Entre o sagrado e o profano: a ritualização do noivado em
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Entre o sagrado e o profano: a ritualização do noivado em
Entre o sagrado e o profano: a ritualização do noivado em uma sociedade em transformação Breno Rodrigo de Oliveira Alencar Doutorando em Antropologia PPGSA/UFPA [email protected] Introdução Numa sexta-feira de janeiro do ano de 1994, Thales de Azevedo, publicou no jornal A Tarde um artigo revelando sua profunda preocupação com o namoro, um ritual que, no seu ponto de vista, tinha pouco a pouco perdido sua magia. De acordo com este antropólogo, e articulista de ocasião, apesar do assunto ter caído no gosto popular com a publicação de sua As regras do namoro à antiga, em 1975, "Pouco resta do namoro propriamente dito. Há ainda namoro, felizmente. Mas a palavra cobre e caracteriza uma realidade bastante diversa. E talvez a saudade do verdadeiro namoro, a necessidade de algo daquele gênero, romântico, poético, delicado, que faz recordar o velho relacionamento afetivo e afetuoso em ordem ao casamento. Transformaram-se as relações entre os sexos numa direção crua, imediatista e, muitas vezes, quase sempre sem a perspectiva de honesta, apaixonada, união conjugal. A saudade desse relacionamento, a curiosidade por aquilo que foi possivelmente um dos atrativos atuais do namoro à antiga. Não que este possa voltar com a universalidade que gozou, porém, o retorno a algo idealista, simples, sem deixar de ser complexo, respeitoso e exploratório dos temperamentos, das idéias, dos sonhos dos implicados. Esse foi, sob aquela inspiração, um tempo de sonhos, de esperanças, de planos que se completariam no compromisso, no, pedido, no noivado, finalmente, no casamento e numa realização tranqüila, paciente, realista." (Jornal A Tarde, 21/01/1994) Sem cair na tentação do anacronismo, é preciso reconhecer que o tom saudosista e até certo ponto moralista presente neste texto revela uma personagem de formação religiosa e criado num meio intelectual, mas conservador, cujo olhar treinado permitiu-lhe compreender a dinâmica das transformações sociais que abalaram o Brasil na transição entre o regime colonial e a república. Carregando consigo opiniões que mais parecem o som de vozes sufocadas pelo tempo, ele nos Trabalho apresentado no Simposio 52 “Formas de amar. Cortejo, noviazgo y matrimonio en tiempos de transición de la vida comunitaria” do IV Congreso Latinoamericano de Antropologia, Cidade do México, 7 a 10 de outubro de 2015. Agradecemos a Universidade Federal do Pará e ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará pelo apoio financeiro que viabilizou sua apresentação. permite mapear aquilo que Dumont chama de paisagem mental, isto é, o sistema de valores e crenças que reunidas contribuem para processo de socialização dos indivíduos. É partindo de sua perspectiva que lançamos mão de uma análise que situa a socialização atinente ao ritual do noivado no contexto das transformações sociais mais relevantes da sociedade brasileira. Tendo como base o projeto de pesquisa em andamento intitulado “Entre o sagrado e o profano: práticas rituais contemporâneas em contextos de socialização pré-nupcial” nosso objetivo é compreender a ambiguidade no processo de ritualização do noivado cujo vislumbre da experiência conjugal se divide entre a construção de uma subjetividade atomizada (individualista) e as inflexões do modelo tradicional de família e casamento. Recorremos, portanto, a descrição de Thales de Azevedo sobre as técnicas, os ritos, as táticas e os costumes relativos ao período que transcorre entre o pedido de casamento e sua oficialização, que de um modo ou de outro foram incorporados, assimilados e reproduzidos no contexto cultural brasileiro a partir de diferentes fontes, mas com expressiva influência europeia. Em outro sentido, retratamos o cenário que condicionou a evolução dos relacionamentos amorosos do modo tradicional ou “à antiga” para as relações ditas modernas e individualistas. Por fim, descrevemos o noivado na atualidade a partir de suas características principais, considerando o contexto de uma pesquisa etnográfica realizada junto a um curso de noivos localizado em Belém, PA. Numa perspectiva evolutivo-comparativa este ensaio pretender responder as questões: a) em que diferem ou se assemelham os rituais de socialização conjugal no passado e no presente? b) em que sentido o noivado nos ajuda a perceber as inflexões da estrutura familiar ao longo da história social brasileira? O lugar da tradição nos ritos de preparação para o casamento A maioria dos países de tradição cristã tem no mês de maio uma simbologia especial1. Conhecido tradicionalmente como o “mês das noivas” ele tende a 1 Os trabalhos de Campos (2003) e Nadalin (1994) enfatizam que a escolha deste mês para a celebração do casamento envolve um simbolismo religioso marcado pelo calendário litúrgico. Assim, o mês de abril, por exemplo, é, deste ponto de vista, pouco atraente para a celebração litúrgica do casamento devido estar envolvido pelo período do advento (páscoa), isto é, tempo de reclusão espiritual e carnal, portanto impróprio para os inevitáveis festejos que prosseguem a este tipo de ritual. Da mesma forma Marcílio (1977), no contexto da demografia histórica, aponta para o fato de que o movimento sazonal dos casamentos no período colonial e até bem recentemente encontrava-se em íntima relação com a concepção cristã de que o período entre o Advento e a Quaresma é um “tempo proibido”, ou seja, uma época em que deveriam ser evitados os casamentos e as práticas sexuais. Também Nauffal Filho e Andreazza ao abordarem a obra de Gautier e Henry observam que “em função da interdição religiosa de se casar durante a Quaresma e durante o Advento, existiam muito poucos casamentos em março e abril e quase nenhum em dezembro. Os casamentos eram celebrados em fevereiro e em novembro; entre estes dois picos maiores, situa-se o pico agudo de julho precedendo a crise dos meses de grande trabalho” (NAUFFAL FILHO, 1994). influenciar os pretendentes a casais a mobilizar esforços e recursos para a realização da união matrimonial em algum de seus dias, preferencialmente em celebrações religiosas e aos finais de semana. Sabendo disso, um número cada vez mais expressivo de empresas voltadas para o “mercado do casamento” tem se reunido na última década para promover grandes eventos de exposição 2 de suas marcas e dos produtos e serviços que oferecem. Esse mercado tem alcançado cifras bilionárias (cerca de vinte, para ser mais exato), mas ao mesmo tempo tem produzido um fenômeno curioso. Em pesquisa anterior (ALENCAR, 2008), ficou demonstrado que o número de casamentos realizados no mês de maio em Belém representou 16,6% do total de casamentos religiosos entre os anos de 1995 e 2006. No mesmo período, o número de casamentos realizados no mês de dezembro representou mais de ¼ da amostra, levando-nos a concluir que apesar de maio ser tradicionalmente o mês das noivas, a tendência é que a maioria das pessoas recorram a este último período para celebrar sua união. A explicação mais contundente para este fenômeno está no fato de que a sobrevalorização dos ritos que cercam o casamento tem inflacionado seus custos, principalmente em razão do imaginário criado pela indústria cultural do casamento. Como consequência, os casais fazem uso de uma receita extra que tende a ser obtida entre os meses de novembro e dezembro e que no Brasil é conhecido como décimo terceiro salário. Noutro sentido, podemos inferir que por dezembro anteceder as férias de verão no hemisfério sul, a expectativa é que a lua-de-mel seja consumada nas zonas costeiras do nordeste e sudeste brasileiro ou em capitais (“românticas”) como Montevideo, Buenos Aires e Santiago; ou no hemisfério norte, onde ocorre a temporada de inverno em países europeus e nos Estados Unidos3. A ocorrência dessa contradição levanta a hipótese de que o lugar da tradição no contexto social não se confunde com sua recorrência estatística. Por que é simbólico, este lugar ocupa o campo do imaginário. Neste sentido, se a tendência é que o casamento seja acionado para atender expectativas simbólicas, estamos lidando com um fenômeno que encontra sua contrapartida no cenário social. Logo, tal como se opõe o mês de maio a dezembro, podemos também opor tradição à modernidade, a ideia de “sonho” ao debate sobre a crise de valores familiares e, por fim, a sociedade ao indivíduo. 