o objeto três
classes principais de atividades psíquicas: (...) nós damos à primeira
o nome de representação, à segunda o nome de juízo (Urteil), e à
terceira o nome de movimento afetivo (Gemütsbewegung), interesse
(Interesse), amor (Liebe).1
A primeira classe é que joga o papel central ao olhos de
Brentano:
Nós falamos de representação cada vez que um objeto nos aparece
(wo immer uns etwas erscheint). Quando nós vemos qualquer coisa,
nós nos representamos uma cor; quando nós ouvimos qualquer coisa,
nós nos representamos um som; quando nós imaginamos qualquer
coisa, nós nos representamos uma imagem. Empregando a palavra
com esta significação geral, nós pudemos dizer que a atividade
psíquica não pode jamais se relacionar a qualquer coisa que não seja
objeto de representação (was nicht vorgesstellt werde).2
Esta mesma tese tinha sido firmemente afirmada no livro II
(Cap. I):
Segundo nosso uso do termo “representar”, ser representado equivale
à aparecer.
1
2
Livro II, cap.6, éd. º Kraus (Meiner, 1971), t.II, p33; trad. Fr. M. de Gandillac, Paris, Aubier
1944, p203.
Ibid. p34. [- Nota de crb: Courtine perverte o sentido do texto de Brentano ao inserir o termo
“objeto” ali onde não há nenhum correspondente na frase do autor...]
192
(...)
Por fenômenos psíquicos nós entendemos as representações assim
como todos os fenômenos que repousam sobre as representações.
(...) A representação não constitui apenas o fundamento do juízo, mas
também do desejo e de todo outro ato psíquico. Nada pode ser
julgado, mais, nada além disso pode ser desejado, nada pode ser
esperado ou temido que não tenha sido representado.1
É neste contexto que a obra de K. Twardowski (Zur lehre
von Inhalt und Gegenstand der Vorstellungen)2 adquire toda a sua
importância para a elaboração da Teoria do objeto. O alcance da
obra de Twardowski se deve, por uma parte, à elucidação que ela
fornece da doutrina brentaniana da intencionalidade ou da
inexistência intencional, tal qual ela é formulada na Psicologia de
um ponto de vista empírico de 18743 e, de outra parte, ao seu
pano de fundo histórico que reconduz, até Bolzano e à doutrina
das representações sem objetos, à escolástica aristotélica, via
Suárez.
Certamente seria equivocado procurar uma filiação muito
estreita entre Twardowski e Meinong, mas o que nós queremos
sugerir aqui é que a teoria dos objetos de Meinong responde às
dificuldades levantadas e tematicamente explicitadas por
Twardowski4. A doutrina brentaniana da representação, mesmo
que ela esteja orientada essencialmente para um objeto
(Gegenstand) constitui, com efeito, o ponto de partida da análise
de Twardowski que procura então distinguir as diferentes
acepções de objeto intencional:
1
2
3
4
Ed. Cit. t. I, éd. Kraus, p112; trad.fr, p94.
Viena, 1894. Reimpressa com uma introdução de R. Haller, Viena-Munich, Philsophia Verlag,
1982; tradução francesa de Jacques English, em Husserl-Twardowski, Sur les objets
intentionnels 1893-1901, Paris, Vrin, 1993, p85-200.
Sobre a doutrina brentaniana e seu horizonte aristotélico, vid. J.-F. Courtine: “L’aristotélisme
de Franz Brentano”, em Recherches phénoménologiques, n27-28, 1998, p7-50.
Para um resumo geral da obra, nós podemos indicar as notáveis apresentações de Jan
Sebestik: “Twardowski entre Bolzano et Husserl: la théorie de la représentation”, em
Grammaire, sujet et signification, Cahiers de philosophie ancienne et du langage, Paris,
L’Harmattan, 1994, p61-85, e de J. Benoist: “A l’origine de la phénoménologie: au-delá de la
représentation”, Critique, juin-juillet 1995, p480-506.
193
... faz-se necessário distinguir o objeto sobre o qual (worauf) se
dirige, por assim dizer, nosso representar do objeto imanente ou do
conteúdo da representação.1
Twardowski cita a Logique de A. Höfler, publicada em
colaboração com Meinong (Viena, 1890), que já indicava a
ambiguidade dos termos “Gegenstand” e “Objekt”. O
Gegenstand pode ser entendido literalmente como “o que se põe
diante”, “o que subsiste por si” (dasjenige an sich Bestehende), e
sobre o qual se dirige nossa representação ou nosso juízo, e o
Ojbekt pode ser entendido como uma “imagem”, uma “quaseimagem”, ou melhor, um signo (Zeichen) do Gegenstand que é aí
o “real” (Das Reale) ao qual reenvia a imagem. Esta entidade
intermediária pode de direito ser caracterizada como o conteúdo
(Inhalt) da representação: “diferenciando do que está diante ou do
objeto tido como independente do pensamento, denomina-se
também o conteúdo de uma representação e de um juízo (...)
objeto imanente ou intencional...”2.
Resguardando-se de ver nessas linhas qualquer antecipação
que seja da teoria desenvolvida por Meinong, notemos apenas os
elementos doutrinais, ou melhor, os termos da questão: distinguir
do objeto imanente, que reenvia à representação, um Gegenstand
que tem sua consistência própria, seu “em si” e sobretudo seu
modo de doação irredutível; Meinong retornará a este ponto que
constitui certamente uma das dificuldades maiores da doutrina: a
independência do objeto.
Para Twardowski, trata-se também, em seu tratado de 1894,
de distinguir o ato de representar (ou de julgar), o objeto
imanente ou intencional e o Gegenstand, como o que se põe
diante, como o que não é justamente objeto imanente
(immanentes Objekt) – distinção que se torna urgente e
problemática quando o objeto representado não é precisamente
um objeto que nós dizemos real ou existente, quando se tem que
considerar, ainda uma vez, “representações sem objeto”
1
2
Twardowski, op.cit., p4, trad. p88.
Op. Cit, p4, tr. Fr. (modificada), p88.
194
(gegenstandlose Vorstellungen) (§5).
Bolzano – escreve Twardowski – ensina que há representações sem
objetos (gegenstandslose Vorstellungen), isto é, representações que
são desprovidas de objeto (Gegenstand). Se alguém (...) assegura
achar absurdo sustentar que uma representação não tenha nenhum
objeto (Gegenstand) e, portanto, nada representar (und also nichts
vorstellen), isto se deve unicamente a que ele confunde o conteúdo
da representação (Inhalt der Vorstellung), que certamente ecoa em
cada representação, com o objeto da representação (Gegenstand der
Vorstellung). E como exemplo de tais representações “sem objeto”,
Bolzano cita as representações: nada, quadrado redondo, virtude
verde, montanha de ouro.1
A distinção é clara, ao menos numa primeira aproximação:
cada representação comporta necessariamente um representado,
no sentido de conteúdo da representação, mas a cada
representação não corresponde necessariamente um objeto, no
sentido de algo que se põe diante e que, transcende o ato, que
seria o visado como sua referência pelo conteúdo representado. É
tentador dizer-se que a Gegenstandstheorie elabora-se contra a
possibilidade desta dissociação: toda representação tem um objeto
(Gegenstand – termo que se permite entender também como o
que tem sua consistência em si mesmo, que se apresenta ou se dá
ao ato de representar), que este objeto exista ou não, que este
objeto corresponda ou não a qualquer coisa real, possível ou
impossível (a montanha, a montanha de ouro ou o quadrado
redondo).
Tudo se passa – veremos – como se Meinong recusasse a
dissociação operada por Bolzano entre o que pertence por
essência à toda representação (jeder Vorstellung zukommt) e o que
não lhe pertence necessariamente: encontrar (treffen) um objeto.
Recusa esta que implica, evidentemente, e isto será uma aposta da
Gegenstandstheorie, dar um outro sentido ao Gegenstand, ao
objeto agora estranho ao ser ou “fora do ser” (ausserseiend), para
além da alternativa do ser e do não-ser. Dar um outro sentido é,
1
Op. Cit. p20; trad. fr. (modificada), p105. A referência remete à Wissenschaftslehre, §67.
195
sem dúvida, desenvolver uma outra sintaxe, isto é, não mais
considerar o objeto (Gegenstand), assim como o fazia Kerry,
citado por Twardowski1, como o que pode ou não “cair sob uma
representação”, ser subsumido sob uma representação (unter
diese Vorstellung kein Gegenstand fallen könne). Se podemos
aqui falar de uma outra gramática do objeto, é no sentido que a
representação tem por essência seu objeto, seu vis-à-vis, e que
importa estabelecer este ponto antes da questão de saber se este
vis-à-vis é ou não exemplificado ou instanciado no domínio do
que é real, do que houve ou do que possivelmente será. Um tal
vis-à-vis, para retomar um dos exemplos de Bolzano, não é
justamente nada (nichts): é sempre qualquer coisa (etwas,
qualquer coisa: aliquid, isto é, também non-nihil), trate-se de uma
virtude verde ou de bode-cervo.
O que Twardowski distingue aqui claramente, e este ponto
será ainda decisivo para Meinong, é a natureza das questões:
saber se uma representação, a qual pertence sempre um conteúdo,
tem ou não um objeto; e a questão de saber se o objeto desta
representação existe ou não, se ele é possível ou impossível
porque intrinsecamente contraditório. Twardowski põe também
qualquer coisa como uma figura elementar da distinção do ser e
do ser-tal (Sosein):
Uma montanha de ouro, por exemplo, tem entre outras a propriedade
de ser espacialmente estendida, de ser composta de ouro, de ser
maior ou menor que outras montanhas. Estas propriedades e esta
relação de grandeza frente a outras montanhas não se repetem
claramente no conteúdo da representação. Pois, este não é
espacialmente estendido, nem de ouro, e também não é possível que
sobre ele se apliquem enunciados sobre relações de grandeza. E,
mesmo se a montanha de ouro não existe, atribui-se a ela, na medida
em que ela é objeto de uma representação, estas propriedades e se a
coloca em relação com outros objetos de representação, talvez tão
pouco existentes como ela. E isto é igualmente válido para os objetos
aos quais se confere determinações contraditórias umas com as
outras.2
1
2
Op. cit. p21.
Op. cit. p30-31; trad. 116.
196
Seja ainda a mesma análise, agora abordada no que
concerne às funções distintas do nome (Kundgebung, Bedeutung,
Nennung): o nome pode manifestar qualquer coisa, dar uma
informação sobre o que se passa no espírito daquele que se
representa x ou y, por exemplo, um quadrado com ângulos
agudos; ele pode também “significar” e ele significa sempre
qualquer coisa (se se trata de um nome e não apenas de um flatus
vocis: “Blituri” ou ), mesmo um conteúdo feito de
propriedades contraditórias e, enfim, ele nomeia qualquer coisa
(etwas), esta “coisa”, mesmo que ela seja reconhecida como
contraditória, isto é, desprovida de toda existência real ou
possível em virtude dos elementos incompatíveis. É este último
etwas, o qual corresponde ao “nomeado”, que Meinong
considera, sob o título de Gegenstand, diferente por princípio do
conteúdo representado. Do que é recusado a existência, se
tratanto de um quadrado com ângulos agudos, não é
evidentemente do conteúdo da representação, mas o nomeado, a
saber o sujeito de tais propriedades – sujeito entendido aqui como
Träger dieser Eigenschaften1. Às representações sem objeto não
falta portanto o objeto (não há não-objetivo), mas a elas pode
faltar o sujeito, do suporte ou suposto suscetível de dar o ser ou
melhor de sustentar no ser tais determinações; elas podem ser
“anhypostáticas” ou “anhypárxicas”.
A nuance aqui é decisiva – e é ela que abre o campo para a
Gegenstandstheorie, no sentido forte – entre a tese segundo a
qual os objetos de certas representações não existem e a tese de
que certas representações não têm objeto, pois que sob estas
representações não caem nenhum objeto. E aí também,
Twardowski percebe perfeitamente a aposta dessa distinção: uma
tal distinção, objeta-se, poderia bem confundir a divisão entre a
existência e a não-existência; o objeto inexistente de uma
representação, porque seu conteúdo comporta marcas
características contraditórias, existe entretanto a título de objeto
1
Op. cit. p24; trad. p109.
197
representado. Que é desta segunda figura do existir? O que é um
objeto representado? Qual é o seu estatuto ontológico ou metaontológico? Quantas questões legadas a Meinong pelo ensaio de
1894! Questões esssencialmente ligadas que convém acentuar a
expressão:
“vorgestellter
Gegenstand”:
“vorgestellter
Gegenstand” (e se racai então nas interpretações triviais do ens
rationis) ou “vorgestellter Gegenstand”, e o ponto agora é o de
determinar o estatuto desta Gegenständlichkeit estranha ao ser,
extra-ontológica ou, literalmente, fora do ser (ausserseiend).
Ao sugerir aqui que as formulações de Twardowski podem
ter contribuído de maneira decisiva para a posição da questão do
objeto, e para a elaboração da Teoria do objeto, deve-se
acrescentar logo que Twardowski barrou esta via, ao interpretar
em sentido clássico psicológico o ser-representado ou o objeto
representado:
À existência efetiva de um objeto, tal qual ela forma o conteúdo de
um juízo de reconhecimento, se opõe a existência fenomenal,
intencional deste objeto: ela consiste apenas e unicamente no tornarse representado (in dem Vorgestelltwerden).1
A conclusão do §5 merece de ser citada um pouco mais
longamente, pois, testemunho desta mesma ambiguidade que nós
estamos indicando, ela é atravessada igualmente por este duplo
gesto de abertura e de fechamento:
A expessão “representação sem objeto” é tal que ela contém uma
contradição interna. Pois, não há representação que não representa
qualquer coisa em tanto que objeto; não pode haver semelhante
representação. Há, ao contrário, muito numerosas representações
cujo objeto não existe (dagegen gibt es viele Vorstellungen, deren
Gegenstand nicht existirt) e isto, ou porque este objeto reune
determinações contraditórias umas com as outras e, portanto, não
pode existir, ou porque de fato ela não tem um. Mas, mesmo nesse
caso, um objeto é representado, de tal maneira que se pode bem falar
de representações cujos objetos não existem, mas não de
1
Op. cit. p25; trad. p110.
198
representações que seriam sem objeto, às quais não corresponderia
nenhum objeto.1
O que sobressai nesta passagem, é ainda a importância, para
a elaboração triádica da intencionalidade brentaniana (ato,
conteúdo, objeto), da hipótese formulada por Bolzano das
representações sem objeto, mas aparece ao mesmo tempo que a
análise aqui esboçada por Twardowski permanece enleada por
uma indeterminação singular: com efeito, o que é o representar
que deve sempre e essencialmente representar qualquer coisa
enquanto objeto (etwas als Gegenstand)? E o que é da
representatividade deste objeto? Deste objeto que pode não
existir, porque ele é contraditório, ou deste objeto que não existe
de fato (es tatsächlich nicht gibt), como a montanha de ouro.
Como, do lado do objeto, pensar a articulação entre o objeto
representado que não existe e o objeto que não responde ou não
corresponde à representação? É no mesmo sentido de
representação e de representatividade que se fala de uma
representação cujo objeto não existe e de uma representação a
qual não corresponde nenhum objeto, uma vez que agora se
mantém, como o faz Twardowski, a distinção real entre conteúdo
e objeto, e também que está em questão a representação sem
objeto?
Portanto, a conclusão do §7 pode, parece-me, contribuir
para definir precisamente uma ciência geral do objeto, entendido
como “qualquer coisa” (etwas, ). Se a definição é afinada,
deixando-se de lado tudo o que não pertence ao cerne do
definiendum, do ente, chega-se ao etwas:
Alles was ist, ist ein Gegenstand möglichen Vorstellens: alles was ist,
ist etwas.2
1
2
Op. cit. p29; trad. p114.
Op. Cit, p37; trad. p123: “tudo o que é, é um objeto de representação possível, tudo o que é, é
algo”.
199
Pode-se agora satisfazer a exigência kantiana de estabelecer
como o conceito mais elevado para toda filosofia transcendental,
para além da divisão entre o possível e o impossível, o “conceito
de um objeto geral”1 ou ao menos este de qualquer coisa:
Alles, was im weitesten Sinne “etwas” ist, heisst zunächst mit
Beziehung auf ein vorstellendes Subject, dann aber auch abgesehen
von dieser Beziehung “Gegenstand”.2
O que é que faz do etwas um objeto, abstração feita de toda
relação com um sujeito representante? A questão permanece
aberta aqui ou legada à Gegenstandstheorie. Mas, sobretudo, o
que é que nesse §7 do ensaio de Twardowski, ao rebater a
doutrina do objeto sobre a metafísica, encerra esta na ontologia ao
interditá-la a consideração do Aussersein? Ao reconduzir de
maneira genérica a questão do objeto a seu horizonte medieval,
Twardowski compartilha ainda com seus autores de referência o
que Alain de Libera caracterizou tão bem como uma
“interrogação ontológica direcionada a objetos”3.
Pois, o gesto mesmo de Twardowski, quando ele tenta
derivar – no horizonte de um estudo que, não esqueçamos,
permanece psicológico4 - a teoria do objeto da representação da
ontologia aristotélica, acrescida da convertibilidade aviceniana
do ens e da res, fecha resolutamente a via à tinologia: esta mesma
que Meinong esforça-se para relançar sob o título da
Gegenstandstheorie e Husserl, diferentemente, sob o título de
ontologia formal5.
1
2
3
4
5
Kritik der reinen Vernunft, A 290/ B 346.
Twardowski, op. Cit., p.40, trad. P 125: “tudo o que é “qualquer coisa” no sentido mais
amplo, denomina-se agora por relação a um sujeito representante, mas também depois
independentementee desta relação, “objeto”. – Segunda versão do princípio de independência.
Alain de Libera, “Subsistance et existence: Porphyre et Meinong”, em Revue de
Métaphysique et de Morale (2), 1997, p167-192; p191.
É o subtítulo da obra de 1894.
Nesse sentido, Jens Cavallin tem razão ao invocar a teoria dos objetos da representação, tal
como ela é apresentada por Twardowski em 1894, como uma “insurgência ontológica”
(Content and Object. Husserl, Twardowski and Psyclologism, Dissertação de doutorado, Dept.
de Philosofia, Univ. of Stockholm, 1990, p30 sq.). – Sobre a relação Husserl-Meinong, ver J.
Benoist: “Husserl, Meinong et la question de l’objet”, em Phénoménologie, sémantique,
200
Retomemos, para finalizar este o ponto, as principais etapas
do percurso dedutivo de Twardowski, quando este percurso, que
deveremos poder comentar historicamente em detalhe, abandona
o terreno da “discussão psicológica” pelo da metafísica:
É do ponto de vista metafísico também que os objetos da
representação foram tratados até a época mais recente. Ao designálos como , entia, revela-se a via que conduz a eles. Mas, que o
 aristotélico, sob a forma que a filosofia medieval lhe deu como
ens, não é senão o objeto da representação, o que o pode mostrar é o
fato que todas as teses que foram estabelecidas acerca do ens (...)
valem do objeto da representação.
1. O objeto é qualquer coisa diferente do existente; a muitos objetos,
além de sua objetividade (Gegenständlichkeit), além de suas
propriedades intrínsecas (Beschaffenheit), ao ser representado (que é
o sentido próprio da palavra essentia), acresce-se ainda também a
existência, a outros não. Tanto o que existe (ens habens actualen
existentiam) é um objeto quanto o que apenas poderia existir (ens
possible); melhor, mesmo o que não pode jamais existir, mas que
pode apenas ser representado (ens rationis) é um objeto; em suma,
tudo o que não é nada, mas em um sentido qualquer é “qualquer
coisa” (alles, was nicht nichts, sondern in irgend einem Sinne
“etwas” ist, ist ein Gegenstand). De fato, a maior parte dos
escolásticos tinham aliquid por sinônimo de ens, e isto por oposição
aos que concebiam o primeiro como um atributo do segundo.
2. O objeto é summum genus. O que os escolásticos expressavam
com esta proposição é que o conceito de ens não é um conceito
genérico, mas um conceito transcendental, pois ele transcende todos
os gêneros (omnia genera transcendit).
(...)
5. Se o objeto das representações, dos juízos e dos sentimentos não é
senão o ens aristotélico-escolástico, a metafísica deveria poder agora
ser definida como a ciência dos objetos em geral, a palavra tomada
no sentido indicado. (...) A venerável definição da metafísica: a
ciência do ente como tal, encontra aqui seu sentido plenamente
circunscrito.1
1
ontologie. Husserl et la tradition logique autrichienne, Paris, PUF, 1997, p169-98.
Twardowski, p37-39; trad. fr. (modificada), p123-25.
201
Não resta mais nada senão tirar as consequências desta
convergência e nomear com o seu verdadeiro nome “teoria do
objeto” o que até então foi erradamente batisado metafísica pela
tradição. E o gesto aristotélico de generalização ou de
universalização que, na Metafísica  1, permitiu distinguir de um
lado a ciência que tem em vista u (universal) o
@, e de outro todas as outras ciências regionais ou
especiais que apenas têm em vista os entes , segundo
uma ótica determinada e sobrevalorando uma “parte”, este gesto
pode aqui ser expressamente repetido, radicalizado e ampliado
por Twardowski:
Aquilo de que se ocupam as ciências particulares, certamente não é
senão os objetos de nossas representações (...), mas não se trata
senão de um grupo de objetos, limitado de uma maneira mais estreita
ou mais larga, formado pelo contexto natural ou referido a um fim
determinado. – (Ao contrário), uma ciência que põe no círculo de
suas considerações todos os objetos, tanto aqueles que são físicos,
orgânicos e inorgânicos, quanto aqueles que são psíquicos, aqueles
que são reais e também aqueles que não existem, e procura as leis
que os objetos em geral obedecem – e não apenas um grupo
determinado dentre eles – eis o que é a metafísica. (...) Este é o
sentido da venerável definição segundo a qual a metafísica é ciência
do ente enquanto ente...1.
A teoria do objeto será a substituta da metafísica ou, mais
precisamente, da ontologia, mesmo se a substituta aqui invocada
por Twardowski está seguramente ainda muito desgastada e
embrionária em relação ao desenvolvimento complexo e sutil da
Gegenstandstheorie (1904) onde Meinong procura com muito
mais precisão distinguir teoria do objeto e ontologia, e a situar a
ontologia mesma, de tradição aristotélica, como um setor
delimitado em relação a uma consideração muito mais
compreensiva do Gegenstand e de seus modos2.
1
2
Op. cit. p39.
Sur la théorie de l’objet, p [520-521]: “Aquilo que, em relação a um objeto, pode ser
conhecido a partir de sua natureza mesma, logo, a priori, pertence à teoria do objeto. Isto quer
dizer que se trata do ser-tal do “dado”, mas também de seu ser, uma vez que este último possa
ser conhecido a partir do ser-tal. Ao contrário, o que não pode ser estabelecido, a propósito
202
A indecisão última da análise de Twardowski sobressai
claramente na conclusão do §7 de seu tratado: a referência às
doutrinas escolásticas e à metafísica aristotélica estava destinada
a delimitar o sentido do termo objeto, que desemboca no qualquer
coisa (etwas), do qual não se sabe qual é o estatuto, nem se ele
depende de um sujeito constituinte:
O objeto pode ser descrito aproximadamente da seguinte maneira:
tudo o que se torna representado por uma representação, reconhecido
ou recusado por um juízo, desejado ou rejeitado por uma atividade
afetiva, nós o nomeamos objeto (Gegenstand). Os objetos são reais
ou não reais; eles são possíveis ou impossíveis; eles existem ou não
existem. A todos é comum o fato que eles podem ser ou são objeto
(Objekt) (não (objeto) intencional!) de atos psíquicos, que sua
designação na linguagem é um nome (...), e que, considerados como
família (Gattung), eles formam o summum genus que encontra na
linguagem sua expressão usual com o “qualquer coisa” (etwas). Tudo
o que é “qualquer coisa” no sentido mais largo, se chama então, por
relação com um sujeito que se representa, mas também depois
independentemente desta relação, “objeto” (Gegenstand).1
Com efeito, mais resolutamente ainda que Twardowski em
seu opúsculo de 1894, Alexius Meinong retoma por sua própria
conta o projeto de um tratamento teórico do objeto como tal
(theoretische Behandlung des Gegenstandes als solchen), por
meio de um gesto de generalização e de estensão para além da
esfera, julgada muito estreita, porque muito ligada por um préjuízo da efetividade, da ontologia. A Gegenstandstheorie à la
Meinong será, com efeito, muito mais que em Twardowski,
1
dos objetos, senão a posteriori, pertence, pressupondo-se uma generalização suficiente, à
metafísica: é o caráter a posteriori dos conhecimentos que evita que os limites da realidade
efetiva não sejam então transgredidos. Há, pois, simplesmente, duas ciências que são as mais
gerais, uma ciência a priori que concerne a tudo o que é dado, e uma ciência a posteriori que
não retém do dado para analisar senão o que precisamente pode entrar na consideração de um
conhecimento empírico, isto é, o conjunto da realidade efetiva: esta última disciplina é a
metafísica, a primeira é a teoria do objeto”.
Op. cit., p40; trad. fr. p125. Passagem que seguramente chamou a atenção de Meinong. Como
observa justamente K. J. Perszyk, Nonexistent Ojbects, p220 (nota 40): “Much of the later
bulk of Meinong’s rumination in Über Gegenstandstheorie on the place of his theory of
objects and whether it is metaphysics echoes the last pages of Twardowski ch. 7”.
203
precisamente contradistinguida da metafísica, da ontologia e da
lógica pura.
Certamente, em Meinong, em razão de seu ponto de partida
brentaniano1, a extensão e a generalização em questão também
correspondem à pré-compreensão do objeto como objeto do
conhecimento; o Gegenstand deve, por conseguinte, ser
entendido como “Gegenstand des Erkennens”. Todo
conhecimento é sempre conhecimento de um objeto e, se há
necessidade de um teoria geral do objeto, é conforme esta mesma
lógica da reduplicação que caracterizava a metafísica aristotélica
como ciência que tem em vista o ser enquanto
ser:@:
Uma ciência do objeto do conhecer, isto implicaria outra coisa além
da exigência de fazer com que o que é já conhecido a título de objeto
do conhecimento torne-se novamente o objeto do conhecimento?
De encontro ao que sugeriu Twardowski, mas partindo
também ele da caracterização brentaniana dos fenômenos
psíquicos como “Gerichtetsein auf etwas”, importa para Meinong,
se se quer engajar em uma ciência do objeto, de a contradistinguir
da metafísica que não é tão abrangente para englobar o
tratamento geral do “reiner Gegenstand”2. Tradicionalmente, a
metafísica tem, sem dúvida alguma, a ver com o conjunto do que
existe, mas o conjunto do que existe, mesmo que se inclua nele o
que existiu e o que existirá, é infinitamente pequeno comparado
ao conjunto dos Erkenntnisgegenstände3. A teoria do objeto deve,
1
2
3
Cf. Über Annahmen, GA., IV, p225 e p233; Über Gegenstände höherer Ordnung, §2, GA, II,
p381sq.; Über Gegenstandstheorie, p{483-84]: “ninguém desejaria ignorar que é tão
extraordinariamente frequente que o processo psíquico se ache acompanhado desta
propriedade de “ser orientado para qualquer coisa” que se está bem perto de ver nisso um
aspecto característico que distingue o que pertence ao psíquico do que não é da ordem do
psíquico”.
Teoria do objeto, p [486].
A distinção entre teoria do objeto e metafísica recobre também aquela entre a priori e a
posteriori (Teoria do objeto, p [520-521]. A metafísica é assim limitada ao que é real, ao que
existe, existiu ou existirá. A dificuldade aqui é evidentemente a de compreender o que é este
ser-dado que define de maneira mais vasta a teoria do objeto: o objeto como tal, em sua
indiferença ao ser e ao não-ser, é dado! Pode-se também distinguir entre a metafísica
204
por exemplo, integrar os objetos ideais que têm uma certa
“consistência”, ou melhor, subsistência (bestehen), mas que não
existem, que não são nada de efetivo, como o número, a
igualdade, a diferença, etc..1 Meinong evita assim o erro ou o
equívoco de Twardowski que procurava determinar o Gegenstand
como summum genus: querer definir formalmente o objeto não
tem sentido, observa ele, pois lhe falta tanto o genus como a
differentia, se é verdade que tudo é objeto (alles ist Gegenstand)2.
O que repetirá seu discípulo Ernst Mally:
O conceito de objeto compreende cada e toda coisa, sem considerar
se ela existe ou se, falando absolutamente, ela é.
Importa, então, de proceder um alargamento da esfera do
objeto para além mesmo do ser e do não-ser: é a radicalidade
deste alargamento que faz toda a importância da teoria
meinongiana do objeto, cuja aposta última é a de romper com a
ontologia de tradição aristotélica. Sem entrar aqui nos detalhes
labirínticos das análises de Meinong, relembremos somente que
elas se desenvolvem pelo fio condutor desta fórmula provocativa:
Es gibt Gegenstände, von denen gilt, dass es dergleichen
Gegenstände nicht gibt.3
Para desenredar o que a fórmula tem de paradoxal, importa
distinguir as modalidades diferentes do “es gibt” que manifestam
sem dúvida a mais extrema extenuação imaginável do dar-se ou
da apresentação:
- o existieren para os objetos ditos reais, atuais ou efetivos;
- o bestehen para os objetivos (Objektive, Sachverhalt);
1
2
3
existencial (Daseinsmetaphysik) e a metafísica (teoria do objeto) livre do ser (daseinsfreie
Metaphysik).
Pode-se lastimar, com F. Nef, que J. English, em sua preciosa tradução de Twardowski, não
tenha mantido a unidade lexical do bestehen, Bestand (op. cit. p201sq.: “Sur les verbes
désignant l’existence: SEIN, EXISTIEREN, BESTEHEN, ES GIBT, VORLIEGEN”).
Selbsdarstellung, p [12].
“Há objetos dos quais é verdadeiro dizer que não há tais objetos”, Teoria do objeto, p[490].
205
- o Sosein para as entidades não reais, mas possíveis, do
tipo montanha de ouro, a propósito das quais é sempre permitido
de determinar o ser-tal, independentemente do ser (Sein);
- o Aussersein para as entidades contraditórias, do tipo
círculo quadrado, que não são puramente ou simplesmente nada,
mas que conservam nelas um último resto de posição.
Meinong tenta uma exploração, forçando estas distinções,
sistemática de tipos de objetos até então negligenciadas: Objekte,
Objektive1, Dignitative, Desiderative. As relações mesmas serão
vistas a título de “objeto de ordem superior” e as objetividades
matemáticas (o número, a figura geométrica, etc.) pertencerão
também à teoria geral do objeto.
Se a metafísica (ao menos na tradição aristotélica
dominante) se limitou ao que existe efetivamente, cabe à teoria do
objeto colocar em plena luz a independência do Sosein em
relação ao Sein e de estender até o Aussersein do objeto puro
(objeto enquanto tal), em sua indiferença em relação ao ser, para
além do ser e do não-ser2. O princípio da independência do ser-tal
se entende agora no sentido do fato de que um objeto comporte
propriedades não implicar que este objeto ele mesmo seja, isto é,
1
2
O objectivo (Das Ojbektive) é análogo, para a suposição ou o juízo, ao que é o objeto
(Gegenstand) para a representação. Sobre a escolha desse termo por Meinong, vid. Über
Annahmen, §14, GA., IV, p97-105.
O Aussersein estava destinado a resolver o “paradoxo”, como se pode ver claramente na bela
passagem da segunda edição, revista, de Über Annahmen, GA, IV, p79-80: “... nossa
apreensão (Ergreifen) encontra nos objetos qualquer coisa de pré-dado (etwas vorgegeben),
sem que se entenda como decidir a questão de seu ser ou não-ser. Nesse sentido, “há” também
objetos que não são, o que eu procurei designar através da expressão – obviamente como eu
temia um pouco bárbara, mas difícil de melhorar – “fora-do-ser do objeto puro”. Este termo
responde ao esforço para interpretar o estranho “es gibt” (há) que não parece poder ser
retirado dos objetos, mesmos os mais estranhos ao ser (seinsfremdeste Gegenstände) e, sem
ter que recorrer ainda a um terceiro tipo de ser além da existência e da subsistência. Mais,
depois que eu tive o sentimento mais de uma vez muito claro de que este esforço não poderia
alcançar a positividade específica (eigentümliche Positivität) que reside, parece-me, no caráter
pré-dado (Vorgegebenheit) de todo objeto concebível e apreensível a princípio. Considerando
isso, eu devo mencionar expressamente a eventualidade que ainda possa haver, fora do existir
e do subsistir, um terceiro, que ninguém nomeia mais ser, e que, finalmente, deveria
unicamente ser caracterizado como qualquer coisa de aparentado ao ser (etwas Seinsartiges)
no sentido mais amplo do termo. O que resta ainda por decidir, é precisamente a questão de
saber se o Aussersein (fora-do-ser) ele mesmo é uma determinação ontológica
(Seinsbestimmung) ou se ele indica simplesmente a falta de uma tal determinação.”
206
exista extra mentem ou extra causas. Mas, uma tal versão do
princípio de independência não é suficiente para caracterizar a
posição aqui defendida por Meinong, pois desse modo ela nos
reconduziria simplesmente à concepção escolástica, pré-kantiana,
da realitas1. A independência que Meinong indica aqui é ainda
aquela que é própria ao objeto por relação ao espírito e a sua
visada. O objeto, considerado no que não mais deve ser nomeado
seu ser, senão em um sentido largo e impróprio 2, é apreendido,
mas não constituído: importa aqui entender literalmente os termos
que Meinong utiliza (erfassen, Erfassung) e que são justamente
destinados a salientar esta dimensão de receptividade ou de
passividade do ato teórico da apreensão. O objeto – e este é um
ponto certamente central de oposição a Husserl – não é
constituído, ele não tem mais o estatuto clássico de ser objetivo,
sempre em última instância regrado sobre a res extra-mental e
distinguido do ens rationis3. Se não é possível dar, nas formas,
uma definição de objeto, a etimologia – como nota Meinong, em
uma passagem evidentemente dirigida a Husserl – pode ao menos
nos ajudar: com efeito, o Gegenstehen (estar diante) remete ao
vivido que apreende o objeto (deveria dizer-se o obstante?),
vivido que não seria visado como constitutivo de qualquer
maneira que seja4. O mais notável é naturalmente aqui o fato que
Meinong insiste nesta anterioridade do objeto como tal
independentemente da questão de saber se se trata de um objeto,
que se diria trivialmente real, a uma idealidade, ou a um ser de
razão, em seu estatuto de fictum, figmentum:
1
2
3
4
Cf. J.-F. Courtine, Historisches Wörterbuch der Philosophie, éd. J. Ritter- K. Gründer, s.v.
“Realitas”, Schwabe & Co. Verlag, Bâle, 1992, t. VIII, coll. 178-185.
Meinong não se priva de utilizar a palavra “Sein” tomada neste sentido amplo, o que, mesmo
quando a acepção é tematizada, periga sempre de reconduzir a doutrina do objeto aos quadros
de uma ontologia clássica. Cf., por exemplo, Selbstdarstellung, p [17]: “o ser, tomado no
sentido mais amplo, que se tem diante de si em cada objetivo, revela-se seja como ser em
sentido estrito (segundo o paradigma: “A é”), seja como ser-tal (“A é B”), seja como ser-com
(implicação, “Se A, então B”)”.
Cf. Suárez, Disputationes Metaphysicae (Opera omnia, éd. C. Berton, t.XXV-XXVI, Paris,
1866, DM., XLIV, sect. 3, nn.1sq.).
Selbstdarstellung, p [12].
207
Face à apreensão (dem Erfassen gegenüber), seu objeto
(Gegenstand) é a cada vez o que é logicamente anterior, mesmo
quando este objeto segue cronologicamente a apreensão. Isto porque
a apreensão não pode jamais criar seu objeto, nem sequer modificálo, mas simplesmente o selecionar de qualquer maneira, ao extraí-lo
da multiplicidade do que é préviamente dado (ao menos como
estranho ao ser).1
Certamente é permitido permanecer um momento pensativo
diante desta tese de uma apreensão que levanta seus objetos a
partir da multiplicidade e da variedade infinita de um pré-dado
(Vorgegebenes), ele mesmo fora-do-ser (ausserseiend): o bodecervo, o outro deus ou o gato de Alice, resta que, como bem
notou K. J. Perszyk, é ela que torna “interessante” a teoria do
objeto. O princípio de independência do ser-tal não encontra sua
verdadeira importância senão quando ele se aplica não apenas aos
objetos possíveis, mas também aos impossibilia, uma vez que o
ser-tal de um objeto não é afetado por seu não-ser (Nichtsein), ou
melhor, que o não-ente (Nichtseiendes) procure, ao julgar que o
apreende, seu não-ser:
Se eu digo “o azul não existe”, eu não penso senão o azul e não em
um exemplar de azul ou nas qualidades e possibidades que ele
poderia apresentar. É como se o azul devesse ter o ser em primeiro
lugar, antes que se possa levantar a questão de seu ser e de seu não
ser. (...) O azul, ou não importa qual outro objeto, é de qualquer
maneira dado previamente à nossa decisão sobre seu ser e ele é dado
de um modo que não prejulga seu não-ser. (...) Para se estar
autorizado a afirmar que um certo objeto dado não é, parece que há
que compreender o objeto, de qualquer maneira previamente, para
falar de seu não-ser ou, mais precisamente, para sustentar ou negar a
atribuição do não-ser a este objeto.2
Com efeito, se eu devo , por exemplo, a propósito de um
objeto (“dado”), julgar que ele não é, faz-se necessário que eu
possa, por conseguinte, apreender uma primeira vez o objeto para
poder predicar dele o não-ser, ou mais exatamente lhe o imputar
1
2
Selbstdarstellung, p [43]. Cf. também Über Annahmen, GA., IV, p272-73.
Gegenstandstheorie, p [491].
208
ou lhe o denegar1. Faz-se necessário, logo, introduzir ainda um
nível ou uma acepção de “ser”, além da existência e da
subsistência; aquele que foi nomeado por Meinong “quase-ser”,
depois “para além do ser e do não-ser” (o que convém ao objeto
puro) ou ainda exterior ao ser, fora-do-ser. O ser é exterior ao
objeto puro, diferentemente do ser-tal: “o que não é de maneira
nenhuma exterior ao objeto e constitui a verdadeira essência,
reside em seu ser-tal que adere ao objeto, quer ele seja ou não
seja”.
Sem dúvida deve-se manter presente no espírito esta
dimensão de doação ou de ser dado ou pré-dado 2, se se quer
interpretar rigorosamente o dito paradoxo de Meinong:
Es gibt Gegenstände, von denen gilt, dass es dergleichen
Gegenstände nicht gibt,
cuja tradução só é evidente aparentemente. Dir-se-á: “Há objetos
dos quais é verdadeiro dizer que não há tais objetos”, perdendo-se
assim completamente o jogo sutil entre o primeiro “geben”, o
“gelten” e o segundo “geben”. Comecemos pelo gelten,
relembrando, no presente contexto, as distinções de Lotze (de
quem Marty foi aluno):
Nós chamamos efetiva uma coisa que é, por oposição a uma outra
que não é; efetivo também um acontecimento que teve lugar ou há
tido lugar, por oposição a um outro que não acontece; efetiva uma
relação que subsiste, por oposição àquela que não subsiste; enfim,
nós nomeamos efetivamente verdadeira uma proposição que vale,
por oposição àquela cuja validade é ainda duvidosa....3
1
2
3
É a terminologia introduzida por Brentano em sua análise (anti-aristotélica) do juízo:
Anerkennen – Verwerfen, que substitui em seguida o par Zuerkennen – Absprechen. Cf. em
particular Die Lehre vom richtigen Urteil, éd. F. Mayer-Hillebrand, Bern, Francke Verlag,
1956. §27, sq.. Cf. também Psychologie vom empirischen Standpunkt II, p194-96.
Cf. infra, p (29)?.
H. Lotze, Logik, l.III, p511. (reimpressão da edição de G. Misch, por G. Gabriel, Hamboug,
Meiner, 1989): “... wirklich nennen wir ein Ding, welches ist, im Gegensatz zu einem andern,
welches nicht ist; wirklich auch ein Ereigniss, welches geschieht, oder geschehen ist, im
Gegensatz zu dem, welches nicht geschieht; wirklich ein Verhältniss, welches besteht, im
209
O “gelten” aqui, entendido como uma espécie de
efetividade, corresponde à acepção do ser (@) que se diz
veritativo1.
Heinrich Rickert notou de sua parte, em uma perspectiva
ainda largamente definitória:
... atualmente, eu nomeio ente tudo o que “há” em geral ou tudo o
que se deixa pensar como “qualquer coisa” e, por conseguinte, o
valer, o sentido, o valor, o dever-ser. (...) Nós tomamos, portanto, o
“ente em geral” pelo conceito que subsume tudo o que é pensável...2
Inútil multiplicar as citações, vê-se claramente em que
horizonte problemático se situa a decisão terminológica e
doutrinária de Meinong: o gelten corresponde à acepção
veritativa do ser: “é verdadeiro que...”; “é o caso”; “é assim”. O
último “es gibt” pode ser entendido segundo a acepção mais larga
e mais comum de ser: “há objetos para os quais, é o caso: tais
objetos não são, não existem”. O elemento verdadeiramente
problemático na formulação paradoxal de Meinong é o primeiro
“es gibt” que o “há” português restitui muito mal, ou o inglês
“there is”. Com efeito, com este “es gibt” nós estamos em
presença de uma figura certamente elementar, extenuada até não
mais poder, e reduzida quase à nada (mas justamente não a nada)
da doação ou do ser dado. Longe de nós, naturalmente, a idéia
ridícula de aproximar do “es gibt” meinonguiano o “es gibt”
heidegeriano, tal qual ele aparece bem antes das últimas variações
de Zeit und Sein no Sein und Zeit, para indicar, ademais entre
aspas que deveriam ser interpretadas, que o Ser não é, mas que há
o Ser3; resta que, no quadro estrito da teoria do objeto, a regra
1
2
3
Gegensatze zu dem, welches nicht besteht; endlich wirklich wahr nennen wir einen Satz,
welcher gilt, im Gegensatz zu dem, dessen Geltung noch fraglich ist.”
Cf. Ch. Kahn, The verb “be” in ancient Greek, Dordrecht, Reidel, 1973, cap. VII.
Rickert, Der Gegenstand der Erkenntnis, Tübingen, 19153, p264: “... ich nenne jetzt alles
“seiend”, was es überhaupt “gibt”, oder was sich als “etwas” denken lässt, also auch das
Gelten, den Sinn, den Wert und das Sollen. (...) Wir haben also zunächst “Seiendes überhaupt”
als den Begriff, unter den alles Denkbare fällt”.
Seria necessário ainda se interrogar sobre o primeiro curso friburgense de 1919 (Ga. 56-57,
Zur Bestimmung der Philosophie) e sobre sua análise do “es gibt”, que começa por uma
210
última -–o que se impõe a priori como a última instância -, é bem
este dado: os objetos para os quais vale que eles não são, que os
objeto assim constituídos, no seu ser-tal, não os há; eles não
seriam ser, ou melhor, o ser (das Sein) não seria seu ser atribuído
em um juízo nem a título de propriedade, nem a título de
acidente. Este dado irredutível ou este pré-dado deve ser, então,
tomado em seu sentido forte: ele se impõe a nós, ele se abre a
priori a toda apreensão, ele é aquilo, de maneira quase empírica,
de que nós sempre necessariamente devemos partir. Por isso
Meinong pode retomar por sua conta, sem nenhuma ironia, a
idéia emprestada a Fechner, de uma filosofia que começaria por
baixo, isto é, pelo que é irredutivelmente dado, fosse este
estranho ao ser (ausserseiend)1. Logo, é dado, fora do ser, isto
que vale e que é verdadeiro: certos objetos não são, e isto de tal
maneira que seu não-ser é ele mesmo sucetível de ser dado.
Meinong se esforçou justamente para encontrar para seu
“paradoxo” uma formulação mais facilmente aceitável, ao
introduzir o conceito singular de Aussersein. Deve-se aqui seguir
passo a passo Meinong em sua marcha visando reduzir esta
fórmula paradoxal que ele não fez sua senão a contra-gosto:
“Quem ama os paradoxos poderá muito bem dizer: há objetos a
propósito dos quais se pode afirmar que eles não são”2. Ora, se
trata justamente, na teoria dos objetos, de neutralizar este
paradoxo. A solução óbvia – aquela contra a qual se constrói
precisamente a teoria dos objetos – consistiria em interpretar o
primeiro “es gibt” no sentido trivial de uma existência na
representação ou de uma pseudo-existência: certos objetos são ou
1
2
variação sobre o “gelten” 9p 50sq.), antes de abrir a questão: “Gibt es das “es gibt” (p62),
ecoando E. Lask que abordava a categoria do “Es-geben” como aquela da “reflexive
Gegenständlichkeit” (Logik der Philosophie, 3ªed. reimpr. da edição de 1923, Tübingen,
Mohr, 1993); seria ainda necessário retomar as reflexões do último Natorp e em particular as
suas Vorlesungen über Praktische Philosophie. Cf. sobre este ponto Chr. von Wolzogen: “Es
gibt” – Heidegger und Natorp “Praktische Philosophie”, em Heidegger und die praktishce
Philosophie, éd. Annemarie Gethman-Siefert et Otto Pöggeler, Stuttgart, Suhrkamp, 1988,
p313-37. Mas, nós reservamos este ponto delicado par uma outra nevegação.
Selbstdarstellung, p[40].
Teoria do objeto, p [400].
211
são possíveis, por exemplo, no intelecto divino, outros, que não
são, não têm ser senão na e pela representação, a título de entia
rationis ou de intentionalia, seu ser se reduz ao esse objetive, à
pseudo-existência. Mas, e aqui se deve seguir o detalhe da
argumentação (Teoria do objeto, §4), a tese da não-existência não
remete nunca apenas à representação ou ao ser-representado, mas
também a um objeto, digamos x, sobre o ser ou não-ser do qual se
interroga: “se eu devo poder, a propósito de um objeto, julgar que
ele não é, parece que eu estou na necessidade de apreender uma
primeira vez o objeto para poder lhe predicar o não-ser”. Seja dito
ainda, em outros termos, e de maneira mais rigorosa: ao objetivo
que “A não é” ou ao não-ser de A, deve-se atribuir ainda um ser,
fosse por meio de uma analogia da relação entre a parte e o todo.
Tomando o objetivo pelo todo, se ele é, faz-se necessário que a
parte, a objetidade ou o objectum (Gegenstand) seja também de
uma certa maneira. Do objetivo do não-ser, se ele é, depreendese, com efeito, o ser da objetidade. Isto, convenhamos, não é
resolver o paradoxo, mas o aumentar, o que conduz à posição de
um terceiro gênero, ou melhor, um terceiro nível de ser, para além
da existência e da subsistência, aquele que Meinong nomeou
durante um tempo “quase-ser”, diante da dificuldade de que a um
tal ser (o “quase-ser”) não se poderia mais opor um não-ser do
mesmo tipo. “Poderíamos ainda, questiona Meinong, nomear ser
um ser ao qual, por princípio, não corresponde nenhum nãoser?”1 Não deveríamos, antes, renunciar à analogia entre todo e
parte ou, ainda, complexo e elemento constitutivo, e objetivo e
objetidade, estabelecendo que se o objetivo de um não-ser –
entenda-se: o ser deste objetivo – não é “atribuido ao ser de seu
objeto”, é que o ser e o não-ser não são sobre o plano do objeto.
Seja dito ainda, de maneira mais apropriada, que o objeto puro
está para além do ser e do não-ser, ou que ele é radicalmente
estranho ao ser (ausserseiend). Trata-se aqui, naturalmente do
objeto puro ou do objeto como tal – em seu minimalismo de seu
1
Teoria do objeto, p [492].
212
gegenstehen, gegenbensein - , o que não contradiz em nada o fato
que tal objeto absurdo (o quadrado redondo ou o bode-cervo)
comporta em si a atestação de seu não-ser, tanto quanto a
idealidade implica a de sua não-existência. Remetendo, desse
modo, toda a dificuldade doutrinária ao termo mesmo do
Aussersein – que acabamos de ver que ele não poderia sem mais
ser trascrito como “para além do ser e do não-ser” -, Meinong
entende reduzir o paradoxo ao qual seu nome está associado:
O que se pode de maneira pertinente denominar o princípio do forado-ser do objeto para dissipar definitivamente a aparência de
paradoxo que forneceu o primeiro motivo para o estabelecimento
deste princípio [o princípio da independência do Sosein em relação
ao Sein].1
Do princípio da indiferença infere-se, portanto, que o ser ou
o não-ser não pertencem à natureza do objeto: este está para além
do ser e do não-ser, ou ainda, como indica Meinong de maneira
mais precisa, ele é ausserseiend, estranho ao ser, fora-do-ser. Na
verdade, se se toma a expressão ao pé da letra, deve-se
compreender não é tanto o objeto que está fora da esfera do ser,
esfera que se está inclinado naturalmente a privilegiar tomando-a
por primeira, mas sim que o par ser/não-ser é que é exterior ao
objeto: Sein wie Nichtsein dem Gegenstand gleich äusserlich ist.
Tal é o preço a pagar por uma completa des-ontologização
do objeto como tal.
Se alguém julga, por exemplo, que um perpetuum mobile não existe,
é portanto claro que o objeto (Gegenstand) do qual a existência é aí
recusada, deve necessariamente ter propriedades e mesmo
propriedades características, sem as quais a convicção da nãoexistência não poderia ter nem sentido nem justificação.2
Importa não recuar diante desta conclusão diretamente
contrária à tradição da metafísica aristotélica, tomista tanto
1
2
Teoria do objeto, p [494]. Cf. também supra, p30, nota 2. ?
Über Annahmen, §12, GA, p79.
213
quanto scotista1. “O ser não é justamente apenas a condição que
permitiria ao processo do conhecimento encontrar de qualquer
modo um primeiro ângulo de visada, ele é, ao contrário, ele
próprio um tal ângulo de visada. Mas, o não-ser o é, ele também,
um bom ângulo.2
Atribuir-se-á, portanto, ao objeto puro, senão uma terceira
ordem de ser, ao menos um estatuto próprio que não será nem a
existência, nem a subsistência, mas justamente o Aussersein.
Mesmo os objetos singulares do tipo “círculo quadrado” não são
inteiramente um nada absoluto (vollends nichts), a eles cabe pelo
menos este “fora-do-ser” que, a título de resto último do caráter
posicional (äusserster Rest vom Positionscharakter), não pode ser
recusado a nenhum objeto3. Desse modo o objeto puro (der reine
Gegenstand) é, como se viu, “jenseits von Sein und Nichtsein” 4,
ele se dá para além do ser e do não-ser. Meinong, sabe-se,
preferia a esta formulação esta outra, um pouco diferente: “Der
Gegenstand ist von Natur ausserseiend...”. Com efeito, ao objeto
como tal, o ser e o não-ser são “gleich äusserlich”, eles lhe são
1
2
3
4
Cf. Quodlibeta III, a.1, n.7-9, em Obras del Doctor sutil Juan Duns Escoto: Cuestiones
cuodlibetales, éd. F. Alluntis (Madrid, BAC, 1968), p93-94: “illud est nihil quod includit
contradictionem, et solum illud, quia illud excludit omne esse extra intellectum et in intellectu;
(...) Et isto intellectu communissimo, prout res vel ens dicitur quodlibet conceptibile quod non
includit contradictionem (...) potest poni ens primum objectum intellectus; quia nihil potest
esse intelligibile, quod non includit rationem entis isto modo, quia, ut dictum est prius,
includens contradictionem non est intelligibile”, (indicamos ainda a tradução inglesa por F.
Alluntis et A. B. Wolter, em John Duns Scotus, God and creatures, The Quolibetal Questions,
Princeton UP, 1975, p61.).
Teoria do objeto, p [494].
É permitido interrogar-se sobre este caráter posicional irredutivelmente ligado ao ser, e
sobretudo de se interrogar sobre a compatibilidade deste “resto” de posição com a doação
sobre a qual nós somos paralizados. O Kant crítico do argumento ontológico teria
determinado, como se sabe, o ser (Sein) como posição. Em realidade, se trata de um caractere
bem atestado do ser tomado no sentido de Dasein, existência. Cf. P. d’Auriole: “existere non
est alliud quam extra sistere, extra videlicet causas suas. (...) Esse existentiae nihil aliud est
quam poni in rerum natura, et existens est positum in rerum natura”. Scriptum super Primum
Sententiarum, éd. M. Buytaert, N.Y., Franciscan Institute, St. Bonaventure, 1956, dist. VIII,
sect. 21, 2 (p887-88). Pode ser, e é esta última hipótese que nós reteremos, que sob a pena de
Meinong o caráter de posição remeta menos ao ato de pôr que a positividade. Cf. Über
Annahmen, GA, IV, p80. Passagem citada supra, p 32. ?
Cf. sobre este ponto o volume coletivo editado por R. Haller, Jenseits von Sein und Nichtsein,
Beiträge zur Meinong-Forschung, Graz, Akademische Drunk, 1972.
214
igualmente exteriores, extrínsecos, estranhos por indiferença 1.
Nenhum objeto pode deixar de participar desta terceira ordem
extra-ontológica que não se opõe à nada e não ao nada!
Pouco importa aqui a questão de saber se Meinong se
manteve constantemente sobre esta linha de crista tão vertiginiosa
do Aussersein – a única que responde à dupla injunção do
princípio de independência: independência do ser-tal em relação
ao ser e independência do objeto em relação ao espírito – o que
em todo caso parece assegurado é que, como bem mostrou
Perszyk, é esta tese que constitui o vivo da doutrina do objeto, e é
por relação a ela que importa, o caso terminado, procurar os
predecessores. Sem voltar aqui às aquisições importantes das
pesquisas conduzidas por Alain de Libera2, eu quero, finalizando
sem concluir esta breve apresentação, de um lado chamar a
atenção para o belo desafio lançado por Perszyk 3, e de outro, de
maneira inteiramente exploratória em vista deste vasto programa
de pesquisa, indicar uma direção: não mais estritamente
medieval, mas tardo-escolástico, aquela aberta sem dúvida por
Clemens Timpler ou R. Goclenius, onde a ontologia aristotélica é
já passada em benefício de uma doutrina sobretranscendental do
objeto e do algo. Simples sequência em atenção a estudos
complementares de uma história ainda a escrever, esta da tinologia.
III. (...)
1
2
3
Pode-se ver aí como que um eco ou melhor uma inversão radicalizadora da tese scotista e
suareziana da neutralidade ou da indiferença em relação à existência do “conceptus entis”.
Notamente em “Subsistance et existence: Porphyre et Meinong”.
K. Perszyk, Nonexistent Objects: Meinong and contemporary philosophy, p67sq.: “Embora
Meinong não foi certamente o primeiro filosófo a considerar a noção de não-existentes em
uma ou outra forma, ou tomá-la a sério, eu advogo que é importante salientar as diferenças
entre Meinong e seus precursores, se nós podemos aceitar a abordagem de que os nãoexistentes são literalmente sem-ser e independente da mente como algo que Meinong aceitava.
A alegação de que um certo precursor acatou a teoria dos objetos não-existentes,
especialmente no sentido “meinongiano”, pode ser altamente enganadora.”.
215
12.
Sobre a teoria do objeto
Alexius Meinong
Über Gegenstandstheorie; Selbstdarstellung; Mit. Einl., Bibliogr.
u. Reg. hrsg. von Josef M. Werle; Hamburg, Meiner, 1988. pp1-51.
§1. A questão
Que não se pode conhecer sem conhecer algo; mais
genericamente, que não se pode julgar e também não representar
sem julgar sobre algo ou representar algo, isto pertence ao mais
evidente sob uma consideração elementar dessas experiências.
Que no domínio da suposição não é diferente, eu pude mostrar
sem recorrer a um exame especial1, embora a pesquisa
psicológica sobre isso mal tenha começado. O problema é mais
complexo no caso dos sentimentos, onde a linguagem, sem
dúvida, mais nos induz ao erro, com a indicação do que se sente,
o gozo, a dor, assim como a piedade, a inveja, etc., e, no caso dos
desejos, na medida em que, a despeito do testemunho da
ocorrência muito clara na linguagem, sempre tem-se que
enfrentar a eventualidade de desejos que não desejam nada. Mas,
mesmo aqueles que não compartilham a minha opinião — qual
seja, que tantos os sentimentos quanto os desejos não são fatos
1 Über Annahmen, Leipzig, 1902, p. 256f.
216
psíquicos independentes, porque eles são representações a título
da inelutável “pressuposição psicológica”1 — concederão sem
reservas que se goza de alguma coisa, que se interessa por alguma
coisa e, ao menos na extrema maioria dos casos, que se não quer
ou deseja sem querer ou desejar qualquer coisa, em suma,
ninguém ignora que o processo psíquico tão frequentemente
esteja de par com esta propriedade de “ser orientada para algo”
que se está bem perto de ver nisso um aspecto característico que
distingue o que pertence ao psíquico do que não é da ordem
psíquica.
Todavia, não é a tarefa das considerações seguintes explanar porque eu tenho esta suposição como a melhor fundada a
despeito das muitas dificuldades que a ela se opõem. Os casos em
que a referência, o estar expressamente orientado para “algo” ou,
como se diz muito grosseiramente, a um obje-to, são tantos que
se impõe, mesmo que seja para dar conta desses casos, que a
questão acerca de a quem cabe tratar de maneira científica estes
objetos não deve permanecer sem resposta.
A repartição do que é que é digno de trabalho teórico e o
necessário em diferentes domínios científicos, bem como a
delimitação precisa desses domínios, deve-se reconhecer, não
tiveram senão pouca incidência prática sobre o avanço da pesquisa; o que importa, afinal, é o trabalho acabado e não a
bandeira sob a qual ele foi realizado. Mas, a confusão sobre as
fronteiras dos diversos domínios científicos pode ser justificada
de duas maneiras opostas: ou os domínios nos quais efetivamente
nós trabalhamos se interpenetram, ou, então, eles não se
interpenetram e resta um domínio não-trabalhado entre eles. A
importância destas confusões é no domínio teórico exatamente
inversa a que tem no domínio prático. Neste a “zona neutra” é a
garantia, com efeito, sempre bem-vinda, raramente obtida de
relações de boa-vizinhança, enquanto que a interpenetração das
fronteiras reivindicadas representa o caso típico de conflito de
1 Cf. meu Psychologisch-ethischen Untersuchungen zur Werttheorie, Graz 1894, p.34s.,
também Höfler, Psychologie, p.389.
217
interesses. Ao contrário, no domínio do trabalho teórico, onde
aparece a menor legitimidade de tais conflitos, a sobreposição de
dois setores fronteiriços, que, por consequência, poderão ser
eventualmente tratados de diversos pontos de vistas, representa,
objetivamente, muito mais um benefício, enquanto a sua
separação é sempre um inconveniente cuja importância será
naturalmente função da extensão e da relevância do setor
intermediário assim criado.
Interrogar-se sobre um semelhante domínio do saber,
negligenciado a ponto de ele não ter reconhecido ao menos a
medida de sua especificidade, eis o que visa o problema aqui
posto de saber qual é de fato o lugar, de qualquer maneira
legítimo, do tratamento rigoroso do objeto enquanto tal e em sua
generalidade; trata-se da questão seguinte: existe entre as
disciplinas reconhecidas por sua proveniência científica uma
ciência onde se pode encontrar um tratamento rigoroso do objeto
enquanto tal ou, ao menos, onde tem valor esta exigência?
