mestrado victor.para pdf - Programa de Pós

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mestrado victor.para pdf - Programa de Pós
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE ARTE E COMUNICAÇÃO SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA ARTE/ PPGCA
VICTOR HUGO NEVES DE OLIVEIRA
UM ATO DE FÉ E(M) FESTA
ANÁLISE DO ENCONTRO ENTRE DEVOÇÃO E DIVERSÃO NA
DANÇA DE SÃO GONÇALO DE AMARANTE
NITERÓI
2011
VICTOR HUGO NEVES DE OLIVEIRA
UM ATO DE FÉ E(M) FESTA
ANÁLISE DO ENCONTRO ENTRE DEVOÇÃO E DIVERSÃO NA
DANÇA DE SÃO GONÇALO DE AMARANTE
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Ciência
da Arte da Universidade Federal
Fluminense, Área de Concentração
Teorias da Arte, Linha de Pesquisa
Análise Crítica, para obtenção do Título
de Mestre em Ciência da Arte.
Orientador: Prof. Dr. Wallace de Deus Barbosa
NITERÓI
2011
ii
VICTOR HUGO NEVES DE OLIVEIRA
UM ATO DE FÉ E(M) FESTA
ANÁLISE DO ENCONTRO ENTRE DEVOÇÃO E DIVERSÃO NA
DANÇA DE SÃO GONÇALO DE AMARANTE
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Ciência
da Arte da Universidade Federal
Fluminense, Área de Concentração
Teorias da Arte, Linha de Pesquisa
Análise Crítica, para obtenção do Título
de Mestre em Ciência da Arte.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________
Professor Dr. Wallace de Deus Barbosa
(Presidente e Orientador)
Universidade Federal Fluminense
__________________________________
Professora Dra. Lígia Maria de Souza Dabul
(Membro PPGCA)
Universidade Federal Fluminense
__________________________________
Professora Dra. Helenise Monteiro Guimarães
(Membro Externo)
Universidade Federal do Rio de Janeiro
iii
Aos Invisíveis
iv
AGRADECIMENTOS
Àquele que é Causa Primária de Todas as Coisas e aos homens de fé.
Ao meu passado familiar, símbolo particular do encontro entre a religião da arte
e a arte da religião.
À minha mãe, Isaura e minha irmã, Mariana, pelo auxílio constante e o zelo
extremoso; pelo silêncio oportuno e as lições diárias.
Aos amigos caros, raros e diletos que me ensinam a apreender a Vida em sua
totalidade e a enfrentar os obstáculos e celebrar as vitórias com humanidade e
confiança.
Aos invisíveis que me inspiram e que de modo fraternal e tolerante me
aproximam daquele saber necessário e justo ao patrimônio de que disponho.
Aos companheiros que abraçaram a execução da pesquisa, cooperando na
elaboração de diversos de seus elementos compositores, como: Aquiles de Castro,
Diana Cardinot, João Mors Cabral e Marcio Paulo Oliveira Vieira.
Aos meus colaboradores, que através de apontamentos, discursos e depoimentos
aprofundaram minha perspectiva analítica sobre o campo da pesquisa em questão.
À amiga Ana Santos, representante da Biblioteca Geral da Universidade
Portucalense, pela doação de acervo e informações imprescindíveis ao desenvolvimento
da investigação e à cara amiga inglesa Julia Bardsley pela atenção.
Ao Programa de Pós Graduação em Ciência da Arte por me conceder o
privilégio de desenvolver a pesquisa com dignidade e bem-estar.
E finalmente, à Comunidade da Mussuca, cujo carinho e afetuosidade
temperaram esta dissertação, fazendo-me evocar nestas primeiras páginas que, aliás,
foram as últimas a serem escritas, o que todos supõe:
É aqui, onde tenho que acabar, que devemos começar.
Frederic Jameson
v
Um pio de pássaro é todo o meu salmo.
Rezo para Deus batendo os pés no chão
E as mãos uma na outra quando assobio alto.
Ele escuta.
Carlos Rodrigues Brandão
vi
OLIVEIRA, Victor Hugo Neves de. Um Ato de Fé e(m) Festa: Análise do Encontro
entre Devoção e Diversão na Dança de São Gonçalo de Amarante. 2011 (Dissertação de
Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte – Universidade Federal
Fluminense. Orientador: Dr. Wallace de Deus Barbosa. 148p.)
RESUMO
A pesquisa aqui proposta tem por escopo observar e examinar determinadas relações
que se estabelecem entre corpo, dança e religião na prática ritual em louvor a São
Gonçalo de Amarante – realizada em Mussuca/ Laranjeiras (SE) – anunciando a partir
do encontro entre devoção e diversão fenômenos que revelam pontos de familiaridade
entre as representações artísticas e as manifestações de religiosidade popular,
auxiliando-nos, deste modo, a apreender planos de interseções e diálogos entre as
categorias do sagrado e do profano no contexto cerimonial. O trabalho busca investigar,
portanto, em um primeiro momento os arcabouços de imagens, lendas e histórias que
motivam o ritual, examinando as substâncias míticas que cooperam, através da
estruturação e do compartilhamento de ontologias sagradas, no processo de fixação e
reorganização da Dança de São Gonçalo de Amarante; em seguida propõe-se a analisar
a construção do espaço pesquisado apreendendo-o como sistema de valores que coopera
no empreendimento de observação e interpretação das situações-rituais e por fim,
discute os entrecruzamentos entre devoção e diversão nas ações e significações
produzidas pelo corpo em movimento no âmbito do culto localizando, assim,
possibilidades de discursos significativos sobre o ato de fé e(m) festa.
Palavras-chave: 1. Dança folclórica brasileira. 2. Arte. 3. Religião. 4. Ritos e
cerimônias.
vii
OLIVEIRA, Victor Hugo Neves de. Um Ato de Fé e(m) Festa: Análise do Encontro
entre Devoção e Diversão na Dança de São Gonçalo de Amarante. 2011 (Dissertação de
Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte – Universidade Federal
Fluminense. Orientador: Dr. Wallace de Deus Barbosa. 148p.)
ABSTRACT
The purpose of the research proposal is to observe and examine certain relationships
established between body, dance and religion in the ritual practice of São Gonçalo de
Amarante – held in Mussuca/ Laranjeiras (SE) – from the meeting between devotion
and entertainment phenomena which reveal points of relatedness between artistic
representations and expressions of popular piety, helping us to seize the planes of
intersections and dialogues between categories of the sacred and the profane in a
ceremonial context. Initially, the study aims to investigate the general framework of
images, legends and stories that motivate the ritual, examining the interaction of mythic
substance through developing and sharing the ontological sacred in the process of fixing
and reorganization of Dança de São Gonçalo de Amarante. The second stage is to
analyse the construction of the space by seizing it as a value system that cooperates in
the development of observation and interpretation of situations of ritual and
finally, to discuss intersections between devotion and entertainment in the action and
meanings produced by the body in motion within the cult, providing scope for
meaningful discourse about the act of faith and the piety.
Key-words: 1. Brazilian folk dances. 2. Art. 3. Religion. 4. Rites and ceremonies.
viii
ILUSTRAÇÕES
Il. 1 Fra Angélico – O Juízo Final
p. 17
Il. 2 Fra Angélico – O Juízo Final: Dança Cósmica dos Santos e Anjos
p. 17
Il. 3 Giotto di Bondone – Cenas da Vida de Cristo: Entrada em Jerusalém
p. 21
Il. 4 Imagem de São Gonçalo de Amarante à Cultura Eclesial
p. 34
Il. 5 Imagem de São Gonçalo de Amarante no Imaginário Popular
p. 39
Il. 6 Desenho Baseado na Descrição do Viajante Francês La Barbinais
p. 42
Il. 7 Relatório com Índice de Mortalidade causada pela Cólera-morbo
p. 54
Il. 8 São Gonçalo da Mussuca em Procissão Festiva aos Santos Reis
p. 72
Il. 9 Saída dos Santos da Igreja São Benedito
p. 73
Il. 10 Imagem do Retorno da Procissão
p. 75
Il. 11 Fotografia de Mestre Sales
p. 111
Il. 12 Fotografia de São Gonçalo de Amarante
p. 113
Il. 13 Fotografia de Figura da Dança de São Gonçalo
p. 115
Il 14 Legenda dos Elementos Formadores da Dança
p. 118
Il. 15 Desenho da Formação Inicial da Dança
p. 119
Il. 16 Desenho da Execução de Circulo Coreográfico A
p. 119
Il. 17 Desenho dos Entrelaçamentos Coreográficos
p. 120
Il. 18 Desenho dos Atravessamentos na Dança
p. 120
Il. 19 Desenho da Execução de Círculo pelo Espaço
p. 121
Il. 20 Imagem da Arrumação da Igreja e dos Andores
p. 128
Il. 21 Figura da Dança em Traje de Ensaio
p. 130
Il. 22 Estrutura do Espaço da Igreja Senhor da Cruz
p. 131
Il. 23 Ensaio Ritual na Igreja
p. 131
Il. 24 Imagem de José dos Santos com o Santo
p. 133
Il. 25 Imagem da Procissão ao Senhor da Cruz
p. 134
ix
SUMÁRIO
ANTES DA INTRODUÇÃO
p. 1
INTRODUÇÃO
p. 4
1 - “VIVA A SÃO GONÇALO VIVA”
p. 10
1.1 - DANÇA E RELIGIÃO: HISTÓRIAS DO CORPO
p. 10
1.2 - DEVOÇÃO E DIVERSÃO: HISTÓRIAS DO SANTO
p. 27
1.2.1 - SANTO QUE VESTE BATINA
p. 30
1.2.2 - SANTO QUE VESTE CALÇÃO
p. 35
2 - MUSSUCA: LUGAR DOS SANTOS
p. 44
2.1 - EU VOU AGORA PRA TERRA DE CONGA VOU VER ANGOLA
p. 49
2.2 - MELHOR SER DOS SANTOS QUE SER DO CÃO
p. 62
2.3 - FESTA DE REIS E(M) LARANJEIRAS
P. 69
3 - REGOZIJAI-VOS NA FÉ
p. 78
3.1 - DEVOÇÃO E DIVERSÃO: FÉ E(M) FESTA
p. 78
3.2 - PORTA ESTREITA: ENTRE RITUAL E DRAMA
p. 90
3.2.1 - MODALIDADES DO ATO(R) RITUAL
p. 107
3.3 - GESTUALIDADE E(M) BRINCADEIRA: EXPRESSÃO DA DANÇA
p. 117
3.4 - CELEBRAÇÕES E(M) CAMPO
p. 127
3.4.2 - FESTA DO SENHOR DA CRUZ NA MUSSUCA
p. 127
CONCLUSÃO
p. 136
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
p. 142
ANEXO 1 - DVD FLOR DAS LARANJEIRAS
x
ANTES DA INTRODUÇÃO: PONTO DE PARTIDA
“Como começar pelo início,
se as coisas acontecem antes
de acontecer?” (Clarice
Lispector. A Hora da
Estrela).
Tudo no mundo começa com um sim: aquele sim que funciona, a guisa de
metáfora,
como
instrumento
representativo
da
fecundidade,
generalidade
e
expressividade do Aparelho das Questões; aquele sim que, a maneira de imagem, se
articula como ambiência abismal cuja escavação nos introduz mais e cada vez mais no
Reino das Incertezas; aquele sim que, de modo semelhante à fé, evoca o sentido e a
esperança sobre o Invisível e o Desconhecido.
Ante este sim, nasce a pesquisa aqui proposta: um sim, articulado ao interesse
em estudar e pesquisar de forma mais profunda a cultura popular e seus fundamentos;
um sim que surge em minha vida desde os períodos iniciais do curso de Bacharelado em
Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2004, onde estabeleci contato
com a disciplina Folclore Brasileiro, ministrada pela Professora Ms. Eleonora Gabriel,
conhecida pela alcunha de Lola.
Foi este primeiro sim, afilhado de muitos outros, que me aproximou de diversas
literaturas que operam, com o bisturi da cientificidade, as questões relacionadas às
manifestações populares, às expressões coletivas e ao caráter dinâmico das construções
simbólicas humanas. Um sim, extremamente aguçado e fertilizado, quando da
necessidade de utilização de tais arcabouços teóricos pelas investigações de alguns
pesquisadores acerca de questões relacionadas à identidade, à coletividade, à cultura de
massa, à indústria cultural e aos fatores vinculados às distinções (pré)conceituais entre
arte e artesanato.
As relações afirmativas entre jogo, festa e diversão para a elaboração de uma
representação artística que transpunha as concepções idealistas e operava em concretude
nas paisagens da Vida me chamavam a atenção de modo irresistível e, por isso, me
induziram a participar do Processo de Seleção para Bolsas de Iniciação Artística e
Cultural oferecidas pela Companhia Folclórica do Rio/ UFRJ neste mesmo ano. A
experiência do sim me levou a inúmeros congressos, seminários e festivais que traziam
como temática a discussão do popular, entre os quais destacam-se: Festival Nacional de
Danças Populares em Belo Horizonte (MG), XI Congresso Brasileiro de Folclore em
Goiânia (GO), III Festival Nacional de Folclore em Poços de Caldas (MG), XII
1
Congresso Brasileiro de Folclore em Natal (RN), XIII Congresso Brasileiro de Folclore
em Fortaleza (CE), XIV Congresso Brasileiro de Folclore em Vitória (ES).
Em 2004, o serviço do sim me possibilita estrear junto à Cia. Folclórica do
Rio/UFRJ o espetáculo Pelos Mares da Vida que trazia em seu repertório manifestações
populares relacionadas com o mar; brincávamos, então, de Cocos Nordestinos, Cirandas
de Pernambuco, Cirandas de Tarituba, Siriá, Lundu, Carimbó, Dança do Peru
representávamos o Boi de Mamão, Histórias dos Índios Guaranis e dos Navios
Negreiros, louvávamos a Iemanjá, a Nossa Senhora dos Navegantes e a um santo,
denominado São Gonçalo de Amarante, que trazia entre seus predicados a possibilidade
de misturar o canto à oração, a dança à penitência, o riso à fé.
Aos poucos, o serviço do sim se desdobrou em culto ao sim fazendo com que
meu interesse por aquele santo que se fazia tão marginal – tendo em vista que não se
localizava entre os ditados do sagrado tampouco se corrompia entre os convites do
profano, mas se posicionava no entre, na divisa, na periferia, que a ele possibilitava
mobilidade e deslocamento entre ambas as áreas de valores humanos – crescesse e
comecei a me perceber intimamente relacionado a ele. Em cena, ao representar o ato de
Dança de São Gonçalo de Amarante já não me empolgava a ilustração de um ritual,
mas a vivência desta forma de louvor, já não me interessava a encenação de uma prática
de fé, mas a experiência da devoção, por fim, já não me estimulava o desejo na
permanência egóica, mas o trânsito no Divino.
Dedicava-me, em cena-ritual, a iluminação para aquele santo, me entregando,
por esta via, a uma realidade diferente da experienciada no espetáculo – apesar de nele
estar inserido; contagiavam-me vibrações de fé e(m) festa, devoção e(m) diversão que
me arrepiavam e me alteravam o estado da alma. Meu interesse e respeito por aquele
homem-santo aumentavam cada vez mais, tornando o sim do louvor em sim de ligação:
aí, naquela parte do espetáculo em que podia me dedicar a oração dançando para
Gonçalo, nunca experimentei o não.
Apesar, todavia, de meu interesse pessoal pela manifestação, somente no ano de
2007 pude, com o apoio da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ir a campo,
afastando-me, deste modo, dos estudos e observações realizadas apenas por vídeos e
disponibilizando-me a conversas com os brincantes e visionamentos diretos da prática
ritual: um novo sim, neste momento, se propunha como realidade, o sim do campo de
pesquisa.
2
No final de minha graduação (2008) ao terminar o Curso de Bacharelado em
Dança/ UFRJ, optei – pela experiência em campo e o contato com os atores sociais e,
sobretudo, pela atração que a manifestação e o santo exerciam sobre a minha
sensibilidade investigativa – por desenvolver a pesquisa monográfica acerca da Dança
de São Gonçalo de Amarante, intitulando-a São Gonçalo de Amarante: Análise da
Hibridação de Imagens Sagradas e Profanas no Ritual. No mesmo ano, estruturei o
anteprojeto de mestrado, sendo selecionado para o Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Arte (PPGCA) na Universidade Federal Fluminense, com a investigação Um
Ato de Fé em Festa: Análise do Encontro entre Devoção e Diversão na Dança de São
Gonçalo de Amarante.
Hoje finalizando após dois anos de estudos, análises e exames a pesquisa
proposta ao PPGCA/ UFF, e apreendendo o sim da passagem, vislumbro campos
abertos a novas discussões para o porvir, a partir de questões elípticas que iniciam e
terminam a pesquisa: Qual a questão do trabalho? Em que de fato ela contribui para a
vida das pessoas? O que pretende apresentar que ainda não foi feito ou dito? Por que
pesquisar um fenômeno cultural, aparentemente, tão distanciado de minha realidade
social?
Tais interrogações fazem-me crer que o essencial da pesquisa proposta, não se
dá pelo fato de discutir os arcabouços simbólicos da fé e da festa, ou os arranjos
sígnicos da história do santo de Amarante, ou ainda por apresentar depoimentos dos
atores sociais em ensaios videográficos, mas, sobretudo pela experiência sensível da
devoção que nutro pelo santo e pelo espaço compartilhado na possibilidade de saberfazer, ter participado de alguma forma, da construção da devoção em diversão: no
teatro, na rua, no estúdio de ensaio, em casa, entre os devotos da Mussuca, no cenário
do sim.
O olhar investigativo se constrói, por isso, farto de experiências, inquietações,
esperanças e particularidades de um devoto, pesquisador-bailarino. A minha
contribuição para o campo teórico, antes de ser aquela técnica e funcionalista ou estética
e contemplativa, se estabelece como o caráter do santo: na fronteira, nos interstícios, na
margem, flutuante entre o aqui e o acolá, mas sempre como um sim. O conhecimento da
experiência e a experiência do conhecimento me unem as Vozes da Mussuca
solidificando, deste modo, o ato de fé e(m) festa que dispomo-nos a celebrar.
3
INTRODUÇÃO
“Há maior alegria quando
se termina alguma coisa que
quando se começa. Todo
começo
é
repleto
de
inquietude, que cessa apenas
quando se consegue o fim,
apetecido,
intentado,
esperado e desejado que leva
a começá-lo. O coração não
canta vitória pelo que
começa, mas pelo que
termina” (Santo Agostinho.
A Cidade de Deus).
“Maior enim laetitia est,
cum res quaeque perficitur:
sollicitudinis autem plena
sunt
coepta,
donec
perducantur ad finem, quem
qui aliquid incipit, maxime
appetit, intendit, exspectat,
exoptat; nec de re inchoata,
nissi terminetur, exsultat”
(Augustinus,
saint.
De
civitate Dei).
O estudo aqui proposto busca investigar determinadas questões acerca das
relações estabelecidas entre arte e religiosidade popular na Dança de São Gonçalo de
Amarante – produzida no povoado Mussuca, localizado na cidade de Laranjeiras/ SE –
analisando aspectos promotores da hibridação dos elementos sagrados e profanos no
culto ao santo e fomentando reflexões sobre as possibilidades de relacionamento entre
os arcabouços estéticos e conceituais da performance e do ritual. Desse modo, a
pesquisa pretende redimensionar campos de entendimento e apreender pares
organizadores de conflitos nas sociedades contemporâneas, tais como tradiçãomodernidade, devoção-diversão e revelar – através do estabelecimento de antagonismos
em equilíbrio, ou seja, valores de contraste em harmonia – caracteres heterodoxos e, por
conseguinte, híbridos à estrutura de culto em questão.
Tal estado de hibridação habilita-nos a perceber o ritual elaborado ao santo
amarantino como um arranjo de processos cruzados, não normativos e fluídos, que
orienta a dimensão simbólica da ação social a partir de um complexo patrimônio
sígnico, que nos viabiliza expandir perspectivas em nosso processo de observação,
4
descrição, análise, extensão das bases da expressão popular e auxilia-nos a compreender
os fundamentos da espécie de devoção multicultural e intersocietária que estrutura a
Dança de São Gonçalo de Amarante.
No entanto, esta natureza híbrida não se caracteriza como um fenômeno
sincrético, sem embates; pelo contrário, o perfil de interação que a constitui, fomentado
por movimentos heterogêneos e trânsitos interculturais, articula em si diálogos e
confrontos, combinações e resistências que conquanto instaurem uma unidade dúctil
entre valores antagônicos (qual o sagrado e o profano) e estimulem uma solução de
continuidade entre estas modalidades da experiência ritual não às anula, tampouco as
extingue.
Observamos, pois que a cultura – qual estrutura processual deste campo de
sociedades em interação – apresenta-se como uma crosta de sobreposições,
atravessamentos e entrecruzamentos de significados cuja expressão revigora-se,
constantemente, sofrendo subtrações, acréscimos, substituições, adições e, por fim,
contínuas (trans)formações que determinam estruturas de significação à base social a
partir da possibilidade de compartilhamento de determinadas formas simbólicas1, o que
nos induz – qual Geertz (1989) – a afirmar que a cultura é pública porque o significado
o é e nos exorta, por conseqüência, a aplicar em nossos processos investigativos um
exame da cultura a partir da publicitação de significados.
Aí, percebemos que cada cultura possui uma lógica particular estruturada sobre
um conjunto de bens simbólicos que possibilita aos seus integrantes o compartilhamento
de ideais, hábitos, costumes, ações, viabilizando, desta maneira, a participação e
integração de seus indivíduos na organização social e facilitando-nos o entendimento de
que toda sociedade humana se edifica através de processos que possibilitam aos homens
identificarem-se e reconhecerem-se pela utilização de materiais culturais comuns.
Donde depreendemos que:
O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os
diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim
produtos de uma herança cultural, ou seja, o resultado da operação de uma
determinada cultura (LARAIA, 2006: 68).
Todavia, este conjunto de práticas e bens que estrutura a cultura não se submete
a promoção de resultados cristalizados tampouco se estabiliza em padrões
1
Segundo Caune (2008), a forma simbólica organiza a percepção que o homem tem do mundo que o
cerca e de sua experiência. Ela é, ao mesmo tempo, uma forma do conhecimento e uma matéria de
conhecimento da experiência vivida, por isso, configura as relações interpessoais, estruturando vínculos
entre o Eu e o Tu, e construindo o Nós.
5
comportamentais hermeticamente fechados, mas sim caracteriza-se por um movimento
constante de (trans)formação – oposto a imagem da enseada permanentemente estática –
que nos faculta apreender a dinâmica da cultura e a indigência da participação dos
indivíduos na construção e reformulação de seus domínios.
Neste contexto, a cultura é, aqui, examinada como uma produção dependente de
quem a faz: o homem; e este nasce, transforma-se e morre o que torna inviável a
compreensão de que os seus modos de produção possam permanecer preservados e
estacionados no espaço-tempo. Por sua vez, o homem torna-se resultado do meio
cultural em que foi socializado, caracterizando-se como herdeiro de um longo processo
acumulativo, que reflete o conhecimento e as experiências adquiridas pelas gerações
anteriores o que garante à cultura a produção e o desenvolvimento da Humanidade.
Isto significa que as sociedades humanas existem num determinado espaço
cuja formação social e configuração são específicas. Vivem o presente
marcado pelo passado e projetado para o futuro (...). Portanto, a
provisoriedade, o dinamismo e a especificidade são características
fundamentais de qualquer questão social (MINAYO, 2004: 13).
Compreendendo, portanto, a cultura como “um padrão de significados
transmitido historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções
herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam,
perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida”2,
buscamos identificar e elaborar, no estudo da estrutura ritual consagrada ao santo
amarantino aproximações metodológicas entre o campo da antropologia e da semiótica
apresentando níveis da dimensão social através de diferentes aspectos e abordagens
sobre os homens e seus arranjos simbólicos, apreendendo – através do trabalho de
campo – a manifestação do sensível e reflexionando sua apreensão.
Esta apreensão da representação sensível que caracteriza o ato de se dançar a
São Gonçalo de Amarante é, em nosso processo de pesquisa, relacionada à experiência
dos informantes, o que nos fornece um lugar às interpretações autóctones dos costumes,
expondo de modo dialógico, através de estruturas justapostas, uma produção
colaborativa, estabelecendo uma poética do encontro entre os agentes da Pesquisa
Social onde:
O trabalho de campo não pode aparecer fundamentalmente como um
processo cumulativo de coletar “experiências” ou de “aprendizado” cultural
por um sujeito autônomo. Ele deve, antes, ser visto como um encontro
historicamente contingente, não controlado e dialógico, envolvendo, em
alguma medida, tanto o conflito quanto a colaboração na produção de textos
(CLIFFORD, 2008: 203).