2 Em recente passagem por Recife tomei conhecimento de uma feira que segundo os organizadores era considerada a maior desse ramo no Norte e Nordeste do Brasil. Dias antes tinha acontecido em São Paulo a maior feira da América Latina. Estas feiras são normalmente organizadas em shoppings ou centros de exposição, recrutam milhares de funcionários, possuem uma programação variada, apresentam inovações no setor de bolos, decorações, roteiros de lua-de-mel e apresentações de palestrantes considerados verdadeiros gurus na área. Tudo para deixar os noivos mais seguros e tranquilos (!) na hora de experimentar o que o slogan desses eventos considera ser “o momento mais especial da vida de um casal”. 3 Apesar de retratar um estimo de vida preferencialmente associado aos gostos da classe média e alta, ele também pode ser encontrado no imaginário de casais das classes populares, que mesmo encontrando dificuldades financeiras para realizar esse “sonho”, desenvolvem estratégias, como retardar a união ou obter empréstimos a fim de poder guardar tal experiência em seu álbum de casamento. Pretendendo responder a questão em que diferem ou se assemelham os rituais de preparação para o casamento no passado e no presente? devemos situar este debate na historiografia, apoiando-nos mais precisamente nos costume de época que são um primeiro passo para reconstruirmos os caminhos que a cultura encontrou para chegar até nós. Sugerimos que a obra As regras do namoro à antiga, do antropólogo baiano Thales de Azevedo, oferece a nossa empreitada o esclarecimento mais satisfatório, pois ainda que se volte para o conteúdo semântico do que afirma uma expressão dos “ritos de afeto”4, sua familiaridade com a linguagem historiográfica permite ao leitor identificar os contextos em que certas maneiras de ser e agir surgem e se amalgamam a estrutura social de uma sociedade. É neste horizonte que os modos de ser e viver “à antiga”, isto é, os padrões tradicionais de vida burguesa teriam chegado ao Brasil com a mudança da Corte portuguesa e da maior comunicação com os países estrangeiros, devido à abertura dos portos e à ida dos filhos das camadas abastadas para as universidades europeias5. Esses eventos teriam colocado a sociedade brasileira, até então dominada pela ideologia patriarcal e religiosa, em contato com os valores modernos6. A tensão que se cria diante disso passa a ser então, como operar o conceito de tradição num cenário cuja instalação provoca seu contrário: a ruptura com modelos considerados tradicionais. É preciso entender que tanto o conceito de 4 Influenciado pelas ideias de Herskovits, a ideia que Thales de Azevedo faz do rito é aquela que serve para manter vivo o sentimento de pertença a um grupo, conservar a adesão aos seus modos coletivos, para unir mais estritamente seus membros e para afirmar e reforçar sua significação e sua estrutura. Entretanto, consideramos equivocada esta definição. Para satisfazer melhor sua perspectiva teórica, melhor teria sido usar o termo ritual que vem a diferir de ritos como ações roteirizadas, isto é, com padrões fixos e temporalmente limitadas, por descrever processos sintagmáticos de transição entre status. Na perspectiva durkheimiana isso significa que o noivado deve ser compreendidos como regras de ação determinada que prescrevem como os homens devem se comportar diante das coisas sagradas (DURKHEIM, 1996). Por coisas sagradas devemos compreender aquelas que as proibições (tabus) protegem e isolam das coisas profanas. Caracterizado pela mudança no status de solteiro/a para casado/a, o noivado tende a ser composto por uma série de ritos não necessariamente fixos, mas estruturalmente encadeados, que por meio de um processo de socialização promove a construção da representação do casamento e da família como entidades simbólicas, isto é, sagradas. 5 É imperioso observar que a discussão sobre o conceito de tradição é neste contexto manipulado em detrimento do conceito genérico de arcaico ou anterior, em vista da sua oposição a ideia de civilidade. O contexto cultural que antecede a chegada da corte portuguesa é definitivamente excluído do processo que sedimenta o projeto civilizatório (ainda que o tenha favorecido). 6 Na perspectiva dumontiana o individualismo é consagrado pela modernidade sendo o portador moral da autonomia e da independência ambos entendidos como valores supremos, onde a expressão da subjetividade no trato das coisas intramundanas oferece a cada indivíduo em particular a reponsabilidades por suas próprias escolhas. Fala-se de uma agência que se opõe ao holismo das sociedades arcaicas ou tradicionais (sociocentrismo) onde os desejos, as vontades e as escolhas dos indivíduos são limitados ou cerceados em nome da ordem social. tradição como o de modernidade nunca foram operadores fiéis da dinâmica social. Em reconhecimento a isso temos o fato de que o indivíduo como categoria analítica fundamental ao estudo da modernidade surgiu no e do interior da “tradição” cristã, conforme demonstra Dumont (1993). Por seu turno, Burguiére (1998) nos permite notar que a pretensa ideia de família nuclear como símbolo da modernidade é tão antiga quanto se lhe-opõe o modelo crow-omaha entre os nativos sul-americanos. Sinalizamos o fato de que o continente americano experimentou em seu processo de independência colonial o que Hobsbawn (2012) diz ser a invenção de tradições em que costumes passam a ser cultuados tendo como firme propósito rejeitar um modelo arcaico. A socialização passou a ser dominada pelo ethos burguês cuja visão de mundo estava orientada para uma ideologia de exploração, acréscimo e reprodução do capital. Conservado na mão dos homens esse capital, que é econômico, mas também político e cultural fixou-se como referência na construção da subjetividade que estavam sob seu controle. As relações sociais estavam portanto, condicionadas pelo pátrio poder, mas sujeitas, como adiantamos anteriormente, as vicissitudes da tensão provocada pela circulação de ideias individualistas. Como consequência ao longo do século XIX, paulatinamente, os casamentos arranjados segundo os ditames patriarcais, em que predominava o interesse à solidariedade dos grandes grupos de parentesco, vão cedendo espaço para as exigências do amor romântico e dos casamentos por amor, “ainda que este continuasse a depender bastante das obrigações morais e até jurídicas do privatismo familiar e das tradições patriarcais” 7. N’As regras do namoro à antiga observamos que ao longo desse período o noivado é uma fase de ajustes entre famílias e mais tardiamente entre os cônjuges. Prevalece, portanto, o interesse da parentela em detrimento das preferências ou inclinações dos indivíduos. No entanto, é imperioso observar que, em virtude da intensa divisão entre os sexos, a circularidade sexual masculina era maior em nível e também mais tolerada, lhe favorecendo o fato de que a noiva pretendida poderia lhe cair muito bem se a mesma desempenha-se a função de mãe e “rainha do lar”. Renunciar a virgindade, buscar o gozo sexual com terceiros e competir por postos de trabalho fora do lar ainda que eventualmente fossem despertados pelo imaginário individualista, estavam fora da paisagem mental que situava a mulher em relação ao homem. Neste caso, não concordamos em tratar a questão ipsis litteris como uma submissão sexual do feminino ao masculino – que certamente nos levaria ao anacronismo, mas em campos de poder e atuação socialmente definidos. 