§2. O pré-juízo a favor do efetivo
Não foi por acaso que as reflexões acima tomaram o
conhecimento como ponto de partida para chegar ao objeto. Com
certeza não é apenas o conhecimento que “tem” seu objeto; mas,
ele o tem sempre de uma maneira singular que leva, quando se
trata da questão do objeto, a pensar em primeiro lugar no objeto
do conhecimento. Pois, o processo psíquico que se denomina
conhecer não constitui, estritamente considerado, inteiramente o
fato do conhecimento: o conhecimento é, por assim dizer, um fato
bifronte, em que o conhecido não está diante do conhecimento
como qualquer coisa de relativamente autônoma que este apenas
se contentaria de visar, por exemplo, no modo de um falso juízo;
ao contrário, ele é de qualquer maneira apreendido, apanhado,
pelo ato psíquico, ou melhor, como se tenta em geral o descrever
de maneira inevitavelmente figurada, ele é o indescritível. Se se
considera exclusivamente este objeto de conhecimento, a questão
218
que colocamos acerca de uma ciência do objeto se apresenta de
saída sob uma luz pouco favorável. Uma ciência do objeto do
conhecimento: significa isto que a exigência de fazer daquilo que
já foi reconhecido como objeto do conhecimento o objeto de uma
ciência, isto é, uma segunda vez, em fazê-lo um objeto do
conhecimento? Dito de outro modo, não se procura assim uma
ciência que seja ou constituída pelo conjunto das outras ciências
ou que deva realizar uma segunda vez o que todas as ciências
reconhecidas realizam sem ela?
Guardemo-nos, a propósito de tais considerações, de
tomar como verdadeiramente incongruente a ideia de uma ciência
universal diferente das ciências particulares. O que os melhores
de todas as épocas tiveram em vistas como sendo o fim último e,
sobretudo, o fim digno de seu desejo de saber, a apreensão da
totalidade do mundo em sua essência e fundamento últimos,
apenas pode ser a tarefa de uma ciência englobante ao lado das
ciências particulares. Efetivamente, sob o nome da Metafísica não
se pensou outra coisa senão uma tal ciência: e as esperanças
frustradas, no passado como no futuro, ligadas a esta ciência,
ainda são tantas, que a culpa se deve unicamente à nossa
incapacidade intelectual e não à ideia desta ciência. Pode-se,
porém, por causa disso, exigir-se da Metafísica que ela seja esta
ciência cuja tarefa natural seria a elaboração do objeto enquanto
tal, isto é, dos objetos em sua totalidade?
Quando se recorda a que ponto a Metafísica sempre teve a
intenção de integrar ao domínio de suas colocações o mais
próximo como o mais distante, o maior como o menor, pode
parecer estranho que ela não possa assumir a tarefa que estamos
evocando pela razão que, malgrado a universalidade de suas
intenções, a Metafísica não teve sempre, e de longe, a visada
suficientemente universal para ser uma ciência do objeto. A
Metafísica lida, sem dúvida, com a totalidade do que existe. Mas,
a totalidade do que existe, incluindo aí o que existiu e o que
existirá, é infinitamente pequena em relação a totalidade dos
219
objetos de conhecimento; e que se tenha negligenciado isto tão
facilmente tem, bem entendido, o seu fundamento no fato que o
interesse vivo pelo efetivo, que está em nossa natureza, favorece
esse excesso que consiste em tratar o não-efetivo como um
simples nada, mais precisamente, a tratá-lo como algo que não
oferece ao conhecimento nenhum ponto de apreensão ou nenhum
que seja digno de interesse.
Quão pouco esta opinião é correta mostram facilmente os
objetos ideais1 que, certamente, são dotados de uma subsistência
(bestehen), mas em nenhum caso de existência (existierien) e, por
conseguinte, não podem de maneira alguma ser efetivos. A
identidade ou a diferença, por exemplo, são objetos desse tipo:
talvez, elas subsistam entre estas ou aquelas realidades efetivas
(Wirklichkeiten), em tais ou quais circuns-tâncias, mas elas
mesmas não são um elemento desta efeti-vidade (Wirklichkeit).
Naturalmente está fora de questão que a representação, a
suposição e o juízo tenham relações com estes objetos, e tenham
seguidamente boas razões de se ocupar deles de maneira muito
precisa. Também os números não são dotados de uma existência
ao lado daquela do que é enumerado, no caso em que este exista;
o que se compreende muito claramente, pois se pode enumerar o
que não existe. Do mesmo modo, uma relação não existe ao lado
do que está em relação, no caso em que este exista: que esta
existência não seja, por sua parte, absolutamente indispensável, é
o que demonstra, por exemplo, a relação entre a igualdade dos
ângulos e igualdade dos lados de um triângulo. Além disso, a
relação de inclusão une tudo, mesmo que se trate de algo que
existe, como o estado do ar e a indicação do termômetro, ou do
barômetro, não tanto as realidades efetivas elas mesmas quanto o
seu ser ou também o seu não-ser. No conhecimento de uma tal
relação já se está lidando com este gênero particular de objetos,
1 Sobre o sentido que eu penso deva ser dado à expressão “ideal”, cujo uso lingüístico é
infelizmente equívoco, cf. minhas indicações em “Über Gegen-stände höherer Ordnung etc.”,
Zeitschrift für Psychologie Bd. XXI, p.198.
220
que eu espero ter mostrado 1, que se situam face aos juízos e às
suposições de uma maneira análoga àquela do próprio objeto em
relação às representações. Eu propus para designar aqueles o
termo “objetivo” (Objektiv), e mostrei que este “objetivo” ele
mesmo pode assumir, por sua vez, as funções próprias de uma
objetidade (Objektes) e tornar-se, em particular, o objeto (Gegenstand) de uma nova apreciação que o leva em conta como
uma objetidade (Objekte), tal como aquele das outras operações
intelectuais. Se eu digo: “é verdadeiro que há Antípodas”, não é
às Antípodas que se atribui a verdade, mas ao objetivo (Objektiv):
“que há Antípodas”. A existência de Antípodas, porém, é um fato
que cada um constata, também, ser ele dotado de uma
subsistência, mas ele não pode, por sua vez, existir uma outra vez.
Porém, isto vale igualmente para todos os obje-tivos, de tal modo
que todo conhecimento que tenha por objeto (Gegenstande) um
objetivo (Objektiv), representa igualmente um caso de
conhecimento de um não-existente.
O que foi mostrado aqui, por meio de alguns exemplos
limitados, é testemunhado por uma ciência inteira, muito desenvolvida, mais, desenvolvida ao extremo: as matemáticas.
Ninguém teria a intenção de qualificar as matemáticas como
estranhas à realidade, no sentido de que elas não teriam nada a
ver com o que existe: é inegável, com efeito, que elas têm
assegurada, na vida prática tanto quanto na análise teórica do real,
uma vasta esfera de aplicação. Todavia, o conhecimento
matemático estrito não trata em nenhum caso de qualquer coisa
da qual seria essencial que ela fosse efetivamente real. Jamais o
ser de que se ocupam as matemáticas enquanto tais é existente;
em relação a estas, jamais elas ultrapassam os limites do que é
dotado de uma subsistência: uma linha reta não tem mais
existência que um ângulo reto, um polígono regular ou um
círculo. Que, na linguagem que elas empregam, as matemáticas
1 Über Annahmen, Kap. VII.
221
podem falar expressamente de existência2, não se deve ver nisso
senão como uma particularidade do seu emprego da linguagem, e
nenhum matemático hesitaria em conceder que o que ele visa
quando emprega o termo “existência”, a propósito dos objetos
que ele submete às análises teóricas, não é, ao final, nada senão o
que de hábito se denomina “possibilidade”, operando, sem
dúvida, um giro positivo, ao mesmo tempo que notável, no
conceito que de ordinário tem simplesmente uma conotação
negativa.
Junto com o pré-juízo a favor do conhecimento da realidade efetiva, indicado acima, esta independência de princípio
das matemáticas em relação à existência permite compreender um
fato que, sem levar em conta estes aspectos, não deixaria de
parecer estranho. As tentativas que têm por finalidade um sistema
articulando a totalidade das ciências se encontram logo de saída,
quando se trata das matemáticas, em um emba-raço do qual elas
não podem sair, com chances de êxito ao menos relativas, senão
com expedientes mais ou menos artifi-ciais. O que contradiz de
maneira gritante o reconhecimento, e se deveria dizer a
popularidade, que as matemáticas adquiriram devido aos seus
resultados até entre os círculos leigos. Ora, a ordenação de todos
os saberes em ciências da natureza e ciências do espírito não dá
conta, sob a aparência de uma disjunção radical, senão do saber
que se ocupa da realidade efetiva: é fácil de se observar, quando
não de se surpreender, que assim não se reconhece nenhum
direito às matemáticas.
§3. Ser-tal e não-ser
Não há, então, nenhuma dúvida: o que deve ser objeto de
conhecimento não tem nenhuma necessidade de existir. As
reflexões precedentes podem, entretanto, dar lugar à suposição de
que a subsistência (Bestand) não apenas poderia substituir a
2 Cf. K. Zindler, Beiträge zur Theorie der mathematischen Erkenntnis, Sitzungs-beriche der
kais. Akademie der Wissenschaften in Wien, philos. hist. Kl. Bd. CXVIII, 1889, p. 33,
tbém 53s.
222
existência (Existenz), mas que deveria necessariamente o fazer
sempre onde nenhuma existência se dá. Mas, mesmo esta restrição é inadmissível. Isto mostra-se pela observação das duas
funções específicas do juízo (Urteilens) e da suposição (Annehmens) que eu procurei estabelecer contrapondo a “função tética e
a sintética” do pensamento1. No primeiro caso, o pensamen-to
apreende um ser (Sein), no segundo, um “ser-tal” (Sosein);
naturalmente, se poderia denominar aquele como objetivo-de-ser
e este como objetivo-de-ser-tal. Ora, isto responde, bem
entendido, ao pré-juízo evocado mais acima em favor da
existência efetiva, ao afirmar que se não está autorizado a falar de
um ser-tal senão pressupondo sempre um ser. De fato, não teria
muito sentido qualificar uma casa de grande ou pequena, uma
região de fértil ou estéril, antes de saber se a casa ou a região
existe, existirá ou existiu. Mas, a ciência a qual nós podemos a
toda hora emprestar os mais numerosos argu-mentos contra este
pré-juízo permite igualmente reconhecer, de maneira
particularmente clara, a impossibilidade de sustentar um tal
princípio: as figuras de que trata a geometria não têm existência,
como nós sabemos; e, no entanto, suas propriedades, logo, seu
ser-tal, podem ser indubitavelmente constatadas. No domínio do
que é conhecível a posteriori, sem dúvida não se poderia
justificar uma afirmação quanto ao ser-tal se ela não se funda
sobre o saber que se tem de um ser: e é também certo que um sertal, que não tem nenhum ser por trás de si, seria muito
seguidamente desprovido de interesse imediato. Tudo isto não
muda em nada o fato de que o ser-tal de um objeto não sofre
nenhum interdito pelo não-ser (Nichtsein) deste objeto. Este fato
é suficientemente importante para que nós formulemos como
sendo expressamente o princípio da independência do ser-tal em
relação ao ser2; e o domínio de validade deste princípio se
1 Über Annahmen, p.142s.
2 Definido pela primeira vez por E. Mally em seu estudo, coroado pelo prêmio Wartinger
de 1903, que foi publicado inteiramente reelaborado no n. III dessas Investigações. Cf.
Kap. I, §3.
223
manifesta, pelo menos em vista a isso, que decorrem deste
princípio não apenas os objetos que não tem existência de fato,
mas também aqueles que não podem existir porque são
impossíveis. Não apenas a célebre montanha dourada é de ouro
como o círculo quadrado certamente é tanto quadrado quanto é
redondo. Evidentemente, no que concerne a tais objetos apenas
excepcionalmente se registram conhecimentos de efetiva
importância: não obstante isso, alguma luz pode ser jogada daí
sobre os domínios cujo conhecimento é em grande medida digno.
Todavia, em vez de evocar tais coisas que de alguma
maneira permanecem um pouco estranhas ao pensamento natural,
mais instrutivo é observar o fato trivial — que permanece ainda
nos limites do objetivo-de-ser —, que um não-existente
(Nichtseiendes) qualquer deve ser (Sein) em alguma medida para
fornecer um objeto (Gegenstand), ao menos, para os juízos
(Urteile) que apreendem o seu não-ser (Nichtsein). Agora, é
completamente inessencial se este não-ser é necessário ou
simplesmente fatual, e também se, no primeiro caso, a
necessidade tenha por origem a essência (Wesen) do objeto ou
algum momento que é exterior ao objeto em questão. Para
reconhecer que não há círculo quadrado, eu sou obrigado a fazer
um juízo sobre o círculo quadrado. Quando, de maneira unânime,
a Física, a Fisiologia e a Psicologia afirmam a assim denominada
idealidade das qualidades sensíveis, é dito também,
implicitamente, algo a propósito da cor e do som, a saber, que em
sentido estrito nem estes nem aquelas existem. Quem gosta de
paradoxos pode muito bem dizer: há (es gibt) objetos a propósito
dos quais se pode afirmar (von denen gilt) que não há tais objetos;
e o fato muito banal para todo mundo, que é assim expresso, joga
uma luz tão clara sobre a relação entre os objetos e a realidade
efetiva, i.é, o ser em geral, que absolutamente convém, no
presente contexto, analisar mais de perto este problema cuja
importância é em si mesma um fato decisivo.
224
§4. O extra-ser do objeto puro
Para neutralizar o paradoxo que parece aqui bem real, se
oferece, quase naturalmente, o recurso a certos fenômenos
psíquicos, e eu já procurei expor o essencial no concernente ao
caso presente1. Em conformidade com o que eu já mostrei, se se
tem presente no espírito, por exemplo, a subjetividade das
qualidades sensíveis, deve-se falar do objeto da representação do
azul, para citar um exemplo, apenas no sentido de uma faculdade
desta representação, cuja realidade efetiva, por assim dizer,
propicia a ocasião da manifestação. Do ponto de vista da
representação, parece-me ainda agora que se toca assim em algo
essencial: mas, eu não posso hoje esconder que o objeto, para não
existir, tem possivelmente ainda menos necessidade de ser
representado do que para existir, nem também que mesmo para a
possibilidade de ser representado — pelo que o objeto se presta
—, não poderá resultar não mais que uma existência que seria
“existência na representação”, isto é, mais exatamente, uma
“pseudo-existência”2. Dito de modo mais preciso, se eu afirmo
que “o azul não existe”, eu não penso, então, em uma
representação nem em suas eventuais faculdades, mas sempre no
azul. Tudo se passa como se o azul devesse antes ser, afim de que
se possa levantar a questão de seu ser ou de seu não-ser. Mas,
para não cair de novo em paradoxos ou incongruências efetivas,
talvez se possa dizer: o azul e todo outro objeto é de algum modo
dado antes de nossa decisão quanto ao seu ser ou não-ser, de uma
maneira que também não pré-julga o seu não-ser. Do lado
psicológico, se poderia igualmente descrever assim a situação: se
eu devo, a propósito de um objeto, poder julgar que ele não é,
parece que eu devo apreender antes uma vez o objeto para poder
predicar o não-ser, mais exatamente, para lhe o imputar ou
denegar.
Pode-se esperar fazer justiça a este estado de coisas
1 Über Annahmen, p98ss.
2 Cf. “Über Gegenstände höherer Ordnung etc.”, Op. cit. p186s.
225
inteiramente singular, como se pode perceber, apesar de sua
banalidade, com mais rigor teórico, graças à consideração que se
segue. Que um certo A não é, brevemente, que o não-ser de A é,
como eu mostrei em outro lugar1, ou que um objetivo é, como o
ser de A: eu estou justificado assim em afirmar tanto que A não é,
assim como ao objetivo “não-ser de A” advém um ser (mais
precisamente, como se disse mais acima, uma subsistência). O
objetivo, pouco importa que se trate de um objetivo-de-ser ou de
um objetivo-de-não-ser, está em face de sua objetidade (Objekte),
cum grano salis, na mesma relação que o todo face à parte. Mas,
certamente se o todo é, a parte deverá também ser, o que,
transposto para o caso do objetivo, parece significar: se o objetivo
é, o seu objeto deve também necessariamente ser em um sentido
qualquer, mesmo no caso em que este objetivo é um objetivo-denão-ser. Mas, na medida em que, por outro lado, o objetivo
interdiz precisamente de se considerar o nosso A como sendo, e
considerando-se que, como nós vimos, o ser seja tomado
conforme o caso não somente no sentido de existência, mas
também no sentido da subsistência, a exigência, deduzida mais
acima do ser de um objetivo-de-não-ser, de um ser do objeto
parece ter sentido apenas se se tratar de um ser que não seria nem
existência nem subsistência, sob a condição de que se integre aos
dois níveis de ser, se se pode exprimir assim, existência e
subsistência, um tipo de terceiro nível. Este ser deveria advir a
todo objeto enquanto tal: a ele não pode corresponder um não-ser
do mesmo tipo, pois um não-ser nesse novo sentido teria
imediatamente por consequência necessária as mesmas
dificuldades que aquelas que implica o não-ser no sentido
habitual, e que a nova concepção teria em primeira linha afastado.
É por esta razão que me pareceu por um tempo que o termo
“quase-ser” (Quasisein) seria uma expressão bastante útil para
designar este ser cujo estatuto permanece de todo modo um
pouco insólito.
1 Über Annahmen, Kap. VII.
226
Mas, no que concerne esta denominação, ela tem contra si
certamente o perigo, utilizada ao mesmo tempo que outras
designações depois de longo tempo atestadas, de produzir
confusões, tal como “pseudo-existência” e “quasetranscendência”1. As objeções práticas são mais importantes.
Poder-se-ia ainda nomear ser um ser que, por princípio, nenhum
não-ser se lhe oporia? Além disso, se trataria de um ser que não
seria nem existência nem subsistência — em nenhuma parte
encontraremos motivo, que se pudesse aqui julgar, para um tal
postulado: não seria o caso de não se hesitar em evitá-lo, também
em nosso caso, tanto quanto possível? O que parece aí ser posto é
um fenômeno, em verdade, muito bem observado: é necessário
que A, nós o vimos, me seja de algum modo “dado” para que eu
apreenda o seu não-ser. Isto implica, porém, como eu mostrei em
outro lugar2, uma suposição de qualidade afirmativa: para negar
A, eu devo previamente supor o ser de A. Bem entendido, desse
modo eu faço referência a um ser, de alguma maneira,
previamente dado de A: ora, é da natureza mesma da suposição
que ela se direcione a um ser que ele mesmo não precisa ser.
Desse modo se esboçaria, no final das contas, a perspectiva, sem dúvida muito apaziguadora, de fundar a posse desse
surpreendente ser do não-existente por mais absurdo que ele
pareça, se o objetivo existente não exigir em todos os casos um
objeto existente. Esta exigência não repousa senão sobre uma
analogia com o comportamento da parte em relação ao todo: o
objetivo seria tratado como um tipo de complexo, o seu objeto
como um tipo de elemento constitutivo. Isto pode parecer
conforme, sob muitos aspectos, à nossa concepção, por hora com
muitas lacunas, da essência do objetivo: mas, ninguém negaria
que a analogia seria apenas um primeiro expediente, e que não se
tem nenhum direito de a tomar a sério, nem que fosse em uma
certa medida. Em vez de deduzir, com base em uma analogia
1 Über Annahmen, p95.
2 Ibidem, p105ss.
227
problemática, do ser do objetivo um ser de seu objeto, mesmo no
caso em que este objetivo é um objetivo-de-não-ser, seria melhor
tirar a lição dos fatos que nos ocupam que esta analogia não é
precisamente válida para o objetivo-de-não-ser, isto é, que o ser
do objetivo de maneira geral não depende do ser de seu objeto.
Esta é uma posição que por si mesma diz: se toda oposição entre ser e não-ser é apenas um problema do objetivo e não
da objetidade (Objektes), no fundo, é evidente que nem o ser nem
o não-ser podem se situar no objeto (Gegenstande) como tal. Isso
naturalmente não significa que um objeto qualquer poderia nem
ser nem não-ser. Isto não significa tam-bém afirmar que é da
natureza de um tal objeto (Gegenstandes) poder ser puramente
contingente se ele é ou não é: um objeto absurdo como o círculo
quadrado implica a certeza de seu não-ser em qualquer sentido
que isto tenha, um objeto ideal, como a diferença, a de sua nãoexistência em si. Seguramente, quem quer que desejasse fazer eco
a um modelo tornado célebre afirmaria o resultado ao qual nós
chegamos acima por meio dessa formulação, o objeto enquanto
tal, sem levar em conta as particularidades eventuais ou de seu
sempre dado objetivo aposto, talvez, pudesse dizer: o objeto puro
se situa “para além do ser e do não-ser” (jenseits von Sein und
Nichtsein). De maneira menos surpreendente e menos exigente
também, mas, a meu ver, mais apropriada, se poderia dizer a
mesma coisa expressando-se mais ou menos assim: o objeto puro
é por natureza fora do ser (ausserseiend), embora de seus dois
objetivos-de-ser, seu ser e seu não-ser, sempre um deles subsiste.
Portanto, o que se pode denominar de maneira pertinente
o princípio do extra-ser (aussersein) do objeto puro dissipa
definitivamente a aparência de paradoxo que forneceu o primeiro
motivo ao estabelecimento deste princípio. Que ele não deixa, por
assim dizer, para um objeto (Gegenstande), apreender o seu nãoser como seu ser, eis o que se compreende imediatamente desde
que se entenda que, abstração feita das particularidades, ser e
não-ser são igualmente exteriores ao objeto. Uma extensão bem228
vinda está também aberta para o princípio evocado mais acima de
uma independência do ser-tal (Sosein) em relação ao ser (Sein):
ela nos diz que o que não é de maneira nenhuma exterior ao
objeto e constitui, ao contrário, sua verdadeira essência, reside em
seu ser-tal, o qual adere ao objeto, quer ele seja quer ele não seja.
Finalmente, nós estamos agora, e a bem dizer somente agora, em
posição de compreender de maneira suficientemente clara o que
nós anteriormente reconhecemos como sendo o pré-juízo em
favor da existência ou do ser de todos os objetos possíveis de
conhecimento. O ser não é justamente a única pressuposição sob
a qual o processo de conhecimento encontraria de alguma
maneira um primeiro ângulo de ataque, ele é, ao contrário, ele
mesmo um tal ângulo de ataque. Mas, o não-ser é também ele um
bom ângulo. Além disso, o conhecimento encontra já no ser-tal de
todo objeto um campo de atividade que ele não tem nenhuma
necessidade de tornar acessível em respondendo antes a questão
do ser ou do não-ser ou dando uma resposta afirmativa.
§5. Teoria do objeto como Psicologia
Agora nós sabemos quão pouco a totalidade do existente
(Existierenden), ou mesmo dos entes (Seienden), constitui a
totalidade dos objetos de conhecimento, e também quão pouco
uma ciência do efetivo (Wirklichen) ou do ente em geral, por mais
universal que ela seja, poderia ser considerada como a ciência dos
objetos do conhecimento tomados pura e simplesmente. Porém,
ao mesmo tempo, nesses últimos parágrafos, não se consideraram
ainda senão os objetos do conhecimento, enquanto que a questão
posta no início dessas análises teria podido já ter resposta pelo
fato que não é simplesmente o conhecimento, mas cada juízo
(Urteilen) e cada representação (Vorstellen) têm seu objeto, para
não falar outra vez da objetividade (Gegenständlichkeit) das
vivências extra-intelectuais. Esta significação dominante, ou,
como já indicamos rapidamente, esta significação caracterizadora
229
da objetividade para a vida psíquica pode sugerir que nós, ao
tomar exclusivamente em consideração apenas o conhecimento,
nos deixamos levar por um desvio fácil de evitar, embora o mais
natural é que esta ciência devesse se ocupar dos objetos como tais
e que a ela cabe tratar de sua objetividade, tarefa esta que parece,
conforme o que se deve de novo ser mencionado, não pode caber
senão à psicologia.
Deve-se logo conceder que o atual exercício da psicologia não é sob qualquer ponto de vista contrário a uma tal
concepção. Por exemplo, existe uma psicologia dos sons, tanto
quanto uma psicologia das cores que estão longe de considerar
como uma tarefa acessória o esforço que procura ordenar a
multiplicidade de objetos que pertencem ao domínio sensível em
questão e a examinar as suas propriedades1. Também é
inteiramente natural que a ciência dos fatos psíquicos integre às
suas pesquisas as operações específicas do psíquico e em
particular aquelas do intelectual. Seria uma psicologia do juízo
muito estranha aquela que não tivesse nenhuma noção da
capacidade de, sob condições suficientemente favoráveis, apreender algo além de si, de se apoderar de um certo modo da
realidade efetiva. E, havendo ainda algo fora da realidade efetiva,
que se pode conhecer e que nós podemos conhecer com a ajuda
de certas operações intelectuais, então, certamente a psicologia
não deve deixar de tomar em consideração, juntamente com esta
faculdade este domínio extra-efetivo (ausser-wirklich), sobre o
qual são direcionadas as operações que carac-terizam esta
faculdade.
Desse modo, os objetos do juízo, da suposição e da representação, bem como os do sentimento e do desejo, encontram
sem dúvida um lugar na psicologia; todavia, todos dirão também
que esta ciência não toma estes objetos em consideração por sua
própria vontade. Para a práxis, no interior como no exterior de
uma atividade científica, talvez seja seguramente um ponto
1 Para maiores detalhes, o meu “Bemerkungen über den Farbenkörper und das
Mischungsgesetz”, Zeitschrift für Psychologie der Sinnesorgane, Bd. XXXIII, S. 3ff.
230
inteiramente acessório saber o que é intencionalmente resultado
principal e o que é resultado secundário obtido quase unicamente
por acidente: nos estudos consagrados à Antiguidade, por
exemplo, acontece certamente por acaso que os requisitos de
interpretação de texto forneçam seguidamente aos filólogos
indicações referentes aos “realia”. Porém, ninguém pensará em
fazer passar o estudo da Antiguidade pela filologia clássica, a
qual deveria nesse caso estender suas pretensões a disciplinas as
mais diversas, mesmo se em realidade o fato de se ocupar das
línguas antigas serviu de ponto de partida para investigações
científicas tão diferentes quanto possíveis. Do mesmo modo, a
pesquisa psicológica poderia assim se tornar frutífera para
domínios vizinhos, tanto mais que a estes pertencem ciências que
ou bem são menos desenvolvidas que a psicologia, ou bem não
obtiveram ainda um reconhecimento formal a título de ciência
especial. Que fenômenos desse tipo tenham efetivamente
acontecido no que concerne à elaboração teórica dos objetos,
nada o demonstra mais claramente que o exemplo já mencionado
acima das cores, a propósito do que incontestavelmente foi o
estudo aprofundado dos estados de coisas psicológicos que
conduziu ao estudo dos estados de coisas próprios aos objetos, do
estudo dos corpos coloridos a aquele do espectro de cores 1. A
referência feita à Linguística mostra, sob uma outra perspectiva, a
que ponto não é permitido deixar a Psicologia passar como a
autêntica ciência dos objetos. A Linguística tem também, desde
que ela se ocupa da significação das palavras e das frases,
obrigatoriamente a ver com objetos2 e a Gramática efetivamente
prepara de maneira fundamental a apreensão teórica de objetos.
Portanto, na verdade não é possível antever sob qual ponto de
vista se deveria, nesses assuntos, conceder à Psicologia um
privilégio: ao contrário, se reconhece claramente que nenhuma
dessas disciplinas pode ser a buscada ciência dos objetos.
Mas, realmente seria algo estranho se, depois da tota1 Cf. Idem, p. 11ss.
2 Cf. Über Annahmen, S. 271ss.
231
lidade das ciências dos entes, incluindo aí a ciência da totalidade
do efetivo, ter-se mostrado insuficiente para este fim, uma dentre
elas, por assim dizer inopinadamente, revelasse uma aptidão para
açambarcar a totalidade dos objetos. Agora, pode-se indicar
precisamente de qual setor dessa totalidade a psicologia está em
condições de se ocupar. A psicologia apenas pode se interessar
por objetos sobre os quais um processo psíquico qualquer esteja
efetivamente direcionado; pode-se dizer, talvez, abreviadamente:
ela se interessa apenas pelos objetos que são de fato
representados, para os quais existe representação, que também ao
menos “existem em nossas representações” ou, mais
corretamente, têm uma pseudo-existência1. Por isso, nós tivemos
que caracterizar acima o corpo colorido, como conceito
englobando todas as cores que efetivamente podem aparecer na
sensação e na imaginação dos homens, como um assunto da
Psicologia e, ainda assim sem uma precisão rigorosa, na medida
em que esta totalidade, sendo não mais que uma multiplicidade de
pontos, não constitui efetivamente um continuum, ao menos na
medida em que os processos de alteração não podem ajudar 2. A
concepção do espectro das cores, ao contrário, funda-se apenas na
natureza dos objetos concernidos, portanto, inteiramente nãopsicológica, mas, sem nenhuma dúvida no plano da teoria do
objeto, e nesse exemplo percebe-se de maneira imediata, sem
apelar para considerações particulares, a diferença fundamental
do ponto de vista adotado num caso e noutro.
Apenas um pensamento poderia ainda parecer capaz de
destruir a impressão de completa disparidade, ao menos de tornar
plausível, que, ao contrário da concepção defendida a propósito
das cores, não pode haver nenhum objeto da representação que
não pertença ao tribunal da Psicologia. Pode-se pensar que, seja
qual for a via pela qual se decidiu introduzir o objeto concernido
da elaboração teórica, nós deveríamos no final o apreender
1 “Über Gegenstände höherer Ordnung etc.”, Op. Cit, p. 186s.
2 Cf. E. Mally, na terceira das presentes investigações, Cap. I, § 15, Cap. III, §10, Cap. IV,
§25.
232
(erfasst), logo, ao menos representá-lo; mas, desse modo ele já é
incluído na série daqueles objetos pseudo-existentes que também
concernem à Psicologia. Portanto, se eu penso num branco mais
claro do que qualquer um que o olho humano tenha visto ou verá,
este branco é, todavia, um branco representado, e nunca uma
teoria, de qualquer maneira que ela seja constituída, poderá se
referir a um não-representado.
Este pensamento relembra de um certo modo o argumento dos “idealistas” que estranhamente não foi ainda hoje
completamente esquecido, segundo o qual o “esse” deve ser, se
não também um “percipi”, ao menos um “cogitari”, porque ninguém pode pensar um “esse” sem — o pensar. E, em todo caso, o
efeito de tais considerações deveria ser antes contra à sua
intenção do que em conformidade com ela. Se, com efeito, este
ultrabranco que foi evocado se encontra incluído pela concepção
no domínio da reflexão teórica, então, a partir desse evento
psíquico tão novo na vida, é um trabalho inteiramente novo que
pode se apresentar à Psicologia. Seguramente isto não é
incontornável: no caso do exemplo considerado, nada desse
gênero foi alcançado, pois há uma grande variedade de concepções análogas. Mas, deve-se ter à vista uma tal possibilidade;
e se, por acaso, fosse ela de fato realizada, então, ficaria claro
quão pouco a concepção do ultrabranco concerne à Psicologia. A
teoria do objeto seguramente já fez o seu trabalho por meio desta
concepção, eventualmente a Psicologia somente depois fará o
seu; e, então, seria suficientemente estranho tomar o trabalho já
feito, em vista de um trabalho futuro, por um trabalho já
psicológico.
§6 – Teoria do objeto como teoria dos objetos do
conhecimento.
O que a Psicologia não pode realizar de maneira alguma,
por conseguinte, poderia ser investigado com melhores
perspectivas ali onde são investigados fatos em cujas caracte233
rísticas o objeto é parte constitutiva. A partir do que foi visto
acima, não há dúvida nenhuma de que fatos desse tipo se dão ao
conhecimento. O conhecimento é um julgar (Urteilen) que não é
verdadeiro apenas de maneira contingente, mas naturalmente e
por assim dizer de maneira intrínseca: mas, um juízo é
verdadeiro, não na medida em que há um objeto existente
(existierenden) ou mesmo apenas um objeto que é (seienden
Gegenstand), mas antes enquanto ele apreende um objetivo que é
(seienden Objektiv). Que há cisnes negros e que não há um
perpetuum mobile, são ambas verdadeiras, embora se trate num
caso de um objeto existente e no outro de um objeto inexistente;
na primeira subsiste (besteht) precisamente o ser, na segunda o
não-ser do objeto em questão. A verdade está ligada em cada caso
ao ser deste objetivo e é isto que a constitui. O juízo não seria
verdadeiro se o objetivo em questão não fosse. O juízo também
não seria verdadeiro se ele fosse constituído diferentemente de
como ele é, e se por conseguinte ele igualmente não concordasse
com o fato. A coincidência desta exigência subjetiva e desta
exigência objetiva pode, então, ser inteiramente contingente:
como quando se retira uma conclusão verdadeira de premissas
falsas.
Agora, esta contingência ou exterioridade é sem dúvi-da
estranha à relação entre conhecer e conhecido: está na natu-reza
do juízo que este não passa, por assim dizer, ao lado do que é
conhecido; e esta propriedade do conhecer valida-se diante do
tribunal da Psicologia como aquilo que se conhece como
evidência (Evidenz). Porém, o juízo evidente não consti-tui por si
o fato do conhecer: essencial é a apreensão da objetidade
(Objektes) ou do objetivo (Objektivs), por isso o ser deste último
é indispensável. Nessa perspectiva, o conhecer é inteiramente
idêntico no juízo que é verdadeiro per accidens, por assim dizer,
e é por esta razão precisamente que o conhe-cer pode, no início
da presente exposição, ser caracterizado como um fato dúplice.
Aquele que quer se aprofundar cienti-ficamente neste fato dúplice
234
não deve, então, limitar-se ao aspecto psicológico, mas deve
também levar em conta explicitamente, como uma parte da tarefa
que lhe incumbe, o segundo aspecto, isto é, os objetivos que são e
as objetividades que neles estão implicadas.
Nós retornamos aqui, quanto a nossa questão principal, de
certa maneira a um ponto de vista que tivemos que abandonar no
parágrafo precedente, ao considerar o fato de que os objetos não
pertencem somente ao conhecer, mas também aos juízos errados,
às representações e às atividades psíquicas realmente extraintelectuais. Na medida em que nós chegamos ao resultado de que
a doutrina dos objetos poderia naturalmente ser abordada no
contexto da elaboração científica do conhecer, a questão se impõe
de saber se, em virtude da limitação ao conhecer, e
correlativamente da exclusão de todos os outros processos
psíquicos, não seria uma parte dos objetos eliminada, o que
conduziria ao abandono da universalidade, a qual, porém, não se
pode renunciar quando se trata dos objetos enquanto tais.
Entretanto, essas ponderações são infundadas. Para se
perceber isto, deve-se refletir numa diferença característica que
resta entre a Psicologia e a ciência do conhecer. Compreende-se
por si mesmo que a Psicologia lida somente com os eventos
psíquicos efetivos e não com os simplesmente possíveis. A
ciência do conhecer não pode se fixar tais limites, não apenas
porque o saber como tal tem valor, de tal modo que o que não é,
mas que poderia ser, chama sobre si a atenção, ao menos a título
de desiderata. Por isso, entram em questão como objetos de nosso
saber não apenas o conjunto de objetos pseudo-existentes, isto é,
aqueles que são efetivamente julgados ou representados, mas
também todos os objetos que não são objetos de nosso saber
senão a título de possibilidade. Mas, não há nenhum objeto que
não seja objeto de conhecimento, ao menos como possibilidade,
se se coloca na perspectiva desta ficção, de outro modo muito
instrutiva, segundo a qual a aptidão ao conhecimento não seria
afetada por nenhuma limitação, inscrita na constituição do
235
sujeito, e que de fato não pode desaparecer completamente, do
tipo daquelas que estão associadas à capacidade de sensação ou
de distinção. Sob a pressuposição de uma inteligência não
limitada em suas aptidões e suas operações, não há nada
incognoscível, e o que é cognoscível também dá-se (gibt es), ou,
porque habitualmente se diz “dá-se” principalmente do que é, e
especialmente do existente, seria preferível dizer: tudo o que é
cognoscível é dado (gegeben) — precisamente ao conhecer. E, na
medida em que todos os objetos são cognoscíveis, a todos sem
exceção pode ser atribuído o ser-dado (Gegebenheit) como
propriedade universal, quer eles sejam quer não.
Não se faz mais necessário expor a consequência no que
concerne à relação dos objetos do conhecimento com os objetos
das outras atividade psíquicas. Os objetos, seja qual for o tipo de
vivência a qual eles pertençam, são inequivocamente também
objetos de conhecimento. Portanto, aquele que procura elaborar
os objetos do ponto de vista do conhecer e cientificamente não
tem que se preocupar quanto à questão de saber se, em assumindo
esta tarefa, ele não corre o risco de desse modo excluir um
domínio qualquer da totalidade dos objetos.
§7 – Teoria do objeto como “lógica pura”.
Conforme a uma antiga tradição, primeiro deve-se pensar
na lógica quando está em questão a elaboração científica do
conhecer; e efetivamente, apenas em uma época recente, pela
primeira vez, a lógica se impôs, em uma de suas partes principais,
a lógica pura ou formal1, tarefas2 que coincidem de maneira
inegável com aquelas que deveriam ser plausivelmente realizadas
por uma elaboração científica dos objetos enquanto tais. Eu já
assinalei a minha aprovação fundamental, em outro lugar 3, ao
ataque de Husserl contra o “psicologismo” na lógica e numa
1 Cf. E. Husserl, Logische Untersuchungen, 2 Bde. Leipzig und Halle, 1900 und 1901. Lógica
“pura” e “formal” são expressamente identificadas, p. ex., Bd. I, p. 252.
2 Em particular, Bd. I, p. 243ss; também Bd. II, p. 92ss.
3 Über Annahmen, p. 196.
236
época em que, por razões exteriores, apenas pude tomar
conhecimento de uma maneira provisória e ainda muito
incompleta da considerável obra do referido autor. Hoje, quando
eu espero ter reconhecido, fazendo-lhe justiça por meio de um
estudo aprofundado, os méritos da obra em questão, eu não posso
mais sustentar a expressão de minha aprovação, pois eu tenho que
atender a muitas outras coisas, incluindo aquelas “tarefas”, e, se
eu prefiro não atribuir precisamente tais tarefas à “lógica pura”,
isto não é senão um desacordo de uma importância relativamente
secundária.
As condições que parecem ser aqui determinantes
concernem, tanto quanto eu posso ver, que se não pode, sem
violência, dissociar da lógica a ideia de uma arte interessada nas
operações do intelecto e suas aptidões; que, portanto, a lógica
permanece em todas as circunstâncias uma “disciplina prática” 1,
cuja elaboração permite que se efetue a passagem àquilo que eu,
na ocasião, caracterizei como uma “disciplina teórico-prática”2.
Por isso, eu prefiro antes não mais nomear lógica uma disciplina
que tenha sido “purificada” de toda visada prática e que por
conseguinte deveria ser caracterizada como “lógica pura” 3; eu
prefiro reservar as tarefas atribuídas à “lógica pura” à única
disciplina teórica ou à única das disciplinas teóricas a que deve a
lógica, como todas as outras disciplinas práticas, terminar por
retornar.
Que nesse sentido não se deve recorrer exclusivamente à
Psicologia, é um ponto sobre o qual, como acima novamente foi
evocado, eu compartilho inteiramente a opinião com o autor das
Investigações Lógicas. E quando eu considero os conceitos
1 Eu tentei desenvolver isto no meu escrito Über philosophische Wissenschaft und ihre
Propädeutik, Viena, 1885; comparar em particular p. 96s.
2 Ibidem, p. 98.
3 Pelo termo equivalente “Lógica formal” me vem ainda à memória tudo o que se tem
ensinado quase exclusivamente sob este nome e que teve que ser combatido e muito bem
superado. Deveria haver aí uma propriedade individual simples? Por isso, talvez, não se
torna evidente a pouca adequação da palavra “Forma” para o que ela pretende designar,
ao menos em fornecer uma imagem minimamente clara?
237
principais aos quais ele sempre retorna sem cessar em sua
polêmica contra o “psicologismo”, afim de caracterizar este
domínio extrapsicológico do saber, me é difícil evitar a impressão de que nosso autor não conseguiu ele mesmo se livrar
inteiramente daquilo que ele combate de maneira justa com tanto
zelo. A “lógica pura” lida com os “conceitos”, com as
“proposições”, com as “deduções”, etc. Porém, afinal não seriam
os conceitos representações (Vorstellungen) elaboradas para fins
teóricos, mas justamente ainda representações? E quando, diante
de uma “proposição”, se faz abstração da significação gramatical
deste termo, de outro modo tão presente, como o exigia
expressamente Bolzano, por exemplo, pode-se agora fazer
igualmente abstração do processo psíquico (a suposição ou o
juízo) expresso pela proposição gramatical ou, mais precisamente
ainda, se isto é feito, o que nos resta que possa ainda pretender
levar o nome de “proposição”? Mas, obviamente subsiste ali
ainda um sentido extrapsicológico, mesmo com o sentimento de
um uso um tanto metafórico das palavras, quando se fala do
“princípio (Satz) de contradição”, do “princípio de Carnot”, etc. 1
Tal sentido está inteiramente ausente, tanto quanto eu vejo, no
termo “dedução” (Schluss). Pois, se se fala igual e naturalmente
“da” dedução segundo o modo “darapti”, “da” dedução
hipotética, etc., não se visa desse modo menos um processo
intelectual, ou mesmo seu possível resultado, do que um processo
fisiológico quando se fala “da” circulação do sangue.
Por isso, me parece que o fato de alocar as deduções e
demonstrações “objetivas”, por oposição às deduções e demonstrações subjetivas2, corre o risco de obscurecer mais do que
clarificar a situação, se me é permitido retirar do conteúdo geral
das Investigações lógicas e de numerosas análises detalhadas, a
convicção que, a despeito de várias divergências nos detalhes, na
época inevitáveis, são no essencial os mesmos fins aos quais as
1 Naturalmente, trata-se aí dos objetivos (Objektive), cf. Über Annahmen, p. 197, nota.
2 Logische Untersuchungen, vol. II, p. 26, tbém 94 e 101.
238
investigações filosófico-matemáticas1 permitiram ao nosso autor,
que me possibilitaram a distinção, devida a considerações em
parte efetivamente e em parte supostamente psicológicas, entre
conteúdo (Inhalt) e objeto (Gegenstand)2 e, mais ainda, aquela
entre objetidade (Objetkt) e objetivo (Objetiv)3. Em tais
circunstâncias, seria mais útil a esta causa comum, em vez de
insistir sobre as reservas de ordem essencialmente
terminológicas, evocadas acima, ou sobre pontos deste tipo, se eu
tentasse antes explorar brevemente como a meu ver se deveria
enfrentar o perigo do “psicologismo”, sem dúvida ainda não
completamente eliminado, não obstante a atenção que lhe foi
dedicada.
§8 – Teoria do objeto como Teoria do conhecimento.
Antes, contudo, retiremos da objeção que se acabou de
formular contra a expressão “lógica pura” uma consequência
prática imediata. Desde há muito tempo não se encontra um nome
para uma doutrina do saber que, por representar uma ciência
teórica, não tem nenhum fim prático. Para esta não se poderia
desejar como mais natural a designação “teoria do conhecer”, ou
mais precisamente “teoria do conhecimento”. Eu falarei, então, de
“teoria do conhecimento” em vez de “lógica pura”, e espero
mostrar agora que a questão do “psicologismo” na teoria do
conhecimento nos reconduzirá de novo à teoria dos objetos, da
qual as considerações precedentes aparentemente nos afastaram
um pouco.
O “psicologismo”, quando designa uma inclinação natural
ou uma disposição fundada sobre reflexões fundamentadas de
abordar a solução de problemas com a ajuda de meios
predominantemente psicológicos, não implica em si nada de
repreensível4. Mas, dentro de um círculo de problemas definido,
1 Compare Idem, Prefácio do vol. I, p. V.
2 “Über Gegenstände höherer Ordnung etc.”, p. 185ss.
3 Über Annahmen, p. 150ss.
4 Em relação a isso, me abona no principal a objetividade demonstrada pela exposição
239
precisamente este que nós nos ocupamos aqui, uma coloração
negativa não é absolutamente estranha a esse termo: pois,
compreende-se precisamente por ele um modo de tratamento
psicológico no lugar errado. Na medida em que o conhecer é uma
vivência, o modo de consideração psicológico não pode ser
excluído por princípio da teoria do conhecimento; terá de tratar
de conceitos, proposições (juízos e suposições), de raciocínios,
etc., também de modo psicológico. Mas, face ao conhecer se põe
o conhecido; o conhecer é, como já indicamos muitas vezes, um
fato de dupla face. Aquele que negligencia o segundo aspecto e
que, portanto, procede à maneira da teoria do conhecimento,
como se houvesse apenas o lado psíquico do conhecer, ou aquele
que desejaria subjugar este segundo ao ponto de vista do processo
psíquico, não poderia evitar o reproche de psicologismo.
Poderíamos tornar claro, ao menos de certa maneira, em
que consiste verdadeiramente o perigo que o psicologismo traz,
perigo ao qual nenhum daqueles que se ocupam das questões
pertencentes à teoria do conhecimento pode escapar sem pagar
tributo? Aquela duplicidade do conhecer é suficientemente
insidiosa que quase ninguém pode a desconhecer, mesmo se
houvesse apenas o existente para conhecer. Mas, já as
matemáticas em geral, e singularmente a Geometria, tratam,
como nós vimos, do não-efetivo; e assim o pré-juízo, já
denunciado muitas vezes, em favor da realidade efetiva já aí
conduz a um dilema que parece evidente e no fundo tão estranho,
do qual não se pode ter facilmente consciência explícita e que
pode ser formulado assim: ou bem aquilo sobre o qual se volta o
conhecer existe na realidade efetiva, ou bem ele existe, ao menos,
“em minha representação”; em suma, ele “pseudo-existe”. Em
favor da naturalidade desta disjunção nenhum testemunho é mais
eloqüente que o emprego da palavra “ideal”, que na consciência
dos fatos devida a Überweg-Heinze, que coloca a minha própria atividade científica sob o
título geral “psicologismo” (Grundriss der Geschichte der Philosophie, 9ª ed., 4ª parte, p.
212sg.). Para ver em que sentido eu mesmo devo concordar com esta caracterização,
comparar Über Annahmen, p. 196.
240
moderna da língua e na ausência de qualquer consideração
histórica, significa aproximadamente aquilo que é “pensado” ou
“somente representado” e, por isso, por si mesma parece
perfeitamente aplicável a todos os objetos que não existem e
também aos que certamente não podem absolutamente existir.
Acredita-se involuntariamente que o que não existe fora de nós,
ao menos, deve existir em nós: e com isso pertenceria ao tribunal
da Psicologia, e então se poderia dar espaço enfim para o
pensamento de que talvez o conhecimento do existente e, com
este conhecimento, a realidade efetiva ela mesma, seriam
suscetíveis de uma abordagem “psicológica”.
Talvez, agora aquele pré-juízo em favor da realidade
efetiva deixe-se retroceder um passo atrás, mostrando a verdade
de onde ele se originou. Seria certamente errado crer que cada
conhecimento tem que ser de existência ou de um existente
(Existierenden): mas, não é correto que no final, todo
conhecimento como tal tem a ver com o que é (Seienden)? O que
é, o “fato” (Tatsache), sem o qual nenhum conhecimento pode
valer como conhecimento, é o objetivo (Objektiv) apreendido por
um ato de conhecimento apropriado, ao qual cabe um ser (Sein)
ou mais exatamente um subsistente (Bestand), quer seja positivo
ou negativo, quer se trate de um ser (Sein) ou de um ser-tal
(Sosein). Seria muito ousado supor que a fatualidade
(Tatsächlichkeit)
do
objetivo
(Objektiv),
associada
inevitavelmente a todo conhecer, sofreu uma transposição para a
objetidade (Objekt) que a teoria considera quase que unicamente,
para tornar-se em seguida, por extrapolação, uma tácita exigência
de realidade efetiva aplicando-se a tudo o que se oferece ao
conhecimento?
A questão pode aqui ser deixada sem solução: não é a
psicologia do psicologismo que constitui nosso problema. Porém,
o que permanece fora de dúvida, em todo caso, é que o
psicologismo na teoria do conhecimento acaba sempre por
negligenciar ou desconhecer o lado objetual do fato do conhe241
cimento, a palavra “objeto” (Gegenstand) sendo aqui tomada em
sua acepção mais larga, segundo a qual ela inclui também o
objetivo (Objektiv). Aquele que não apreendeu a significação e a
especificidade do objetivo (Objektiv) e procura, por conseguinte,
na objetidade (Objekte) o ser (Sein) que pertence a todo conhecer,
não está em condições de apreciar suficientemente a
eventualidade do não-ser (Nichtseins) e do ser-tal (Soseins), e
pensa que em todo ente (Seienden) deve-se encontrar um efetivo
(Wirkliches), este cai no psicologismo. E aquele que quer se
proteger disso não tem certamente a necessidade de se dar por
tarefa eliminar cuidadosamente toda a psicologia da teoria do
conhecimento: a psicologia do conhecer deverá antes constituir
sempre uma parte integrante da teoria do conhecimento; deve-se
apenas evitar de incluir como psicologia, na teoria do conhecimento, o que precisamente é e deve permanecer — teoria
dos objetos.
Se, então, a teoria dos objetos do conhecimento, ou mais
brevemente a teoria do objeto, é apresentada para nós como uma
parte integrante da teoria do conhecimento1, então, se poderia
agora facilmente encontrar também resposta à questão posta no
início da presente reflexão. O lugar apro-priado para a
investigação dos objetos como tais, assim nós podemos agora
dizer, é a teoria do conhecimento. E, de fato este é um resultado
que se pode aceitar sem prejuízo maior para a teoria do objeto. A
teoria do conhecimento será e permanecerá, quanto mais ela
tenha consciência de suas tarefas, muito mais seguramente, uma
parte essencial da teoria daquilo que é para ser conhecido, do
“dado” (Gegebenen) no sentido antes usado dessa palavra,
portanto, dos objetos em sua totalidade, e os interesses próprios
da teoria do conhecimento prepararão naturalmente, e
seguidamente de maneira suficiente, a via aos da teoria do objeto.
1 No que concorda o mais novo estudo de A. Höfler, “Zur gegenwärtigen
Naturphilosophie”, no caderno 2 de Abhandlungen zur Didaktik und Philosophie der
Naturwissenschaft, editado por F. Poske, A. Höfler e E. Grimsehl, Berlim, 1904, p. 151 (p. 91
da edição separada).
242
Portanto, se eu não me engano, deve-se ainda dar um passo a
mais, se se quiser efetivamente fazer justiça às pretensões que
uma teoria dos objetos, graças a sua especificidade, está
habilitada a erguer.
§9 – Teoria do objeto como ciência especial.
Em consequência disto, mostra-se agora a posição da
outra ciência, a qual nós antes atribuímos uma participação
fundamental, ao lado da teoria do objeto, na teoria do conhecimento: a Psicologia. Não pode haver, nós aceitamos isso como
auto-evidente, nenhuma teoria do conhecimento que não trate do
ato de conhecer e, nessa medida, que não seja também psicologia
do conhecimento. Mas, ninguém pode desejar considerar por isso
que a posição da Psicologia no sistema das ciências seja definida
pela importância que ela tem na teoria do conhecimento, ninguém
desejará ver na Psicologia tão somente uma parte da teoria do
conhecimento. No caso da teoria do objeto, ficar-se-ia satisfeito
com uma caracterização semelhante? É essencial para o interesse
pelos objetos, passar igualmente pelo interesse no conhecer?
Que não seja assim, qualquer um que se familiarizou um
pouco com os problemas relativos à teoria do objeto tem, de
maneira suficiente, uma experiência direta. A consideração
seguinte é menos direta, mas não menos clara, a qual se pergunta
até que ponto seria possível tornar útil cada aspecto da teoria do
objeto a que a presente investigação já nos conduziu e nos
conduzirá, no futuro, para os problemas da teoria do
conhecimento. Pode-se, como foi feito acima, exaltar a
importância fundamental de certos resultados derivados da teoria
do objeto, notadamente no terreno do psicologismo
epistemológico e noutros domínios, e conceder entretanto que a
teoria do objeto coloca também problemas cuja solução não pode
ser abordada senão em virtude de um interesse intrínseco a ela
atribuído.
243
Isto se tornará particularmente claro se se parte de um
pressuposto que, certamente, possui ainda muitos aspectos
inexplicados, mas com o qual eu não temo me desviar ao abordar
o problema principal. Eu observei, mais acima, que jamais se
encontrou, realmente, um lugar que fosse verdadeiramente natural
para as matemáticas no seio do sistema das ciências. Se eu não
me engano, a razão é que, do ponto de vista da problemática
principal, a concepção da teoria do objeto ainda não tinha sido
desenvolvida; no essencial, porém, as matemáticas são uma parte
da teoria do objeto. Eu digo “no essencial” e assim quero deixar,
o que eu indiquei com a alusão a pontos que restam inexplicados,
expressamente aberta a eventualidade de uma diferenciação, de
qualquer maneira inteiramente específica, dos interesses
matemáticos1. Mas, com exceção dessa eventualidade, me parece
inteiramente evidente que certos aspectos internos e externos
asseguram às matemáticas, no seu domínio próprio, a vantagem
de oferecer, para organizar todo o domínio de objetos, o que a
teoria do objeto deve se dar por tarefa ou ao menos ter diante dos
olhos como um ideal seguramente inacessível. Porém, se isso é
correto, então é de todo evidente quão pouco os interesses próprios da teoria do objeto, na medida em que eles sejam tratados
em um nível mais especial, são ainda interesses cognitivoteoréticos.
Disto que foi exposto, eu concluo que a teoria do objeto
reivindica a posição de uma disciplina independente da teoria do
conhecimento e, portanto, tem a pretensão de uma disciplina
científica autônoma. Visto que esta exigência não pode se erguer
sobre alguma coisa acabada, senão que, ao contrário, ela mal
ultrapassou o estágio inicial de sua realização, o desenvolvimento
avançado de uma parte do todo, que é antes uma indicação do que
um resultado, não apresenta obstáculos exteriores contra o
reconhecimento desta exigência situada apenas no discurso. Um
matemático não veria como uma exigência insignificante, se ele
1 Comparar, como esboço de uma definição mais apropriada, E. Mally, no número III das
Untersuchungen zur Gegenstandstheorie und Psychologie, Introdução §2, Cap. VII, §40s.
244
tivesse que conceder que ele “na realidade” é um teórico do
objeto. Mas, também ninguém exigiria de um físico ou de um
químico que eles se tomassem como metafísicos, de uma parte,
porque é impossível definir ou nomear uma ciência existente a
partir de uma disciplina que não está senão no nível do desejo e,
por outra parte, porque uma disciplina relativamente mais geral
pode e deve, enquanto tal, se propor objetivos estranhos a uma
outra que é relativamente mais especial. Este segundo ponto é em
certa medida ainda obscuro, quando se trata da relação entre as
matemáticas e a teoria do objeto, pelo fato de que no domínio
desta última as matemáticas representam não uma, entre outras,
mas a única disciplina especial conhecida e reconhecida em sua
singularidade. Assim, a teoria dos objetos é uma tarefa dúplice,
cujos aspectos todos não são talvez da mesma natureza, de um
lado ela persegue os objetivos próprios de uma disciplina cuja
generalidade e extensão são as maiores e, de outro cabe a ela
substituir todas as ciências especiais dotadas de um domínio
específico que até agora não se beneficiaram de um tratamento
particular. Através dessa necessidade de, nos casos faltantes,
descer
até
os
domínios
relativamente
particulares,
inevitavelmente será obscurecido novamente o caráter de ciência
universal, e a subsunção das matemáticas no domínio da teoria do
objeto poderá, então, facilmente parecer ameaçar sua
especificidade e sua legitimidade.
Mas, tais considerações exteriores e contingentes não
devem impedir a percepção da copertinência íntima, na medida
em que ela exista. Compreende-se melhor esta situação, de todo
modo complexa, se se diz: as matemáticas seguramente não são
teoria do objeto, mas como que uma ciência em si; porém, seus
objetos se situam em um domínio que em sua totalidade a teoria
do objeto tem de legitimamente tratar.
245
§10 – A teoria do objeto nas outras ciências. Teoria
geral e teoria especial do objeto.
Em relação ao material com o qual ela tem de lidar, isto é,
em relação às diversas ciências, a teoria da ciência pode conforme
o caso adotar um ponto de vista dúplice. Quando ela se fixa no
princípio das ciências empíricas, seguramente a atitude mais
natural é esta: primeiro os fatos, depois a teoria. Faz-se
necessário, com efeito, que as diversas ciências sejam dadas para
que se possa então se manifestar a necessidade de abordar um
pouco mais de perto a sua natureza e suas relações mútuas. Mas,
a ciência é também, em parte ao menos, o resultado de uma
atividade de antecipação e a teoria da ciência pode, para servir
esta antecipação, tratar também de disciplinas que ainda não
existem, mas que deveriam existir, e ela pode se propor
determinar o conceito e as tarefas destas ciências tanto quanto
seja possível.
Nós também fomos levados a reflexões que pertencem à
teoria da ciência, no que precedeu, constrangidos pelo interesse
que nós temos pelos objetos. Isto nos obriga a operar conforme o
segundo dos modos antes indicados: a teoria do objeto, que nós
devemos considerar como uma ciência própria, no principal é
uma ciência que, enquanto considerada como uma disciplina
particular, expressamente reconhecida em sua legitimidade
específica, no momento ainda não existe. Agora, absolutamente
não se deve entender por isso que a teoria do objeto foi até agora
tão pouco praticada em função de seu assunto quanto de seu
nome. E pode ser que a exploração precisa das conexões,
extremamente estreitas e numerosas, com outras vias de
pensamento já abertas, apenas seja oportuna no momento em que
a procurada nova ciência se legitime ela mesma, pelo que ela está
em condições de oferecer, não deverá sem proveito, para a
introdução que eu tento aqui desta nova ciência, de ao menos não
a privar de toda referência ao fato de que, graças a esta disciplina,
246
se pode dar conta de necessidades que já foram desde há muito
tempo pressentidas e que já alcançaram expressão sob as formas
mais variadas, desde que se examine de maneira refletida certos
interesses muito difundidos, dos quais seguidamente, talvez,
permaneceram mal-compreendidos os verdadeiros fins.
De fato, eu penso que investigações históricas particulares não são verdadeiramente necessárias para reconhecer que
até o presente a teoria do objeto foi praticada, certamente não de
maneira “explícita”, mas seguidamente de maneira “implícita”; a
isto se deve acrescentar que, ao menos na prática, há graus na
implicação que permitem apresentar a transição ao estado
explícito como um contínuo. Se se examina estas transições e o
que as provoca, deve-se considerar que nós reencontramos os
interesses próprios à teoria do objeto, por assim dizer, em duas
ocasiões diferentes: nas questões relacionadas diretamente com
certos domínios mais especiais de objetos, e nas questões
concernentes ao domínio total de objetos. Nesse sentido, e
também apenas para as necessidades da compreensão imediata,
nós podemos distinguir a teoria especial e a teoria geral do objeto.