2
Geertz, 1989: 66.
6
Aí, o exame analítico indispensável à investigação da cultura em uma
abordagem que valide o domínio dos sistemas de significações populares atinge seu
ponto global que consiste em “auxiliar-nos a ganhar acesso ao mundo conceptual no
qual vivem os nosso sujeitos, de forma a podermos, num sentido um tanto mais amplo,
conversar com eles”3, promover entendimentos mais profundos sobre a realidade
discutida e compreender a especificidade de uma pesquisa apropriada a determinados
setores do exame antropológico, como abordagem metodológica organizada na
experimentação, na desestabilização4 e por coletividades, ensejando-nos o encontro do
conhecimento comum, cotidiano, irremediavelmente localizado e qualitativo, com o
conhecimento científico e técnico e avizinhando-nos de um estado de cientificidade
“como uma idéia reguladora de alta abstração e não como sinônimo de modelos e
normas a serem seguidos”5 que permite-nos estabelecer processos cruzados e encontros
possíveis entre a razão científica, o pensamento artístico e os conhecimentos populares.
Deste modo, a pesquisa proposta busca “abandonar a idéia de hierarquia de
saberes para pensá-los, compreensivamente, numa relação de complexidade, de rede
possível de nexos, de tecidos” (Künsch, 2008: 50) ensejando-nos não só aprofundar o
diálogo entre as práticas de conhecimento, a sociedade e o mundo, como também
exceder o paradigma rizoma da ciência moderna que:
(...) tende a reduzir o universo dos observáveis e o rigor do conhecimento ao
rigor matemático do conhecimento, do que resulta a desqualificação
(cognitiva e social) das qualidades que dão sentido à prática, ou pelo menos
que neles não é redutível, por via da operacionalização, a quantidades; um
paradigma que desconfia das aparências e das fachadas e procura a verdade
nas costas dos objetos, assim perdendo de vista a expressividade da face a
face das pessoas e das coisas onde, no amor ou no ódio, se conquista a
competência comunicativa (SANTOS, 2003: 34-5).
Aí, apreendemos a indigência de fomentarmos teias de relações intersubjetivas
que dialoguem com a complexidade do mundo, percebemos a necessidade de analisar a
etnografia, sobretudo,
como campo articulado de tensões, ambigüidades
e
indeterminações próprias de todo sistema de relações, utilizando seus arcabouços e
fundamentos “não como a experiência e a interpretação de uma ‘outra’ realidade
circunscrita, mas sim como uma noção construtiva, envolvendo pelo menos dois – e
3
Geertz, 1989: 17.
O conceito de desestabilização surge como um dos efeitos da Antropologia Crítica de James Clifford e
representa um desafio aos fundamentos da experiência etnográfica ao propor um conjunto de
ambigüidades e indeterminações à noção antropológica de cultura.
5
Minayo, 2004: 12.
4
7
muitas vezes mais – sujeitos conscientes e politicamente significativos” (CLIFFORD,
2008: 41).
Por isso, procuramos apresentar em nossos estudos um conjunto de experiências
atravessado por influências intersubjetivas onde ao invés de promovermos a autoridade
etnográfica em monovocalidade, como fundamento da pesquisa em questão, optamos
por diluir fronteiras e compartilhar com os atores sociais a produção de nossa
investigação gerando espaços dúcteis, flexíveis e fluídos entre os estados do
conhecimento e favorecendo a construção de uma contigüidade orgânica que favorece a
valoração dos saberes coletivos e locais.
Para a promoção deste empreendimento, no entanto, empenhamo-nos em
fomentar a polivocalidade para além da estrutura de apresentação textual dos
depoimentos coletados (ou seja, para além das citações extensas e regulares que tendem
a servir como exemplos ou testemunhos confirmadores) promovendo o encontro entre
os agentes da pesquisa em recursos de hipermídia (produção de imagens fixas e
dinâmicas) que – como linguagens contemporâneas – possibilitam a trama de diferentes
dimensões dos fenômenos culturais, estabelecendo a meta-etnografia, a partir do
potencial de representação dos seus suportes e tecnologias documentais, expandindo
assim os modos de representação etno(GRAFICA).
A partir destas relações, propusemo-nos a elaborar um vídeo documental,
denominado Flor das Laranjeiras, como figuração de um trabalho pautado na polifonia
onde estabelecemos um diálogo com os atores sociais de maneira a tomá-los não apenas
como participantes da pesquisa, mas agentes colaboradores da poética do encontro
social. Estruturamos o vídeo a partir dos princípios da multivocalidade, identificando e
reconhecendo o que os agentes sociais desejavam dizer sobre si, o que se fazia relevante
para o contexto coletivo e quais imagens eram mais constantes e permanentes no
cotidiano do povoado; em seguida, iniciamos um processo de captura que possibilitasse
a não simplificação e redução das dinâmicas da vida social como olhares, gestualidades,
quefazeres, olores, imagens, contornos da paisagem, etc., pela busca de representação
do ritual ao santo; e finalmente, buscamos perceber e captar interações significativas
mediadas pela dimensão visual na construção das representações sociais.
O vídeo, portanto, aqui anexado, articula-se como “texto” direcionado,
sobretudo à comunidade da Mussuca e, simultaneamente, direcionado pela comunidade
da Mussuca à Academia; após a elaboração do material vídeográfico, partimos para o
povoado e fornecemos cópias em DVD a todos os entrevistados, atendidos por eles em
8
suas casas recebemos feedback acerca do vídeo, onde examinamos juntos aspectos que
funcionam, aspectos que não funcionam, etc. Sentamos com cada uma das famílias em
suas salas de estar e após estas conversas compreendemos a necessidade de estruturar o
material textual da dissertação em três tópicos principais.
O primeiro capítulo, “Viva a São Gonçalo Viva”, apresenta de modo histórico as
relações entre corpo, dança, religião, e investiga as substâncias míticas que cooperam,
através da estruturação e do compartilhamento de ontologias sagradas, no processo de
fixação e reorganização da Dança de São Gonçalo de Amarante; para isto, examinamos
os conteúdos referentes às histórias do santo, a nível eclesiástico e popular, observando
nas estruturas de arquétipos referentes à sua personalidade traços ambíguos de
encontros entre a devoção e a diversão.
O segundo capítulo, “Mussuca: Lugar dos Santos” insere a pesquisa em seu
campo de atuação e investigação, contextualizando a formação histórica de Laranjeiras
e proporcionando informes acerca da construção social do povoado Mussuca;
discutimos, para tanto, questões relativas à territorialidade, à etnicidade, à
convivialidade e aos conteúdos deslocados e em trânsito que caracterizam o sagrado
solene e o profano festivo no fluxo da prática social entre ritual e espetáculo.
O terceiro capítulo, “Regozijai-vos na Fé” aborda e analisa os elementos
constitutivos da Dança de São Gonçalo de Amarante perquirindo as relações entre
devoção e diversão através dos conteúdos estruturais do sagrado e do profano, da
festividade e da fantasia, do ritual e do drama, examinando, em seguida, as modalidades
do ator ritual e a expressão da dança, em sua formação e estruturação.
Desta forma, a pesquisa termina revelando, por meio da análise dos materiais
coletados, o campo de nossas inquietações, mobilizações e descobertas; as conclusões
oferecem as incertezas permanentes daquele que reconhece a incompletude do
conhecimento e do discernimento dos quais se faz portador, mas que se tranqüiliza com
o reconhecimento do domínio da contingência relacional entre arte e religião que há de
nos possibilitar o deslocamento de uma margem à outra, transportando-nos através do
texto em um rito de passagem contínuo e constante entre a fé e(m) a festa.
9
1 - “VIVA A SÃO GONÇALO VIVA”
“Eu dançava para a escriba
e o fariseu, mas eles não
quiseram nem dançar nem
me seguir; eu dançava para
os pescadores, para Jacó e
para
João,
esses
me
seguiram e entraram na
dança” (Sidney Carter.
Cristo, o Senhor da Dança).
1.1 - DANÇA E RELIGIÃO: HISTÓRIAS DO CORPO
Insere-se em toda pesquisa, e isto ocorre seja qual for seu objetivo, a necessidade
que se faz presente de apresentar ao público leitor a origem e os significados históricos
dos objetos de estudo, numa tentativa de despertar o olhar, através do passado, às
relações que se criam na contemporaneidade. Neste momento, então, propomo-nos a
examinar as relações entre corpo, dança, religião e a trajetória do ritual a São Gonçalo
de Amarante desde sua procedência européia até a chegada e transformação do culto em
terras brasileiras. Com isso, porém, não buscamos conhecer estruturas de práticas
sociais históricas unicamente no intuito de conhecê-las, mas – orientados pelo escopo de
analisar nossa realidade atual – examiná-las, repercutidas e desdobradas, no conjunto de
ações que configuram o homem contemporâneo.
Este exame, que resulta em um maior entendimento e mais ampla compreensão
das repercussões e desdobramentos das práticas sociais históricas na atualidade, parte da
premissa de que corpo, dança e religião em conjugação, geram uma tríade que estrutura
o ritual e aquelas formas de crenças que funcionam como fundamento para se pensar o
homem e(m) a sociedade. A dimensão sensível desta triangulação estabelece o mistério
hominal – conteúdo psico-físico-emocional – que se faz como ponto de convergência
entre rito e crença, ao relacionar, enquanto prática do corpo (e do espírito), os homens
aos invisíveis, compartilhando de maneira a-histórica e an-espacial os modos de
conexão entre a Humanidade e o Ignoto.
Segundo Bourcier (1987), tais modos de conexão são fornecidos pelos deuses
aos mortais, desde os primórdios, através do estabelecimento de danças que promovam
tanto louvor quanto alegria. A dança, portanto, representa desde as mais remotas eras a
reunião de aspectos humanóides e divinos, morredouros e imortais, perecíveis e eternos,
10
expressando vínculos entre religião e arte, perenidade e fugacidade, sagrado e profano
em todas as configurações sociais.
Nesta perspectiva, pois, percebemos na prática do corpo pontos que apóiam a
universalidade da dança em relação à universalidade da religião, universalidades estas
que dialogam com as especificidades, tendo-se em vista que toda coletividade estrutura
formas particulares de louvor, construções gestuais próprias destinadas para seus
deuses, o que determina um conjunto de celebrações e manifestações específicas, onde
cada organização societária estabelece um quadro de exaltação e expressão em dança à
Fonte da Criação, e faz com que as relações históricas entre corpo, dança e religião se
percam no tempo.
Na Índia, por exemplo, a dança de Shiva, expressa uma visão da Criação do
Universo, sua manutenção e destruição, a reencarnação do ser humano e sua redenção,
considerando-se que Shiva é um deus bailarino, as mulheres que dançam em seu louvor
são designadas servas de Deus e crê-se que a vida flui no ritmo dos bailados de Shiva.
No Japão, a dança serve de ligação entre os homens e os deuses, expressa os
mandamentos destes e fortalece a prece dos crentes; executadas desde a Antigüidade
pelos sacerdotes mikos constituem-se em fonte de êxtase ou possessão divina.
No Egito Antigo, os sacerdotes astrônomos representam os movimentos celestes
com uma coreografia extremamente elaborada; estes balés ensinam aos homens o
movimento figurado dos planetas e as leis que permitem prever, portanto, controlar as
cheias do Nilo, tornando-as não destrutivas, mas fecundas. As danças fúnebres e as
cerimoniais são como procissão, os movimentos têm como caráter espacial as linhas
retas e os desenhos geométricos.
Egypt displays a highly-developed dance ceremonial in its many hued
religious usages. The cults in most temples were more or less associated with
dances executed either by special dancers or by the priesthood itself (...).
Plato relates that the dances of the Egyptian priests round the temple altars
and the dance formations which they executed were intended to represent the
movements of the planets, the constellations and the fixed stars in the
heavens6 (BACKMAN, 1952: 02).
6
O Egito expõe uma dança cerimonial altamente desenvolvida no uso de suas matizes religiosas. Os
cultos, na maioria dos templos, eram mais ou menos associados às danças executadas ora por bailarinos
especiais ora pelo próprio sacerdócio (...). Platão diz que as danças dos sacerdotes egípcios circundam os
altares do templo e as formações da dança que eles executavam eram destinadas a representar os
movimentos dos planetas, as constelações e as estrelas fixas no céu (Tradução Minha).
11
Na Grécia Antiga, a dança tem um papel tão importante quanto no Egito, tanto a
nível litúrgico como a nível cívico; os festejos, a educação, o treinamento militar, os
aspectos da vida cotidiana, como um todo, engendram danças.
In Greece and Italy, as in Egypt, dances of various kinds were customary on
the burial of the dead. The purpose of these dances appears to have been to
gladden the dead, but still more to exorcise and expel the evil demons which
wait for them. In Greece and Italy the dead were comforted by boys and girls
bearing wreaths and cypress branches, who executed solemn funeral dances
with choral song. Immediately after the dancers came the priests
(BACKMAN, 1952: 04)7.
Atestam este fato dados recolhidos do livro As Leis de Platão, onde encontramos
descrições cerimoniais a guisa daquelas que compõem a estrutura funeral dos
sepultamentos dos sacerdotes de Apolo e Hélio.
And after their death they shall be laid out and carried to the grave and
entombed in a manner different from the other citizens. They shall be decked
in a robe all of white, and there shall be no crying or lamentation over them;
but a chorus of fifteen maidens and another of boys, shall stand around the
bier on either side, hymning the praises of the departed priests in alternate
responses, declaring their blessedness in song all day long; and at dawn a
hundred of the youths (…) shall carry the bier to the sepulcher. And boys
neat the bier and in front of it shall sing their national hymn, and maidens
shall follow behind, and with them the women who have passed the age of
childbearing; next, although they are interdicted from other burials, let priests
and priestesses follow, unless the Pythian oracle forbid them8 (PLATO:
2008: 319).
Nas Escrituras Hebraicas, igualmente observamos fortes referências à hibridação
dos valores da fé e da festa, e por identificarmos materiais de louvor que se baseiam em
estrutura de crença monoteísta, apreendemos aí campo fértil de relações estabelecido
entre os homens e um Deus único, o que nos facilita o desenvolvimento e a articulação
das próprias questões acerca dos atravessamentos do sagrado e do profano.
7
Na Grécia e na Itália, tal como no Egito, danças de várias formatações eram habituais no sepultamento
dos mortos. O propósito destas danças parece ter sido agradar os mortos, mas, sobretudo, exorcizar e
expulsar os demônios que os aguardavam. Na Grécia e na Itália, os mortos eram consolados por meninos
e meninas que ostentavam coroas e ramos de cipreste e executavam danças funerais solenes com música
coral. Imediatamente após os dançarinos vinham os sacerdotes (Tradução Minha).
8
Quando morrerem, sua exposição ao público, funeral e sepultamento serão distintos daqueles dos outros
cidadãos: nestas ocasiões apenas trajes brancos serão usados e não haverão quaisquer gemidos ou
lamentações. Um coro de quinze moças e outro de quinze rapazes permanecerão de cada lado do esquife e
cantarão alternadamente um elogio aos sacerdotes sob forma de um hino em versos, celebrando a bemaventurança dos sacerdotes o dia inteiro. Na alvorada do dia seguinte o esquife será carregado/escoltado
até a sepultura por uma centena de homens jovens (...); e ao redor do esquife, os rapazes na dianteira,
entoarão seu canto nacional e atrás deles seguirão as moças cantando e todas as mulheres que
ultrapassaram a idade de ter filhos; e próximos seguirão os sacerdotes e sacerdotisas como se o fizessem
na direção de um túmulo santificado (Tradução Minha).
12
Em Êxodo (15:20), por exemplo, encontramos a dança da profetiza Maria, irmã
de Aarão, que pega seu tamborim e acompanhada de todas as mulheres formam coros
de dança ao perceberem que enquanto os israelitas caminham de pés enxutos, a
cavalaria do faraó se perde no mar; no 2 Samuel (6:14) apreendemos a história de Davi
que dança com todo o entusiasmo diante de Javé, ao conduzir a arca, em meio de
aclamações e toques de trombeta; nos Salmos (149:3 e 150:4) percebemos as
celebrações e louvações com danças, além de inúmeras outras manifestações, a nos
apresentarem a comunicabilidade e intercâmbio entre Céu e Terra através do corpo.
Tais referências históricas apontam a legitimidade dos vínculos entre devoção e
diversão, arte e religiosidade, matéria e espírito, festa e fé. O corpo em dança alcança
um estado religioso9 produzindo vínculos entre a própria intimidade e a divindade. Estes
estados de manifestação da fé através da dança adquirem uso generalizado não somente
nas práticas religiosas pré-cristãs ou pagãs, mas também na própria Igreja Primitiva10.
No Evangelho encontramos referências notáveis promovidas por Mateus (11:17) e
Lucas (7:32) às danças: nós tocamos para vós, e não dançastes.
This, it is said, is a command which the Lord Jesus Christ himself gave, and
dancing must therefore strengthen the adoration and worship of Christ. It is
not clear what is here suggested, but it may refer to II Corinthians, 12, 2, in
which St Paul describes how he was elevated to the third Heaven, to
Paradise. Perhaps it implies that when St Paul found himself in the Heavenly
Paradise he must have also participated in the celestial mysteries, to which
especially belonged the round dances of the saints and angels11 (BACKMAN,
1952: 14).
Em Atos do Apóstolo João, texto criado em Edessa, no fim do século II por
Leucius Charinus (discípulo de João), e considerado apócrifo pela Igreja Católica, por
constituir-se como parte do Cristianismo Gnóstico, encontramos a figura do próprio
Jesus dançando junto aos discípulos.
9
Termo proveniente do latim religio que significa prestar culto a uma divindade, ligar novamente ou,
simplesmente, religar.
10
A Igreja Primitiva, ou Igreja Antiga, compreende o período histórico desde o Pentecostes (ano 33 d.C.),
quando os discípulos começam a pregar o Evangelho e com o batismo de cerca de três mil pessoas
convertidas fundam a Igreja Cristã até a queda do Império Romano (476 d.C.). Divide-se em três fases
distintas: a implantação, marcada pelo grande número de mártires e apologetas; a expansão, caracterizada
pelo avanço missionário através do Império e mesmo além das fronteiras; o triunfo final sobre o
politeísmo greco-romano, ao ser declarado o Cristianismo a única religião oficial do Império Romano
(391 d.C.).
11
“Isso, dito, é um comando que o próprio Senhor Jesus Cristo deu, e o ato de dançar deve, portanto,
reforçar a adoração e o culto ao Cristo. Não está claro o que é sugerido aqui, mas pode se referir ao II
Coríntios 12, 2, onde São Paulo descreve como ele foi elevado ao Terceiro Céu, ao Paraíso.
Possivelmente, isso implique que quando São Paulo encontrou-se no Paraíso Celestial, ele deve, também,
ter participado dos mistérios celestes, especialmente àqueles que faziam parte das danças de roda
dos santos e anjos” (Tradução Minha).
13
Before Jesus was seized by the Jews he collected his Disciples and spoke to
them. He exhorted them to join him in a hymn of praise to the Father. He
ordered them to form a ring and, whilst the Disciples held each other by the
hand, he himself remained standing in the middle. He ordered them to answer
‘Amen’ whilst he sang a hymn. Meanwhile, the ring of disciples moved
around him. The hymn was a song of praise, filled with mystical allusions12
(BACKMAN, 1952: 14-5)
Este texto considerado complemento do Evangelho de Mateus (26:29-30), fez
parte das obras interditadas pelo poder eclesial – sendo proibido por duas vezes, uma
pelo Papa Leão I (440-461) e outra pelo Concílio de Nicéia (787) – e condenadas ao
fogo; ei-lo, na íntegra em Couto (2007).
Aí, pois, podemos efetivar um panorama que nos aproxime do modo como a
dança era conduzida, no culto cristão: em estrutura circular, mãos dadas e sobrepostas,
acompanhada de cantos e respostas; tal ênfase corporal adicionada ao valor das palavras
bíblicas e ao ideário de promoção da dança no ritual de devoção ao Cristo, induz a sua
adoção nos modos de louvor e adoração dos primeiros cristãos.
Os cristãos costumavam dançar bastante nos primeiros anos da Igreja.
Dançavam nos lugares de cultos e nos adros das igrejas. Dançavam nas festas
dos santos e nos cemitérios junto aos túmulos dos mártires. Homens,
mulheres e crianças dançavam – diante do Senhor, e uns com os outros
(COX, 1974: 55).
A este respeito, Brandão (1985:140) complementa:
A Carta aos Gentios, escrita, por Clemente de Alexandria, morto em 216
d.C., descreve piedosas cerimônias cristãs de iniciação, acompanhadas de
cantigas e danças de roda. Tal como ele, Eusébio de Cesaréia, morto em 339,
fala de danças e hinos que pelos campos e cidades louvavam o Criador e
festejavam vitórias militares do imperador Constantino.
E prossegue Backman (1952: 22):
From St Clement’s curious work, Stromata, we may cite the following,
‘Therefore we raise our heads and our hands to heaven (during prayer) and
move our feet just at the end of the prayer – pedes excitamus. By the zest and
delight of the spirit we achieve that being which can only be understood by
reason; we seek by words of prayer to raise our body above the earth and
uplift the winged soul by its desire for better things. In this way we reach
blessedness and deliverance from the chains of the flesh which our soul
despises13.
12
Antes que Jesus fosse preso pelo julgamento dos judeus, ele reuniu seus discípulos e falou a todos. Ele
convocou-os a se juntarem em um hino de amor ao Pai. Ele ordenou que eles formassem um círculo e
enquanto os discípulos se seguravam pelas mãos, ele se mantinha em pé no meio do círculo. Ordenoulhes responder Amem, enquanto cantava um hino. Enquanto isso o círculo dos discípulos se movia em
torno dele. O hino era um cântico de louvor cheio de alusões místicas (Tradução Minha).
13
De curiosa obra de São Clemente, Stromata, podemos citar o seguinte. ‘Portanto, nós levantamos
nossas cabeças e mãos para o céu (durante a oração) e movemos nossos pés apenas ao final da oração –
pedes excitamus. Pelo entusiasmo e prazer do espírito, nós arquivamos aquela essência que somente pode
ser compreendida pela razão; buscamos através da prece elevar o nosso corpo acima da terra e nossa alma
através de seus desejos por coisas melhores. Desta forma, nós alcançamos a bem-aventurança e a
libertação das cadeias de carne que oprimem nossa alma (Tradução Minha).
14
A declaração de São Clemente é importante, porquanto ao afirmar que os
cristãos moviam os pés no final das orações, ele nos permite refletir sobre a realização
destas gestualidades; o desejo de elevação tanto do corpo quanto do espírito estabelece
uma unidade que possibilita o agenciamento de estruturas dialógicas entre fé e festa,
apesar de já vermos, aí, uma tentativa de afastamento e uma oposição, conquanto ainda
não acentuada, entre corpo e alma.
A partir de determinado período, porém, as danças na Igreja passam a ser
analisadas como uma atração desavergonhada, onde principalmente mulheres excitam a
concupiscência dos jovens, transformando os espaços sagrados de devoção em
ambiências impudicas e, por isso, profanas; atribuindo ao corpo, então, um caráter mais
sensual que santimonial a Igreja engendra as primeiras proibições às atividades
bailatórias.
As primeiras vítimas do anátema foram as mulheres, reidentificadas, como
aos tempos do paganismo, como intérpretes das forças mais profundas.
Seguiram-se as condenações de toda a comunidade, que insistia em trazer
para as cerimônias da igreja e para o interior do templo as danças que não
pertenciam à nova liturgia. Numa fase sucessiva, e perante a impossibilidade
de fazer as populações renunciar aos seus costumes ancestrais, assistiu-se à
regulamentação desses festejos por parte da Igreja, de modo a controlar-lhes
a periculosidade (SASPORTES, 1979: 14).