7 O processo de mudança tal como caracterizado aí pode ser encontrado na literatura. De Joaquim Manuel de Macedo, passando por José de Alencar até alcançar Machado de Assis se desenvolve uma paisagem mental em que cada vez mais sujeitos devem exercer o domínio sobre seus próprios destinos, serem protagonistas de suas próprias escolhas e, obviamente, assumir as consequências nesse processo. Não se pode esquecer no entanto que essa literatura aponta personagens que vivem a tensão dessa transição levando-as a agirem por meio de estratégias que ao mesmo tempo expressem suas convicções pessoais, afetivas e valorativas mas sempre sobre o julgo das considerações morais que ainda pesam sobre suas escolhas. A reputação e a honra são dois conceitos que nos ajudam a pensar esse assunto, na medida em que nos ajudam a mapear o conjunto de pressões que se exerciam sobre os noivos. A difamação de uma mulher estava relacionada a sua profanação moral, caracterizada pela incapacidade no domínio de si, dos impulsos sexuais e afetivos, que favoreciam o acesso ao seu corpo ou aos seus sentimentos. A difamação do homem, pelo contrário, estava em sua inabilidade em fazer fortuna, mas principalmente no fracasso em exercer com competência a função de sujeito dominante. Distribuindo funções, a dialética dos gêneros encontra no noivado uma expressão fundamental. Quando o pedido da mão da noiva passa a ser exercido com autonomia pelo homem, em contrapartida se desenvolve um conjunto de estratégias femininas que vão desde o coqueterismo a série de performances que retardam ou controlam o ritmo do relacionamento. Num e noutro caso, como sujeitos de escolha, homens e mulheres fazem uso de recursos cognitivos socialmente elaborados. É preciso no tocante a esse assunto afirmar que o controle exercido pelo pater famílias condicionava-lhe um exercício reflexivo sobre o futuro do patrimônio levando-o a criar arranjos, ou “mão de cartas” como diria Bourdieu (1972), que continuamente eram utilizados para obter vantagens. Não se trata de satisfazer apenas e exclusivamente interesses econômicos, mas também preservar ou criar alianças com componentes sentimentais culturalmente delimitados. O sentimento de pertencimento e de distinção de classe, de cor, de raça e de origem produzindo em seu interior terminam por se amalgamarem aos ventos individualistas ajudando a preparar a estrutura da homogamia que posteriormente se observa quando os pretendentes tomam para si a responsabilidade pela escolha de seu cônjuge. Os homens pedem a mão, mas sabem o que vão encontrar depois do pulso! Da tensão existente entre uma subjetividade que admite realizar suas escolhas, apenas porque sua ossatura é constituída de padrões culturalmente determinados, obtemos que a preparação para o casamento é um ritual composto de ritos de interação8. Assim, quando, em época tardia, o namoro passou a ser acionado como mecanismo de interação, o primeiro passo em direção ao encontro com o outro era a troca de olhares, de gestos e de códigos expressivos, de forma cautelosa e discreta, evitando-se qualquer forma de contato íntimo ou de encontros inconvenientes. Thales de Azevedo chama esse primeiro rito de flirt uma etapa anterior ao namoro propriamente dito, definido como “inofensivo” ou sem consequências. Trata-se de uma fase exploratória, em que, via de regra, “os olhares provocativos partiam dos moços e são preâmbulo de palavras amáveis, de ditos chistosos, de pés-de-conversa, com os quais se firma o relacionamento”. Esses contatos iniciais poderiam acontecer nos passeios de lazer e consumo, na ida à igreja ou da janela da casa da moça, onde ficava a menina “penteada e faceira” esperando o bonde passar com o seu pretendente. 8 Não opomos aqui casamentos arranjados a casamentos por escolha, pois cada um deles guarda em si conjuntos articulados de eventos (experiências ou negociações) que tem como finalidade fundar uma aliança Para que algo mais “sério” pudesse acontecer, o interessado, não sem antes fazer uma séria avaliação sobre sua posição social, solicitava a autorização do pai da pretendida. A rejeição era o menor dos males, posto que o mancebo sempre tinha oculta outras pretendentes. Pior era o desdém por sua condição social ou pelo sobrenome que carregava. Se opor a um relacionamento ensejava uma operação estratigráfica que situava o indivíduo na escala social. Mas não se pode esquecer que além da autorização o pretendente podia ver sua proposta recusada, que acumula além daquele significado a rejeição ao sentimento que se manifestava. Neste caso, se acaso pertencessem a mesma classe social a recusa era tratada como ofensa, podendo ser reparada a honra do/s ofendido/s “com sangue”. Caso o pedido fosse aceito a relação tinha duração certa e limitada, ocorrendo no domínio da casa e sob a vigilância dos parentes. Nestes casos era comum o primeiro namorado ser também o futuro e único esposo. Nem poderiam durar muito pois poderiam trazer "intimidades inconvenientes", nem correr muito célere para o noivado, que já era um "compromisso indissolúvel". O namoro nesse contexto tinha a duração prevista de 1 a 3 anos. Entretanto, poderiam ser precipitados pelos pais quando estes tinham em vista alguma vantagem política ou econômica, ou pelos próprios noivos quando eles buscavam se libertar da opressão familiar. Corrido o tempo necessário para a familiarização dos noivos o pedido de noivado se concretizava. Entretanto, se quando autorizado o namoro ensejava dúvidas sobre as intenções das parte, o noivado pelo contrário era tratado como um compromisso, líquido e certo, de união conjugal, o que o levava a desempenhar uma função simbólica muito proeminente, razão pela qual as famílias recorriam a banquetes, festas e bênçãos religiosas para celebrá-lo9. Ocasião para a troca de alianças, o noivado retratava um compromisso solene que implicava a promessa de um vínculo futuro. Podendo ser avaliado através do comprometimento dos familiares dos noivos, a promessa desempenhava aí um papel fundamental na exposição da motivação para o enlace, mas principalmente, assegurava um significado simbólico sobre os sujeitos da trama, diga-se, socialização conjugal. Por isso o rompimento do noivado constituía um verdadeiro atendado contra a honra e a reputação. Os critérios para a avaliação do caráter e dos termos do compromisso tinham como principal referencial o anel e o contexto em que ele era entregue a noiva. Através dele o noivo e seus familiares ao mesmo tempo demonstravam o reconhecimento do outro – noiva e parentela –, a honra de quem empenhava a palavra e a capacidade econômica do pretendente em garantir o sustento da futura esposa. Em decorrência disso, o pedido de casamento invariavelmente ocorria quando o homem, sob a supervisão dos pais, reconhecia que ele possuía as 9 Até o Concílio Vaticano II era muito comum as igrejas celebrarem a bênção dos noivos, tão significativo era este eventos no seio da comunidade católica. Com a flexibilidade nos relacionamentos trazida pela revolução sexual das décadas de 60 e 70 e o consequente aumento no número de rompimento desses vínculos, a igreja impôs alguns critérios para oferecer tal bênção, como exigir data certa para a realização do matrimônio, o que frustrou um significativa parcela dos casais que ainda não estavam preparados para levar tão a sério sua relação. condições financeiras para assegurar uma vida conjugal segura e uma base financeira estável, o que lhe exigia renda compatível, emprego fixo e moradia certa10. O pedido gerava uma expectativa objetiva de união conjugal, pois, durando não mais que 1 ano, tinha como certo o apoio familiar, já que era autorizado pelo pai, e a previsão de datas e condições para ser oficializado. Predominava o imaginário da fusão afetiva, tendo como representação o prestígio simbólico do casamento religioso que por sua indissolubilidade exigia apurada e reflexiva conscientização sobre o significado da escolha conjugal. Nesse processo homens e mulheres eram transformados em maridos e esposas por meio de uma rígida disciplina (mais exigida entre as mulheres do que entre os homens) que afetava diretamente seus comportamentos, como a introspecção sexual, destinada a manter o zelo da intimidade de si e do casal (podendo ser confundida também como o tabu em falar sobre sexualidade); a submissão, como forma de exercitar a obediência ao parceiro; o isolamento de gênero, caracterizado pela evitação ao vínculo com pessoas do sexo oposto não pertencentes ao círculo de parentes; e, principalmente, a renúncia-de-si, no qual se deveria desenvolver a habilidade em controlar os próprios sentimentos ou impulsos, a fim de garantir a harmonia entre o casal. Todas essas disciplinas eram socialmente difusas e atravessavam a trajetória biográfica do indivíduo. Nesse processo a doutrina religiosa e os conflitos surgidos com o advento da ciência e a popularização da literatura desempenharam um papel fundamental. Tanto uma como outra pretendiam defender ou criar espaços de controle moral disciplinando as rotinas individuais e coletivas. Como nenhuma desfrutava de unanimidade quando se tratava de orientar as práticas mais intimistas, tal era a expansão de movimentos em favor de uma cultura de si, o efeito mais notório foi uma combinação interessante entre ambas que acabou por redundar nos manuais de aconselhamento. Predominantemente escritos por homens religiosos e dirigidos ao público feminino esses manuais, depois conhecidos como manuais de savoir vivre ou manuais de etiqueta, se popularizaram entre os fins do século XIX e início do XX. Sua proposta era estimular as mulheres a zelar pelos bons costumes e evitar a queda da sociedade em pecado mapeando nos seus pretendentes os traços de caráter que comprometiam um casamento duradouro e exitoso11. Porém, se por um 10 Um informante assaz qualificado sobre o tema, casado a mais de 70 anos, informou-me que ao se interessar por sua noiva e atual esposa, foi comunicar ao pai seu interesse em casar. O pai aprovou a ideia mas perguntou se ele já tinha “dezoito mil conto de réis e um pote”. Curioso ele perguntou “Não. E porque preciso disso?” Ao que o pai respondeu: “Os dezoito contas é para dar uma vida digna a sua esposa e seus filhos. E o pote é para que ela nunca tenha sede!”