Agora, já foi indicado mais acima que a teoria especial do
objeto, em um certo sentido a teoria mais especial, encontra nas
matemáticas a mais brilhante representação que se pode desejar.
Depois de longo tempo, este brilho levou ao desejo de abrir a
outros domínios do saber, ― eu bem poderia dizer,
abreviadamente, a outros domínios de objetos ― o procedimento
“more mathematico”, e seria difícil considerar como erro grave o
fato de se acrescentar que, a cada vez que se fez tais tentativas,
igualmente se ensaiou praticar a teoria especial do objeto em
domínios exteriores às matemáticas. Seguramente não se deve
levar em conta toda aplicação dos procedimentos matemáticos:
quando o comerciante ou o engenheiro calculam, isso tem tão
pouco a ver com a teoria do objeto quanto com qualquer outra
teoria. Mas, certas pressuposições concernentes ao objeto
subjazem naturalmente também em toda aplicação prática deste
247
tipo e não é diferente quando a aplicação tem lugar na perspectiva
de um interesse teórico. Nesse caso, a natureza dessas
pressuposições pode restar inteiramente subjacente à técnica do
cálculo que mobiliza nossa atenção, como o mostram de maneira
mais evidente os exemplos da teoria das probabilidades, ou a
teoria do erro, cujo pertencimento natural, à Lógica para a
primeira, e à Psicologia para a segunda, não foi percebida ainda
hoje por todos nem sequer admitida. Agora, a natureza destas
pressuposições pode colocar as operações de cálculo efetuadas
diretamente a serviço da teoria do objeto, como é fácil de mostrar
no caso da teoria das combinações. Mais ainda que a Aritmética,
a Geometria parece, para além desses estreitos limites, prestar-se
a certas constatações da teoria do objeto. Considerando-se, com
efeito, como seus domínios próprios, para a primeira as grandezas
numéricas, para a segunda as grandezas espaciais, então, tudo o
que se apresenta como a transposição, tão habitual para todo
mun-do, de concepções geométricas do espaço para a dimensão
temporal será já exterior às matemáticas, mas, ao mesmo tempo
como pertencendo à teoria do objeto, pois que não há nada aí que
estabeleça uma ligação qualquer com o que se chama realidade
(Realität), mais exatamente com a existência efetiva (Existenz) do
tempo. Compreende-se que a analogia vale, em grande medida,
para a Phoronomia e, se A. Höfler tem razão, o que é pouco
provável, quando, além do espaço e do tempo, ele chama a
atenção para a tensão (Spannung) que ele considera como “o
terceiro fenômeno fundamental da mecânica”1, então, uma outra
direção é assim designada em que esta ciência, sem que seja dado
atenção ao seu caráter por natureza empírico, reencontra, graças à
elaboração a priori estendida de seu objeto, os interesses que são
aqueles da teoria do objeto.
Esta consideração geométrica estendida torna-se mais
evidente ali onde, em virtude da especificidade do domínio
1 A. Höfler, “Zur gegenwärtigen Naturphilosophie”, p. 84 (p. 24 da edição separada),
nota 23; também p. 164 (p.104). A “teoria da dimensão”, mencio-nada no mesmo texto, p.
147 (87), merece igualmente ser citada no presente contexto.
248
concernido, ela vale parcialmente. Nessa direção, são particularmente instrutivos os esforços da Psicologia moderna para
classificar os “objetos da percepção”1 próprios aos diferentes
sentidos e para apreender sua diversidade tanto quanto possível
por meio de uma figuração espacial; e mesmo que esses esforços
permitiram já trazer à luz os mais tangíveis resultados 2, mesmo
ali onde se trata da visão, e que a expressão “geometria das cores”
comporte uma conotação elogiosa bastante imerecida, é
precisamente aí que, de maneira inegável, se apresenta o fato de
que esses esforços pertencem antes à teoria do objeto que à
Psicologia. Eu espero que não seja um traço pessoal o fato de me
referir aqui apenas às explicações destas coisas numa perspectiva
intencional e estritamente psicológica, e que muitos aspectos da
natureza dos problemas próprios à teoria do objeto foram
revelados em toda a sua generalidade.
O que eu acabo de definir como uma intervenção da
consideração matemática além de seu domínio estrito tem a
característica do instintivo e do inconsciente, em comparação
com as expressivas tentativas de estender o domínio e a maior
generalização de suas problemáticas já pretendidas sob o nome de
teoria geral das funções e, inegavelmente, em expressões como
“teoria da dimensão”, “teoria da multiplicidade”, bem como
também sob a tão mal compreendida rubrica “metamatemática”.
Vistas do ponto de vista que agora nos serve de medida, estas
investigações altamente significativas representam a passagem da
teoria especial à teoria geral do objeto. Sob muitos aspectos podese atribuir uma posição análoga aos esforços e aos resultados, que
obedecem a uma intenção inteiramente diferente, que se costuma
reunir sob o nome geral de “lógica matemática”. Ao contrário, é à
teoria geral do objeto que cabe avaliar, apesar do saber históricofilosófico de nossa época ter em mais alta conta, de maneira
inteiramente aproximativa, as posições e os impulsos que levaram
1 Um termo que me parece muito útil devido a Witasek (cf. sua obra Grun-dlagen der
Algemeinen Ästhetik, Leipzig, 1904, p. 36ss).
2 Cf. o meu “Bemerkungen über den psychologischen Farbenkörper etc.”, Op. cit. p. 5ss.
249
a lógica (não matemática), a teoria do conhecimento e a
metafísica, de Aristóteles até os nossos dias, a investigações no
interior do círculo de interesses de que nos ocupamos aqui. Mas,
a mesma coisa vale também para a ciência da linguagem,
especialmente a Gramática, cuja importância não foi certamente
desconhecida nem pela antiga nem pela nova lógica, embora
dificilmente pudesse ser apreciada corretamente caso não se reconheça na natureza do sentido de uma palavra a objetidade
(Objekt), e na do sentido de uma frase, o objetivo (Objektiv)1. As
coisas bem poderiam ter sido diferentes, pois hoje nos sentimos
tentados a afirmar que a teoria geral do objeto tem a aprender
com a Gramática da mesma maneira que a teoria especial pode e
deve aprender com as matemáticas.
Como mostra este rápido panorama, não obstante sua
superficialidade, a teoria do objeto absolutamente não está, em
todos os assuntos, dependente de trabalhos ainda por começar.
Antes, surge logo a questão de saber se a introdução que aqui foi
tentada de uma “teoria do objeto” significa algo mais do que um
novo nome para uma coisa antiga. E facilmente pode-se descobrir
que é indiferente para o trabalho de investigação ainda por fazer
se ele for realizado por um matemático, um físico, um lógico, ou
― um teórico do objeto. Todavia, nessa última locução há um
mal-entendido que nós já tentamos dissipar desde o início de
nossas reflexões. Seguramente, é indiferente saber quem resolveu
os problemas teóricos e sob qual denominação isso foi feito. Se o
reconhecimento da teoria do objeto como disciplina particular
fosse alcançado, ainda assim poderíamos continuar gratos aos
matemáticos, físicos e linguistas, bem como aos representantes de
não importa qual outra disciplina particular, pela contribuição aos
interesses próprios da teoria do objeto, mesmo quando eles
imaginam não ter abandonado o domínio de competência de sua
própria disciplina. Ao contrário, para um grande número de
trabalhos decisivos, senão para a maioria, será, como tão
1 Cf. Über Annahmen, sobretudo p.19ss, e p. 175ss.
250
seguidamente acontece, da maior importância ter uma
representação a mais clara possível da natureza da tarefa a ser
realizada: o refinamento de antigos questionamentos, a adição de
novos e fecundos, é uma consequência natural. O fato que os problemas e os esforços acima articulados, que no início pareciam
tão diferentes, se revelarem correlacionados do ponto de vista da
teoria do objeto, garante o valor deste ponto de vista.
§11 – Filosofia e teoria do objeto.
Se, pelo apresentado até aqui, eu posso esperar ter
mostrado suficientemente a legitimidade própria da teoria do
objeto em relação às outras ciências, então, agora é o momento de
dar alguma atenção também às relações de parentesco com o
restante das ciências, em outras palavras: determinar minimamente o lugar da teoria do objeto no sistema das ciências. As
dificuldades que devemos agora enfrentar, notadamente ali onde
se faz o esforço por tomar como ponto de partida certas
definições pouco satisfatórias das ciências concernidas, não são
atribuíveis apenas exclusivamente à teoria do objeto ou àquele
seu “ideal” aqui defendido. Com efeito, pode-se constatar sempre que por mais diversas que sejam as ciências, o seu desenvolvimento e seu crescimento foram pouco perturbados pelo fato
de que até agora não se encontrou para elas definições que
fossem, sob todos os aspectos, desprovidas de alguma fonte de
objeção. Eu não tiro disso a consequência de que não se deveria
fazer estes esforços na tentativa de alcançar tais definições, mas
eu infiro, certamente, que se não deve deixar inexplorada a
situação imperfeita a qual já se alcançou e que, paralelamente, é
também desejável investigar igualmente se não seria de ajuda
apoiar-se em algum conhecimento concreto das coisas, sem
recorrer a uma definição formal.
Partindo-se dessa que, de alguma maneira, é próxima
destas disciplinas, cujo conjunto é resumido pelo termo “filo-
251
sofia”1, não se terá nenhuma dificuldade em reconhecer na teoria
dos objetos uma destas disciplinas. Mesmo a teoria do objeto
pertence à filosofia e a única questão que se pode levantar
interroga sobre sua posição em relação às outras “disciplinas
filosóficas”. Ora, eu já dediquei a maior parte dessa exposição
para responder esta questão. Resultou que a teoria do objeto não é
nem uma psicologia nem uma lógica, e em razão da
impossibilidade de se confundir com elas. Eu igualmente creio
poder mostrar que ela é independente da teoria do conhecimento;
mas, eu desejo atribuir, como eu disse, menos importância a este
último resultado. Que se não possa praticar a teoria do
conhecimento sem colocar em ação ao mesmo tempo a teoria do
objeto ― ou, pelo menos, sem fazer uso de suas aquisições
essenciais ― parece-me, em todo caso, fora de dúvida2; por causa
disso um mal-entendido poderá, no final das contas, surgir no
caso que se pretenda que estas aquisições mesmas tenham, na
verdade, sido obtidas ou deveriam ser de qualquer modo somente
em nome da teoria do conhecimento.
Muito mais importante quanto à posição da teoria do
objeto me parece ser, ao contrário, as “relações hierárquicas” que
ela mantém com uma outra disciplina vizinha que foi já retomada
várias vezes no que precede: eu quero falar da metafísica, termo
sob o qual a história da filosofia tem arquivado muitas das teses
mais significativas da teoria do objeto. Mesmo aquele que deseje
considerar a teoria do objeto como uma parte da teoria do
conhecimento ― no sentido da concepção que é definida como
relativamente admissível, embora eu não a aprove ― não será
dispensado por isso deste problema de delimitação: pois,
precisamente, a teoria do objeto conta entre os seus domínios
constitutivos, para finalizar, o domínio a propósito do qual (dos
quais) a teoria do conhecimento e a metafísica não conseguiram,
1 Especialmente sobre isso em minha consideração Über philosophische Wissenschaft und
ihre Propädeutik, Kap. I. Cf. o novo trabalho de Höfler, “Zur gegenwärtigen
Naturphilosophie”, Op. cit., p123 (63)ss.
2 Cf. tbém Höfler, Op.cit, p151 (91).
252
como se sabe, nunca se entender.
Infelizmente, porém, justamente quando se trata da
metafísica é impossível chegar a um entendimento sem se
recorrer a determinações de ordem definicional. Nesse espírito,
eu não vou passar em silêncio ao menos a sugestão que A. Höfler
me fez chegar durante a redação do presente estudo e que, se
apoiando sobre uma concepção inteligente de J. Breuer1, visava à
definição da metafísica como a ciência do “metafenomenal” 2. A
razão pela qual eu não estou em condições de fazer justiça a esta
sugestão é, no essencial, a mesma pela qual, depois de anos, eu
não posso me resolver a considerar que os “fenômenos” são
aquilo que os físicos tratam, a saber, a luz, o som, etc., ou que são
os “fenômenos psíquicos” de que se ocupam os psicólogos. Os
fenômenos, enquanto tais, são um tipo, mesmo se ele é muito
importante, de objetos pseudo-existentes. O que existe
efetivamente, no caso de uma pseudo-existência, não é senão
representações determinadas por seu conteúdo: ora, as
representações — para simplificar, eu falarei apenas da física —,
Höfler mostra por argumentos particularmente muito patentes 3,
não são jamais objetos de pesquisa para esta última disciplina.
Seguramente, o fenômeno não é o fenomenal, a manifestação não
é o que se manifesta, uma vez que se entenda por este último
termo algo que pode ser conhecido a partir de sua manifestação, e
cuja existência possa ser deduzida, por exemplo, do fato da
manifestação. Eu não vou contestar que o que se manifesta seja
aquilo que o interesse do físico notadamente visa. Mas, eu não
posso mais considerar que seria possível excluir do domínio dos
problemas metafísicos o gênero do “fenomenal”, por exemplo, da
questão da origem e do fim do que se manifesta.
Na medida em que eu não posso fazer uma digressão
consequente em relação ao tema principal deste estudo — a
1 Publicado no anexo I da obra citada seguidamente citada de Höfler, Zur gegenwärtigen
Naturphilosophie.
2 Ibidem, p154 (94)s.
3 Cf. Zur gegenwärtigen Naturphilosophie, especialmente p131 (71) ss.
253
importância da reflexão apontada por Höfler e Breuer exigiria,
com efeito, que se lhe faça justiça de um modo apropriado —
possam, para o momento, estas poucas observações serem
suficientes para justificar o porque não cessa 1 de me parecer o
mais oportuno, quando se busca definir a metafísica, colocar o
acento principal sobre a característica da generalidade maior
possível, no sentido em que seus problemas têm o domínio de
validade o mais englobante possível. A metafísica não é nem
física, nem biologia física, nem biologia psíquica; ao contrário,
ela trata, em seu domínio de pesquisa, tanto do inorgânico como
do orgânico e do psíquico, para descobrir aquilo que é pertinente
do ponto de vista do conjunto disso que pertence a domínios tão
diferentes. Naturalmente, em relação a esta definição, e em razão
do acento que ela coloca necessariamente sobre a universalidade,
faz-se particularmente sentir a necessidade de clarificar a relação
entre metafísica e teoria do objeto, visto que, em relação à
segunda, nossa atenção não deixou de ser solicitada pela
amplidão singular do domínio que é o seu. Mas, sem dúvida, o
fato de ter igualmente em conta a teoria do objeto nos conduziu a
um ponto de vista que nos autoriza a completar a definição que se
deu da metafísica e, desse modo, fazer calar muitas objeções, as
quais ela até aqui poderia estar exposta.
De resto, a esse propósito eu posso recorrer ao que já foi
dito, nessa medida, e exprimir as coisas de modo breve. Se não
existe no mundo, como nós estamos justificados a crer, nada que
não seja ou bem da ordem física ou bem da ordem psíquica, a
metafísica é seguramente, na medida em que ela trata tanto do
que é físico quanto do que é psíquico, a ciência da totalidade da
realidade efetiva. Nessa medida, são naturalmente também de
ordem metafísica as teses fundamentais do monismo — que
pretende a identidade essencial do físico e do psíquico — e a do
dualismo — que afirma a diferença essencial entre estas duas
ordens. Mas, reconhecer duas coisas como idênticas ou como
1 “Über philosophische Wissenschaft etc.” p7.
254
diferentes é reconhecer de fato alguma coisa que está em relação
com estas duas coisas: este conhecimento concerne tanto à
identidade quanto à diferença; e a identidade é ela mesma por sua
vez nada menos que uma coisa, bem como a diferença. Ambas
são exteriores à disjunção entre físico e psíquico, pois elas se
situam fora do que é real. Ora, existe também um saber da nãorealidade: e mesmo que se atribua às tarefas da metafísica uma
generalidade tão grande quanto se queira, existem problemas
ainda mais gerais que os desta última, problemas para os quais a
orientação essencial que dirige a metafísica para a realidade
efetiva não constitui nenhum limite. Tais problemas são
precisamente os da teoria do objeto.
Porém, não se deixará de perguntar, se não é excessivo ou,
ao menos, arbitrário excluir radicalmente do domínio de pesquisa
da metafísica todos os objetos ideais? 1 Eu respondo que eles não
devem ser de maneira alguma excluídos: seria muito ruim ao
nosso interesse metafísico se — o exemplo do monismo e do
dualismo mostra — no seio da metafísica não devesse ser mais
questão a identidade e a diferença, também não mais questão a
causa, a finalidade, a unidade, a duração e muitos outros objetos
que, parcialmente ou inteiramente, tem uma natureza ideal. Mas,
muitos deles são questões na física, por exemplo, e ninguém, ao
menos, irá contá-los entre os objetos de pesquisa física. Não é,
em todo caso, sem reservas muito precisas que se fala de uma
limitação do domínio da metafísica à realidade efetiva.
Pressupondo esta reserva, eu creio verdadeiramente que esta
limitação responde ao espírito no qual, outra vez como na época
moderna, se praticou a metafísica e que ela corresponde ao
mesmo tempo à prioridade do interesse, muitas vezes invocado,
que testemunha esta disciplina pela realidade efetiva. Que a
“ontologia”, a “doutrina das categorias”, etc., jamais deixaram de
ser imputadas, mais ou menos unanimemente, à competência da
metafísica — e que esta possa igualmente ter feito justiça a
1 “Über Gegenstände höherer Ordnung etc.”, p198s.
255
interesses que vão para além das fronteiras da realidade efetiva —
testemunha somente da legitimidade e do caráter imperioso
desses mesmos interesses, mas não deixa nenhum lugar, pelo que
eu posso constatar, a uma dúvida quanto ao fato que a intenção
fundamental de toda metafísica nunca cessou de visar à apreensão
do “mundo” em sentido próprio, no sentido natural, isto é, o
mundo da realidade efetiva, mesmo quando esta apreensão
pareceria se desenvolver sobre aquilo que deveria ser apreendido
não pudesse de maneira alguma pretender a qualificação de
realidade efetiva. Mas, se esta concepção do caráter até então
próprio à metafísica não convence a todos, e se revele
historicamente errada, o erro não concerniria senão à definição da
noção em termos “de lege data”, e a definição “de lege ferenda”1
permaneceria aberta à reflexão. Com esta pressuposição, o que
acima foi avançado a propósito da definição da metafísica
constituiria uma sugestão de definição: restringir o termo
“metafísica” à ciência geral da realidade efetiva seria desejável
tanto no interesse de um estabelecimento preciso das tarefas que
pertencem a esta disciplina, quanto no interesse de uma
delimitação clara desta em relação à teoria do objeto.
Há ainda, porém, um ponto a ser esclarecido em relação
ao que foi dito. Se a metafísica é a ciência geral da realidade
efetiva, seria nossa intenção lhe opor a teoria do objeto a título de
ciência geral da não-realidade efetiva? Isto seria obviamente
muito restritivo: por que razões os objetos efetivamente reais
deveriam ser excluídos da teoria do objeto enquanto tal? Ou seria
mais pertinente definir a teoria do objeto como teoria daquilo que
é dotado de subsistência, sendo o termo “subsistência” tomado
em uma acepção de algum modo oposta ao termo “existência” 2, e
tendo o cuidado de pressupor que todo o existente é, certamente,
igualmente dotado de uma subsistência, enquanto que tudo o que
é dotado de subsistência (por exemplo, a diferença) não é
1 Breuer, em Höfler, Op. cit., p189 (129).
2 “Über Gegenstände höherer Ordnung etc.”, p186.
256
necessariamente existente? Mesmo assim não se abarcaria o
conjunto do domínio que, nós vimos, pertence à teoria do objeto:
o que não é dotado de subsistência, o absurdo, seria excluído; o
interesse natural considera esses seguramente senão em uma
medida bem mais restrita e ele oferece à apreensão intelectual
bem menos pontos de ancoragem1, mas, no final das contas, ele
faz parte também do “dado”, de tal modo que a teoria do objeto
não poderia de maneira alguma o ignorar.
Tais defeitos poderiam ser facilmente corrigidos em se
estabelecendo que a teoria do objeto trata do dado sem levar em
conta o seu ser, pois ela não se interessa senão pelo conhecimento de seu ser-tal. E, de qualquer maneira, o que poderia
impedir de mantermos esta definição pertence já, por assim dizer,
à teoria do objeto em um nível mais profundo. Pois, se a teoria do
objeto quiser fazer de sua indiferença em relação ao ser um
princípio essencial, ela deveria ao mesmo tempo renun-ciar a ser
ciência, o que excluiria igualmente o conhecimento do ser-tal.
Com efeito, como se sabe, o conhecimento não implica que o seu
objeto seja, mas todo conhecimento exige que seu objetivo seja; e
se a teoria do objeto trata de um ser-tal que não mais seria dotado
de um ser, ela não poderia mais pretender — fazendo-se aqui
abstração de situações excepcionais e passageiras — o título de
teoria. Certamente, pode-se sempre formular assim este princípio
fundamental: a teoria do objeto não negligencia senão o ser de
suas objetidades, mas não o ser de (certos) objetivos. Mas, qual
seria a razão desta desigualdade de tratamento? Além disso e, sem
dúvida, antes de mais nada: que tal ou tal objeto seja por essência
absurdo, que possa ser dotado de subsistência, seja de existência,
tantas são as questões que interessam à teoria do objeto e que, no
final das contas, são sempre questões quanto ao ser. Em suma, a
restrição ao ser-tal não convém à natureza da teoria do objeto.
Pode, contudo, haver entretanto um meio relativamente
simples de encontrar uma solução para este problema, um ponto
1 Cf. E. Mally em Nr. III, Op. cit, Kap. I, §5s.
257
de vista metodológico semelhante àquele que nós tentamos
estabelecer, com um zelo mais excessivo do que indigente,
quando nós definimos as diferentes ciências. Existem, como se
sabe, conhecimentos cuja legitimidade se deve às propriedades,
ao ser-tal de suas objetidades, por consequência de seus
objetivos; outros, ao contrário, para os quais isso não é o caso1.
Os primeiros são desde longo tempo denominados conhecimentos
a priori, os outros, empíricos; e quanto acontece, talvez, ainda
hoje, que se recuse esta distinção, isto não tem consequências
para ela senão como para aquele que não importa a diferença das
cores que o daltônico não percebe, senão que, do ponto de vista
psicológico, o daltonismo é bem mais interessante. Com a ajuda
dessa distinção, me parece, conseguiremos distinguir de maneira
satisfatória e sem dificuldades as nossas duas disciplinas. Aquilo
que, em relação a um objeto, pode ser conhecido a partir de sua
própria natureza, portanto, a priori, pertence à teoria do objeto.
Isso quer dizer que se trata do ser-tal do “dado”, mas também do
seu ser, na medida em que esse possa ser conhecido a partir do
ser-tal. Ao contrário, o que não pode ser estabelecido, a propósito
dos objetos, senão a posteriori, pertence, pressupondo-se uma
suficiente generalidade, à metafísica: é o caráter a posteriori dos
conhecimentos que cuida para que os limites da realidade efetiva
não sejam transgredidos. Existem, portanto, simplesmente duas
ciências que são as mais gerais, uma ciência a priori a que
concerne tudo o que é dado, e uma ciência a posteriori que retém
do dado para análise apenas o que precisamente pode entrar em
linha de conta de um conhecimento empírico, isto é, o conjunto
da realidade efetiva: esta última disciplina é a metafísica, a
primeira é a teoria do objeto.
O que, nessa definição, não deixa de espantar em primeiro lugar, é que a metafísica ali aparece como uma disciplina
empírica e, todavia, a ausência de empiria foi precisamente do
que sempre acusaram a metafísica, seja ela antiga ou moderna, os
1 Über Annahmen, p. 193s.
258
partidários das ciências particulares. Eu não desejo proteger dessa
acusação ninguém que a mereça, e eu espero ter ao menos
contribuído como eu disse acima para fazer justiça às
reivindicações legítimas da empiria em relação à metafísica,
justamente pela definição que eu dei a ela. Uma ciência da
realidade efetiva, pouco importa que ela seja mais especial ou
mais geral, não dispõe, afinal, de nenhuma outra fonte cognitiva
além da experiência. No final das contas: nem tudo é
necessariamente objeto de uma experiência direta, pode-se inferir
do que foi experimentado o inexperienciado e, quando muito, o
que é inexperienciável. Mas, o que tem por base inevitável a
empiria permanece sempre da ordem empírica e, absolutamente,
diferente de tudo o que caracteriza, do ponto de vista da teoria do
conhecimento, o domínio do a priori. Nesse sentido, não há
portanto outro saber acerca do existente além do saber cuja base é
a experiência: se a metafísica não dispõe de experiências que
seriam indispensáveis às elaborações próprias à universalidade
que a caracteriza, não há precisamente metafísica, pelo menos
não metafísica rigorosa, que é a única que sempre esteve em
questão aqui. E, a esse respeito, nós já indicamos explicitamente
que, do ponto de vista das elaborações atuais, é perfeitamente
possível que não se tenha nenhuma medida segundo a qual a
aspiração a uma metafísica rigorosa chegou até o presente a se
realizar. Não é senão um paradoxo aparente, que uma reflexão
breve eliminaria, se eu devo afirmar que pouco nos importa a
parte de saber metafísico que poderia nos ser acessível, pois este
saber não seria, no final das contas, outra coisa que um saber de
ordem empírica.
Se nos é oposto o fato que o termo “metafísica” foi muito
seguidamente empregado para designar os esforços, seja os
resultados de ordem científica onde foram postos em obra
instrumentos cognitivos indiscutivelmente e mesmo fora de
dúvidas extra-empíricos, portanto, a priori, se esquece então que
nós nos situamos no momento na perspectiva da “definitio
259
ferenda”, se nos permitem esta expressão. Naturalmente, eu não
ignoro absolutamente que se está muito longe de sempre se ter
rigorosamente distinguido estes dois domínios do conhecimento
que se me impõe agora a estrita separação. Mas, se eu devo
alcançá-la, o simples recurso ao argumento ontológico —
argumento onde ao menos essas analogias que todo mundo,
mesmo hoje, sem dúvida ainda não domina — testemunha aqui
do fato que ele possa talvez não ser totalmente destituído de
valor: é uma tentativa precisamente de resolver um problema de
maneira estritamente a priori, portanto, de o tratar como um
problema que concerniria simplesmente à teoria do objeto; este é
o sentido do argumento e dos raciocínios do mesmo tipo.
Não é plausível pensar que esta distinção deve varrer do
mundo todas as dificuldades de fronteira entre a metafísica e a
teoria do objeto. Mas, seria também injusto exigir, justamente
nesses casos, o que sem dúvida não se conseguiu em nenhum
caso de ciências limítrofes. Mais importante é a objeção
levantada do ponto de vista da teoria do objeto. Esta última é
finalmente considerada como uma ciência geral, se bem que, mais
acima, nós tivemos a ocasião de distinguir expressamente bem
entre teoria geral do objeto e teoria especial. Aqui há uma
imprecisão que, ao menos no imediato, isto é, no estado atual de
nosso saber em matéria de teoria do objeto, não pode ser
remediada por razões práticas. Certo é que diversas outras
ciências especiais do objeto, que não se pode agora fixar o
número, poderiam se somar às matemáticas, na medida em que
elas são uma teoria especial do objeto. Mas, estes domínios nos
são, ao menos no momento, tão imperfeitamente conhecidos que
não existe por hora uma necessidade de se especializar em seu
tratamento. Hoje, as teorias especiais do objeto se dividem, por
conseguinte, em matemáticas e não-matemáticas: e no que
concerne o segundo elemento desta repartição ainda muito
grosseira, existe, no momento, tão pouco a dizer que ele se
integra, sem maiores dificuldades, no quadro da teoria geral do
260
objeto. De fato, não existe hoje nenhuma teoria especial do objeto
que não seja matemática: mas, naturalmente, não se pode predizer
quanto tempo esta situação irá durar. Uma evolução desta última
não é antecipada pela definição proposta anteriormente. Do
mesmo modo que há, face à ciência empírica geral, muitas
disciplinas empíricas particulares, pode haver assim também
várias disciplinas particulares a priori ao lado da ciência empírica
geral. Esta eventualidade não tem no momento atualidade senão
em matemática que, subsumida sob o ponto de vista da teoria do
objeto, se encontra situada ao lado de disciplinas que certamente
não são efetivas, mas restam ao menos virtuais, de tal maneira
que ela não conhece assim em todo caso este estranho isolamento
que nos pareceu acima ser o sinal de uma falha na concepção
epistemológica desta disciplina que até então teve curso1.
Para finalizar, é necessário que eu retome uma vez mais à
integração efetuada anteriormente, sem recurso a uma definição,
da teoria do objeto às disciplinas filosóficas. Eu procurei, em uma
certa época, reunir como filosóficas as ciências que se interessam
exclusivamente pelo domínio psíquico ou que também lidavam
com o psíquico. Ora, muito recentemente, foi formulada a
hipótese de que meus trabalhos sobre a teoria das relações e das
complexões bem poderia ter-me conduzido a atribuir à filosofia,
como lhe sendo essencial, um duplo objeto: “o domínio psíquico
e as relações (além dos complexos)”2. Compreende-se
imediatamente que tal modificação faria desabar completamente a
coerência da primeira definição; e apenas quando se crê dever
colocar no princípio de uma definição da filosofia em todo caso a
ideia de que o objeto de sua investigação seja simplesmente
constituído por aqueles que as ciências da natureza deixaram de
algum modo fora3, que se não deveria formalizar pelo fato de que
estes restos poderiam aparecer como uma diversidade ainda
1 Cf. Supra, §9.
2 Isto é o que sugere A. Höfler em seu estudo Zur gegenwärtigen Naturphilosophie, Op. Cit.,
p. 124 (p. 64), rem.
3 Cf. J. Breuer, em A. Höfler, Op. Cit., p. 190 (p. 130).
261
muito disparatada. Porém, desse modo não se atribuiria à filosofia
uma posição particularmente digna: e mesmo quando não fosse
totalmente desprovido de legitimidade prática introduzir uma
atividade científica que, no essencial, tivesse por objetivo
englobar este resto, é difícil imaginar que isto mudaria alguma
coisa, pois, do ponto de vista teórico, este resto tomado em seu
conjunto estaria longe de constituir, enquanto tal, o material de
uma ciência. Por outro lado, é justo dizer, ao menos, que os complexos e as relações, na medida em que eles são ideais — hoje, eu
falaria antes de complexos ideais e de relativos ideais
(Idealrelate)1 —, pois eles não são concretos, nem são de ordem
física e nem de ordem psíquica. Ora, para integrá-las ao campo de
investigações que se podem denominar filosóficas, em outros
termos, para estar autorizado a considerar a teoria do objeto como
uma disciplina filosófica, não é necessário adicionar uma nova
definição do “filosófico”, menos ainda do ponto de vista da
primeira das duas ciências universais que do ponto de vista da
segunda. Se eu estou justificado em contar a metafísica entre as
disciplinas filosóficas, porque ela concebe as suas tarefas de
maneira tão ampla para englobar, além do domínio físico, o
domínio psíquico, nada mais então pode impedir que eu
considere, pelas mesmas razões, a teoria do objeto como uma
disciplina filosófica. O dado, cuja totalidade ela trata, engloba
também o domínio psíquico, sem prejudicar o fato de que os
objetos físicos e os objetos ideais devam ser também
necessariamente aí incluídos — sem falar desse outro fato que,
quando se trabalha sobre o ideal, que por natureza é sempre
superius, são ainda os objetos psíquicos que podem muito bem
entrar em consideração a título de indispensáveis inferiora.
Mas, naturalmente, eu não posso impedir o prolongamento ainda desse paralelismo estabelecido entre metafísica e
teoria do objeto até um outro problema importante que, no fundo,
1 Sobre as razões dessa mudança de terminologia que havia utilizado até agora, cf. A
terceira das investigações publicadas no volume Über Gegens-tandstheorie und Psychologie,
Op. Cit., cap. I, § 9 e 11.
262
é mais da ordem prática do que teórica. Do fato de que a
metafísica não tenha a ver apenas com o psíquico, seguramente,
mas também com o domínio físico, eu então tirei a consequência
de que estavam justificados e chamados a tratar as questões
metafísicas não somente os pesquisadores versados nas
disciplinas com algum traço psíquico, mas também os
pesquisadores do domínio físico. De fato, me parece agora que
não se pode impedir a admissão da mesma coisa no concernente à
teoria do objeto. Em relação à técnica de investigação, em
metafísica como em teoria do objeto, aquele que é treinado no
tratamento científico das experiências psicológicas se beneficiará
certamente de uma vantagem: especialmente no caso da teoria do
objeto, não se deve mal-interpretar o fato de que, quando se
pratica esta teoria, penetra-se no terreno do psicológico com um
tipo de facilidade que pode ser fatal. Mas, estas não são senão
considerações de ordem técnica: não se deve mascarar
completamente a que ponto é igualmente fácil, em certas
circunstâncias particulares, alcançar a mais de uma compreensão
graças à introdução de uma técnica específica importada de uma
outra disciplina. Na medida em que é legítimo considerar as
matemáticas como uma ciência especial do objeto, seria ingrato
esquecer a que resultados brilhantes a investigação ditada pela
teoria do objeto já conduziu, seguidamente sem nenhum contato
com outros interesses filosóficos.
§12- Conclusão.
Se as considerações precedentes expuseram, ao menos em
traços largos, a natureza e a legitimidade própria — assim como a
situação que ela ocupa no conjunto das ciências — de uma
disciplina particular, a “teoria do objeto”, chegou o momento de
dizer alguma coisa mais precisa sobre as tarefas e o método desta
nova ciência. Porém, de uma parte, o essencial a este respeito já
foi exposto por si mesmo no curso das reflexões precedentes: se
se sabe de que trata uma ciência, as suas tarefas são também
263
assim determinadas de maneira genérica, sobretudo se o caráter a
priori da disciplina em questão é posto de início; o que, ao
mesmo tempo, constitui também o essencial no que toca ao seu
método. De outra parte, e antes de tudo, sabe-se muito bem que
fazer projetos parece ser “muitas vezes uma atividade intelectual
presunçosa e impertinente”, e prescrever aos outros os caminhos
que se evita de trilhar por si mesmo, é sem dúvida mais
impertinente ainda. Por isso, sem dúvida eu faria melhor se me
abstivesse deste ensaio sobre uma ciência que está por vir, se eu
não estivesse justificado em me deter apenas na relação que eu
precedentemente mantive com ela, excluída, talvez, a esperança
que eu me contentaria com projetos em lugar de colocar eu
mesmo a mão na massa. Para ser um Prometeu requer-se mais do
que para ser um Epimeteu, a ponto que não se tomará,
certamente, por um elogio pessoal o fato de salientar que, durante
anos, ou durante decênios, meu trabalho científico obedeceu a
influência de interesses que concerniam à teoria do objeto sem
que eu tivesse senão uma intuição de sua verdadeira natureza.
Ora, pelo fato de que a natureza desses interesses se impôs a mim
absolutamente por si mesma e sobre o plano prático, pois, eu
poderia dizer quando1, sobre o plano teórico igualmente, eu vejo
um novo argumento, que não é certamente impositivo
formalmente, bem que seu peso não implique que se o
menospreze, em favor da legitimidade das exigências formuladas
precedentemente em nome da teoria do objeto. Ora, mesmos estas
exigências são aos meus olhos mais retrospectivas do que
prospectivas; e se eu tivesse tido a ocasião, além disso, de me
convencer, pelo meu exemplo e pelo de outros, a que ponto
fecundo se revela a maneira de ver própria à teoria do objeto na
posição e na resolução de problemas antigos como de problemas
novos de número infinito, eu estaria agora justificado em não
considerar muito precoce a tentativa de auxiliar esta maneira de
1 Em todo caso muito antes de 1903, quando pela primeira vez eu tive a oportunidade de
indicar a teoria do objeto nomeando-a assim explicitamente; cf. “Bemerkungen über den
Farbenkörper etc.”, op. cit., p. 3 ss.
264
ver, em expondo a especificidade, a ser explicitamente
reconhecida.
Seja como for, a presença das reflexões precedentes no
quadro da presente coletânea de estudos responde a um motivo
mais especial. No círculo que, pela primeira vez, viu verdadeiramente nascer uma inteligência do sentido da teoria do
objeto, a investigação desvelada por esta última não poderia
deixar de receber uma atenção particularmente favorável. Foi isto
que permitiu que se coloque dois dos estudos consagrados à
teoria do objeto no início desta coletânea que, além desses textos,
farão sem dúvida, aqui e ali, no curso desses outros artigos,
alguns testemunhos do fato que o saber e a capacidade da teoria
do objeto pode certamente se revelar igualmente frutífera para a
investigação em psicologia. Parece, a este respeito, que foi
sugerido, pelo título mesmo da coletânea, de se consagrar
explicitamente à teoria do objeto e de fazer preceder os dois
estudos citados acima por um tipo de análise ao nível dos
princípios disso que se entende por esta designação. Desse modo,
o que foi dito antes a propósito de uma nova disciplina científica,
não se apresenta, mesmo dentro do quadro desta publicação,
como um agradável sonho do futuro, seja como uma utopia, mas
como um objetivo que se tem em vista da maneira mais clara
possível e nós já começamos a mobilizar nossas melhores
capacidades afim de o realizar.
Por conseguinte, se as presentes considerações devem
exercer o papel de prólogo especialmente destinado a introduzir a
parte desse volume consagrada à teoria do objeto, aqui é o lugar
conveniente para algumas observações sobre os dois artigos
seguintes. Não é apenas o encarregado da edição científica destes
trabalhos que toma a palavra, mas sem dúvida antes o professor
que, no curso de um período em que a maior parte não está tão
longe assim, teve a felicidade de iniciar os autores destes artigos
nas disciplinas filosóficas e que se sente assim justificado e mais,
dadas as presentes circunstâncias que são particulares, toma como
265
dever dissipar de cara certos mal-entendidos aparentes a
propósito das intenções próprias dos trabalhos em questão.
Diante do precedente, eu me exporia à suspeita de
ingratidão em relação a trabalhos pioneiros que, de tão diversas
partes, permitiram colocar em pé a teoria do objeto, se eu
declarasse de qualquer maneira que a teoria do objeto é uma
ciência jovem, muito jovem. Aquele que a assume encontra uma
profusão de problemas por tratar bem como uma variedade de
possibilidades abertas de os resolver: mas, depois de mais
reflexão, ele não pode esperar encontrar sempre o que é justo; ele
deve, ao contrário, perceber que muitas coisas que ele acreditou
ter estabelecido serão sacrificadas de novo pelo saber mais
avançado e pela técnica de investigação mais desenvolvida do
futuro. Comumente, no início, uma parte dos resultados cabe à
personalidade do pesquisador de maneira mais decisiva do que
nas épocas em que as tradições são mais fortes e os caminhos da
pesquisa mais planos. Por isso, os estudos que se seguem não
devem jamais ser compreendidos como se seus autores
acreditassem poder apresentar de modo unânime resultados
definitivos. Não se trata senão de resultados transitórios, porém,
não concebidos às pressas, o editor o pode testemunhar, mas antes
numa perspectiva de serem melhorados — portanto, sob a ideia
que o que eles abrem aqui é menos destinado a ser recebido
passivamente pelo leitor do que criticado e reelaborado mais
adiante.
Sob esta pressuposição, não se deve tomar como um
problema de fundamento o fato de que, nos seus conceitos e na
sua terminologia, as considerações dos dois artigos não estejam
sempre de acordo um com o outro, nem com as concepções que
eu mesmo tentei elaborar, embora isto novamente indique o
estado ainda primitivo da teoria dos objetos, uma vez que os
autores se sentiram mais de uma vez constrangidos a abordar
questões de princípio e, portanto, talvez também, as mesmas
questões de princípio. Pode-se facilmente ser tentado a nos
266
censurar de não ter tomado cuidado, nas conversas, de aplainar as
divergências afim de apresentar ao público, somente depois do
acordo alcançado, munidos de um sistema solidamente articulado
de conceitos conjuntamente coerentes. A exigência de preferir que
se regule as controvérsias em privado antes que na cena da
comunicação científica é certamente legítima e eu posso
testemunhar que, nos departamentos de filosofia, em Graz, as
discussões não faltaram. Mas, naturalmente, elas respeitaram o
princípio da mais larga liberdade de convicção; e, se nós
tivéssemos a intenção de não deixar se exprimir além de certos
limites a voz das concepções individuais, nós teríamos aberto o
caminho para sugestivos influxos, os quais poderiam revelar-se os
mais prejudiciais, quando a pesquisa se sabe em seus começos. Se
nós tivéssemos, no que se segue, oferecido um estado polido e
unânime da pesquisa, nós não o poderíamos fazer senão aceitando
renunciar aos estímulos que sem dúvida puderam se revelar os
mais frutíferos para o desenvolvimento ulterior da teoria do
objeto.
Por uma parte ao menos, são considerações como essas
que estão na origem de um outro defeito das duas contribuições
seguintes e cujos autores estão bem conscientes. A literatura
escrita a propósito de um objeto pode, de um lado, estimular
aquele que o investiga, mas, de outro lado, pelas sugestões que
ela fornece, ela pode matar de saída os germes suscetíveis de se
desenvolver. Isto é o que justifica, ao menos por uma parte, eu
espero, esta máxima fundamental a qual eu obedeço e que eu
ensino há muito tempo como princípio primeiro da investigação:
antes observar e refletir, depois ler. Mas, esta máxima corre o
risco, eu não posso deixar de reconhecer, que a exploração da
literatura seja talvez muito restrita, sobretudo quando o
acabamento de um trabalho é fixado em uma data precisa ou que
a consulta desta literatura seja dificultada por tais e tais
circunstâncias. Estes dois fatores interviram juntos nas
investigações que se vai ler sobre a teoria do objeto. Na medida
267
em que o motivo exterior da presente publicação fixou a aparição
da obra antes do fim de 1904, eu obriguei os autores a terminar
suas contribuições em um momento em que eles estavam
perfeitamente conscientes do profundo estado de inacabamento
de seus trabalhos. De outra parte, a literatura concernente à teoria
do objeto, como se pode deduzir das referências que se fez
incidentalmente acima1, é tudo menos facilmente acessível, pois
não somente ela está dispersa sobre todos os horizontes
científicos, mas, além disso, não se pode, por um lado, a
descobrir ou a possuir senão nos estudos muito especializados de
ciências vizinhas. Por isso se buscará em vão nos dois artigos em
questão uma exploração minimamente equitativa da literatura
matemática concernida a despeito do papel provavelmente
decisivo que ela joga na fundação da teoria do objeto. Nenhum de
nós pensa que se poderia permanecer assim: por minha parte, eu
espero, não obstante estas circunstâncias particulares, que se
encontre sempre confirmada a máxima evocada que fixa a
prioridade da reflexão sobre a leitura.
Se eu não me engano, o leitor não ficará chocado com a
quantidade de conceitos e termos novos, dos quais muitos poderão lhe parecer supérfluos e pesados, pois, se eles realmente o
forem, eles certamente não terminarão por se impor a longo
prazo; também não ficará chocado por nós termos decidido
designar este ou aquele conceito diferentemente do que eu talvez
havia proposto antes em trabalhos anteriores. Um bom termo vale
tanto quanto a metade de uma descoberta: e mais vale substituir
um termo menos bom por um que se percebeu como melhor do
que, por puro conservadorismo, continuar a retirar penosamente
as consequências nocivas do antigo.
Eu resumo: no que precede tentou-se mostrar a legitimidade específica da teoria do objeto como uma ciência independente. Os dois artigos que se seguem* — bem como também
1 Cf. § 10 acima.
* [Os dois artigos a que Meinong se refere são: “Beiträge zur Grundlegung der
Gegenstandstheorie”, de R. Ameseder, e “Untersuchungen zur Gegenstands-theorie des
268
implicitamente nas outras investigações recolhidas nesse livro —
espera-se oferecer contribuições para esta ciência. A esse respeito,
exigir qualquer coisa de definitivo e de irrefutável, seria
demasiado, tal como as coisas estão hoje: é suficiente, por pouco
que se alcance, apresentar à reflexão e à crítica daqueles que a
querem perseguir certas concepções que permitam fazer aparecer
como digna de confiança a via empreendida, e estimular aquele
que se decida assumi-la. Possa nossa contribuição se revelar
própria a ganhar reconhecimento e simpatia para a causa dessa
nova ciência que é a teoria do objeto.
Leipzig, 1904.
Messens”.]
269
13. Para a doutrina do conteúdo e do objeto
das representações
Kazimir Twardowski
Zur Lehre vom Inhalt und Gegenstand der Vorstellungen, Eine
psychologische Untersuchung. Wien, A. Hölder, 1894. §§ 1- 7, s.
3-40.
§ 1. Ato, conteúdo e objeto de representação.
Uma das mais conhecidas proposições da Psicologia é que
a cada fenômeno psíquico relaciona-se um objeto imanente
(immanenten Gegenstand). O estar dado de tal relação é uma
marca característica dos fenômenos psíquicos, que se diferenciam
por ela dos fenômenos físicos. Aos fenômenos psíquicos do
representar, do julgar, do desejar e do detestar corresponde um
representado, julgado, desejado e detestado, e os primeiros sem
os últimos seriam absurdos. Esta circunstância, mencionada pelos
escolásticos e já antes por Aristóteles, foi recentemente
considerada em toda a sua importância por Brentano que, entre
outras coisas, fundamentou a classificação dos fenômenos
psíquicos no tipo de relação, como a que ocorre entre representar
e representado, etc.1
1 Franz Brentano, Psychologie vom empirischen Standpunkte, Leipzig 1874. II. Buch, 1. Cap. §
270
Com base nessa relação a um “objeto imanente” pró-pria
dos fenômenos psíquicos costuma-se distinguir entre ato (Act) e
conteúdo (Inhalt) em todos os fenômenos psíquicos, os quais são
representados sob um duplo ponto de vista. Quando se fala de
“representações” (Vorstellungen) tanto se pode entender o ato de
representação (Vorstellungacte), a atividade de representar,
quanto também significar com esta expressão o representado, o
conteúdo da representação (Vorstellungsinhalt). E assim se tornou
comum, onde poderia haver a menor possibilidade de malentendido, em vez da expressão “representação”, usar uma das
duas expressões “ato de representação” e “conteúdo de
representação”.
Mesmo evitando-se assim a confusão do ato psíquico com
seu conteúdo, resta ainda por ser superada uma ambiguidade
sobre a qual Höfler chamou a atenção. Após ele pronunciar-se
sobre a relação com um conteúdo, própria dos fenômenos
psíquicos, ele continua: “1. O que nós chamamos 'conteúdo da
representação e do juízo' encontra-se inteiramente no interior do
sujeito, tal como o ato de representação e de juízo. 2. As palavras
'Gegenstand' e 'Object' são usadas em dois sentidos: por um lado,
para aquele existente em si (an sich Bestehende), ... para o qual
nosso representar e julgar igualmente se dirigem, por outro, pela
'imagem' (Bild) psíquica ‘em’ nós existente mais ou menos
aproximada daquele real (Realen), aquela quase-imagem (mais
precisamente: signo) idêntica ao que em (1.) denominou-se
conteúdo. Em contraposição ao Gegenstand ou objeto, suposto
como independente do pensamento, denomina-se o conteúdo de
um representar e julgar (igualmente, sentir e querer) também o
‘objeto imanente ou intencional’ desses fenômenos psíquicos.1
A partir disso diferencia-se o objeto (Gegenstand), para o
qual nosso representar “igualmente se dirige”, do objeto imanente
(immanenten Object) ou do conteúdo (Inhalt) de representação.
5 und 6. Cap. § 2.
1 Logik, Unter Mitwirkung von Dr. Alexius Meinong, verfasst von Dr. Alois Höfler, Wien,
1890; § 6.
271
Esta distinção nem sempre é feita e, entre outros, também Sigwart
não a percebe.1 A linguagem facilita, como tão seguidamente,
também aqui a confusão de coisas diferentes, na medida em que
permite que tanto o conteúdo quanto o objeto sejam o
“representado”. Mostrar-se-á que também a expressão
“representado” é ambígua do mesmo modo que a expressão
“representação”. Esta serve para designar o ato e o conteúdo,
tanto quanto aquela para designar o conteúdo, o objeto imanente,
e para designar o objeto não imanente, o que está diante da
representação.
Esta investigação tratará da separação entre o representado no primeiro sentido, onde isso significa o conteúdo, e o
representado no outro sentido, onde serve para designar o objeto;
em suma, considerará o conteúdo de representação
(Vorstellungsinhaltes) e o objeto de representação (Vorstellungsgegenstande) separadamente e a relação mútua entre os dois.
§ 2. Ato, conteúdo e objeto do juízo.
A suposição é que os juízos (Urteile) demonstram, relativamente à distinção entre conteúdo e objeto, algo semelhante às
representações. Se tivermos sucesso em descobrir no domínio do
julgar também uma distinção entre conteúdo e objeto do
fenômeno, então isto poderia ser vantajoso para o esclarecimento
da relação análoga no caso das representações.
O que diferencia um do outro representações e juízos e os
constitui como classes de fenômenos psíquicos claramente
separadas é o tipo especial de relação intencional ao objeto. Em
que consiste esta relação não se deixa descrever, mas apenas
esclarecer por meio da indicação daquilo que a experiência
interna oferece. E aí se mostra de modo claro a diferença entre os
tipos pelos quais um ato psíquico pode se relacionar com seu
objeto. Pois não resta escondido para ninguém que se trata de
uma relação diferente, a cada vez, se alguém meramente
1 Vergl.. Hillebrand, Die neuen Theorien der kategorischen Schlüsse, Wien, 1891, § 23.
272
representa algo, ou se o reconhece, repudia. Entre esses dois tipos
de relação intencional não há passagem, nem gradual nem
descontínua. Trata-se de um equívoco acerca dos fatos acreditar
que entre representar e julgar haveria alguma forma de passagem
que estaria entre os dois. B. Erdmann apresenta uma dessas
formas de passagem. “Quando lembramos de um objeto”, diz ele,
“fazemos uma representação abstrata, ou procuramos nos
esclarecer sobre as características de algum objeto composto, nós
unimos ao objeto as sucessivas marcas distintivas
involuntariamente e quase sem exceção com a ajuda de
representações de palavras. E isto de tal modo que elas são ditas,
predicadas do objeto, portanto, este é pensado como sujeito,
aquelas como predicados de um juízo. Assim as representações
passam para o juízo; elas aparecem num desdobramento de
representação predicativa”. E mais: “Também a partir do lado
oposto a diferença entre representação e juízo torna-se algo
fluída... Nós podemos com efeito também sintetizar um juízo por
meio de uma palavra. Palavras como imperativo categórico,
estado, direito, polícia, religião, valor (em sentido de economia
nacional), mercadoria, lei natural, não têm seu significado tanto
nas representações, mas antes nos juízos que, segundo o tipo de
representação, são sintetizados através de uma palavra; todavia,
na consciência interveem apenas nos juízos. Onde o seu
significado é claro, ele é dado por juízos, por sua definição, ali o
processo de abstração no qual eles se formam se completa por
meio da linguagem”.1 Estes os argumentos de Erdmann para a
existência de uma passagem, também afirmada em outros lugares,
da representação ao juízo e vice-versa. 2 Fácil é mostrar o erro do
1 B. Erdmann, Logique, Halle sur S., 1892, Tome I, § 34.
2 Cf. Bosanquet, Logic, Oxford, 1888, Tome I, p. 41: An idea or concept is not an image,
though it may make use of images. It is a habit of judging with reference to a certain
identity ... The purpose ... was to show, that the acts set in motion by the name and by the
proposition are the same, and therefore the logical function of these forms would not be
generally different. -- Do modo semelhante Schmitz-Dumont: “O direito de estado
significa a mesma coisa que quando se diz explicitamente: o estado possui certos
direitos”. Vierteljahrs-schrift für wissenschaftliche Philosophie X, Jhrg., S. 205.
273
desenvolvimento de Erdmann.
No que concerne ao primeiro argumento de Erdmann, que
afirma que nós sempre relacionamos do mesmo modo,
involuntariamente, as características de um objeto composto ao
mesmo objeto, de maneira que ele é pensado como sujeito e as
características como predicados de um juízo, trata-se de um
argumento não congente. Pois, mesmo se fosse admitido que o
fato de se representar um objeto composto ocorresse do modo
proposto por Erdmann, a intervenção de juízos, ou de uma forma
de passagem entre representações e juízos, não estaria
demonstrada por isso. Se nós pensamos um objeto como um
sujeito, e suas características como predicados de um juízo,
representamos um sujeito de juízo, predicados de juízos e os
próprios juízos, pois sujeito e predicado não podem ser
representados enquanto tais senão numa reflexão simultânea
sobre um juízo. Mas há obviamente uma grande diferença entre o
fato de se representar um juízo e o fato de ter lugar um juízo
(Fällen eines Urteils). Um juízo representado é tampouco um
juízo quanto “cem táleres” representados são uma posse. Embora,
em vista disso, um objeto composto não possa ser representado
sem a ajuda de “desdobramentos de representação predicativa”,
este enunciado (Aussagen) das características de um objeto como
sujeito não é, pois, senão um enunciado representado, ao qual,
para passar ao estado de um enunciado efetivo, de um juízo, falta
exatamente tudo o que um castelo pintado precisa para se tornar
um castelo real. Se se representa o objeto composto “ouro”, se
representa o ouro como amarelo, metálico, pesado, etc.. Isto quer
dizer que os juízos “o ouro é amarelo”, “o ouro brilha como um
metal”, “o ouro é pesado”, etc., são representados em conjunto;
mas, justamente, estes juízos vêm apenas representados, não
realizados (gefällt). Se esse fosse o caso, como sustenta Erdmann,
não se poderia nunca representar-se um objeto composto,
analisado em suas características, sem afirmar qualquer coisa de
verdadeiro ou de falso sobre este objeto. Esta consequência, posta
274
em todas as direções, daria como resultado que não haveria senão
representações, no verdadeiro sentido da palavra, simples; e, por
isso, Erdmann não se faria compreender.
O segundo argumento de Erdmann para a presença de
passagens entre a classe das representações e a dos juízos é tão
somente, visto de perto, uma inversão do primeiro e tão pouco
cogente quanto este. Deve-se admitir certamente que se pode
sintetizar os juízos por uma palavra. E isto é possível de duas
maneiras. Um juízo cujo modo de expressão habitual na linguagem é o que se faz por uma frase (Satz) pode muito bem ser
expresso numa frase que se compõe apenas de uma única palavra
(Wort), ou bem ser proferido sem que haja uma sentença presente.
O primeiro caso acontece em inúmeras línguas com o que se
denomina frases sem sujeito, como em grego, latim, e todas as
línguas eslavas. Nesses casos, o juízo é sintetizado por uma
palavra, pois a frase significando o juízo aparece expressa por
uma única palavra. Mas os juízos podem ser também resumidos
por uma palavra sem que, por esta mesma palavra, uma frase no
sentido gramatical seja representada. Quem faz o alerta “Fogo!”,
ou outros do mesmo tipo, sintetiza numa só palavra a frase “Isto
queima” e o juízo que é significado por esta frase.
Diferente desses casos é aquele considerado por Erdmann.
Verdade é que onde a significação das palavras como estado,
direito, etc., é claro, ela é dada por definições. Ora, as definições
são, sem dúvida alguma, frases. Porém, Erdmann esqueceu que às
frases podem corresponder, enquanto correlatos psíquicos, não
apenas juízos, mas ainda muitas outras coisas, por exemplo,
desejos, etc.. Além dos juízos efetivos, os juízos representados
são também comunicados por frases. Quando alguém descreve o
objeto de sua representação, serve-se para isso de frases. Ele diz:
“A peça de ouro que eu me represento é amarela, etc..” Mas isso
que é dado pela informação não é um outro juízo diferente
daquele que o falante que tem uma representação determinada;
sobre o objeto de representação nenhum juízo é feito; antes,
275
apenas juízos sobre a constituição da peça de ouro representada.
E estes juízos representados, por sua vez, são revestidos com a
forma de uma ou várias frases. Se a definição, como pensa
Erdmann, não tem outra função que indicar a significação clara
de uma palavra, o único juízo que ela contém é então aquele
sobre a união válida para aqueles que falam de um nome
determinado com uma significação determinada. Se alguém diz:
O estado é uma comunidade pública que une um povo residente
sobre um certo domínio na reunião de governantes e governados,
— não enuncia assim um juízo sobre o estado, mas somente
sustenta que ele designa com a palavra “estado” um objeto cuja
representação é composta da maneira indicada. E a descrição
dessa representação faz-se com a ajuda de frases que consistem
de sujeito e predicado, mas cujos correlatos psíquicos, longe de
serem juízos, apresentam-se como representações de juízos. Vêse o quanto o segundo argumento de Erdmann está ligado por
conexão ao primeiro e, com ele, se eleva e cai.
A partir disso, nós vamos estabelecer firmemente que
representação e juízo são duas classes claramente distintas de
fenômenos psíquicos, sem que se dê entre eles qualquer forma de
passagem.
No que agora concerne ao objeto de juízo, o mesmo
objeto que num caso é simplesmente representado, pode noutro
vir a ser julgado, reconhecido ou recusado. Que a essência do
juízo encontra-se precisamente no fato de reconhecer ou rejeitar
foi mostrado por Brentano.1 O que é reconhecido ou rejeitado é o
objeto do juízo. Com esta operação psíquica dirigida a um objeto
se entrelaça de uma maneira particular a existência ou a nãoexistência do objeto. Pois o que é julgado é o objeto; mas, na
medida em que ele é reconhecido a sua existência parece ser
reconhecida ao mesmo tempo; se ele é denegado, a sua existência
também parece ser denegada. Quem acredita que é no
reconhecimento ou na denegação de um objeto que se dá o
1 Op. Cit., livro 2, Cap. 7, §§ 4 e s.
276
reconhecimento ou denegação da ligação da característica
“existência” ao objeto esquece que no reconhecimento de uma
ligação as partes ligadas são elas mesmas reconhecidas de uma
maneira implícita, mas que, pela negação de uma ligação, as
partes singulares não são negadas. Na afirmação da existência de
A, A já é reconhecido; através da negação da existência de A, A
também é negado, o que não poderia ser o caso se se tratasse de
uma ligação de A com a característica “existência”. 1 E entretanto,
pelo reconhecimento de A, a sua existência parece ser
reconhecida e, pela negação da existência de A, A também parece
ser negado.
Esta situação remete à função do ato de juízo que oferece
o análogo da função do ato de representação, pelo qual, além do
objeto, o seu conteúdo também é “representado”. Do mesmo
modo que no representar um objeto sobre o qual este representar
se dirige no sentido próprio, um segundo elemento vem à luz
ainda, a saber, o conteúdo da representação que, ele também, mas
num outro sentido, tal como o objeto é “representado”,
igualmente o que é afirmado ou negado por um juízo, sem ser o
objeto do ato de julgar, é o conteúdo do juízo. Pelo conteúdo do
juízo deve-se compreender a existência de um objeto, aquele que
se trata em cada juízo. Pois, quem faz um juízo afirma alguma
coisa sobre a existência de um objeto. Quando ele reconhece ou
rejeita este objeto, ele reconhece ou rejeita também a sua
existência. O que no sentido próprio é julgado é o objeto mesmo;
e, na medida em o objeto é julgado, também a sua existência
parece ser julgada, mas num outro sentido.