Com referência a esta consideração, Backman (1952: 154) complementa:
There can be no doubt whatever that the chief objection was to those forms of
the dance which were vicious and indecent, with improper songs, and to the
participation of women and the dancing together of men and women. For
example, even when it seemed that St Augustine would have liked to forbid
and condemn every form of church dance, he finally gave way when
confronted with the often quoted biblical commands in the gospels of
Matthew and Luke that whoever wishes to dance may dance. But neither is
there any doubt that the opposition of the Church had already begun; the
dance had led to such serious abuse that it had to be resisted. We have seen,
however, that this resistance was not very successful and that not infrequently
it was quite in vain. The Fathers of the Church and other theological writers
were certainly correct when they pointed out that pagan influence was the
cause of the energetic efforts of the newly-converted to retain the dances of
their cult. These pagan dance customs contributed, without the slightest doubt
to the vigour of the dance even within the Christian Church. These pagan
customs are to be found preserved by those of pure Christian faith since the
earliest days of the Church14.
14
Não há dúvida de que a principal objeção foi àquelas formas de dança que eram viciosas e indecentes,
com canções impróprias, participação de mulheres e danças em que homens e mulheres dançavam juntos.
Por exemplo, quando Santo Agostinho proibira e condenara todas as formas de dança na igreja, ele teve
que ceder, quando confrontado com os comandos bíblicos frequentemente citados nos evangelhos de
Mateus e Lucas: quem quer que deseje dançar que dance. Mas, também não há qualquer dúvida de que a
oposição da Igreja já havia começado; a dança levava ao abuso grave que tinha de ser resistido. Vimos,
porém, que essa resistência não foi muito sucedida e que não raro era completamente em vão. Os padres
da Igreja e outros escritores teológicos foram certamente corretos quando apontaram que a influência
pagã era a causa dos esforços enérgicos dos recém convertidos para reter a dança em seus cultos. Estes
15
Lutando, pois, pela sobrevivência em solos romanos, onde os costumes pagãos
dominam as tradições populares, a Igreja adapta suas datas comemorativas às da Roma
pagã. As festas que já se celebram em tal época, e as quais a Igreja não consegue
exterminar, juntam à sua configuração os símbolos e signos da nova religião e a dança,
produzida pelo povo, é incorporada à estrutura ritual. Assim, os acontecimentos bíblicos
passam não só a ser narrados, como também cantados e representados, juntamente a
pinturas murais, esculturas e a edificação dos primeiros templos católicos, criando um
conjunto de formas utilizadas pela igreja para propagar o conteúdo de suas doutrinas
entre os mais humildes e analfabetos.
A propósito Valéria Rachid15 observa:
A Igreja não cria novas danças para serem praticadas em seus rituais, mas
aproveita aquelas já feitas pelo povo e que foram aprovadas pela tradição
antiga. Na verdade, a Igreja ainda não possui força suficiente para exterminar
os hábitos pagãos, tendo que se apoiar em algumas estratégias para converter
as massas populares. Os padres, por exemplo, irão construir suas igrejas nos
antigos locais onde existiram os templos da Antiguidade. Há também a
criação de um calendário católico onde os dias santos serão comemorados no
mesmo período das festividades pagãs, bem como a utilização de incensos,
velas, músicas e sinos – artefatos aprovados pelos rituais antigos. Como a
dança fazia parte dessas tradições, ela também será incluída nos rituais da
Igreja.
Em linhas gerais, portanto, apreendemos que não faltou à civilização romana a
herança dos ritos das velhas religiões pagãs assim como da religião monoteísta judaica.
Os cânticos e danças com os quais esses povos veneram seus deuses influenciam a arte
romana e se estendem às primeiras comunidades cristãs que, ainda sem ritos próprios ou
liturgia com normas fixadas, adotam-nas, adaptando-as para seus próprios cultos.
Os primeiros cristãos, então, mantêm as belas movimentações simbólicas
herdadas dos hebreus, dentre as quais as rondas solenes em volta dos altares tendo ao
centro o próprio bispo ou as procissões semelhantes às realizadas nos cultos egípcios de
Isis e Osíris. A adaptação de cultos, como os que representavam anjos dançando em
círculo enquanto louvavam a Deus, deram origem às árias dançáveis, isto é, salmos
interpretados numa linguagem rítmica e acentuada.
costumes da dança pagã contribuíram, sem a menor dúvida para o vigor da dança mesmo dentro da Igreja
Cristã. Estes costumes pagãos encontram-se preservados por aqueles de fé cristã pura desde os primeiros
dias da Igreja (Tradução Minha).
15
Otavio, 2004: 33-4.
16
Ilustração 1: Fra Angélico - O Juízo Final (c. 1432-1435)
Museo di San Marco, Florença.
Ilustração 2: Fra Angélico - O Juízo Final. Detalhe Dança Cósmica dos Santos e Anjos (1432-1435)
Museo di San Marco, Florença.
No século IV, entretanto, com o Cristianismo tornando-se religião oficial do
Estado Romano16, tornam a surgir controvérsias sobre o uso da dança em cerimônias
16
Faz-se interessante observar que o processo de adoção do Cristianismo como religião oficial do Estado
Romano precede uma série de perseguições e ataques à Causa Cristã; a conversão em massa que os
cristãos promoveram, com o passar das décadas em Roma, fez com que os templos pagãos se esvaziassem
e o lucro desta exploração religiosa diminuísse. Segundo Steyer (1996: 49-0), “o fato de os cristãos
negarem-se a oferecer incenso e orações à figura do imperador, considerado pelos cristãos como um ato
idólatra, era, no entanto, julgado pelas autoridades civis como crime de lesa-majestade. Assim, a primeira
perseguição por parte do Império Romano aconteceu com Nero, em 64 d.C. A tradição acusou Nero de ter
incendiado a cidade de Roma. Vendo-se ameaçado, incriminou os cristãos”. No correr dos anos seguiramse muitas outras perseguições que deixaram a Igreja Cristã completamente arrasada, entre as quais se
destaca as movidas pelo Sétimo Severo (193-211), por Décio (249-251), por Diocleciano (284-305) e seu
sucessor Galério, antes de morrer porém este último arrepende-se e assina (em 30 de abril de 311) o Edito
de Tolerância que pela primeira vez ampara por lei a Igreja Cristã. Após a morte de Galério, nova disputa
17
evangélicas; os homens edificam um dualismo entre fé e festa embotando, deste modo,
as relações entre corpo-dança-religião. A Igreja passa, então, a menosprezar as
atividades do corpo, sublimando o pensamento à transcendência e elevando o espírito ao
cerne da Verdade reforçando o lugar da matéria como obstáculo à manifestação plena
da alma – imortal e imperecível – pelo seu potencial de pecado e perdição.
A hierarquia religiosa, que aos poucos se separa da massa dos fiéis comuns,
cedo também começa a estabelecer as regras do controle do culto legítimo. Já
no século IV há controvérsias sobre a legitimidade dos festejos dos fiéis
comuns. São Basílio Magno, bispo de Cesaréia, condena alguns anos mais
tarde os mesmos cantos e danças que antes aceitara no interior de sua igreja.
O bispo desconfia das solturas do povo e começa a ver mais sensualidade de
mulheres do que devoção (BRANDÃO, 1985: 140).
Assim, percebemos que à medida que a Igreja estrutura seus alicerces e domina
boa parte do continente europeu, começa a haver uma grande preocupação, pela maneira
como as formas e elementos religiosos estão sendo usados pelo povo o que conduz as
manifestações do corpo para as ambiências externas ao templo. Mas, por quê?
Tentando desvendar essas reservas do clero católico em relação à dança, cabe
colocar as razões que geralmente são invocadas pelas hierarquias para
expulsá-las dos templos. Nesse contexto a acusação mais freqüente é o
caráter sensual das danças e, por conseguinte, o uso indevido do corpo no
recinto sagrado, o que transformaria o lúdico em lúbrico, o rito cristão em
rito pagão. Evidentemente que muitas dessas danças provieram de ritos
pagãos, ou melhor, de outras formas religiosas etiquetadas como pagãs na
ótica cristã, mas que em outros momentos foram aceitas e/ou toleradas e
apropriadas pela Igreja com funções pedagógicas. A acusação de
sensualidade a que então se recorre, passa a ser uma forma de deslegitimar o
que antes fora considerado compatível com o espaço sagrado. Vê-se, pois,
que a própria atitude da Igreja não é uniforme e os limites entre sagrado e
profano vão variando numa mesma instituição ao longo do tempo (DANTAS,
1999: 114).
Encontramos inúmeras referências às proibições à prática da dança religiosa
como questão do corpo, da sensualidade e da legitimação de estados profanos no espaço
sagrado da igreja, do século IV até o século XVIII; em 300-303, encontramos o
Concílio Provincial em Elvira, perto de Granada, que ordena as mulheres não serem
autorizadas a realizar vigílias em igrejas em que sob o manto da oração, elas caiam em
pecado, donde nos parece seguro afirmar que as vigílias eram combinadas com danças e
a proscrição tem um significado muito especial à medida que corrobora o entendimento
de que a dança já era realizada nas igrejas neste período. Em o ano de 539, apreendemos
o Concílio de Toledo que expressa a esperança de que a prática, contrária a religião, de
pelo poder torna Constantino Imperador de Roma, este assina o Edito de Milão, em 313 – decreto que
eleva o Cristianismo ao status de religião lícita, o que implica em liberdade plena à Igreja e seus adeptos;
mais tarde em 391 o Imperador Teodósio proíbe o culto pagão (politeísta) e adota o Cristianismo como
religião oficial do Império.
18
dançar e cantar sons desavergonhados nas festas dos santos e enquanto o povo espera
pela saída das procissões nas igrejas possa, com a ajuda dos padres, ser erradicada de
toda a Espanha. No século VII, novo Concílio de Toledo (633) censura a Festa dos
Tolos com suas músicas e danças nas igrejas e o Concílio de Châlons-sur-Saône (639654) faz-se contra as músicas despudoradas e indecentes cantadas nos bailes de coro
feminino.
No século VIII, o Concílio de Lessinas (743) proíbe leigos de executarem danças
corais e freiras de cantarem nas igrejas, pois havia sido dito: “Minha casa será uma casa
de oração”. O Concílio de Roma, no ano de 826, queixa-se das senhoras, especialmente
nas festas de aniversários dos santos, em que vinham à igreja somente para cantar sons
impudicos e executar danças corais; no meio do século IX, o Papa Leo IV ordena que as
mulheres devam ser impedidas de dançar e tocar nas igrejas e nos seus adros. Além
disso, no inicio do século X, o público é intimado a abster-se dos sons e gargalhadas
diabólicas à noite na presença dos mortos quando o padre John III ameaça com
excomunhão as mulheres que visitam sepulturas a fim de bater tambores e executar
danças.
No ano de 1009 surgem novas proscrições contra os sons diabólicos e as
gargalhadas à noite na presença dos mortos; De Sully, bispo de Paris, em 1198-1199,
proíbe a Festa dos Tolos nas igrejas francesas e refere-se a proibições semelhantes, em
datas anteriores, pelo Cardeal Pierre. O Sínodo de Cahors (1206) ameaça com
excomunhão as pessoas que dançam dentro ou em frente às igrejas e em 1207 o Papa
Inocêncio III investe contra a Festa dos Tolos e a indecência de jogos de padres e
diáconos.
A preocupação com a dança em cerimônias religiosas dentro da igreja, como
questão do corpo, é explicitada de modo mais grave no interdito do Concílio de
Avignon, em 1209, onde se decreta a impossibilidade de durante as vigílias dos santos
haverem espetáculos de danças e de carolas17. Percebemos, portanto que:
As autoridades da Igreja sustentaram uma luta desesperada, primeiro para
garantir a compostura na dança e depois, perdida essa batalha para abolir a
dança de vez. Século após século, bispos e concílios baixavam decretos,
advertindo contra as variadas formas de danças que se executavam dentro e
nos adros das igrejas. Mas elas perduravam. Por fim, em 1298, o Concílio de
Würzburg declarou-as grave pecado (COX, 1974: 56).
17
Carola é um nome feminino, do latim Chorea. Segundo Backman (1952), chorea significa uma dança
de roda, usualmente com som, comum de ser vista nos vasos da Antiguidade.
19
No entanto, esta interdição definitiva não extingue os costumes instaurados no
início da Igreja; os ritos pagãos, envolvidos às práticas eclesiásticas não são
abandonados simplesmente pela reação contrária dos seus primeiros incentivadores
(padres, bispos, papas) e continuam a participar da religião e cultura do povo apesar de
ao longo dos séculos seguirem-se proibições e interditos como o Sínodo de York (1377),
o Sínodo de Noyon (1389), o Concílio de Paris (1429), o Concílio de Narbonne (1551),
o Concílio de Lyons (1566-1567), declarações do Arcebispo de Cologne (1617) e do
Bispo de Barcelona (1753) entre inúmeras outras; nenhum único século se passa sem
uma proscrição realizar-se, donde apreendemos que a persistência popular nas
expressões de louvor caracterizadas pela Igreja como diabólicas, demoníacas e pagãs se
faz contínua. Isto porque:
Em muitos casos, os costumes e as crenças dos camponeses europeus
representam um estado de cultura mais arcaico do que aquele testemunhado
pela mitologia da Grécia clássica. É verdade que a maior parte das
populações rurais da Europa foi cristianizada há mais de um milênio. Mas
elas conseguiram integrar ao seu cristianismo uma grande parte de sua
herança religiosa pré-cristã, de uma antigüidade imemorial. Seria inexato
supor que, por esta razão, os camponeses da Europa não são cristãos. È
preciso, porém, reconhecer que a religiosidade deles não se reduz às formas
históricas do cristianismo (...); ao se cristianizarem, os agricultores europeus
integraram a sua nova fé a religião cósmica que conservavam desde a préhistória (ELIADE, 1992: 132).
Esta herança mítica dos tempos imemoriais fez com que as práticas de louvação
através do corpo adquirissem novas formatações e abordagens, porquanto:
Proscritos do santuário, os dançantes foram para a praça, para o adro da
igreja, e de volta para o cemitério. Acompanhavam ao lado das procissões, ou
tomavam até totalmente conta delas. Apareciam nas peregrinações.
Animavam os dias e festas dos santos. O culto com dança continuava
também em movimentos cristãos fora do alcance dos decretos conciliares, e
se mantém vivo até o presente (COX, 1974: 56).
Neste ínterim, as procissões assumem o espaço de diálogo entre a devoção e a
diversão, misturando em sua estrutura sagrado e profano e promovendo estratégias
conciliatórias entre fé e festa. Além disso, o fato de as procissões apresentarem-se como
ato de culto nas Escrituras Hebraicas18 auxilia a sua legitimidade como rito cristão,
possibilitando à Igreja a concessão de continuidade às manifestações, consideradas
18
Em 2 Samuel (6:3-5) encontramos Davi reunindo os melhores homens de Israel e partindo à Baala de
Judá para transportar a arca de Deus, no caminho os homens fazem festa, entusiasmados e cantam ao som
de cítaras, harpas, tamborins, pandeiros e marimbas; em 2 Crônicas (5:5-7) apreendemos o transporte da
arca e dos utensílios sagrados pelos sacerdotes levitas até o Debir do Templo; em Judite (15:12-16)
vemos o instante em que as mulheres israelitas organizam uma dança em honra de Judite, esta última
segue na frente de todos, dirigindo a dança das mulheres, e os israelitas seguem atrás, armados, coroados
e cantando hinos.
20
profanas, no exterior de suas dependências e, simultaneamente, no contexto de suas
práticas cerimoniais.
Nos primeiros séculos da Era Cristã torna-se comum, por isso, a reunião dos
Nazarenos – ainda no tempo das perseguições – para conduzir o corpo dos mártires até
o lugar do sepulcro, como encontramos descrito nas Atas dos Martírios de São Cipriano.
Haviam procissões organizadas como visitações aos sepulcros de São Pedro e São Paulo
em Roma e aos cemitérios dos mártires na Terra Santa. No Evangelho encontramos a
apoteótica procissão que foi a entrada de Jesus em Jerusalém descrita com entusiasmo
pelos evangelistas e referências históricas se seguem desde as mais remotas eras.
Ilustração 3: Giotto di Bondone – Cenas da Vida de Cristo: Entrada em Jerusalém (1304-1306)
Cappella Scrovegni (Arena Chapel), Pádua.
Daí, percebermos que a distinção entre rito pagão e cristão é pura visão de
espírito ou efeito da racionalização, quando os fenômenos religiosos escapam à lógica e
à razão vulgares; afinal:
O baptismo católico começou por ser um banho pagão; sacrificar animais à
divindade era o principal acto do culto exigido por Deus, hoje é um rito
pagão. A distinção cristão/pagão é como a que existe entre
religioso/supersticioso: é uma questão de fronteiras entre classes sociais e
cultura dominante e dominada: as práticas das elites e das camadas eruditas
são inteligentes, aceitáveis, religiosas e cristãs; as do povo – sobretudo as do
povo rural – são obscuras, supersticiosas e pagãs. Aliás “pagão” (et. paganus)
significa exactamente isso: “rural, habitante de uma aldeia”. Pagãos, com
conotação de “mau religioso”, foi o termo que os primeiros teólogos cristãos
das cidades do Império Romano criaram para designar os habitantes das
21
aldeias que eles encontraram muito arraigados aos seus costumes locais
(SANTO, 1988: 149-0).
As procissões, portanto, como heranças pré-cristãs, difundem-se – de modo
especial – pela Península Ibérica, onde a formação das monarquias ocorre após as
guerras de reconquista de seus territórios, dominados pelos árabes durante oito séculos;
tais dramatizações coletivas e em trânsito com dança e canto adquirem, neste período,
surpreendente dimensão coreográfica e cenográfica, de tal modo que o padre jesuíta e
historiador da dança Claude François Ménestrier denomina o seu desenvolvimento
como ballets ambulatoires.
Em sua obra Des Ballets Ancient et Modernes selon lês Règles du Théatre
(1682), ele aponta para a expansão do balé, presente em quase todos os tipos de
representação e refere-se aos cortejos portugueses e espanhóis.
Até mesmo nas cerimônias mais santas, na Espanha e em Portugal, são
admitidos, na Igreja e nas mais sérias e graves procissões (...) os portugueses
tem balés ambulatórios que se dançam nas ruas de uma vila, e vão em
diversos lugares, com maquinismos móveis e representações. Fazem-no em
festas de santo e nas solenidades maiores (Ménestrier apud MONTEIRO,
2002: 24-5).
Neste texto, portanto, datado de 1682, apreendemos que conquanto as relações
entre corpo-dança-religião tenham sido direcionadas para o espaço de ação das
procissões, estas ao revés de repelir, não se tornam suficientemente úteis para
exterminar a prática de se dançar, apesar dos interditos, dentro das igrejas. Em Portugal,
por isso, dois séculos antes das observações efetivadas por Ménestrier, encontramos
proibições realizadas pelo poder civil e eclesiástico em uma Constituição de Braga, no
ano de 1477 que, graças às considerações do padre jesuíta e historiador de balés,
podemos depreender não surtiram efeito.
Porém mandamos e estreitamente defendemos sob pena de descomunhom
que assi homens como molheres eclesiásticos e seculares que por cumprir sua
devoçam quiserem ter vigília em algua igreja ou mosteiro, capela ou irmida,
non sejam ousados fazer nem consentir nem dar lugar que hi se façam jogos,
momos, cantigas nem bailhos nem se vistam os homens em vestiduras de
molheres nem molheres vestiduras de homens, nem tangam sinos nem
campanas nem orgoões nem alaudes, guitarras, violas, pandeiros, nem outro
nenhum instrumento, nem façam outras desonestidades pelas quaes muitas
vezes provocam e fazem vir a ira de Deos sobre a terra (SASPORTES, 1979:
14-5).
Exatamente por esta época, um Portugal enriquecido e cheio de uma
efervescente cultura popular começa a expandir seus domínios por meio da rota
marítima comercial com as regiões orientais, o que resulta na conquista de novas terras.
O descobrimento de nosso país, produto da expansão marítima portuguesa, traz consigo
22
a implantação dessa comovente cultura popular ibérica, impregnada de ares medievais
em terras brasileiras. Ao que parece, a tradição de comemorar o louvor aos santos e
divinos chega aqui pelos jesuítas e devotos e é aplicada como instrumento de catequese
a população local. Cantar, tocar instrumentos, dançar e representar parecem as melhores
formas de comunicar as idéias de uma nova religião e retirá-los do paganismo, como
expressa Brandão (1985: 143):
Os missionários jesuítas costumavam a catequizar os índios com o recurso de
autos e dramas litúrgicos que faziam traduzir inclusive para a “língua geral”,
falada em quase toda a Colônia. De novo e com a liberdade que os interesses
da empresa conversionista torna necessária, índios e brancos e mais os negros
escravos, tempos depois, cantam, representam e dançam dentro das igrejas e
nas procissões.
Esta ação coletiva promove a integração entre setores subalternos e elevados da
sociedade, permitindo aos indivíduos colonizados participarem como agentes ativos das
celebrações públicas, favorecendo, desta maneira, tanto a fruição individual do lúdico,
do jogo e da brincadeira como a geração de sociabilidades festivas. A este respeito, José
Ramos19 esclarece:
A intromissão progressiva de representantes das camadas situadas abaixo da
dos detentores dos poderes político-econômico-administrativos locais em
cerimônias religiosas de caráter coletivo, dentro e fora das igrejas, tornou-se
possível pela herança medieval do cristianismo ocidental, que desde cedo
adotara a dramatização de episódios da história sagrada com fins de
propagação, às maiorias, dos princípios do Evangelho, através de exemplos.
O que havia ocorrido, pois, nos primeiros anos do Cristianismo na Europa
repete-se séculos depois em terras de domínio português. Com intuito de ensinar não
apenas os costumes civilizatórios, mas os valores religiosos que embasavam tais
costumes (aproveitando e fomentando nas igrejas a tendência à participação coletiva,
característica dos ritos pagãos) os padres jesuítas – emissários da Igreja – utilizam-se da
mímica, dos bailados, dos cantos e procissões como elementos de dominação e difusão
cultural.
Segundo Priore (1994), este tipo de celebração, na qual um desfile de fiéis
acompanha o pálio sob o qual segue o sacerdote, ou os andores, fora instituído no Brasil
desde o governo-geral de Tomé de Souza, quando chegaram aqui os primeiros jesuítas,
donde percebemos que o processo de deslocamento da dramatização ritual dos episódios
da história, das igrejas para as ruas, efetiva-se já no primeiro século da colonização.
Com o passar dos anos, porém, a partir das Visitações do Santo Ofício às terras
Brasileiras e à medida que portugueses vindos com o escopo de explorar a colônia aí se
19
Tinhorão, 2000: 67.
23
fixam, o que antes eram representações e cortejos andantes de jesuítas e índios começa a
se estruturar através do maior número de atores sociais da cultura popular portuguesa.
Percebendo, então, alguns abusos que começam a ocorrer com a mistura de colonos,
índios e tradições populares, a Igreja luta contra a tradição por ela inventada.
Aquilo mesmo que a Igreja introduzira e usara, seja para a catequese de
índios e negros, seja para um intolerante controle simbólico da ordem social,
passa a ser definido como prática profanadora, quando feito dentro e fora da
igreja, sem a presença e a direção do clero (BRANDÃO, 1985: 145).
Assim, apreendemos já no século XVII que o esforço pela moralização dos
costumes religiosos afasta a igreja de tais celebrações, legando-as ao povo. O Alto Clero
passa a admoestar as igrejas e seus fiéis incitando-os a não promoverem jogos, bailes ou
festas sob o princípio de que tais formas de crença e culto não celebram os ofícios, mas
pervertem os homens; as perseguições às atividades bailatórias no contexto religioso da
Igreja no Brasil prosseguem e no século XIX, como nos aponta o texto a seguir,
extraído de um bispo do Maranhão em 1858, ainda encontramos providências
eclesiásticas que condenem as folgas e divertimentos da devoção popular.
Condenei o uso de bailes de São Gonçalo, tão freqüentes por toda esta
ribeira, acreditando o povo que eles são não só coisa muito lícita, mas
agradável a Deus. Fiz-lhe ver que não há inimigos mais perigosos do que os
divertimentos noturnos, como essas danças imodestas, que obrigam a tantas
despesas ruinosas. Disse-lhes que tais bailes não são de São Gonçalo, mas do
diabo, e só próprios para perverter os costumes, e fazer-nos perder a salvação
eterna, lançando-nos no abismo do pecado (Azzi apud BRANDÃO, 1985:
145).