. Meu informante interpreta que aquele era uma resposta retórica que tentava dissuadi-lo da ideia de casar fazendo reconhecer os riscos que poderia correr se não tivesse condição para arcar com as responsabilidades que estaria em vias de assumir. 11 Também tratados como guias de casamento, a exemplo da Folhinha Eclesiástica e Civil, do arcebispado da Bahia, e o Compêndio de Civilidade Cristã, de Dom Macedo Costa, arcebispo de Belém, esses manuais refletiam um projeto já muito estimulado, principalmente nos séculos XVI e XVII (lembrando o manual Da Civilidade em Crianças, 1530, de Erasmo de Rotterdam), onde eram recomendadas várias atitudes e comportamentos a fim de que os casamentos dessem certo e fossem “bons”, estimulando preferencialmente as uniões intraclasses e afastando os interclasses com penalidades (LEVY, 2009, p. 118). Castaneda lado seguiam uma rígida disciplina moral, representavam um primeiro movimento no sentido de reconhecer o papel do indivíduos como protagonistas sociais, instruindolhes a agir em conformidade com uma razão esclarecida e uma linguagem moderna. Essa curiosa combinação oculta a sua maneira uma transição para o amor romântico que amortece a conturbada passagem da intimidade do domínio privado para o domínio público. Em parte substituindo o controle parental e religioso, em parte convivendo com eles, esses manuais retratavam o diálogo que passou a ocorrer com a psicologia e a psicanálise, cuja base científica reorientou o modo como a subjetividade e a própria sexualidade eram socialmente construídas. Noções como vontade, desejo, prazer, passaram a despertar o interesse para uma satisfação que não pretendia se limitar apenas a escolha da pessoa com quem se ia conviver pelo resto da vida, mas o tipo de vida (sexual e afetiva, diga-se de passagem) que se queria ter com esta pessoa. Em sua fase mais avançada, já no início do século XX, essa literatura passou a assumir o caráter de “conselho”, realizando uma transferência gradual, mas difusa do conceito para sua interpretação, da norma para a experiência e, no limite, da regra as estratégias. Logo, se não perdermos de vista que a litura é um retrato mais ou menos fiel dos pensamentos que circulam numa época, e apoiando-nos na valorosa contribuição de Viveiros de Castro e Araújo (1977) - aos quais Thales de Azevedo não faz referência em seu texto –, o noivado, tal como o namoro, pressupõe que o componente amoroso é uma relação socialmente construída, que pode nos servir de mote a compreensão de estruturas mais amplas, como a religião, o Estado e a própria economia. Por isso sua preocupação não é com as experiências dos que orientam suas práticas por representações amorosas, mas com as fases e sequências, cada uma, por sua vez, com suas normas e regras, que terminam por acompanhar as mudanças observadas nas relações estruturais. Neste cenário, o principal motor para as mudanças que Thales de Azevedo observa a respeito dos relacionamentos "à moda antiga" foi a urbanização. Como efeito da modernização ele argumenta que a prática do footing, do passeio das moças da alta sociedade pelas novas ruas, pela frequência as “matinées”, ao teatro, às modistas, ao dentista uma nova sociabilidade se desenvolveu. Segue assim, o modelo consagrado por Simmel, que se notabilizou em seus inúmeros ensaios, por afirmar que a principal consequência da modernidade foi alterar o ritmo das relações e desenvolver um novo espírito relacional. Testemunha ocular das grandes migrações para a capital onde ele morava, Salvador, Thales de Azevedo percebeu que as mudanças na composição urbana e as reformas que o Estado brasileiro protagonizou visando dar uma face progressista às cidades, como as protagonizadas no governo de J. J. Seabra na Bahia, Antônio Lemos em Belém e (2003), por sua vez demonstra que a base dos estudos sobre seleção feitos por Darwin influenciaram na elaboração desses guias, que foram muito comuns na Europa e nos Estados Unidos no início do século XX. Ainda segundo Castañeda, em Kehl (1933a) a adaptação dos estudos sobre seleção sexual tinha como princípio um melhoramento da espécie mediante o processo da boa frutificação ou, melhor ainda, “era a ciência da herança e técnica da paternidade, porque preconiza as boas uniões matrimoniais e desaconselha ou proíbe as mas” (KEHL, 1933a, p. 55 apud CASTAÑEDA, 2003). Pereira Passos no Rio de Janeiro, condicionaram os indivíduos a uma maior exposição pública, a elaboração de performances mais “civilizados”, fundando toda uma nova ordem de valores que afetou decisivamente as relações entre os gêneros. Bulevares e shopping centers ampliaram os trajetos feitos por homens e mulheres, permitindo-lhes a interação fora do ambiente doméstico, a criação de laços intergrupais e viabilizando a circularidade imagética (fonte para desenvolvimento do desejo).12 Ver e ser vista, para as mulheres - e também para os homens -, foi portanto uma conquista política que face a expansão sistema produtivo teve um efeito cultural significativo por favoreceu a construção de uma sociabilidade caracterizada pelo reconhecimento dos indivíduos como sujeitos públicos que deveriam ser conquistados face a concorrência que passou a se desenvolver, tal o poder que isto exerceu no imaginário de uma sociedade onde o amor não era despertado pela troca de olhares ou pelo desejo do outro, mas pelo benefício de negociações que se davam muitas das vezes à sombra dos interessados. Chegamos provisoriamente à conclusão de que o cenário constituído pelas relações afetivas em suas Regras é caracterizado por normas, regras, táticas e costumes, cuja estrutura e funcionamento é determinado por padrões culturais. Influenciados pela aculturação sofrida pela colonização europeia esses padrões inicialmente reconheciam na figura do pater famílias o controle sobre o sistema de alianças e a estrutura de parentesco. A presença da corte portuguesa associada a ao liberalismo econômico, favoreceu o desenvolvimento da atitude individualista que terminou por retirar da parentela e passar para os próprios indivíduos o poder sobre a escolha do cônjuge. Essa transição, porém não gerou uma ruptura favorecendo a ocorrência da homogamia e a preservação de valores tradicionais na composição dos casais. O impacto mais decisivo, porém, foi exercido pela urbanização que ampliou a circularidade feminina e rompeu com a divisão entre os gêneros. O noivado na atualidade13 12 Nas escolas que antes separavam as turmas por sexo quando não destinadas a um só destes públicos, este movimento, apesar de toda resistência das famílias conservadoras e parte do clero, promoveu ao mesmo tempo a inclusão das mulheres como fez recuar a ideia muito difundida de que elas deveriam ser preparadas exclusivamente para serem prendadas e com isso honradas para serem boas esposas. Em outras palavras, serem escolhidas. O aumento gradual dos efetivos femininos na rede escolar pública ocorreu durante o século XIX, quando estatisticamente havia uma menina para cada três alunos nas escolas públicas ao final do referido século. A criação das escolas “mistas” regidas por professoras no final do Império, fez aumentar significativamente a contratação de mulheres. Houve a regulamentação da carreira do magistério