A analogia com as relações que se encontram no domínio
do representar é perfeita. Aqui como lá tem-se um ato psíquico;
aqui, o julgar, lá, o representar. Este como aquele se ligam a um
objeto suposto como independente do pensar. Assim como
quando o objeto é representado, quando ele é julgado, vem à luz
além do ato psíquico e de seu objeto um terceiro elemento que é
1 Ibid., § 5.
277
por assim dizer um signo (Zeichen) do objeto: sua “imagem”
psíquica, na medida em que ele é representado, e sua existência,
na medida em que é julgado. Assim tanto se diz da “imagem”
psíquica de um objeto que ela é representada, se diz de sua
existência que ela é julgada; mas o objeto próprio do representar e
do julgar não é nem a imagem psíquica do objeto nem sua
existência, mas o objeto mesmo. Entretanto, assim como a
imagem psíquica ou a existência de um objeto não são idênticas a
este, tampouco são semelhantes os sentidos dos verbos relativos
quando se denomina “representado” o conteúdo e o objeto de
uma representação, e “julgado” o conteúdo e o objeto de um
juízo.
§ 3. Nomes e representações.
Mesmo se falar e pensar não estejam relacionados um
com o outro numa relação de paralelismo completo, existe todavia uma analogia entre os fenômenos psíquicos e as formas da
linguagem que os designam que pode servir para clarear as
propriedades dominantes sobre o primeiro domínio, ao se
mencionar as particularidades que são próprias às manifestações
do outro domínio. A respeito da distinção em consideração entre
o conteúdo de representação e o objeto de representação, é a
consideração do nome (Namen) como o signo linguístico de uma
representação que propiciará a tarefa.
Uma questão seguidamente já levantada em relação aos
nomes fornece a prova de que sobre uma representação uma
tríplice distinção deve ser feita. Mill, ao tratar dos nomes,
levantou a questão de se eles devem ser considerados como
nomes das coisas (Dinge) ou de nossas representações das coisas. Por coisas ele compreende aqui o mesmo que nós designamos como objetos de representação; mas, com “representações”
ele apenas pode significar os conteúdos de representações e não
os atos de representação. A resposta que Mill dá à questão citada,
referindo-se a Hobbes, pressupõe de maneira nada ambígua uma
278
distinção entre o conteúdo e o objeto de uma representação.1 A
palavra “sol”, pensa Mill, é o nome do sol e não o nome de nossa
representação do sol; entretanto, ele não quer negar que
unicamente a representação, e não a coisa (Sache) mesma, é
evocada pelo nome ou comunicada ao ouvinte. A função
(Aufgabe) do nome parece como sendo dupla: o nome comunica
(mitteilt) ao ouvinte um conteúdo de representação e ao mesmo
tempo nomeia (nennt) um objeto. Mas, era um tríplice momento,
e não dúplice, que nós pensávamos dever distinguir em cada
representação: o ato, o conteúdo e o objeto. E se o nome oferece
uma imagem exata, na linguagem, das relações psíquicas que lhe
correspondem, então ele também deve indicar ainda um correlato
para o ato de representação. De fato, este está presente; e aos três
momentos da representação, ao ato, ao conteúdo e ao objeto,
corresponde uma tríplice função que cada nome deve cumprir.
Compreende-se por um nome tudo o que os lógicos
antigos denominaram um signo categoremático. Porém, signos
categoremáticos são todos os meios de designação da linguagem
que não são meramente co-significantes (como “do pai”, “em
redor”, “enquanto isso”, etc.), mas que também não formam por
si mesmos a expressão completa de um juízo (enunciado) ou de
um sentimento e de uma decisão da vontade, etc.,
(agradecimentos, questões, ordens, etc.), mas simplesmente a
expressão de uma representação. “O fundador da ética”, “um
filho que ofendeu o pai”, são nomes.2
Agora, qual é a função que os nomes devem cumprir?
Claramente a de evocar no ouvinte um conteúdo de representação determinado.3 Quem diz um nome pretende evocar no
ouvinte o mesmo conteúdo psíquico que ele cumpre para ele
mesmo; se alguém diz “sol, lua, estrelas”, pretende que aqueles
1 Mill, System der inductiven und deductiven Logik, übersetzt von Th. Gomperz, Leipzig,
1884, Buch I, Cap. 2, § 1.
2 Marty, Ueber subjectlose Sätze etc. In der Vierteljahrsschrift für wissens-chaftliche
Philosophie, VIII. Jhrg., S. 293.
3 Brentano a. a. O., Buch II, Cap. 6, § 3. Marty, a. a. O., S. 300, e Mill na última passagem
citada.
279
que o escutam pensem como ele no sol, na lua, nas estrelas. Mas
quando aquele que fala pretende evocar no ouvinte, pela
denominação de um nome, um conteúdo psíquico determinado,
ele lhe revela, ao mesmo tempo, que encontra nele mesmo este
conteúdo, logo, ele se representa aquilo mesmo que ele deseja
que o ouvinte também se represente.1 Por isso, o nome cumpre já
duas funções. Primeiro, ele informa que aquele que emprega o
nome se representa algo; ele indica a presença de um ato psíquico
naquele que fala. Segundo, ele evoca no ouvinte um conteúdo
psíquico determinado. Esse conteúdo é o que se compreende pela
“significação” (Bedeutung) do nome.2
Com isso as funções do nome não estão esgotadas. Ele
cumpre uma terceira, a saber, a função de denominar objetos. Os
nomes são nomes de coisas, diz Mill, e ele apela legitimamente
para fundar isto ao fato de que nós nos servimos dos nomes para
comunicar algo (etwas) sobre as coisas (Dinge), etc.. Enquanto
terceira função que um nome cumpre aparece a denominação de
objetos. As três funções do nome são: primeiro, a informação
dada de um ato de representação que ocorre naquele que fala.
Segundo, a evocação de um conteúdo psíquico, da significação do
nome, naquele a quem a fala se dirige. Terceiro, a denominação
de um objeto que é representado pela representação significada
pelo nome.
A remissão às três funções que cada nome cumpre
confirma, então, de uma maneira perfeita a distinção do con1 Os sons e outros objetos cuja representação é usada para suscitar certas representações
junto a elas num outro ser pensante, são para esse, senão sempre, ao menos nas mais das
vezes, um signo (signo característico) de que as representações mencionadas estão
presentes no espírito do ser que produz estes sons e outros objetos. Bolzano,
Wissenschaftslehre, Sulzbach, 1837, § 285.
2 “Etymologically the meaning of a name is that, which we are caused to think of when
the name is used.” Jevons, Principles of Science, s. 25. Em todo caso, nós denominamos
como significação de uma expressão o conteúdo da alma cuja vocação própria, o objetivo
final, é de ser revelado naquele a quem a fala se dirige (seja por natureza seja por hábito),
no caso em que ele tem ao mesmo tempo a capacidade de atingir em geral este fim. O
nome é signo de uma representação que o ouvinte deve evocar nele mesmo, enquanto
signo do representado que se trata naquele que fala. Apenas dando a conhecer este fato é
que ele significa esta representação. Marty, na última obra citada.
280
teúdo em relação ao objeto de uma representação. E graças a
consideração do signo linguístico para a representação nós temos
um meio de distinguir um fator do outro, que, por causa da
imperfeição da linguagem, que designa como “representado” o
conteúdo e também o objeto, podem ser facilmente confundidos
um com o outro ou bem considerados como sendo uma única
coisa.
§ 4. O “representado”.
Se a palavra “representar” é ambígua, pois se diz tanto do
conteúdo quanto do objeto de uma representação que ele é
“representado”, esse fato pode contribuir sem dúvida em muito
para tornar mais difícil a distinção exata entre o conteúdo e o
objeto. Nós já dissemos que o conteúdo de representação e o
objeto de representação não são um “representado” no mesmo
sentido. Nós vamos procurar agora estabelecer firmemente o que
a expressão “representado” significa quando ela é enunciada de
um objeto de representação e qual é o seu sentido quando ela é
ligada ao conteúdo de representação. O meio para estabelecer
firmemente a diferença de significação nos é fornecido pelo nexo
de relação que existe entre os adjetivos (Beiwörtern) atributivos
ou determinantes, por um lado, e os adjetivos modificadores, de
outro.1
Denomina-se atributiva ou determinante (determinierend)
uma classificação (Bestimmung) se ela completa ou aumenta a
significação da expressão a qual ela pertence, seja numa direção
positiva ou negativa. Modificadora (modificierend) se ela altera
completamente a significação original do nome junto ao qual ela
está. Assim em “homem bom”, a classificação “bom” é
verdadeiramente atributiva; se alguém diz “homem morto”, tratase de um adjetivo modificador, pois o homem morto não é um
homem. Do mesmo modo, pela adjunção do adjetivo “falso” a um
nome, a significação original desse nome é substituída por uma
1 Cf. Brentano, op. Cit., livro 2, cap. 7, § 7, p. 288.
281
outra. Pois um falso amigo não é um amigo, nem um falso
diamante um diamante. Possível é que a mesma palavra seja
empregada tanto de uma maneira modificadora quanto como uma
atribuição determinadora efetiva. Tal como o adjetivo “falso”
acima citado. Nos casos escolhidos como exemplos ele é, sem
dúvida, modificador. Mas não é assim nas ligações como “um
juízo falso”, “um homem falso (desleal)”.
O mesmo vale para a classificação algo ser “representado”. Antes de nos ocupar, contudo, da ambiguidade que afe-ta
esta expressão, nós vamos considerar um caso inteiramente
análogo que, tirado da experiência externa, oferece a vantagem de
ser bem conhecido e que nos torna mais aptos a apreender o
equívoco que se faz com a palavra “representado”.
Sabidamente diz-se que o pintor pinta um quadro (Bild),
mas também que ele pinta uma paisagem (Landschaft). Que uma
ação de pintar dirige-se a dois objetos; o resultado dessa operação
é um único. Quando o pintor termina de pintar o quadro
relativamente à paisagem, ele tem diante de si tanto um quadro
pintado quanto também uma paisagem pintada. O quadro é
pintado; ele não é nem burilado nem gravado, etc.; antes, é um
verdadeiro quadro pintado. A paisagem também é pintada; mas
ela não é uma paisagem verdadeira, ela é apenas “pintada”. O
quadro pintado e a paisagem pintada, em verdade, são apenas um;
o quadro apresenta sim uma paisagem, trata-se portanto de uma
paisagem pintada; a paisagem pintada é o quadro da paisagem.
A palavra “pintada” joga portanto um duplo papel. Se ela
é empregada para o quadro ela aparece então como uma
determinação; ela determina um pouco mais a constituição do
quadro, uma vez que este é um quadro pintado e não burilado,
gravado, produzido por xilografia ou fototipia, etc.. Se, ao
contrário, diz-se da paisagem que é pintada, a classificação
“pintada” aparece como modificadora; pois, a paisagem pintada
não é precisamente uma paisagem, mas uma superfície de tecido
tratada pelo pintor segundo determinadas leis do colorido e da
282
perspectiva; a paisagem pintada não é uma paisagem, mas um
quadro.
Mas esta paisagem pintada, o quadro, apresenta uma
paisagem verdadeira. A paisagem que o pintor pintou, seja a partir
da natureza ou de sua fantasia, é apresentada no quadro, portanto
torna-se pintada pelo pintor. Porém, por ela ter sido pintada pelo
pintor ela não deixa de ser uma paisagem. Se eu mostro a alguém
uma paisagem e acrescento: Esta paisagem me faz lembrar de
uma exposição de arte onde havia um quadro que a representa,
ela foi pintada pelo pintor X. Então eu falo, designando a
paisagem nesse sentido como “pintada”, da paisagem efetiva
(wirklichen) que foi pintada, não da paisagem pintada que
ornamenta a parede da exposição de arte. O adjetivo “pintada”,
nesse sentido, acrescentado à palavra “paisagem”, não modifica
em nada a significação da palavra paisagem; é um adjetivo
realmente determinante, que indica que a paisagem é tida numa
relação determinada com um quadro, numa relação que tampouco
faz cessar a paisagem de ser uma paisagem, tal como um homem
não deixa de ser um homem quando, em razão dos traços de seu
semblante, é tido frente a um outro homem na relação de
semelhança.
O que nós observamos sobre a palavra “pintada” na sua
aplicação ao quadro e à paisagem vale mutatis mutandis para a
classificação “representado”, tal como ela é aplicada ao conteúdo
e ao objeto de uma representação. E porque nós temos o hábito de
designar o representar como um tipo de figuração espiritual
(geistigen abbilden), o estabelecimento da comparação entre a
paisagem pintada e o objeto representado aparece assim, por isso,
realmente esclarecedor e parecer menos inapropriado do que seria
o caso da comparação das relações da experiência interna e da
experiência externa.
Ao verbo representar corresponde, de um modo semelhante ao verbo pintar, um duplo objeto — um objeto que é
representado e um conteúdo que é representado. O conteúdo é a
283
imagem (Bild); o objeto, a paisagem. O resultado da operação de
representação que se faz numa dupla direção é um único. O
objeto representado, no sentido de que a paisagem pintada é uma
imagem, é o conteúdo da representação. O conteúdo representado
numa representação é, em verdade, um conteúdo; aplicado ao
conteúdo o adjetivo “representado” atua como modificador
tampouco quanto o adjetivo “pintado” para a imagem; o conteúdo
representado é ainda assim um conteúdo, exatamente do mesmo
modo que a imagem pintada é uma imagem; com efeito, do
mesmo modo que uma imagem pode ser somente pintada, ou
executada por uma operação que substitui o fato de pintar, um
conteúdo de representação, exatamente do mesmo modo pode ser
somente representado; não há aqui uma operação que substituiria
o representar. O conteúdo da representação e o objeto
representado são um só e o mesmo; e, todavia, a expressão
“representado” é modifica-dora enquanto classificação do objeto,
pois o objeto represen-tado não é mais um objeto, mas somente o
conteúdo de uma representação. A paisagem pintada também não
é mais uma paisagem, nós dizemos, mas um quadro.
Porém, nós vimos que a paisagem pintada, o quadro,
apresenta algo que precisamente nesse sentido não é pintado.
Exatamente do mesmo modo o conteúdo de uma representação
relaciona-se a algo que não é conteúdo de representação, mas
objeto desta representação, de modo análogo aquele da paisagem
que é o “sujeito” do quadro que a apresenta. E tal como a
paisagem figurada neste quadro é levada a exposição
(Darstellung), portanto, pintada num sentido diferente do
precedente, exatamente do mesmo modo para o conteúdo da
representação, o objeto correspondente a esta representação
(Vorstellung) torna-se, como se costuma dizer, espiritualmente
figurado, portanto, representado. Quando se diz do objeto, nesse
último sentido, que ele é representado, por isso a significação da
palavra objeto não é modificada; “o objeto é representado” quer
dizer somente que um objeto entrou numa relação inteiramente
284
determinada com um ser (Wesen) capaz de representação. Mas,
por isso ele não cessou de ser objeto.
Quando se fala de “objetos representados”, pode-se então
significar dois tipos de coisas. Um objeto é “representado” pode
querer dizer que um objeto, além das muitas outras relações nas
quais ele se encontra ligado a outros objetos, participa também de
uma relação determinada, como um dos dois membros desta, com
um ser conhecedor. Nesse sentido, o objeto representado é um
objeto verdadeiro exatamente tanto quanto o objeto extenso,
perdido, etc. Mas, num outro sentido, o objeto representado
significa o contrário de um objeto verdadeiro; aí o objeto
representado não é mais um objeto, mas o conteúdo de uma
representação e qualquer coisa inteiramente diferente de um
objeto verdadeiro. O objeto representado no primeiro sentido é o
que pode ser reconhecido ou rejeitado por um juízo; para poder
ser julgado, o objeto deve ser entretanto representado; o que não
se representa não se pode também reconhecer ou negar, tampouco
amar ou odiar. Obviamente o objeto reconhecido ou rejeitado,
desejado ou detestado, é um objeto representado sempre segundo
a primeira das significações que nós mencionamos. O objeto
representado no sentido da palavra “representado” citado por
último não é, porém, aquele que é reconhecido ou rejeitado; não é
ele que se tem vista quando se diz que objeto é ou não é; o objeto
representado nesse sentido é o conteúdo da representação, a
“figuração espiritual” de um objeto.
Esta ambiguidade da palavra “representado” de que nós
estamos falando nem sempre recebeu a devida atenção. Sigwart
confunde, por exemplo, o objeto representado no sentido de
objeto de uma representação com o objeto representado no
sentido de conteúdo de uma representação, quando ele polemiza
contra a teoria idiogenética do juízo.1
Drobisch, de modo análogo, não percebe a diferença entre
o objeto representado num sentido e o objeto representado noutro
1 Sigwart, Logik, Freiburg i. B., 1889, I. Bb., § 12.7.
285
sentido. Quando ele fala da função que os nomes têm de cumprir,
ele diz: “Na medida em que o pensar considera nas
representações apenas o que (was) nela é representado, o
representado, e fazendo abstração de todas as condições
subjetivas do representar, forma os conceitos (Begriffe). — A
designação linguística dos conceitos é o nome. Costuma-se,
certamente, considerar este como a designação da coisa (Sache),
do objeto real da representação (se ela o tem); mas o que é
representado no conceito não é outra coisa senão a coisa tornada
conhecida, etc..”1 Drobisch claramente não observa que ao falar
do “representado” ele usa uma palavra com dupla significação,
uma vez na primeira significação e na outra vez com outra.
Quando ele designa o conceito como o que é representado numa
representação ele visa então, enquanto o representado, o
conteúdo da representação; mas quando ele diz que o
representado não é outra coisa senão a coisa conhecida, aí então
por representado deve-se compreender o objeto de uma
representação que lhe é relativa. Se Drobisch fosse atento a esta
diferença ele não teria explicado o nome exclusivamente como a
designação linguística do conceito, mas antes ele haveria
encontrado que o nome significa seguramente o conceito (logo,
no sentido de Drobisch, o conteúdo de representação), mas
precisamente por isso nomeia o objeto, a coisa.
Trata-se da mesma confusão cometida por Drobisch
quando ele explica a diferença entre “marcas distintivas”
(Merkmalen) e “partes constitutivas” (Bestandteilen).2 “Esta diferença”, diz ele agora, “não é para ser posta como se aquelas
fossem partes do conceito, e essas ao contrário partes da coisa, do
objeto mesmo. Esta coisa, ela também, e suas partes constitutivas são somente representadas; nós não ultrapassamos
também aqui os conceitos para ir além”, etc. Drobisch não vê,
propriamente, entre o conceito e a coisa alguma diferença, pois
ambos seriam um “representado”. Mas que algo (Etwas) possa ser
1 Drobisch, Neue Darstellung der Logik, Leipzig, 1875, §8.
2 Ibid., § 14.
286
em sentidos diferentes um “representado”, ora como conteúdo,
ora como objeto, isto parece ter sempre escapado à sua atenção.
Entretanto, a diferença que existe entre o conteúdo de uma
representação e seu objeto foi muito seguidamente indicada com
insistência. Bolzano a fez, e manteve firmemente esta diferença
com muitas consequências;1 Zimmermann chama a atenção
expressamente contra a confusão do conteúdo com o objeto;2 e,
recentemente, Kerry mostrou esta diferença para as
representações de números, logo para as representações cujos
objetos não são reais.3 Mais tarde nós teremos a oportunidade de
poder apelar, em muitas questões a enfrentar, a esses pesquisadores mencionados agora e de neles nos apoiar; por agora
nós vamos especificar a relação que conteúdo e objeto de uma
representação têm com o ato respectivo, e depois fixar a
designação linguística para essa relação.
Quando nós comparamos o ato de representação ao pintar,
o conteúdo ao quadro, e o objeto ao tema (Sujet) fixado sobre a
tela, algo como uma paisagem, é também a relação que o ato
mantém com o conteúdo e o objeto da representação que alcança
analogamente expressão. Para o pintor, o quadro é um meio de
apresentar a paisagem; ele quer figurar, “pintar”, uma paisagem –
efetiva ou pairando na sua fantasia – e ele faz isso ao pintar um
quadro. Ele pinta uma paisagem ao perfazer, pintar, um quadro da
paisagem. A paisagem é o objeto “primário” da sua atividade de
pintar, o quadro o objeto “secundário”. Para o representar é
análogo. Aquele que representa, representa um objeto qualquer,
por exemplo, um cavalo. Mas, ao fazer isso, ele representa um
conteúdo psíquico. O conteúdo é a figura (Abbild) do cavalo, num
sentido análogo ao do quadro ser a figuração da paisagem.
1 Bolzano, op. Cit., §49. Bolzano emprega no lugar da expressão “conteúdo de uma
representação” a designação representação “objetiva”, “representação em si”, e distingue
por uma parte o objeto e por outra a representação “contida” ou “subjetiva”,
compreendendo por isso o ato psíquico do representar.
2 Zimmermann, Philosophische Propädeutik, wien 1867, § 18, 26.
3 Kerry, Ueber Anschauung und ihre psychische Verarbeitung. Vierteljahrschrift etc. X Jahrg.
u. ff.
287
Quando aquele que representa representa um objeto, ele
representa ao mesmo tempo um conteúdo que se liga a este
objeto. O objeto representado, quer dizer o objeto sobre o qual se
dirige a atividade representadora, o ato de representação, é o
objeto primário do representar; o conteúdo pelo qual o objeto é
representado é o objeto secundário da atividade representadora.1
Para distinguir a dúplice significação que cabe à palavra
“representar”, ora na sua aplicação ao conteúdo ora na sua
aplicação ao objeto, nós nos serviremos de modos de expressão
que encontramos em Zimmermann.2 Do conteúdo nós diremos
que ele é pensado, representado na (in) representação; do objeto,
diremos que é representado pelo (durch) conteúdo de
representação (ou a representação). O que é representado em uma
representação, é o seu conteúdo; o que é representado por uma
representação, é o seu objeto. Desse modo será possível conservar
a palavra “representar” — substituí-la por outra não faria senão
aumentar a confusão — e entretanto evitar os mal-entendidos que
esta palavra, por causa de sua ambiguidade, parece própria a
suscitar. Faz-se necessário somente, quando se fala do fato de
qualquer coisa ser representada, acrescentar se ela é representada
na representação ou pela representação. No primeiro caso, o que
é significado com o representar é o conteúdo de representação; no
segundo, é o objeto de representação.
Nós dissemos que o conteúdo é como que o meio pelo
qual o objeto é representado. O que se segue claramente desse
ponto de vista é novamente a analogia tal qual nós a encontramos entre a representação e o signo linguístico para ela, o
nome. Nós vimos que a função originária do nome é a de dar
informação de um ato psíquico e, justamente, o de representar.
1 As expressões “objeto primário” e “objeto secundário” encontram-se em Brentano (op.
Cit., Livro II, cap. 2, §8), num sentido ligeiramente diferente. Pois, embora Brentano
designe como objeto primário o objeto da representação, tal como é feito aqui, ele entende
por objeto secundário de uma representação o ato e o conteúdo tomados em conjunto, na
medida em que ambos, durante a atividade de representar um objeto, são apreendidos
pela “consciência interna”, e aí a representação torna-se assim consciente.
2 Op. Cit.
288
Por isso o nome suscita naquele a quem a fala se dirige uma
significação (Bedeutung), um conteúdo (de representação) psíquico; e, em virtude dessa significação, o nome nomeia um objeto
(Gegenstand). Assim como o suscitar de um conteúdo de
representação é o meio pelo qual o nome nomeia um objeto, do
mesmo modo o conteúdo de representação é ele mesmo o meio
pelo qual o ato de representação (do qual ele deu informação pelo
nome) representa um objeto.
Para tentar prevenir os mal-entendidos que se formam
quando, sem acrescentar explicação, se fala de um objeto “representado”, Kerry distingue entre o “representado como tal” e o
simples representado.1 Todavia, é questionável se desse modo o
objetivo é alcançado. Pois, por meio do acréscimo de uma
expressão como “como tal”, “enquanto”, etc., o ouvinte é
convidado a representar o objeto designado sob um ponto de vista
inteiramente determinado, por meio de marcas distintivas
completamente determinadas que justamente esse acrés-cimo
alude. Este é o caso, com efeito, quando alguém fala por exemplo
do círculo “enquanto” caso limite da elipse, ou bem dos macacos
americanos “na medida em que” todos eles têm cauda. Mas, se o
acréscimo ao nome das partículas “enquanto”, “na medida em
que”, é ela mesma ambígua, a possibilidade de mal-entendido
pelo nome não é assim suprimida. Se se designa um objeto
enquanto “representado”, não se impediu desse modo os malentendidos que podem ser provados pela ambiguidade da palavra
“representado”. Pois alguma coisa pode ser tratada como
“representada” precisamente num sentido duplo, ou bem
enquanto ela é objeto, ou bem enquanto ela é conteúdo de um ato
de representação.2 No primeiro caso, o acréscimo “enquanto
1 Kerry, op. Cit., XV. Jarhg., p. 135.
2 A dúplice tarefa a ser cumprida, a partir do que foi dito, o conteúdo de representação
enquanto que ele é o que é significado pelo nome, e enquanto ele é aquilo pelo qual o
objeto é representado, é caracterizada por G. Noël da seguinte maneira: “De uma parte a
idéia é o que representa um objeto ao espírito; ela é, em outro termos, o substituto mental
do objeto. De outra parte a idéia é o que constitui a significação de um nome, o acto pelo
qual nós conferimos a este nome um sentido determinado, uma acepção específica, com
289
representado” tem um efeito realmente determinante, pois por ele
a atenção é dirigida para uma relação na qual o objeto está com
um ser conhecedor; no segundo caso, o acréscimo tem um efeito
modificador, pois um objeto representado nesse sentido não é um
objeto, mas um conteúdo de representação.
Nós nos aferraremos firmemente ao modo de expressão
proveniente de Zimmermann, pelo qual parece melhor se evitar
todos os mal-entendidos; e admitiremos que o conteúdo é
representado na representação, o objeto pela representação.
§ 5. As assim chamadas representações “sem objeto”.
Nos desdobramentos feitos até aqui, tacitamente, estava a
pressuposição fundante de que a toda representação corresponde,
sem exceção, um objeto. Em toda representação, nós dissemos,
dever-se-ia distinguir não somente um conteúdo e um ato, mas,
ademais a esses dois fatores, um terceiro, seu objeto. Pode-se
rapidamente objetar a uma tal concepção que existem, entretanto,
representações “sem objeto”, representações às quais nenhum
objeto corresponde. Em tal caso, os desdobramentos precedentes
deveriam ser restritos de uma maneira importante; de modo
algum eles podem valer para todas as representações. De fato,
mesmo aqueles que defenderam expressamente a distinção do
conteúdo de representação e do objeto de representação não
acreditaram poder aplicar esta distinção senão para um grupo de
representações; e, a este grupo, eles contrapunham um segundo,
tão grande quanto, ou talvez bem maior ainda, de representações
às quais não correspondem objetos, que, portanto, deveriam ser
designadas como representações ‘sem objeto”.
Assim Bolzano ensina que há representações sem objeto,
quer dizer, representações que não têm nenhum objeto. Se
alguém, pensa Bolzano, mantém que é absurdo sustentar que uma
representação deve não ter nenhum objeto e portanto nada
exclusão de toda outra. (Noms et Conceptus: Revue Philosophique XXXI, 471.) Cf. Também
Marty, Ueber das Verhältnis von Logik und Grammatik in den “Symbolae Pragenses”, Festgabe,
etc., Wien, 1893, S. 116, anm. 1.
290
representar, isto se dá por que ele confunde o conteúdo da
representação, que, certamente, toda representação possui, com o
objeto da representação. E como exemplos de tais representações
“sem objeto”, Bolzano cita as representações: nada, círculo
quadrado, virtude verde, montanha de ouro.1 De maneira análoga
Kerry pensa que quem indica a incompatibilidade das partes de
uma representação demonstra que sob esta representação não
pode cair nenhum objeto. Uma tal representação seria a do
número que é maior que zero e que, adicionado a ele mesmo, tem
a si mesmo como resultado.2 Também Höfler ensina que há
representações “cuja extensão é igual a zero, quer dizer, às quais
nenhum objeto corresponde”; como exemplos de tais
representações, Höfler cita ainda, além daquelas mencionadas por
Bolzano, as representações de um aerostato dirigível, de um
diamante com mais de um metro cúbico, etc..3
As representações às quais não corresponde nenhum
objeto são de três tipos. Primeiro, as representações que envolvem a negação de todo objeto, como a representação nada.
Segundo, as representações às quais não corresponde nenhum
objeto pelo motivo de que, no seu conteúdo, parecem estar
reunidas determinações contraditórias uma com as outras, por
exemplo, círculo quadrado. Terceiro, as representações às quais
nenhum objeto corresponde por que até agora, na experiência,
não se encontrou nenhum. Considerando estes três tipos de
representação “sem objeto” nós vamos examinar os argumentos
usados para a existência de tais representações.
1. No que concerne à representação designada por “nada”,
parece haver um erro que se reproduz há séculos através de todas
as investigações lógicas e dialéticas. Não pouco tem-se refletido
sobre o  , o non-ens e o nihil; estes são os diferentes tipos de
“nada” que se acreditou dever distinguir, e Kant estabeleceu ainda
um quadro sinótico dos quatro tipos do nada. Entre eles se
1 Bolzano, op. Cit., § 67.
2 Kerry, op. Cit., X. Jahrg., pp. 428, 444.
3 Höfler, op. Cit., §§ 6, 17, 4.
291
encontra também o “nada enquanto conceito vazio sem objeto”.1
Agora, parece questionável se a palavra “nada” é uma
expressão categoremática, quer dizer, se por ela designa-se em
geral uma representação como, por exemplo, pelas palavras pai,
juízo, folhagem. Em geral, a significação de “nihil” é identificada
com a de “non-ens”, e hoje pensa-se também que “nada” é
simplesmente um substituto da expressão “não-algo”. Mas, se é
assim, então parece necessário levantar a questão acerca do que
significam propriamente expressões como “non-ens” e “nãoalgo”.
O que foi denominado pelos escolásticos de infinitiza-ção
(Infinitation), quer dizer, a união de uma expressão categoremática com non, não, produz em geral uma expressão nova
com significação bem determinada. Uma representação torna-se
dividida de maneira dicotômica por uma expressão composta pela
união com “não”.
Porém, não é a representação cujo nome é precedido pela
partícula negativa que é dividida dicotomicamente. Quando se diz
“não-gregos”, não são os gregos que são assim divididos naqueles
que são gregos e naqueles que não o são. O que é dividido é um
conceito de ordem superior, por exemplo, homens. Acontece o
mesmo nas infinitizações tais quais não-fumantes, pela qual os
viajantes são divididos naqueles que fumam e naqueles que não
fumam. Apenas o desconhecimento dessa força da infinitização,
que produz como efeito a dicotomia de uma representação de
ordem superior, pode ter como consequência a curiosa maneira de
ver segundo a qual por “não-homem”, sem considerar em relação
a uma representação de ordem superior comum aos homens e aos
não-homens, deveria compreender-se sem exceção, de maneira
geral, tudo o que precisamente não é homem, logo, anjo tanto
quanto casa, paixão, estocada de trompete. Mas, uma tal concepção do Ôoa ¢Òristo não pode mais ser hoje defendida
seriamente.
1 Kant, Crítica da Razão Pura, ed. Kehrbach, §, p. 259.
292
Agora, se à infinitização está associado um efeito dicotomizador, relativamente a uma representação de ordem superior,
então, é claro que expressões como não-gregos, não-fumantes, e
outras, tomadas no sentido considerado, longe de serem sem
significação, devem ser designadas com pleno direito como
categoremáticas. A infinitização não suprime então, em si e por si,
a natureza categoremática de uma expressão. Porém, vê-se que
este efeito dicotomizador da infinitização está associado a uma
condição. Em relação à representação significada pelo nome
infinitizado deve haver uma outra que está numa ordem superior.
Se não houver nenhuma, o nome infinitizado torna-se sem
significação. Claro é que com “algo” uma representação é
designada à qual nenhuma outra é superordenada. Pois, se em
relação a algo, alguma coisa estivesse numa ordem superior,
então esse superordenado seria precisamente também algo; seria
um e o mesmo que estaria simultaneamente em face de outro em
posição superior e colateral. Mas, a infinitização do “algo”
pressupõe um termo superordenado ao “algo”, logo alguma coisa
absurda; ela não é possível no mesmo sentido que, por exemplo, a
infinitização de nomes como Gregos, etc.. Já Avicena havia
chamado a atenção para este fato e pelas mesmas razões aqui
reproduzidas qualificado como inadmissível as infinitizações
como non-res, non-aliquid, non-ens.1 E quando se considera o
papel que a palavra “nada” exerce na linguagem, percebe-se que
esta ex-pressão é efetivamente sincategoremática e não um nome.
É uma parte constitutiva das proposições negativas. Nada é eterno, significa: não existe nenhuma coisa eterna; eu vejo nada,
significa: não existe nenhuma coisa visível para mim, etc.
Se os desdobramentos precedentes são justos, então o
argumento retirado da expressão “nada” para a existência de
representações sem objeto se dilui, uma vez que a expressão
“nada” não significa precisamente nenhuma representação.
Somente é de se admirar que a natureza sincategoremática desta
1 Cf. Prantl, Geschichte der Logik im Abendlande, II. Bd., S. 356.
293
expressão tenha escapado a um pesquisador como Bolzano, visto
que ele chegou a reconhecer a natureza sincategoremática da
palavra “nenhum”. Vê-se, diz ele, seguramente que a
representação “nenhum homem” contém certamente a
representação Homem e Não, mas de todo modo não de tal
maneira que o Não se relacionaria à representação Homem e
negaria esta; o Não se relaciona ao predicado que aparece a seguir
na frase.1 E, numa outra direção, Bolzano chega a discutir a
pressuposição mencionada sob a qual uma infinitização é
admissível, sem entretanto tirar as consequências para a
infinitização do algo.2
2. e 3. Um segundo grupo de representações por assim
dizer sem objeto é formado pelas representações cujo conteúdo
contém reunidas marcas distintivas incompatíveis. Uma
representação deste gênero é, por exemplo, a de um quadrado
com ângulos oblíquos. Entretanto, uma consideração mais atenta
do estado de coisas ensina que aqueles que sustentam que
nenhum objeto cai sob esta representação tornam-se culpados de
uma confusão. Esta confusão torna-se fácil de descobrir quando
se considera as três funções que cabem aos nomes. Pois, as três
funções mencionadas ocorrem todas aqui também: aquela do
fornecimento de informação, a da significação e a da nomeação.
Quem enuncia a expressão: quadrado de ângulos oblíquos, dá a
informação de que nele ocorre um representar. O conteúdo
correlato desse ato de representação constitui a significação do
nome. Esse nome, todavia, não significa apenas qualquer coisa,
mas ele nomeia algo, a saber, algo que reúne em si as
propriedades contraditórias umas com as outras, e cuja existência
se nega prontamente quando se é levado a um juízo sobre o que é
nomeado. Mas, pelo nome algo é nomeado, sem dúvida alguma,
mesmo se ele não existe. E este nomeado é distinto do conteúdo
de representação; porque, primeiro, este existe, aquele não; e,
segundo, nós atribuímos ao nomeado propriedades que se
1 Bolzano, op. Cit., §89, nota 8.
2 Ibid., § 103, nota.
294
contradizem umas com as outras, as quais porém não cabem ao
conteúdo de representação. Pois, se este contivesse propriedades
contraditórias umas com as outras, então, ele não existiria; mas
ele existe. Não é ao conteúdo de representação que nós
atribuímos a oblicidade dos ângulos e ao mesmo tempo o serquadrado; mas ao que é nomeado pelo nome, quadrado de
ângulos oblíquos, que é o suporte, certamente não existente, mas
representado, destas propriedades. E obviamente o quadrado de
ângulos oblíquos não é um representado no sentido em que o
conteúdo de representação é um representado; pois o conteúdo
existe; o quadrado de ângulos oblíquos é antes um representado
no sentido de objeto de representação, que, nesse caso, deve ser
rejeitado, mas que por isso não é menos representado enquanto
objeto. Pois, apenas enquanto objeto da representação o quadrado
de ângulos oblíquos pode ser rejeitado; o que é rejeitado é o que é
nomeado pelo nome: quadrado oblíquo; enquanto conteúdo da
representação, o quadrado de ângulos oblíquos não pode ser
rejeitado; o conteúdo psíquico que constitui a significação do
nome existe no sentido mais verdadeiro dessa palavra.
A confusão feita pelos defensores das representações sem
objeto consiste em que eles tomaram a não existência de um
objeto de representação pelo seu não ser representado. Contudo,
para cada representação um objeto é representado, exista ele ou
não, do mesmo modo que cada nome nomeia um objeto a
despeito de se ele existe ou não. Embora seja correto sustentar
que os objetos de certas representações não existem, fala-se
frequentemente, entretanto, quando se sustenta que sob tais
representações não cai nenhum objeto, que tais representações
não têm objeto, que elas são representações sem objeto.
Contra tal desdobramento pode-se levantar uma objeção
muito forte. Por meio de uma concepção desse tipo, pode-se
dizer, o limite entre existência e não-existência é apagado. O
objeto de uma representação, em cujo conteúdo marcas distintivas
contraditórias são representadas, não existe; entretanto, sustenta295
se que ele é representado; logo, ele existe, enquanto objeto
representado.
Quem argumenta assim esquece que se algo “existe”
(existiert), enquanto representado no sentido de objeto de representação, esta existência não é nenhuma verdadeira existência. Por meio do adjetivo: enquanto objeto de representação, a
significação da expressão existência é modificada; algo existente
enquanto objeto de representação, em verdade, não existe, mas é
somente representado. À existência efetiva de um objeto, na
medida em que ela forma o conteúdo de um juízo de
reconhecimento, se opõe a existência fenomenal, intencional,
desse objeto;1 ela consiste somente e unicamente no serrepresentado. Longe de apagar os limites entre existência e nãoexistência, os desdobramentos precedentes, sobre o objeto das
representações ditas “sem objeto”, contribuem antes para traçar
este limite de maneira mais clara possível. Pois, agora nós
sabemos que se deve evitar confundir a existência de um objeto
com o seu ser-representado. Este implica e funda precisamente
tão pouco a existência do objeto representado quanto o sernomeado de um objeto, por pressuposição ou consequência, a sua
existência. A escolástica reconheceu a singularidade dos objetos
representados, mas que não existem; e é dela que provém a
expressão segundo a qual estes objetos teriam uma existência
somente objetiva (objektiv), intencional, pela qual se tinha
consciência de não designar com esta expressão nenhuma
existência verdadeira. Com a exceção de que isto valia apenas
para objetos possíveis, livres de contradição interna, e que se
deixava os objetos impossíveis de fora do jogo. Todavia, não é
compreensível porque o que é válido para aqueles não deva ser
aplicado também a estes. Quando se representa um objeto não
existente, nem sempre se observa no primeiro golpe de vista se o
objeto é afetado ou não por determinações que se contradizem
umas com as outras. É possível mesmo que as determinações
1 Cf. Brentano, op. cit., Livro II, cap. I, § 7.
296
desses objetos sejam tais que pareçam unificáveis umas com as
outras e que apenas pelas consequências resultantes elas se
revelem incompatíveis. Nesse caso, a representação teria um
objeto até que essas contradições não fossem observadas; e então,
num piscar de olhos, quando aquele que se representa as percebe,
a representação cessaria de ter um objeto. Em que então essas
contradições existiriam? No conteúdo de representação?
Certamente não, pois as determinações contraditórias são
representadas nela, mas a ela não se aplicam; não resta, portanto,
outra coisa senão o fato dessas determinações serem
representadas enquanto fixadas no objeto; e é por isso,
seguramente, que o objeto mesmo deve ser representado.
A diferença entre as representações com objetos possíveis, e aquelas com objetos impossíveis, reside em que aquele
que representa no primeiro caso, a saber, quando representa o
possível, terá, grosseiramente, incomparavelmente menos ocasiões de fazer sobre esse objeto de representação, intrínsecamente isento de contradições, um juízo de reconhecimento ou de
rejeição, que no segundo caso, em que se representa um objeto
impossível, sem que a impossibilidade do mesmo lhe escape. No
segundo caso, um juízo de rejeição se estabelecerá
espontaneamente, o qual, para ser feito, não deverá provocar
nenhuma forte tensão do lado daquele que representa o objeto
impossível. Mas, mesmo se se está inclinado a recusar o objeto, e
se, seguindo esta inclinação, faz-se um juízo: Este objeto não
existe, deve-se precisamente por isso, para poder fazer o juízo,
representar-se o objeto.
A teoria das representações verdadeiras e falsas, tal como
se encontra ainda em Descartes e seus sucessores, resta
incompreensível sem a pressuposição de que corresponde a cada
representação, sem exceção, um objeto. Cada representação, diz
Descartes, representa algo igualmente enquanto objeto; ora, se
este objeto existe, a representação é materialmente verdadeira; se
297
ele não existe, a representação é materialmente falsa.1
Portanto, claramente a maneira de ver de Descartes é que,
exista ou não o objeto de uma representação, ele aparece sempre
dado (gegeben) na representação; a questão é somente se à esta
existência intencional do objeto na representação corresponde
uma existência verdadeira; e, como as representações oferecem
àquele que representa tanto os objetos verdadeiramente existentes
quanto os objetos existentes somente de modo intencional, de
modo igual e sem nenhuma diferença, elas ocasionam muito
seguidamente juízos falsos, pois pode-se ser facilmente inclinado
a ter por verdadeiramente existente objetos existentes de modo
meramente intencional, tanto quanto os objetos existentes
verdadeiramente.
Nós encontramos, portanto, nos desdobramentos de
Descartes, uma confirmação da maneira de ver avançada aqui,
segundo a qual a cada representação corresponde um objeto. Se
se conseguir mostrar que, mesmo para as representações em cujo
conteúdo são representadas determinações contraditórias, dão-se
objetos, isto constituiria a prova correspondente para o terceiro
grupo de representações “sem objeto”, objeto esse que, embora
não seja impossível, a existência de fato não é dada na
experiência. Mesmo aí deve-se manter firmemente que para cada
representação um objeto é representado, quer ele exista ou não;
mesmo as representações cujos objetos não podem existir não são
exceção a esta regra.
À luz desse pertencimento necessário de um objeto a cada
ato de representação e a cada conteúdo, o que se segue
claramente é a natureza do tipo próprio de relação que mantém
com seu objeto o ato psíquico que nós denominamos representar.
Com efeito, o que distingue precisamente a relação com o objeto,
própria à classe das representações, daquela própria aos juízos, é
que se trata, nesses últimos, da existência ou da não-existência de
1 Descartes, Meditationes de prima philosophia, Med. III: Nullae ideae nisi tanquam rerum
esse possunt. — Est tamen profecta quaedam alia falsitas materialis in ideis, cum non rem
tamquam rem repraesentant.
298
um objeto, enquanto que para aquelas ele é simplesmente
representado pela primeira classe de fenômenos psíquicos, sem
referência ao fato de ele existir ou não.
Que sejam propostas aqui relações de um tipo tal que um
de seus membros existe e o outro não, portanto relações entre
existentes e não-existentes, não deve surpreender quando se pensa
que a questão, de saber se os membros de uma relação existem
(existieren) ou não, não entra na conta para a relação
“subsistente” (bestehende) entre eles, tal como demonstra Höfler.1
Salvo que isso é misturado, no pesquisador citado, com o erro
consistente em confundir o conteúdo e o objeto da representação.
Ele diz: um juízo que afirma uma relação não supõe uma
existência “efetiva” (“wirkliches” Dasein) dos membros da
relação; é suficiente representá-los e é então sobre esses
conteúdos de representação que se faz o juízo. Isto não parece
justo na medida em que os conteúdos de representação, de um
lado, existem, mas, de outro lado, não são aquilo entre o que tem
lugar a relação afirmada no juízo. Quem diz que o número quatro
é maior que o número três não fala de uma relação entre o
conteúdo da representação de três e o conteúdo da representação
de quatro. Pois entre os conteúdos de representação não há
relações de grandeza. A relação tem lugar antes entre o “número
três” e o “número quatro”, ambos os dois tomados enquanto
objetos de representação, sem referência a eles existirem ou não,
dado apenas que eles sejam representados pelas representações
correspondentes.
Se é assim, então surge uma outra dificuldade que já foi
apontada por Höfler. Os juízos de relação que têm por conteúdo a
existência de uma relação entre objetos que não existem parecem,
com efeito, reconhecer os objetos mesmos; e, a partir do que foi
dito mais acima sobre a relação de reconhecimento das partes
com o reconhecimento do todo no qual estas partes estão
contidas, parece que pelo reconhecimento de uma relação, cada
1 Op. cit., § 45, II.
299
membro dessa relação deve ser também reconhecido. Esta
observação conduz a um resultado que entra em contradição com
o fato de se sustentar que, num juízo de relação, não é levado em
conta a existência dos membros da relação. Esta dificuldade
resolve-se, entretanto, pela seguinte consideração.
A partir da teoria do juízo idiogenético, isto é, aquela que
coloca a essência do juízo no reconhecimento ou rejeição de um
objeto,1 há apenas juízos afirmativos particulares e negativos
apenas gerais, enquanto que aqueles que se denominam juízos
afirmativos gerais e negativos particulares podem ser reduzido
àquelas duas classes.2 Agora, no que concerne aos “juízos de
relação” negativos gerais, a dificuldade aludida simplesmente não
existe propriamente para eles. Um tal juízo, como por exemplo:
Não há círculos com raios desiguais (expresso categoricamente:
todos os raios de um círculo são iguais uns aos outros), não
contém nada sobre a existência de raios; ele rejeita somente a
desigualdade dos raios de um círculo, sem enunciar algo sobre a
existência mesma desses raios. E no que concerne aos juízos
afirmativos particulares, nos quais algo é enunciado sobre uma
relação, a dificuldade mencionada desaparece se é estabelecido
firmemente o sujeito verdadeiro de tais frases. Na frase
“Posseidon é o deus do mar”, parece que pelo reconhecimento da
relação que Posseidon mantém com o mar, Posseidon é ele
mesmo reconhecido de uma maneira implícita. Entretanto, isto é
apenas uma aparência; pois, na medida em que o nome próprio,
segundo a maneira de se expressar dos escolásticos, nesse caso
supõe (supponiert), o nomeado enquanto nomeado, o sujeito da
proposição não é “Posseidon”, mas “o que é nomeado Posseidon”.3 O que é implicitamente reconhecido, portanto, é um
nomeado enquanto tal, um objeto de representação, na medida em
que ele é nomeado, e não o objeto de representação ele mesmo.
1 Hillebrand, op. cit., § 16.
2 Brentano, op. cit. , Livro II, Cap. 7, § 7.
3 Cf. Marty, Sobre as proposições sem sujeito etc., Vierteljahrsschr. f. wissensch. Philos., VIII
Jahrg. p. 82, e Hillebrand, op. cit., § 68, nota.
300
Dessa maneira a relação entre o ato de representação e o
objeto representado por ele deve revelar-se como independente da
questão se este objeto existe ou não. Com isso cai o obstáculo que
se opunha ao fato de afirmar que a cada representação
corresponde um objeto, quer ele exista ou não. A expressão
“representação sem objeto” é do tipo que contém uma
contradição interna. Pois, não há representação que não
represente algo enquanto objeto; não pode haver semelhante
representação. Há, ao contrário, numerosas representações cujo
objeto não existe, e isto ou bem porque este objeto reúne
determinações contraditórias entre si, logo, que não pode existir,
ou bem porque simplesmente factualmente não existe tal objeto.
Mas, mesmo nesses casos um objeto é representado, de tal
maneira que se pode bem falar em representações cujos objetos
não existem, mas não em representações que seriam sem objetos,
às quais não haveria objeto correspondente.4
§ 6. A diferença do conteúdo e do objeto de
representação
Que conteúdo e objeto de uma representação são diferentes um do outro, isto não mais deverá ser contestado no caso
em que o objeto de representação existe. Quem diz: O sol existe,
claramente indica não o conteúdo de sua representação do sol,
mas algo toto genere diferente desse conteúdo. Não é assim tão
simples para as representações cujo objeto não existe. Alguém
poderia facilmente ser da opinião de que nesses casos a diferença
4 Bolzano vê-se ele mesmo obrigado a falar, num parágrafo particular, da maneira que as
relações estabelecidas para as representações que têm objetividade (por exemplo, aquela
entre representações intersubstituíveis, a de ordem superior e inferior) podem ser
estendidas para as representações “sem objeto” (op. cit., § 108). Este parágrafo, por seu
objetivo e por seu desenvolvimento, é uma confirmação da proposição segundo a qual
propriamente não há representações sem objeto. — Em Kerry também nós encontramos
uma proposição que confirma — talvez sem que isso seja o desejo do autor – nossa
maneira de ver. Assim nós lemos: já o enunciado “Não há triângulo reto com lados iguais,
e com ângulos desiguais” mostra que se pode pensar de uma maneira qualquer
(naturalmente não intuitivamente) um objeto cuja existência é negada. (op. cit., IX, Jahrg.,
p. 472).
301
entre o conteúdo e o objeto não consiste em nada real (realer),
mas meramente lógica (logischer); conteúdo e objeto são nesses
casos, em verdade, o mesmo; apenas o dúplice ponto de vista sob
os quais esse mesmo pode ser considerado o deixa aparecer ora
como conteúdo ora como objeto.
Mas não é esse o caso. Ao contrário, uma consideração
rápida ensina que entre conteúdo e objeto de uma representação,
mesmo no caso em que o objeto não existe, deve subsistir as
mesmas diferenças que aquelas que podem se mostrar no
primeiro caso, aquele em que o objeto existe. Nós vamos
enumerar as mais importantes dessas diferenças e tentar mostrar,
para cada uma em particular, como ela vale quando os objetos
não existem assim como quando eles existem.
1. O que nos serviu já tão seguidamente para fazer valer a
diferença em questão foi a remissão ao tipo inteiramente diferente
de relação na qual estão o conteúdo e o objeto com o juízo
afirmativo ou negativo. Se, com efeito, conteúdo e objeto fossem
diferentes um do outro de maneira não real, mas simplesmente
lógica, não seria possível que eventualmente o conteúdo existisse
enquanto o objeto não. Mas, este é seguidamente o caso. Quem
faz um juízo verdadeiro, que nega um objeto, deve, entretanto,
representar-se o objeto por ele julgado como rejeitável. O objeto é
representado enquanto objeto por um conteúdo correspondente.
Tanto quanto esse seja o caso, o conteúdo existe, mas o objeto
não existe, pois ele é o que é rejeitado no juízo negativo
verdadeiro. Se conteúdo e objeto fossem verdadeiramente a
mesma coisa, não seria então possível que no mesmo instante um
existisse e o outro não. Dessa relação do juízo verdadeiro de
rejeição com o conteúdo e o objeto da representação, que se
encontra no fundamento do juízo, nós tiramos o argumento mais
eficaz em favor da diferença real entre os dois.
2. Kerry menciona outro argumento. A diferença, diz ele,
entre o conceito de um número e o número mesmo é tornada
evidente já pelo fato de o número possuir propriedades e estar
302
inserido em relações que são completamente estranhas ao seu
conceito.1 Kerry compreende por conceito o que nós
denominamos conteúdo da representação; o número mesmo é o
objeto. Uma montanha de ouro, por exemplo, tem, entre outras, a
propriedade de ser espacialmente estendida, de se compor de
ouro, de ser maior ou menor que outras montanhas. Estas
propriedades e relações de grandeza com outras montanhas não se
aplicam obviamente ao conteúdo da representação de uma
montanha de ouro. Pois, este não é nem espacialmente estendido
nem de ouro e não é possível também que sobre ele sejam
aplicados enunciados sobre relações de grandeza. E mesmo
quando a montanha de ouro não existe, se lhe atribuem, na
medida em que ela é objeto de representação, estas propriedades,
e se a coloca em relação com outros objetos de representação,
talvez tampouco existentes quanto ela mesma. E isto também vale
para os objetos aos quais se atribui determinações contraditórias
entre si. Não é ao conteúdo da representação que estas
determinações são atribuídas; o conteúdo da representação de um
quadrado com ângulos oblíquos não tem ângulos oblíquos e nem
a forma quadrada; mas é o quadrado com ângulos oblíquos
mesmo que é o objeto desta representação. E então resulta disso,
sob este ponto de vista, a diferença entre conteúdo de
representação e objeto de representação.
Liebmann, que se esforça por manter o ato e o conteúdo
de uma representação rigorosamente separados um do outro como
algo inteiramente diferente, esquece de ver nisso a diferença entre
o conteúdo e o objeto. Ele diz: especialmente o conteúdo de
nossas representações visuais e táteis possui sempre, ao mesmo
tempo que a extensão espacial, certos predicados geométricos
como a posição, a figura, etc.. Mas o representar este conteúdo se
mostra completamente inacessível a estes predicados geométricos
que possuem a luminosidade, a força de um som, a temperatura e
outras grandezas do gênero da intensidade.2 Aqui Liebmann
1 Kerry, op. cit., X. Jahrg., p. 428.
2 Liebmann, Zur Analyse der Wirklichkeit, Strasburg, 1876, p. 152.
303
denomina “conteúdo” o que nós chamamos “objeto” de
representação; visto que este último possui os predicados
geométricos de que fala Liebmann. Mas, quando Liebmann
compreende por conteúdo a mesma coisa que nós designamos
como objeto, os seus desdobramentos são corretos, mas lhes falta
o elo de ligação (Bindglied) entre o ato de representação e o
objeto de representação que faz esse ato ligar-se precisamente a
este objeto determinado e a nenhum outro. E este elo de ligação,
o conteúdo de representação no sentido que nós supomos, não é
um e o mesmo que o ato. Sem dúvida ele forma, conjugado com
este, uma realidade psíquica única; mas, enquanto o ato de
representação é algo real, a realidade sempre falta ao conteúdo de
representação; ao objeto, a realidade tanto pode advir quanto não.
Também nes-sa diferente relação para com a propriedade de ser
real mostra-se a diferença entre o conteúdo e objeto de uma
representação.
3. Uma outra prova em favor da diferença real, e não
simplesmente lógica, entre conteúdo e objeto de representação,
nos é dada por aquilo que se denomina representações intersubstituíveis (Wechselvorstellungen). Por estas se compreende,
conforme a definição habitual, representações que têm a mesma
extensão, mas um conteúdo diferente. Por exemplo, são
representações desse tipo o lugar em que se situava a cidade
romana Juvavum e o lugar de nascimento de Mozart. Os dois
nomes significam (bedeuten) algo diferente; mas eles nomeiam
(nennen) o mesmo. Agora, como nós vimos, visto que a
significação de um nome coincide com o conteúdo da
representação designada por ele, e que aquilo que é nomeado pelo
nome é o objeto da representação, então, as representações
intersubstituíveis podem também ser definidas como
representações nas quais o conteúdo difere, mas pelas quais é o
mesmo objeto que é representado. Para isso, porém, a diferença
entre conteúdo e objeto já está dada. Pois, pensa-se em algo
inteiramente diferente com o lugar em que se situava a cidade
304
romana Juvavum e com o lugar de nascimento de Mozart. Essas
duas representações reúnem partes constitutivas muito diferentes.
Na primeira aparecem como partes constitutivas a representação
de romanos, de um lugar antigo, de uma cidade fortificada; na
segunda representação aparecem como partes constitutivas a
representação de um compositor, de uma relação que o mesmo
mantém com sua cidade natal, enquanto que a relação com uma
colônia antiga que se encontrava sobre este lugar e estava
representada pela primeira representação não aparece. A despeito
dessas enormes diferenças nas partes constitutivas dos conteúdos
de representação nomeados, os dois conteúdos se relacionam
entretanto a um único e mesmo objeto. As mesmas características
que cabem ao lugar de nasci-mento de Mozart aplicam-se
também ao lugar que foi a loca-lização da cidade romana
Juvavum; este é idêntico ao lugar de nascimento de Mozart; o
objeto das representações é o mesmo; o que distingue as duas
representações é o seu conteúdo dife-rente.
Fácil é aplicar o que foi dito às representações cujo objeto
não existe. Um círculo no sentido rigorosamente geométrico não
existe em nenhum lugar. Contudo, pode-se representá-lo de
maneiras muito diferentes; seja como linha de uma curva
constante, seja como formação que é expressa pela equação (x –
a)2 + (y – b)2 = r2, ou ainda enquanto linha cujos pontos estão
todos à mesma distância de um ponto determinado. Todas essas
representações diferentes se referem ao mesmo. O mesmo a que
elas se referem é o seu objeto; aquilo em que elas diferem entre
si, é o seu conteúdo.
A aplicação do argumento, derivado das representações
intersubstituíveis, em favor da diferença real do conteúdo e do
objeto das representações cujo objeto contém determinações
contraditórias entre si, não parece isento de dificuldades. Se se
representa um quadrado com ângulos oblíquos e um quadrado
com diagonais desiguais, se tem, como é o caso em todas as
representações intersubstituíveis, duas representações com
305
conteúdo em parte semelhante e em parte diferente. Mas, quanto
a saber se esses conteúdos diferentes se referem ao mesmo objeto
é difícil de estabelecer, pois todas as outras representações do
objeto, fora as representações intersubstituíveis em questão, estão
ausentes; e, por conseguinte, o que Kerry designa como a
“tomada de conhecimento” do objeto de representação, não é
possível.1 A comparação das propriedades do objeto da primeira
representação intersubstituível com as propriedades do objeto da
outra representação não pode ser mais estabelecida, pois toda
conexão lógica entre as marcas distintivas foi suprimida. Há,
porém, um substituto para este modo de constatar a identidade do
objeto representado por duas representações intersubstituíveis que
pode ser da seguinte maneira:
Pode-se formar a representação de um objeto, dotado de
determinações contraditórias entre si, por meio do conteúdo do
que é representado para além de um único par de determinações
incompatíveis. A representação de uma figura quadrada, com
ângulos oblíquos, e diagonais desiguais, por exemplo, é desse
tipo. Aí entram em conflito umas com as outras sob a forma de
pares tanto as determinações quadrado e obliquangular quanto as
determinações quadrado e diagonais desiguais. Por meio da
representação, que tem como conteúdo esses dois pares, é
representado um objeto único e não existente. Agora, esta
representação pode, entretanto, se repartir em duas, quando se
representa a cada vez apenas um dos dois pares de propriedades
que se contradizem entre si. Pode-se representar na primeira vez a
figura quadrada, obliquangular, com diagonais desiguais,
representando-se somente as determinações quadrado e
obliquangular; e se pode outra vez representar-se o mesmo objeto
que é tido, por pressuposição, ser quadrado e obliquangular,
representando-se somente o par de propriedades que é designado
pelas palavras: ser um quadrado e ter diagonais desiguais.
Conforme a pressuposição, representa-se pelas duas
1 Kerry, op.cit., XV. Jahrg., p. 160.
306
determinações o mesmo objeto; mas, as duas representações são,
no seu conteúdo, iguais somente em parte, portanto
representações intersubstituíveis autênticas. Desta maneira o
argumento retirado das representações intersubstituíveis em favor
da diferença entre conteúdo de representação e objeto de
representação pode ser também empregado para as representações
cujos objetos não podem existir porque as determinações
particulares deles são incompatíveis entre si.