Este processo de romanização da igreja, que Dantas (1999) designa como o
esforço de conciliar a Igreja Brasileira com o Papado, possui como eixo principal a
manutenção da hierarquia eclesiástica, através da condenação sistemática dos modos de
devoção popular: cantos, mímicas, danças, músicas, etc. Mas, como ocorrido na Europa
Medieval, as tradições populares já se tinham apossado da estrutura social e não seria a
interferência do clero, com sua intolerância para com os modos de crença do povo, que
exterminaria o que já tomara o gosto e a forma de ser de seus habitantes.
Daí, depreendemos que ao condenar a operação religiosa popular e autônoma a
Igreja Católica contribui substancialmente à construção daquilo que reconhecemos
como Catolicismo Popular20.
20
O catolicismo popular compreende as mais diversas manifestações religiosas, sendo influenciado tanto
pelo catolicismo renovado (posterior ao Concílio de Trento, cujas reformas ortodoxas buscavam no
século XVIII, invalidar hábitos e costumes religiosos populares) quanto pelo catolicismo tradicional
(trazido pelos portugueses ao Brasil, no período colonial, que reforça a devoção aos santos e valoriza as
romarias, procissões e as ações de pessoas leigas como, por exemplo, as benzedeiras). Através do
catolicismo popular, o homem comum repõe a sua religiosidade, sem deixar de lado seus ritos, deuses,
24
Ao definir como legítimos apenas os seus símbolos, sua doutrina, suas
cerimônias litúrgicas e o ofício dos seus sacerdotes, ela [a Igreja] finalmente
constitui juridicamente um outro lado da vida religiosa católica. Aquele que,
sendo realizado à margem dos domínios diretos da Igreja, sempre teve um
poder de penetração e de reprodução de formas de religiosidade entre as
classes populares muito maior do que o da própria Igreja (BRANDÃO, 1985:
146).
Descortinando, portanto, a conversão à Igreja Católica podemos analisar que
muitas estruturas societárias continuam a praticar suas danças, cantos, versos e
dramatizações, que conquanto ligadas à comemoração de algum santo/a católico/a,
contém em si o sentido da tradição pagã: manifestações de fertilidade, relações de amor
e arcaísmos simbólicos. Isto se faz possível, apesar do contexto de proibições e
perseguições às práticas de devoção em diversão, por dois motivos principais: o
primeiro diz respeito à necessidade de ação e celebração dos agentes populares,
promotores destes rituais, e o segundo ao fato de que, as instituições possuem suas
regras e normas de conduta, todavia, são gerenciadas pelas pessoas, agentes que
constroem as instituições e estas possuem suas maneiras de vivê-las; deste modo:
Embora a Igreja defina suas posições através de documentos diversos ela não
se constitui num bloco monolítico onde todos seus agentes atuam do mesmo
modo e no mesmo ritmo. Há sempre uma margem de adequação das ordens
emanadas de Roma aos contextos diversos, que passa pela biografia dos
padres e sua inserção no meio em que atuam. Isto permite um certo poder de
barganha para o estabelecimento das várias alianças locais, deixando espaço
para que certos grupos de dança que são excluídos de algumas cidades
persistam em outras (DANTAS, 1999: 117).
Assim, os modos populares de representação coletiva da fé, apesar dos
freqüentes embates com a ideologia dominante, persistem na manutenção, articulação e
desenvolvimento de arranjos simbólicos e espaços sociais construídos para aquela
prática de devoção que se ampara em particularidades, especificidades e peculiaridades
próprias a determinadas situações e grupos sóciopolíticos que escapam à ordem comum
das coisas, ratificando, por este meio, os aspectos motivacionais da crença na força
coletiva e histórica das expressões religiosas e sensíveis em questão. A presença de
apologistas clericais às ações populares permite o estabelecimento de expressões míticas
distintas daquelas validadas pela Igreja, que dialogando com as formas de culto e ritual
produzem versões alternativas sobre fatos, dados, homens.
práticas e mitos, partes de um imaginário secularmente transmitido nas lendas e narrativas cotidianas.
Assim, o catolicismo popular é visto como o espaço das práticas religiosas de pessoas batizadas que se
professam católicas sem a presença da constelação sacramental, funcionando como uma variante do
catolicismo oficial, utilizado no processo de evangelização do mundo novo. O que o caracteriza é a
individualização das relações do homem com os seres sagrados, sobretudo com as almas e os Santos.
25
Estas versões alternativas que engendram espaços de religiosidade fértil entre as
dimensões do sagrado e do profano se organizam a seguir como histórias do santo
(clericais e populares), ambiências relacionadas ao perfil ontológico do beato
amarantino, cuja elucubração de ordem epistemológica pretende apreender os vínculos
existentes entre ambas as abordagens narrativas e perceber as propriedades e os valores
que se desdobram em tempos e espaços, fluxos e intensidades de louvor, como
dispositivos para a mistura entre o conteúdo religioso e as formas de diversão popular, a
partir do pensamento mítico que estrutura o ritual: na rua, no altar, no corpo e(m)
movimento.
26
1.2 - DEVOÇÃO E DIVERSÃO: HISTÓRIAS DO SANTO
Todo espaço de religiosidade e ação ritual estruturam substâncias míticas que
fornecem modelos para o comportamento humano e, por isso, conferem significado e
valor à existência; realidades culturais, extremamente complexas, tais substâncias
míticas ou mitos servem para revelar o sagrado e os modelos exemplares que o
sustentam como estandarte, alimentando os ritos e as atividades humanas a ele
relacionadas. A guisa de relato de um acontecimento sobrenatural, ou a maneira de uma
história de caráter sagrado, o mito fortalece a partir de suas bases o ciclo da
religiosidade e a manutenção periódica de suas causas, articulando-se como uma
realidade original que responde a necessidade religiosa, a aspirações morais, a
constrangimentos e imperativos de ordem social e, até, a exigências práticas; afinal:
(...) o mito exerce uma função indispensável: ele exprime, realça e codifica as
crenças; salvaguarda os princípios morais e impõe-os; garante a eficácia das
cerimónias rituais e fornece regras práticas para uso do homem. O mito é,
pois, um elemento essencial da civilização humana; longe de ser uma vã
fabulação, é, pelo contrário, uma realidade viva, à qual constantemente se
recorre; não é uma teoria abstracta nem uma ostentação de imagens, mas uma
verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática (ELIADE,
1963: 24).
O compartilhamento destes saberes-práticos reflete a estrutura e o conjunto de
relações sociais que garantem validade à modalidade do discurso mítico, tendo em vista
que nos revelam a natureza constitutiva do mito como uma formação de feixes de
relações significantes, porquanto, históricas e nos induzem a crer que “a substância do
mito não se encontra nem no estilo, nem na narração, nem na sintaxe, mas na história
que é relatada”21. Cada mito, neste sentido, narra modelos exemplares representativos
de uma ontologia sagrada e, deste modo, gera e/ou reatualiza agenciamentos
epistemológicos cujo escopo consiste em contribuir à manutenção histórica da santidade
do mundo, ou seja, o Cosmos.
A compreensão de que o mito tem por principal função cooperar, através de suas
narrativas, no processo de fixação dos modelos exemplares de todos os ritos e
atividades humanas relacionadas auxilia-nos, pois, a apreender o fato de que seus
aspectos circunscrevem-se à expressão de realidades que assumem o papel de apresentar
como um fenômeno sagrado (desde o Universo até seus fragmentos como um animal,
uma instituição, um comportamento humano) torna-se ocorrência entre os homens,
comunicando-os, relacionando-os e religando-os ao Mais Alto.
21
Lévi-Strauss, 1985: 242.
27
Nesta perspectiva, que corresponde aos vértices de comunicação, relação e união
com as divindades, os mitos substancializam traços característicos, atributos desta
triangulação, que os diferenciam de outras narrativas: 1) constituem uma história de atos
de seres sobrenaturais; 2) tal história é considerada absolutamente verdadeira, por tratar
de realidades ou do próprio sagrado; 3) referem-se à criação (aqui se entende valores,
comportamentos, hábitos nobres, etc.); 4) constituem um conhecimento que, por ser
modelar e referencial, deve ser vivido; 5) tornam-se vividos quando atualizados no
conjunto de práticas humanas através de uma verdadeira experiência religiosa.
Toda criação brota da plenitude. Os deuses criam por um excesso de poder,
por um transbordar de energia. A criação faz-se por um acréscimo de
substância ontológica. É por isso que o mito que conta essa ontofania
sagrada, a manifestação vitoriosa de uma plenitude de ser, torna-se o modelo
exemplar de todas as atividades humanas: só ele revela o real, o
superabundante, o eficaz (ELIADE, 1992: 82).
Ora, quando a Igreja formula um modelo exemplar de homem cujo caráter
(devoto, penitente, benévolo, casto, fraterno, amoroso, solícito e caridoso), torna-se
ideário de comunhão com o Divino cria-se aí uma utilização de categorias do
pensamento mítico onde a virtude (através da qual o homem torna-se sobre-humano), a
verdade (que consagra a narrativa como realidade), os valores (que fecundam e geram
comportamentos sublimados), o exemplo (que se caracteriza como conhecimento
modelar) e o exercício de atualização do modelo pelos devotos (como experiência
religiosa), tornam-se elementos incontestáveis porquanto reais. Assim, igualmente
ocorre quando a tradição oral ou os agentes da cultura popular produzem imaginários e
simbolismos que favorecem a espécies de comportamentos que rompem à ordem
normal e regulada das coisas, legitimando e justificando esta transformação, que se
desdobra em manifestação ritual, em atos de um ser (trans)humano, atualizando nesta
espécie de homem virtudes marcadas pela irreverência comportamental.
O pensamento mítico, neste sentido, organizado por um conjunto de versões
(eclesiais e populares) estrutura arquétipos que prolongam e completam as relações dos
homens com a vida (histórias, práticas, tempos, espaços, pessoas) alargando e
organizando através do binômio ordem-desordem possibilidades de articulação da fé, a
partir de dois eixos simbólicos distintos, pois enquanto que no primeiro encontramos
narrativas míticas configuradas como um corpo homogêneo e alinhavado de forma
ordenada, coerente e indivisível, no segundo eixo os mitos apresentam-se de maneira
desordenada ou fragmentada, assemelhando-se a tecidos de patchwork em que não
predominam a lógica, tampouco a coerência.
28
Com efeito, indagamos se o eixo desestruturado seria a forma arcaica e
primordial do mito, posteriormente organizada por clérigos e sacerdotes ou, se ao
contrário, esta forma fragmentada já seria o resultado de um longo processo de
deterioração e desorganização sofrido pela matéria mítica, inicialmente, coerente e
ordenada. No entretanto, o que nos interessa não é determinar a anterioridade ou a
posterioridade das variantes míticas, mas, sobretudo, perceber os mitos, compreender
suas estruturas e organizações, observar seus aspectos e funções, analisar e interpretar
seus mecanismos e processos, entendê-los, portanto, como fatos humanos, dentro de
uma perspectiva histórico-religiosa e, desta maneira, inferir os fenômenos míticos e as
abordagens rituais que assumem validade no culto a São Gonçalo de Amarante.
Neste contexto, identificamos o estabelecimento de duas formatações de
celebração que acabam por construir histórias, mitos e estruturas de lendas diferenciadas
que acordam cada qual com o conjunto de práticas rituais e formas de crenças com as
quais se afilia. No culto a São Gonçalo, por isso, apreendemos duas composições
históricas que visam engendrar um processo de reconhecimento do santo no mundo; a
primeira, produzida pela Igreja, trata de oficializar um discurso biográfico narrativo,
apresentando atributos da vida do bem aventurado que apontem aspectos motivacionais
para sua veneração entre os homens; a segunda elaborada pelos agentes populares,
busca compartilhar socialmente a própria crença, através de versos, cantos e
gestualidades capazes de construir e comunicar qualquer significado ritual e coletivo: de
um lado, logo, apreendemos um santo que veste batina, de outro aquele mesmo santo
vestindo calção.
A seguir, portanto, dispomo-nos a conhecer estas narrativas que favorecem a
representação do beato amarantino com inúmeras valências simbólicas; examinar
pontos de divergências e conciliações entre a história oficial e o conteúdo da tradição
oral; compreender as tramas que se tecem na urdidura do sagrado e do profano na
estrutura mítica que fomenta as formas de crença e louvor ao santo e, por fim,
depreender a indigência de se analisar a natureza expressiva do culto numa perspectiva
dialógica com o corpo.
29
1.2.1 - SANTO QUE VESTE BATINA
Neste momento, nos propomos a tratar da personagem mítica Gonçalo de
Amarante, partindo de trechos de sua hagiografia22 encontrados em uma evidência
documental datada de 1591 realizada no Mosteiro D’Anunciada em Lisboa, coletada por
Francisco Fernandes Galvão, no livro Sermões das Festas dos Santos. Neste
documento, apreendemos particularidades do caráter devocional do santo amarantino e
peculiaridades de sua formação eclesiástica, construídas desde a tenra idade como
estruturas sígnicas a corroborarem a predestinação daquele ser aos ofícios da Santa
Igreja.
Vede logo quãto se pode fiar, neste assento e officio do glorioso S. Gõçalo,
pois tudo o do mundo enjeitou, cuja meninice foy cõ tantos presagios do que
depois aviamos de ver, que lo dia de seu baptismo pós os olhos em Christo
crucificado, & depois naõ tomava o leyte da ama sem o ver; & aquelle
Senhor quem disse que da cruz avia de trazer todas as cousas a si, até a tenra
idade de S. Gõçalo atrahio de modo, que já então lhe roubava os olhos hum
Deos crucificado (...). O milhor de tudo o que possuya offereceo a Deos (...).
Em estado de clérigo foy este Sãto devoto & penitente, & tam casto (...) em
estado de Abbade tam amigo dos pobres, tanto amor as ovelhas: no de
peregrino, a devação com que foy visitar os lugares santos; no de frade tão
solicito de pregar, & ensinar23 (GALVÃO, 1613: 5).
Em linhas gerais, o texto nos habilita perceber que já o nascimento e a juventude
de Gonçalo testemunham sinais de santidade, sinais estes desenvolvidos ainda mais
após seu ingresso nos serviços sacerdotais: clérigo penitente e casto; abade com amor
fraternal aos pobres; peregrino devoto; frade solícito e generoso; etc. Estas virtudes não
são somente arranjos com os quais se decoram a história de uma pessoa, mas conceitos
graves e modelos exemplares de um mito que nos propõe seguimento.
Nascido na freguesia de Talgide, próxima às Caldas de Vizela, no ano de 1187,
Gonçalo ainda menino estuda rudimentos com um devoto sacerdote. Mais tarde
freqüenta a Escola Arquiepiscopal em Braga onde após a sua ordenação beneditina
recebe a mercê de zelar por uma paróquia rica na aldeia de São Paio de Riba-Vizela,
apesar de sua humildade e resistência. No entanto, o interesse e zelo fraternal que
Gonçalo nutre pelos pobres e deserdados subtraí a extensão de sua felicidade, afinal,
Gonçalo não se interessa por paroquianos ricos, roga, então a Virgem Maria solução
profícua e entendimento ante os seus problemas e, durante sua permanência em tais
22
Hagiografia consiste em um tipo de biografia que descreve a história de vida de santos, beatos e servos
de Deus. Nestes documentos, por isso, há maior preocupação em apresentar conteúdos da vida religiosa
do biografado do que o histórico dos fatos.
23
Na reprodução do texto encontramos problemas técnicos no que diz respeito à grafia de determinadas
palavras, que adaptamos à forma de uso contemporâneo.
30
sítios de serviço evangélico, compartilha toda a soma de proventos adquiridos com os
pobres.
Decorridos alguns anos de incessantes esforços para o bem temporal e espiritual
de seu rebanho, resolve viajar, a fim de conhecer os lugares santos da Palestina e visitar
os túmulos de São Pedro e São Paulo, em Roma, deixando um sobrinho como
substituto. Ao voltar alguns anos depois se desola com o estado de sua paróquia, mal
dirigida pelo seu parente, o qual, além de tudo, o maltrata quando por ele repreendido.
Neste entrecho, o dinheiro arrecadado para os pobres é usado para comprar bons
estábulos, cavalos e cães, seu sobrinho se torna homem faustoso e dissoluto,
despendendo, por isso, em festas, passatempos e folganças as rendas paroquiais; como o
sobrinho diz a todos que seu tio faleceu após seu retorno ninguém o reconhece devido
às transformações ocorridas em seu corpo pela ação do tempo e intempéries da longa
peregrinação de quatorze anos. Gonçalo é, então, expulso, após ser espancado
brutalmente pelo sobrinho ingrato, por uma matilha de cães, que às dentadas lhe afastam
da residência.
Aqui, apreende-se mais um elemento que sustenta, a nível mítico, o ritual de
devoção a São Gonçalo de Amarante: a luta contra o mal, encarnado na figura
representativa de seu sobrinho, que nos orienta à necessidade da defesa da moralidade
dos preceitos cristãos e a pureza e renúncia daqueles que abraçam o sacerdócio.
Banido pelo parente, Gonçalo resignado opta por se tornar ermitão e segue em
caminhada até chegar à região distante, denominada Amarante, onde se fixa dando
continuidade às visitas aos doentes e à evangelização dos aflitos, mas onde
principalmente se dedica às orações e jejuns. Sente, no entanto, necessidade de
encontrar um caminho mais seguro que o possibilite alcançar a Graça Eterna. Jejua uma
Quaresma inteira a pão e água e suplica, fervorosamente, a Nossa Senhora lhe permita a
benção da compreensão. Eis que Gonçalo recebe a aparição da Virgem concitando-o a
ingressar naquela Ordem que tinha o costume de começar o ofício com a “Ave Maria
Gratia Plena”, Gonçalo busca o Convento dos Dominicanos e aí ingressa.
Desejando cada vez mais se aperfeiçoar nas virtudes cristãs, suplicou à
Virgem Maria que lhe mostrasse o caminho para realizar sua aspiração.
Nossa Senhora lhe apareceu e o aconselhou a tomar o hábito de São
Domingos. Dirigindo-se para Guimarães, ali fez noviciado e, após a solene
profissão, pediu ao prior para voltar ao eremitério de Amarante, onde, com o
auxílio de um companheiro dominicano, prosseguiu sua vida evangélica e
caritativa (MEGALE, 2009: 114).
31
Lá, próximo ao local de estabelecimento de sua ermida situa-se o rio Tâmega,
cuja travessia é possível apenas pela presença de uma ponte construída em 106, pelo
Imperador Trajano (53-117); ante a necessidade coletiva, o sacerdote resolve edificar
nova ponte para facilitar o transporte de mercadorias de uma zona a outra e para esta
empreitada, que necessita de recursos pecuniários, conta com a caridade popular.
Muitos dos milagres que a ele são atribuídos aí se iniciam.
Em suas andanças arrecadando fundos para a construção da ponte, o
sacerdote amarantino pediu esmolas a um homem rico, mas boêmio.
Encontrando um momento de diversão, o homem deu-lhe um bilhete e disse
que fosse até a sua casa e o entregasse a sua mulher para receber a esmola. Lá
chegando, a esposa disse-lhe que o bilhete autorizava dar ao sacerdote o peso
do bilhete em trigo. Não se fazendo de rogado pediu que pesasse o bilhete e
que aceitaria a esmola mesmo sendo alguns grãos de trigo. A mulher pôs o
bilhete em uma balança e nem mesmo todo o trigo que havia no seu celeiro
equiparara-se ao peso da pequena folha de papel (FERNANDES, 2004: 38).
E prossegue:
De outra feita, durante os trabalhos na construção da ponte, deram ao
sacerdote uma junta de bois bravios. Com uma só ordem, o padre conseguiu
submetê-los ao trabalho como se fossem adestrados a anos. Sempre
vistoriando pessoalmente as obras quando o frade chegava à margem do rio e
chamava os peixes, esses corriam em cardumes saltando aos seus pés
(FERNANDES, 2004: 38).
Ainda durante as obras na ponte percebemos outros milagres: no intuito de evitar
o sobe e desce dos operários para obter água fresca, o bem-aventurado toca com o
bordão de abade em uma rocha e dali faz surgir uma fonte de água abundante. Além da
água, o padre toca outra pedra e de lá faz surgir uma fonte de vinho para alegrar e
fortalecer os trabalhadores. Em outra ocasião, muitos operários lutam para demover
uma enorme pedra que atrapalha o serviço geral, com uma só mão o santo remove a
pedra, segundo depoimento de alguns presentes, com a ajuda dos anjos. Faz-se mister
observar as relações estabelecidas entre tais estruturas sígnicas e a rede de conceitos que
tecem a zona ritual de louvor ao santo: a água é símbolo mítico que indica produção
maternal e instaura no mais profundo inconsciente individual e coletivo ideários de
origem, simbolismos de prosperidade, arquétipos de fertilidade e fecundidade à
numerosas culturas. As pedras e rochas, por sua vez, são elementos igualmente
associados às fórmulas de culto ancestral, de acordo com suas estruturas, viabilizam
relações com símbolos fálicos, ou quando arredondadas, com atributos maternais; em
Portugal, por exemplo, muitas rochas arredondadas ou furadas foram integradas, no
passado, ao culto de Maria – santa de devoção de Gonçalo.
32
Nos trechos hagiográficos inseridos nos Sermões dos Santos constatamos,
através da exposição elaborada por Galvão, dados que atestam o ingresso do padre a
Ordem Dominicana sob direção do beato Pedro Gonzáles, seu milagre ao gerar água e
vinho da pedra e o seu chamamento aos peixes.
He o glorioso S. Gonçalo hum ramalhete de todas as virtudes & todos os
estados tem que imitar nelle. Quem tem hum jardim a que está afeiçoado, se
vê hua planta fermosa em outro alheo cobiçaa muyto pera o seu; assim pera
aver toda a differença de arvores de ba fruito, neste jardim da ordem do
Patriarcha S. Domingos que a Virgem Nossa Senhora plantou na terra, do
qual ella he a guarda & protectora vendo no habito de Clérigo ao Glorioso S.
Gonçalo, planta fermosa, & de tãto preço, trouxeo pera este jardim da
Religião do Patriarcha S. Domingos, peraque cõ elle ficasse mais nobre &
engrandecida. Muy conhecido foy Moyses24 por as grandezas que fez com a
vara: mas o nosso Santo fez mais, porque elle tocou com a vara na pedra, &
tirou agoa: mas o gloriso S. Gonçalo agoa e vinho; & os proprios peixes lhe
obedecião de sorte que se lhe metião nas mãos, pêra ser sustentação de seus
officiaes, porque mais estimavão perder a vida com servir ao nosso Santo,
que possuila quietamente na agoa onde estavão. Tem outra qualidade este
sãto muyto pera estimar que he Santo, & mais Portuguez. (GALVÃO, 1613:
5-6).
Tempos depois, de tais realizações, o sacerdote cai enfermo e se despede de sua
comunidade anunciando haver recebido uma revelação da Santíssima Virgem com
relação ao dia de sua morte. Morre o beato em 10 de janeiro de 1259, em seu humilde
leito de palha do eremitério, confortado pelo companheiro de hábito, em meio a visões
celestiais e prometendo a todos auxílio e cooperação mesmo após sua morte física.
Dizia S. Bernardo fallãdo com seu irmão Gerardo defunto; & assim o
glorioso S. Gonçalo disse, que mais nos avia de aproveitar morto que vivo.
Pois lembrovos glorioso Santo, que já que vivo cõ tantos milagres
ennobrecestes Portugal, agora mayores os fazeis, se então nos servistes de
exemplo, agora de intercessor pera nos alcançar a graça e gloria (GALVÃO,
1613: 6).
Aí, percebe-se que a revelação da data da morte consiste, outrossim, em base
para o mito de São Gonçalo de Amarante porquanto descreve a irrupção do sagrado,
atribuído à imagem da Virgem Maria, conferindo valores às preces e orações dos
sinceros devotos do Nazareno e ratificando o lugar dos justos e eleitos na cosmologia
cristã.
Mais tarde, em meados do século XIV, a ermida primitiva construída por São
Gonçalo e sob a qual seu corpo fora sepultado é ampliada em igreja e doada para o
Convento de São Domingos pelo Cardeal D. Henrique. Em 1543, o rei de Portugal, D.
João III, fervoroso devoto que toma a iniciativa de negociar em Roma a beatificação de
seu padroeiro, manda erguer suntuoso templo e convento, ainda hoje existentes, no local
24
Êxodo 17
33
da ermida – monumento histórico da cidade de Amarante – e em 1552 o monarca
encarrega D. Afonso de Lencastre, comendador da ordem do Cristo e embaixador
português em Roma para juntamente com frei Julião, representante do mosteiro
dominicano de Lisboa, tratar da beatificação de frei Gonçalo.