durante os governos provinciais e o estabelecimento de escolas normais para a formação de professores (as) nas últimas décadas do período imperial, que passaram a ser frequentadas quase que exclusivamente por moças. Houve também a implementação dos grupos escolares, na primeira década do século XX, onde o corpo docente, neste momento, já era predominantemente feminino. (STAMATTO, 2002) 13 A consolidação dos dados que me permitiram discorrer sobre este tema se deu em três momentos. O primeiro deles entre 2009 e 2010 quando, durante minha pesquisa sobre a relação entre o perfil dos cônjuges e a representação sobre o parceiro ideal, entrei em César caminhava pelo corredor em direção aos fundos do auditório na intenção de atrair para junto do palco os casais que sentavam nas últimas fileiras. Pegando na mão do noivo e retirando-o do local onde está sentado ele costuma perguntar à sua parceira se ela o ama, pois se assim o for irá para onde seu noivo for levado. Naquela tarde de Sábado, porém, algo saiu errado. Durante a apresentação dos casais que iriam participar do 303° Encontro de Preparação para a Vida Matrimonial da Paróquia da Santíssima Trindade ao se aproximar do jovem casal sentado na penúltima fileira, foi ignorado pelos mesmos e teve sua mão grosseiramente repelida pelo noivo que afirmava num tom desafiador estar satisfeito com o local escolhido para sentar. Abalado com a atitude do jovem, César retirou-se cabisbaixo indo em direção ao púlpito de onde coordenava a dinâmica do evento. Retirado de meu caderno de campo, essa descrição teve por objetivo mostrar a tensão existente entre noivos e a igreja católica por ocasião do “curso de noivos”, um evento organizado por pastorais familiares e exigido pelas paróquias para que os noivos se habilitem a celebração do casamento religioso. No mesmo sentido pretende-se através dela responder a questão em que sentido o noivado nos ajuda a perceber as inflexões da estrutura familiar ao longo da história brasileira? Cursos de preparação para a vida matrimonial, ou simplesmente cursos de noivos, reforçam a ideia de que a sociedade cria espaços de preservação da tradição a fim de resistir às pressões exercidas pela mudança social. Organizados na forma de palestras e dinâmicas de grupo estes cursos tem um triplo caráter: são uma estratégia da igreja católica em evangelizar os noivos, com a finalidade de fazer com que os mesmos reflitam sobre o casamento de um ponto de vista espiritual e, se possível, venham a fazer parte das pastorais existentes na paróquia; é também uma oportunidade, conforme descreve Souza (2002), de a igreja passar seus ensinamentos buscando atingir a intimidade e o lar dos casais; por fim, o curso pode ser interpretado como um rito expiatório, onde os noivos compensam suas faltas para com os rituais católicos, sobretudo por seu distanciamento de práticas religiosas, isto porque, conforme se sabe – e esta é a visão dos coordenadores do curso –, muito dos noivos que participam do curso só pisarão na igreja no dia do casamento. Por ser um evento obrigatório e possuir um conteúdo ideológico, não são raras as ocasiões em que os noivos resistem, rejeitam ou ignoram o que é dito e feito durante o curso. O caso descrito acima pode servir de exemplo para demonstrar que é no plano da ação propriamente dita que se manifesta a tensão entre a tradição e modernidade. Foi talvez o mais significativo obtido em campo, mas contato com o Curso de Noivos da Paróquia de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém. Na oportunidade fui levado pela curiosidade em saber como se organizavam estes cursos e se de alguma maneira eles estariam repercutindo os valores e as representações que os noivos tinham sobre o tipo ideal de parceiro. O segundo momento ocorreu entre 2013 e 2014 e foi caracterizado, primeiro por uma imersão no ritual como noivo, uma vez que encontrava-me em preparação para o meu próprio casamento, e depois como pesquisador. Na ocasião, participei ao lado de 23 casais do 283° Curso de Preparação para a Vida Matrimonial da Paróquia da Santíssima Trindade, também localizada em Belém. é seguido de outros que podem variar entre o movimento lateral da cabeça em forma de oposição ao que se escuta em uma palestra, o deboche dissimulado praticado na forma de cochicho com o parceiro, o questionamento acusatório observado principalmente quando se discute assuntos tabus, como indissolubilidade do casamento e sexualidade humana até a distração total encenada pelo uso indiscriminado de smartphones ou no cochilo. Frequentado por pares heterossexuais o curso de noivos da paróquia da Santíssima Trindade é um dos mais conhecidos em Belém. Criado em abril de 1984 tem regularidade mensal e já certificou ao longo de sua história mais de 5300 casais. Em geral os casais que desembolsam R$ 50,00 para pagar a matrícula no curso pretendem celebrar a cerimônia de casamento em pouco menos de seis meses. A maioria dos noivos que o frequenta o curso de noivos nasceu e mora em Belém ou cidades do interior do estado do Pará. Um número menor, mas significativo, de noivos tem origem em outros estados, principalmente das regiões nordeste e sudeste. A faixa etária dos mesmos varia entre 25 e 29 anos, período no qual eles encontram-se empregados ou em fase de conclusão dos estudos. Os homens são de 1 a 2 anos mais velhos que as mulheres. Vale notar que essa diferença de idade tem diminuindo ao longo do tempo. O tempo de noivado dura cerca de 1 ano. Fora o noivado condicional, geralmente ocasionado por uma gravidez não planejada ou pelo deslocamento em função de estudo ou emprego de um dos noivos, o casal estabelece o momento ideal para noivar cerca de quatro anos após o início do namoro. É após esse período que eles se sentem “preparados” para assumir um compromisso mais sério. A noção de seriedade numa relação envolve geralmente a maturidade do casal, a idade, a aceitação seguida da cobrança por parte dos familiares, e, sobretudo, as "realizações" ou "conquistas" pessoais que, segundo afirmam os noivos, tem a ver com o nível de instrução e a estabilidade financeira. Como consequência, prevalece entre os noivos o perfil de profissionais assalariados com nível superior, que exercem funções liberais como médicos, advogados e engenheiros, servidores públicos e ou estão em fase de conclusão dos estudos. A renda dos casais varia em torno de 2 a 10 salários mínimos. Como o casamento ocorre cerca de um ano após o noivado, ao longo desse período espera-se que o casal reúna as condições para arcar com as despesas da cerimônia e da "vida de casado". Entretanto, quando um dos parceiros observa que o outro já reúne essas condições o pedido de casamento torna-se um tema recorrente nas conversas do casal e deles com seus respectivos amigos e familiares. O pedido de casamento surge então como uma premissa do interesse pela manutenção do vínculo (geralmente questionado pela noiva). Este fato leva em conta a noção de que há um “tempo de vida útil” do namoro, algo como “validade” do relacionamento e que, portanto, exige do mesmo uma superação de fase, referendando a noção de passagem presente neste momento da trajetória social dos noivos. Caso um noivo demore em pedir a parceira em casamento considera-se que ele está empatando-a. O empatar é, neste sentido, uma categoria que explica o fato do relacionamento amoroso ser um rito regulado, cuja eficácia é codificada por temporalidades. Há um tempo para tudo. A preocupação com a demora no pedido de casamento é muito comum entre noivos que se consideram "velhos demais para casar" ou que observam os parceiros "entretidos" demais com interesses pessoais: como carreira profissional, estudos, lazeres, etc. Na atualidade, podemos identificar três etapas no processo de socialização para a conjugalidade, o que inclui nelas fases ou tipos de relações intermediárias 14: 1. Flerte ou “ficar”15, onde ocorrem os primeiros contatos e um período de avaliação ou reconhecimento do parceiro; 2. Namoro, em que pode ou não haver o pedido de namoro seguido de um longo processo de convívio e aproximação socioafetiva; e 3. Noivado, compromisso de caráter público que visa a união conjugal formal. O namoro é a mais longa das três fases e é nele que se define o tipo de cônjuge ideal (ou cônjuge preferencial), portanto é a partir dele que se origina o noivado. Segundo