4. Kerry serve-se ainda de outro argumento para mostrar a
não identidade de conteúdo e objeto. A representação geral,
enquanto representação sob a qual cai uma pluralidade de
objetos, tem, porém, efetivamente apenas um único conteúdo, e
forneceria por isso a prova que conteúdo e objeto deveriam ser
distinguidos rigorosamente.1 Este argumento apresenta-se por
assim dizer como o complemento do anterior, no qual esta mesma
diferença foi demonstrada a partir do pertencimento de muitos
conteúdos a um objeto único. Mas, que sob representações gerais
está efetivamente um número plural de objetos parece ser um erro
— por mais estranho que isso possa soar — e, por isso, o
argumento de Kerry, fundado nessa situação, parece caducar.
Entretanto, mesmo sem esse argumento as razões que
foram mencionadas parecem mostrar suficientemente que se deve
distinguir um do outro o conteúdo e o objeto de uma
representação, mesmo quando este objeto deva ser negado.
§ 7. Descrição do objeto de representação.
Quando nós designamos o que é representado por uma
representação como seu objeto, nós damos a esta palavra um
sentido que Kant já lhe atribuiu em parte. “O conceito mais
elevado”, lemos em seu texto, “de onde nós costumamos começar
uma filosofia transcendental, é a divisão entre o possível e o
impossível. Mas, visto que toda divisão pressupõe um conceito
1 Kerry, op. cit., X. Jahrg., p. 432.
307
partilhado, deve ser indicado um ainda mais elevado; e este é o
conceito de um objeto qualquer (tomado problematicamente, e
sem decidir se ele é algo ou nada)”. 1 Apenas sob um aspecto nós
cremos dever modificar o sentido que Kant dá à palavra objeto.
Segundo Kant, o objeto pode ser “algo” ou “nada”. Em oposição
a Kant, nós já estabelecemos (§ 5) que “nada” deve ser concebido
não tanto como nome de objetos de uma representação possível,
mas como expressão sincategoremática: “nada” significa o limite
do representar, ali onde este cessa de ser representar. Às razões já
indicadas em favor dessa concepção do “nada”, o que segue pode
ser ainda adicionado. Nós designamos como objeto o que é
representado por uma representação, julgado (beurteilt) por um
juízo, desejado ou detestado por uma atividade afetiva. Se “nada”
fosse um objeto de representação, ele deveria então poder
também, reconhecendo-se ou rejeitando-se, ser julgado, desejado
ou detestado. Ora, isto não é nunca o caso. Não se pode dizer
jamais: “nada” existe, nem “nada” não existe; não se pode
também nem querer “nada” nem o detestar. Ali, portanto, onde se
utiliza tais giros de linguagem, ou análogos, a expressão “nada”
ou bem revela visivelmente sua natureza sincategoremática —
como quando o solipsista diz: “não há nada = não há nenhuma
coisa de real ao redor do sujeito que se representa — ou bem ela
ocorre como figura de um outro nome, como quando o budista
diz: o que se segue à morte é o estado do nada.
Portanto, aquele que diz que representa o “nada”, simplesmente não representa; aquele que representa, representa algo,
um objeto.
A Kant se associam, no uso da palavra “objeto”, Bolzano 2
e Erdmann3; ambos usam “nada” como um tipo de objeto. Kerry
o faz também4; entretanto, o uso kantiano da palavra “objeto” não
1 Kant, Crítica da Razão Pura, ed. Kehrbach, §, p. 259.
2 Bolzano, op. cit., § 49, 1.
3 Erdmann, Zur Theorie der Apperception. Vierteljahrschr. f. wissensch. Philos., X. Jahrg.,
pp. 313ss, e Logik, t.1, §§ 8-34, especif. §15.
4 Op. cit., Jarhg. XIII, p. 122, nota.
308
lhe parece, numa outra direção, livre de objeção. Ele diz que Kant
não emprega sempre a palavra no mesmo sentido, pois para ele o
objeto é tanto “o que afeta o espírito”, portanto real, quanto um
objeto conceitual1. Sem considerar se a objeção de Kerry contra
Kant é justificada, nós vamos esclarecer nosso ponto de vista
sobre esta questão.
O objeto das representações, dos juízos e dos sentimentos, bem como das volições, é qualquer coisa de diferente da
coisa em si, no caso onde por esta entenda-se aquela causa nãoconhecida que afeta nossos sentidos. Nessa perspectiva, a
significação da palavra objeto coincide com a da expressão
“fenômeno” ou “aparência”, cuja causa pode ser ou bem, segundo
Berkeley, Deus, ou bem, segundo os idealistas radicais, nosso
próprio espírito, ou bem, segundo os “real-idealistas” moderados,
as coisas em si concernidas. O que foi dito até aqui sobre os
objetos de representação e que será posto ainda como resultado
no curso da investigação sobre eles, pretende ser válido, qualquer
que seja o ponto de vista que se escolha entre esses que acabamos
de mencionar. Para cada representação, algo é representado, quer
exista ou não, quer se apresente como independente de nós e se
imponha à nossa percepção, quer seja formado por nós mesmos
na imaginação; de qualquer maneira que seja, o objeto está, na
medida em que nós nos o representamos, em oposição a nós e à
nossa atividade de representação.
Quanto a saber se este objeto é algo real ou não-real,
restará difícil de decidir, enquanto não se esteja de acordo sobre a
significação que se deve associar a estas expressões. A existência
de um objeto não tem nada a ver com a sua realidade. Sem
considerar se um objeto existe ou não, diz-se dele que ele é
alguma coisa de real ou não — exatamente como se pode falar da
simplicidade ou da composicionalidade de um objeto, sem se
perguntar se ele existe ou não. Agora, em que consiste a realidade
de um objeto, isto não se pode descrever com palavras; mas, hoje
1 Ibid., Jahrg. X., p. 464. nota.
309
a maioria concorda em que objetos tais como som estridente,
árvore, tristeza, movimento, são algo real, enquanto objetos tais
como falta, ausência, possibilidade, etc., são contados entre os
não reais1. Agora, do mesmo modo que um objeto real pode bem
existir uma vez e outra não, alguma coisa não-real pode tanto
existir quanto não. Juízos tais como: Existe uma falta de dinheiro,
ou: Não existe a possibilidade que isto ou aquilo aconteça, são
verdadeiros ou falsos inteiramente independente da não-realidade
do objeto reconhecido ou rejeitado por eles.
À objeção de Kerry levantada contra Kant, nós replicaremos que a palavra objeto, tomada no sentido estabelecido aqui,
tanto pode falar de um objeto real quanto de um objeto conceitual
— objeto não-real —, pois os objetos, da mesma maneira que
eles podem ser repartidos em existentes e não-existentes, são, por
uma parte, algo real e, por outra, algo não-real.
Há ainda uma outra expressão em relação a qual a
significação da palavra “objeto” deve ser delimitada. Esta palavra não deverá ser confundida com “assunto” (“Sachen”) ou
“coisa” (“Dingen”). Esses últimos são apenas grupos de objetos
dentre os quais há muitos que não são ainda nem um assunto nem
uma coisa. Aos objetos aplicam-se, na sua totalidade, as
categorias do representável, enquanto que as coisas ou assuntos
designam apenas uma dessas categorias. Uma queda mortal não é
uma coisa, mas um objeto, como por exemplo também:
experimento, morte, ataque de epilepsia, tranquilidade da alma,
seno (na trigonometria), etc.
Para explicar o significado da palavra ‘objeto’ ainda mais,
pode-se também — com nós já o fizemos — indicar a designação
na linguagem e afirmar que tudo aquilo que é designado é um
objeto. Tal designação usa ou nomina no sentido gramatical, ou
usa frases consistindo de nomina e outras expressões, ou,
finalmente, usa outras partes da linguagem, assumindo que elas
foram substantivadas. Pode-se, pois, dizer que tudo o que é
1 Marty, op. cit., VIII. Jahrg., p. 171 ss.
310
designado por um substantivo ou por uma expressão
substantivada é um objeto no sentido aqui adotado.
Agora, uma vez que todo objeto (Gegenstand), pode ser
objeto (Object) de uma representação, não excluído o sujeito
representador, aqueles que concebem o objeto como o summum
genus estão justificados. Tudo o que é, é um objeto de uma
possível representação; tudo o que é, é algo. E aqui, portanto, está
o ponto onde a discussão psicológica da diferença entre conteúdo
e objeto de representação adentra na metafísica.
Os objetos de representação têm sido vistos de um ponto
de vista metafísico, com efeito, até o presente momento. Ao
denominá-los onta, entia, revela-se o modo pelo qual se chegou a
eles. Contudo, que o on aristotélico, tal como o ens da filosofia
medieval, não é nada mais do que o objeto de representação,
mostra-se pelo fato de que todas as doutrinas sobre o ens, na
medida em que elas sejam corretas, valem para o objeto de
representação. Vamos nos deter aqui nas mais famosas dessas
doutrinas.
1. O objeto é algo diferente do existente; muitos objetos,
além de sua objetividade (Gegenständlichkeit), isto é, em adição
a sua propriedade de ser representado (que é o sentido real da
palavra ‘essentia’), têm ainda existência, outros não. O que existe
é um objeto (ens habens actualem existentiam), como também é
algo que meramente poderia existir (ens possibile); mesmo o que
nunca pode existir, mas que pode apenas ser pensado (ens
rationis) é um objeto; em suma, tudo o que não é nada, mas que
em algum sentido é “algo”, é um objeto. 1 De fato, a maioria dos
escolásticos mantêm que ‘aliquid’ tem o mesmo significado de
‘ens’, e isto em contraste com aqueles que concebem o primeiro
como um atributo do último.
1 Alguns, como Suarez, não aplicam o nome ens para o que meramente tem uma
“chimaerica essentia” ou “ficta”, e o aplicam apenas às “essentia realis”. Contudo, esta
restrição parece envolver uma inconsistência. Cf. Suarez, Disputationes metaphysicae II,
sect. 4.
311
2. Objeto é summum genus. Os escolásticos expressam
isto com o enunciado de que o conceito de ens não é um conceito
geral, mas um conceito transcendental, porque ele “om-mia
genera transcendit”.
3. Todo objeto de representação pode ser objeto de um
juízo e objeto de uma atividade afetiva. Este é o significado da
doutrina escolástica de que todo objeto de representação é
“verdadeiro” e “bom”. A verdade (metafísica) de um objeto não
consiste em ser julgado (logicamente) em um juízo verdadeiro;
tão pouco quanto sua “bondade” depende de se o sentimento em
relação a ele no sentido ético é bom ou não. Antes, um objeto é
chamado verdadeiro na medida em que ele é um objeto de um
juízo, e ele é chamado bom na medida em que ele relaciona-se
com uma atividade afetiva. Sem dúvida não se toma sempre de
uma maneira rigorosa, do lado dos escolásticos, esta significação
da verdade e do bem de um objeto. Quem definir a verdade
metafísica como a “conformitas rem inter et intellectum”,
pressupõem a verdade do juízo em relação ao objeto julgado. E
quando, por exemplo, Tomás de Aquino coloca a verdade de um
objeto em sua “cogniscibilitas” ou “intelligibilitas”, a remissão à
verdade do juízo está aí incluída. Pois, todo conhecimento é um
juízo verdadeiro. Entretanto, Tomás abandona esse ponto de vista
quando ele ensina: “Sicut bonum nominat id, in quod tendit
appetitus, ita ve-rum nominat id, in quod tendit intellectus”.1
Segundo esta concepção, a teoria ensinada não quer dizer nada
senão que um objeto é chamado verdadeiro na medida em que a
ele se liga um juízo, e ele é chamado bom na medida em que a ele
se liga um sentimento. E, visto que cada objeto de representação
pode ser submetido a uma atitude que julga, deseja ou detesta,
então a verdade e a bondade cabem a cada objeto de
representação, e a teoria escolástica ensinada mostra-se justa no
1 Tomás de Aquino, De veritate, p. 1, questão 16, art. 1.
312
sentido de que cada ente é tanto verum quanto bonum.
4. Um objeto é chamado verdadeiro em relação a sua
capacidade de ser julgado; ele é chamado bom em relação a sua
capacidade de ser um objeto de atividade afetiva. Pode-se
levantar questão de se o objeto tem, por analogia, um atributo que
expressa sua concebibilidade e que, por conseguinte, seria um
nome do objeto na medida em que ele é representado. Agora, a
filosofia medieval reconhecia um terceiro atributo do objeto; todo
ens, diz esta filosofia, não é apenas verum e bonum, mas também
unum. Nós devemos investigar num contexto diferente, uma vez
que esta questão surgirá naturalmente, o que esta unidade
significa para a representação de um objeto, especialmente se nós
podemos ver nela o análogo na esfera da representação para a
verdade na esfera do juízo e a bondade na esfera das atividades
afetivas.
5. Se o objeto de representação, juízo e sentimentos não é
senão o ens aristotélico-escolástico, então, a metafísica deve ser
definível como a ciência do objeto em geral, tomando-se esta
palavra no sentido aqui proposto. E isto é, de fato, o caso. Aquilo
com que as ciências particulares lidam também nada mais é senão
os objetos de nossas representações, suas mudanças, suas
propriedades, bem como as leis de acordo com as quais os objetos
afetam uns aos outros. Apenas que as ciências particulares sempre
lidam com um grupo de objetos mais ou menos delimitado, um
grupo formado pelo contexto natural ou por um determinado
objetivo. As ciências naturais, no sentido mais amplo do termo,
por exemplo, consideram as peculiaridades daqueles objetos
denominados corpos inorgânicos e orgânicos; a psicologia
investiga as propriedades e as leis características do fenômeno
psíquico, dos objetos psíquicos. A metafísica é uma ciência que
considera todos os objetos físicos, orgânicos e inorgânicos, bem
como os psíquicos, os reais e os não-reais, os existentes bem
313
como não-existentes; ela investiga aquelas leis que os objetos em
geral obedecem, e não apenas um certo grupo de objetos. O que
nós temos aqui é expresso pela venerável definição de metafísica
como a ciência do ser enquanto tal (Seienden als solchem).1
Esta retrospectiva sobre alguns pontos da teoria do ente
ensinada pelos escolásticos pode servir para caracterizar, de
maneira a mais precisa possível, o sentido associado na presente
investigação à palavra objeto. Para resumir o que foi dito até aqui,
o objeto pode ser descrito da seguinte maneira: tudo o que é
representado por uma representação, reconhecido ou rejeitado por
um juízo, desejado ou detestado por uma atividade afetiva, nós
denominamos objeto. Os objetos são reais ou não reais, eles são
possíveis ou impossíveis, eles existem ou não existem. A todos é
comum o fato de que eles podem ser ou serem objeto (Objekt)
(não o intencional!) de atos psíquicos, que sua designação
lingüística é um nome (no sentido definido acima no § 3), e que,
considerados como família, eles formam o summum genus que
encontra na linguagem sua expressão usual com o “algo”
(“Etwas”). Tudo o que é “algo” no sentido amplo do termo,
denomina-se, primeiramente por relação a um sujeito que
representa, mas depois também independente dessa relação,
“objeto” (“Gegenstand”).
§ 8 (...)
1 Cf. Brentano, Dos múltiplos sentidos do ser em Aristóteles, v.1, cap. 1, §
314
315
14.
Sobre a existência em Frege
Leila Haaparanta
L. HAAPARANTA & J. HINTIKKA (eds) Frege synthesized.
Reidel, 1986.
I. Introdução
Em sua filosofia da linguagem Gottlob Frege procura
apresentar as estruturas básicas da linguagem que supostamente
corresponderiam à estrutura do que é referido. Ele faz uma
distinção entre nomes próprios, que referem a objetos, e nomes de
funções, que referem a funções. Nomes de funções incluem
palavras-conceitos e palavras-relações, as quais estão por
conceitos e relações, respectivamente. Frege também assume que,
além de uma referência (Bedeutung), cada nome tem um sentido
(Sinn), pelo qual o nome é direcionado a sua referência.
Em sua monumental obra sobre a filosofia da linguagem de
Frege, Michael Dummett lista dez teses de Frege concernentes ao
sentido e a referência (Dummett, 1981, p152-203). Um princípio
central está ausente, contudo, e ele tem sido igualmente ignorado
pela maior parte dos outros especialistas em Frege. Trata-se da
tese de que a palavra “é” é ambígua em um certo modo. Ignacio
Angelelli chega perto de reconhecê-lo quando ele faz algumas
considerações sobre identidade e predicação, e Mathias Schirn
coloca uma ênfase especial no papel desta tese na obra de Frege,
mas a grande maioria dos especialistas tem passado por cima da
316
doutrina da ambiguidade. Frege e Russell propuseram esta tese e
fizeram dela um dos ingredientes básicos da lógica moderna. Do
mesmo modo, no Tractatus Ludwig Wittgenstein enfatizou a
ambiguidade do verbo “ser” e salientou a importância da
construção de uma linguagem que evitasse a confusão entre os
diferentes sentidos de “é”. Wittgenstein observou que a notação
conceitual de Frege e de Russell se propunha a ser uma tal
linguagem embora ela não tivesse êxito em excluir todos os erros
(TLP, 3.323-3.325). Alguns filósofos e linguistas, incluindo
Jaakko Hintikka, Charles Kahn, e Benson Mates, recentemente
têm discutido a doutrina da ambiguidade e levantaram críticas
contra ela.
As raízes da tese da ambiguidade não vão além do começo
do século dezenove. Charles Kahn (1973a, 1973b, 1985)
argumenta que no século dezenove houve uma curiosa interação
entre as visões de linguistas e filósofos no que concerne ao verbo
“ser”, particularmente em relação às noções de existência e
cópula. Linguistas e filólogos interpretaram mal o antigo uso do
verbo grego einai e basearam a sua abordagem do verbo em uma
exegese filosófica equivocada de antigas teorias do ser e, por sua
vez, os filósofos confiaram no trabalho de linguistas e filólogos
ao desenvolverem suas teorias do ser. Em 1801, Gottfried
Hermann, um filólogo alemão, propôs uma regra que atribuía
deferentes acentos aos diferentes sentidos de einai, por
conseguinte, com efeito, atribuindo a ambiguidade entre
existência e cópula ao Grego antigo (Hermann, 1801, pp84-85).
Entre os primeiros oponentes da tese da ambiguidade,
quando aplicada à filosofia grega, G. E. L. Owen (1960) apontou
que a concepção do ser de Aristóteles havia sido mal interpretada.
Michael Frede (1967), por sua parte, questionou a possibilidade
de encontrar qualquer distinção precisa entre existência e cópula
no texto de Platão (Frede, 1967, p37). R. M. Dancy (1975, 1983)
argumentou explicitamente contra os esforços para aplicar a tese
da ambiguidade ao verbo einai, especialmente ao verbo einai em
317
Aristóteles, e Jaakko Hintikka (1983, 1985) discutiu a doutrina do
ser de Aristóteles em detalhe e manteve que a tese da
ambiguidade é completamente anacrônica quando aplicada a
Aristóteles. Benson Mates (1979) criticou a tese de que Platão fez
uma distinção semântica entre o “é” de identidade e o “é” de
predicação.
De acordo com Aristóteles o domínio dos seres cai sob
diferentes categorias. O ser mesmo não é um gênero, e nenhuma
categoria singular exaure todos os seres (Met. B 3, 998b22-27,
An. Post. II 7, 92b14; cf. Owen, 1965, p77). Aristóteles assume
que ser é sempre ser ou uma substância de um certo tipo, ou uma
qualidade de um certo tipo, ou uma quantidade de um certo tipo,
etc. (An. Post. I 22, 83b13-17). Contudo, isto não significa que
Aristóteles tome “ser” como tendo um sentido completamente
diferente para diferentes tipos de sujeitos. Ao contrário, ele
argumenta:
Há muitos sentidos em que se pode dizer que uma coisa “é”, mas em
todos o “é” está relacionado a um ponto central, um tipo definido de
coisa, e ela não é dito ser por uma mera ambiguidade (Met. IV 2,
1003a33-36)
Aristóteles faz uma distinção entre homonímia e
multiplicidade de usos. No começo das Categorias ele estabelece
que são homônimas as coisas que têm em comum apenas o nome,
mas definições completamente diferentes. Não é isto que ele
assume para todas as coisas existentes, mas ele argumentou que
os diferentes usos de “ser” nas diferentes categorias têm o mesmo
significado focal. Isto significa dizer que os diferentes usos de
“ser” não são homônimos para Aristóteles, mas que “é” tem, em
sua concepção, apenas uma multiplicidade de usos.
A distinção entre diferentes categorias aristotélicas é,
contudo, muito diferente da distinção de Frege-Russell entre
diferentes sentidos de “é”. A lógica fregeana distingue os
seguintes sentidos de “é”:
(1) o “é” de identidade (i.é., Phosphorus is Hesperus; a = b).
(2) o “é” de predicação, a cópula (Platão é um homem;
318
P(a)).
(3) o “é” de existência,
(i) expresso por meio do quantificador existencial
e o sinal de identidade (Deus é; (∃x) (g = x), ou
(ii) expresso por meio do quantificador existencial
e o sinal de predicação (Há seres humanos/ Há
pelo menos um ser humano; (∃x)H(x)), e
(4) o “é” de inclusão de classe (Um cavalo é um animal de
quatro patas; (x) (P(x) ⊃ (Q(x)).
A notação conceitual de Frege expressa estes significados
da seguinte maneira:
Estas fórmulas da linguagem de Frege são juízos (Urteile),
uma vez que elas contêm o traço “|-”, que consiste do traço de
conteúdo (Inhaltsstrich) ‘ – ‘ e do traço de julgamento
(Urteilsstrich) ‘|’. O traço vertical que conecta os dois horizontais
Frege denomina de traço condicional (Bedingungsstrich) (BS,
§5). A negação é expressa em seu simbolismo por um pequeno
traço vertical que é posto sob o traço de conteúdo (ibid, §7). Na
Begriffsschrift Frege usa três traços horizontais paralelos como
319
um sinal de identidade, mas nas Grundgesetze ele adota o sinal
usual para identidade com apenas dois traços (GGA, I, “Prólogo”,
pIX). A generalidade é expressa por uma concavidade contendo
uma letra germânica mais a mesma letra germânica ocupando o
espaço do argumento (BS, §11). Frege não presta atenção ao (3)
(i) em seu formalismo, mesmo que ele o discuta em detalhe em
seus artigos informais, tal como o “Diálogo com Pünjer sobre a
existência” (NS, pp60-75). Ele também não tem nenhum sinal
separado para existência, mas ele a expressa por meio do sinal de
generalidade e dois traços de negação.
Kahn, Hintikka e outros ficaram, principalmente,
espantados com o esforço dos primeiros pensadores para derivar a
tese fregeana da ambiguidade a partir das palavras de Aristóteles.
Pois, para Aristóteles, ser não é um gênero e ser é sempre ser
alguma coisa ou outra, então, não pode ser alegado que ele
acreditava em qualquer espécie de ambiguidade pura entre
existência e predicação. Se Aristóteles apontou para qualquer uma
das ambiguidades fregeanas ou não, é óbvio que Frege deu a estas
sugestões uma posição menor em seu pensamento. Isto se mostra
no fato de que ele não reconheceu nenhuma necessidade de
explicitar estes diferentes sentidos de “é” em qualquer linguagem
específica. Ele estava satisfeito com nossa linguagem natural que
não provê nenhuma distinção como aquela entre identidade,
predicação, existência e inclusão. Por conseguinte, mesmo se
Aristóteles acreditasse em tais formas de ser como as suas
categorias, as quais ele também encontrava na linguagem natural,
ele não acreditava nessas formas de ser que são explicitadas pelas
distinções fregeanas. Diferente de Frege, Aristóteles não pensava
que pensava que existem tais relevantes formas de ser como
identidade, predicação, existência e inclusão de classe.
A doutrina de Frege concernente às palavras “ser” e “é”
pode ser apreendida a partir de várias fontes, principalmente o
artigo “Diálogo com Pünjer sobre a existência”, escrito antes de
1884 e publicado postumamente, o livro Os fundamentos da
320
Aritmética (1884) e o artigo “Sobre o conceito e o objeto” (1892).
Nestas obras Frege lida com a diferença entre predicação e
identidade, por um lado, e com a diferença entre predicação e
identidade, por outro. A distinção entre predicação e inclusão de
classe é discutida por Frege já na Begriffsschrift (1879), onde ele
também introduz o resto das distinções, mas não as comenta em
detalhe. A tese de Frege não apenas relaciona-se com a diferença
de uso das palavras “ser” e “é”, mas também concerne aos
diferentes conceitos que estas palavras representam. Frege
argumenta que nossa linguagem natural é deficiente, uma vez que
ela oferece-nos uma única palavra para estes vários propósitos. O
que nós precisamos, portanto, é de uma linguagem que reflita
corretamente a distinção entre os diferentes conceitos de ser.
Frege entende que seja uma tarefa filosófica mostrar onde a
linguagem natural nos leva a ver coisas sob uma perspectiva
errada (NS, pp74-75, 289). Como Frege mesmo diz na
Begriffsschrift, a sua notação conceitual foi pensada como uma
linguagem do pensamento puro, a qual é livre de ambiguidades.
É verdade que o principal objetivo de Frege era desenvolver
o seu programa logicista. Para realizar o programa, Frege tinha
que definir os conceitos aritméticos por meio de conceitos lógicos
e provar que as verdades matemáticas eram deriváveis de
axiomas lógicos por meio de dedução lógica. Frege desenvolveu
novos dispositivos lógicos para as derivações, na Begriffsschrift
e, ao fazer isso, ele se tornou o pioneiro da lógica moderna.
Contudo, apresentar as regras de inferência lógica não era o único
propósito de Frege. Com efeito, a sua notação conceitual tinha
por objetivo ser uma lingua characterica leibniziana, da qual
todas as ambiguidades seriam eliminadas e que ainda assim seria
a representação semântica correta da linguagem natural. O
paradigma de Frege da linguagem de primeira ordem era, assim,
essencialmente determinada semanticamente. Contudo, ele
mesmo não a apresentou semanticamente, pois, como Jean van
Heijenoort (1967) e Jaakko Hintikka (1979a, 1981b, 1981c)
321
argumentaram, ele acreditava na inefabilidade da semântica. Isto
significa que ele não pensava ser possível para nós nos colocar
fora dos limites da linguagem para então considerar a relação
entre linguagem e mundo, porque, na sua visão, toda fala já
pressupõe esta relação semântica. Frege explanava os diferentes
usos da palavra “é” simplesmente em descrevendo sua notação
para uma linguagem de primeira ordem, o que era para ele a única
representação correta de nossos conceitos.
É verdade que muitos lógicos do século vinte adotaram a
ideia de uma linguagem como um cálculo que pode ser
livremente reinterpretada em um domínio fixo de indivíduos.
Alguns lógicos até mesmo rejeitaram completamente a alegação
de que uma linguagem de primeira ordem fregeana –
suplementada, por exemplo, pela adição de alguma lógica de
ordem superior, como Frege fez – seria um medium universal de
comunicação no sentido fregeano; tanto no sentido que a
interpretação de seus nomes e predicados não variaria em um
domínio fixo de indivíduos quanto no sentido que ela falasse de
um domínio fixo. No entanto, os lógicos aceitaram a teoria da
quantificação fregeana, onde a doutrina da ambiguidade está
firmemente entrincheirada. A razão simples pela qual eles
aceitaram esta doutrina, meramente por aceitarem a teoria da
quantificação é que o significado das constantes lógicas da teoria
da quantificação, incluindo aquelas que representam vários tipos
de ser, permanece inalterado mesmo que a classe de indivíduos
sobre a qual os quantificadores variam possa se alterar. Pois,
adicionando novos elementos para a teoria fregeana básica da
quantificação ou relativizando o alcance de seus quantificadores
não se remove o comprometimento lógico com a ambiguidade de
“é”.
Eu aleguei aqui que Frege tem vários conceitos de ser, sem
prestar atenção cuidadosa à terminologia própria de Frege, de
acordo com a qual conceitos são referentes de palavras-conceitos.
Nós podemos tentar evitar a distinção entre sentidos e
322
significados dizendo que, na lógica de Frege, a palavra “é” não
apenas tem um número de usos, mas que ela tem vários
significados. Nesse escrito, eu não vou lidar com a possibilidade
de aplicar a distinção entre sentido e significado a um verbo
auxiliar como o verbo “ser”.
Este escrito focaliza a doutrina fregeana da existência. Uma
das inovações da teoria lógica de Frege foi construir a existência
como um conceito de segunda ordem, i.é., como uma propriedade
de conceitos. Este escrito é, contudo, uma tentativa de elucidar
alguns aspectos menos conhecidos da concepção de existência de
Frege. Eu argumentarei que Frege concebe a existência tanto
como um conceito de segunda ordem quanto como um conceito
de primeira ordem vazio, e que a distinção entre as duas
referências de “existe” está motivada por suas suposições
metafísicas e epistemológicas. Ao construir tais suposições, nós
devemos nos satisfazer com as breves observações e indicações
de Frege. Pois, Frege não apenas assume que a palavra “é” é
ambígua como também considera o verbo “existir” e, por
conseguinte, o “é” de existência uma palavra equívoca. O
conceito fregeano de Wirklichkeit, o qual do mesmo modo tornase um tipo de conceito de existência, não será discutido aqui.
Eu falei da linguagem lógica de Frege como uma
linguagem de primeira ordem. Efetivamente, Frege trabalha com
quantificadores de ordem superior. Contudo, por razões que não
serão discutidas aqui o componente de ordem superior da lingua
characterica de Frege pode ser considerado inessencial e, de
qualquer modo, ele é largamente irrelevante para os propósitos
desse escrito.
2. A equivocidade de “existe”
O conceito de existência é discutido por Frege
detalhadamente no “Diálogo com Pünjer sobre a existência”, o
qual foi publicado nos Nachgelassene Schriften de Frege. O texto
foi escrito antes de 1884, o ano em que Frege completou os
323
Fundamentos da Aritmética. Nos Fundamentos Frege apresenta a
sua doutrina da existência em uma forma madura. A
argumentação apresentada em “Diálogo com Pünjer sobre a
existência” complementa os Fundamentos e é muito instrutiva se
nós estivermos interessados nos diferentes aspectos da concepção
fregeana de existência. Eu discuti esse Diálogo no meu escrito
“On Frege’s concept of being”, onde eu tentei jogar alguma luz
em como a concepção de Kant sobre a existência influenciou as
ideias de Frege. A seguir, eu apresentarei os principais pontos que
Frege faz no diálogo e darei minhas sugestões concernentes às
motivações implícitas de sua concepção.
No “Diálogo com Pünjer sobre a existência” Frege mantém
a alegação de que sentenças como “Leo Sache é” e “Leo Sache
existe” são auto-evidentes (selbstverständlich), enquanto que
Pünjer sugere que a palavra “é” carrega o mesmo significado que
“é algo que pode ser experimentado” (ist erfahrbar). Para Pünjer,
o conjunto de objetos de experiência (Gegenstände der
Erfahrung) é um subconjunto do conjunto de objetos de
representação (Gegenstände der Vorstellungen). Frege argumenta
que a abordagem de Pünjer leva a uma contradição: se “A não é”
significa o mesmo que “A não é um objeto de experiência”, então,
o enunciado “Existe algo que não é um objeto de experiência”
significa o mesmo que “Existe um objeto de experiência que não
é um objeto de experiência” (NS, pp71-72). Em um posfácio do
Diálogo Frege continua a sua argumentação e afirma que se a
sentença “A é” não fosse auto-evidente a sua negação poderia ser
verdadeira em algumas circunstâncias. Ele conclui que se a
sentença “Existem entidades que não têm a propriedade de ser”
significasse o mesmo que “Algo que tem ser cai sob o conceito de
não-ser (der Begriff des Nichtseienden)”, ela seria uma sentença
contraditória, e se a sentença “Existem B’s” é equivalente em
significado à sentença “Algo que tem ser é B”, o conceito de ser é
auto-evidente.
Frege parece ser levado a negar a significatividade de
324
sentenças “A é” ou “A existe” por causa de suas concepções de
linguagem e de mundo. Ele não pode dizer que a sentença “Algo
que tem ser não é” significa que algo, para o qual é possível
existir, não existe no mundo atual, pois ele está comprometido
com a concepção de que há somente um mundo e que sua notação
conceitual é uma linguagem universal que fala sobre este mundo.
Ele nem mesmo divide o seu universo em vários tipos. Isto é
indicado por seu princípio de completude (Grundsatz der
Vollständigkeit), de acordo com o qual qualquer função deve ser
definida para todos os objetos (GGA II, §§56-65). Devido a sua
concepção de um único universo, ele conclui que o conceito de
ser não é uma determinação de um objeto, isto é, tal conceito não
nos ajuda a distinguir entre quaisquer dois objetos (NS, p73).
Nós podemos por o mesmo ponto do seguinte modo: por
causa da concepção de um único mundo de Frege, apenas pode
haver quantificadores de um tipo, a saber, quantificadores
abrangendo todos os objetos existentes realmente. Por esta razão,
Frege não pode escapar da ameaça de inconsistência assumindo
que nós temos dois diferentes domínios de quantificadores em
sentenças como “Algo que tem ser não é”, o que de outro modo
seria uma saída plausível para alguém que distinguisse um do
outro os diferentes significados de “é”.
Após rejeitar a ideia de que a existência é uma propriedade
real de um objeto, Frege faz um esforço para converter os
enunciados existenciais para a forma dos enunciados particulares
(NS, p70). Por exemplo, ele converte a sentença “Existem
humanos” para a sentença “Alguns seres vivos são racionais”. Se
o conceito que ocorre em uma dada sentença não pode ser
definido por meio de dois conceitos, Frege recorre ao conceito de
ser idêntico consigo mesmo (sich selbst gleich sein), o qual ele
entende ser o conceito mais geral na hierarquia de conceitos. Ele
identifica este conceito com o conceito de ser. Logo, ele pode
converter a sentença “Existem humanos” também na sentença
“Algo que tem ser é um humano” ou “Algo que é idêntico a si
325
mesmo é um humano” (NS, p71).
Consequentemente Frege mantém a concepção de que nós
somos forçados a pensar o ser (no sentido de existência) como
um conceito que é superordenado a todo conceito. O que Frege
mostra aí é que, de acordo com a sua doutrina do ser, a existência
pode ser usada como um conceito de primeira ordem se se quiser
pagar o preço de torná-lo um conceito vazio. O conceito de ser
que nós estamos interessados é tal que nós o predicamos de todo
objeto do qual nós predicamos alguma coisa. Ao dizer que a é X,
nós dizemos que a é e que a é X. Aí supõe-se que a cópula põe o
objeto a, no sentido de que ela é a parte da predicação que faz a
predicação carregar nela mesma a alegação de existência. A
cópula é para Frege um conceito que se aplica a entidades desse
nosso único mundo como também para qualquer outro conceito,
mesmo se mais genérico.
A ideia de que a existência está incluída em cada predicação
aparentemente coloca Frege muito próximo de Aristóteles. Frege
parece repetir a concepção de Aristóteles de que a expressão
“humano existente” não diz nada mais do que “humano”, isto é,
“existente” é uma palavra vazia e, logo, redundante em qualquer
contexto que ocorra (Met, IV, 2, 1003b27-30; I, 3, 1054a16-18).
Mais ainda, na medida em que nós consideremos o conceito de
ser de Frege como um conceito de primeira ordem, Frege não
acredita na analogia de “é” no sentido em que Aristóteles o faz,
que tem uma extensão infinitamente grande e nenhuma
compreensão. Se nós limitamos nossa consideração ao conceito
de existência de Frege ao que nós encontramos até agora, nós
poderíamos concluir que o conceito de ser de Frege é um conceito
unívoco.
Por que Frege pensa o ser como um conceito unívoco nesse
sentido limitado? A razão é, novamente, que Frege não divide o
seu universo em vários tipos. Diferente do de Aristóteles, o
domínio dos seres de Frege não cai sob diferentes categorias.
Em seu artigo “Kritische Beleuchtung einiger Punkte in E.
326
Schröders Vorlesungen über die Algebra der Logik” Frege sugere
que as sentenças “A é” e “A existe” poderiam ser interpretadas
como a sentença metalinguística “O nome ‘A’ tem um referente”
(KS, p208). Mas, se Frege é consistente em sua visão de que nós
não podemos sair dos limites da linguagem ele tem que
considerar tal enunciado como fala ilegítima acerca das
expressões de nossa linguagem.
Frege exige que nas linguagens da ciência todos os nomes
próprios tenham que ser tomados como não-vazios (NS, p135).
Ele também assume que se nós falamos sobre um objeto nós já
pressupomos a existência desse objeto (“Über Sinn und
Bedeutung”, KS, p147). Entretanto, Frege admite que nós
falamos com sentido sobre entidades que não existem. Na visão
de Frege uma sentença apenas perde o valor de verdade – não o
sentido – se ela contém um nome que não tem referente (“Über
Sinn und Bedeutung”, KS, p148).
Uma vez que Frege considera o ser como uma característica
de todo conceito, pode-se sugerir que se nós adicionamos
qualquer palavra-conceito a um nome próprio vazio, o conceito
faz com o nome tenha um referente, no final das contas. Que isto
não é o caso se torna óbvio se nós consideramos o conceito de
conceito de Frege. De acordo com Frege, uma palavra-conceito –
e também o conceito ao qual ela refere – é indizível. Ela tem uma
‘lacuna’ que pode ser preenchida com uma expressão completa,
isto é, com um nome próprio (CGA I, p5-8). Se nós preenchemos
a lacuna da palavra-conceito com um nome próprio nós também
pretendemos preencher a lacuna do conceito correspondente. Se
nós somos bem sucedidos em preencher a lacuna do conceito,
então, é também verdade que o nome próprio tem um referente.
Se a lacuna do conceito não é preenchida, nós não atribuímos
existência a nada, uma vez que nós não fomos bem sucedidos em
predicar existência ao mesmo tempo. Isto é assim porque, para
Frege, ser um objeto implica existência. Pois, se a é um objeto,
então, o nome próprio ‘a’ tem um referente, o que significa que a
327
existe. Consequentemente, a idéia de Frege, de que nós
pressupomos a existência dos objetos sobre os quais nós falamos,
concerne apenas à natureza de nossos atos linguísticos e aos
aspectos pragmáticos de nossa linguagem, e não tem nada a ver
com as relações semânticas entre as sentenças de nossa
linguagem e os objetos e funções do mundo. Frege simplesmente
deseja observar que, quando nós dizemos algo sobre um objeto,
nós não adicionamos que o objeto existe.
No Tractatus Wittgenstein argumenta que nós produzimos
sem-sentidos quando nós tratamos os conceitos como os de
objeto, função, número e conceito como conceitos ordinários. De
acordo com Wittgenstein, em uma linguagem consistente e
precisa, que algo é um objeto, uma função, etc., pode ser apenas
mostrado, mas não pode ser dito (TLP, 4.126). David Bell (1979)
alega que Frege sustentou esta posição em relação às funções,
pois, em sua visão, que alguma coisa é uma função era mostrado
pela imcompletude do sinal que era usado para referir a ela, mas
não é possível dizer que algo é uma função (“Über Begriff und
Gegenstand”, KS, p170). Bell assume que Frege nunca estendeu
esta doutrina para incluir a expressão ‘( ) é um objeto’ (Bell,
1979, p47). O tratamento de Frege da existência é, contudo, um
tipo de extensão, uma vez que em sua visão nós não dizemos que
algo é um objeto porque, ao usar um nome, nós já pressupomos
que há um objeto ao qual o nome refere.
Há uma reserva importante e explícita que Frege faz em sua
argumentação no “Dialog mit Pünjer über Existenz”. Ele conclui
ali que se a sentença “Existem Bs” é equivalente em significado à
sentença “Algo que tem ser é B”, então, o conceito de ser é autoevidente. Sua formulação sugere uma maneira alternativa de lidar
com o problema, na qual a equivalência mencionada é negada e
que aponta para a equivocidade de “ser”. Mas, se as expressões
“x tem ser” e “Existe um x” diferem em significado, a
argumentação de Frege de que “A é” é auto-evidente colapsa.
No final do diálogo Frege introduz a doutrina de que a
328
existência é uma propriedade de um conceito (NS, p75). Frege
está inclinado a manter que existência usada como um conceito
de primeira ordem é um conceito vazio, mas ele insiste em
preservar a significatividade de existência usada como um
conceito de segunda ordem. Esta convicção é explícita em sua
crítica da ideia de que todo conceito é abstraído de uma
multiplicidade de objetos. Ele observa que se todo conceito fosse
abstraído de objetos existentes os enunciados existenciais
perderiam todo conteúdo; uma vez que nós tivéssemos um
conceito, nós poderíamos inferir que existe um objeto que
exemplifica o conceito (GLA, §49).
3. O pano de fundo filosófico da doutrina da equivocidade
de Frege
A discussão acima mostra que Frege assume que o “existe”
e o “é” de existência tem duas leituras. Elas podem referir ou a
um conceito de primeira ordem vazio ou a um conceito
significativo de segunda ordem. No primeiro caso o enunciado
existencial torna-se significativo se ele é transformado em um
enunciado metalinguístico que expressa que um dado nome
próprio tem um referente. No segundo caso o enunciado nos diz
que um conceito é instanciado, isto é, que existe um objeto que
tem uma dada propriedade. Existência de primeira ordem é
formalizada por meio de um quantificador existencial e o símbolo
de identidade, enquanto a existência de segunda ordem é expressa
por meio de um quantificador existencial e o símbolo de
predicação. Para expor as motivações filosóficas da visão de
existência de Frege, vamos considerar primeiro a distinção entre
identidade e predicação.
Frege discute o problema de interpretar o conceito de
identidade já no Begriffsschrift, onde ele estabelece que em
enunciado de identidade um nome parece representar ele mesmo.
Ele acrescenta, todavia, que um enunciado de identidade não
concerne apenas aos nomes, mas ele expressa que dois sinais têm
329
o mesmo conteúdo (Inhalt), o qual é determinado em dois modos
diferentes por dois sinais (BS, §8). Ele reformula esta idéia em
“Über Sinn und Bedeutung”, dizendo que um enunciado de
identidade expressa que dois nomes têm o mesmo significado,
mas diferentes sentidos. O sentido de um nome é o modo pelo
qual o significado de um nome é apresentado (KS, pp143-144).
Frege pensa que os símbolos que ocorrem nos diferentes
lados de um símbolo de identidade podem ser substituídos um
pelo outro em qualquer contexto, e ele assume que dois objetos
são idênticos se e somente se eles caem sob os mesmos conceitos.
Como nós vimos na seção precedente, Frege também considera a
identidade como sendo uma relação de um objeto consigo
mesmo. Estas interpretações do conceito de identidade são
objetos de críticas de Wittgenstein, de acordo com as quais dizer
de dois objetos que eles são idênticos é sem-sentido, e dizer de
um objeto que ele é idêntico a si mesmo não é dizer nada (TLP,
5.5303). Os detalhes da doutrina de Frege sobre a identidade e as
possíveis modificações em sua visão não serão discutidas nesse
escrito. Contudo, é importante mencionar que Frege não aceita
que seja possível definir a identidade de objetos pela igualdade de
suas propriedades ou por qualquer outro meio, uma vez que
qualquer definição é ela mesma uma identidade (“Rezension von:
E. G. Husserl, Philosophie der Arithmetik” G, KS, p184).
Em seu artigo “Über Begriff und Gegenstand” Frege
enfatiza que, para manter separados objetos e conceitos, nós
devemos fazer uma distinção precisa entre identidade e
predicação (KS, p168). O princípio segundo o qual objetos
devem ser claramente distinguidos de conceitos também mostrase em que, diferentemente da análise gramatical tradicional, a
análise fregeana de sentenças distingue a relação entre dois
conceitos da mesma ordem e a predicação, a qual, por sua parte,
concerne à relação entre um indivíduo e um conceito ou à relação
entre dois conceitos de duas ordens diferentes (NS, p207 e p210).
Nos Fundamentos a distinção entre objetos e conceitos ocorre na
330
lista dos princípios básicos de Frege (GLA, pX). Ele também
defende a distinção em Grundgesetze (GGA, I, p.X e pXIV), em
“Über die Begriffsschrift des Herrn Peano und meine eigene”
(KS, p233), e em “Über die Grundlagen der Geometrie II” (KS,
p270).
Por que Frege enfatiza a distinção entre objetos e
conceitos? Frege rejeita a análise gramatical de sentenças e
substitui sujeito e predicado por objeto e conceito (e outras
funções), e assim modifica a estrutura das sentenças universais e
particulares. No que diz respeito às sentenças particulares, ele não
aceita a identificação de indivíduos com as suas propriedades
essenciais. Para Frege, a sentença “Platão é um homem” contém
o “é” de predicação, o qual deve ser distinguido claramente do
“é” de identidade (“Logik in der Mathematik” (1914), NS,
pp230-31). Isto significa que Frege não entende que seja possível
para nós ter conhecimento do que um objeto é em si mesmo por
meio de nossos conceitos. Para ele, todas as propriedades estão
no mesmo nível, sejam elas chamadas essenciais ou acidentais na
literatura filosófica tradicional.
Surpreendentemente, a muito debatida distinção de Frege
entre Sinn e Bedeutung testemunha a mesma visão
epistemológica. Deixando de lado a visão de Frege sobre o
sentido e o significado das sentenças, as quais Frege também
classifica como nomes próprios, nós podemos apresentar a
doutrina de Frege do sentido e do significado de um nome
próprio como se segue: o sentido que um nome próprio expressa
e que é o modo de apresentação do objeto ao qual o nome próprio
refere pertence ao objeto. Mais ainda, nós poderíamos ter um
conhecimento completo do objeto apenas se nós conhecêssemos
todos os seus sentidos, o que não é possível para nós (“Über Sinn
und Bedeutung”, KS, p144-147). Por conseguinte, os sentidos
fregeanos de um objeto parecem ser complexos de conceitos sob
os quais o objeto cai. Esta interpretação do conceito de Sinn
fregeano é suportada por seus exemplos, de acordo com os quais
331
“A estrela da manhã” e a “A estrela da tarde” são sentidos de
Vênus e “o professor de Alexandre” e “o discípulo de Platão” são
sentidos de Aristóteles. Frege também argumenta que um nome
próprio é relacionado a um objeto via um sentido e apenas via um
sentido, e cada nome próprio tem que expressar pelo menos um
sentido (NS, p135). Portanto, de acordo com Frege, não é
possível falar significativamente de um objeto sem pensar o
objeto como caindo sob algum conceito. A observação de Frege
sobre o sentido e o significado, assim, nos dá mais indicações
para a hipótese de que Frege acredita na universalidade da
linguagem. Elas podem também indicar a visão de que não há
propriedades que pertençam a objetos antes que exista um sistema
conceitual que atribui sentidos a objetos.
A teoria fregeana do sentido e do significado mostra que
Frege não apenas entende que é impossível encontrar qualquer
propriedade essencial de objetos, o que seria idêntico com o
objeto mesmo, mas também que ele considera a formação de
conceitos completos de objetos como estando para além das
habilidades de um ser humano finito. Frege retoma o pensamento
de Leibniz de que um ser humano é apenas capaz de formar
conceitos parciais de indivíduos, enquanto que deus vê no
conceito de um indivíduo tudo o que pode ser predicado daquele
indivíduo (Leibniz, Discurso de Metafísica, sec. 8 e 9). Para
Frege, um objeto não é nem idêntico com qualquer propriedade
essencial nem com qualquer combinação de conceitos sob os
quais nós podemos conhecer que o objeto cai. Ao enfatizar a
distinção entre objetos e propriedades, ou conceitos, Frege esboça
os limites do conhecimento humano.
O que foi dito acima mostra porque Frege chama atenção
para distinção entre identidade e predicação. A notação conceitual
de Frege, a qual foi pensada como uma linguagem universal,
permite-nos falar sobre objetos apenas por meio de diferentes
configurações formadas por palavras-conceitos e outros nomesde-funções. Nós
não podemos nos colocar fora dessas
332
configurações para considerar a relação entre nossa linguagem e
os objetos eles mesmos. Um enunciado de identidade pode
apenas nos dizer que dois nomes têm o mesmo Bedeutung, mas
de acordo com Frege, nós não podemos dizer o que é esse
Bedeutung. Se Frege fosse consistente, nós não poderíamos nem
mesmo aceitar uma sentença metalinguística que diga algo sobre
a relação entre nomes e referentes. Um enunciado de identidade
tenta dizer algo que não pode ser dito, enquanto a predicação é
precisamente o modo em que nossa razão é capaz de lidar com
objetos.
Mesmo se Frege subscreva o princípio de que um e apenas
um símbolo linguístico ou distinção deveria corresponder a cada
significado ou distinção no universo, ele não elimina o símbolo
de identidade de sua linguagem. Wittgenstein era mais consistente
nesse aspecto, pois ele via um enunciado de identidade apenas
como uma regra, a qual concernia à substituibilidade de nomes
em diferentes contextos. Ele assumia que nós poderíamos
eliminar o símbolo de identidade, quando nós realizássemos a
idéia de uma linguagem universal, de tal modo que não haveria
mais dois nomes para qualquer objeto singular em nossa
linguagem. De acordo com Wittgenstein, o símbolo de identidade
não é uma parte essencial de nossa notação conceitual (TLP,
5.53).
Frege considerou o papel do símbolo de identidade a partir
de uma perspectiva completamente diferente. Como ele já havia
mencionado no Begriffsschrift, ele não via os enunciados de
identidade apenas como regras concernentes aos nomes. Ao
mesmo tempo, ele insistiu no princípio de que sua linguagem fala
sobre algo e que cada distinção e cada símbolo na linguagem
deve corresponder a um único sentido, um único significado e a
uma única distinção no universo. Portanto, nós devemos tentar
encontrar qual contraparte no mundo é no caso dos enunciados de
identidade. O que Frege encontrava no mundo era uma distinção
entre sentidos e significados, a qual se segue da distinção entre
333
objetos em si mesmos e objetos tais quais nós os conhecemos.
Frege desejava fazer uma distinção entre objetos como entidades
metafísicas e objetos como nós os conhecemos, e ele também
queria que esta distinção fosse visível na linguagem universal.
Por esta razão, ele distinguiu o “é” de identidade do “é” de
predicação em sua notação conceitual e, portanto, incorporou o
símbolo de identidade em sua linguagem. Frege não notou que
ele deveria ter excluído enunciados de identidade de sua
linguagem precisamente porque eles pretendem dizer algo sobre
objetos como entidades metafísicas, ou seja, no sentido de que
nós não podemos falar sobre objetos na linguagem, de acordo
com Frege.
Na seção anterior eu argumentei que a visão de Frege da
linguagem e do mundo influenciou sua doutrina da existência. A
discussão acima relativa à identidade e à predicação serve para
clarificar os detalhes da visão de Frege de que a palavra “existe”
é equívoca. Não é apenas que a visão de Frege em relação ao
“existe” e ao “é” de existência como equívocos no sentido de que
há dois conceitos de existência fora de qualquer contexto, mas
que cada contexto determina qual conceito as palavras referem
em cada caso. Mais ainda, a análise de Frege tem a consequência
adicional que o “existe” e o “é” de existência preservam sua
equivocidade em alguns contextos. Isto é o que acontece se nós
os adicionamos a nomes próprios. Eu devo clarificar este ponto a
seguir com base no que eu argumentei acima relativamente à
identidade e à predicação. Isto provê também uma resposta a
questão concernente ao pano de fundo filosófico da visão de
Frege da existência.
Se os Sinne de Frege são complexos de propriedades de
objetos, a sentença “a existe” expressa o pensamento de que há
um objeto que é P, Q, R, etc.. Uma vez que a sentença “Existe um
P” significa, para Frege, o mesmo que a sentença “O conceito P é
instanciado”, do mesmo modo, a sentença “a existe” significa que
um certo feixe de conceitos é instanciado. Aqui a existência se
334
torna algo que é asserido de um feixe de propriedades. Frege em
nenhum lugar tira explicitamente esta conclusão de suas
premissas, mas suas sugestões são, contudo, evidentes. Em “Über
Sinn und Bedeutung” Frege procura mostrar que enunciados de
identidade podem ser significativos mesmo se eles parecem ser
ou verdadeiros tautologicamente ou autocontraditórios. A solução
que ele oferece é que se pode associar um sentido diferente com
“a” e com “b” mesmo se “a = b” é verdadeiro. Se Frege sustenta
este tipo de análise, ele deve também admitir que “a existe” faz
sentido. Isto porque se pode, obviamente, atribuir um sentido a
“a” sem saber-se que a existe, tão facilmente quanto se pode
atribuir um sentido a “a” e “b” sem saber-se que “a = b” é
verdadeiro. Existência não está incluída no Sinn expresso por um
nome próprio. Se nós tomamos as propriedades individuais
expressas por um nome próprio separadas e formamos um juízo
de cada uma, as sentenças que expressam os juízos podem ser ou
verdadeiras ou sem valor de verdade. Para Frege, formar um
conceito ou um feixe de conceitos é independente da instanciação
daquele conceito ou feixe de conceitos.
Tal como a distinção entre identidade e predicação, a tese
da equivocidade do “existe” e do “é” de existência está motivada
por considerações epistemológicas concernentes aos limites do
conhecimento humano. Minha sugestão para construir a doutrina
fregeana de existência no caso de sentenças como “a existe” ou
“a é” é, portanto, a seguinte: se nós dizemos que a existe e se
alguém nos pergunta o que é que existe, nós não somos capazes
de responder esta questão de outro modo senão em mencionando
alguns dos conceitos sob os quais aquele objeto cai. Nós podemos
dizer que a sentença “a existe” significa que há um objeto que
tem as propriedades P, Q, R, etc.. Existência vem a ser um
conceito de segunda ordem que significa instanciação de um feixe
de propriedades. Mas, como nós não podemos dizer o que o
objeto a é fora (abstracted) de nossos conceitos, nossa resposta a
questão concernente ao que a é em si mesmo reduz-se a dizer que
335
a é a, o que é um enunciado vazio. Na visão de Frege, nós
podemos dizer que um objeto é o que ele é, isto é, que ele é
idêntico a si mesmo, o que é um enunciado vazio, mas nós não
podemos dizer o que ele é, ou seja, o que é que é idêntico com.
Por conseguinte, nas sentenças “a existe” e “a é” as palavras
“existe” e “é” podem ser lidas ou como expressões de um
conceito significativo de segunda ordem ou como expressões de
um conceito vazio de primeira ordem. Se nós interpretamos as
palavras como referindo a conceitos de primeira ordem, as
sentenças correspondentes podem ser transformadas na sentença
“O nome “a” tem referente”, mas, isto é obviamente de pouca
valia para ajudar-nos a encontrar qual é o referente.
Portanto, a distinção de Frege entre os dois conceitos de
existência resulta de sua tentativa de distinguir objetos em si
mesmos de objetos considerados através de descrições que nós
podemos atribuir a eles. Como eu conclui acima, Frege quer fazer
uma distinção entre objetos como unidades metafísicas e objetos
como nós os conhecemos, e ele também quer que esta distinção
seja visível em sua linguagem universal. Porém, novamente, se
Frege fosse consistente, ele deveria eliminar a existência expressa
pelo quantificador existencial e o símbolo de identidade de sua
linguagem, pois ele tenta dizer algo que, na visão de Frege, não
pode ser dito na linguagem.
336
15.
Prólogo às Leis básicas da Aritmética
Friedrich Ludwig Gottlob Frege
Grundgesetze der Arithmetik, Begriffsschriftlich abgeleitet; Zweite
unveränderte Auflage; Hildesheim, Georg Olms, 1962; pp. v-xxvi.
Neste livro encontram-se axiomas nos quais se baseia a
aritmética, demonstrados com sinais especiais, cujo conjunto eu
chamo conceitografia. Os mais importantes teoremas (Sätze)
foram reunidos em parte no final juntamente com sua tradução.
Porém, como se poderá ver, não foram considerados aqui os
números negativos, fracionais, irracionais, nem os complexos,
como tampouco a adição, a multiplicação, etc. Nem sequer os
teoremas sobre os números naturais foram apresentados com a
completude projetada no início. Em particular, falta ainda o
teorema de que o número dos objetos que caem sob um conceito
é finito, se é finito o número de objetos que caem sob um
conceito a que o primeiro está subordinado. Razões externas
levaram-me a reservar a prossecução desses estudos, assim como
o tratamento dos demais números e das operações de cálculo; a
publicação desses resultados dependerá da aceitação que encontre
este primeiro tomo. O que ofereço aqui é suficiente para dar uma
ideia de meu procedimento. Pode ser que se julgue como
337
desnecessários os teoremas sobre o número infinito 1. Para a
fundamentação da aritmética em sua extensão habitual eles de
fato não são necessários; mas, a sua dedução é mais simples que a
dos teoremas correspondentes para números finitos e pode servir
como preparação para estes. Ainda aparecem teoremas que não
tratam de números, mas que são utilizados nas demonstrações.
Eles tratam, por exemplo, da sucessão em uma série, da
univocidade das relações, das relações compostas e acopladas, da
figuração mediante relações e semelhantes. Esses teoremas
poderiam ser atribuídos, talvez, a uma teoria combinatória
ampliada.
As demonstrações estão contidas unicamente nos
parágrafos intitulados “Construção” (Aufbau), enquanto que os
intitulados “Análise” (Zerlegung) facilitam a compreensão, ao
descrever provisoriamente em esboços toscos a marcha da
demonstração. As demonstrações mesmas não contêm nenhuma
palavra (Worte), mas se realizam apenas com meus sinais
(Zeichen). Estes apresentam-se visualmente como uma série de
fórmulas, separadas por traços contínuos ou descontínuos, ou por
outros sinais. Cada uma dessas fórmulas é um enunciado
completo, com todas as condições que são necessárias para sua
validade (Gültigkeit). Essa completude, que não permite
pressupostos tácitos subentendidos, parece-me indispensável para
o rigor da demonstração.
A passagem de um enunciado para o seguinte procede
segundo as regras que se encontram reunidas no § 48, e não se dá
nenhum passo que não cumpra estas regras. Como e segundo que
regras se faz a inferência é indicado pelo sinal que se encontra
entre as fórmulas, enquanto que — • — conclui uma cadeia
dedutiva. Aqui deve haver enunciados que não podem ser
deduzidos de outros. Estes são em parte as leis fundamentais que
reuni no § 47, e em parte as definições que se encontram juntas
no final numa tabela com a indicação das passagens em que
1 A cardinalidade de um conjunto infinito enumerável.
338
aparecem pela primeira vez. Numa continuação desta tarefa
aparecerá sempre de novo a necessidade de definições. Os
princípios que se deve seguir para introduzir as definições estão
expostos no § 33. As definições não são propriamente criadoras e,
conforme creio, não podem ser; elas apenas introduzem
designações (nomes) abreviadas que poderiam ser evitadas se o
tamanho não produzisse nesse caso dificuldades externas
insuperáveis.
O ideal de um método estritamente científico da matemática que procurei realizar aqui e que bem poderia ser
denominado euclidiano, vou descrever da seguinte maneira. Que
tudo seja demonstrado, isto certamente não se pode exigir, porque
é impossível; mas, pode-se exigir que todos os enunciados
utilizados sem demonstração sejam declarados explicitamente
como tais, para que se veja claramente sobre o que descansa a
construção inteira. Por isso há que se esforçar para reduzir ao
máximo o número de leis primitivas, demonstrando tudo o que
seja demonstrável. Além disso, e assim vou mais além de
Euclides, exijo que se mencionem previamente todos os modos
de dedução e de inferência empregados. Do contrário não se pode
assegurar o cumprimento da primeira exigência. No essencial, eu
acredito haver alcançado este ideal. Apenas em alguns poucos
pontos poder-se-ia levantar exigências de maior rigor. Para
alcançar maior rapidez e não cair numa extensão desmedida, eu
me permiti fazer uso da intersubstituibilidade dos membros
inferiores (condições) e da fusão de membros inferiores iguais, e
não reduzi os modos de dedução e de inferência ao menor
número. Quem conhece meu livrinho Begriffschrift
(Conceitografia) poderá deduzir do que se diz ali como se poderia
satisfazer também aqui exigências mais rigorosas, mas ao mesmo
tempo saberá que isto traria consigo um aumento considerável de
extensão.