Devoção particular sim, mas não apenas isso pode explicar o esforço do rei
português no processo de canonização. Havia um contexto de disputa
internacional entre Portugal e Espanha em suas fases áureas no pós expansão
marítima. Tal disputa estendia-se em diversos campos e o “domínio” dos
santos não fugiu a isso: ‘... nos séculos barrocos, Portugal e Espanha
costumavam disputar entre si para saber qual dos reinos ostentava o maior
número de santos e beatos reconhecidos por Roma’ (FERNANDES, 2004:
39-0).
Apesar dos esforços portugueses, todavia, o processo encaminhado pelo rei D.
João III é perdido e em 1561 Dom Rodrigo Pinheiro, bispo do Porto, por incumbência
del Rei D. Sebastião, do Arcebispo de Braga e da Ordem de São Domingos, organiza
novo processo, então, aprovado pelo papa Pio IV que intitula, no mesmo ano, frei
Gonçalo beato; sua festa passa a ser então celebrada no dia de sua morte e autorizada
por todo o reino português. O seu culto espalha-se pelos domínios ultramarinos de
Portugal, chegando à Índia e ao Brasil como o confirma um longo e engenhoso sermão
do Padre António Vieira sobre S. Gonçalo. Todavia, apesar de todos os esforços, o
processo de canonização do beato amarantino não avança e, por conseguinte, este não se
torna santo sendo outorgado pela Igreja como bem-aventurado e reconhecido
oficialmente como Beato Gonçalo de Amarante.
Ilustração 4: Imagem de São Gonçalo de Amarante à Cultura Eclesial.
34
1.2.2 - SANTO QUE VESTE CALÇÃO
Após um breve histórico das relações entre corpo, dança e religião ao longo dos
tempos e da análise da hagiografia de São Gonçalo de Amarante em Portugal, partimos
para a interpretação da estrutura que o ritual apresenta no imaginário popular, onde
paralelo à história oficial, assentada nos dados hagiográficos da vida do frei
dominicano, encontramos os dados míticos que estruturam-se na oralidade popular,
remanescentes de tradições pagãs, cuja origem remonta tempos imemoriais em que o
povo carregado de emoções e entusiasmos, celebra os ciclos das estações relacionados
aos períodos produtivos da Natureza. A temática inicial do culto popular a São Gonçalo
de Amarante nasce, então, com a carga dramática baseada em ideários de prosperidade,
fertilidade e produtividade, de onde apreendemos a devoção principalmente feminina.
Em Portugal se realizam duas festas por ano em louvor do santo, em janeiro e
junho, períodos dos solstícios de inverno e verão europeus, o que remonta os rituais
pagãos da Antiguidade. Anteriormente celebrada, por todo o estado nacional em janeiro,
a festa foi transferida, em muitas regiões, para o mês de junho e integrada ao ciclo de
festas dos solstícios de verão. Somente em Vila Nova de Gaia e em Aveiro, ainda se
celebra a festa ao santo no período de abertura do ano.
A primeira festa efetuada no dia de sua morte ou no domingo próximo, 10 de
janeiro, tem a particularidade de conservar aspectos dos rituais que assinalam um tempo
de renovação e apontam relações entre os homens e o Tempo Cósmico, tendo-se em
vista que o Cosmos é concebido como uma unidade viva que nasce, se desenvolve e se
extingue no último dia do ano para renascer no dia do Ano Novo. Percebemos, pois,
uma correspondência cósmico-temporal cuja natureza faz-se religiosa; afinal, aí, o
Cosmos é identificável ao Tempo cósmico (o “Ano”) e tanto um como o outro são
realidades sagradas, criações divinas, suscetíveis de celebração. Durante a segunda festa
para São Gonçalo, percebemos a realização de uma romaria aonde as mulheres vendem
bolos – na forma de falo – chamados “testículos de São Gonçalo”. Assim, o ritual se
liga a questões de fertilidade feminina, se tornando um culto erótico, remontando
caracteres das tradições pagãs locais, afinal, “nesta festa ainda no princípio do século se
vendia pão e doce de formas bizarras, quando não arremeda a figura humana ou a de
animais, em reminiscências fálicas e ofiolátricas e bem pintalgadas de cores vivas”
(Mattos apud Guimarães, 1993: 152).
35
Observamos, portanto, nestes festejos, permanências e deslocamentos de
características da religiosidade pagã; entre os romanos, por exemplo, o mês de janeiro
(do latim janua, porta) era comemorado como Calendas Ianuarii (Calendas de Janeiro),
festejos com grupos populares a cantar e dançar ao som de tambores e outros
instrumentos até aos templos, em cada início de ano que integravam e envolviam os
homens a um imaginário que os ligavam a idéias de reinício, prosperidade e fertilidade;
por isso:
A festa de São Gonçalo (...) neste sentido, tem a particularidade de conservar
aspectos dos rituais que assinalam um tempo de renovação. A festa que
coincide pela via do calendário com a “festa de Jano”, evoca o Deus romano
que é representado com dois rostos que se opõem, um olhando para a frente e
outro olhando para trás. Se tivermos em mente esta representação, que aponta
para abertura, reinício das coisas e as habituais características da Idade de
Ouro atribuídas ao reinado de Jano, tais como a idéia de abundância talvez
possamos compreender melhor a associação entre São Gonçalo de Amarante
e elementos contidos no seu ritual de fertilidade tanto em Portugal, quanto no
Brasil (SANTOS, 2004: 226).
Inferimos, pois, que esta festa antiga de ascendência romana, ainda que com o
decorrer dos anos tenha sido cristianizada, mantém o seu caráter propiciatório, de
invocação do culto da fertilidade que se deve concretizar no ano que começa.
Apreendemos, ante esta perspectiva, que o mundo renova-se anualmente em relação ao
tempo gerando estados de vínculos espaços-temporais que estruturam uma imagem
cíclica, mapas circulares de proposição à renovação, uma unidade que se faz, por isso,
repetível através de processos de atualização. A vida Cósmica é imaginada sob a forma
de uma trajetória circular, identificando-se com a estrutura temporal do Ano, onde a
cada Ano Novo surge um Tempo “novo”, “puro” e “santo” porquanto ainda não
utilizado pela Humanidade.
Visto que o Ano Novo é uma reatualização da cosmogonia, implica uma
retomada do Tempo em seus primórdios, quer dizer, a restauração do Tempo
primordial, do Tempo “puro”, aquele que existia no momento da Criação. É
por essa razão que, por ocasião do Ano Novo, se procede a “purificação” e à
expulsão dos pecados, dos demônios ou simplesmente de um bode expiatório.
Pois não se trata apenas da cessação efetiva de um certo intervalo (como
imagina, por exemplo, um homem moderno), mas também da abolição do
ano passado e do tempo decorrido (ELIADE, 1992: 66-7).
Aí, encontramos, além da purificação, outros sentidos rituais para tais
celebrações: a combustão dos pecados, a anulação dos erros e equívocos perpetrados,
um esquecimento das faltas do indivíduo e da comunidade como um todo, ideários de
fertilidade e prosperidade, etc. Este estado de fenômenos relacionados à santificação dos
indivíduos está presente na produção hagiográfica eclesial que constrói a narrativa, dita
oficial, e fomenta a crença, e seus desdobramentos, em torno do santo amarantino.
36
Apesar de não descobrirmos dados oficiais que apontem para a origem
associativa do culto a São Gonçalo de Amarante às celebrações das Calendas de Janeiro,
sabemos que o aspecto atual da festa em Portugal faz-se como resultante da dispensa
elaborada por diversas ordens, no início do século XVI, a pescadores e mareantes para
que estes andassem com o objetivo de recolher esmolas destinadas aos custos da
canonização do santo. O desdobramento desta permissividade eclesial engendrou
processos que ainda hoje escandalizam as autoridades municipais e religiosas: a
lubricidade das danças; a grosseria das canções, geralmente obscenas; todas aquelas
pantomimas carregadas de simbologia erótica e, por fim, os trajes, que se prestavam
facilmente à imoralidade ou, pelo menos, a brincadeiras grosseiras.
Assim, na festa em Aveiro, como meio de pagar promessas ou encomendar
alguma graça, lançam-se cavacas doces (bolos secos feitos de claras de ovos, farinha de
trigo e cobertos de açúcar) do cimo da capela de São Gonçalinho e estas são guardadas
durante o ano como símbolo de proteção ou fertilidade. A cada badalada do sino, a
gente da cidade corre para apanhar os doces com redes, chapéus, guarda-chuvas
invertidos, etc. Tal festividade é marcada pelo pagamento de promessas ao santo, onde
os fiéis agradecem o seu poder de cura às doenças ósseas (mal comum entre os
trabalhadores do mar) e à resolução dos problemas relacionados à união conjugal. Há
ainda a dança dos mancos, isto é:
(...) uma dança de homens, pretensamente diminuídos dos membros, que
assim agradecem ao santo o tê-los curado de alguma enfermidade dos ossos.
Mas, igualmente as mulheres entram na dança que também se realiza no
terreiro, e não só as do povo, mas também... algumas senhoras e cavalheiros
da primeira sociedade aveirense (Santos Junior apud GUIMARÃES, 1993:
150).
Por sua vez, a festa de Vila Nova de Gaia, organiza-se em romaria, onde três
cortejos distintos percorrem ruas e vilas e se encontram, ao final da tarde, na igreja de
Mafamude: os Mareantes do Rio Douro, as Comissões Velha e Nova de Rasa. Com
pequenas variações a composição dos cortejos é esta: à frente o mordomo dos mareantes
com a cabeça do santo, a imagem de São Gonçalinho e o penitente vestido de São
Roque. A este grupo segue-se o alferes – o porta bandeira – e os maiorais; em volta
destes dois grupos, à frente durante as voltas à igreja ou atrás durante os trajetos
acompanham-nos os restantes festeiros. No final do dia os Mareantes do Rio Douro se
encontram no adro da Igreja de Mafamude com os dois grupos de festeiros da Rasa.
Cumpre-se, então, com sucesso o ritual de entrar na igreja com a cabeça do santo
voltada para a porta, rezar, pedir, louvar, agradecer e, por fim, depor oferendas no altar
37
do santo; o público presente irrompe numa explosão de alegria cantando que o santo a
eles pertence, enquanto lá fora, ao redor do templo, os tocadores dão três voltas,
seguidos pelas mulheres de todas as idades que bailam e cantam estribilhos. De regresso
à beira-rio, o grupo dos Mareantes desce pelas antigas ruas que ladeiam a Avenida da
República, para cumprimentar uma ou outra família de artífices gaienses, até que tudo
termina na varanda da sua sede, mostrando ao povo presente a satisfação da tradição
cumprida há várias gerações.
No Brasil, outras tantas estórias e práticas são contadas e elaboradas sobre o
santo, através das quais podemos perceber claramente que a hibridação dos valores
profanos e sagrados foi decisiva não só para a sobrevivência do culto popular entre os
europeus, como também para sua implementação em terras da América Portuguesa. Por
isso, neste ponto, partimos para a interpretação da estrutura que o ritual apresenta em
terras brasileiras a fim de melhor apreendermos aquilo que fundamenta o que hoje
denomina-se Dança de São Gonçalo de Amarante.
Entretanto, apesar de a presença do culto ao santo circunscrever-se em vários
estados (Alagoas, Bahia, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Pernambuco,
Piauí, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe) como uma das inúmeras manifestações
tradicionais brasileiras que compõe ao lado das Folias de Reis, Congadas, Cavalhadas,
Moçambiques e outros, o rico repertório do catolicismo popular no Brasil, pretendemos
observar suas características particulares em solos sergipanos.
Lá, onde se dança para o santo no povoado quilombola da Mussuca, a versão
mais contada pelos moradores sobre a história de São Gonçalo (que mistura dados
hagiográficos à tradição popular), é a de que se tratava de um sacerdote católico que a
certa altura da carreira religiosa resolveu se direcionar para missões mais populares.
Então, teria se tornado marujo e observando que nos portos das cidades portuguesas
havia sempre mulheres à espera dos marinheiros para vender-lhes o corpo, ele teria
improvisado instrumentos com bambus e madeira, e sempre no fim da tarde ia ao cais
onde tocava músicas e convidava as mulheres para dançar.
São Gonçalo é um santo
Ele já foi marinheiro
Vamo S’imbarcar com ele
Para o Rio de Janeiro25
25
Esta associação do beato marinheiro a sua vinda para o Rio de Janeiro provavelmente deve-se ao fato
de ter sido nesta capitania encontrado referências ao santo no século XVI. Segundo Fernandes (2004), a
devoção amarantina no Brasil-Colônia tem como referência mais antiga a construção de uma capela
38
Dada história constrói um caráter peculiar a Gonçalo, pois, relaciona diretamente
o santo enquanto enviado divino encarregado do cumprimento de missão com um ser –
típico da sociedade brasileira – dotado de uma necessidade da festa, dança e música.
Ilustração 5: Imagem de São Gonçalo de Amarante no Imaginário Popular
Segundo Cascudo (1984), São Gonçalo converte as mulheres através da dança,
como um estróina, acompanhando-as com danças e, simultaneamente, penitenciando-se,
para purgar as faltas, com pregos nos sapatos. As músicas cantadas contêm mensagens
de devoção a Deus, convertendo assim muitas prostitutas aos ideários cristãos,
promovendo casamentos e alianças matrimoniais.
São Gonçalo é um santo
Casamenteiro das veia
Por que não casar as moça?
Que mal lê fizero a ela?
Vê-se, aí, no canto popular da Mussuca preferência do santo à realização dos
casamentos das velhas, isto é, mulheres que já ultrapassaram a idade de ter filhos ou já
perderam a virgindade.
A essa tradição de casamenteiro das velhas, o cônego Eugênio Moreira
explicou que em vida e exercendo seu ministério sacerdotal, o padre Gonçalo
havia legitimado inúmeras ligações ilícitas na freguesia de Ovelha. E como
muitas dessas ligações eram de anos, o sacerdote passou a ser apelidado de
casamenteiro das velhas de Ovelha e depois passou para a tradição popular
como casamenteiro das velhas (FERNANDES, 2004: 70).
Por isso, acredita-se que Gonçalo seja um santo casamenteiro, cuja proteção as
mulheres invocam para dar início a uma vida matrimonial, a uma fase de prosperidade e
próxima à baía de Guanabara, posterior a 1579, quando Gonçalo Gonçalves, o Velho, a mandou erguer
em sua recém adquirida sesmaria.
39
fertilidade. A relação de São Gonçalo com a vitória sobre o mundo, o poder de
subrepujar com as virtudes o vício, e vencer com o bem o mal, são cantadas nos versos:
Vou pedir a Deus do Céu
Pra ele vir me ajudar
Pra vencer esta batalha
Esta batalha real
Existem ainda versos que aproximam, a guisa de sua hagiografia, o beato
amarantino da Virgem Maria, em relação de intimidade e afeição:
Vamo S’imbora meus marujo
Pra cidade da Bahia
São Gonçalo Navegante
Nossa Senhora da Guia26
Tais dados justificam, provavelmente, a popularidade do beato amarantino como
santo casamenteiro, padroeiro dos violeiros e da fertilidade humana, protetor dos
marinheiros e o quadro de expressões simbólicas que estruturam seu ritual no Brasil. A
festa de São Gonçalo, por isso, surge nas terras da América Portuguesa carregada de
sensualidade e heranças de um paganismo – tolerado pela Igreja Lusitana, até certo
grau, devido aos interesses de procriação à povoação do reino e controle das terras
brasileiras – que favorece a política imperialista no processo de expansão demográfica
e, por isso, a repercussão do ritual no Brasil-Colônia.
Os interesses de procriação abafaram não só os preconceitos morais como os
escrúpulos católicos de ortodoxia, e ao seu serviço vamos encontrar o
cristianismo que, em Portugal, tantas vezes tomou características quase
pagãos de culto fálico. Os grandes santos nacionais tornaram-se aqueles a
quem a imaginação do povo achou de atribuir milagrosa intervenção em
aproximar os sexos, em fecundar as mulheres, em proteger a maternidade:
Santo Antônio, São João, São Gonçalo de Amarante, São Pedro, o Menino
Deus, Nossa Senhora do Ó, da Boa Hora, da Conceição, do Bonsucesso, do
Bom Pastor. Nem os santos guerreiros como São Jorge, nem os protetores das
populações contra a peste como São Sebastião ou contra a fome como São
Onofre – santos cujos a popularidade corresponde a experiências
dolorosamente portuguesas – elevaram-se nunca a importância ou ao
prestígio dos outros patronos do amor humano e da fecundidade agrícola
(Freire apud FERNANDES, 2004: 73).
Uma das mais fortes referências históricas à festa realizada como louvor e
adoração a São Gonçalo de Amarante consiste em registro realizado por Le Gentil La
Barbinais, no século XVIII, mais precisamente ano de 1718, na Bahia. Em seu livro
Nouveau Voyage au tour du Monde27, o autor apresenta de modo descritivo a forma de
louvor coletiva dedicada ao santo amarantino.
26
Nossa Senhora da Guia consiste em um dos títulos atribuídos a Virgem Maria, neste caso acentua seu
caráter de padroeira dos navegantes, cujo culto se faz comum em Portugal.
27
Nova Viagem ao Redor do Mundo
40
Le 4. de fevrier le Viceroi nous invita à aller passer trois jours à une lieue de
la Ville, où l’on celebroit la Fête d’un Saint peu connu dans notre calendrier,
mais fort fameux dans ce Pays sous lê nom de San Gonzáles D’Amarante.
Nous partîmes en compagnie du Viceroi & de toute la cour. Nous trouvâmes
auprès de l’Eglise dédiée à Saint Gonzáles une multitude etonnante de gens
qui dansoient au son de leurs guitarres. Ces danseurs faifoient retentir la
voûtre de l’Eglise du nom de San Gonzáles d’Amarante. Si-tôt, que lê
Viceroi parut, ils l’enleverent & l’obligerent à danser & à sauter; exercice
violent qui ne convenoit gueres à fon age, ni à fon caractere: mais c’eût été
une impieté digne du feu, au sentiment de ce peuple, s’il avoit refusé de
rendre cet hommage au Saint dont on celebroit la fête. On nous fit aussi
danser bom gré malgré, & c’étoit une chose assez plaisante que de voir dans
une Eglise des prêtres, des femmes, des moines, des cavaliers, & des esclaves
dancer & sauter pêle-mêle, & crier à pleine tête viva San Gonzáles
d’Amarante. Ils prirent ensuite une petite statue du saint qui étoit sur l’Autel,
& se la jetterent a la tête les uns des autres: en un mot, ils firent ce que
faifoisent autrefois les payens dans un sacrifice particulier qu’ils avoient
coûtume de faire tous les ans à Hercules pendant lequel ils fouettoient &
accabloient d’injúres la Statue du demi-Dieu28 (LE GENTIL LA
BARBINAIS, 1728: 155-7).
Neste contexto, podemos perceber a estrutura da festa como um espaço de
divertimento e folia, gozação e brincadeira, permeada pela fé, intimidade (que se
conjuga a um estado de “desrespeito”) e devoção ao santo, que mistura as classes e as
hierarquias sociais mais distanciadas. As descrições de La Barbinais sobre a dança
praticada ao som de violões; as vibrações decorrentes destas danças e zoadas; a falta de
ordenação entre os saltos e cantos; o insulto à imagem do santo lançado de um lado para
o outro; atestam o transbordamento do sagrado e sua confluência ao profano.
Estas matizes, portanto, compõem o universo simbólico das festas ao santo
amarantino no Brasil, tonalizando-o como mais ou menos permissivo, mais ou menos
faustoso, mais ou menos lúdico, mais ou menos sensual, participando de uma realização
não cristalizada e possível de ser realizada em qualquer período do ano; afinal:
Há uma observação unânime entre todos os pesquisadores da Dança de São
Gonçalo no Nordeste ou no Centro Sul do país: mais do que quase todas as
outras, ela é uma dança votiva. Não se dança para São Gonçalo em um seu
28
Em quatro de fevereiro, o Vice-Rei nos convidou para passar três dias em um lugarejo onde as pessoas
celebrariam a Festa de um Santo pouco conhecido em nosso calendário, mas muito famoso neste país sob
o nome de São Gonçalo de Amarante. Partimos em companhia do Vice-Rei e toda a corte. Ao
aproximarmo-nos da igreja dedicada a São Gonçalo, percebemos uma multidão incrível de pessoas que
dançavam ao som de seus violões. Estes dançarinos faziam vibrar a abóbada da igreja de nome São
Gonçalo de Amarante. Assim que perceberam a chegada do Vice-Rei cercaram-no e obrigaram-no a
dançar e saltar; exercício violento não adequado à sua idade nem à sua posição: mas, aos olhos daquele
povo, seria uma impiedade digna do inferno, se ele tivesse recusado render homenagem ao santo
comemorado na festa. Também nós tivemos que, a mal grado nosso, dançar e foi extremamente
interessante ver dentro de uma mesma igreja padres, mulheres, monges, cavaleiros e escravos dançarem e
saltarem de modo tão desordenado, gritando de corpo e alma, Viva a São Gonçalo de Amarante. Eles,
então, pegaram uma pequena estátua do santo que estava no altar e começaram a lançá-la sobre as
cabeças uns dos outros: em uma palavra, eles realizaram aquilo que, em tempos idos, os pagãos
costumavam fazer, todos os anos a Hercules durante o qual eles chicoteavam e insultavam a estátua do
semi-deus (Tradução Minha).
41
dia de festa, como entre negros para São Benedito ou para Nossa Senhora do
Rosário; muitos devotos com quem conversei sequer sabia qual é o ‘dia de
São Gonçalo’. Também não se ‘encosta’ a dança em outras festas. Como em
Minas, Goiás e São Paulo, grupos de congos e moçambiques fazem durante
festas ao Divino Espírito Santo. Fora do período da Quaresma, dança-se para
São Gonçalo em qualquer noite, com preferência pela de sábado. A função29
sempre é feita a pedido de um devoto promesseiro que com o propósito de
salvar sua dívida – pessoal ou herdada – entra em contato com uma equipe de
folgazões, define com ela uma data, promove a dança e arca com os gastos do
transporte dos folgazões, da decoração do local da dança e da alimentação
dos dançadores por uma noite (BRANDÃO, 2001: 197).
Ilustração 6: Desenho baseado na descrição do viajante francês La Barbinais.
Assim, compreendemos que a Dança de São Gonçalo determina-se por um
grupo precatório que saí, essencialmente para cumprimento de promessas; neste
contexto, a ausência de fixação de um calendário religioso rigoroso torna todos os
aspectos em motivos de celebração: desde o pagamento de promessas, a conjugação
com outras festas comunitárias, onde o santo amarantino compartilha as honrarias com
outras entidades, como em Festas de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e Senhor
da Cruz até as comemorações das fundações das cidades que levam o seu nome, como
ocorre em Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Minas
Gerais (mais o estado de Piauí que mudara o seu para Amarante, equivalente).
29
A Dança de São Gonçalo é também conhecida como folga ou função em algumas regiões do país.
42
Em verdade, o fato de não encontrarmos registros atuais sobre a realização de
festas para São Gonçalo se deve ao processo de romanização – anteriormente referido –
engendrado pelo esforço de padres e comunidades eclesiais no século XIX. Os diversos
documentos oficiais proibindo as festas religiosas no interior das igrejas fazem com que
estas desapareçam do calendário litúrgico, assumindo por vezes novos nomes e modos
de articulação, mas certamente permanecendo nas práticas rituais dos homens devotos
que distanciados das paróquias tornam-se sacerdotes violeiros, dançadores e
versejadores.
Por tais dados podemos perceber que, apesar de algumas referências
portuguesas, pois, persistirem na Dança da Mussuca, esta se apresenta como um rico
repertório singular ainda que (na verdade, justamente por ser) formado de matizes
culturais diversas. A proximidade dos devotos com o santo, a relação intimista que entre
eles é estabelecida proporciona a forma peculiar de culto (que escapa à ortodoxia oficial
que se busca com a canonização) que difunde o “Bem Aventurado Amarantino” como
signo de fé e festa.