Azevedo (1986) o namoro pode ser considerado como a manifestação inicial da tendência biológica à formação de pares por atração sexual, que se desenvolve no homem a partir das mudanças orgânicas da adolescência e da puberdade. A tomada de consciência acerca das diferenças físicas e de personalidade entre as pessoas de um e outro sexo ocasionariam, por essa razão, as primeiras tentativas de sedução e de estimulação afetiva recíproca. Por essa razão, o namoro normalmente tem início quando as sensações psíquicas causadas pela atração física e afetiva se ajustam a ideologia afetivo-sexual presente no contexto social dos sujeitos envolvidos. Termos como "legal", "interessante", "bonito/a", "gostoso/a" são muito comuns nas narrativas de quem vive essa experiência, que está geralmente vinculada a sensações afetivo-sexuais. Nesse momento não é comum os casais se comprometem com o casamento, mas com o passar do tempo e a consolidação do vínculo bem como a reunião das condições materiais e das qualidades morais e psicológicas que culturalmente são caracterizadas como ideal para um cônjuge, a promessa de casamento é acionada como recurso a manutenção do vínculo. Evadir-se dela causa insegurança e significa para os noivos uma demonstração de que pouco se pode esperar daquele relacionamento. A intenção tem aí um impacto definitivo, pois, nestes casos, orienta, mutuamente, a ação do outro. Nestes casos, se não for manifestada a intenção de casar, ou se esta ocorrer fora do tempo hábil, o relacionamento, mesmo que longo, tende a ser rompido. 14 De um modo geral podemos destacar como fases intermediárias o compromisso, um tipo de vínculo que antecede o noivado e serve de garantia de que apesar de estar sendo retardado o noivado é eminente, e uma outra forma ainda indefinida, que segundo alguns casais é marcada pela relação de “namorido”, em que duas situação se manifestam: ou o casal possui um namoro ou noivado de longa data e são notoriamente reconhecidos como um casal em união estável ou quando este decidem morar juntos, sem que necessariamente com isso firmem um compromisso de vínculo formal futuro. 15 Ficar é, segundo Heilborn (2006), uma forma de não-compromisso codificado e agregado à classificação das formas de engajamento das pessoas no aprendizado da sexualidade, que surge no final dos anos de 1980. Já para Lago (2002) seria a menor forma possível de relacionamento amoroso entre duas pessoas. De um modo geral os noivos "ficam" no mesmo mês em que conhecem seus parceiros. Os noivos normalmente afirmam que mantiveram vários relacionamentos amorosos, mas que geralmente namoraram “sério16” com 2 ou 3 pessoas antes de conhecerem seus parceiros. O namoro é tratado como um "relacionamento sério" e que diverge do ficar por caracterizar-se como um vínculo social mais forte e de natureza pública e duradoura. A maioria deles também afirma que já conhecia seus parceiros antes de iniciarem o relacionamento. A escola e a universidade são os locais que mais favorecem a ocorrência desse contato. Uma pequena parte afirma que se conheceu em festas e outra entre familiares ou pela internet. Todos esses ambientes tem em comum o fato de proporcionarem a interação social. Não houve registro de casais que se conheceram sob intermédio de parentes ou que foram forçados a namorar ou noivar por orientação familiar. Há, no entanto, casos em que a aceitação do namorado pelos familiares foi tratada como condição para a manutenção do vínculo. A aprovação dos familiares, associada com fatores como idade e diferença de idade entre os parceiros, pertencimento étnico, filiação e classe social, projetos de vida e as representações coletivas sobre tipos ideias de cônjuges influenciam, ao longo do relacionamento, se aquele interesse inicial é suficientemente satisfatório para o vínculo ser mantido. Aqueles casais que promovem um ajustamento recíproco de seus projetos de vida, superam eventuais diferenças e, principalmente, saem vencedores na competição pelo parceiro, tornam-se, portanto, aptos para casar. Dá-se lugar, a partir de então, a valorização de qualidades morais e psicológicas em detrimento das qualidades sensoriais. "Personalidade", "responsabilidade", "sinceridade", "objetividade na vida", "caráter", "integridade", "tranquilidade", "carinho", "iniciativa" são termos que, por exemplo, ocupam as narrativas sobre a motivação para escolher o parceiro como cônjuge. Além dos critérios psicológicos e morais os noivos manifestam que entre as motivações que os levam a pedir em ou a aceitar o noivado se caracterizam por viabilizar projetos de vida. Termos como “futuro”, “construção”, “vontade, “objetivos”, parecem constituir expectativas de uma vida ideal. Esse fenômeno é marcado pelo fato dos casais entenderem o casamento como uma construção recíproca, baseada no afeto e no reconhecimento do parceiro como parceiro de uma projeto a dois. O fenômeno da igualdade de oportunidades e de acesso as experiências afetivosexuais entre os gêneros é uma condição inerente a manutenção dessa visão. Isso representa uma ruptura em relação aos padrões patriarcais, que mesmo ainda se manifestando, tem sido superado, geração após geração, através do empoderamento feminino. Afirmar que um namoro é ou foi “sério” significa assumir que este relacionamento teve um significado afetivo especial, seja porque durou muito ou porque houve uma expectativa de que ele viesse a se concluir com um casamento. Se distingue da paquera e do namorico, que são relações mais passageiras e que não despertam expectativas por relacionamentos mais longos e duradouros. 16 Tabela 1: Quadro contendo trechos das respostas à pergunta “qual a motivação para o pedido ou o aceite do noivado” realizada por ocasião da apresentação dos noivos no curso NOME (INICIAIS) B.H. C.N.F. F.K.R.B. RESPOSTA Pensar no futuro da mesma forma Viver a vida toda ao lado A certeza que será ele com quem vou viver pro resto da vida, e que foi deus quem nos uniu. A.F.O. A compreensão de ambos B.R. Pensar no futuro juntos R.H Querer futuramente construir família F.D.A. Quero ter uma vida com ele, dividir minhas alegrias e tristezas. Ele me diverte, me irrita muitas vezes... com ele não tem rotina. Nós somos parecidos em muitas coisas e temos os mesmos objetivos. Nossas famílias são ótimas e todos se relacionam bem. Enfim, eu o amo muito. W.C.F. Avançar na nossa relação L.C.S.F. Minha vontade de ter algo mais sério M.D.C.P. Passar por uma transição de conhecimento para casar (construção de família) L.C.C. Segurança emocional e financeira T.B.L. Harmonia na relação, parceria e vontade de construir futuro juntos M.P. Amor, construir a vida juntos. G.C.S.M. Bem, na verdade decidimos casar logo após o namoro, mas devido ele ser estrangeiro, tivemos problemas para obter e traduzir a documentação necessária (era muito cara na época) por isso fomos morar juntos dois meses após o início do namoro e neste momento nos declaramos noivos. T.G.S.F Pelo tempo de namoro, por conhecê-lo um pouco mais e saber o quanto es bom pra mim. B.V.G A necessidade de tornar o compromisso mais sério devido ao seu tempo A.F.A.C. Não queria mais ter um namoro longo, e vi nele a pessoa certa para crescer, ter estabilidade e companheirismo até o fim da vida C.C.M.L. O forte amor que sentimos um pelo outro que nunca diminuiu só aumentou e então decidimos mudar de fase para o noivado que foi a melhor coisa que já aconteceu em nossas Vidas. A.S.M.S O principal fator foi o amor que sinto por ela, mas não posso descartar que ela preenche a maioria dos requisitos que penso como boa mulher C.G. Amor e compartilhamento de objetivos H.G.D.X. A vontade de iniciar uma vida de fato nossa, compartilhar mais a vida. F.M.V. O fato de se mostrar um excelente companheiro no dia a dia; Fonte: Caderno de Campo É importante que se diga, porém, que apesar de uma significativa mudança nas relações de gênero em relação a um passado recente, predomina a representação da separação de papeis entre os sexos, no qual as funções tradicionais de homens e mulheres são constantemente acionadas para justificar a escolha do parceiro. Em razão disso, é comum encontrar misturado aos discursos sobre carinho, compreensão e reciprocidade, termos que representam a expectativa de que um homem possa ser capaz de desempenhar a função protetiva, que não necessariamente compactua-se com a função de