No geral, creio eu, as correções que com razão podem ser
feitas a este livro não se referirão ao rigor, mas apenas a escolha
339
das inferências e dos passos intermediários. Frequentemente se
apresentam vários caminhos possíveis para se levar a cabo uma
demonstração; eu não procurei explorar todos eles e por isso é
possível, inclusive provável, que nem sempre eu tenha escolhido
o mais curto. Quem tiver algo a objetar nesse sentido que o faça
melhor. Outras coisas também serão discutíveis. Alguns teriam
preferido estender mais o conjunto de modos de dedução e
inferências admitidos, para conseguir assim uma maior
mobilidade e brevidade. Mas, nisto devemos nos deter em algum
ponto, se é que se admite o ideal que propus, e seja qual for o
ponto em que nos detemos, sempre haverá alguém que pode
dizer: teria sido melhor admitir ainda mais modos de dedução.
Pela ausência de lacunas nas cadeias dedutivas conseguese explicitar cada axioma, pressuposição, hipótese, ou como se
queira chamar, sobre as quais transcorre a demonstração; e assim
obtemos um fundamento para o julgamento da natureza
epistemológica da lei demonstrada. Certamente afirmou-se
repetidas vezes que a aritmética não é mais do que lógica
desenvolvida; mas, isto permanece discutível enquanto
aparecerem nas demonstrações passos não dados segundo as leis
lógicas reconhecidas, mas que pareçam descansar em um
conhecimento intuitivo. Somente a partir do momento em que
estes passos se decomponham em passos lógicos simples,
poderemos estar convencidos de que na base não há nada senão
lógica. Reuni tudo o que pode facilitar o julgamento de se uma
cadeia dedutiva é concludente ou de se suas premissas são
sólidas. Se alguém encontrasse algo errado deveria poder indicar
exatamente onde se acha o erro segundo sua opinião: nas leis
fundamentais, nas definições, nas regras ou em sua aplicação num
determinado lugar. Se tudo se encontra em ordem, então se
conhece exatamente os fundamentos sobre os quais se baseia cada
teorema em particular. Somente pode haver discussão, pelo que
posso ver, a respeito de minha lei fundamental do curso de
valores (V), que talvez os lógicos não a considerem apropriada,
340
ainda que se pense nela quando se fala, por exemplo, de
extensões de conceito. Eu a tomo como puramente lógica. Em
todo caso, aqui é indicado o lugar onde a diferença pode se dar.
O meu objetivo exige muitos afastamentos em relação ao
que é comum em matemática. As exigências de rigor nas
demonstrações têm como consequência inevitável um maior
comprimento das demonstrações. Quem não leve em
consideração este fato, ficará surpreendido com a complicação
resultante aqui na demonstração de um enunciado que ele acredita
compreender imediatamente num único ato cognitivo. Isto será
especialmente surpreendente se se compara com o escrito do Sr.
Dedekind Was sind und was sollen die Zahlen? (O que são e o
que devem ser os números?), o mais profundo que conheci nos
últimos tempos sobre a fundamentação da aritmética. Em um
espaço muito menor, examina as leis da aritmética até um nível
muito superior do que se considera aqui. Esta brevidade,
naturalmente, apenas se consegue deixando que muito fique
propriamente sem demonstrar. O Sr. Dedekind diz freqüentemente apenas que a demonstração procede a partir de tais e tais
enunciados; utiliza pontos, como em “m (A, B, C, ...)”; em
nenhuma parte encontramos uma compilação das leis lógicas ou
de outro tipo postas como base, e se estas tivessem sido postas,
não haveria nenhuma maneira de controlar se realmente não
foram utilizadas outras; pois, para isso as demonstrações
deveriam aparecer não apenas indicadas, mas conduzidas sem
lacunas. O Sr. Dedekind também é da opinião de que a teoria dos
números é uma parte da lógica; mas, seu escrito apenas contribui
para dificultar esta opinião, porque as expressões empregadas por
ele, como “sistema”, “uma coisa pertence a uma coisa”, não são
usuais em lógica e não podem ser reduzidas a nada
reconhecidamente lógico. Não digo isso como reprovação; pois,
seu método pode ter sido o mais útil para ele tendo em vista seu
objetivo; apenas o digo para tornar por contraste mais claro meu
propósito. O comprimento de uma demonstração não deve ser
341
medido com a régua. Pode-se fazer com que uma demonstração
pareça breve sobre o papel facilmente, pulando membros
intermediários da cadeia dedutiva e deixando passos apenas
indicados. Geralmente nos contentamos com que cada passo da
demonstração nos pareça evidentemente correto, e isto é lícito se
apenas queremos convencer da verdade do enunciado por
demonstrar. Mas, quando se trata de proporcionar uma
compreensão da natureza desta evidência, este procedimento não
é suficiente, mas há que escrever todos os estágios intermediários,
para jogar sobre eles toda a luz de nossa consciência. Os
matemáticos costumam estar interessados apenas no conteúdo do
enunciado e em que seja provado. Aqui o novo não é o conteúdo
do enunciado, mas como a demonstração é realizada, sobre quais
fundamentos ela se apoia. Não se deve estranhar que este ponto
de vista essencialmente distinto exija também outro tipo de
tratamento. Se se demonstra da maneira usual um dos nossos
enunciados, facilmente se passará por alto algum enunciado que
parece desnecessário para a demonstração. Porém, sob um exame
mais detalhado de minha demonstração se verá, segundo creio,
que esse enunciado é indispensável, a não ser que se queira tomar
um caminho completamente diferente. Por isso, talvez,
encontrem-se aqui e ali em nossos enunciados condições que a
primeira vista pareçam desnecessárias, mas que logo mostram-se
necessárias, ou que pelo menos somente podem ser abandonadas
com algum outro enunciado por demonstrar.
Eu realizo aqui um projeto que já havia tido em vista no
meu Begriffschrift do ano de 1879 e que anunciei em meus
Fundamentos da aritmética do ano de 1884.1 Eu quero demonstrar com a prática minha concepção sobre o número que expus no
último dos livros citados. O fundamental de meus resultados
expressei ali, no § 46, dizendo que a atribuição de número contém
uma asserção (Ausage) sobre um conceito (Begriffe); e nisto se
baseia a presente exposição. Se alguém tem uma concepção
1 Compare-se com a Introdução e os §§ 90 e 91 de Fundamentos da Aritmética; Breslau,
edição de Wilhelm Koeber, 1884.
342
diferente, que tente fundamentar sobre ela mediante sinais uma
exposição consequente e útil, e verá como não se pode. Na
linguagem natural, a situação não é obviamente tão transparente;
mas, se se examina cuidadosamente, se achará que também aqui
ao atribuir-se um número emprega-se sempre um conceito, e não
um grupo, um agregado ou algo do tipo e que, inclusive se isto
ocorre alguma vez, o grupo ou o agregado sempre está
determinado por um conceito, quer dizer, pelas propriedades que
deve ter um objeto para pertencer ao grupo, enquanto que para o
número é completamente indiferente o que torna grupo o grupo,
sistema o sistema, ou as relações que têm as partes entre si.
A razão de porque a realização atrasou tanto depois de seu
anúncio em parte se deve a transformações internas da
conceitografia, que me obrigaram a abandonar o manuscrito que
estava já quase terminado. Explicarei aqui brevemente estes
melhoramentos. Os sinais primitivos empregados no meu
Begriffschrift aparecem aqui de novo com uma única exceção.
Em vez de três traços paralelos empreguei o sinal de igualdade
usual, posto que me convenci que na aritmética este também se
refere ao mesmo que eu quero designar. Com efeito, uso a palavra
“igual” com a mesma referência que “coincidente com” ou
“idêntico a”, e realmente assim é como se usa também na
aritmética o sinal de igualdade. O paradoxo que aparentemente
surge daí provém, sem dúvida, da ausência da distinção entre
sinal e designado. Claramente na equação “22=2+2” o sinal da
esquerda é diferente do que está à direita; mas, ambos designam
ou se referem ao mesmo número.1 Aos sinais primitivos antigos
adicionei somente dois: o ‘espírito suave’ para designar o curso
de valores de uma função e um sinal que deve substituir o artigo
definido da linguagem natural. A introdução do curso de valores
das funções é um progresso essencial, a que se deve uma mobilidade muito maior. Os sinais derivados anteriores podem ser
1 Naturalmente, também posso dizer: o sentido do sinal que está à direita é diferente do
sinal que está à esquerda; mas, a referência é a mesma. Veja-se meu ensaio “Sobre o
sentido e a referência”, supra, pp. 49 e ss..
343
substituídos agora por outros sinais, mais simples, se bem que as
definições da univocidade de uma relação, da sucessão em uma
série, da figuração sejam as mesmas que eu havia fornecido em
parte no Begriffschrift e em parte nos Fundamentos da
Aritmética. Mas, os cursos têm além disso uma grande importância fundamental; pois, eu defino o número mesmo como uma
extensão de conceito, e as extensões de conceito são, segundo
minha concepção, cursos de valores. Sem estes, portanto, não se
poderia chegar a nenhuma parte. Os antigos sinais primitivos que
reaparecem externamente não-alterados e cujo algoritmo apenas
foi modificado, foram providos, todavia, de esclarecimentos
diferentes. O anterior traço de conteúdo torna a aparecer como
horizontal. Estas são consequências da evolução de minhas
concepções lógicas. Antes havia distinguido, no que por sua
forma externa é um enunciado afirmativo (Behauptungssatz),
duas coisas: 1) o reconhecimento da verdade, 2) o conteúdo que é
reconhecido como verdadeiro. Ao conteúdo eu chamava conteúdo
judicável (beurtheilbaren Inhalt). Este agora é analisado no que
eu chamo pensamento (Gedanken) e valor de verdade
(Wahrheistwerth). Isso é conseqüência da distinção entre sentido
(Sinn) e referência (Bedeutung) de um sinal (Zeichen). Nesse
caso, o sentido do enunciado (Satzes) é o pensamento e sua
referência o valor de verdade. A isto se soma ainda o
reconhecimento de que o valor de verdade é o verdadeiro. Com
efeito, eu distingo dois valores de verdade: o verdadeiro e o falso.
Isto justifiquei detalhadamente em meu ensaio antes citado sobre
o sentido e a referência. Aqui direi somente que unicamente deste
modo pode-se conceber corretamente o estilo indireto. Com
efeito, o pensamento, que nos demais casos é o sentido do
enunciado no estilo indireto passa a ser sua referência. Até que
ponto tudo se faz mais simples e rigoroso mediante a introdução
de valores de verdade, apenas se poderá ver com um estudo
detalhado deste livro. Estas vantagens sozinhas representam já
um grande peso no prato a favor de minha concepção, que
344
naturalmente a primeira vista pode parecer estranha. Também
caracterizei mais claramente que no Begriffschrift a essência da
função (Function) em contraposição ao objeto (Gegenstande).
Disto resulta adicionalmente a distinção entre as funções de
primeira e segunda ordem. Tal como expus em minha conferência sobre “Função e conceito”,1 os conceitos e as relações são
funções, no sentido ampliado por mim desta palavra, e desse
modo devemos distinguir também conceitos de primeira e
segunda ordem, relações da mesma ordem e de ordens distintas.
Como se vê, não transcorreram em vão os anos desde a
publicação do meu Begriffschrift e de meu Fundamentos: fizeram amadurecer a obra. Mas, precisamente isto que eu considero
como progresso essencial, não posso ocultar-me, representa
também um grande obstáculo no caminho da difusão e do efeito
de meu livro. E aquilo que constitui uma parte não pequena de
seu valor, a saber, a rigorosa ausência de lacunas nas cadeias
dedutivas, temo que não será bem recebida. Distanciei-me demais
das concepções usuais, imprimindo com isso certo caráter
paradoxal às minhas ideias. É fácil tropeçar aqui e ali, ao folhear
o livro rapidamente, com alguma expressão que parece estranha e
que provoca um prejuízo desfavorável. Eu mesmo posso
compreender em certa medida esta resistência com a qual se
defrontarão minhas inovações, já que eu mesmo, para alcançá-las,
tive que superar primeiro algo semelhante. Pois, cheguei a essas
expressões não por acaso ou por ânsias de novidade, mas
constrangido pela coisa mesma (durch die Sache selbst gedrängt).
Com isto chego ao segundo motivo do atraso: a desesperança que às vezes me atacava ante à fria recepção, ou melhor
dizendo, ante à falta de recepção feita às minhas obras antes
mencionadas por parte dos matemáticos2 e a má vontade das
1 Jena, ed. Hermann Pohle, 1891. (cf. Supra, pp. 17 e ss).
2 Em vão se procuraria meus Fundamentos da Aritmética no Jahrb. Über die Fortschritte der
Math. (Anuário dos progressos da Matemática). Outros investigadores no mesmo campo,
os senhores Dedekind, Otto stolz, v. Helmholtz parecem desconhecer meus trabalhos.
Tampouco Kronecker os menciona em seu ensaio sobre o conceito de número.
345
correntes científicas contra as quais meu livro terá que lutar. Já a
primeira impressão tem que produzir espanto: sinais
desconhecidos, páginas inteiras de fórmulas extravagantes. Desse
modo, durante anos dediquei-me a outras questões. Mas, não
podia deixar por muito tempo na gaveta os resultados de meus
pensamentos, que me pareciam valiosos, e o esforço empregado
exigia sempre novos esforços para que o trabalho não fosse em
vão. Por isso não me livrava do assunto. Num caso como esse,
em que o valor do livro não pode determinar-se mediante uma
leitura rápida, a crítica deveria propiciar o começo. Mas, em
geral, a crítica se paga muito mal. Um crítico nunca poderá
esperar ser compensado em dinheiro pelo esforço que representa
um estudo profundo deste livro. Apenas me resta esperar que
alguém acredite de antemão muito no tema e que espere
interiormente uma recompensa suficiente, e que transmita logo ao
público o resultado de seu exame consciencioso. Não se trata de
que a mim apenas possa satisfazer um comentário elogioso. Pelo
contrário! Não posso senão preferir um ataque apoiado num
conhecimento profundo do que um elogio em termos gerais que
não toca no núcleo da questão. Ao leitor que queira se adentrar no
livro com tais propósitos, gostaria aqui de facilitar-lhe o trabalho
com algumas advertências.
Antes de tudo, para se obter uma ideia aproximada de
como expresso pensamentos com meus sinais, será útil examinar
detalhadamente na tábua dos axiomas mais importantes alguns
dos mais simples, ao lado dos quais está uma tradução. Desse
modo, pode-se descobrir o que os demais, para os quais não há
tradução, querem dizer. Depois, pode-se começar com a
introdução e enfrentar a apresentação da conceitografia. Contudo,
aconselho que no início faça-se apenas uma leitura rápida e não
se detenha muito diante de dúvidas particulares. Algumas
considerações seriam necessárias para poder responder a todas as
objeções, mas não são essenciais para a compreensão dos
enunciados ideográficos. Para isso eu indico a segunda parte do §
346
8, que na página 12, começa com as palavras “Se definimos agora
...”; além disso, a segunda parte do § 9, que na página 15 começa
com as palavras “Quando digo em geral ...”, e finalmente todo o §
10. Em uma primeira leitura, estas passagens podem ser deixadas
de lado. O mesmo vale para os §§ 26 e 28 até o 32. Ao contrário,
gostaria de observar que são especialmente importantes para a
compreensão a primeira parte do § 8 e além disso os §§ 12 e 13.
Uma leitura mais detalhada pode começar com o § 34 e chegar
até o final. Então, ocasionalmente o leitor deverá retroceder aos
§§ lidos com pouca atenção. Isso é facilitado pelo índice de
termos no final e pelo índice de conteúdos. As deduções dos §§
49 até o 52 podem servir como preparação para a compreensão
das demonstrações mesmas. Todos os modos de inferência e de
dedução e quase todas as aplicações de nossas leis fundamentais
aparecem já neste ponto. Depois que se tenha chegado até o fim
procedendo desse modo, se poderá ler a apresentação da
conceitografia uma vez mais em seu contexto e completamente,
tendo em vista então que as estipulações que não se utilizam de
pronto, e que por isso parecem desnecessárias, servem para o
cumprimento do princípio fundamental de que todos os sinais
formados regularmente devem referir-se a algo, princípio este que
é essencial para se alcançar um rigor absoluto. Desta maneira
creio que desaparecerá aos poucos a desconfiança que minhas
inovações podem despertar no começo. O leitor verá que meus
princípios nunca conduzem a consequências que ele mesmo não
deva reconhecer como corretas. Talvez, também deverá admitir
então que antes havia superestimado o esforço necessário, que
meu proceder sem saltos na realidade facilita a compreensão, uma
vez que se superaram os obstáculos que se originam na novidade
dos sinais. Possa eu ter a felicidade de encontrar um semelhante
leitor e crítico! Pois, um comentário baseado numa olhada
superficial seguramente seria mais prejudicial do que benéfico.
Por isso, seguramente as perspectivas de meu livro são
pequenas. Em todo caso há que se descontar todos os matemá347
ticos que ao topar com expressões lógicas, como “conceito”,
“relação”, “juízo”, pensam: methaphysica sunt, non leguntur! E
também os filósofos que ao ver uma fórmula exclamam:
mathematica sunt, non leguntur!, e serão muito poucos os que
não são de um ou de outro tipo. Talvez não seja grande o número
de matemáticos que se interessam pela fundamentação de sua
ciência, e também esses frequentemente parecem ter muita pressa
para logo deixar para trás de si as bases iniciais. E apenas me
atrevo a esperar que minhas razões para o penoso rigor e para a
extensão que a ele está conectada convençam a muitos deles. O
que se tornou habitual tem grande poder sobre as faculdades. Se
comparo a aritmética a uma árvore que em cima desdobra-se
numa multiplicidade de métodos e teoremas, enquanto que suas
raízes penetram na profundidade, então, parece-me que o impulso
de buscar as raízes, na Alemanha pelo menos, é demasiado fraco.
Mesmo numa obra que se poderia contar nessa direção, a Álgebra
da Lógica, do Sr. Schröder, impõe-se de início o impulso em
direção à copa e, antes de se ter alcançado uma profundidade
maior, efetua um giro para o alto e para o desenvolvimento de
métodos e teoremas.
Também é desfavorável para meu livro a inclinação tão
difundida de admitir-se como disponível (vorhand) apenas o
sensível (sinnliche). O que não pode ser percebido com os
sentidos, pretende-se negar ou passar por cima. Agora, os objetos
da aritmética, os números, são de natureza não-sensível. Então,
como se resolve? Muito facilmente! Tomam-se os sinais
numéricos pelos números. Nos sinais se tem algo visível, e isto
obviamente é o principal. Seguramente os sinais têm
propriedades totalmente distintas das dos números; mas, que
importa? Simplesmente imputa-se a eles as propriedades desejadas mediante supostas definições. Seguramente é um enigma
como pode dar-se uma definição quando não entra em questão
qualquer conexão entre sinal e designado. Fundem-se o sinal e o
designado tornando-os o mais indistinguíveis possível; então,
348
conforme seja necessário, pode-se afirmar a existência indicando
a tangibilidade dos signos1, ou das propriedades legítimas dos
números. Às vezes parece que se consideram os sinais numéricos
como figuras de xadrez e as chamadas definições como regras do
jogo. O sinal não designa nada, então, mas é a coisa mesma (die
Sache selbst). Claramente, assim se passa por cima de um
detalhe, a saber, que com “32+42=52” expressamos um
pensamento (Gedanken), enquanto que uma disposição de figuras
de xadrez não afirma nada (nichts besagt). Quando alguém se
contenta com tais superficialidades não há lugar, naturalmente,
para uma consideração mais profunda.
Aqui é importante ter uma ideia clara do que é definir e do
que se pode conseguir mediante definições. Com frequência
parece que se atribui à definição uma força criadora, enquanto
que na realidade não ocorre outra coisa senão que se faz ressaltar
algo delimitando-o e atribuindo-lhe um nome. Assim como o
geógrafo não cria nenhum mar quando traça fronteiras e diz: a
porção de superfície oceânica limitada por estas linhas eu
denominarei Mar Amarelo, assim tampouco o matemático pode
criar nada propriamente mediante suas definições. Não se pode
atribuir a uma coisa magicamente, por simples definição, uma
propriedade que já não tenha antes, a não ser a de chamar-se com
o nome que lhe foi atribuído. Mas, que uma figura em forma de
ovo, que se cria sobre o papel com tinta, tenha que receber
mediante definição a propriedade de que somada a um dê um, isto
somente posso considerar uma superstição científica. Do mesmo
modo poderia fazer-se, por simples definição, de um acadêmico
preguiçoso um aplicado. A confusão nasce aqui facilmente por
falta de distinção entre conceito e objeto. Se se diz: “Um
quadrado é um retângulo em que os lados que se tocam são
iguais”, define-se o conceito quadrado, ao indicar as
1 V. E. Heine: “Die Elemente der Functionslehre” (“Os elementos da teoria das funções”),
no Crelle’s Journal, n74, p. 173: “Com respeito à definição coloco-me no ponto de vista
puramente formalista, ao denominar números certos sinais perceptíveis, de modo que
não se põe em questão a existência destes números”.
349
propriedades que algo deve ter para cair sob este conceito. A estas
propriedades eu chamo características do conceito. Mas, observese que estas características do conceito não são suas propriedades.
O conceito quadrado não é um retângulo; apenas os objetos que
caem sob este conceito são retângulos, do mesmo modo como o
conceito pano negro não é negro nem pano. Que exista tais
objetos ainda não sabemos diretamente por meio da definição.
Suponhamos agora que se queira definir o número zero, por
exemplo, dizendo: é algo que somado a um dá um. Com isto
definiu-se um conceito, ao indicar a propriedade que deve ter um
objeto que caia sob o conceito. Mas, esta propriedade não é
propriedade do conceito definido. Pelo que parece, as pessoas
imaginam seguidamente que, mediante a definição, cria-se algo
que, somado a um, dá um. Erro grave! Nem o conceito definido
tem esta propriedade, nem a definição garante que o conceito não
seja vazio. Isto demanda primeiro uma investigação. Somente
quando se provou que existe um objeto e apenas um objeto com a
propriedade requerida, é que se está em condições de dar a este
objeto o nome próprio “zero”. Criar o zero é, pois, impossível.
Repetidas vezes eu expus esta opinião, mas, pelo que parece, sem
êxito.1
Tampouco por parte da lógica dominante pode se esperar
compreensão da diferença que faço entre a característica
(Merkmal) de um conceito e a propriedade (Eigenschaft) de um
objeto;2 pois, a lógica atual parece estar completamente infectada
de psicologia. Quando, em vez da coisa mesma, se consideram
somente suas imagens subjetivas (subjectiven Abbilder), as
representações (Vorstellungen), perdem-se naturalmente todas as
diferenças reais mais finas e, ao contrário, aparecem outras que
para a lógica carecem totalmente de valor. E com isso passo a
falar do que dificulta o influxo de meu livro sobre os lógicos. Se
trata da perniciosa ingerência da psicologia na lógica. Para o
1 Pede-se aos matemáticos que não gostam de extraviar-se pelos caminhos da filosofia
que interrompam aqui a leitura do Prólogo.
2 Na Lógica do Sr. B. Erdmann não encontro nenhum indício dessa importante diferença.
350
tratamento dessa última ciência deve ser decisiva a concepção das
leis lógicas, e isso por sua vez depende de como se entende a
palavra “verdadeiro”. Que as leis lógicas devem ser normas para
o pensamento alcançar a verdade, é algo reconhecido certamente
por todo o mundo; só que se esquece isso muito facilmente. Aqui
o duplo sentido da palavra “lei” é enganador. Em um sentido ela
diz o que é, em outro ela prescreve o que deve ser. Apenas nestes
sentidos as leis lógicas podem ser chamadas leis do pensamento,
ao estabelecerem o modo como se há de pensar. Toda lei que diz
o que é pode conceber-se também como uma prescrição, posto
que há que se pensar de acordo com ela, e neste sentido é
portanto uma lei do pensamento. Isto vale para as leis geométricas e físicas não menos do que para as lógicas. Estas
merecem com maior direito o nome de “leis do pensamento”,
apenas se com isto queremos dizer que são mais gerais, que
sempre prescrevem como se há de pensar sempre que se pense.
Porém, o termo “lei do pensamento” induz à opinião errônea de
que estas leis regem o pensamento do mesmo modo que as leis
naturais os acontecimentos do mundo exterior. Nesse caso, não
podem ser outra coisa que leis psicológicas; pois, o pensamento é
um processo mental (seelischer Vorgang). E se a lógica tivesse
alguma coisa a ver com estas leis psicológicas, então, ela seria
parte da psicologia. E assim é concebida de fato. Estas leis do
pensamento são consideradas, então, como normas no sentido de
que representam o padrão médio, do mesmo modo que se pode
dizer como ocorre a digestão sadia no homem, ou como se fala de
maneira gramaticalmente correta, ou como alguém veste-se
modernamente. Em tal caso, somente se pode dizer: segundo
estas leis se rege o padrão médio que os homens tomam por
verdadeiro, atualmente e na medida em que se conhecem os
homens; assim, pois, se alguém quer concordar com o padrão
médio, deve seguir estas leis. Mas, assim como o que hoje é
moderno dentro de certo tempo já não será mais, e entre os
chineses agora não é, assim também somente de maneira limitada
351
se pode propor as leis lógicas como determinantes. Certamente,
se é que na lógica se trata do que se toma por verdadeiro e não do
que é verdadeiro! E isto é o que confunde os lógicos
psicologistas. Assim por exemplo, o Sr. Erdmann equipara, no
primeiro tomo de sua Lógica,1 pp. 272-75, a verdade (Wahrheit)
com a validade geral (Allgemeingültigkeit) e fundamenta esta na
certeza geral sobre o objeto acerca do qual se julga, e esta certeza
por sua vez se baseia no acordo geral dos emissores de juizos
(allgemeine
Übereinstimmung
der
Urtheillenden).
Definitivamente, portanto, reduziu-se assim a verdade ao tomar
por verdadeiro (Fürwahrhalten) dos indivíduos. Contra isto eu
apenas posso replicar: ser verdadeiro (Wahrsein) é algo distinto
de ser tomado por verdadeiro, seja por parte de um indivíduo,
seja por muitos, ou todos; e o primeiro não pode ser reduzido ao
segundo em nenhum caso. Não há contradição em que seja
verdadeiro algo que todos têm por falso. Por leis lógicas não
entendo leis psicológicas do tomar por verdadeiro, mas as leis do
ser verdade (Gesetze des Wahrseins). Se é verdade que eu escrevo
isto em minha casa em 18 de julho de 1893, enquanto lá fora
sopra o vento, seguirá sendo verdade ainda que todos os homens
considerem isto falso. E como o ser verdade é independente de
que alguém o reconheça como tal, resulta que as leis da verdade
não são leis psicológicas, mas antes marcos cravados em um solo
eterno, que certamente podem ser renegados por nosso
pensamento, mas nunca removidos. E posto que o são, são
determinantes para o nosso pensamento, se este quer alcançar a
verdade. Estas leis não estão para nosso pensamento na mesma
relação que as leis gramaticais para a linguagem, de modo que
fossem a expressão da natureza de nosso pensamento humano e
se modificassem com ela. Completamente diferente é,
naturalmente, a concepção de lei lógica do Sr. Erdmann. Ele
duvida de sua validade incondicionada, eterna, e pretende limitála ao nosso pensamento, tal como este é agora (p. 375e s.).
1 Halle a. S., Max Niemayer, 1892.
352
“Nosso pensamento” sem dúvida somente pode significar o
pensamento da humanidade conhecida até agora. Conforme isso,
ficaria aberta a possibilidade de que se descobrissem homens ou
outros seres que pudessem emitir juizos contraditórios com
nossas leis lógicas. E, se isso ocorresse realmente? O Sr.
Erdmann diria: vemos, pois, que estes princípios não valem
universalmente. Sem dúvida! Se devem ser leis psicológicas, sua
expressão verbal deve dar a conhecer a espécie de ser cujo
pensamento está empiricamente determinado por elas. Eu diria:
existem seres, portanto, que não conhecem certas verdades
diretamente como nós, mas que talvez estejam obrigados a trilhar
pelo longo caminho da indução. Mas, o que ocorreria se também
se encontrassem seres cujas leis de pensamento contradissessem
totalmente as nossas e, portanto, também sua aplicação
conduzisse a resultados opostos? O lógico psicologista não
poderia fazer mais do que reconhecer isso e dizer: para estes seres
valem essas leis, para nós aquelas. Eu diria: aqui nós temos um
tipo de loucura até agora desconhecido. Quem entende por leis
lógicas aquelas que prescrevem como se há de pensar, ou leis do
ser verdade, não leis naturais do assentimento humano, esse
perguntará: Quem tem razão? Quais leis do tomar por verdadeiro
estão de acordo com as leis da verdade? O lógico psicologista não
pode fazer estas perguntas; pois, com elas admitiria leis do ser
verdade que não seriam psicológicas. Há pior maneira de falsear
o sentido da palavra “verdadeiro” do que quando se pretende
incluir uma relação com o emissor do juízo? Que não se me
objete que o enunciado “Eu estou com fome” pode ser verdadeiro
para um e falso para outro! O enunciado bem pode ser, mas o
pensamento não; pois, a palavra “eu” se refere na boca de outro a
outro homem, e por isso o enunciado emitido pelo outro expressa
outro pensamento. Todas as determinações de lugar, de tempo,
etc. pertencem ao pensamento cuja verdade está em questão; o ser
verdadeiro mesmo não é espacial e nem temporal. O que
realmente diz o princípio de identidade? Algo assim: “No ano
353
1893 é impossível para os homens admitir que um objeto é
distinto dele mesmo”?, ou isso: “Todo objeto é idêntico a si
mesmo”? A primeira lei trata de homens e contém uma
determinação temporal; na segunda não se fala nem de homens
nem de tempo. Esta é uma lei do ser verdadeiro, aquela é uma lei
do assentimento humano. O conteúdo de ambas é completamente
distinto, e são independentes entre si, de modo que nenhuma das
duas segue-se da outra. Por isso, é muito confuso designar ambas
com o mesmo nome de princípio de identidade. Tais confusões de
coisas radicalmente distintas são as responsáveis pela terrível
falta de claridade que encontramos nos lógicos psicologistas.
Agora, a pergunta de por que e com que direito nós
reconhecemos como verdadeira uma lei lógica, apenas pode ser
respondida pela lógica reconduzindo-a a outras leis lógicas. Onde
isto não é possível, a resposta fica em aberto. Saindo da lógica
podemos dizer: por nossa natureza e pelas circunstâncias externas
estamos obrigados a emitir juízos, e quando emitimos juízos não
podemos prescindir desta lei — a da identidade, por exemplo —;
devemos admiti-la se não queremos fazer cair nosso pensamento
em confusão e renunciar, definitivamente, a qualquer juízo. Não
vou discutir nem apoiar esta opinião, e apenas observar que aqui
não temos nenhuma consequência lógica. Não se dá nenhuma
razão do ser verdadeiro, senão de nosso assentimento. E mais:
esta nossa impossibilidade de prescindir da lei não nos impede de
supor seres que prescindam dela; mas, nos impede sim de supor
que estes seres têm razão; também nos impede de duvidar se são
eles ou nós que temos razão. Pelo menos isso vale para mim. Se
outros num só respiro se atrevem a reconhecer e duvidar de uma
lei, isso me parece como a tentativa de sair da própria pele, do
que não posso senão prevenir veementemente. Quem admitiu
uma vez uma lei do ser verdade, terá admitido com isso uma lei
que prescreve como se há de julgar sempre, onde, quando e por
quem quer que seja julgado.
Olhando o conjunto, parece-me que a origem da polêmica
354
é a distinta concepção da verdade. Para mim, ela é algo objetivo,
independente do emissor de juízos, para os lógicos psicologistas,
não. O que o Sr. B. Erdmann chama “certeza objetiva” é somente
o reconhecimento geral por parte dos emissores de juízos, que,
portanto, não é independente destes, senão que pode modificar-se
com sua natureza mental.
Podemos conceber a diferença com maior generalidade
ainda: eu reconheço um domínio do objetivo não-efetivo
(Objectiven Nichtwirklichen), enquanto que os lógicos
psicologistas consideram o não-efetivo como o subjetivo
(Subjectiv) sem mais. E, obviamente, não se vê claramente por
que aquilo que tem uma existência (Bestand) independente do
emissor de juízos deva ser efetivo, isto é, deva poder atuar
diretamente ou indiretamente sobre os sentidos. Não se pode
descobrir uma tal relação entre os conceitos. Inclusive podem
dar-se exemplos que mostram o contrário. O número um, por
exemplo, não é facilmente considerado como efetivo (wirklich),
se não se é seguidor de J. S. Mill. Por outra parte, é impossível
atribuir a cada homem o seu próprio um; pois, primeiro haveria
que se investigar até que ponto coincidem as propriedades destes
uns. E se alguém dissesse “um vezes um é um” e outro dissesse
“um vezes um é dois”, apenas se poderia constatar a diferença e
dizer: o teu um tem esta propriedade, o meu esta outra. Não teria
nenhum sentido uma discussão acerca de quem tem razão nem
também a tentativa de ensinar; pois, para isto faltaria uma
comunidade de objeto. Evidentemente, isto é totalmente contrário
ao sentido da palavra “um” e ao sentido do enunciado “um vezes
um é um”. Dado que o um, enquanto que é o mesmo para todos,
apresenta-se a todos do mesmo modo, é tão impossível investigálo por meio da observação psicológica quanto a Lua. Se bem que
existem representações do um nas mentes individuais, estas
devem ser distinguidas do um, do mesmo modo que as
representações da Lua devem ser distinguidas da Lua mesma.
Como os lógicos psicologistas ignoram a possibilidade do não355
efetivo objetivo, tomam os conceitos por representações, com o
que atribuem o seu estudo à psicologia. Mas, a verdadeira
situação impõe-se fortemente para que isto se realize. E assim se
chega a uma oscilação no uso da palavra “representação”: por um
lado, ela parece se referir a algo que pertence à vida mental do
indivíduo e se funde com outras representações, e se associa a
elas segundo leis psicológicas; por outro lado parece se referir a
algo que se apresenta a todos do mesmo modo, sem que se
nomeie ou sequer se pressuponha um sujeito de representação.
Estes dois usos são inconciliáveis; pois, estas associações ou
fusões ocor-rem somente no sujeito de representação e ocorrem
somente em um estado que é tão absolutamente peculiar a este
sujeito de representação como sua alegria ou dor. Não se deve
esque-cer que nunca as representações de homens diferentes, por
mais parecidas que possam ser, o que, por outro lado, nós não
podemos comprovar exatamente, não coincidem em nenhum
ponto, e devem ser diferenciadas. Cada um tem as suas representações, que não são por sua vez as do outro. Naturalmente,
entendo aqui “representações” no sentido psicológico. O uso
vacilante desta palavra provoca confusão e ajuda aos lógicos
psicologistas a ocultar sua debilidade. Quando se porá fim a isto!
Desse modo tudo é arrastado definitivamente para o domínio da
psicologia; desaparece cada vez mais a fronteira entre o objetivo
e o subjetivo, e inclusive os objetos efetivos são tratados
psicologicamente como representações. Pois, o que é o efetivo
senão um predicado? E, que são os predicados lógicos senão
representações? Assim desemboca tudo no idealismo e, sendo
mais consequentes, no solipsismo. Se cada um designasse com a
palavra “Lua” algo distinto, a saber, uma de suas representações,
do mesmo como a exclamação “Ai!” expressa sua dor, então,
estaria justificado o modo de consideração psicologista; mas, uma
discussão sobre as propriedades da Lua careceria de objeto:
alguém poderia muito bem afirmar de sua Lua o contrário do que
outro diria da sua, com a mesma razão. Se não pudéssemos
356
conceber mais do que está em nós mesmos, seria impossível uma
disputa de opiniões, uma compreensão mútua, porque faltaria o
terreno comum, e este não pode ser nenhuma representação no
sentido da psicologia. Não haveria nada parecido com a lógica,
que estivesse encarregado de arbitrar a disputa de opiniões.
Mas, para não dar a impressão de que estou lutando contra
moinhos de vento, vou mostrar em um livro determinado o
afundamento incontornável no idealismo. Escolho para isto a
antes mencionada Lógica do Sr. B. Erdmann como uma das obras
mais recentes da orientação psicologista, a que ninguém negará
certa importância. Consideremos o seguinte enunciado (I, p85):
“Assim, a psicologia ensina com certeza que os objetos da
memória e da imaginação são, tal como os da representação
patológica alucinatória e ilusória, de natureza ideal.... Ideal é
também todo o domínio das representações propriamente
matemáticas, desde a série dos números até os objetos da
Mecânica”.
Que comparação! O número dez deve também estar no
mesmo nível que o das alucinações! Aqui se confunde,
evidentemente, o não-efetivo objetivo com o subjetivo. Algumas
coisas objetivas são efetivas, outras não. Efetivo é somente um
dos tantos predicados, e à lógica não lhe interessa mais que o
predicado algébrico aplicado a uma curva. Naturalmente, por
causa dessa confusão, o Sr. Erdmann se perde na metafísica, por
mais que tente manter-se livre dela. Considero um sintoma seguro
de erro que a lógica necessite da metafísica e da psicologia,
ciências estas que precisam dos princípios da lógica. Qual é aqui
a verdadeira base originária sobre a qual tudo repousa? Ou é
como no conto de Münchausen, que ele mesmo saia do pântano
puxando-se pelos cabelos? Duvido muito dessa possibilidade e
suspeito que o Sr. Erdmann ficará atolado em seu pântano
psicológico-metafísico.
Não existe uma verdadeira objetividade para o Sr.
Erdmann, pois tudo é representação. Nos convenceremos disso
357
por meio de suas próprias afirmações. Na página 187 do primeiro
volume, lemos:
“Na medida em que é uma relação entre coisas
representadas, o juízo pressupõe dois pontos relacionais, entre os
quais tem lugar. Como asserção (Aussage) sobre o representado,
exige que um destes pontos relacionais defina-se como objeto do
qual se assere algo, o sujeito ..., o segundo como objeto que se
assere, o predicado...”. Antes de tudo, vemos aqui que tanto o
sujeito, do qual se assere algo, como o predicado, são
qualificados de objeto ou representado. Em vez de “o objeto”,
poderia ter dito também “o representado”; com efeito, lemos (I,
p.81): “Pois os objetos são o representado”. Mas, ao inverso,
também todo o representado deve ser objeto. Na página 38 diz-se:
“Por sua origem, o representado divide-se, por um lado,
em objetos da percepção sensorial e da consciência de si mesmo,
e por outro, em primitivos e derivados.”
O que nasce da percepção sensorial e da consciência de si
é, sem dúvida, de natureza mental. Os objetos, o representado e
com isso também sujeito e predicado são atribuídos à psicologia.
Isto é confirmado pela seguinte passagem (I, pp. 147 e 148):
“É o representado ou a representação como tal. Pois,
ambos são uma e a mesma coisa: o representado é representação,
a representação é o representado”.
A palavra “representação” geralmente é tomada em
sentido psicológico; que este também seja o uso dado pelo Sr.
Erdmann vemos pelas passagens:
“Consciência, por conseguinte, é sentir, representar,
querer o geral” (p. 35), e “O representar compõe-se das
representações... e pelo fluxo de representações” (p. 36).
Por isso não deveríamos estranhar que um objeto surja
pela via psicológica:
“Na medida em que uma massa de percepções ...
apresenta algo análogo a estímulos anteriores e às excitações
provocadas por eles, reproduz os resíduos da memória que
358
procediam do análogo nos estímulos anteriores e funde-se com
eles para formar o objeto da representação apercebida” (I, p.42).
Na página 43, mostra-se, por exemplo, como se cria por
meios puramente psicológicos, sem prancheta, tinta, prensa e sem
papel, um relevo de cera da Madonna sixtina de Rafael. Depois
disso, ninguém pode duvidar de que o objeto, do qual se afirma
algo, há-de ser, segundo a opinião do Sr. Erdmann, o sujeito de
uma representação no sentido psicológico, o mesmo que o
predicado, o objeto que é afirmado. Se isto fosse correto, de
nenhum sujeito poder-se-ia afirmar com verdade que é verde;
pois, não há representações verdes. Eu tampouco poderia afirmar
de um objeto (Subjecte) a independência em relação ao ser
representado ou em relação a mim, o representador, como
tampouco minhas decisões são independentes de minha vontade
nem de mim, o querente, e seriam aniquiladas comigo caso eu
fosse aniquilado. Para o Sr. Erdmann não há, pois, uma
objetividade autêntica, como também se deduz do fato de que põe
o representado ou a representação em geral, o objeto no sentido
mais geral da palavra, como gênero supremo (genus summum) (p.
147). Ele é, portanto, um idealista. Se os idealistas pensassem de
modo consequente, não considerariam o enunciado “Carlos
Magno conquistou os saxões” nem verdadeiro nem falso, senão
como poesia, tal como estamos acostumados a conceber, por
exemplo, o enunciado “Nessus levou Deïanira para o outro lado
do rio Euenus”, pois também o enunciado “Nessus levou Deïanira
para o outro lado do rio Euenus” apenas poderia ser verdadeiro
ou falso se o nome “Nessus” tivesse um portador. Desse ponto de
vista, certamente não seria fácil demover os idealistas. Mas, não
temos porque admitir isso, que falsifiquem o sentido do
enunciado como se eu quisera afirmar algo acerca de minha
representação quando falo de Carlos Magno; eu quero designar
um homem independente de mim e de minha representação e
afirmar algo sobre ele. Pode-se conceder aos idealistas que a
execução desse propósito não é totalmente segura, que talvez sem
359
querer eu abandone a verdade para cair na poesia. Mas, com isso
nada é alterado no sentido. Com o enunciado “esta ramagem é
verde” não expresso nada sobre minha representação; com as
palavras “esta ramagem” não designo nenhuma de minhas
representações, e, se assim o fizesse, o enunciado seria falso.
Aqui aparece uma segunda falsificação, a saber, que minha
representação do verde seja afirmada de minha representação
desta ramagem. Eu repito: neste enunciado não se trata
absolutamente de minhas representações; desse modo seria
atribuído a ele um sentido completamente diferente. Diga-se de
passagem, absolutamente não entendo como uma representação
pode ser afirmada de algo. Assim mesmo seria uma falsificação
se se quisesse dizer que, no enunciado “a Lua é independente de
mim e do meu representar”, minha representação do ser
independente de mim e de meu representar sejam afirmados de
minha representação da Lua. Desse modo se abandonaria a
objetividade no sentido próprio da palavra e posto algo muito
diferente no seu lugar. Certamente é possível que ao emitir um
juízo ocorra tal jogo de representações; mas, não é este o sentido
do enunciado. Também pode-se observar que no mesmo
enunciado, e com o mesmo sentido do enunciado, o jogo de
representações pode ser completamente diferente. E esta
manifestação logicamente indiferente é tomada por nossos
lógicos como o real objeto de sua investigação.
Como é compreensível, a natureza do tema evita um
afundamento no idealismo, e o Sr. Erdmann não estaria disposto a
admitir que para ele não há objetividade autêntica; mas,
igualmente compreensível é a vanidade desse esforço. Pois, se
todos os sujeitos e todos os predicados são representações, e se
todo pensamento não é senão a produção, conexão e modificação
de representações, não se compreende como se pode alcançar
algo objetivo. Uma indicação desse vão esforço é já o uso das
palavras “representado” e “objeto”, que à primeira vista parecem
querer designar algo objetivo em contraposição à representação,
360
mas apenas parecem; pois, está claro que se referem a mesma
coisa. Para que, então, esta profusão de expressões? Isto não é
difícil de adivinhar. Note-se também que se fala de um objeto da
representação, embora o objeto mesmo tenha de ser uma
representação. Este seria, logo, uma representação da
representação. A que relação de representações nos referimos
aqui? Por mais obscuro que isto seja, também é compreensível,
sem dúvida, como o conflito da natureza da questão com o
idealismo pode dar origem a semelhante embaraço. Por todos os
lados vemos como aqui se confundem o objeto, do qual faço uma
representação, com esta representação, e depois volta a aparecer a
diferenciação. Este conflito nós o detectamos também no seguinte
enunciado:
“Pois uma representação cujo objeto é geral nem por isso
é, como tal, como evento da consciência, geral, como tampouco é
real uma representação porque seu objeto é posto como real, nem
um objeto que sentimos como doce... é dado por representações
que em si mesmas sejam doces” (I, p. 86).
Aqui predomina a verdadeira situação com toda sua força.
Eu quase poderia estar de acordo; mas, observemos que, segundo
os princípios erdmannianos, o objeto de uma representação e o
objeto que é dado por representações são também representações,
de modo que toda defesa é em vão. Peço que se retenha na
memória as palavras “como tal”, que aparecem similarmente na
seguinte passagem, também na página 83:
“Quando se afirma a realidade de um objeto, o sujeito
material deste juízo não é o objeto ou o representado como tal,
mas é o transcendente, que se pressupõe como fundamento ôntico
(Seinsgrundlage) desse representado, que se manifesta por meio
do representado. Nesse caso não se deve supor que o
transcendente seja o incognoscível..., mas que sua transcendência consiste apenas na sua independência em relação ao ser
representado”.
Outra vã tentativa de sair do pântano! Se tomamos estas
361
palavras a sério, então é dito que nesse caso o sujeito não é uma
representação. Mas, se isso é possível, então, não se compreende
por que no caso de outros predicados, que indicam modos
especiais de atuação ou efetividade, o sujeito material deva ser
absolutamente uma representação, por exemplo, no juízo “a Terra
é magnética”. E assim chegaríamos ao resultado de que somente
em alguns poucos juízos o sujeito material deveria ser uma
representação. Mas, uma vez que se admitiu não ser essencial
nem para o sujeito nem para o predicado que seja uma
representação, então, retira-se o solo de apoio dos pés da lógica
psicologista. Todas as considerações psicológicas de que estão
cheios atualmente nossos livros de lógica aparecem então como
carentes de finalidade.
Porém, certamente não devemos levar tão a sério a
transcendência do Sr. Erdmann. Basta apenas recordar uma de
suas afirmações (I, p. 148): “Ao gênero supremo está subordinado também o limite metafísico de nossa representação, o
transcendente”, e ele se afunda; pois, este gênero supremo (genus
summum), segundo ele, é precisamente o representado ou a
representação como tal. Ou será que a palavra “transcendente”
anterior deve ser empregada noutro sentido diferente desse? Em
todo caso, teria que se pensar o transcendente como estando
subordinado ao gênero supremo.
Todavia, detenhamo-nos um pouco na expressão “como
tal”! Considere-se o caso em que alguém quisesse fazer-me
acreditar que todos os objetos não são nada mais do que imagens
sobre a retina de meu olho. Tudo bem, eu ainda não respondo
nada. Mas, ele prossegue afirmando que a torre é maior do que a
janela pela qual eu penso ver a primeira. Obviamente, diante
disso eu diria: ou bem não são nem a torre nem a janela imagens
retinianas em meu olho, e nesse caso a torre pode ser maior que a
janela; ou bem a torre e a janela, como tu dizes, são imagens em
minha retina, e então a torre não é maior, mas menor que a janela.
Agora, ele quer escapar do embaraço com o “como tal” e diz:
362
com certeza a imagem retiniana da torre como tal não é maior do
que a da janela. Diante disso, eu quase poderia sair da pele e
gritar para ele: pois então a imagem retiniana da torre não é maior
que a da janela, e se a torre fosse a imagem retiniana da torre e a
janela a imagem retiniana da janela, então, a torre não seria maior
que a janela, e se tua lógica te ensina algo diferente é porque não
serve para nada. Esse “como tal” é uma invenção excelente para
autores confusos que não querem dizer nem sim nem não. Mas,
eu não tolero esta vacilação entre ambos, e pergunto: se de um
objeto se afirma a efetividade, então o sujeito material do juízo é
a representação, sim ou não? Se não é, o é sem dúvida o
transcendente que se pressupõe como fundamento ôntico dessa
representação. Mas, esse transcendente, por sua vez, é
representado ou representação. Assim somos conduzidos à
suposição ulterior de que o sujeito do juízo não é o transcendente
representado, mas o transcendente pressuposto como fundamento
ôntico desse transcendente representado. Desse modo, sempre
teríamos de ir adiante; porém, por mais longe que fôssemos,
nunca sairíamos do subjetivo. Do mesmo modo, poderíamos
começar o mesmo jogo com o predicado, e não apenas com o
predicado efetivo, mas igualmente com doce. Neste caso,
diríamos primeiro: se de um objeto se afirma a efetividade ou a
doçura, o predicado material não é a efetividade ou a doçura
representadas, mas o transcendente pressuposto como
fundamento do representado. Mas, desse modo não
descansaríamos nunca, e sempre teríamos de ir mais além. O que
se apreende de tudo isso? Que a lógica psicologista está numa
vereda sem saída ao conceber sujeito e predicado dos juízos como
representações no sentido da psicologia, que as considerações
psicológicas são tão pouco adequadas em lógica como em
astronomia ou geologia. Se queremos sair do subjetivo, devemos
conceber o conhecimento como uma atividade que não produz o
conhecido, mas que agarra (ergreift) algo que já existe. A imagem
do agarrar é muito adequada para explicar a questão. Se eu agarro
363
um lápis, ocorrem em meu corpo certos processos: excitações
nervosas, alterações na tensão e na pressão dos músculos, tendões
e ossos, modificações na circulação sanguínea. Mas, o conjunto
desses processos não é o lápis, nem o produz. Este subsiste
(besteht) independente de tais processos. E é essencial para o
agarrar que haja aí algo que seja agarrado; as modificações
internas por si só não são o agarrar. Assim, também, o que
apreendemos
mentalmente
(geistig
erfassen)
subsiste
independentemente dessa atividade, das representações e suas
modificações, que pertencem ou acompanham essa apreensão;
não é nem a totalidade desses processos, nem é produzido por
eles como parte de nossa vida mental.
Vemos agora como os lógicos psicologistas borram
distinções reais mais finas. A confusão entre característica e
propriedade já foi mencionada. Com ela está relacionada a
diferença acentuada por mim entre objeto e conceito, como
também a que há entre conceitos de primeira e de segunda ordem.
Estas distinções, naturalmente, são irreconhecíveis para os
lógicos psicologistas; pois, para eles tudo é representação. Por
isso também carecem de uma concepção correta do tipo de juízos
que em Português fazemos com “há”*. Esta existência é
confundida pelo Sr. Erdmann (Lógica, I, p. 311) com a
efetividade, que, como vimos não é diferenciada claramente da
objetividade. De que coisas afirmamos propriamente que é
efetivo quando dizemos que há raízes quadradas de quatro? Seria
do 2 ou do −2? Mas, absolutamente nem um nem outro são aqui
nomeados. E se eu quisesse dizer que o número dois atua, ou que
é atuante ou efetivo, isto seria falso e totalmente diferente do que
quero dizer com o enunciado “há raízes quadradas de quatro”. A
confusão que ocorre aqui quase é a mais grosseira possível; pois,
não ocorre entre conceitos da mesma ordem, mas são mesclados
um conceito de primeira ordem e um de segunda. Isto é
característico da grosseria da lógica psicologista. Se, em geral, se
* N. T. Tomei a liberdade de substituir aqui “im Deutschen” e “es gibt” por “em
Português” e “há”.
364
alcançou um ponto de vista mais livre, espanta-se de que tal erro
possa ser cometido por um lógico profissional; porém,
naturalmente, primeiro há que se ter compreendido a diferença
entre conceitos de primeira e segunda ordem, antes que se possa
medir a magnitude desse erro e disso a lógica psicologista é sem
dúvida incapaz. O obstáculo com que quase sempre esta choca-se
é que seus representantes esperam milagres do aprofundamento
psicológico, quando este não é mais do que uma falsificação
psicológica da lógica. E assim aparecem nossos grossos livros de
lógica nas estantes, inchados de insana gordura psicológica que
oculta todas as formas mais finas. Desse modo faz-se impossível
uma colaboração frutífera entre matemáticos e lógicos. Enquanto
que o matemático define objetos, conceitos e relações, o lógico
psico-logista espreita o acontecer e a transformação das
representações e, no fundo, as definições do matemático apenas
podem parecer-lhe insensatas, porque não refletem a essência da
representação. Ele olha dentro de sua câmara psicológica e diz
para o matemático: não vejo nada de tudo isso que tu defines. E o
outro apenas pode responder: não me admira, pois não está ali
onde procuras.
Isso basta para tornar claro, por contraposição, meu ponto
de vista lógico. A distância com respeito à lógica psicologista me
parece tão grande que não há perspectivas de que meu livro influa
agora já sobre ela. Parece-me como se a árvore plantada por mim
devesse levantar um peso descomunal para procurar espaço e luz.
E, contudo, não quisera abandonar a esperança de que mais tarde
meu livro possa contribuir para derrubar a lógica psicologista.
Para isso não deverá faltar-lhe certo reconhecimento por parte dos
matemáticos, o qual os forçará a enfrentar-se com ele. E creio
poder esperar certo apoio dessa parte; pois, obviamente, os
matemáticos têm que fazer causa comum contra os lógicos
psicologistas. Logo que estes se dignem a estudar seriamente meu
livro, ainda que apenas para atacá-lo, creio terei vencido. Pois,
toda a Parte II é na realidade uma prova de minhas concepções
365
lógicas. De antemão é improvável que semelhante construção
pudesse estar alicerçada sobre uma base insegura e errada.
Qualquer um que tenha outras concepções pode tentar montar
sobre elas uma construção semelhante e acabará por ver, segundo
creio, que não funciona ou pelo menos que não funciona tão bem.
E como refutação, eu apenas poderia admitir que alguém
mostrasse na prática que com outras concepções básicas
diferentes se pode construir um edifício melhor e mais sólido, ou
que alguém me mostrasse que meus princípios conduzem a
consequências manifestadamente falsas. Mas, isso ninguém
conseguirá. E assim pode ser que este livro contribua, ainda que
tarde, para uma renovação da lógica.
Jena, julho de 1893.
366
16.
Lógica [1897]
G. Frege
Tradução provisória Schriften zur Logik und Sprachphilosophie,
aus dem Nachlass; hrsg. G. Gabriel. Hamburg, Felix Meiner, 2001.
S. 35-73.
[35]1
[Breves indicações do conteúdo das páginas. Frege o fez apenas até a
página 57]
[38] A palavra “verdadeiro” (wahr) fornece o objetivo. A lógica está
envolvida de modo especial com o predicado “verdadeiro”. A
palavra “verdadeiro” caracteriza a lógica.
[39] Verdadeiro não se deixa definir; não se pode dizer: verdadeira é
uma representação se ela concorda com a realidade.
Verdadeiro originário e simples. Expor a singularidade de
nosso predicado através de comparação. Ele sempre é
enunciado se algo é enunciado (ausgesagt).
[40] Pesquisar o domínio onde o predicado “verdadeiro” é aplicável.
Não na corporeidade. Se o atribui mais seguidamente a frases;
obviamente apenas a frases assertóricas. Obviamente não às
sequências de sons. Tradução.
[41s] (Não se faz necessário considerar em lógica enunciados
aparentes.)
1
Paginação da edição usada como base para a tradução.
367
[42]
[43]
[44]
[45]
[46]
O sentido (Sinn) de uma frase (Satzes) é denominado
pensamento (Gedanke). O predicado “verdadeiro” aplica-se
aos pensamentos. Também é aplicável às representações
(Vorstellungen)? Também quando uma representação é
denominada verdadeira, propriamente é ao pensamento que
esse predicado é atribuído.
Pensamento não é nenhuma representação e não é composto
destas. Pensamentos e representações são fundamentalmente
diferentes. Através da associação de representações nunca
surge algo que poderia ser verdadeiro.
O meio de expressão apropriado para o pensamento é a frase.
Esta, ao contrário, é pouco apropriada para reproduzir
representações. Imagens e peças musicais, [36] ao contrário,
são inapropriadas para expressar pensamentos. Comparação
do predicado “verdadeiro” com “belo”. Este tem uma
gradação, aquele não.
O belo é apenas belo para quem como tal o sente. Sobre o gosto
não se discute. O verdadeiro é em si verdadeiro; nada é em si
belo. Na base dos juízos de gosto objetivos está a suposição
de um homem normal. Agora, o que é normal? O belo
objetivo portanto baseia-se sempre no belo subjetivo. Não é
útil para nada ao invés de um normal supor um homem ideal.
A obra de arte é uma configuração de representações em nós.
Cada um tem a sua. Nenhuma contradição entre juízos de
beleza. Qualquer um que asserisse que algo é verdadeiro
apenas pelo nosso reconhecimento contradiria com esse ato o
conteúdo de sua asserção. Ele não poderia em verdade asserir
nada. Toda opinião seria então injustificável; não haveria
nenhuma ciência. Propriamente não haveria nada verdadeiro.
A independência em relação ao nosso reconhecimento está
intrinsecamente ligada ao sentido da palavra “verdadeiro”.
Pensamentos não precisam ser pensados por nós para serem
verdadeiros. Leis da natureza são descobertas (não criadas).
Pensamentos são independentes de nosso pensar (Denken). O
pensamento não é especialmente próprio do pensador como a
representação do representador, mas está para os pensadores
igualmente como o mesmo. Do contrário nunca dois homens
associariam com a mesma frase o mesmo pensamento. Uma
contradição entre asserções de diferentes homens seria
impossível. Discussões sobre a verdade seriam vãs. Faltaria
uma arena comum.
368
[47] Em relação à beleza cada um julga o seu poema, assim cada um
julgaria também o seu pensamento, se esse se relacionasse
com a frase de modo semelhante ao modo como [37] as
configurações de representações sonoras com as vibrações do
ar. Se o pensamento fosse algo mental, então a sua verdade
poderia consistir apenas numa relação com algo externo, e que
esta relação ocorresse seria um pensamento de cuja verdade se
deveria perguntar. Roda de moinho. O pensamento é algo
impessoal. Escrita na parede.
[48] Objeção: uma frase como “Eu estou com frio”. As palavras
proferidas precisam seguidamente de um complemento. A
palavra “eu” não designa sempre a mesma pessoa. A frase
com “eu” pode ser dita de uma forma mais apropriada.
Diferença das interjeições. Palavras “agora”, “aqui”
semelhantes a “eu”. Num juízo subjetivo de gosto é essencial
quem o enuncia.
[49] Objeção: eu emprego a palavra “pensamento” de modo não
habitual.
[50s] Suposição. O modo de emprego de Dedekind concorda com o
meu integralmente.
[51] O pensar não é produção, mas apreensão de pensamentos.
[52] Pensamento não espacial. Material.
[53] Pensamento apenas em um sentido especial algo efetivo.
Também os pensamentos falsos independentes do falante.