Desse modo, o culto se estrutura como um ato de fé, uma devoção
profundamente enraizada, uma longa oração que se canta e dança coletivamente,
assumindo um papel de (re)união dos laços comunitários com o Divino. Os devotos,
que, indiferentes às definições dadas sobre o que fazem, sentem a necessidade de
dedicar um tempo de suas vidas à adoração do santo, através de saídas em grupo
cantando, comendo, brincando e trocando sorrisos e ofertas, são os atores sociais que
constroem sua fé a partir de uma reza que se dança.
43
2 - MUSSUCA: LUGAR DOS SANTOS
“Entrando na cidade, você
topará com um grupo de
profetas descendo do lugar
alto,
acompanhados
de
harpas, tamborins, flautas,
cítaras; eles estarão em
transe” (I Samuel. 10:5).
O estudo das relações entre corpo, dança e religião, o histórico das
comemorações associadas às representações míticas da figura de Gonçalo e a adoração
do santo estruturam o que no capítulo anterior denominamos Dança de São Gonçalo de
Amarante: um ato de prática social que integra aspectos da fé e(m) festa, aproximando
dimensões sensíveis das formas de representação ritual às abordagens de diversão
coletiva, fomentando sociabilidades festivas. Introdutório, porém, o primeiro capítulo
apenas apresenta o projeto aqui proposto de conhecer-se o ritual e as relações que ele
produz; segue-se daí, portanto, a necessidade de apresentarmos neste momento o campo
de pesquisa e atuação de nossas observações e análises delimitando e aprofundando,
deste modo, determinados alcances informativos.
A relevância dos parâmetros de estudo do campo de abrangência da investigação
proposta consiste, pois, em estratégia simultânea de análise dos processos de
permanência e mudança, continuidade e ruptura, conservação e superação, estabelecidos
pelo corpo social ao longo dos tempos e resultantes de conflitos, embates, produções e
interações culturais: arranjos de encontros entre memória e esquecimento; afinal:
Compreender a génese social de um campo, e apreender aquilo que faz a
necessidade específica da crença que o sustenta, do jogo de linguagem que
nele se joga, das coisas materiais e simbólicas em jogo que nele se geram, é
explicar, tornar necessário, subtrair ao absurdo do arbitrário e do nãomotivado os actos dos produtores e as obras por eles produzidas e não, como
geralmente se julga, reduzir ou destruir (BOURDIER, 2009: 69).
Ante esta perspectiva, o campo de pesquisa torna-se espaço material e simbólico
que integra os agentes sociais em processos de etnicidade e comunidade onde,
orientados para a produção de efeitos sociais, desenvolvem operações de propriedades
coletivas que visam determinar a representação que os outros venham a ter destas
propriedades e de seus portadores.
As lutas a respeito da identidade étnica ou regional, quer dizer, a respeito de
propriedades (estigmas ou emblemas) ligadas à origem através do lugar de
origem e dos sinais duradoiros que lhes são correlativos, como o sotaque, são
um caso particular das lutas das classificações, lutas pelo monopólio de fazer
ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de impor a definição
44
legítima das divisões do mundo social e, por este meio, de fazer e de desfazer
os grupos (BOURDIER, 2009: 113).
Percebemos, com isso, que a capacidade de determinação e imposição de
atributos quaisquer ao conjunto de grupos sociais realiza o sentido e o consenso sobre o
sentido e, em particular, sobre a identidade e a unidade do grupo, que fazem a realidade
da unidade e da identidade do grupo. Esta unidade gera entre os indivíduos princípios de
pertinência que tornam o espaço partilhado por eles em ato de eficácia, visibilidade e
manifestação para os outros, e para eles mesmos, daquilo que são, atestando, desse
modo, existência a coletividade que aspira à institucionalização. Assim “qualquer
enunciado sobre a região funciona como um argumento que contribui – tanto mais
largamente quanto mais largamente é reconhecido – para favorecer ou desfavorecer o
acesso da região ao reconhecimento e, por este meio, à existência” (BOURDIER, 2009:
113).
Assim, o sentido auto-declaratório da identificação étnica que se constrói a partir
do compartilhamento de saberes e fazeres em campo de atuação comum, ou relacionado
a princípios de pertencimento, articula-se como pressuposto daquilo que designamos
como territorialidade: estrutura de relações e significações comuns produzidas e
ratificadas por um dado grupo que co-habita o mesmo espaço territorial, onde a
ocupação coletiva vincula-se ao domínio e utilização de códigos básicos à reprodução e
(des)envolvimento do corpo social. A interação cognitiva e afetiva, espiritual e material,
individual e conjunta dos homens com os lugares pelos quais transitam, configura, pois,
mais que espacialidades, dinâmicas de vida que eclodem em sentidos, intuições,
significados, experiências, desejos e atos.
Observar o campo, como lugar fértil de manifestações humanas, instaura o
caráter do modus vivendi, em que podemos perceber marcas de vínculos entre o espaço
e a memória, o lugar e o homem, o altar e o santo; o uso e a circulação do espaço
simbolicamente (com)partilhado, resultante de táticas, estratégias e ações de conflitos,
embates, debates que envolvem diferentes indivíduos e aspectos cotidianos, revela-nos a
experiência dinâmica, complexa e difusa da vida social. Este modo de vida constitui-se
de associações nem sempre estáveis, histórias relativamente reconhecidas, vínculos de
sociabilidade e aspectos de afetividade que nos auxiliam perceber o encontro do caráter
da devoção e diversão em um ato de fé e(m) festa.
Apreender as representações do espaço como espaços de representação habilitanos, logo, a estabelecer relações às dimensões constitutivas do fenômeno ritual como
45
aquilo que se constrói no e pelo movimento através de táticas, ocasiões, usos e
apropriações que corroboram para o valor do conhecimento prático, sensível, comum.
Na verdade, a implicação do movimento redunda em formas-pensamento que ao
vincularem saber-fazer revelam relações entre o que é visível (a materialidade do
espaço) e aquilo que se faz invisível (a memória e o esquecimento) criando no ambiente
topografias de sentido ou poéticas do espaço.
Assim, compreendemos que a territorialidade fomenta, por seu caráter
intersubjetivo e pelas relações corpo e(m) espaço, campo propício à criação de
dispositivos artísticos cuja potência de expressão e força coletiva encontra-se na
convivialidade, ou seja, nos símbolos partilhados por uma série de memórias,
esquecimentos,
narrativas,
evocações,
plasticidades,
materialidades,
etc.,
que
transformam as experiências em conhecimento e os conhecimentos em experiência;
neste sentido, como afirma Maffesoli (2010), a experiência, seja ela qual for, encerra
uma potencialidade cognitiva.
As experiências do conhecimento e o conhecimento das experiências promovem
a integração e a colaboração dos indivíduos no grupo social aproximando-os, através do
compartilhamento de significados e usos que (in)formam a disposição de aderência ao
lugar, daquilo que podemos designar como tradição. A paisagem da pesquisa habilitanos, portanto, a partir da composição do lugar, a apreensão da conjugação de
reminiscências e olvidos ou permanências e mudanças que desdobram o conjunto da
ação ritual. A prática cotidiana, por isso, torna-se experiência compartida que orienta os
homens a organizarem estratégias e táticas que estruturam modos de saber, fazer, viver
comuns: a poética.
Baseada, tanto em relações de forças que servem de base a uma gestão de
pertencimento e relações com a exterioridade como em fenômenos que não promovem o
sentido de propriedade, fundamentando por seu não-lugar uma dependência do tempo –
afinal, como nos afirma Certeau (2008) o próprio é uma vitória do lugar sobre o tempo
– esta poética manifesta a relação entre local e global, privado e público, tradicional e
contemporâneo, expressando flutuações e soluções de continuidade entre as dimensões
geradoras de conflitos do espaço-tempo.
Aí, a estratégia reconhece e identifica especificidades de saber-fazer-viver que
sustentam e determinam o poder de conquistar para o grupo social um lugar próprio, um
poder que se estrutura como preliminar deste saber-fazer-viver e não apenas como seu
efeito ou atributo; a tática, por outro lado, é determinada pela ausência de poder, vale
46
pela pertinência que dá ao tempo, às circunstâncias, que o instante preciso de uma
intervenção transforma em situação favorável.
Sob este aspecto, a diferença entre umas e outras remete a duas opções
históricas em matéria de ação e segurança (opções que respondem aliás mais
a coerções que as possibilidades): as estratégias apontam para a resistência
que o estabelecimento de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas
apontam para uma hábil utilização do tempo nas ocasiões que apresenta e
também dos jogos que introduz nas fundações de um poder (CERTEAU,
2008: 102).
É exatamente por intermédio destas atuações de poder e resistência que a cultura
popular estabelece as matizes da religiosidade social que se articula como um quadro de
referência, através de metáforas e símbolos, ao conjunto de sentidos que estruturam o
modus vivendi coletivo.
Segundo Certeau (2008), tais práticas do espaço tecem condições determinantes
da vida social – usos culturais, modelos sociais e coeficientes pessoais – e expressam-se
por figuras de estilo que tanto estabelecem formações justapostas e elípticas quanto
ressemantizam os lugares vividos como presenças de ausências: onde aquilo que se
mostra designa aquilo que não é mais; por isso:
Os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados
roubados à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se
desdobrar mas que estão ali antes como histórias à espera e permanecem no
estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações enquistadas na dor
ou no prazer do corpo (CERTEAU, 2008: 189).
Aí, espaço e memória inspiram, através de um aglomerado de crenças,
materialidades e abstrações, maneiras de identificar, significar e atualizar sistemas e
representações sensíveis que constituem oposição à ordem estabelecida e ao estado de
fato. Os fragmentos das histórias, em formatações materiais e imateriais, estabelecem
uma estrutura residual que funciona à guisa de fator de sociabilidade, pois, ao
estabelecer um sentido simples e tradicional de vida, estabelece simultaneamente o
sentido do termo “co-existir”, gerando espaços e momentos que exprimem de forma
significante a intensidade do ser/estar com. Assim, o espaço articula-se como domínio
onde as representações socioculturais se desdobram, mas, sobretudo como ambiência
que difunde patrimônios culturais ao promover o reconhecimento da coletividade.
Reconhecendo, portanto, as relações estabelecidas entre o espaço social e o
conteúdo ritual e identificando-o como ponto enriquecedor aos estudos de caráter
antropológico, a seguir, propomo-nos contextualizar a formação histórica do campo de
abrangência teórica de nossa investigação: a região de Laranjeiras (o Vale do
Cotinguiba) e o povoado Mussuca (remanescente de quilombo), discutindo o processo
47
de formação de quilombos no Brasil, descrevendo o espaço social em que a
manifestação se desenvolve e ampliando, dessa maneira, as possibilidades de
relacionamentos entre bens materiais e imateriais. Em um segundo momento, desejamos
discutir as questões relacionadas à coletividade, etnicidade e pertencimento ao povoado
que legitima a Mussuca como: lugar dos Santos.
48
2.1 - EU VOU AGORA PRA TERRA DE CONGA VOU VER ANGOLA
HINO LARANJEIRENSE
Sob as asas do condor
Que desta terra é o emblema
Vamos cantar o poema
De nosso brio e valor!
De nosso brio e valor!
De nosso brio e valor!
Oh! Gênio da liberdade!
Misto de íris e arrebóis!
A tua luz nos invade,
Teu calor nos faz heróis!
Avante! Para o porvir!
É nosso grito de guerra!
Seja o destino da terra:
Não parar, sempre subir!
Não parar, sempre subir!
Não parar, sempre subir!
Aqui começa nossa incursão pelo campo de abrangência da pesquisa onde em
busca de significados e relações entre o espaço e ação ritual deliberamos investigar a
paisagem analisando, a partir dos dados históricos, os fios tênues que arranjam tensão e
elasticidade no encontro entre devoção e diversão na Dança de São Gonçalo de
Amarante. A poética do rito, portanto, encontra-se emaranhada na rede que tece a
história do lugar estruturando e vivificando aí o núcleo comum do imaginário coletivo e
da composição mítica que fomenta o ato de fé e(m) festa onde a terra articula-se como
solo da tradição e a cidade funciona como cenário e percurso do sagrado e do profano.
Eis Laranjeiras, cidade localizada a 23 quilômetros da atual capital sergipana
[Aracaju], com uma população de 26.903 habitantes30, dimensão de 162.538 km2, e
localidade que integra junto a outros seis municípios a região do Vale do Cotinguiba (a
30
Censo Populacional 2010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
49
saber, Carmópolis, General Maynard, Maruim, Riachuelo, Rosário do Catete e Santo
Amaro de Brotas), cujo povoamento data de 1594, quando da primeira doação das terras
aos donatários, após a vitória e conquista de Cristóvão de Barros sobre os índios em
1589.
Neste período abundam laranjeiras no local que viria a ser o da atual Cidade de
Laranjeiras, em território da antiga freguesia de Nossa Senhora do Socorro do Tomar da
Cotinguiba, e por isso, os primeiros habitantes da incipiente povoação ao construírem
por volta de 1606 um porto fluvial, chamam-no Porto de Laranjeiras: um porto que
garante amplo desenvolvimento ao comércio local até o ano de 1637, quando a
povoação de Laranjeiras sofre a ação devastadora do domínio holandês. Por isso,
somente após a guerra com os holandeses e a retirada e partida definitiva destes é que se
inicia um período que permite o estabelecimento humano de forma mais estável na
região.
Em este tempo, em conseqüência da vantajosa posição geográfica de
Laranjeiras, o seu sítio torna-se centro de colonização e evangelização; o Porto de
Laranjeiras faz retornar o progresso ao povoado que se reerguia com grande velocidade
depois da passagem dos holandeses. Em 1701, à margem esquerda do Riacho São
Pedro, os Padres da Companhia de Jesus constroem a primeira igreja com convento,
denominando-a de Retiro, provavelmente, por sua posição distanciada do porto. Como
segunda residência, de 1731 a 1734, os jesuítas constroem, a pequena distância da atual
Laranjeiras, sobre uma pequena colina, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição de
Comandaroba.
A esta época a povoação de Laranjeiras pertence à Freguesia de Nossa Senhora
do Socorro da Cotinguiba que não possuí povoados organizados como vilas, mas
distribuídos em seu todo por uma estrutura de fazendas mais ou menos afastadas umas
das outras. Entretanto, graças ao comércio ensejado pela presença do porto, Laranjeiras
passa por um período de desenvolvimento e crescimento que a eleva, em 7 de agosto de
1832, a condição de vila independente do território de Nossa Senhora do Socorro da
Cotinguiba. Certamente, esta alteração se dá não somente pelo aumento de volume do
comércio local estabelecido pela atuação do porto fluvial, mas também em decorrência
da grande influência política dos proprietários de terras e comerciantes da região que se
dirigem aos Ilustríssimos e Exímios Senhores Conselheiros da Província de Sergipe
d’El Rey solicitando-lhes que proponham ao Poder Executivo a criação da Vila de
Laranjeiras.
50
Entre as razões apresentadas destacam-se as seguintes: a povoação é a mais
populosa e possui o comércio mais fértil de toda a província (no ano de 1824, o
povoado crescera demograficamente 40% mais que em 1800, além de no século XIX
Laranjeiras consolidar-se como porto regional, desempenhando importante papel na
exportação e importação de produtos e como local da mais importante feira regional,
localizada então à beira do Cotinguiba) e dista da capital, a cidade de São Cristóvão, o
espaço de seis léguas por caminhos escabrosos, mal cultivados e cortados por rios
caudalosos como o Pitanga e Poxim, que em várias estações do ano com as suas
enchentes impedem o trânsito aos viajantes e, com isso, dos recursos que ficam retidos
na Câmara.
Assim, Laranjeiras consiste, na ocasião de 1824, em uma povoação, que apesar
de apresentar índices significativos de progresso, não possui a devida organização
política e social, ou seja, os mecanismos operacionais do poder público em
funcionamento, o que facilita o extravio de rendas públicas e garante a impunidade nos
delitos; cônscios dos prejuízos de toda ordem que tal estado de coisas causa ao povoado,
os laranjeirenses se articulam e se manifestam à favor da emancipação política de
Laranjeiras.
Além disso é da maior necessidade que se proponha a divisão da Freguesia
daquela Povoação com a antiga de N. S. do Socorro com as demarcações que
parecerem mais adequadas, e isto pelos motivos os mais palpáveis, e
salientes, e de imperiosa utilidade pública, que são: Primeiro – o não residir o
Paracho naquela Povoação, mas sim na do Socorro distante dela duas legua
por máus caminhos, e com um rio de permeio, e outros obstáculos, deixandoa ao desamparo sem um certo e efectivo sacerdote que administre o pasto
espiritual aos Freguezes ali residentes, sucedendo até morrerem alguns sem
os sacramentos da Igreja, vendo-se nas circunstâncias de assalariarem a um
Capelão para lhes dizer Missa em dias de preceito com grossas pensões
pecuniárias para não ficar a Capela existente nesses dias fechada aos Fiéis, o
que já tem sucedido. Segundo – porque de fógos da mesma Povoação, e
população imensa, que vive como segregada do grêmio da Igreja pelo
abandono do Pastor. Terceiro porque os Suppes, têm erecta a sua custa na
mesma Povoação a mais decente, e rica Capela com mui luzida Irmandade,
Instituição do Sacramento perene, com patrimônio suficiente, que pode servir
de matriz no caso de divisão (OLIVEIRA, 1981: 43).
Esta valiosa informação sobre Laranjeiras, concedida em documento oficial em
1824 pelo Governo Provincial de Sergipe a Dom Pedro I, solicitando a elevação da
povoação à categoria de vila, bastante eloqüente no que concerne à oportunidade desta
providencia solicitada ao Governo Imperial, habilita-nos apreender as relações
estabelecidas entre o piedoso e o profano, o sagrado e o secular, os vínculos imbricados
entre a autoridade eclesiástica e o poder civil na povoação. Neste contexto, a ausência
de um pároco que habite o povoado, o fato de alguns moradores falecerem sem os
51
sacramentos da Igreja, a edificação de rica capela pelos suppes adiciona-se ao
crescimento e prosperidade do povoado e à impraticabilidade de comunicação nos
períodos de inverno entre Laranjeiras e São Cristóvão, como fatores relevantes à
compreensão de que a emancipação se fazia indispensável.
Todavia, apesar da ampla articulação da elite local apenas em 1832 Laranjeiras é
elevada à categoria de vila, na província de Sergipe; o decreto de emancipação emitido
em 07 de agosto de 1832, durante o período da Regência, mas em nome de Dom Pedro
II diz:
Art 1.o Fica erigida em villa a povoação de Laranjeiras, e com ella creados
todos os lugares da governança, que lhe são inherentes, tendo um escrivão de
orphãos, e outro de geral, os quaes serão egualmente tabelliães de notas.
Art 2.o O districto será o que fica marcado como se segue: - Sahhirá da barra
do Poixim seguindo pelo rio Poixim-Mirim até sua nascença, e dahi
procurará pelo rumo mais recto o engenheiro do cajueiro de Joaquim José
Silva, e dahi o engenho do Solabro, deste a meter no rio Jacaracica, por este
abaixo até sua foz no rio Sergipe, e por abaixo até a sobredita barra do
Poixim (OLIVEIRA, 1981: 46).
Entretanto, apesar do povo de Laranjeiras haver reclamado, junto à criação da
vila, a produção de uma paróquia, somente em 06 de fevereiro de 1835 a Assembléia
Legislativa decreta a respectiva Lei, que em seu Artigo 4.o aponta que “fica creada
freguezia a capella do Santíssimo Coração de Jesus da povoação das Laranjeiras,
desmembrada da freguesia de N. Senhora do Socorro pela divisão do termo da sua villa”
(OLIVEIRA, 1981: 53-4). A paróquia, deste modo, tem como Igreja Matriz a do
Santíssimo Sacramento, primitiva capela que mal acomodava a décima parte do povo
nas missas conventuais e menos ainda nas festividades, e que apenas mais tarde seria
ampliada para o adequado desempenho de suas novas e importantes funções.
Em 1848 a vila de Laranjeiras é elevada à condição de cidade; a temporada de
dezesseis anos em que Laranjeiras permanece como vila, todavia, estabelece um período
marcado por ampla e intensa atividade econômica, social e política que fomenta a
expansão da forma urbana do lugar: organização e instalação da Câmara Municipal
[relocada no ano de 1850], a criação da Alfândega e da comarca de Laranjeiras,
contratação de iluminação pública, fundação de pequeno Hospital do Senhor do
Bomfim, etc.
Todo este crescimento faz com que em 1855 Laranjeiras torne-se objeto das
cogitações do Presidente Ignácio Barbosa para sede da capital da Província, o que não
se realiza por motivos políticos; contudo, conquanto não se tenha tornado capital,
Laranjeiras transforma-se, na época, no lugar mais importante de Sergipe, conservando
52
por longos anos sua hegemonia. Seu progresso ressoa para além das fronteiras da
província onde cercando o ajuntamento urbano, os engenhos e os prados aumentam,
largamente, os domínios da freguesia com terras favoráveis ao plantio da cana-deaçúcar.
Sergipe vivia do açúcar, mas a Província, por força do contrabando e de
consciente e interesseira negligência fazendária, não se beneficiava,
proporcionalmente, de significativa arrecadação de importação e exportação,
que era “uma das mais irregulares do Império”. Maria da Glória Santana de
Almeida cita a fala, em 1843, do Ministro da Fazenda Joaquim Francisco
Viana: “Se exporta 20 e tantas mil caixas de assucar, parte dellas he verdade
que vão para outras províncias mais allí há hoje casas inglezas estabelecidas
que exportão diretamente muito assucar para a Europa e todavia não sei se a
província rende 30 ou 40 contos, quando eu estou persuadido de que podia
exceder a sua renda muito mais de 100 contos todas às vezes que se faça a
fiscalização com a devida exatidão...” (FIGUEIREDO, 1977:22).
No relatório apresentado em 02 de julho de 1856, pelo Presidente da Província
de Sergipe, Doutor Salvador Correia de Sá e Benevides, à Assembléia Legislativa,
percebemos o panorama político, administrativo e social do município de Laranjeiras
naquela ocasião, ou seja, oito anos após ser elevada a posição de cidade.
Comprehende este município 73 engenhos; empregão-se seus habitantes á
cultura da canna e cereaes. O terreno em geral é fertil, e bem poderia ser que
se prestasse com vantagem a outra qualquer cultura, como a do café, chá, e
fructas, tanto indígenas, como exóticas; mas ou seja por ignorância, incúria, e
desleixo dos lavradores, ou porque toda a sua atenção esteja absorvida nos
interesses que promette a canna e na necessidade absoluta de mandioca e
cereas, o certo é que não cuidão de outra cultura e se algumas vezes o tentão
é em pequena escala, e imperfeitamente. Parte dos habitantes se emprega no
commercio, sendo a cidade de Larangeiras o ponto da província, onde elle
mais medra, e se desenvolve; outra parte emprega-se em officios mecânicos,
como pedreiros, carpinteiros, ferreiros, alfaiates, sapateiros, &c (...). Suas
principais necessidades são: uma prisão segura e commoda na cidade de
Larangeiras; um hospital de caridade, cujas proporções correspondão ao
tamanho, e população do lugar, o que não se obtem com o que existe, cujas
mesquinhas dimensões e recursos o inhibem a preencher o fim a que é
destinado; uma casa de mercado que abrigue a população que em numero
extraordinário concorre á feira da cidade, a qual tem lugar no meio da rua,
exposto o povo ao sol e chuva, e cercado de animaes que promiscuamente se
confundem amarrados, ou soltos occasionando confusão, susto, e tornando
immundo o lugar de tão grande reunião com grave detrimento das regras
prescritas á bem da salubridade pública31.
Aí, apreendemos a constante batalha da Câmara para a construção de cadeias, a
inauguração de hospital que atenda ao fluxo local, a casa de mercado para as atuações
da feira regional que se realiza, ainda hoje, em Laranjeiras, assim como a efetivação de
projetos de abastecimento de água, planos de calçamentos, etc. A emergência de um
hospital que atenda a demanda local é, certamente, conseqüência da grave epidemia de
31
Benevides, 1856: 34.
53
cólera-morbo que assola a província de Sergipe, entre os anos de 1855 a 1856, ocasião
em que a cidade de Laranjeiras apresenta os maiores índices de mortalidade.
Ilustração 7: Relatório com Índice de Mortalidade na Província causada pela Cólera-morbo
(Maroim, 1856: Mapa 7).