provedor, haja vista que uma parcela significativa dos noivos possui renda semelhante. "Ser forte", "ter ímpeto", "ser objetivo", "usar da racionalidade" continuam exercendo forte influência na escolha de um homem como parceiro, bem como justificam a continuidade do relacionamento. Potencialmente gerador de crises no relacionamento, essa situação exige que os noivos pratiquem performances de gênero, onde homens protagonizam cenas de controle e dominação quando, por exemplo, assumem que mesmo se sentindo forçados a casar compraram as alianças e levaram o projeto até o fim. As noivas reagem com cumplicidade, encenando aceitar uma suposta (mas esperada) dominação masculina. Tomar a frente da situação, demonstrando atitude, convocando ambas as famílias, "encarando" o pai, são índices e evidências simbólicas de que aos homens cabem funções determinadas. O mesmo pode ser dito em relação as mulheres, que assumem, mas não se restringem, a função gerencial dos preparativos para o casamento. Nos meses que antecedem o casamento, essa encenação ganha o clímax com a tensão gerada pelos contratos (reais ou informais) celebrados com boleiras, empresas de decoração, fotógrafos e empresários de bandas. Não são raros os casos de brigas e separações neste momento. Ocorre que, em função da expectativa gerada pelo "casamento perfeito" (cerimônia, diga-se de passagem), noivas, mães e parentes femininos encontram-se tão envolvidas com os preparativos do casamento que muitos noivos consideram que são consultados apenas porque tem a obrigação de aprovar o que já fora decidido. Isto não significa que não haja negociações, mas quando estas ocorrem é consenso notar que elas se aplicam muito mais ao que vem depois da cerimônia, como o local para onde os noivos viajarão na lua-de-mel e o local de moradia17. Quando ocorrem conflitos entre os noivos ou entre a noiva e seus parentes do sexo feminino com os parentes do sexo feminino do noivo, as reuniões de família tornam-se mais frequentes e passam a ser um importante mecanismo de socialização. São ponderados os custos e benefícios de uma separação na iminência do casamento. Observa-se também que esse é um período onde os casais encontra-se em estado alterado de sensações, o que favorece os conflitos e, ocasionalmente, a infidelidade. Por insegurança ou tensão os casais recorrem com maior regularidade a amigos, colegas e com eles podem eventualmente encontrar um "consolo" que os alivie de tamanha responsabilidade. Também é nesse momento que uma sequência de "despedidas" são ativadas para assegurar que a passagem seja completa e o novo homem e a nova mulher que vão nascer da noite de núpcias não esqueceram de viver tudo que a "vida de solteiro" tem para oferecer. Isto significa que, se num passado recente era exclusividade dos homens a realização destas despedidas, cada vez mais as mulheres realizam paralelamente ao tradicional chá de panela, festas, como o chá de lingerie, cujo conteúdo pode envolver brincadeiras sexuais com a presença de profissionais, como prostitutas e 17 Neste caso em particular, muitos noivos que pretendiam realizar uniões civis ou morar juntos se disseram pressionados pelos parentes a mobilizarem convidados e a “pensar” numa coisa maior e memorável, que tende a significar “casamento religioso” e festa de recepção. gogo boys. Estas despedidas são potencialmente danosas quando escapam a intimidade daqueles que as organizam, mas não parece que determinam o fim do relacionamento entre casais que estão prestes a subir ao altar, pois há, como demonstram inúmeros casos, maior tolerância para eventuais "escapadas" do noivo ou da noiva nessas situações. Face a uma variedade de formas de percorrer os caminhos até o altar, os Cursos de Noivos tendem a ser um espaço de controle e reflexão sobre o papel que os noivos vão desempenhar após o casamento. Em vista de provocar uma mudança de atitude frente ao discurso e as práticas individualistas observamos no seu interior um discurso que procura opor tradição a modernidade, numa linguagem que antes de privilegiar o primeiro retrata as consequências de sua profanação em meio a práticas intramundanas. Retrata, assim, as preocupações presentes na obra de Thales de Azevedo, que via no processo de modernização um sério comprometimento ás práticas tradicionais. Opondo-se aos ideais contemporâneos de relação socioafetiva onde a ênfase está mais na autonomia e na satisfação de cada parceiro do que nos laços de dependência entre eles, os cursos de noivos expressam a tensão existente entre a visão de mundo individualista produzido com o processo de modernização e o discurso religioso que segue preservando visões de mundo consideradas normativas. Curioso observar que mesmo regulado por esses valores, o casamento religioso é um item muito valorizado entre os noivos, razão pela qual predomina entre aqueles que pouco vivenciam a religiosidade católica a ideia de que “perder um final de semana” – o curso ocorre sábado à tarde e no domingo de manhã – é um sacrifício que vale a pena. O sacrifício, porém, tem como horizonte a habilitação para a cerimônia, que demanda a apresentação de um certificado emitido ao fim do curso. Estamos falando, portanto, de um rito expiatório que se por um lado visa a socialização visto que os palestrantes insistem em dizer que casar é experiência de renúncia e comprometimento com o outro é interpretado pelo frequentadores como uma burocracia, um obstáculo a realização da solenidade. Porém, seja qual for o sentido do casamento, a decisão sobre o que querem para si é sempre um assunto de domínio privado, cuja normatização pretendida pelo curso é limitada pelo campo de poder que a igreja católica exerce no mundo moderno. Uma vez reconhecido o valor que a solenidade do casamento religioso tem entre os noivos que frequentam o curso devemos questionar sua própria razão de ser, pois o que significa casar na igreja? Em primeiro lugar casar na igreja é uma escolha... entre outras possíveis de formar uma unidade conjugal. Ela compete, por exemplo, com a união consensual e o casamento civil, mais práticos, mais baratos e em alguns casos até menos burocráticos18. Porém, o fato dele reunir inúmeros 18 A ritualização da cerimônia, que marca simbolicamente a passagem do status de solteiro para o de casado, possui uma distinção bastante clara. O casamento de "papel passado", isto é, o casamento civil, tem sua eficiência baseada no acordo de vontades, logo é passível de ruptura. Mesmo útil e necessário, ele não consegue fazer frente ao casamento religioso, que é culturalmente cultivado como espetáculo e para o qual os noivos se dirigem prestando um culto as bênçãos que pretendem obter por apresentarem à Deus sua "melhor escolha" ou a "escolha definitiva". A valorização do casamento religioso, portanto, tem sua eficiência símbolos sociais e religiosos torna-lhe objeto de consumo e expressão de um determinado imaginário social. Diferentemente do que ocorria nos casamentos à moda antiga, onde a solenidade do casamento não era um fim em si mesmo, mas uma etapa no conjunto de negociações que envolviam o processo de aliança, aqueles que noivam pensando em casar na igreja tem na celebração uma aspecto fundamental de sua representação sobre a conjugalidade, pois admitem que ele corre o risco de não dar certo se a lembrança desse momento não for a mais satisfatória possível. Há em torno desse imaginário o reconhecimento de que o casamento reflete uma importante passagem entre ciclos da vida, o que favorece por exemplo, o desenvolvimento de toda uma indústria cultural que inventa e atualiza símbolos a fim de torna-los consumíveis.19 Esse consumo, porém, orienta uma sociabilidade que contraria a identificada por Thales de Azevedo no modelo tradicional de aliança. Negociado pelos pais ou por escolha dos próprios interessados, o casamento tradicional privilegiava uma socialização que tinha como objetivo a fusão conjugal. A expectativa de uma relação duradoura e estável pressupunha que os casais estavam operando códigos sociais que faziam dos preparativos para o casamento uma experiência de encontro e troca. A ausência de uma ritualização associada ao poder místico do sacramento, que tanto pode ser explicada através do simbolismo que a pureza das primeiras núpcias exerce sobre a noiva (o sujeito da cerimônia) como pelo sistema de dádivas, onde os