[54] O predicado “verdadeiro” sempre é co-enunciado. Em frases
assertivas a expressão de um pensamento e o reconhecimento
de sua verdade estão ligados. Esta ligação não é necessária.
Nem sempre há numa frase assertiva uma asserção. A
apreensão do pensamento seguidamente precede o
reconhecimento da verdade. Julgar, asserir. Uma frase deve
também atuar sobre o representar e sentir.
[55] Ela é capaz de fazer isso como todo de impressões sonoras.
Onomatopeia. Através de seu sentido as palavras atuam sobre
o representar. Obviamente representação não intersubstituível
com sentido.
[56]
A palavra não determina sozinha a representação.
Representações para a mesma palavra são diferentes.
[38]
Palavras fornecem indicações para o representar. Meios para o
poeta. “Cachorro” e “cão” podem substituir uma a outra, sem
modificar o pensamento. A diferença tem o valor de uma
interjeição.
369
[57] Kriterium. Para diferenciar: pensamentos que se expressa, e
aqueles que apenas se provoca a apreensão. Voz triste, “ah”,
“infelizmente”. Casos duvidosos devido à mutabilidade da
linguagem.
Introdução
O predicado verdadeiro, pensamentos, consequências para a
abordagem da lógica
Ao adentrar numa ciência, tem-se a necessidade, provisoriamente
ao menos, de se ter uma noção de sua natureza. Deseja-se ter em vista
um objetivo para buscar, um ponto de chegada, que dê a direção, para o
qual se quer progredir. Para a lógica a palavra “verdadeiro” pode servir
para tornar conhecido esse ponto, de modo análogo como “bom” para a
ética e “belo” para a estética. Na verdade, todas as ciências tem a
verdade como seu objetivo, mas a lógica lida com o predicado
“verdadeiro” de um modo especial, a saber, análogo à física com os
predicados “pesado” e “quente” ou à química com os predicados
“ácido” e “alcalino”; com a diferença que estas ciências tem que levar
em conta, além dessas mencionadas, outras propriedades e nenhuma
individualmente pode caracterizar a sua natureza tão completamente
como a lógica pela palavra “verdadeiro”.
Como a ética, pode-se denominar a lógica como uma ciência
normativa. Como eu devo pensar para alcançar o objetivo, a verdade?
Espera-se da lógica o respondimento à esta questão, mas não se exige
dela que ela adentre ao que é peculiar a cada ramo de conhecimento e
seus objetos; mas sim atribuímos como tarefa à lógica indicar apenas o
mais geral, o que tem validade para todos os domínios do pensar. As
regras para o nosso pensar e tomar por verdadeiro nós devemos pensar
como [39] determinadas por meio das leis do ser verdade (Gesetze des
Wahrseins). Com estas aquelas são dadas. Com isso nós podemos
também dizer: a lógica é a ciência das mais gerais leis do ser verdade.
Pode-se talvez achar que assim não é possível pensar de modo muito
preciso. A culpa pode ser da falta de jeito do autor e da linguagem. Mas
também se trata apenas de tornar conhecido aproximadamente o
objetivo. O que ainda falta deve ser completado no prosseguimento.
370
Agora seria inútil esclarecer o que deve ser compreendido por
“verdadeiro” por meio de uma definição. Se se quisesse falar assim:
“verdadeira é uma representação quando ela concorda com a
realidade”, assim nada seria alcançado, pois, para aplicar isso, se
deveria decidir se em um caso dado uma representação realmente
concorda com a realidade, em outras palavras: se é verdadeiro que a
representação concorda com a realidade. Logo, deve-se pressupor
aquilo que está sendo definido. O mesmo valeria para toda definição
dessa forma: “A é verdadeira, se ela tem esta e aquela propriedade, ou
está nessa ou naquela relação com isso e aquilo”. Sempre retornaria em
cada caso a questão de se é verdade que A tem esta e aquela
propriedade, ou está nessa ou naquela relação com isso e aquilo.
Verdade é claramente algo tão originário e simples que a recondução a
algo ainda mais simples não é possível. Por isso nós precisamos
esclarecer a peculiaridade de nosso predicado por meio da comparação
com outros. Primeiramente ele diferencia-se de todos os outros
predicados em que ele sempre é enunciado (ausgesagt) junto quando
qualquer coisa é enunciada.
Se eu assiro (behaupte)1 que a soma de 2 e 3 é 5, então, eu assiro
com isso que é verdade que 2 e 3 é 5. E assim assiro eu, é verdade que
minha representação da Catedral de Colonia concorda com a realidade,
se eu assiro que ela concorda com a realidade. A forma da frase
assertiva (Form des Behauptungssatzes) é portanto propriamente o com
que nós dizemos a verdade, e para isso nós não precisamos da palavra
“verdadeiro”. Sim, nós podemos dizer: ali onde nós empregamos o
modo de expressão “é verdade que ...”, [40] é propriamente a forma da
frase assertiva o essencial.
Perguntemos, agora: onde o predicado “verdadeiro” é
empregável? Trata-se de delimitar um domínio fora do qual não se
possa em geral falar de um emprego. O inteiro domínio da corporeidade
de qualquer modo está excluído. Apenas para as obras de arte poderia
contudo surgir uma dúvida. Porém, quando se fala em verdade aí,
emprega-se obviamente esta palavra com um significado diferente do
1
N. do T. A opção pela tradução de “behaupten” por “asserir”, e não por “afirmar”, que seria
mais natural, deve-se obviamente ao fato de que o próprio Frege diferencia o ato de asseverar
da afirmação e da negação. Essa antiga palavra da nossa língua, “asseverar”, também poderia
ser usada, mas ela contém nela mesma a indicação de que ao asserir algo se afirma a sua
verdade, e isso tornaria redundante o ponto de Frege.
371
aqui visado. Em todo caso, apenas como obra de arte denominam-se as
coisas como verdadeiras. Fosse ela criada por meio da atuação das
forças cegas da natureza, o nosso predicado não seria empregado. Pelas
mesmas razões nós excluímos da consideração o modo de emprego
feito, seja, por um crítico de arte, quando se denomina verdadeiros
sentimentos e experiências.
Na maioria das vezes atribui-se a frases o nosso predicado; em
todo caso, estão excluídas as frases que expressam desejos, perguntas,
pedidos e ordens, e apenas as frases assertivas estão em consideração,
aquelas frases em que nós comunicamos fatos, estabelecemos leis
matemáticas ou leis da natureza.
Além disso claro é que não é à sequência de sons, como se
apresenta uma frase, mas ao seu sentido (Sinn), que nós propriamente
atribuímos verdade; pois, por um lado, a verdade de uma frase é
preservada quando ela é corretamente traduzida para uma outra
linguagem, por outro, é ao menos concebível que a mesma sequência de
sons em uma linguagem tenha um sentido verdadeiro e em outra um
falso.
Nós compreendemos aqui sob a palavra “frase” a frase principal
(Hauptsatz) e as dela dependentes frases subordinadas (Nebensätze).
Nos únicos casos que concernem à lógica o sentido de uma frase
assertiva (Behauptungssatze) é ou verdadeiro ou falso, e então nós
temos o que eu chamo propriamente de um pensamento (Gedanken).
Há, porém, ainda um terceiro caso sobre o qual se deve aqui fazer
alguma menção.
A frase “A Scylla tem seis cabeças” não é verdadeira, mas a frase
“A Scylla não tem seis cabeças” também não é verdadeira; pois, para
ser verdadeira o nome próprio “Scylla” deveria designar algo (etwas
bezeichnete). Talvez nós pensemos que o [41] nome “Scylla” sim
designa algo, a saber, uma representação (Vorstellung). Nesse caso, a
primeira questão a se fazer é “qual representação?”. Nós seguidamente
falamos como se uma e a mesma representação ocorresse em diferentes
pessoas, mas isso é falso, ao menos se a palavra “representação” é
usada no sentido psicológico: cada pessoa tem sua própria
representação. Agora, uma representação não tem cabeças, e então nós
não podemos cortar cabeças de uma representação também. A palavra
“Scylla” portanto não designa uma representação. Os nomes que
falham em cumprir a função usual de um nome próprio, que é nomear
372
algo, podem ser chamados de nomes próprios aparentes
(Scheineigenname). Embora a lenda de Tell seja uma saga e não uma
história e o nome “Guilherme Tell” seja um nome próprio aparente, nós
não podemos negar-lhe um sentido (Sinn). Mas o sentido da frase “Tell
flechou uma maçã sobre a cabeça de seu filho” não é mais verdadeiro
do que o da frase “Tell não flechou uma maçã sobre a cabeça de seu
filho”. Eu também não digo, porém, que este sentido seja falso, mas o
caracterizo como ficção (Dichtung). Isto pode esclarecer o sentido em
que eu estou usando a palavra “falso”, que é tão pouco suscetível de
definição própria quanto o é a palavra “verdadeiro”.
Se a teoria idealista do conhecimento fosse correta então todas as
ciências pertenceriam ao domínio da ficção. Com efeito, pode-se tentar
reinterpretar todas as frases de tal modo que elas fossem sobre
representações. Ao fazer isso, contudo, os seus sentidos seriam
completamente alterados e nós obteríamos uma ciência muito diferente;
esta nova ciência seria um ramo da psicologia.
Em vez de falar de “ficção” nós poderíamos falar de
“pensamentos aparentes” (Scheingedanke). Assim, se o sentido de uma
frase assertiva não é verdadeiro, ele é ou falso ou fictício, e em geral
será o último se ela contém um nome próprio aparente *. O escritor, em
comum, por exemplo, com o pintor, tem seus olhos na aparência
(Schein). Asserções na ficção não são para serem levadas a sério: elas
são apenas asserções aparentes (Scheinbehauptungen). Também os
pensamentos não são para serem levados [42] a sério como nas
ciências: eles são apenas pensamentos aparentes. Se o Don Carlos de
Schiller fosse para ser visto como uma peça de história, então em
grande parte o drama seria falso. Mas, uma obra de ficção não é feita
para ser levada a sério desse modo: ela é um jogo (Spiel). Também os
nomes próprios no drama, embora eles correspondam a nomes de
personagens históricos, são nomes próprios aparentes; na obra eles não
são para serem levados a sério. Nós temos um caso similar na pintura
histórica. Como uma obra de arte ela simplesmente não reclama
oferecer uma representação visual do que efetivamente aconteceu. Um
quadro que pretendesse retratar algum momento significativo da
história com precisão fotográfica não seria uma obra de arte no sentido
*
Nós temos uma exceção ali onde um nome próprio ocorre numa cláusula em orações indiretas.
373
superior da palavra, mas seria comparável antes a um desenho
anatômico numa obra científica.
O lógico não tem de se preocupar com pensamentos aparentes,
tanto quanto um físico que investiga raios não prestará nenhuma
atenção a raios-de-palco. Quando nós falarmos de pensamento no que
se segue, nós significamos pensamentos propriamente, pensamentos
que podem ser ou verdadeiros ou falsos.
O sentido de uma frase assertiva eu denomino um pensamento.
Exemplos de pensamentos são as leis da natureza, as leis matemáticas,
os fatos históricos: todos esses encontram expressão em frases
assertivas. Eu agora posso ser mais preciso e dizer: o predicado
“verdadeiro” aplica-se a pensamentos.
Obviamente fala-se de representações verdadeiras também. Por
uma representação entende-se uma imagem da fantasia (Phantasiebild)
que, diferente da percepção (Anschauung), não se baseia em impressões
atuais, mas na reativação de traços de impressões e ações passadas.
Como qualquer imagem, uma representação não é verdadeira nela
mesma, mas apenas em relação a algo a que ela deve corresponder. Se
se diz que uma imagem deve representar a catedral de Colonia a
distância, pode-se perguntar se esta intenção foi realizada; se não há
nenhuma referência à intenção de representar algo, não pode haver
questão da verdade de uma imagem. Pode-se ver a partir disso que o
predicado verdadeiro não é aplicado realmente à própria representação,
mas ao pensamento de que ela [43] representa um certo objeto. E esse
pensamento não é uma representação, nem é constituído de
representações de modo algum. Pensamentos são fundamentalmente
diferentes de representações (no sentido psicológico). A representação
de uma rosa vermelha é algo diferente do pensamento de que esta rosa é
vermelha. Nós podemos associar representações e misturá-las, mas com
isso apenas alcançamos novas representações e não algo que possa ser
verdadeiro. Esta diferença aparece também nos modos que nós temos
de comunicar. O meio próprio para a expressão de um pensamento é
uma frase. Mas uma frase é dificilmente apropriada como veículo para
comunicar uma representação. Eu apenas relembro o quão inadequado
é qualquer descrição comparada com uma apresentação imagéticas
(bildlichen Darstellung). Um pouco mais favorável são as coisas nas
representações sonoras; onde a onomatopeia pode ajudar; porém a
onomatopeia não tem nada a ver com a expressão de pensamentos
374
(Gedankenausdrucke), e numa tradução são facilmente perdidas essas
tonalidades, enquanto o pensamento deve ser preservado para
propriamente poder se falar em tradução. Inversamente, imagens e
composições musicais sem o acompanhamento de palavras são
dificilmente adequadas para expressar pensamentos. É verdade que nós
podemos associar todo tipo de pensamentos com alguma obra de arte
ou outra, mas não há nenhuma conexão necessária entre ambos, e nós
não ficamos surpresos se outro associa diferentes pensamentos com ela.
Para esclarecer a peculiaridade do predicado verdadeiro,
compare-se com o predicado belo. Nós podemos ver, para começar, que
o que é belo admite graus, mas o que é verdadeiro não. Nós podemos
imaginar dois objetos belos, e ainda pensar um mais belo do que o
outro. Ao contrário, se dois pensamentos são verdadeiros, um não é
mais verdadeiro do que o outro. E aqui emerge a diferença essencial de
que o que é verdadeiro é verdadeiro independente de nosso
reconhecimento, mas o que é belo é belo apenas para [44] aquele que o
experimenta como tal. O que é belo para uma pessoa não é
necessariamente belo para outra. Não há disputa de gosto. Onde a
verdade está em questão, existe a possibilidade de erro, mas não onde
está a beleza. Pelo simples fato de que eu considero algo belo ele é belo
para mim. Mas, algo não tem de ser verdadeiro porque eu o considero
verdadeiro, e se não é verdadeiro por si mesmo, também não é
verdadeiro para mim. Nada é belo em si mesmo; é belo somente para
algum ser que o experimenta e isto está implícito em qualquer juízo
estético. Agora, esses julgamentos são feitos de tal modo a parecerem
levantar pretensões de objetividade (Anspruch auf Objektivität). Nisso
subjaz sempre, consciente ou inconsciente, a suposição de um homem
normal, e cada um pensa-se involuntariamente como o mais próximo ao
homem normal a ponto de crer que pode falar em seu nome. “Esta rosa
é bela” deve então significar: para um homem normal esta rosa é bela.
Mas, o que é normal? Isso depende inteiramente do círculo humano que
se tem em consideração. Se em um longínquo vale nas montanhas
quase todos os homens tivessem papo, então lá isso seria normal, e
quem não tivesse esse adorno seria considerado feio. Como um negro
do interior da Africa poderia ser dissuadido de que o nariz fino dos
europeus é feio, e ao contrário de que o nariz largo dos negros é bonito?
E um negro enquanto negro não pode ser tão normal quanto um homem
branco enquanto homem branco? Uma criança não pode ser do mesmo
375
modo normal como um adulto? As representações que surgem por
associação tem grande influência nos juízos sobre a beleza, e elas
dependem do que uma pessoa anteriormente experimentou. Isso porém
é sempre diferente em diferentes homens. Mesmo que se quisesse
definir o homem normal e com isso o belo objetivo, isso obviamente
deveria sempre acontecer com base no belo subjetivo. Este não seria
posto de lado desse modo, mas reconhecido como originário. Se no
lugar do homem normal se quisesse colocar o homem ideal, não se
poderia alterar a situação. Sem sensações e representações não se daria
em nenhum caso um belo subjetivo e [45] portanto também não um
objetivo. Portanto tem muito para si a visão de que a real obra de arte é
uma configuração de representações (Vorstellungsgebilde) em nós, e
que a coisa externa – a pintura, a estátua – apenas é um meio para
produzir em nós a real obra de arte. Cada fruidor tem, por isso, a sua
própria obra de arte, de tal modo que não se dá nenhuma contradição
entre diferentes juízos de beleza. Logo: de gustibus non disputandum!
Se alguém tentasse contradizer o enunciado de que o que é
verdadeiro é verdadeiro independente de nós, iria por sua própria
asserção contradizer o que ele asseriu, de modo análogo, como um
cretense que diz que todo cretense mente.
Se, com efeito, algo fosse verdadeiro apenas para aquele que o
toma por verdadeiro, então não haveria nenhuma contradição entre
opiniões (Meinung) de diferentes pessoas. Qualquer um que tivesse
essa opinião não poderia consistentemente contradizer as opiniões
opostas, ele deveria assumir o princípio: non disputandum est. Ele na
verdade não poderia asserir nada no sentido habitual, e se ele agisse de
acordo com a forma, isso obviamente teria apenas o valor de uma
interjeição; ou seja, de expressão de um processo ou estado mentais, os
quais não poderiam estar em contradição com os processos e estados
mentais de uma outra pessoa. E a sua asserção, de que algo é verdadeiro
apenas pelo nosso reconhecimento e para nós, teria esse valor também.
Se esta opinião fosse verdadeira, então seria insustentável a pretensão
de que as próprias opiniões teriam mais justificação para os outros do
que as opostas. Uma opinião que levantasse essa pretensão seria
injustificável; isso, porém, significaria que toda opinião no sentido
habitual da palavra seria injustificável, portanto também aquelas pelas
quais nós disputamos; não haveria nenhuma ciência, não haveria
nenhum erro, nenhuma correção de erros; não haveria nada verdadeiro
376
no sentido habitual da palavra. Com isso está conectada aquela
independência enfatizada de modo tão estreito que elas não podem ser
separadas. Se alguém defende seriamente e sinceramente a opinião aqui
atacada, então não restaria senão assumir que ele associa à palavra
“verdadeiro” um outro sentido.
Nós podemos ir mais além. Para serem verdadeiros, os
pensamentos – por exemplo, leis da natureza – não apenas não
necessitam ser reconhecidos por nós como verdadeiros: eles nem
precisam ser pensados por nós. Uma lei da natureza não é inventada por
nós, mas descoberta, e assim como uma ilha deserta no oceano ártico
estava lá antes de alguém por os olhos nela, assim também as leis da
natureza, e do mesmo modo as da matemática, valeram em todos os
tempos e não apenas desde que elas foram descobertas. Isto nos mostra
que esses pensamentos, se verdadeiros, não são verdadeiros apenas
independente de nosso reconhecimento de sua verdade, mas que eles
são independentes de nosso pensar. Um pensamento não pertence
particularmente à pessoa que o pensa, como sim pertence uma
representação a quem a tem: qualquer um que o apreende o encontra do
mesmo modo, como o mesmo pensamento. Do contrário, duas pessoas
nunca atribuiriam o mesmo pensamento à mesma frase, mas cada uma
iria ter seu próprio pensamento; e se, por exemplo, uma colocasse 2 . 2
= 4 como verdadeiro enquanto outra o negasse, não haveria
contradição, pois o que foi asserido por um seria diferente do que foi
negado pelo outro. Seria impossível para as asserções de diferentes
pessoas contradizerem-se, pois uma contradição ocorre apenas quando
é o mesmo pensamento que uma pessoa assere como verdadeiro e a
outra como falso. Assim uma disputa acerca da verdade de algo seria
vã. Faltaria precisamente a arena comum (gemainsame Kampfplatz);
cada pensamento estaria enclausurado em seu próprio mundo interior
(Innenwelt) e uma contradição entre pensamentos de diferentes pessoas
seria como uma guerra entre nós e os habitantes de Marte. Nem
poderíamos dizer que uma pessoa poderia comunicar seus pensamentos
para outra e um conflito então surgiria no mundo interno desta última.
Um pensamento não poderia ser comunicado, pois teria de passar do
mundo interno de uma pessoa para o da outra; mas, [47] o pensamento
que chegaria a mente dessa última como resultado da comunicação
seria diferente do pensamento da primeira; e a mais sutil diferença pode
transformar uma verdade em uma falsidade. Se se quisesse ver o
377
pensamento como algo psicológico, como uma configuração de
representações, sem contudo permanecer num ponto de vista
inteiramente subjetivo, então se deveria explanar a asserção de que 2 +
3 = 5 talvez assim: “Observou-se que em muitas pessoas ocorrem
configurações de representações associadas com a frase “2 + 3 = 5”.
Nós denominamos uma formação desse tipo de sentido da frase “2 + 3
= 5”. Até onde se observou até agora estas formações são sempre
verdadeiras; de modo que nós podemos dizer provisoriamente: “Pelas
observações feitas até aqui o sentido da frase “2 + 3 = 5” é verdadeiro”'.
Porém, claramente essa explanação seria inteiramente falha. E não se
sairia desse modo do lugar, pois o sentido da frase: “Observou-se que
em muitas pessoas ocorrem configurações de representações, etc..”
seria também agora uma configuração de representações e a coisa toda
recomeçaria outra vez. Uma sopa que bem apraz alguém pode a outro
ser detestável. Nisso cada um julga sobre sua própria impressão de
gosto, que é diferente da dos outros. Assim seria também para o
pensamento, se ele se relacionasse com a frase de modo análogo como
as impressões de gosto relacionam-se com os estímulos químicos que
as excitam.
Se o pensamento fosse algo interno, mental, como a
representação, então a sua verdade obviamente apenas poderia estar em
uma relação com algo, o que não seria interno, mental. Se se quisesse
saber se um pensamento seria verdadeiro, então se deveria perguntar se
esta relação ocorre e, com isso, se o pensamento de que esta relação
ocorre seria verdadeiro. E assim nós estaríamos na situação de um
homem na roda de moinho1. Ele dá um passo à frente e para cima; mas
o degrau em que ele está sempre desce e ele retorna à posição anterior.
O pensamento é algo impessoal. Se nós vemos a frase “2 + 3 =
5” escrita numa parede, nós reconhecemos ali o pensamento expresso
completamente, [48] e para a compreensão é completamente
indiferente saber quem a escreveu.
Uma frase como “Eu estou com frio” parece ser um contraexemplo de nossa tese de que um pensamento é independente da pessoa
e do pensar, na medida em que ela pode ser verdadeira para uma pessoa
e falsa para outra, e portanto não ser verdadeira em si mesma. A razão
disso é que a frase expressa um pensamento diferente na boca de uma
1 N. do T.: A expressão de Frege é “Tretmühle”, a qual designa um tipo especial de moinho,
movido por uma ou mais pessoas que “sobem” a roda como numa escada.
378
pessoa do que ela expressa na de outra. Nesse caso as meras palavras
não contêm o inteiro sentido: nós temos que levar em consideração
adicionalmente a pessoa que a profere. Há muitos casos como esse em
que as palavras faladas tem de ser complementadas por gestos e
expressões do falante, e pelas circunstâncias concomitantes. A palavra
“eu” simplesmente designa uma pessoa diferente na boca de diferentes
pessoas. Não é necessário que a pessoa que sente frio expresse ela
mesma o pensamento que ela sente frio. Outra pessoa pode fazer isso
usando um nome para designar aquela que sente frio.
Desse modo um pensamento pode ser vestido numa frase que é
mais adequada para o seu ser independente da pessoa que o pensa. A
possibilidade de se fazer isso distingue-o de um estado mental expresso
por uma interjeição. Palavras como “aqui” e “agora” apenas adquirem o
seu sentido completo através das circunstâncias nas quais elas são
usadas. Se alguém diz “Está chovendo”, o tempo e o local do
proferimento tem de ser indicados. Se esta frase for escrita ela não mais
tem um sentido completo, porque não há nada para indicar quem a
proferiu, e onde e quando. Como a respeito de uma frase contendo um
juízo de gosto como “Esta rosa é bela”, a identidade do falante é
essencial para o sentido, mesmo quando a palavra “eu” não ocorra nela.
Assim, a explanação para todas essas aparentes exceções é que a
mesma frase nem sempre expressa o mesmo pensamento, porque as
palavras necessitam de complementação para adquirir um sentido
completo, e o modo como isso é feito varia de acordo com as
circunstâncias.
Enquanto as representações (no sentido psicológico da palavra)
são sem limites definidos e variáveis como Proteus, assumem diferentes
formas, os pensamentos sempre permanecem os mesmos. Eles são em
sua natureza (Wesen) atemporais e a-espaciais. [49] No pensamento de
que 3 + 4 = 7, nas leis da natureza isso quase não tem necessidade de
uma justificação. Se, por exemplo, fosse estabelecido que a lei da
gravidade a partir de um certo momento não mais fosse verdadeira,
então nós concluiríamos que ela simplesmente não era verdadeira, e nos
preocuparíamos em descobrir uma nova lei, que se diferenciaria por
conter uma condição que seria satisfeita (erfüllt) em um tempo e noutro
não. O mesmo se dá com o lugar: se fosse mostrado que a lei da
gravidade não valesse na região de Sirius, então nós iríamos procurar
uma outra lei, com uma condição, que seria satisfeita em nosso sistema
379
solar, mas não na região de Sirius. Se se quisesse citar como exemplo
contra a atemporalidade do pensamento, talvez, “O número total de
habitantes do Império Germânico é 52 000 000”, eu responderia: esta
frase na verdade não é uma expressão completa de um pensamento,
pois falta a determinação do tempo. Acrescente-se isso, por exemplo,
“ao meio-dia de 1 de janeiro de 1897 no horário da Europa central”,
então o pensamento é ou verdadeiro e então o seria sempre –, ou
melhor, atemporalmente verdadeiro, ou ele seria falso e então ele o
seria simplesmente. Isso vale para qualquer fato histórico particular: se
ele é verdadeiro, é verdadeiro independente do tempo em que ele foi
julgado verdadeiro. Não é nenhuma objeção que uma frase possa
adquirir um sentido diferente no curso do tempo; pois o que muda
nesses casos é obviamente a linguagem, não o pensamento. Em outra
linguagem essa mudança não necessita ocorrer. É verdade, óbvio, que
nós falamos que os pensamentos humanos são passíveis de mudança.
Contudo, não são os pensamentos que são verdadeiros num tempo e
noutro falsos: é que eles são tomados como verdadeiros num tempo e
como falsos noutro.
E se fosse objetado a mim que eu associo à palavra
“pensamento” um sentido não habitual, que ao contrário se entende por
ela um ato do pensar, que claramente é interno e mental? Então,
primeiro trata-se de saber se eu mantenho-me fiel ao meu modo de uso;
se ele concorda com o uso habitual é de pouca importância. Pode bem
acontecer que às vezes se compreenda com a palavra “pensamento” um
380
ato de pensar, mas em todo caso [50] nem sempre esse é o caso* e um
tal ato não pode ser verdadeiro.
[51] Como em outras ciências também em lógica é permitido
cunhar expressões técnicas, sem se preocupar se na linguagem da vida
(Sprache des Lebens) as palavras sempre são usadas desse modo. Na
fixação do significado não importa se se adeque ao uso linguístico ou se
a derivação é justificada, mas sim tornar a palavra o mais adequada
possível para expressar leis. Mas, quanto mais adequado é um conjunto
de expressões técnicas, tanto mais breve permite reproduzir
precisamente o inteiro sistema de leis.
Agora, nós não podemos conceber o pensar como um produzir o
pensamento. Tampouco o pensamento é um ato de pensar, como se o
pensamento se relacionasse com o pensar tal como o salto com o saltar.
E essa concepção está em consonância com muitos dos nossos modos
de falar. Pois não se diz que o mesmo pensamento é apreendido por esta
e por aquela outra, que cada pessoa pensa o mesmo pensamento de
novo? Agora, se o pensamento surge apenas por meio do pensar ou
*
O Sr. Dedekind emprega essa palavra, como eu o faço, na sentença 66 de seu escrito Was sind und was
sollen die Zahlen? Ele quer provar ali que a totalidade de todas as coisas, que podem ser objeto de seu
pensar, é infinita. Seja s um tal objeto; então os Sr. D. Denomina φ(s) o pensamento de que s pode ser
objeto de seu pensar. E esse pensamento φ(s) pode agora ele mesmo ser objeto de seu pensar. Pelo que
φ(φ(s)) é o pensamento de que o pensamento de que s pode ser objeto de seu pensar. Percebe-se disso o que
φ(φ(φ(s))), φ(φ(φ(φ(s)))), etc., devem significar. Para a prova é essencial que a frase “ s pode ser objeto do
pensar do Sr. Dedekind” sempre expresse um pensamento, para que a letra “s” designe um tal objeto.
Agora, se, como o Sr. D. quer provar, há infinitamente muitos de tais objetos s, então deve haver também
infinitamente muitos pensamentos φ(s). Agora bem, não se espezinharia muito o Sr. D. com a suposição de
que ele não pensou infinitamente muitos pensamentos. Tampouco ele pode pressupor que outros já
pensaram infinitamente muitos pensamentos que poderiam ser objetos de seu pensar; pois assim ele iria
pressupor o que tem de ser provado. Agora, se infinitamente muitos pensamentos ainda não foram
pensados, então entre aqueles infinitamente muitos pensamentos φ(s) deve haver infinitamente muitos que
não foram pensados, assim que o ser pensado não seria essencial para os pensamentos. E isto é
precisamente o que eu afirmo. Houvesse apenas os pensamentos pensados, então o sinal “φ(s)” nem sempre
teria um significado; e, para assegurar um para ele, não seria suficiente que “ s” significasse algo que
pudesse ser objeto do pensar do Sr. D., mas para que ele o fosse, ele deveria também ter sido pensado. Não
fosse esse o caso, então o sinal “φ(s)” correlato a “s” não teria nenhum significado. O sol (☺) pode ser
objeto do pensar do Sr. D.; com isso teriam um significado os primeiros dois membros e talvez ainda os
seguintes da série “☺”, “φ(☺)”, “φ(φ(☺))”, …; mas ao progredir nessa série se alcançaria sempre um
membro que seria sem significado, pois o pensamento, que ele deveria designar, não foi pensado, logo não
estaria disponível. “φ(s)” seria então semelhante a uma série potencial que não converge para todo valor do
argumento. O divergir da série corresponde ao ser sem significado do sinal “φ(s)”. Assumamos uma série
potencial convergente entre 0 e 4, mas divergente para valores de argumento maiores do que 4; assumamos
ainda que a série para o argumento 1 tem o valor 2, para o argumento 2 o valor 5, então a série
correspondente de números 1, 2, 5 termina nesse ponto e não progride ao infinito. Do mesmo modo a série
☺, φ(☺), φ(φ(☺)), …, não progride ao infinito, se houvesse apenas pensamentos pensados. Além disso, a
cogência da prova do Sr. D. repousa sobre a pressuposição de que os pensamentos ocorrem
independentemente de nosso pensar. Vê-se como este modo de emprego da palavra “pensamento” por si
mesmo se impõe naturalmente.
381
consiste no pensar, então o mesmo pensamento poderia surgir,
desaparecer e voltar a surgir, o que é um disparate. Como eu não crio a
árvore pelo fato de eu a ver, e como [52] eu não faço surgir um lápis
pelo fato de eu o agarrar, assim eu também não produzo o pensamento
pelo pensar. E menos ainda o cérebro segrega pensamentos, como o
fígado a bílis.
As analogias que embasam as expressões que nós usamos ao
falar de apreensão de um pensamento, de conceber, captar, apreender,
de capere, percipere, comprehendere, intelligere, repõem a situação do
assunto corretamente. O concebido, o apreendido já está lá (ist schon
da) e apenas se toma a sua posse. Do mesmo modo, o que se vê em ou
se retira de uma mistura já está lá e não vem a existência como
resultado dessas atividades. Seguramente toda analogia falha em algum
lugar. Nós estamos acostumados a ver o que é independente de nossa
vida mental como algo espacial, material, e as palavras listadas fazem
o pensamento assim parecer. Mas não é aí que se pode ver o ponto da
analogia. O que é independente de nossa vida mental, o que é objetivo
(das Objektive), não precisa ser espacial, material, efetivo. Se não se
considera isso, facilmente se cai numa espécie de mitologia. Quando se
diz: “As leis da gravidade, da inércia, do paralelogramo das forças
causam (bewirken) que a terra se mova como ela se move”, poderia
parecer que estas leis, por assim dizer, a pegam pelas orelhas e a
mantém no caminho prescrito. Um tal uso das palavras “atuar” e
“causar” seria equivocado. Ao contrário, pode-se bem dizer que o Sol e
os planetas atuam uns sobre outros de acordo com as leis da gravitação.
Portanto, mesmo que quanto à independência de minha vida
interna haja uma semelhança entre os corpos físicos e os pensamentos,
disso não se pode concluir que os pensamentos podem ser movidos
como os corpos, cheirados ou degustados, e seria falho procurar de
algum modo retirar do disparate dessa inferência uma objeção contra
nossa doutrina. Embora uma lei da natureza ocorra inteiramente
independente de se nós nela pensamos ou não, obviamente ela não
emite nenhuma luz [53] ou ondas sonoras que pudessem excitar nossos
nervos oculares ou auditivos. Mas, então eu não vejo que esta flor tem
cinco pétalas? Pode-se dizer isso, mas então não se emprega a palavra
“ver” no sentido do simples sentir a luz, mas se quer dizer com ela
associar um pensamento e julgar. Também Newton não descobriu a lei
da gravidade por suas mais perfeitas impressões sensoriais.
382
Se se quiser falar da efetividade (Wirklichkeit) de um
pensamento, então apenas se pode fazê-lo no sentido de que o
conhecimento que alguém tem de, p. ex., uma lei da natureza, influi
(einwirkt) nas suas decisões, as quais por sua vez tem consequência no
movimento das massas. Isso seria como se o efeito (Wirkung) do
reconhecimento de uma lei sobre o conhecedor, o que talvez seja
possível, assim como se pode considerar o ver uma flor como um efeito
(Wirkung) mediado da flor sobre aquele que vê.
Os humanos podem não fazer caso dos pensamentos ou podem
dominá-los. Este último pode ser concebido como um atuar (Wirken)
dos humanos sobre os pensamentos, o que parece falar contra a sua
atemporalidade (Zeitlosikeit). Mas, desse modo não se efetua uma
modificação essencial no pensamento, assim como a lua parece não ser
afetada por ser ou não considerada. Assim, se é possível falar da ação
(Wirkung) dos pensamentos sobre os humanos, não se pode falar de
uma ação dos humanos sobre os pensamentos. Pode-se mencionar
como exemplo de mudança dos pensamentos o fato de que eles não
sempre claros. Mas, o que se denomina claridade dos pensamentos, no
nosso sentido dessa palavra, é propriamente a completude de sua
assimilação e apreensão, não uma propriedade do pensamento.
Seria errado pensar que apenas os pensamentos verdadeiros são
obtidos independentes de nossa vida mental, e que os falsos, por outro
lado, pertenceriam, assim como as representações, à nossa vida interior.
Quase tudo o que nós dissemos sobre o predicado verdadeiro vale para
o predicado falso também. Em sentido estrito ele aplica-se apenas a
pensamentos. Quando [54] ele parece ser predicado de frases e
representações, ainda assim no fundo ele está sendo predicado de
pensamentos. O que é falso, é falso em si mesmo e independentemente
de nossas opiniões. Uma disputa sobre a falsidade é igualmente sempre
uma disputa sobre a verdade de algo. Aquilo cuja falsidade pode ser
disputado, não pertence portanto à mente individual.
Separando um pensamento de seus invólucros
Em uma frase assertiva dois tipos de coisas diferentes estão
intimamente ligados um com o outro: o pensamento (Gedanke)
expresso e a asserção (Behauptung) de sua verdade (Wahrheit). E é por
isso que seguidamente eles não são claramente distinguidos. Contudo,
pode-se expressar um pensamento sem ao mesmo tempo apresentá-lo
383
como verdadeiro. Um cientista que faz uma descoberta científica
normalmente começa por apreender apenas um pensamento, e então se
pergunta se ele tem de ser reconhecido como verdadeiro; somente após
suas investigações se mostrarem a favor de sua hipótese é que ele se
arrisca a apresentá-lo como verdadeiro. Nós expressamos o mesmo
pensamento na pergunta “O oxigênio é condensável?” e na frase
“Oxigênio é condensável.”, conectando-o num caso com um pedido e
no outro com uma asserção.
Se nós reconhecemos internamente um pensamento como
verdadeiro, então nós julgamos: se nós manifestamos este
reconhecimento, nós asserimos.
Nós podemos pensar sem julgar.
Nós vimos que as sequências de sons de uma frase seguidamente
não são suficientes para expressar completamente um pensamento.
Quando nós queremos apreender a natureza (Wesen) de um pensamento
de modo preciso não devemos esquecer o fato de que o caso contrário
não é raro, em que a frase faz mais do que expressar um pensamento e
asserir sua verdade. Em muitos casos ela deve atuar também sobre as
representações e os sentimentos do ouvinte; e isto tanto quanto mais ela
aproxima-se da linguagem da poesia. Nós insistimos no fato de que a
linguagem é pouco apropriada para voluntariamente provocar uma
representação [55] no ouvinte de modo exato. Quem iria confiar em
palavras para evocar na mente de outro uma imagem de Apolo tão
precisamente quanto se pode produzir sem dificuldades pela percepção
de uma obra de arte? Mas, mesmo assim nós dizemos que os poetas
pintam. E de fato não se pode negar que as palavras ouvidas afetam as
representações na medida em que entram na consciência como um todo
de sensações auditivas. Nós experimentamos já a sequência de sons, o
tom da voz, a entonação e ritmo, com sentimentos de prazer e
desprazer. A estas sensações auditivas conectam-se representações
auditivas análogas e por sua vez essas estão ligadas com outras
representações por meio delas reativadas. Este é o domínio da
onomatopeia. Pode-se comparar para isso os versos homéricos
(Odisséia IX, 71: tricqa/ kai tetracqa diescisen ij anemoio.)
Isto não é completamente independente do propósito das
palavras, expressarem pensamentos. Aqui os sons agem somente como
estímulo sensorial. Porém, porque a sua sequência deve ter um sentido
(Sinn), eles atuam sobre a representação de um modo diferente.
384
Qualquer um que ouve a palavra “cavalo” com entendimento
provavelmente irá se representar na mente uma imagem (Bild) de
cavalo. Esta imagem, porém, não deve ser confundida com o sentido da
palavra “cavalo”; pois a palavra “cavalo” não fornece nenhuma
indicação da cor do cavalo, ou sobre seu porte em movimento ou
parado, ou sobre o lado do qual ele é visto, etc.. Se diferentes pessoas
fossem capazes, seja, de imediatamente projetarem numa tela as suas
representações provocadas pela palavra “cavalo”, diferentes imagens
seriam apresentadas. E até mesmo para a mesma pessoa a palavra
“cavalo” nem sempre evoca a mesma representação. Muito aqui
provém do contexto. Pode-se comparar, por exemplo, as frases “com
que destreza ele monta seu garboso cavalo” e “acabo de ver um cavalo
cair no asfalto molhado”.
Portanto, não se pode falar de que à palavra “cavalo” sempre
esteja associada a mesma representação. Em virtude de seu sentido,
essa palavra irá [56] evocar uma certa representação; porém, está longe
de por ela mesma determinar completamente esta representação. Em
geral, pode-se apenas pressupor que o falante e o ouvinte concordam
em traços largos nas representações. Se diferentes artistas produzem,
independentes um do outro, ilustrações do mesmo poema, eles irão
divergir consideravelmente na apresentação dos mesmos
acontecimentos. O poeta, portanto, realmente não pinta nada: ele
apenas provê o ímpeto para os outros fazerem, fornecendo indicações
(Winke) para isso, e deixa para o ouvinte dar às suas palavras corpo e
forma. E para essas indicações é útil para o poeta dispor de um número
de palavras diferentes que podem ser substituídas umas pela outras sem
alterar o pensamento, mas que podem atuar de modo diferente sobre o
sentimento e a representação do ouvinte. Pense-se, p. ex., nas palavras
“andar”, “caminhar” e “passear”. Mesmo na linguagem coloquial estes
meios são usados para estes fins. Se comparamos as frases “Este
cachorro latiu a noite inteira” e “Este cão latiu a noite inteira”, nós
achamos que o pensamento é o mesmo. Nós experimentamos com a
primeira frase nada mais e nada menos do que com a segunda. Porém,
enquanto que a palavra “cachorro” (Hund) é neutra quanto a
associações prazerosas ou desprazerosas, a palavra “cão” (Köter)
certamente tem mais associações desprazerosas do que prazerosas e
385
evoca na mente antes um cachorro com uma aparência descuidada. 1
Mesmo que isso seja um tanto inadequado em relação a ele, isto não
torna a segunda frase falsa. Claramente quem profere esta frase fala
pejorativamente, mas isto não é parte do pensamento expresso. O que
distingue a segunda frase da primeira é da natureza de uma interjeição.
Poder-se-ia objetar que a segunda frase ainda assim diz mais do que a
primeira, a saber, que o falante tem uma opinião pejorativa sobre o
cachorro. Neste caso a palavra “cão” conteria um pensamento
completo. Nós podemos testar isso do seguinte modo.
Admita-se o caso em que a primeira frase é correta e a segunda
seja proferida por alguém que não tem a opinião [57] que a palavra
“cão” parece implicar. Se a objeção fosse correta, a segunda frase iria
agora conter dois pensamentos, um dos quais seria falso; portanto, ela
iria asserir algo falso como um todo, enquanto a primeira frase seria
verdadeira. Nós dificilmente poderíamos prosseguir com isso; ao
contrário, a palavra “cão” não nos impede de tomar a segunda frase
também como verdadeira. Pois, deve-se fazer uma distinção entre os
pensamentos expressos e aqueles que o falante induz os outros a
tomarem como verdadeiros embora ele não os expresse. Se um
comandante oculta a sua inferioridade para o inimigo fazendo com que
suas tropas troquem de uniforme, ele não está mentindo; pois ele não
está expressando nenhum pensamento, embora suas ações sejam
calculadas para induzir pensamentos nos outros. Estas ações
(Handlung) nós encontramos também na fala, como quando alguém dá
um tom especial para a voz ou escolhe palavras especiais. Se alguém
anuncia a notícia de uma morte com um tom triste, sem realmente estar
triste, o pensamento expresso ainda assim é verdadeiro, mesmo se o
tom triste seja assumido com o propósito de criar uma falsa impressão.
Este tom de voz pode ser substituído por palavras como “Ah” e
“Infelizmente”, sem alterar o pensamento. As coisas são diferentes
naturalmente quando certas ações são especificamente convencionadas
como meios de comunicar algo. Na linguagem o uso comum faz as
vezes de tais convenções. Obviamente casos anômalos podem ocorrer
tendo em vista a transformação da linguagem. Algo que não era
originalmente empregado como um meio de expressar um pensamento
1
N. do T.: note-se que esse tipo de contraposição não ocorre no vernáculo; para fazer isso nós
usamos uma frase descritiva, “vira-lata”, por exemplo, e não um nome comum como é caso na
língua de Frege.
386
pode eventualmente vir a ser por causa de ser constantemente usado em
casos do mesmo tipo. Um pensamento que antes era apenas sugerido
por uma expressão pode mais tarde vir a ser explicitamente asserido por
ela. E num período de transformação diferentes compreensões podem
ser possíveis. Porém, por meio dessas mudanças da linguagem a
distinção mesma não é superada. Para nós o que importa aqui é que
nem toda diferença linguística corresponde a uma diferença de
pensamento, e que nós temos um meio de distinguir o que pertence e o
[58] que não ao pensamento, mesmo que a constante transformação da
linguagem possa tornar difícil a sua aplicação.
A distinção entre a voz ativa e passiva pertence a isso também.
As frases “M deu o documento A para N”, “O documento A foi dado
para N por M”, “N recebeu o documento A de M” expressam
exatamente o mesmo pensamento; nós não experimentamos nada mais
nada menos com uma dessas frases do que com outra. Por isso, é
impossível que uma delas seja verdadeira enquanto as outras falsas. O
que pode ser verdadeiro ou falso aí, é exatamente o mesmo. Contudo
isso, porém, não se pode dizer que é completamente indiferente quais
dessas frases usar. De regra, razões estilísticas e estéticas irão
determinar a escolha entre uma e outra. Se alguém pergunta “Por que A
foi preso?”, seria não natural dizer “B foi assassinado por ele”, pois isso
iria requerer uma desnecessária inversão da atenção de A para B. Pode
ser muito importante para onde a atenção é dirigida e onde recai a
ênfase, mas isso não concerne à lógica.
Na tradução de uma linguagem para outra às vezes se é forçado a
atropelar completamente a construção gramatical. Todavia, isto não
afeta o pensamento e este deve ser o mesmo, se a tradução deve ser
correta. Mas, às vezes é necessário sacrificar as indicações para o
representar e a tonalidade.
Também nas duas frases “Frederico o grande venceu a batalha de
Rossbach” e “É verdade que Frederico o grande venceu a batalha de
Rossbach”, nós temos, como foi dito antes, o mesmo pensamento em
diferentes formas verbais. Ao asserir o pensamento na primeira frase
nós também asserimos o pensamento na segunda, e vice-versa. Não há
dois atos de julgamento, mas apenas um.
(Por tudo isso, vê-se que as categorias gramaticais de sujeito e
predicado não podem ter significado para a lógica.)
387
[59] A distinção entre o que numa frase pertence ao pensamento
expresso, e o que ela apenas sugere, é de grande importância para a
lógica. A pureza daquilo que se investiga não é importante apenas para
o químico. Como ele seria capaz de reconhecer, sem nenhuma dúvida,
que ele alcançou por diferentes caminhos o mesmo resultado, se a
aparente diferença de meios pudesse ser remontada às impurezas na
substância usada? As primeiras e mais importantes descobertas de uma
ciência são muito seguidamente reconhecimentos. Quão auto-evidente
possa parecer para nós que é o mesmo sol que ontem se pôs e hoje
nasceu, e quão insignificante possa parecer por isso essa descoberta,
ainda assim ela certamente é uma das mais importantes e talvez seja a
fundadora da astronomia. Foi importante reconhecer que a estrela da
manhã era a mesma estrela da tarde, que três vezes cinco é o mesmo
que cinco vezes três. Do mesmo modo importa não distinguir o que é o
mesmo, como reconhecer diferenças ali onde elas não se dão à vista.
Portanto é errado pensar que não se podem fazer distinções mais do que
o suficiente. Não é apenas prejudicial insistir em distinções ali onde
elas não são relevantes. Assim, em mecânica geral deve-se evitar falar
das diferenças químicas entre substâncias e estabelecer particularmente
para cada elemento químico a lei de inércia. Deve-se antes ter em
consideração apenas aquelas diferenças que são essenciais para a
regularidade com a qual se está lidando. Menos ainda deve-se deixar
induzir por impurezas estranhas e ver diferenças onde não há nenhuma.
Em lógica nós devemos rejeitar todas as distinções que são feitas
a partir apenas de um ponto de vista psicológico. O que é referido como
um aprofundamento da lógica pela psicologia é apenas a sua
falsificação pela psicologia.
Nos humanos originariamente o pensar está misturado com o
imaginar e o sentir. A lógica tem a tarefa de isolar o que é lógico, não,
[60] seguramente, de tal modo que nós deveríamos pensar sem
representar, o que é sem dúvida impossível, mas para que nós possamos
conscientemente distinguir o lógico do que está associado a ele como
representações e sentimentos. Há uma dificuldade aqui no fato de que
nós pensamos em alguma linguagem ou outra e que a gramática, que
tem um significado para a linguagem análogo ao que a lógica tem para
o juízo, é uma mistura do lógico com o psicológico. Se não fosse assim,
todas as linguagens teriam necessariamente a mesma gramática. É
verdade que nós podemos expressar o mesmo pensamento em
388
diferentes linguagens; mas os adereços psicológicos, a roupagem do
pensamento, serão em geral diferentes. Por isso é que o aprendizado de
línguas estrangeiras é útil para a educação lógica. Ao ver que o mesmo
pensamento pode ser dito de modos diferentes, nós aprendemos melhor
a distinguir a casca verbal da semente com que, em qualquer
linguagem, ela aparece organicamente associada. Assim é que as
diferenças entre as linguagens pode facilitar a nossa apreensão do que é
lógico. Ainda assim as dificuldades não são completamente removidas,
e nossos livros de lógica ainda permanecem enroscando-se em várias
coisas – sujeito e predicado, por exemplo – que, estritamente falando,
não pertencem à lógica. Por esta razão é útil estar familiarizado também
com formas de expressar pensamentos que são de uma natureza
radicalmente diferente, tal como nós temos na linguagem de fórmulas
da aritmética ou em minha conceitografia.
A primeira e mais importante tarefa é apresentar puro o objeto de
pesquisa. Apenas assim se é capaz de realizar os reconhecimentos, que
também na lógica provavelmente são as descobertas fundantes.
Portanto, não nos esqueçamos jamais que duas frases diferentes podem
expressar o mesmo pensamento, que do conteúdo da frase apenas nos
importa o que pode ser verdadeiro ou falso.
Estivesse contido na forma passiva apenas um vestígio a mais no
pensamento do que na ativa, então seria pensável que esse vestígio seria
falso enquanto o pensamento na forma ativa fosse verdadeiro, e
portanto não se poderia passar da forma ativa para a passiva sem mais.
Do mesmo modo: se na forma ativa [61] estivesse contido apenas um
vestígio a mais do que na forma passiva, então não se poderia sem
exame passar da forma passiva para a ativa. Porém, se ambas as
passagens sempre são possíveis sem prejuízo da verdade, então isto é
uma confirmação de que o que era verdade ali, a saber, o pensamento,
não é perturbado por essa mudança de forma. Isto serve como
advertência para não se dar tanto peso às distinções linguísticas, como
os lógicos costumam fazer: um caso exemplar é a suposição de que
todo pensamento – ou juízo como é usualmente chamado – tem um
sujeito e um predicado, de tal modo que o sujeito e o predicado de um
pensamento estariam determinados pelo pensamento, tal como o sujeito
e o predicado de uma frase são de modo inequívoco dados com a frase.
Se nós fazemos essa suposição, nos envolvemos em dificuldades
desnecessárias, e, atracados em lutas vãs com elas, nós apenas
389
aumentamos a impressão de que a ciência da lógica é realmente
supérflua.
Nós devemos evitar as expressões “sujeito” e “predicado”, tão
apreciadas pelos lógicos, especialmente porque elas não apenas tornam
mais difícil o reconhecimento do mesmo como o mesmo, mas porque
apagam diferenças existentes. Em vez de seguir a gramática cegamente,
o lógico deveria antes ver sua tarefa como a de nos livrar das cadeias da
linguagem (uns von den Fesseln der Sprache zu befreien). Pois, por
mais que nós devamos reconhecer que é a linguagem apenas que torna
possível o pensar, ao menos nas suas formas superiores, ainda assim
nós devemos tomar cuidado para não se tornar dependente da
linguagem; pois muitos erros que ocorrem no raciocínio tem sua fonte
nas imperfeições da linguagem. Obviamente que se se vê a tarefa da
lógica como a de descrever como os humanos realmente pensam, então
se deveria dar uma grande importância à linguagem. Mas então o nome
lógica seria usado para o que realmente é apenas um ramo da
psicologia. Isto seria como se alguém imaginasse que se está a fazer
astronomia quando se desenvolve uma teoria psico-física de como
alguém vê através de um telescópio. No caso anterior as coisas que
propriamente concernem à lógica não vem à luz mais [62] do que nesse
último caso os problemas da astronomia. O tratamento psicológico da
lógica resulta da crença errada de que um pensamento (um juízo como
usualmente é chamado) é algo psicológico como uma representação.
Esta concepção leva necessariamente a uma teoria idealista do
conhecimento; pois, se ela for correta, então as partes que nós
distinguimos num pensamento, tal como sujeito e predicado, devem
pertencer à psicologia assim como os próprios pensamentos. Agora,
uma vez que todo ato de cognição é realizado em juízos, isto significa o
solapamento de toda ponte condutora ao que é objetivo. E todas as
nossas tentativas de chegar a isso não seriam mais do que tentativas de
sair do pântano puxando-nos pelos cabelos. Quando muito pode-se
tentar explicar como a aparência de objetividade surge, como nós
chegamos a supor algo que não pertence a nossa mente, sem que essa
suposição por isso seja justificada. O mais extraordinário é o
desembocar no idealismo da psicologia fisiológica, que por seu ponto
de partida realista está com ele em nítida oposição. Começa-se com
fibras nervosas, células ganglionárias, faz-se suposições sobre
excitações e sua transmissão e busca-se desse modo se aproximar da
390
compreensão da representação, na medida em que involuntariamente se
tomam os processos nas células ganglionárias e fibras nervosas por
mais compreensíveis do que o representar. Como convém a uma brava
ciência da natureza, sem reparar pressupõem-se para isso as células
ganglionárias e as fibras nervosas como objetivas e efetivas. Isso pode
funcionar enquanto se restringe ao representar. Mas não se fica nisso: se
transpõe para o pensar e o julgar, e de repente o realismo inicial se
transforma no extremo idealismo, e com isso esta teoria mesma corta o
galho sobre o qual ela estava. Agora tudo dissolve-se em representações
e com isso as explicações anteriores se tornam ilusórias. Anatomia e
fisiologia tornam-se ficções. A inteira fundação fisio-anatômica de se
dissolve. E com que nós ficamos? Representações de fibras nervosas,
representações de células ganglionárias, representações de excitações,
etc.. E o que deveria [63] ser originalmente explicado? O representar!
Agora, pode-se dizer dessas explicações se elas valem (gelten) ou são
verdadeiras? Estando à beira de um rio observam-se seguidamente
redemoinhos na água. Não seria absurdo levantar a pretensão, para
estes redemoinhos, de que eles valem ou de que eles são verdadeiros,
ou também, de que eles são falsos? E também se os átomos ou
moléculas em meu cérebro dançassem de modo milhares de vezes mais
gracioso e louco do que os mosquitos num lindo anoitecer de verão, não
seria do mesmo modo absurdo asserir que essa dança seria válida ou
verdadeira? E se essas explicações fossem essa dança, poderia dizer-se
que seriam verdadeiras? E se concluiria diferente se estas explicações
fossem conjunções de representações? Os fantasmas que assombram o
doente de tifo numa constante procissão de imagens semoventes, são
verdadeiros? Tampouco verdadeiros quanto falsos, mas simples
processos, como o redemoinho na água é um processo. E se se deve
falar de um direito, então obviamente apenas pode ser o direito de se
passar tal como ele se passa. Um fantasma contradiz o outro tampouco
como um redemoinho na água o outro.
Se a representação visual de uma rosa associa-se com a
representação de um perfume delicado e a esses adiciona-se as
representações auditivas das palavras “rosa” e “perfume”, bem como as
representações motoras associadas com o proferimento dessas palavras,
e se prosseguimos juntando associações sobre associações até que a
mais complexa e elaborada representação seja formada, a que propósito
isso serve? Realmente se pensa que assim se tem um pensamento como
391
resultado? O resultado não seria um pensamento tanto quanto um
autômato, por mais bem construído, é um ser vivo. Construa algo a
partir de partes que são inanimadas e você ainda terá algo inanimado.
Combine representações e você ainda terá uma representação, e as mais
variadas e elaboradas associações não fazem diferença. Mesmo se, no
cume disso, o composto seja acrescido de sentimentos e estados, não é
nada para se avaliar. A lei da gravitação nunca poderia vir a existência
desse jeito, pois esta lei é inteiramente independente do que acontece
em minha mente e de como minhas representações mudam e oscilam.
Porém, [64] ainda assim a apreensão desta lei é um processo mental!
Sim, sem dúvida, mas é um processo que acontece nos próprios confins
do mental e que por essa razão não pode ser completamente
compreendido a partir de um ponto de vista puramente psicológico.
Pois, no apreender da lei algo, cuja natureza que não é mais, em sentido
próprio, mental, é percebido, a saber, o pensamento; e este processo é
talvez o mais misterioso de todos. Mas mesmo porque ele é mental, nós
não precisamos nos preocupar com isso na lógica. Para nós é suficiente
que nós possamos apreender pensamentos e reconhecê-los como
verdadeiros; como isso acontece é uma questão por si mesma. * Também
para o químico é suficiente que ele possa ver, cheirar e provar; e sua
tarefa não é pesquisar como isso acontece. Não é inessencial para os
resultados de uma investigação científica que questões, que podem ser
tratadas independentes de outras, não sejam confundidas com estas e
com isto tornem as coisas desnecessariamente mais difíceis. Assim se
introduz facilmente uma distorção. Por isso nós não nos preocupamos
quanto ao como efetivamente acontece o pensar, o alcançar uma
convicção; não o como acontece o tomar por verdadeiro
(Fürwahrhalten), mas antes as leis do ser verdade (Gesetze des
Wahrseins). Estas podem ser apreendidas como prescrições
(Vorschriften) para o julgar, as quais nós devemos seguir se não
quisermos perder a verdade. Se se quiser chamá-las de leis do pensar
ou, melhor, leis do julgar, não se deve esquecer que se tratam de leis
que, como as leis morais ou leis estatais, prescrevem como se deve agir,
e não, como as leis da natureza, determinam como os processos
ocorrem. O pensar efetivo não está sempre em consonância com as leis
*
Esta questão ainda não foi bem apreendida em sua dificuldade. As mais das vezes fica-se
contente com contrabandear pela porta dos fundos o pensamento na representação, de tal
modo que não se sabe como realmente ele surge.
392
lógicas, tampouco como o agir efetivo com as leis morais. Por isso, em
lógica o melhor é evitar completamente a expressão “lei do pensar”,
[65} pois isso sempre leva à confusão de conceber as leis lógicas como
leis naturais. Como tais nós as deveríamos atribuir à psicologia. Do
mesmo modo como as leis lógicas se poderia conceber também as
geométricas e físicas como leis do pensar ou leis do julgar, a saber,
como prescrições, segundo as quais o julgar sobre um domínio
diferente deve se orientar se quiser se manter em consonância com a
verdade. Tampouco quanto a geometria ou a física, é a lógica o lugar
certo para se desenvolver investigações psicológicas. Explicar o
transcorrer do pensar e do julgar, certamente é uma tarefa possível, mas
não lógica.
Por isso o lógico não tem de se perguntar sobre qual é o curso
natural do pensar na mente humana. O que é natural para um pode
facilmente ser não-natural para outro. Isso, já indica a grande
diversidade das gramáticas. Menos ainda o lógico precisa temer ser-lhe
objetado que suas proposições não estão de acordo com o pensar
natural. Se uma pessoa inocente devesse ser introduzida nos rudimentos
da matemática com o maior rigor possível, ela acharia essa regularidade
muito não-natural e justamente por causa desse rigor. Um professor
perspicaz tenderia por isso a deixar o rigor de lado e primeiro procurar
despertar a sua necessidade. Também na história da matemática nós
vemos que o maior rigor sempre é o último e portanto o mais afastado
do natural. Por isso, a luta por apresentar o processo natural do pensar
nos levaria a se afastar da lógica. Se o lógico tentasse considerar a
objeção de não-naturalidade, ele ficaria em perigo de se envolver em
disputas infindáveis sobre o que é natural, disputas essas impossíveis de
solucionar no campo da lógica, portanto, que não pertencem à lógica.
Para isso talvez a observação dos povos naturais pudesse ajudar.