Concebemos também o quadro de serviços e as produções mais comuns na
cidade onde os engenhos de cana estabelecem número considerável dentro da economia
local, com mão de obra certamente escrava. A presença destes engenhos nos orienta,
como apontador de dados, a inferir que muito dos conjuntos de práticas sociais e saberes
da região são nestes espaços entrelaçados e estruturados; os engenhos funcionam como
aquele espaço onde sociabilidades são construídas e traços culturais mediados pelas
54
ações rituais, mas igualmente por ambiências de conflitos, poder e resistência:
contrastes e disputas entre permanência e ruptura.
A religião desempenha na sociedade laranjeirense um importante e ambivalente
espaço de continuidade e extrusão da ordem das coisas constituindo-se como
abordagem da cultura dominante no processo de manutenção de sua hegemonia –
porquanto através das irmandades incorporavam-se os negros escravos à comunidade da
fé católica e, com isso, mantinha-se e fomentava-se as ordens vigentes tendo-se em vista
que enquanto os aristocratas cultuavam a seus santos e santas nos altares domésticos, na
Igreja do Sagrado Coração de Jesus, sede da Irmandade do Santíssimo Sacramento, que
associava os ricos da região, os pobres e pretos congregavam-se na Irmandade de São
Benedito, sediada na igreja homônima, para cultuar seus patronos com festejos e
celebrações realizados no dia de Reis (06 de janeiro) com Cheganças, Cacumbis,
Maracatus, Taieiras, Danças a Santos e outras celebrações – e, simultaneamente, em
processo de transformação, pois, ao assimilarem e submeterem-se as relações de
dominação e submissão, os negros criavam espaço de articulação e enfrentamento,
através de solidariedades étnicas que incorporavam e subvertiam os valores do grupo
dominante: algumas vezes através do caráter de uma religião hibridizada e descontraída
com os fatores que alimentavam sua matriz original, outras vezes através da
estruturação de redutos de resistências negras denominados quilombos ou mocambos32.
O processo de construção espacial da cidade ao longo da história, entretanto, não
contempla os grupos negros, o que induz-nos a observar e analisar os quilombos como
um dos catalisadores das questões sociais emergidas no sistema escravista sergipano e
nos possibilita entender, através de sua formação sócio-espacial, a cultura, a política, os
processos de discriminação e segregação espacial como elementos que ressaltam a
singularidade da experiência de um contexto de escravidão africana como algo
significativo do ponto de vista da territorialidade e etnicidade.
Assim, percebemos o escravo negro como um componente dinâmico que
atuando em estruturas de lutas, reajustes, negações e, por isso, de resistências e
transformações ao sistema, instaura o desgaste à ordem, aparentemente permanente das
coisas, consubstancializando vínculos de trabalho-propriedade, relações familiares,
sexuais, artísticas, políticas e culturais.
32
Segundo Campos (2005: 32), quilombo era uma designação utilizada entre os indivíduos de fora, os
negros preferiam chamar seus agrupamentos de cerca ou mocambo.
55
Aqui, apesar de reconhecermos que o quilombo – organização cuja primeira
definição que se tem é uma resposta do Rei de Portugal à consulta do Conselho
Ultramarino, datada de 02 de fevereiro de 1740, onde quilombo é designado por “toda
habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não
tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” – se estruture como ampla força
de resistência ao sistema escravocrata, convém observar que o quilombo não constitui
um coletivo insulado, povoado tão-somente por negros; para o seu nicho de atividades e
práticas dirigem-se inúmeros indivíduos tão explorados quanto os negros na sociedade
da época: fugitivos, criminosos, índios, mulatos, entre outros.
Muitas vezes, através desses grupos, eram informados da aproximação de
expedições punitivas contra eles. Em Sergipe, de forma especial, os
quilombolas eram auxiliados pelos escravos das senzalas que muitas vezes os
escondiam quando eles faziam incursões aos engenhos. Esta solidariedade
constante foi responsável pela prolongada vida destes quilombos os quais, à
aproximação dessas expedições já haviam se retirado do local, levando quase
sempre o produto das suas roças e mantimentos produzidos pela economia
quilombola (MOURA, 1981: 18).
Deste modo, depreendemos que a vitalidade dos quilombos sergipanos dá-se
pela aliança com os escravos das senzalas, pelo apoio e ligações com grupos de
marginalizados e pela proteção oferecida por alguns senhores aos cativos fugidos.
O Jornal de Aracaju de 5/2/1873 ao anunciar a captura de “escravos fugidos
nas matas dos engenhos de Periperi Novo e Velho”, comenta que “continuam
ainda ousados os quilômbolas, a despeito das sérias providências que se tem
tomado para extinguí-los. E que todos secundem a ação da autoridade por
bem da tranqüilidade dos proprietários da província” (...) E fazia votos de que
“em breve se realize a extinção dos quilombos, e para isso convém que todos
os proprietários sofredores auxiliem as autoridades nas diligências
necessárias”. Relatório do Chefe de Polícia Manoel José Espínola Junior
informa, no mesmo ano: “vem de longa época a existência dos quilombos em
diversos pontos da província. Reunidos em grupos em Laranjeiras, Divina
Pastora, Rosário, Capela e Japaratuba, são uma constante ameaça à segurança
individual e à propriedade (...). Para isso não pouco concorrem alguns
proprietários dos referidos municípios, os quais por um desleixo criminoso
não só deixam que esses escravos se acoitem em suas terras como também
não impedem que se relacionem com os que possuem nos seus engenhos, o
que é de grande proveito àqueles, que não podem ser apreendidos sem grande
dificuldade (FIGUEIREDO, 1977: 89-0).
Deste modo, depreendemos que a amizade, proteção e sentido de solidariedade
que quase todos os escravos de engenhos votam aos quilombolas tornam-se grandiosos
obstáculos à captura dos negros fugidos: os avisos dos informantes e os refúgios nas
próprias senzalas, no caso de qualquer emergência, possibilitam que os quilombolas
estabeleçam constante prevenção contra os ataques.
Espaços de transformação do regime econômico-social escravista, os quilombos
instauram em seus arranjos de produção e convivência novos regimes sociais que
56
inserem os negros em um panorama de cidadania e participação na economia local. Os
quilombos, portanto, orientam e organizam as comunidades negras à vivência de fatores
sociais que se encontravam desarranjados, proporcionando confluências entre a alegria e
a esperança, o entusiasmo e a gratidão, a festa e a fé, motivando os ideais de liberdade e
o reconhecimento da possibilidade da Vida.
PRINCIPAIS QUILOMBOS EM SERGIPE
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
Quilombo de Capela
Quilombo de Itabaiana
Quilombo de Divina Pastora
Quilombo de Itaporanga
Quilombo do Rosário
Quilombo do Engenho Brejo
Quilombo de Laranjeiras
Quilombo de Vila Nova
No entretanto, conquanto os quilombos e as rebeliões negras tenham, de um
modo geral, motivado espaços de autonomia e libertação na sociedade escravista, isto
não favorece a geração de diálogos e articulações entre a Casa Grande e a Senzala,
mesmo dentro de contextos abolicionistas, negros e brancos ocupam, por isso, espaços
paralelos de atuação pelo ideal da liberdade.
Joaquim Nabuco dizia textualmente: “A propaganda abolicionista, com
efeito, não se dirige aos escravos. Seria uma cobardia, inepta e criminosa, e,
além disso, um suicídio político para o partido abolicionista, incitar à
insurreição ou ao crime homens sem defesa e que a Lei de Linch, ou a justiça
pública, imediatamente haveria de esmagar”. E diz mais, justificando esta
posição oportunista: “Suicídio político porque a nação inteira, vendo uma
classe, e é essa a mais influente e poderosa do Estado, exposta à vingança
bárbara e selvagem de uma população mantida até hoje ao nível dos animais
cujas paixões, quebrando o freio do medo, não conheceriam limites no modo
de satisfazer-se, pensaria que a necessidade urgente era salvar a sociedade a
todo custo por um exemplo tremendo e este seria o sinal da morte do
abolicionismo” (MOURA, 1981: 79-0).
Aí, percebemos que a força política do abolicionismo era tão moderada quanto
conservadora o que diverge do caráter propositivo das manifestações negras, prenhes de
lutas e negações à ordem do sistema escravista. Somente na última etapa da escravidão,
avança uma modalidade de abolicionismo, que designamos como radical, imprimindo
caráter e conteúdo mais profundos do que aqueles recomendados por Nabuco,
congregando politicamente abolicionistas e escravos em casos de ataques, rebeliões e
formação de quilombos que entrecruzam uns e outros na mesma luta: o fim da
escravidão.
57
A notícia da Abolição, Lei no 3.353, de 13 de maio de 1888, chega a Sergipe
através de “participação telegráfica do Governo Imperial” ao Presidente
Olímpio Manoel dos Santos Vital, que expediu “comunicação a todos os
chefes de repartições, Juizes de direito, municipais e promotores, e em geral a
todas as autoridades da província, recomendando-lhes a pronta e imediata
execução da Lei”. Ela – adianta o Presidente – “não perturbou de leve a
ordem pública nesta Província. A maior parte dos escravos ficou nas
propriedades de seus antigos senhores, mediante a percepção de salário e
estou convencido que o trabalho da lavoura não sofrerá com a medida
adotada” (FIGUEIREDO, 1977: 92).
Apesar da esperança coletiva de que a abolição não prejudicaria a ordem pública
na província de Sergipe, em Laranjeiras as conseqüências da abolição da escravatura
transformam a vida na cidade, gerando graves embaraços à organização agrária; o
funcionamento dos engenhos, por exemplo, antes realizado com mão de obra
assalariada gera grandiosos déficits, com o fim do sistema escravocrata, para o regime
econômico da cidade. Assim, no fim do século XIX, a baixa produção nos engenhos e
na agroindústria demove inúmeros indivíduos do local em busca de centros mais
populosos e compensadores.
Com o passar do tempo, após a abolição da escravatura, os velhos canaviais se
transformam em pastagens para o gado bovino e os antigos engenhos são parcialmente
substituídos pelas usinas. Tal estado de coisas, todavia, qual a modernização da
agroindústria açucareira, chega à cidade em plano insuficiente para a manutenção e
circulação da antiga riqueza local, porquanto aos efeitos da libertação dos escravos
soma-se o fato da proximidade entre Laranjeiras e a capital (transferida para Aracaju
desde a segunda metade do século XIX, 1855) e a fundação da linha ferroviária; com a
crise econômica que se desdobra no século XX, Laranjeiras passa por um longo período
de evasão e êxodo.
A cidade conserva, porém, em diversos de seus povoados relações estabelecidas
entre os fatores promotores da hibridação cultural dos fenômenos que convergem à
devoção a diversão: conjugação de valores do sagrado e do profano e reunião de redes
sociais entre fé e festa.
O povoado Mussuca33, distante três quilômetros do centro do município de
Laranjeiras, é um destes espaços que se destacam na região do Vale do Cotinguiba por
apresentar traços que, a partir do elo da ancestralidade local, relacionam religiosidade e
33
Lima (2005) apresenta duas possibilidades para a origem da palavra Mussuca, na primeira o autor
observa a possibilidade de o termo ser um topônimo sergipano de origem africana e na segunda uma
ocorrência de variação do termo mussuco oriundo do vocábulo quicongo munsuko, língua banto falada
atualmente em Angola e Moçambique, que denomina no primeiro país um aldeamento cativo e no
segundo o tributo pago pelos colonos nativos por cada palhoça.
58
arte através do conjunto de manifestações culturais. O fato de ser uma comunidade
negra rural, considerada como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural
Palmares (2006) e pela coletividade (de modo geral) garante a posse da propriedade e
determinados direitos estabelecidos por lei, entretanto, não assegura o desenvolvimento
local que permanece alijado de tecnologias, atendimento médico, rede de esgoto,
segurança, espaços de lazer, etc.
O alto índice de analfabetismo no povoado e a realidade de trabalho local (que
hoje se distribuí entre usinas, extração de pedra e pesca) revelam que o grande número
de investimentos e ações do Governo Provincial destinados à região, em fins do século
XIX, onde constatamos contratações de professores e aluguéis de espaços que
funcionem como escolas para a educação pública de seus moradores não foi suficiente
para destituir o preconceito e a segregação social, permanecendo durante décadas os
mussuquenses apartados de uma possibilidade de ascensão social e econômica.
Localizado próximo aos antigos engenhos do Pilar, da Ilha, Pindoba e Gravatá, a
primeira vista, podemos supor que é contraditória a eleição de espaço tão contíguo à
área dos engenhos para a formação de quilombo; todavia, a opção pela área de intenso
fluxo justifica-se pela necessidade de articulação entre os escravos fugitivos e os
escravos cativos, aquilo que Gomes (1996) denomina de campo negro. Em verdade,
essa implantação estratégica em uma elevação recoberta pela densa vegetação de Mata
Atlântica,
fortemente
defensiva,
funciona
como
esconderijo,
favorecendo
simultaneamente a proximidade conveniente e o distanciamento indispensável dos
segmentos opressores.
Estas buscas por lugares remotos e pelas matas têm sido identificadas em alguns
trabalhos que abordam o tema como elementos que caracterizam o processo de
formação dos quilombos no Brasil já que a formação destes espaços era
preferencialmente efetivada em áreas cobertas por arvores. Lugares de difícil
acessibilidade as florestas foram os melhores aliados dos africanos e negros cativos
brasileiros visto que para os colonizadores o mato era um espaço impenetrável e
desconhecido: um inferno militar.
A este respeito Campos (2005: 32) complementa:
A localização de qualquer quilombo privilegiava principalmente os lugares
cujo acesso não fosse facilitado às forças da ordem imperial. A intenção era
fazer a defesa do território ou efetuar a fuga em condições vantajosas frente
ao adversário. Para isto, utilizavam estratégias que impediam o fim da
instituição dos quilombos.
59
Uma destas estratégias é a adoção de lugares altos que garantam visão
privilegiada, estratégica e panorâmica do entorno como se dá no povoado da Mussuca
donde podemos observar o antigo engenho Pilar, divisar o rio Cotinguiba e apreender
Aracaju. O sentido da visão, nesta perspectiva relaciona-se diretamente com a noção de
poder fundando uma tecnologia de propriedade cujo escopo consiste em promover a
resolução de questões de vigilância e instabilidade.
Em seu livro Mussuca: Fragmentos da África em Sergipe, Alberto Lima elabora
uma divisão de seis setores para analisar a área do povoado Mussuca, desde a entrada da
comunidade até os limites com o povoado vizinho denominado Cedro. Aí, observando o
processo de subdivisão da comunidade, o autor nos apresenta uma gruta designada
Pedra Furada onde, segundo depoimentos fornecidos por moradores, os negros e
escravos fugitivos refugiavam-se quando procurados pelos senhores nos mocambos.
Entretanto, antes de homogeneizar a perspectiva sobre a etnicidade local este dado traz
para a região polêmicas e discussões sobre as conseqüências históricas da formação
quilombola. Isto porque existem incongruências sobre este tema fomentadas e
apresentadas por inúmeros moradores que não se felicitam com a herança quilombola
atribuída ao local.
Esta negação ao histórico quilombola do local é natural quando pensamos que na
sociedade escravista quilombo era sinônimo de horror ou ação terrorista produzido por
grupo de malfeitores e bandidos insatisfeitos com a ordem, aparentemente, natural das
coisas; afinal, embora o quilombo se caracterizasse, de modo geral, como um grupo
defensivo:
(...) em determinados momentos, tinha necessidade de atacar a fim de
conseguir artigos e objetos sem os quais não poderia sobreviver,
especialmente pólvora e sal. Fazia igualmente sortidas para conseguir
mulheres e novos membros para o reduto. Convém notar, porém, que o
quilombo, além de não ser completamente defensivo, nunca foi, também uma
organização isolada. Para seu núcleo convergiam elementos igualmente
oprimidos na sociedade escravista: fugitivos do serviço militar, criminosos,
índios, mulatos e negros marginalizados. Tinham, igualmente, contato com
os grupos de bandoleiros e guerrilheiros que infestavam as estradas
(MOURA, 1981: 18).
Em verdade, o negro age, sem homiziar qualquer tendência criminógena contra o
sistema que o oprime e humilha o que o torna eixo para as questões relativas às
ilicitudes e violência, entretanto, a Província de Sergipe, em linhas gerais, apresenta
constantes deformações sociais, criminais e morais que inviabilizam a possibilidade de
situar exclusivamente no negro a fonte da criminalidade: a falta de fiscalização do
dinheiro público chega a ponto de não haver numerário para o pagamento do
60
funcionalismo; assassinatos são reproduzidos impunemente pela proteção que os
malfeitores recebem da elite da Província, potentados dispõe a seu sabor e impunemente
a vida e propriedade alheia, produzindo crimes contra a honra das famílias. A este
respeito, encontramos dados no depoimento de Antônio José da Silva Travassos, datado
de 1875:
“A Província era martirizada pelos assassinatos com tanta imoralidade que os
assassinos cruzavam os povoados, vilas e cidades, decidindo da sorte de seus
habitantes por tal forma que o povo ironicamente os denominava ‘chefes de
polícia’. Chefes de polícia porque “levavam o luto e a orfandade às famílias,
sem poder a justiça pública entregá-los à severidade dos castigos penais,
porque viviam sob a proteção dos poderosos”. (FIGUEIREDO, 1977: 86)
Neste caso o fato, que antes de mais nada, é indicativo, revela-nos as
contrariedades e conflitos que envolvem ideologicamente a comunidade e, com isso,
expõe o saber heterogêneo que caracteriza a memória. As dimensões qualitativamente
distintas que caracterizam a memória, no plano das representações sensíveis, não
indicam tão-somente oposições de contrariedade ou de contradição, porém, ensejos de
justaposição que correspondem às relações inversas de retorções e distorções de
discursos e dimensões heterônomas.
Aí, percebemos o problema da contrastividade onde a contradição sobre o grupo
étnico se faz a partir dos sinais de subtração desenvolvidos pela diferença com que os
próprios atores sociais formulam o entendimento sobre a origem comum. Os elementos
considerados socialmente significativos, por estabelecerem o processo de divisão das
terras, suas formas de uso e ocupação, a partir dos laços de parentesco não conciliam ou
convergem horizontes sobre a afiliação étnica e histórica do local, e o sentido dos
destinos compartilhados entre as individualidades, favorecendo desencontros simbólicos
no seio da coletividade.
Isto nos habilita, pois, não a pretender analisar aqui os aspectos de uma
população estritamente homogênea, nem os resíduos de ocupação temporal do espaço,
mas, sobretudo, examinar no povoado Mussuca práticas cotidianas de resistência de
modos de vida e territórios. Por isso, estas (con)tradições inserem o coletivo da
Mussuca naquilo que são: um grupo de homens e mulheres que estruturam em meio às
divergências de pensamento-ação, fomentando desde a estrutura seminal de formação
do povoado, as tramas justapostas entre o sagrado solene e o profano festivo.
61
2.2 - MELHOR SER DOS SANTOS QUE SER DO CÃO
Entre as tramas que estruturam o sagrado solene e o profano festivo nos
conhecimentos tradicionais, modos de fazer, rituais, festas, manifestações literárias,
musicais, plásticas cênicas e lúdicas, santuários, igrejas e espaços sociais que
congregam práticas culturais coletivas no povoado Mussuca reconhecemos redes que
favorecem a construção simbólica sobre o lugar exercendo forte influência sobre aquilo
que os homens organizam como vida comum e sociabilidades: a etnicidade.
Estas redes articulam e movimentam propriedades que compõem o saber e a
prática local, formulando em si conceitos e sentidos sobre a comunidade e seus
indivíduos, postulando atividade e contínuo retorno a origem e funcionando, deste
modo, como justificativa às realizações e experiências humanas.
O resultado epistemológico da atuação de tais redes promove a contextualização
e a justaposição de determinados fenômenos sociais responsáveis pela identificação e
representação dos grupos humanos; tais fenômenos cujos vértices representam 1) a
relação dos indivíduos de determinada comunidade entre si; 2) a relação dos indivíduos
de determinada comunidade com outros historicamente semelhantes; 3) a relação dos
indivíduos com realidades consideradas externas a eles constituem a tensão entre
especificidade, semelhança e contraste que caracteriza as sociedades contemporâneas.
A intensidade das diversas projeções, com vistas ao reconhecimento das
peculiaridades, contigüidades e referências entre as sociedades, busca relacionar a
cultura local à cultura global desalojando as identidades no tempo e nos espaços,
permitindo apreender as culturas populares não como permanências, mas processos
abertos e flexíveis à atuação do homem.
Como reconhecer o fluxo livre das atividades humanas, identificar a mobilidade
das formas pensamento-ação, descrever as articulações dos processos sociais, analisar o
percurso dos patrimônios e históricos das celebrações, interpretar crenças e hábitos
como ações simbólicas e reter o entendimento daquilo que designamos como popular na
estreita fixação do passado?
Faz-se mister examinarmos a cultura não como arranjo normativo e sim
dinâmico cujo caráter extingue aquele pensamento que concebe a existência de
sociedades auto-suficientes, insuladas do mundo contemporâneo ou que não tendem à
formação de novos ideários e práticas. Exatamente aí, as formas simbólicas
reconhecidas por Bourdieu (2009) como aspectos ativos do conhecimento, nos
62
fornecem o caráter integrador e dialético da etnicidade, cuja noção consiste não em
atestar a existência de grupos étnicos, mas em colocar tal existência como problemática,
questionando e perquirindo os processos responsáveis pela validação e pela definição de
tais grupos étnicos como sistemas de representação cultural.
Por isso, conquanto reconheçamos que a etnicidade fomenta na coletividade o
espírito de solidariedade através de forças que estabelecem lealdades e estimulam a
integração coletiva instaurando indicadores do reconhecimento étnico, o que aspiramos,
aqui, não é analisar tais indicadores, mas os contextos nos quais estes se articulam na
vida social, porquanto:
(...) a contextualização social de tais “indicadores” é uma forma mais útil de
compreender a maneira pela qual “indicam”, e o que significam do que forçálos em paradigmas esquemáticos ou despi-los, transformando-os em sistemas
abstratos de regulamentos, que, de alguma maneira os geraram. O que nos
permite falar desses indicadores em uma linguagem comum e de uma forma
útil, é o fato de que todos registram uma sensibilidade comunitária, ou seja,
que representam para todos que participam daquela comunidade, uma
disposição de espírito comum (GEERTZ, 2006: 23).
Tal estado de comunidade confere às ligações étnicas a força coercitiva derivada
do dever moral da solidariedade que se constrói no sentido de pertencimento ao grupo;
no reconhecimento das peculiaridades do grupo; nos vínculos elaborados ou
simbolicamente diferenciados por indicadores; nas ligações afetivas ou vínculos
baseados num passado comum; nas emoções e no sentimento do sagrado que lhes estão
associados, etc. Todavia, aí, não se restringe, pois em relações intersocietárias ela
provoca ações, reações e realizações diversas entre grupos promovendo dinâmicas e
transformações.
A etnicidade, assim, permite aos indivíduos situar seu espaço de representações
e identificações simbólicas em uma ordem social mais ampla promovendo, através da
distintividade humana, novas interpretações e significações donde depreendemos que a
etnicidade é um continuum caracterizado tanto pela variação interna quanto pela
mudança: que nos permite um entendimento dos trânsitos entre as formas de louvor ao
santo amarantino da promessa ao espetáculo.
Neste modelo a etnicidade é tratada como um sistema simbólico, ou seja, um
conjunto de idéias coercitivas sobre a distintividade entre si e os outros que
fornece uma base para a ação e a interpretação do outro. As categorias étnicas
são símbolos cujo conteúdo varia em função das situações, mas que formam
em conjunto um sistema de significações interligados. Nesta abordagem não
existem grupos étnicos definidos a priori, mas um conjunto de variável de
categorias étnicas que só possuem significações porque são definidas e
utilizadas por pessoas que possuem uma compreensão e expectativas comuns
em relação às diferenças fundamentais que separam as pessoas em sua
sociedade (POUTIGNAT, 1998: 110).
63
Descobrimos, logo, que antes de pensarmos em grupos étnicos se faz relevante
reflexionarmos acerca dos contextos interétnicos porque é na interação entre pessoas de
contextos culturais distintos que apreendemos a necessidade de afirmar, refutar ou
ignorar definições, conceitos e formas pensamento-ação que permitem a inteligibilidade
das situações e dos acontecimentos.
Assim, a etnicidade é aqui avaliada como um modelo de interação social da
identidade étnica que não supõe uma essência fixa ou caráter primordial ao grupo, mas,
auxilia-nos a examinar as percepções dos seus membros e o processo por eles utilizado
para que estas os distingam de outros grupos.