noivos, ao estilo de um potlacht kaikutl, renunciam ao capital econômico em proveito da comunidade expondo seus bens e a si próprios na esperança de obter dela o capital simbólico do reconhecimento capaz de tornar eficaz e fazer circular o prestígio que a incorporação ou a doação de um parente tem para a mesma. Porém, é preciso dizer que essa renúncia se manifesta imediatamente antes e imediatamente depois da cerimônia, quando passa a prevalecer as tensões criadas pela racionalidade instrumental: austeridade financeira justificada pelas dívidas acumuladas com o financiamento da cerimônia, da lua-de-mel ou da nova moradia; troca de presentes, mudança, compra de móveis, etc. 19 A mesma lógica pode ser encontrada também, por exemplo, em festas de aniversário de 1 ano, no baile para debutantes e nos baby chás. sediada no âmbito do consumo fazia dele um projeto de vida20 que hoje se opõe a sua escolha com um estilo de vida21. Essa transição entre a noção de projeto de vida e de estilo de vida pode ser melhor caracterizada através do uso recorrente que os noivos fazem do termo “sonho” para expressar sua motivação para casar. Eles assim o fazem de uma forma ambígua. Por um lado se referem a solenidade da cerimônia de casamento; por outro alimentam a crença de que podem realizar um projeto pessoal ou familiar. Neste último caso estão tratando quase sempre de modelos ideais que lhe servem de referência para a decisão de casar. É o caso da noiva que quer seguir o exemplo da mãe ou de uma tia; do noivo que pretende cumprir uma promessa a uma avó em leito de morte; ou do noivo que pretende reproduzir na festa de recepção a valsa inusitada que ele viu na internet. Além dessas características, casar também pode ser um sonho para aqueles que acreditam que o casamento pode dar certo. Formar um família e criar os filhos são os predicados dessa noção em que os casais admitem conviver com muitos exemplos desanimadores. Normalmente polemizado sob o signo do "olha onde você está se metendo", "deixa eu te falar a verdade...", "mas na minha época...", "tão novo(a), pra que casar", o noivado é tratado como uma renúncia aos prazeres do mundo e de uma vida de satisfação pessoal. 20 Partindo da perspectiva de Gilberto Velho (1988), a noção de projeto se caracteriza como uma ação que implica uma avaliação de meios e fins vinculada, ao mesmo tempo, a uma realidade objetiva e externa e a uma avaliação consciente das condições subjetivas de realização individual. Assim, como num portfólio de oportunidades, as pessoas elaborariam durante ao longo de seu noivado roteiros de vida, e com isto projetos pessoais, tendo como parâmetro as possibilidades de alcançar tais e quais objetivos. Estas possibilidades se fariam presentes por que seriam criadas dentro de campos de ação, não como um fenômeno puramente interno e subjetivo, mas formulado e elaborado tanto em termos da própria noção de indivíduo como dos temas, prioridades e paradigmas culturais existentes. Em diálogo com Dumont (1993), esta perspectiva nos ensina que cada indivíduo é um locus de tensão entre os constrangimentos da cultura que pedem o enquadramento a padrões, e outros constrangimentos de cultura que pedem ao indivíduo autonomia e singularidade. A noção de projeto, portanto, nos permite entender o noivado como uma estratégia de sociabilidade (fusão afetiva) em sistemas monogâmicos, cujas expectativas (representações) sobre a aliança refletem padrões de sociabilidade culturalmente valorizados. 21 Escolher o casamento como via para conjugalidade representa um estilo de vida na medida em que reflete um modo de comportamento socialmente determinado por um cenário constituído por grupos que competem entre si por possibilidades de trajetória e expressão social. Com isto podemos chamar atenção ao fato de que em sociedades urbanas integradas entre si por complexas redes de comunicação e transporte, ideias e formas de sociabilidade cada vez menos alternativas em relação aos tipos ideais tradicionais, avançam terreno sobre o imaginário da vida e tornam a vida de um casal que escolhe casar uma entre muitas possibilidades de trajetória social. Inserido num portfólio de relações o casamento compete, portanto, com o que os censos tem cada vez mais demostrado ser um tendência contemporânea: o aumento significativo de unidades residenciais formadas por solteiros, o surgimento de parcerias amorosas poliafetivas, uniões estáveis e parcerias orientadas para a geração de prole, etc. Em todos estes casos, os indivíduos reconhecem a existência do noivado, mas decidem não realizá-lo, seja por motivações religiosas, morais ou ideológicas. Vale dizer, no entanto, que, paradoxalmente, enquanto muitos casais alimentam o "sonho" de casar e formar uma família e criar seus filhos os mesmos reconhecem ao longo de seu processo de socialização a existência de uma tensão gerada pela crise do modelo familiar e conjugal e que se instala sob o signo da crítica (sob a forma de discurso ideológico) a corrupção de valores que elites políticas, veículos de informação e movimentos religiosos tradicionalistas acreditam responder por boa parte dos problemas sociais enfrentados pela sociedade brasileira. Os discursos que alimentam esse imaginário incluem os inúmeros exemplos de famílias desestruturadas, como as monoparentais, a expressiva onda de violência doméstica, o aumento na taxa de divórcios, a emergência dos movimentos em defesa da homossexualidade e seus supostos efeitos nocivos a reprodução e a incapacidade das famílias em educar para a cidadania. Neste cenário, quando se fala que a "família está em crise" quer-se dizer que ela deixou de exercer sua função de núcleo estruturante da organização social, isto é, perdeu, parafraseando Thales de Azevedo, sua “magia”22. Conclusão Ao longo deste trabalho lançamos mão de uma análise que procurasse situar o processo de socialização atinente a ritualização do noivado no contexto da sociedade brasileira. Nossa análise partiu de uma revisão bibliográfica cujo horizonte histórico serviu de base para comprarmos os dados obtidos através de uma pesquisa etnográfica realizada junto ao curso de noivos da paróquia da Santíssima Trindade, em Belém do Pará. Podemos notar que os elementos que caracterizam os ritos de afeto são continuamente tensionados pela relação entre indivíduo e estrutura social. No passado essa tensão favoreceu o aparecimento do individualismo como valor, ao mesmo tempo que permitiu a expressão da subjetividade como um novo modo de operar os códigos de afeto. A atualidade das relações pré-nupciais tal como observado entre noivos católicos aponta para o fato de que a ritualização é um fenômeno que aciona continuamente práticas, normas, valores e representações emprestadas do modelo tradicional. O noivado torna-se, portanto um importante recurso para compreendermos a relação de continuidade entre os diferentes estágios da mudanças social. Por outro lado permite o pesquisador identificar os pontos de ruptura que condicionam essas mudanças. 22 Para elucidar esta visão temos como exemplo a discussão mais recente sobre a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, cuja origem fora fortemente influenciada por programas de televisão que cultuam as instituições policiais, tendo sido posteriormente encampada por lideranças policiais e que após eleitos formam hoje o que se conhece como “bancada da bala”. Associada com a “bancada da bíblia” ela tem alimentado a ideologia de que para solucionar um suposto problema de violência generalizada que afeta e ofende o “cidadão de bem” e a família brasileira as famílias desestruturadas devem confiar ao estado a terceirização da educação e da punição ao sistema penitenciário Estatal. Concluímos que a modernização implica processos de inflexão na estrutura social exigindo dos indivíduos performances que habilite para transitar entre diferentes dimensões de uma instituição. O sistema e alianças que caracteriza o casamento e a família expõe essa necessidade na medida em que representam um componente importante da estrutura social. Referências ALENCAR, BRENO (2008), Matrimônio, migração e homogamia na Belém do entre séculos (1995-2006). 2008. 118 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Sociais), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Pará, Belém. 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