Porém, acima de tudo deve-se evitar a opinião de que seja tarefa
da lógica investigar o pensar e o julgar efetivo enquanto se está em
consonância com as leis do ser verdadeiro. [66] Então dever-se-ia ter
um olho numa e olhar de soslaio para a outra e observar de volta aquela
e de novo olhar de soslaio para a outra e assim perder completamente
de vista um objetivo determinado. Isto seria deixar-se seduzir por
questões obscuras e assim tornar um resultado satisfatório tão bom
quanto impossível.
393
O que se denomina seguidamente leis do pensar, a saber, leis
segundo as quais o julgar, ao menos nos casos normais, acontece,
podem sempre ser leis do tomar por verdadeiro, e não leis do ser
verdade. Quem toma algo por verdadeiro e os lógicos psicologistas
obviamente tomam por verdadeiras ao menos as suas próprias
colocações – reconhece com isso que algo é verdadeiro. Mas então é
bem provável que haja leis do ser verdade, e se há, estas devem ser
normas para o tomar por verdadeiro. E estas seriam propriamente as
leis lógicas. No suplemento 26 do volume de 1897 do Allgemeine
Zeitung, T. Achelis no artigo “Völkerkunde und Philosophie” escreve o
seguinte:
“Agora porém nós temos clareza sobre isso, que as normas mais
gerais válidas do pensar e do agir não podem ser alcançadas por uma
simples dedução abstrata unilateral, mas por meio de uma determinação
empírico-crítica de leis básicas objetivas de nossa organização
psicofísica, no geral continuamente válidas para a consciência
humana”.
Não é inteiramente claro se se tratam das leis pelas quais se
julga, ou se daquelas pelas quais se deveria julgar. Parece que é de
ambas. A saber, as leis pelas quais se julga são postas como normas de
como se deve julgar. Mas porque isso é necessário? O julgar já acontece
inteiramente por si segundo essas leis. Não! Óbvio, não inteiramente,
na verdade, normalmente, mas não sempre! Portanto são leis que tem
exceções; mas as exceções por sua vez são governadas por outras leis.
Aquelas leis propostas, por conseguinte não são completas. Agora, o
que justifica a separação de parte de um todo de leis e sua colocação
como normas? Isto é como se se propusesse as leis [67] dos
movimentos planetários de Kepler como normas e, ora veja, ser forçado
a reconhecer que os planetas em sua pecaminosidade não se comportam
em conformidade rigorosa com elas, mas sim como alunos travessos
molestam uns aos outros. Então isso deveria ser severamente
repreendido.
Por essa concepção deve-se cuidadosamente evitar para não se
perder do caminho real sobre pelo qual vai a grande maioria. Também
dos grandes espíritos se deve desconfiar; pois se eles fossem normais,
então eles seriam medíocres.
Com a concepção psicológica da lógica nós perdemos a distinção
entre as razões (Gründen) que justificam uma convicção e as causas
394
(Ursachen) que atualmente a produzem. Isto significa que uma
justificação no sentido próprio do termo não é possível; o que nós
temos no seu lugar é o tratamento de como se chegou a ela, a partir do
que se deve inferir que tudo foi causado por fatores psicológicos. Isto
pode acontecer tanto numa superstição (Aberglauben) como num
conhecimento científico.
Se nós concebemos as leis lógicas como psicológicas, nós
seremos inclinados a levantar a questão se elas são algo sujeito a
mudanças. Seriam elas como a gramática de uma linguagem que pode,
obviamente, mudar com a passagem do tempo? Esta é uma
possibilidade que se impõe quando se deriva a obrigatoriedade das leis
lógicas de modo análogo a das leis da gramática, se elas são normas
apenas porque nós raramente nos desviamos delas, se é normal julgar
de acordo com nossas leis lógicas como é normal andar ereto. Agora,
tal como é possível que para nossos antepassados não fosse normal
andar ereto, assim também poderia para o pensar que muitos modos
podem ter sido normais no passado que atualmente não mais, e pode no
futuro algo vir a ser normal que agora não é. Assim como a consciência
da língua sempre é insegura em algumas questões gramaticais, na
medida em que a língua ainda não se fixou completamente, também
deve ocorrer uma situação análoga em relação às leis lógicas em cada
período de transição. Por exemplo, ficar-se-ia em dúvida sobre se seria
correto julgar que cada objeto era igual a si mesmo. Não se deveria
falar de leis lógicas, mas apenas de [68] regras lógicas, que indicariam
o que seria visto como normal numa certa época. Não se deveria
expressar uma tal regra numa forma como “Todo objeto é igual a si
mesmo”, pois não aparece aí a espécie de ser para os quais esse juízo
deve valer, antes se deveria talvez dizer: “Para os homens – com
exceção talvez de alguns povos selvagens, nos quais o assunto ainda
não foi pesquisado – é agora normal julgar que todo objeto é igual a si
mesmo”. Mas se se tem leis, mesmo quando elas são psicológicas,
então elas devem, como nós vimos, ser sempre – ou melhor,
atemporalmente – verdadeiras, se elas são verdadeiras em geral.
Portanto, se nós observamos que uma lei não mais vale num
determinado tempo, então nós devemos dizer que é falsa em geral. Nós
poderíamos procurar uma condição que deveria ser acrescentada.
Vamos assumir que o julgar humano por um certo período se conforma
à lei de que todo objeto é igual a si mesmo, mas que depois não mais,
395
então a causa poderia ser talvez que a taxa de fósforo no cérebro se
alterou, e nós talvez tenhamos que dizer: “Se a taxa de fósforo no
cérebro do homem em nenhum lugar excede 4%, então seu julgar
sempre procede em consonância com isso, que todo objeto é igual a si
mesmo”.
Leis psicológicas que se referem desse modo à composição
química ou à estrutura anatômica do cérebro são ao menos pensáveis.
Nas leis lógicas, ao contrário, isso seria absurdo; pois nelas não se trata
do que esse ou aquele homem toma por verdadeiro, mas do que é
verdade. Se um homem toma por verdadeiro ou por falso que 2 x 2 = 4,
pode ser dependente da composição de seu cérebro, mas se este
pensamento é verdadeiro, não depende disso. Se é verdadeiro que Júlio
César foi morto por Brutus não pode depender do cérebro do Professor
Mommsen.
Às vezes se questiona se as leis lógicas podem se alterar com o
tempo. As leis do [69] ser verdade são, como todo pensamento, quando
elas são verdades em geral, sempre verdadeiras. Elas também não
podem conter nenhuma condição que poderiam ser satisfeita num certo
tempo e não seria noutro, pois elas tratam com o ser verdade dos
pensamentos, que, se elas são verdadeiras, são verdadeiras
atemporalmente. Portanto, se da verdade de certos pensamentos se
segue a verdade de outros pensamentos em um tempo, então sempre
deve se seguir (folgen).
Façamos um resumo do que nós obtemos sobre os pensamentos
(propriamente).
Os pensamentos não pertencem como as representações à mente
individual (eles não são subjetivos), mas são independentes do pensar, e
se antepõem a todos do mesmo modo (objetivos); eles não são feitos
pelo pensar, mas apenas apreendidos. Nisso eles são semelhantes aos
corpos físicos. Desses eles se diferenciam por que eles são a-espaciais e
essencialmente atemporais, se poderia dizer talvez também
[in]efetivos1, na medida em que eles não sofrem nenhum efeito que
modifique sua própria natureza. Por sua a-espacialidade eles são
semelhantes às representações.
Da natureza [não-]mental dos pensamentos segue-se que todo
tratamento psicológico da lógica é do mal. Esta ciência tem antes a
1
N. do T.: Os organizadores do material introduziram aqui a partícula negativa “Un”, mas no
texto de Frege está apenas “wirklich”.
396
tarefa de purificar o lógico de tudo o que é estranho, portanto também
do psicológico, e livrar o pensar das cadeias da linguagem, ao mostrar
as suas imperfeições lógicas. Na lógica se tratam das leis do ser
verdade, não do tomar por verdadeiro, não da questão de como o pensar
acontece nos homens, mas como ele deve acontecer para não se perder
a verdade.
Negação
Um pensamento propriamente é ou verdadeiro ou falso. Quando
nós julgamos sobre ele, então nós ou o aceitamos como verdadeiro ou o
rejeitamos como falso. A última expressão, contudo, pode nos enganar,
[70] como se o pensamento rejeitado devesse ser relegado ao
esquecimento tão logo quanto possível não tendo mais nenhum uso.
Muito pelo contrário, o reconhecimento de que um pensamento é falso
pode ser tão frutífero quanto o reconhecimento de que um é verdadeiro.
Propriamente compreendido, não há nenhuma diferença entre os dois
casos. Tomar um pensamento como falso é tomar um pensamento
(diferente) como verdadeiro, e desse então nós dizemos que ele é o
oposto do primeiro. Na língua alemã em geral indica-se que um
pensamento é falso inserindo a palavra “nicht” (não) no predicado.
Mas, como antes a asserção é veiculada pela forma indicativa, e não
está necessariamente ligada com a palavra “nicht”. Enquanto se
mantém a forma negativa, pode-se retirar a asserção. Pode-se dizer
igualmente bem: “O pensamento, que Pedro não veio a Roma” quanto
“O pensamento, que Pedro veio a Roma”. Nós vemos também que o
asserir e o julgar não é diferente quando eu afirmo que Pedro não veio a
Roma, de quando eu afirmo que Pedro veio a Roma; apenas o
pensamento é o oposto. Assim, para cada pensamento há um oposto.
Aqui nós temos uma relação simétrica: se o primeiro pensamento é o
oposto do segundo, então o segundo é o oposto do primeiro. Ao asserir
como falso o pensamento de que Pedro não veio a Roma, se assere que
Pedro veio a Roma. Se poderia fazer a asserção como falso com um
segundo “não” inserido: “Pedro [não] não veio a Roma”, ou “Não é
verdade que Pedro não veio a Roma”. E disso se segue que duas
negativas cancelam uma à outra. O oposto do oposto é o original.
Se está em questão a verdade de um pensamento, nós oscilamos
entre pensamentos opostos, e com o mesmo ato reconhecemos um deles
como verdadeiro e o outro como falso. Nós temos relações semelhantes
397
de oposição em outros casos também, p. ex., o belo e o feio, bom e
mau, agradável e desagradável, positivo e negativo em matemática e
física. Mas nosso caso diferencia-se [71] desses em duplo aspecto.
Primeiramente, porque não há nada aqui, como o zero ou o estado nãoeletrizado que ocuparia um meio neutro entre os opostos. Pode-se bem
dizer que o zero opõe-se a si mesmo em relação aos positivos e
negativos; mas não há nenhum pensamento que seria o oposto de si
mesmo. Isso vale até mesmo para a poesia. Segundo, nós não temos
aqui duas classes tal que a uma pertenceriam os pensamentos opostos
aos que pertenceriam a outra, como há uma classe dos números
positivos e uma dos negativos. Ao menos eu não observei nenhuma
característica que pudesse ser empregada para fazer essa divisão de
classes; pois o emprego da palavra “não” nas expressões linguísticas é o
de uma marca inteiramente exterior e também flutuante. Nós temos
também outros sinais para a negação como “nenhum” e em muitos
casos o prefixo “in”, como por exemplo em “insatisfatório”. Por isso
parece ser de pouca monta, em frases como “Esta obra é péssima”,
“Esta obra é satisfatória”, “Esta obra não é péssima”, 'Esta obra é
insatisfatória” atribuir os pensamentos contidos nas duas primeiras a
uma classe e os nas últimas a outra, tendo em vista que “insatisfatório”
e “péssimo” estão muitos próximos quanto ao sentido, e é possível que
em alguma outra linguagem a palavra para “insatisfatório” fosse uma
tal cuja forma negativa não pudesse ser distinguida tal como em
“péssimo”. Não se pode ver em que aspecto os dois primeiros
pensamentos devem ser mais proximamente aparentados do que o
primeiro e o quarto. Além disso, acrescenta-se que a negação pode
ocorrer não apenas no predicado da oração principal, mas também em
outros lugares, e que tais negações não se cancelam simplesmente,
como p. ex. na frase “Nem todas obras são insatisfatórias”, pela qual
não se pode dizer “Todas as obras são satisfatórias”; ou como nas frase
“Quem não foi aplicado, não será recompensado”, pela qual não se
pode dizer “Quem foi aplicado, será recompensado”. Compare-se para
isso ainda as frases “Quem é recompensado, foi aplicado”, “Quem não
foi aplicado, [72] vai embora sem nada”, “Quem foi preguiçoso, não
será recompensado”, “24 não é diferente de 42” e “24 é igual a 42”, e se
perceberá que aí se está embrenhando num espinheiro de questões.
Sobretudo não compensa querer tentar uma saída para cujas respostas
se empregaria muito esforço. Ao menos para mim não é conhecida
398
nenhuma lei lógica pela qual se poderia fazer uma divisão de classes de
pensamentos entre assertivos e negativos. Logo, deixemos isso quieto
até que talvez se dê a necessidade de uma tal divisão. Para isso mesmo
que provisoriamente se esperaria também um critério que fosse
apropriado para este fim.
O prefixo “in” nem sempre é usado para negação. “Infeliz”
pouco se diferencia quanto ao sentido de “miserável”. Nós temos aí
uma oposição à feliz, mas não a negação. Por isso as frases “Esta casa
não é infeliz” e “Esta casa é feliz” não tem o mesmo sentido.
Compondo pensamentos
Se os jurados respondem “Sim” para a questão “O acusado
premeditadamente pôs fogo num monte de madeira e
(premeditadamente) causou um incêndio florestal?”, então eles asserem
simultaneamente dois pensamentos:
(1) O acusado premeditadamente pôs fogo no monte de madeira.
(2) O acusado premeditadamente causou um incêndio na floresta.
Na verdade nós temos em nossa questão um pensamento; pois ela
pode ser respondida com um juízo; mas, este pensamento é composto
de dois pensamentos, os quais podem ser julgados individualmente, de
tal modo que por asserir o inteiro pensamento eu assiro ao mesmo
tempo os pensamentos componentes. [73] Agora, isso pode parecer
indiferente e que o assunto é de pouca importância; mas, ficará evidente
que isso está intimamente relacionado com leis lógicas muito
importantes. Isso se torna claro tão logo se considera a negação de tais
pensamentos compostos. Quando os jurados tem de dizer “Não” para a
questão acima? Claramente já quando eles aceitam apenas um dos
pensamentos como falso; por exemplo, se eles são da opinião de que
embora não haja dúvidas de que o acusado pôs fogo premeditadamente
no monte de madeira, ele não tinha a intenção de que como
consequência a floresta devesse pegar fogo.
399
400
17.
Diálogo com Pünjer sobre a existência1
G. Frege
Tradução provisória de Celso R. Braida e Cezar A. Mortari (Ufsc)
a partir do original alemão Dialog mit Pünjer über Existenz, in G.
FREGE, Schriften zur Logik und Sprachphilosophie, Aus dem
Nachlass, Hrsg. G. Gabriel; Hamburg, Felix Meiner, 1978; pp. 122.
[I. Diálogo]
1. Pünjer. “Uma coisa não tem a característica de voar, mas
ainda assim cai sob o conceito ‘pássaro’”. Isto é equivalente a
“Entre aquilo que é, há uma coisa que não tem a característica de
voar, mas ainda assim cai sob o conceito ‘pássaro’”?
2. Frege. O que significa é?
1
Pünjer, interlocutor de Frege, é o teólogo protestante Bernhard Pünjer (1850-1885), que foi
professor em Jena a partir de 1880, autor das obras Die Religionslehre Kants (1874), De M.
Servatii doctrina (1876), Geschichte der christlichen Religionsphilosophie seit der
Reformation (1880s), Grundriss der Religionsphilosophie (1886), Religionsphilosophie auf
modern wissenschaftlicher Grundlage (1886); Organizador do Theologische Jahresbericht
(1879) e de uma edição crítica da obra de Schleiermacher Reden über Religio. A partir da
observação entre parêntesis no n. 84, e também do estilo das respostas de Pünjer, percebe-se
que se trata na parte I do protocolo de um diálogo que aconteceu realmente. O protocolo está
fragmentado e refere-se a afirmações não protocoladas (cf. Nota 4). O manuscrito da parte II
estava nos Póstumos de Frege junto com pós-escrito ao diálogo em um envelope, como indica
as obervações de Scholz e seus colaboradores sobre os manuscritos. Cruzamentos com a fase
final de I permitem a suposição de que se trata de uma consideração conclusiva posterior de
Frege.
401
3. P. Algo que é experienciável (para nós).2
4. Fr. Não é supérfluo afirmar a experienciabilidade de
algo?
5. P. Não, uma vez que nós temos a capacidade de nos
fazer representações, por meio da livre reconfiguração das
representações obtidas pela experiência, às quais não corresponde
nada experienciável.
6. Fr. Na sentença “A é algo experienciável” está o sujeito
A, não o lingüístico, mas o real (sachliche) ou a representação de
A?
7. P. A.
8. Fr. “O enunciado ‘A não é experienciável’ é a negação
do enunciado ‘A é experienciável’”. Isto está correto?
9. P.
Sim, quando se entende por “A não é
experienciável”: A sentença “A é experienciável” é falsa.
(No original, não há resposta de Frege. N.T.)
10. P. O enunciado “A não é experienciável” não é
possível. Por isso a pergunta é sem sentido. Também a negação
da experienciabilidade não tem nenhum sentido.
11. Fr.
Portanto, parece-me supérfluo afirmar a
experienciabilidade de algo.
12. P. “Há homens” significa “Ao conceito homem
corresponde algo experienciável” ou “Algo entre o que é
experienciável cai sob o conceito homem”. “Não há centauros”
significa “À representação ou ao conceito2 centauro não
corresponde nada experienciável”.
13. Fr. Aqui a negação aplica-se à “corresponde”.
14. P.
Sim. Ou nada do que é experienciável cai sob o
conceito centauro.
15. Fr. Por meio do enunciado da experienciabilidade
aquilo de que ela é enunciada não é determinado de nenhum
2
2
No Grundriss der Religionsphilosophie (cf. nota 1 acima), p. 50, diz-se: “... para nós ‘existir’
coincide com “ser experimentado”, isto é, exercer uma certa impressão sobre o eu, que o eu
percebe”.
Aqui e a seguir não se diferenciará “Representação” de “Conceito”.
402
modo.
16. P. Não. Esta é a diferença deste enunciado em relação
aos outros.
17. Fr. Parece-me ainda assim como se fosse supérfluo
afirmar de algo a experienciabilidade, pois com isso não se vem a
saber nada de novo acerca daquilo de que se afirma. O senhor
acabou de explicar “Há” e porque tais juízos não são supérfluos,
mas não que o juízo “Isto é experienciável” não seja supérfluo.
18. P. “Isto é experienciável” significa: “A representação
deste ‘isto’ não é uma alucinação, não é algo simplesmente
imaginado por mim; mas, a representação é configurada a partir
da ocorrência de uma afecção do Eu por meio deste isto”.
19. Fr.
Você diferencia, portanto, dois tipos de
representação?
20. P. Sim; há dois tipos de representação: umas que são
meras construções do Eu, e outras que são construções fundadas
em uma afecção do Eu. Para distingui-las, eu digo: os objetos
destas últimas representações são experienciáveis; às primeiras
não corresponde nenhum objeto experienciável.
21. Fr. Desse modo parece-me que o sujeito real em sua
concepção é a representação. Você não admitiria que em cada
enunciado material o sujeito real seja colocado numa classe e por
isso seja distinguido dos outros que não caem sob esta classe?
22. P. Eu admito isso; mas, o enunciado de existência não
é material. Eu não o admito, porém, se por “material” se entende
“não auto-evidente”, “não contendo uma simples lei lógica”.
23. Fr. Nas sentenças “Há homens” e “Não há centauros”
ocorre também uma classificação. Elas, porém, não classificam a
coisa que num caso não está aí, e no outro que não entra em uma
das duas classes, mas classificam os conceitos “Homem” e
“Centauro”, na medida em que colocam um deles sob a classe de
conceitos sob os quais cai alguma coisa e excluem o outro dessa
classe. Por isso, eu digo que nessas sentenças os conceitos são os
sujeitos reais. Quando você diz “Isto é experienciável” no sentido
403
de “Esta minha representação não é meramente por mim
produzida”, está a classificar as representações. Você está a
colocá-las em uma das duas espécies antes diferenciadas por
você. Por isso, eu digo que aqui é a representação o sujeito real.
Você pode expressar-se linguisticamente desse modo: a
representação tem a propriedade de que algo lhe corresponde.
24. P. Isso vai depender aqui do que é a negação. A
negação é possível apenas após uma posição prévia. Quando nós
dizemos “Os centauros não existem”, isso apenas é possível
porque primeiro os pensamos como fora de nós. Nós temos duas
razões para negar a existência: 1. uma contradição lógica, 2. [uma
contradição] fora do conceito ou da representação na experiência.
Logo, não é propriamente a representação ou o conceito o sujeito
real.
25. Fr. Com isso, você fornece apenas a razão pela qual
pronunciamos o juízo sobre existência. Pode-se também derivar
um juízo como “Há raízes quadradas de 4” a partir do conceito
raiz quadrada de 4.
26. P. “Há raízes quadradas de 4” não significa “Algo é
experienciável e cai sob o conceito de raiz quadrada de 4”, uma
vez que entendamos por experienciável algo independente e
sendo por si mesmo. Números existem apenas em algo. Por isso,
este juízo é essencialmente diferente de “Há homens”. Eu jamais
diria: “4 existe”. Muito menos: “uma raiz quadrada de 4 existe”.
O “há” (es gibt) é usado aqui em um outro sentido. Significa: o 4
tem a propriedade de poder ser produzido pela multiplicação de
um número por si mesmo, de que se pode encontrar um número
que multiplicado por si mesmo dá 4. Nós podemos emitir o juízo
apenas quando previamente se tenha construído a sentença 2 2 = 4
(ou (-2)2 = 4). Isto é o correspondente aos outros juízos
existências, como “Há homens”.
27. Fr. Anteriormente foi-me objetado1, diante do exemplo
“Há raízes quadradas de 4”, que se tratava de um juízo
1
Esta objeção não se encontra no diálogo prévio.
404
existencial; agora parece que você não concorda com isso, porque
você não quer dizer: “Uma raiz quadrada de 4 existe”.
28. P.
“Uma raiz quadrada de 4 existe” é um juízo
existencial.
-----29. Fr. (para 18) A sentença “A representação deste isto é
foi constituída por ocasião de uma afecção do eu provocada por
este isto” é, se é que se pode explicitar corretamente seu
conteúdo, auto-evidente; pois, não se pode empregar a expressão
“A representação deste isto” sem que se faça antes o juízo “Esta
minha representação corresponde a algo”, ou “Esta minha
representação foi constituída por ocasião de uma afecção do eu”.1
Só então pode-se denominar “Isto” aquilo que o afetou, aquilo
que corresponde à minha representação.
30. P.: “ A representação deste isto é foi constituída por
ocasião de uma afecção do eu provocada por este isto” é apenas
uma outra expressão para “À minha representação corresponde
algo experienciável”.
31. Fr.: Eu entendo a sua afirmação (20) desse modo:
Quando você quer dizer: B é uma representação que não é
constituída apenas a partir do eu, mas com base em uma afecção
do eu, você diz: “O objeto (Gegenstand) de B é experienciável”.
Ambas as expressões significam o mesmo. Isto é assim?
32. P. : Em vez de “B é uma representação que, etc.” eu
diria “A representação B é, etc.”, com o que já pressuponho que B
seja uma representação.
33. Fr.: Eu concedo que não é auto-evidente e supérfluo
dizer: “A representação B não provém do eu apenas, mas se dá
por causa de uma afecção do eu”; pois nem toda representação
provém de uma afecção do eu, ou pode-se ao menos discutir isto.
A negação disso seria: “A representação B não provém de uma
1
Os casos desse juízo, para Frege, porém, não é de pressuposição lógica no sentido de
premissa, mas de pressuposição auto-evidente, uma vez que “Isto” nas sentenças deve ser
usado assertoricamente. Cf. Para isso 99. e nota 10; também página e nota 12.
405
afecção do eu”, se pressupomos que B é uma representação.1
Esta negação tem um sentido perfeitamente claro e por isso não é
supérfluo e auto-evidente asserir a sentença “A representação B
provém de uma afecção do eu”, ou então , como você quer, a que
tem o mesmo significado, “O objeto de B é experienciável”.
Agora, se ambas estas expressões são sinônimas, então, pode-se,
no juízo “A negação da sentença ‘A representação B provém de
uma afecção do eu’ tem um sentido claro”, colocar no lugar de “A
representação B provém de uma afecção do eu” a expressão “O
objeto de B é experienciável” e obter o juízo: a negação da
sentença “O objeto de B é experienciável” tem um sentido claro.
Isto contradiz as suas afirmações anteriores.
34. P. : Não há nenhuma contradição em caracterizar a
negação do enunciado “O objeto da representação B é
experienciável” como admissível e, ao contrário, a negação do
enunciado “O objeto de B’2 é experienciável” como inadmissível.
35. Fr. : Se o compreendo corretamente, a contradição é
eliminada assim: Na expressão “o objeto da representação”,
“objeto” é usada num sentido diferente do da expressão “O objeto
de A é experienciável”.
36. P. : Não. A palavra “objeto” tem o mesmo significado,
mas “objeto da representação” significado algo diferente de “o
objeto”.
37. Fr.: Há uma mera delimitação na sentença “da
representação”?
38. P. : Por si mesmo “objeto” significa objeto que não é
simplesmente objeto da representação, mas da experiência.
Propriamente a oposição deveria ser: objeto da representação –
objeto da experiência.
1
2
Que B é uma representação é a pressuposição (cf. Nota 5) para que a expressão “A
representação B” tenha um significado (no sentido da distinção posterior entre sentido e
significado; cf. [20] e aqui página 83ss), e esta é a pressuposição, para Frege, para que uma
sentença seja ou verdadeira ou falsa. A negação, entendida como passagem de um valor de
verdade para outro, necessita por conseguinte dessa pressuposição.
“B’” tem que designar o objeto da representação B, e na medida em que ele seja tambem
objeto de experiência (cf. 38).
406
-----39. P.: (com referência a (26) e (27)): Número não é
experienciável no mesmo sentido que Paulo.
40. Fr. : Você diferencia portanto dois sentidos da palavra
“experienciável”?
41. P. : Não. Os números são no mesmo sentido geral
experimenciáveis. O conceito de experienciável é em ambos os
casos o mesmo; é o mesmo quer ser tome números, coisas ou
cores por experienciável.
42. Fr. : Você entende por “experienciável” nem sempre
algo por si mesmo experienciável?
43. P. : Experienciável é também aquilo que não é
experienciável por si mesmo, como, p.ex., as cores que são
experimentáveis apenas em algo.
44. Fr. : Você diz (26) que não diria “4 existe”. Você
emprega aqui “existe” no mesmo sentido de “ser experienciável”?
45. P. : Sim, eu repito a afirmação que eu não diria: “4
existe”, “uma raiz quadrada de 4 existe”.
46. Fr. : A diferença entre o juízo “Há homens” e “Há raizes
quadrada de 4” não está no “há”, mas na diferença dos conceitos
“homem” e “raiz quadrada de 4”. Sob um homem nós pensamos
algo por si e sob raiz quadrada de 4, não.
47. P. : Com isso eu estou de acordo.
48. Fr. : A sentença “A é experienciável” está correta, se sob
A se entende uma representação?
49. P.: Sim. Uma representação é experienciável.
50. Fr.: Há uma representação de uma representação?
51. P. : Há representações de representações.
52. Fr. : Você antes tomou a representação como uma
imagem mutável, como uma série de impressões. Quais são,
então, as impressões que constituem a representação da
representação A?
53. P. : As atividades singulares da representação A são
essas impressões.
407
54. Fr. : Atividade do representar significa o mesmo que
representação?
55. P. : Sim.
56. Fr.: Então nós distinguimos incorretamente atividade da
representação de representação?
57. P. : Sim.
58. Fr. : A partir de suas afirmações (18) e (30) segue-se
que “isto é experienciável” tem o mesmo significado que “À
minha representação corresponde algo experienciável”. Aqui
“experienciável” é explicada por si mesma.
59. P. Isso não deve ser nenhuma explicação. Eu mantenho
que a expressão “A representação deste Isto” sempre pode ser
empregada.
60. Fr.: Toda representação tem um objeto?
61. P. : Sim. Cada representação tem necessariamente um
objeto. “Objeto da representação” é o mesmo que “Conteúdo da
representação”.
62. Fr. : O conteúdo da representação A é o mesmo que A?
63. P. : Não. A imagem-representação é a imagem mutável.
Mais precisamente, deve-se diferenciar a imagem-representação
de representação. Por imagem-representação é abstraída a
atividade.
64. Fr.: O objeto da representação é diferente da imagemrepresentação?
65. P.: Sim.1
66. Fr. : Quando você vê uma miragem ou tem uma
alucinação, qual é o objeto da representação?
(a resposta ficou por dar).
------67. Fr.: Você concede que a negação da sentença “O objeto
de B é experienciável” tem um bom sentido?
68. P.: Sim.
69. Fr.: Você concede que se pode denominar A o objeto da
1
Pünjer diferencia entre representação (atividade do representar), objeto (conteúdo) da
representação e imagem da representação.
408
representanção B?
70. P. : Sim.
71. Fr. : Então Você concede que a negação da sentença “A
é experienciável” tem um bom sentido.
72. P. : Sim. Mas, a sua pergunta (8) compreendia sob A,
não um objeto da representação, mas da experiência.
73. Fr.: Não falei de A nem como objeto da experiência nem
que ele deveria ser o objeto da representação, mas deixei isto
inteiramente indeterminado. Por isso eu entendi sua resposta (10)
de uma maneira mais genérica do que você parece entender
agora. De resto, era mais óbvio entender A como objeto da
representação, pois em (6) eu havia usado a expressão
“representação de A”.
74. P.:
Mas, estava claro que sob A se entendia
expressamente um objeto da experiência.
75. Fr.: Eu não vejo assim. Talvez possamos ir adiante desse
modo: Você concede que há objetos de representação que não
provêm de uma afecção do eu?
76. P. : Sim.
77. Fr.: Você concede que objetos de representação que não
provêm de uma afecção do eu, não existem?
78. P. : Sim.
79. Fr.: Então segue-se que há objetos de representação, que
não provêm de uma afecção do eu, logo, que não existem. Se
Você usa a palavra “existir” no mesmo sentido da expressão “há”,
então Você igualmente afirma e nega o mesmo predicado do
mesmo sujeito. O raciocínio é correto; pois o conceito “objetos de
representação que não provêm de uma afecção do eu” é o mesmo
em ambas as premissas e o mesmo também na conclusão. Você
concede isto?
80. P. : Sim. Mas a palavra “há” é mal-empregada aqui.
81. Fr. : Então, você proponha uma outra expressão que
expresse melhor a coisa.
82. P. : Não dá, pois esta novamente não diria o que deve
409
ser expresso.
83. Fr.: Nós temos aqui, então, segundo sua opinião, uma
contradição real na qual a razão necessariamente chega; pois, por
meio da simples modificação do modo de expressão ela não pode
evitá-la.
84. P. : Antes que nós possamos negar a existência de algo,
devemos representá-lo como existente, para então negar-lhe a
existência. Porém, eu acredito que nós não podemos prosseguir
desse modo. Como Você explica “Há homens”?
(O que se segue daqui foi deixado de lado, porque dava
mostra de circularidade, na medida em que nós voltamos de novo
a questão:)
85. P.: Como você explica “Há seres vivos”?
86. Fr. : Eu explico assim: a sentença de que, o que quer
que eu possa entender sob A, A não cai sob o conceito “ser vivo”,
é falsa.
87. P. : O que se deve pensar com A?
88. Fr.: O significado que dou a A não deve sofrer nenhuma
delimitação. Se eu tenho que dizer algo sobre isso, então, isto
apenas poderia ser algo auto-evidente como, p. ex., A = A.
89. P. : O erro está em que com A você sempre pensa um
ente (ein Seiendes) e também pressupõe o simples “há”.
90. Fr. : Eu não aplico ao A a delimitação de ele seja um
ente, na medida em que não se entenda com Ser algo autoevidente, de tal modo que nenhuma delimitação seja posta.
91. P. : O que é “auto-evidente”?
92. F. : Auto-evidente eu denomino um enunciado que não
determina em nada aquilo de que ele é enunciado.
93. P. : Você conhece apenas enunciados que são feitos
acerca de alguma coisa?
94. Fr. : “Há enunciados que não são feitos acerca de nada”
significaria: “Ha juízos nos quais não se pode distinguir um
sujeito de um predicado”.
95. P. : O que você entende por algo de qual algo pode ser
410
enunciado?
96. Fr. : O que pode ser feito sujeito de um juízo.
------97. Fr. : “Alguns homens são alemães” significa igualmente
como “Há homens alemães”. Da sentença: “Sachse 1 é um
homem” segue-se também “Há homens”, do mesmo modo como
das proposições “Sachse é um homem” e “Sachse é um alemão”
segue-se: “Alguns homens são alemães” ou “Há homens
alemães”.
98. P. : “Alguns homens são alemães” não significa o
mesmo que “Há homens alemães”. Você não pode deduzir “Há
homens” apenas da única sentença “Sachse é um homem”, antes
Você precisa de uma outra sentença: “Sachse existe”.
99. Fr. : Sobre isso eu diria: se “Sachse existe” deve
significar “A palavra ‘Sachse’ não é um som vazio, mas designa
algo”, então, é correto que a condição “Sachse existe” deve ser
preenchida. Esta porém não é nenhuma premissa nova, mas a
pressuposição2 auto-evidente de todas as nossas palavras. As
regras da Lógica pressupõem sempre que o uso das palavras não é
vazio, que as proposições são expressões de juízos, que não se
joga apenas com palavras. Se “Sachse é um homem” é um juízo
efetivo, a palavra “Sachse” deve designar algo e então eu não uso
uma outra premissa para concluir “Há homens”. A premissa
“Sachse existe” é supérflua, se ela deve significar algo diferente
dessa pressuposição auto-evidente em todo nosso pensamento.
1
2
Este nome não foi arbitrariamente escolhido por Frege. Havia em Jena um professor ginasial
chamado “Leo Sachse”, que foi membro da Sociedade de Jena para a Medicina e ciências
naturais desde 1876, a qual Frege também pertencia.
Em Sobre o sentido e a referência Frege fez observações precisas sobre esta “pressuposição
auto-evidente”. Na página 40 diz-se: “SE alguém afirma algo, então sempre é auto-evidente a
pressuposição de que o nome próprio utilizado, simples ou composto, tem um significado”. A
argumentação conclusiva de Frege no exemplo anterior ficaria assim: se esta pressuposição
não fosse auto-evidente, então a negação de “Sachse é um homem” significaria “Sachse não é
um homem ou o nome “Sachse é sem significado”. Que o nome “Sachse” tem um significado
(e um único)é tanto pressuposição para a afirmação “Sachse é um homem” como para sua
contrária. Aqui Frege antecipa uma tese muito significativa que P. F. Strawson reformulou
novamente em sua oposição a teoria das descrições de Russell.Strawson denomina este tipo de
pressuposição auto-evidente “presumption”. Cf. On referring. MInd LIX (1950), pp. 320-344,
p. 332.
411
Você pode dar um exemplo em que uma sentença da forma “A é
um B” tenha sentido e seja verdadeira [na qual] 1 A seja um nome
de um indivíduo e “Há B’s” seja falsa? “Alguns homens são
alemães” pode ser assim expressa “Uma parte dos homens cai sob
o conceito ‘alemão’”. Aqui, porém, sob parte deve-se entende
uma parte não muito pequena, uma parte que contém indivíduos.
Caso não fosse esse o caso, não houvesse nenhum homem que
fosse alemão, então dir-se-ia: “Nenhum homem é um alemão”;
isto é a oposta contraditória de “Alguns homens são alemães”.
Por isso, inversamente, de “Alguns homens são alemães” seguese “Há homens alemães”. “Alguns homens são alemães” pode-se
também assim ...2 .
[II. Epílogo de Frege.]
Formulação da questão disputada
Nós consideramos as proposições “Esta mesa existe” e “Há
mesas”. A pergunta é se a palavra “existe” na primeira sentença
tem essencialmente o mesmo conteúdo do que “há” na segunda.
Você não contestou, creio eu, que uma certa diferença
também ocorre no predicado, que a diferença não esteja apenas na
diferença de sujeito; porém, você afirmou apesar disso que no
essencial o significado era o mesmo. Você poderia me mostrar,
em que, segundo sua opinião, consiste o genérico, quão longe ele
alcança e onde a diferença começa?
Nós devemos nos entender sobre como um juízo afirmativo
particular com “alguns” deve ser compreendido. Eu acredito que
em geral na Lógica isso seja assim compreendido, como na
cláusula esclarecedora “talvez todos, e ao menos um” fica claro,
de tal modo que “Alguns homens são negros” significaria
1
2
No manuscrito está “nisso”.
Aqui o manuscrito interrompe-se.
412
“Alguns, talvez todos, mas ao menos um homem é negro”.
Se há acordo a respeito disso, então pode-se converter um
juízo afirmativo particular, como “Alguns homens são negros”,
em “Alguns negros são homens”. A resistência que se tem
primeiramente em relação a isso tem sua origem em que
involuntariamente se pensa: “mas alguns negros não são
homens”. Este pensamento adicional é evitado com nossa
cláusula “talvez também todos”.
Você gostaria agora que a expressão “Homens existem”
fosse apreendida como significando o mesmo que “alguns
existentes são homens”. Esta expressão tem o defeito que nela,
segundo a forma linguística, o predicado não é o existir, mas o ser
homem. Agora, o existir é que deveria ser realmente enunciado.
Nós podemos também expressar isso linguisticamente, fazendo a
inversão: “Alguns homens existem” no sentido de “alguns, talvez
também todos, ao menos um homem existe”. Isto tem, portanto, o
mesmo significado de “Homens existem”.
Eu entendi a sua concepção sempre como se você tomasse a
diferença de significado da palavra “existir” nas proposições
“Leo Sachse existe” e “Alguns homens existem” como sendo do
mesmo tipo da diferença de significado de “é um alemão” nas
proposições “Leo Sachse é um alemão” e “alguns homens são
alemães”, tal que “existe” relaciona-se nas primeiras proposições
com “existem” do mesmo modo como “é um alemão” relacionase com “são alemães” nas duas últimas. Escolhi os mesmos
sujeitos “Leo Sachse” e “Alguns homens” intencionalmente em
ambos os casos, para indicar sua correspondência. Eu acredito
que se deixa de fora o “alguns” na sentença “Homens existem”
para evitar a objeção: “não todos?”
Eu acredito reapresentar corretamente o seu plano de ataque
do seguinte modo.
Você quer em primeiro lugar levar-me a admitir que “Há
413
homens” significa o mesmo que “Entre os entes há alguns
homens”, ou “Uma parte dos entes são homens” ou “alguns entes
são homens”. Em vez de ente vocês usam como significando o
mesmo também as expressões “experienciável”, “existente”,
“cuja(s) representação(ões) provêm de uma afecção do eu”. Estas
são, creio, apenas modificações inessenciais. Talvez aparecem aí
algumas dificuldades secundárias, ou sejam suprimidas. Contudo,
a dificuldade principal permanece sempre a mesma e também a
ideia geral do plano de ataque. Eu deveria agora, porém, ser
levado a admitir que a expressão ser (existir) é usada no mesmo
sentido que nas sentenças “Leo Sachse é” ou “existe”. Assim
pareceria que você teria vencido a argumentação.
Eu posso muito bem conceder que a expressão “há homens”
significa o mesmo que “Alguns existentes são homens” apenas
sob a condição de que a palavra “existe” implica em um
enunciado auto-evidente, portanto, que não propriamente não tem
nenhum conteúdo. O mesmo vale para as outras expressões que
foram usadas no lugar de “existir”.
Agora, se a sentença “Leo Sachse é” é auto-evidente, então,
o “é” não pode ter o mesmo conteúdo que “há” na sentença “Há
homens”, pois esta não diz algo auto-evidente. Quando vocês
entendem que a sentença “Há homens” também expressa
“Homens existem” ou “Entre os entes alguns são homens”, então,
o conteúdo do enunciado não pode estar em “existem” ou “ente”,
etc.. E este é o proton pseudos a partir do qual você depois é
levado a juízos contraditórios: que1 o conteúdo do enunciado nas
proposições “Alguns homens existem” ou “Alguns existentes são
homens” ou “Homens existem” está contido na palavra
“existem”. Isto não é o caso, antes apenas está ali contida a forma
do enunciado, como na sentença “o céu é azul” a forma do
enunciado está contida na cópula “é”. “Existem”, em ambas as
sentenças, é apenas uma palavra estrutural (Formwort) a ser
1
“que” refere-se a proton pseudos. Cf. Abaixo página 17.
414
compreendida de modo análogo ao “es” em “Es regnet”. Assim
como a linguagem, diante do embaraço de introduzir um sujeito,
inventou um “es”, assim ela aqui, no embaraço de introduzir um
predicado gramatical, inventou o “existir”.
Que o conteúdo do enunciado não está na palavra “existir”
eu mostro pelo fato que em vez disso se pode também dizer
“igual a si mesmo”. “Há homens” significa o mesmo que “Alguns
homens são iguais a si mesmos” ou “Alguns iguais a si mesmos
são homens”. Na sentença “A é igual a si mesmo” fica-se sabendo
algo novo sobre A tão pouco quanto em “A existe”. Nenhuma
dessas sentenças pode ser negada. Pode-se em ambas substituir
pelo A o que se quiser, elas permanecerão sempre corretas. Elas
não dizem que A cai sob uma de duas classes, para diferenciar
talvez de algum B que não pertence a esta classe. Quando se
profere a sentença “A é igual a si mesmo”, pode-se apenas ter o
objetivo de enunciar a lei lógica da identidade, não, porém, para
tornar A um pouco mais conhecido. Do mesmo modo que pode-se
afirmar, nas sentenças “Esta mesa existe” e “Mesas existem”, que
“existe” significa o mesmo, pode-se também dizer que na
sentença “Esta mesa é igual a si mesma” e “Mesas são iguais a si
mesmas” o predicado “igual a si mesmo” tem o mesmo sentido.
Apenas deve-se reconhecer que o juízo “Esta mesa existe” e
“Esta mesa é igual a si mesma” são completamente autoevidentes, que, portanto, nelas nenhum conteúdo especial é
enunciado dessas mesas. Do mesmo modo como se denomina
“Homens existem” por juízo de existência, na crença de que o
conteúdo do enunciado está na palavra “existem”, pode-se
denominar a sentença “Alguns homens são iguais a si mesmos”
[um juízo de identidade]1, e “Há homens” seria um juízo de
identidade. Em geral, em toda demonstração que fosse tentada
para encontrar o conteúdo do enunciado da sentença “Há
homens” no “existem” da sentença “Homens existem”, poder-seia sempre substituir “existir” por “igual a si mesmo”, sem que
1
No manuscrito está: “juízos de identidade”.
415
novos erros sejam por isso introduzidos. Eu me coloco a
disposição para isso.
Agora, se o conteúdo do enunciado do juízo “Homens
existem” não está em “existem”, onde está ele então? Eu
respondo: na forma dos juízos particulares. Cada juízo particular
é um juízo existencial, o qual pode ser transposto na forma “há”.
Por exemplo, “Alguns corpos são leves” é o mesmo que “Há
corpos leves”. “Alguns pássaros não podem voar” é o mesmo que
“Há pássaros que não podem voar”, etc.. O contrário, transpor um
juízo com “há” em um particular, é mais difícil. A palavra
“alguns” fora da articulação não tem nenhum sentido; ela é uma
palavra estrutural como “todo”, “cada”, “nenhum”, etc., que
exercem uma função lógica na articulação da sentença. Esta
função consiste na colocação dois conceitos na mesma relação
lógica. Na sentença “Alguns homens são negros” os conceitos
“Homem” e “Negro” são postos nessa relação. Necessita-se
sempre de dois conceitos quando se quer fazer um juízo
particular. Desse modo a sentença “Há peixes voadores” deixa-se
facilmente traduzir para “Alguns peixes podem voar” por que se
tem dois conceitos, “peixe” e “poder voar”. Mais difícil é quando
se quer transpor a sentença “Há homens” para a forma de um
juízo particular. Quando se difine Homem = ser vivo racional,
então se pode dizer: “alguns seres vivos são racionais” e isso, sob
a pressuposição da correção da definição, significa o mesmo que
“Há homens”.
O uso de tais recursos pressupõe que se pode dividir o
conceito em duas características. Uma outra maneira está
intimamente relacionada a esta. Quando, por exemplo,
retranscreve-se “Há negros”, então se pode dizer “Negro = negro
que é homem”, porque o conceito “Negro” é subordinado ao
conceito de “Homem”. Tem-se agora novamente dois conceitos e
pode-se dizer “alguns homens são negros” ou “Alguns negros
são homens”. Isto porém é apenas uma informação especial para
o caso do conceito “Negro”. Para a sentença “Há bétulas” deve-se
416
escolher outro conceito superordenado, talvez “Árvore”. Se se
quer tornar a coisa completamente geral, deve-se buscar um
conceito que seja superordenado a todos os conceitos. Um tal
conceito, se se quer denominá-lo assim, não pode ter mais
nenhum conteúdo, na medida em que sua extensão (Umfang)
torna-se ilimitada; pois, todo conteúdo deve consistir apenas em
uma certa delimitação da extensão. Como um tal conceito podese escolher o de “igual a si mesmo”, na medida em que se diz que
“Há homens” é o mesmo que “Há homens iguais a si mesmos” é
o mesmo que “alguns homens são iguais a si mesmos” ou “alguns
iguais a si mesmos são homens”.
A linguagem valeu-se de outros meios. Para a construção de
um conceito sem conteúdo serve-se ela da cópula, isto é, a
simples forma do enunciado sem conteúdo. Na sentença “O céu é
azul” o enunciado é “é azul”, mas o conteúdo real do enunciado
está na palavra “azul”. Se esta é eliminada, então, obtém-se um
enunciado sem conteúdo: o “O céu é” restante. Desse modo
constrói-se um quase-conceito “ser” (Seiendes) sem conteúdo,
porque de extensão infinita. Agora pode-se dizer: Homem =
homem sendo; “Há homens” é o mesmo que “Alguns homens
são” ou “Alguns entes são homens”. O conteúdo real do
enunciado não está aqui na palavra “ser”, mas na forma dos
enunciados particulares. A palavra “ser” é apenas um expediente
da linguagem para poder tornar empregável a forma dos
enunciados particulares. Quando os filósofos falam do “ser
absoluto” trata-se aí propriamente de um endeusamento da
cópula.
Agora, é fácil de ver como chega-se a isso. Percebe-se que
a sentença “Há um centro de gravidade da Terra” não é autoevidente, que, portanto, o enunciado tem um conteúdo. É muito
esclarecedor que se acredite que esse conteúdo esteja contido na
palavra “existe”, quando se emprega a versão “Um centro de
gravidade da Terra existe”. Desse modo, introduziu-se um
conteúdo na palavra “existe”, sem, entretanto, poder dizer-se em
417
que se constitui na verdade este conteúdo.
Pode-se mostrar agora, como Pünjer, através do proton
pseudos, ao ver o conteúdo do enunciado “Homens existem” em
“existir”, devia ser conduzido a afirmações contraditórias. Eu
pude convencê-lo facilmente de que a negação da sentença “A é
experienciável”é impossível, quando ser experienciável = ser =
existir. Ele teve que conceder também que o enunciado da
experienciabilidade daquilo de que se enuncia, não o determina
de modo algum. Por outro lado, ele queria entretanto salvar o
conteúdo do enunciado de experienciabilidade. Nas sentenças
“Esta mesa é experienciável”, “Esta mesa existe”, algo deveria
ser dito, mas o enunciado não deveria conter nenhum enunciado
supérfluo e auto-evidente. Então, ele foi também conduzido à
contradição de conceber a negação da sentença “Esta mesa é
experienciável” como não supérflua e não auto-evidente. Ele teve
que esvaziar a palavra ‘experienciável” de qualquer conteúdo,
entretanto, sem torná-la sem conteúdo. O conteúdo do juízo “Isto
é experienciável”, Pünjer expressou assim: “A representação
deste Isto não é uma alucinação, não é algo que provém apenas
do eu; antes, a representação é feita a partir da afecção do eu por
meio desse Isto”. Contra isso eu tive que redarguir que apenas se
pode construir corretamente as expressões “Representação deste
Isto” e “Afecção do eu por meio desse Isto” depois que se chegou
ao juízo “a esta minha representação corresponde algo”. Se a esta
minha representação não corresponde nada, então a expressão
“Representação deste Isto” não tem sentido e por isso a inteira
sentença é sem-sentido.1 Pünjer modificou depois sua explicação,
sem conceder que ela era incorreta: “O objeto da representação B
é experienciável” significa: “A representação B é feita com base
em uma afecção do eu”. Disso eu apenas posso concluir que a
negação da sentença “O objeto da representação B é
experienciável” tem um bom sentido. Porém, Pünjer havia antes
1
Frege aqui ainda não diferenciava sentido e significado. Ele teria, então, substituído aqui
“Sentido” por “Significado” e “sem sentido” por “sem significado”.
418
afirmado que a negação da sentença “A é experienciável” era
impossível. Agora nós devemos delimitar isto um pouco e dizer:
Se A é um objeto de experiência, então, a negação da sentença “A
é experienciável” é impossível, mas, se A é um objeto de
representação, então, a negação daquela sentença é possível. Nós
vemos confirmado nesse exemplo que é impossível dar um
sentido não auto-evidente ao predicado “experienciável” e ao
mesmo tempo manter que a negação da experienciabilidade é
sem-sentido. Nós vemos também que o conceito de
experienciável apenas adquire um conteúdo ao ter sua extensão
limitada. De fato, todos os objetos são repartidos em duas
classes: os objetos da experiência e os de representação. Os
últimos não caem em sua totalidade sob o conceito de
“experienciável”. Disso se pode concluir mais ainda, que nem
todo conceito é subordenado ao conceito de experienciável, a
saber, não o conceito de “Objeto de representação”. Disso se
segue ainda que o conceito de experienciável não é em geral
apropriado para o objetivo de dar um juízo com “há” a forma do
particular. Para justificar a expressão “objeto de representação”
em geral, Pünjer teve que afirmar que cada representação tem um
objeto, que há objetos de representação que não provêm de uma
afecção do eu. Se aplicamos a isso sua definição de proposição
com “Há”, então uma contradição tem lugar. De fato, a partir
dessa definição o juízo “Há objetos de representação que não
provêm de uma afecção do eu” significa o mesmo que “Entre o
que é experienciável, há alguns que caem sob o conceito ‘objeto
de uma representação que não provêm de uma afecção do eu’”.
Porém, pela explicação de Pünjer, os objetos de representação
que não provêm de uma afecção do eu não são experimentáveis.
Logo, nós chegamos a proposição: “Entre o que é experienciável,
há algo que não é experienciável”.
Pode-se também dizer: das duas premissas
1. Há objetos de representação que não provêm de uma
afecção do eu;
419
2. Objetos de representação que não provêm de uma
afecção do eu não são experimentáveis;
segue-se a conclusão:
Há objetos de representação os quais não são
experimentáveis. Isto é uma contradição, na medida em que pela
expressão “Há” seja expresso o mesmo tipo de existência que
pela palavra “experienciável”.
Em geral pode-se estabelecer o seguinte:
Quando se queira dar um conteúdo à palavra “ser” de tal
modo que a proposição “A é” não seja supérflua e auto-evidente,
faz-se necessário admitir que a negação da proposição “A é” é
possível sob certas circunstâncias; isto é, que há objetos
(Subjektes) dos quais o ser deve ser negado. Desse modo, porém,
o conceito “ser” não seria mais em geral adequado para a
explicação do “Há” de modo a propiciar que “Há B’s” signifique
o mesmo que “Alguns seres caem sob o conceito B”; pois, se
empregamos esta explicação para a proposição “Há objetos dos
quais o ser deve ser negado”, nós obtemos “Alguns seres caem
sob o conceito do não-ser” ou “Alguns seres não são”. Não se
pode escapar disso, na medida em que se queira dar algum
conteúdo ao conceito de ser, seja ele qual for. Faz-se necessário,
pois, se a explicação de “Há B’s” como significando o mesmo
que “Alguns seres são B” deva ser correta, que por ser se entenda
algo completamente auto-evidente.
A contradição permanece também com base nessas razões
quando se diz que “A existe” significa “A representação de A
provêm de uma afecção do eu”. Aqui ocorrem ainda outras
dificuldades, das quais eu quero mencionar apenas algumas.
Quando Leverrier colocou para si mesmo a pergunta se para
além da órbita de Urano havia planetas, ele não se perguntou se a
sua representação de uma planeta para além da órbita de Urano
provinha ou poderia provir de uma afecção do eu. Quando as
420
pessoas disputam se há um deus, elas não disputam acerca de se
nossa representação de um deus provém ou poderia provir de uma
afecção do eu. Muitos daqueles que acreditam que há um deus,
discutem se a sua representação dele provém de uma afecção
imediata do seu eu por deus, pois aqui apenas uma afecção
imediata pode estar em questão. Mas, isso é apenas uma questão
secundária. O resultado é o seguinte:
Pode-se dizer que os significados da palavra “existir” nas
proposições “Leo Sachse existe” e “Alguns homens existem” não
mostram nenhuma grande diferença como os de “ser um alemão”
nas proposições “Leo Sachse é um alemão” e “Alguns homens
são alemães”. Porém, a proposição “Alguns homens existem” ou
“Alguns existentes são homens” apenas significa o mesmo que
“Há homens” quando o conceito “existente” é superordenado ao
conceito “Homem”. Se, portanto, tais formas de expressão
devem ser universalmente significar o mesmo, então, o conceito
“existente” deve ser superordenado a todo conceito. Isto é apenas
possível se a palavra “existir” signifique algo completamente
auto-evidente, se, portanto, na proposição “Leo Sachse existe”
nada foi enunciado e se na proposição “Alguns homens existem”
o conteúdo do enunciado não estiver na palavra “existir”. A
existência expressa pela palavra “Há” não está contida na palavra
“existir”, mas na forma dos juízos particulares. “Alguns homens
são alemães” é um juízo existencial tanto quanto “Alguns homens
existem”. Porém, tão logo se dê à palavra “existir” um conteúdo
que possa ser dito de particulares, este conteúdo pode ser posto
como uma nota característica de um conceito, sob o qual cai o
particular do qual o existir é enunciado. Se, por exemplo, dividese tudo em duas classes,
1. O que está em meu espírito, as representações,
sentimentos, etc., e
2. O que está fora de mim,
e dos últimos diz-se que existem, então, pode-se conceber a
421
existência como nota característica do conceito de Centauro,
embora não haja nenhum centauro. Eu não reconheceria nada
como centauro que não estivesse fora do meu espírito; isto é,
simples representações e sentimentos em mim, eu não chamaria
de centauro.
A existência expressa por “Há” não pode ser nota
característica de conceitos, do qual ela seria propriedade, mesmo
porque ela é uma sua propriedade. Na proposição “Há homens”
parece falar-se de indivíduos que caem sob o conceito “Homem”,
embora trate-se apenas do conceito “Homem”. O conteúdo da
palavra “existir” não pode ser tomado como nota característica de
um conceito, porque “existir” não tem nenhum conteúdo
[quando]1 é usada na proposição “Homens existem”.2
Vê-se aqui como se é induzido facilmente pela linguagem a
falsas concepções, e qual valor deve ter para a Filosofia livrar-se
do domínio da linguagem. Quando se tenta construir um sistema
de sinais com fundamentos e meios inteiramente diferentes, como
eu tentei com a construção de minha conceitografia3, por assim
dizer, bate-se com o nariz em falsas analogias da linguagem.
1
2
3
No manuscrito está: “assim como”.
Já em Os fundamentos da Aritmética, § 53, Frege havia tornado claro que ele tomava
“existência” como um “conceito de segunda ordem”. Desde Função e conceito, p.27, ele fala
de “conceito de segundo nível” (cf. .....pp163). Conceitos de segundo nível (e suas notas
características) indicam propriedades de conceitos e conceitos de primeiro nível propriedades
de objetos. A última frase de Frege deve ser entendida assim: que “existir” não tem conteúdo
como nota característica de um conceito de primeiro nível. Como conceito de segundo nível
“existir” tem, também para Frege, um conteúdo, e este se constitui de uma única nota
característica (de segundo nível), a existência.
Sob “Conceitografia” Frege entende aqui não apenas seu escrito de homônimo, mas o
programa ali formulado da conceitografia de desenvolver um “modo de expressão adequado”
que tornasse legível as relações lógicas diretamente nos sinais.
422
18.
Proposições seminais sobre a Lógica
G. Frege
Schriften zur Logik und Sprachphilosophie, aus dem Nachlass;
hrsg. G. Gabriel. Hamburg, Felix Meiner, 2001. S. 35-73.
1. As conexões que perfazem a natureza do pensamento
(Gedanke) são singularmente diferentes da associação de
representações (Vorstellungen).
2. A diferença não está simplesmente em um pensamento auxiliar
que justificaria a primeira conexão.
3. Pelo pensamento não são propriamente representações que são
conectadas, mas coisas, propriedades, conceitos, relações.
4. O pensamento contém sempre algo sobre o caso particular
(besondern Fall), pelo que este, enquanto cai sob algo geral (etwas
Allgemeines), chega à consciência (Bewusstsein).
5. A expressão linguística para a singularidade do pensamento é a
cópula ou a desinência pessoal do verbo.
6. Como marca característica externa para a conexão pensante
(denkende Verknüpfung) pode valer que sobre ela a pergunta se ela é
423
verdadeira (wahr) ou não-verdadeira (unwahr) tem um sentido.
Associações de representações não são nem verdadeiras nem nãoverdadeiras.
7. O que é o verdadeiro, eu tenho por não explicável.
8. A expressão linguística de um pensamento é a frase (Satz).
Fala-se em sentido metafórico também da verdade de uma frase.
9. Uma frase pode ser verdadeira ou falsa apenas quando ela é a
expressão de um pensamento.
10. A frase “Leo Sachse é um homem” é expressão de um
pensamento apenas quando “Leo Sachse” designa algo. Assim também
a frase “Esta mesa é redonda” é expressão de um pensamento quando
as palavras “Esta mesa” designam para mim algo determinado, não
sejam palavras vazias.
11. “2 vezes 2 é 4” permanece verdadeira, mesmo quando por
causa do desenvolvimento darwiniano todos os homens então
afirmassem que 2 vezes 2 fosse 5. Toda verdade é eterna e
independente de ser ela é pensada e das condições psicológicas daquele
que a pensa.
12. A lógica somente começa com a convicção de que há uma
diferença entre verdade e inverdade.
13. Justifica-se um juízo (Urteil) ou através da remissão a
verdades já conhecidas ou sem a utilização de outros juízos. Apenas o
primeiro caso, o deduzir (das Folgern), é um objeto da Lógica.
14. As doutrinas do conceito (Begriff) e do juízo valem apenas
como preparação para a doutrina da dedução.
15. A tarefa da lógica é a explanação das leis pelas quais um
juízo é justificado por meio de outros, unicamente se aqueles são
verdadeiros.
424
16. A aplicação das leis lógicas pode implicar a verdade de um
juízo apenas se os juízos a partir dos quais se justifica são verdadeiros.
17. As leis da lógica não podem ser justificadas por meio de
investigações psicológicas.
425
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Edições Rocca Brayde
Versão Digital
1ª edição, 2011.
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