Nesta abordagem, a identidade étnica é definida como um quadro cognitivo
comum que constitui um guia para a orientação das relações sociais e a
interpretação das situações. Os símbolos e as marcas étnicas são referentes
cognitivos manipulados em finalidades pragmáticas de compreensão de
sentido comum e mobilizados pelos atores para validar seu comportamento
(POUTIGNAT, 1998: 115).
Daí, depreendermos que as peculiaridades culturais não constituem a essência da
etnicidade, mas aquelas porosidades que permitem formas de interação entre “nós” e
“não-nós”: sistema de classificação binário como sagrado/profano, preto/branco,
puro/impuro que no auxilia compreender a questão da construção da etnicidade no
povoado Mussuca a partir das relações históricas do lugar e os processos pelos quais o
ritual vem passando no rumo da espetacularização.
Toda relação binária estabelece o que Barth (1969) define como fronteira,
situações em que as identificações étnicas são mais operantes e os traços distintivos
reconhecidos, reafirmados e, portanto, marcados. Tais marcadores se desdobram desde
elementos de qualidade primária como aqueles que acompanham o indivíduo desde o
nascimento: as características físicas, o nome, a afiliação social e religiosa, até os
dispositivos
de
relações
intersocietárias,
como
situações
de
dominação
e
reconhecimento do principio da distinção. Por isso, não é a origem comum que constitui
traço característico da etnicidade, mas a crença na origem comum que substancializa e
naturaliza os atributos de determinados grupos.
Embora determinados atributos culturais (como a língua) estejam em melhor
posição para serem nisso utilizados, nenhum pode merecer o crédito de uma
validade universal e essencial para a identificação étnica. Nem o fato de
falarem uma mesma língua, nem a contigüidade territorial, nem a semelhança
dos costumes representam por si próprios atributos étnicos. Apenas se tornam
isso quando utilizados como marcadores de pertença por aqueles que
reivindicam uma origem comum34.
34
Ibidem: 163.
64
Desta maneira, a etnicidade estabelece um conhecimento comum à medida que
promove compreensão partilhada do mundo, numa reciprocidade de perspectivas
permitindo as rotinas da vida e as atividades organizadas em conjunto e,
simultaneamente, um conhecimento de embate, conflito e emergência que deriva da
aproximação com realidades externas e contrastantes.
Na Mussuca percebemos que o sentido de comunidade estabelece-se pela forma
que o povoado traça a distinção e elabora o aprofundamento da diferença entre “nós” e
“não-nós” através do sobrenome; o fato de a maioria dos moradores da Mussuca
possuírem o sobrenome “dos Santos” legitima no campo de ação simbólica e no quadro
das dinâmicas sociais uma comunidade de sentido, ou seja, que se fundamenta no
princípio do nome para estruturar a crença nos arcabouços sígnicos comuns como a
memória, o esquecimento, o conjunto de valores, etc.
Tal simbolismo parental estrutura o sentido de continuidade entre os homens e
as relações do sagrado fundando estreitas relações de dever e responsabilidade na
manutenção dos cultos, formas de louvor e adoração; estes arranjos de sentido são
transmitidos pela convivialidade que edifica pontes entre passado e presente pela
evocação da memória, dos gestos, das presenças ancestrais e míticas como significações
in-corporadas no conjunto de práticas rituais humanas.
A transcendência imanente, fenômeno reconhecido por Mafessoli (1998) como
aquilo que surge de uma dimensão além das individualidades e de um contexto de grupo
e coletividade determina a representação do sensível a nível coletivo e, por isso, instaura
uma linhagem que transcende o próprio grupo estabelecendo, numa perspectiva
imaginária, a comunidade da natureza afetiva ou o comum emotivo. Este estado de
coisas configura no reconhecimento da origem comum os pressupostos indispensáveis
para a nossa atual análise acerca dos fundamentos que alicerçam os ideais de
pertencimento na comunidade; porquanto:
É nos lugares que se forma a experiência humana, que se acumula, é
compartilhada, e que seu sentido é elaborado, assimilado e negociado. E é
nos lugares, e graças aos lugares, que os desejos se desenvolvem, ganham
forma, alimentados pela esperança de realizar-se (...) (BAUMAN: 2009: 35).
Ao caminharmos pela Mussuca ouvimos, muitas vezes, diversas pessoas dizerem
que o povoado é uma família só e ao observarmos que o sobrenome indicia este dado –
porquanto por ele podemos perceber que a maior parte da comunidade possui uma
alcunha comum que se designa por Santos – resolvemos inquirir alguns moradores
sobre o porquê do sobrenome coletivo, obtendo, dentre muitas, a seguinte resposta: “É
65
melhor ser dos Santos do que ser do Cão”, que instaura entendimentos claros sobre os
alicerces que orientam os vínculos traçados entre unidade familiar e religiosa no espaço
de convívio.
Aí, apreendemos que o espaço de convívio, por sua vez, torna-se uma “casa
cultual” onde o povoado além de significado cosmológico adquire papel ritual; afinal:
Instalar-se num território equivale, em ultima instância, a consagrá-lo.
Quando a instalação já não é provisória, como nos nômades, mas
permanente, como é o caso dos sedentários, implica uma decisão vital que
compromete a existência de toda a comunidade. “Situar-se” num lugar,
organizá-lo, habitá-lo – são ações que pressupõem uma escolha existencial: a
escolha do Universo que se está pronto a assumir ao “criá-lo”. Ora, esse
“Universo”, é sempre a réplica do Universo exemplar criado e habitado pelos
deuses: participa, portanto, da santidade da obra dos deuses (ELIADE, 1992:
32).
O lugar dos Santos, portanto, faz-se como ambiência das relações entre os
homens e o Ignoto, cuja expressão simbólica é rica e complexa: a teofania como
revelação e aparição “dos Santos” no espaço (con)sagra o lugar pelo fato de torná-lo em
terra santa e, deste modo, em região mais próxima de Deus. Entretanto, tal aspecto que
relaciona e integra as individualidades consigo, entre si, com o meio e com as forças
ocultas da Criação passa nos últimos anos por um processo de transformação e
consubstancialização que promove relações entre as comunidades locais e as sociedades
globais, repercutindo na relação entre arte, religião, mercado e promovendo alterações
entre as dinâmicas do ritual e do espetáculo.
Dentre o quadro de relações estabelecidas entre as comunidades locais e as
sociedades globais que estruturam regiões glocais percebemos que aquilo que antes se
edificava como vida transita ao domínio da representação, onde o espetáculo funciona
como a afirmação da aparência onde tudo que é vivido torna-se, aparentemente, negado
para se tornar visível. Os aspectos da visibilidade não prescindem elementos dramáticos
e plásticos que conquanto não correspondam ao cotidiano coletivo, ali estão como
figuração de realidades idealizadas e comprometidas com a ficção.
No entanto, ainda assim o espetáculo, aqui, não representa nada mais do que a
expansão dos mecanismos e dos sentidos da prática comum; seu campo de atuação
revela nestas regiões glocais relações entre vida social e mercado, porém, de modo que
a vida social e sua expressão não se artificializem de todo; há, por isso, nos atos
espetaculares populares, que poderíamos designar como espaços de transição, algo de
cultual que imprime uma dimensão renovada ao ritual, de acordo com as circunstâncias,
66
sem, todavia promover privações, automações e o pseudo-uso da vida. Em Mussuca,
por exemplo, o ato espetacular redimensiona em espaço-tempo a ação ritual, entretanto,
não a descaracteriza, permitindo e habilitando os atores sociais, através de ensejos de
improvisação e louvor, brincadeira e respeito, ambiências de comunhão com o sagrado
entre si.
Faz-se mister, porém, ressaltar que se entre os devotos brincantes a estrutura
ritual mantém a experiência sensível quando nos instantes de espetáculo não se dá o
mesmo com o público de observadores; porquanto, se na Mussuca, de modo geral, os
observadores da forma de louvor são sujeitos que, de uma maneira ou outra, se
encontram próximos das dinâmicas de significações do culto, em espaços externos à
comunidade os observadores se organizam enquanto público – não assistentes de uma
prática religiosa, mas espectadores de uma performance artística – promovendo, então, a
banalização acerca dos conteúdos de reverência mantenedores da experiência coletiva.
Assim:
Enquanto para os “visitantes”, pela natureza do caso, as realizações religiosas
só podem ser apresentações de uma perspectiva religiosa particular, podendo
ser apreciadas esteticamente ou dissecadas cientificamente, para os
participantes elas são, além disso, interpretações, materializações, realizações
da religião – não apenas modelos daquilo que acreditam, mas também
modelos para a crença nela. É nesses dramas plásticos que os homens
atingem sua fé, na medida em que a retratam (GEERTZ, 1989: 83).
Por isso, para um público desviado dos aspectos motivacionais do rito:
O espetáculo não canta os homens e as suas armas, mas as mercadorias e as
suas paixões. É nesta luta cega que cada mercadoria, ao seguir a sua paixão,
realiza, de fato, na inconsciência algo de mais elevado: o devir-mundo da
mercadoria, que é também o devir-mercadoria do mundo. Assim, por uma
astúcia da razão mercantil o particular da mercadoria gasta-se ao combater,
enquanto a forma-mercadoria tende para a sua realização absoluta
(DEBORD, 1997: 44).
O objeto prestigioso na ação ritual perde valor no ato espetacular, tornando-se
vulgar no instante em que se propõe a comunicar e interagir com escopos, públicos e
circunstâncias que divergem da realidade sensível inerente ao culto. Neste sentido, a
intencionalidade da obra, o contexto em que ela está inserida, as causas que a motivam e
os arcabouços que a fundamentam como estrutura de identificação coletiva perdem a
significância seminal ante a comunidade espectadora. Certamente, este fenômeno
subtrai o caráter peculiar de culto que as individualidades devotas engendram perante o
campo de forças eletro-magnética-afetivas propiciadas pelos crentes locais e pelo ato
genuíno de fé que estes desdobram como assistentes do ritual, no entretanto, cada um
67
dos devotos pode operar na dimensão intima a conciliação com as bases fundamentais
do ritual, possibilitando assim que, conquanto a recepção dos fenômenos artísticoreligiosos se dêem de forma artificial, eles desenvolvam o espaço do rito e(m)
espetáculo; afinal, a presença do sagrado no profano depende da capacidade de
transcendência, atemporalidade e do comportamento mítico do ser-devoto.
A seguir, pois, pretendemos analisar de modo mais minucioso as relações, aqui,
apresentadas: identificando e analisando processos de deslocamento e superposição
entre as essências do sagrado e do profano, observando e discutindo os aspectos
compositivos do ritual e do drama, apreendendo e analisando as estruturas de
manifestação do ator ritual e, por fim, examinando a gestualidade da dança entre as
tramas emaranhadas do jogo, da festa e do ritual.
68
2.3 - FESTA DE REIS E(M) LARANJEIRAS
Domingo, 10 de janeiro de 2010. Apesar do calor da cidade de Laranjeiras
abafar o som dos tambores, o relógio marca 09h00min anunciando-me, assim, que as
cerimônias preparadas para a manhã já começaram. Sigo, então, em direção à Igreja de
Nossa Senhora do Rosário e São Benedito (localizada na Rua José Prado Franco) para
visualizar, por mais um ano – desde 2007, a missa em louvor a Nossa Senhora do
Rosário, a São Benedito e também a coroação da Rainha das Taieiras, a Chegança e a
manifestação dos Cacumbis. Após o término da cerimônia me dirijo ao almoço e às
15h30min parto, novamente, rumo às ruas da cidade a fim de acompanhar a participação
do grupo de São Gonçalo na procissão festiva aos Santos Reis35. Certamente, segundo o
calendário católico esta data expressa tão somente as cerimônias referentes aos Reis,
tendo em vista que São Benedito e N. S. do Rosário devem ser festejados,
respectivamente em abril e em outubro. No entretanto, há um descompasso entre a data
destinada pela Igreja para a homenagem devida aos referidos santos e o momento em
que ela é realizada na cidade.
A propósito, Padre Diógenes Oliveira Silva, pároco da cidade de Laranjeiras
(Depoimento: 2010) comenta:
Na verdade quem sai na procissão são, justamente, os santos de devoção do
povo negro (...) santos negros: Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e o
certo seria também sair os Santos Reis, mas aqui eles carregam justamente as
imagens de outros santos, no caso: São Benedito, N. S. do Rosário e São
Gonçalo (...) são os que mais saem.
Tal desencontro entre a doutrina eclesiástica e a efetiva celebração aos santos na
cidade que aproxima estruturas simbólicas diversas e, de certo modo, explicita um
campo de crenças distintas consiste em uma herança da situação dos negros nas
confrarias religiosas (espécies de irmandades que congregavam os indivíduos
legitimando a hierarquia da sociedade escravista, separando em corporações religiosas
do Santíssimo Sacramento e São Francisco, os senhores, e em irmandades de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito, os escravos) e, portanto, deve ser analisada a partir
das relações de dominação, subjugação e interesses materiais aos quais os negros e suas
crenças estavam submetidos; afinal:
É no eixo entre sagrado e profano, em que interesses materiais e
aproximações simbólicas de tradições diversas se intercruzam, que se deve
entender o descompasso entre a prescrição eclesiástica e a efetiva celebração
35
As comemorações do Dia de Reis são, em Laranjeiras, vinculadas aos festejos de encerramento do
Encontro Cultural, por isso, ocorrem de modo geral em um domingo próximo ao dia 06 de janeiro.
69
dos santos na cidade com uma importante festa, cuja realização foi registrada
no século passado no mês de janeiro. A data da festa, ao que parece, atendia à
adequação das celebrações caras aos escravos às exigências do calendário
agrícola de uma sociedade escravocrata. Com seus muitos dias santificados, o
período natalino parecia mais apropriado à suspensão dos trabalhos nos
campos (...) A justificativa apresentada no Compromisso da Irmandade do
Rosário da cidade de Alagoas, antiga capital da Província vizinha, aprovado
em 1830, é significativo ao determinar que: “Em razão desta Confraria ser
composta em sua maioria de pretos cativos, a festa de Nossa Senhora do
Rosário que se celebra no primeiro outubro será transferida para dezembro”
(...) É importante ressaltar que é a condição dos pretos escravos que é
invocada para justificar o deslocamento da data da festa para o ciclo natalino
que medeia entre o fim de dezembro e o início de janeiro. Por outro lado, as
aproximações estabelecidas através das figuras dos reis que se intercruzam –
Reis de Congo ou do Rosário que são coroados, os três Reis Magos, um dos
quais preto, que se postam diante de Jesus Menino – fornecem o quadro
simbólico de suporte às celebrações dos santos patronos dos negros no dia 6
de janeiro (DANTAS, 1999: 120-1).
Em seu livro Registros dos Fatos Históricos de Laranjeiras, o Padre Filadelfo
Jônatas revela a continuidade das associações entre os Santos Negros e a Festa de Reis,
durante a década de 30, ao apresentar uma descrição da Igreja de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito; no entanto, na ocasião o cônego não aborda a presença da
dança em louvor ao santo amarantino, o que nos induz a crer que esta ainda não era
associada aos Festejos dos Reis.
Modesta, simples e ainda não concluída, tendo aos pés Laranjeiras e mais
abaixo o rio Contiguiba, acha-se assentada em pequena Colina a Igreja de
Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito, que tem 100 palmos de
comprimento, 40 de largura, uma sacristia, um púlpito, um côro e três altares
com as imagens de Nossa Senhora do Rosário, S. Gonçalo, Santo Antonio e
São Benedito de S. Filadelfo, assim chamado porque nasceu na aldeia de S.
Filadelfo, na Cecília. Os homens de cor concentraram todas as suas devoções
neste templo, onde nas célebres tradicionais festas de Reis mais de cem
pretos se apresentam fantasiados, representando os Reisados, Cheganças,
Congos, Taieiras, Mouramas, Marujadas e Maracatu, comemorando as
guerras entre os Cristãos e os Mouros, entoando cânticos à Virgem do
Rosário, Vencedora em Lepanto (OLIVEIRA, 2005: 59).
Inferimos, pois, que a participação da Dança de São Gonçalo na Festa de Reis é
um fenômeno recente, resultante das relações estabelecidas entre a política cultural, a
prefeitura e a Igreja (na década de 70) quando há um projeto de associação entre
folclore e turismo à promoção da cidade de Laranjeiras. Assim, apreendemos o porquê
de em registros sobre as práticas rituais na igreja não encontrarmos, até a década de 70,
na cidade de Laranjeiras, referências sobre o ritual a São Gonçalo.
Seu José Ranulfo Paulo dos Santos, mestre violeiro do grupo de São Gonçalo da
Mussuca e irmão de Dona Nadir, atesta esta hipótese em entrevista (2010) ao comentar
que o grupo de São Gonçalo brinca no Dia de Reis há não mais de quarenta anos:
O São Gonçalo brinca (...) na Festa de Reis, em Laranjeiras, tem (...) uns
quarenta anos (...) foi um prefeito que (...) tinha lá (...) que chamava Zé de
70
Ireno, ele andava lá pela Mussuca, que ele tinha fazenda e passava lá e via
nós fazendo a promessa pra São Gonçalo, fazendo a brincadeira lá na
Mussuca e lá ele convidou o finado meu pai pra ir a uma Festa de Reis em
Laranjeiras (...) aí nós foi presentar na Festa de Reis; aí ele botou o São
Gonçalo como a prefeitura responsável e nisso ficou: até hoje.
Dona Nadir, filha de Mestre Paulino e cantadora do grupo de São Gonçalo
(Depoimento: 2009) complementa:
Na época que entrou os político na Mussuca (...) tinha um prefeito que se
chamava Zé de Ireno e tinha o vice que era Zé Sobral. Aí, disse assim: “Seu
Paulino eu vô fazer um trabalho com o senhor que é pra vocês representar
este grupo nim Brasília” (tá com trinta cinco anos, você veja bem). Aí
acertou tudo quando foi em fevereiro, no dia 10 de fevereiro, aí o grupo se
aprontou – tava tudo certo, a passagem tudo certa já e foram pra Brasília. De
lá, quando voltou (...) eles botaram Grupo Folclórico (...) aí ficou (...) o São
Gonçalo ficou sempre viajando (...). Mas, este grupo de São Gonçalo só era
mesmo pra promessa.
Aí, percebemos a flexibilidade e plasticidade dos tempos sagrados a ressignificar
no universo cotidiano, através de agenciamentos políticos e interesses materiais, as
instâncias da fé e do rito engendrando, desse modo, diálogos entre diferentes sistemas
de devoção em as terras de Laranjeiras.
Laranjeiras, em uma das ruas e vielas que tramam sua tessitura, encontro os
sangonçalistas36 (reunidos em frente ao Centro de Convenções); conversamos sobre o
atraso de alguns figuras que ainda não haviam chegado e acerca do calor daquela tarde.
Percebo que eles estão nervosos, ansiosos ou enfadados, não saberia dizê-lo o porquê e
no exato momento em que inquiriria sobre tal estado de tensão, um sinal inicia a
procissão induzindo aos dançadores a correr para acompanhá-la nas posições originárias
e a mim igualmente a fazê-lo para acompanhá-los.
Seguimos em cortejo em direção a Praça Matriz (também conhecida como Praça
Dr. Heráclito Diniz Gonçalves) e neste instante percebo que outros integrantes surgem,
juntando-se ao grupo e estruturando a formação adequada aos casos de procissão:
mariposa e músicos à frente, patrão, figuras-adultos, patrão mirim e seus dançantes;
prosseguimos pela Rua José Prado Franco (também conhecida por Rua Direita) até a
Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
Observo que a mariposa traja uma saia branca, um bolero branco aberto sobre
uma blusa de mesma cor e porta uma faixa branco-prateada nos cabelos além de alguns
acessórios (anel, cordão, pulseira e brincos); os tocadores vestem blusa pólo azul e calça
branca ou preta; o patrão traja sua indumentária ritual habitual com sua caixa
36
Termo utilizado por Alceu Araújo para designar os devotos e participantes da dança na zona rural
paulista.
71
atravessada no ombro; os dançantes o seguem em numero de nove (provavelmente pelo
fato de alguém não ter conseguido chegar a tempo da saída da procissão) e, logo após, o
grupo mirim (com quatorze meninos dançantes) coordenado pelo patrão mirim.
Ambos os grupos cantam e dançam com o escopo de chegar a Igreja São
Benedito, porém, cada qual possui uma jornada37 diferente para o momento; enquanto
os adultos cantam “Quizamba”38, as crianças cantam “Suzanê”. Os grupos de dançantes
se deslocam, então, em fila saltando e requebrando-se; porém, ao alcançarmos a Praça
Augusto Maynard o grupo dos veteranos dá início a um desenvolvimento coreográfico
onde cada fila de dançantes realiza voltas que se encontram no meio e seguem à frente
(novamente em fila); os homens pulam e gingam estabelecendo aí um jogo de
negociação, conflito e sensualidade. “Brincando com o desequilíbrio, o corpo oscila nas
direções laterais, fazendo da ginga ‘uma zona intermediária e ambígua, situada entre o
lúdico e o combativo’” (COUTO, 2003: 64-5).
Ilustração 8: São Gonçalo da Mussuca em Procissão Festiva aos Santos Reis
Às vezes, quando os guias se encontram a meio caminho, retornam por trás da
roda (con)fundindo o olhar do espectador que busca o encontro das formas simples; tais
entrelaçamentos são motivos para (trans) ou (con)fusão de cores e arranjos que geram a
alegria, o riso espontâneo, a fé e(m) remelexo. Percebo que as crianças param suas
brincadeiras para observarem pais, tios, primos e desse modo, desenvolver aquela
37
Segundo Cascudo (1984: 365), as jornadas consistem em uma série de versos cantados sem interrupção,
estruturando-se, deste modo, como ato onde percebemos quadras decoradas e algumas improvisadas
alusivas ao culto.
38
Segundo Dona Nadir (Depoimento: 2010), a jornada Quizamba, não deve ser cantada senão em
procissões.
72
propriedade gestual promovendo a (in)corporação e assimilação daqueles saberes
coletivos encarnados na gestualidade mussuquense. Os meninos, entre seis e treze anos,
rejubilam-se e apreendo, então, que o processo de inserção das crianças no universo
ritual atende e revela-nos, antes de mais nada, a preocupação da comunidade e dos
devotos com o porvir das práticas e sistemas de fé da Mussuca e a implementação atual
de um projeto de sucessão dos atores sociais envolvidos no ritual.
A propósito Neilton Santana, (Depoimento: 2010) nos esclarece:
Aí, né, essa idéia que teve de botar os meninos pequenos para dançar o São
Gonçalo foi uma boa idéia (...) onde assim, não vai poder acabar, né?! (...)
Porque assim, eu já vim de mirim, aí veio meu primo, veio meu irmão (...) É
como se fosse uma escala (...) dos menores para os maiores. Isso aí vai até
quando não der mais porque isso vai facilitar o resgate do São Gonçalo (...) e
os que vêm depois aí, vai surgir mais forte (...) Quem era mirim vai ficar
jovem, quem era jovem vai ficar adulto (...) Para não morrer o São Gonçalo.
Seguimos pela Rua Direita, enquanto as crianças seguem caminhando em
silêncio, os veteranos (à frente) cantam a jornada “Vosso Reis Pediu uma Dança”. Ali,
nas proximidades do Museu Afro-brasileiro já se escuta as canções provenientes da
igreja, mas os dançantes persistem em suas manifestações de fé realizando pequenos
giros pela dimensão estreita da rua. Então cantam e dançam e somente quando estamos
em frente à igreja eles param; outros grupos, porém continuam em os quadros de
expansões de fé em festa, dentre os quais se destaca os Cacumbis. O relógio já aponta
16h40min quando chegamos à igreja, a canção eclesiástica reclama bênçãos para toda a
nação brasileira em tons maviosos, graciosos e singulares:
Protege o povo brasileiro
Que vem feliz te agradecer
Oh Nosso São Benedito
A fé não lhes deixe perder
Ilustração 9: Saída de Santos da Igreja São Benedito
73
Enquanto a música toca suave misturando-se aos sons graves emitidos pelos
instrumentos dos cacumbis, as imagens dos santos (S. Gonçalo Garcia, S. Benedito e N.
S. do Rosário, respectivamente) descem, em andores carregados por homens diversos, o
plano inclinado da igreja e fundam a hierofania na procissão. Os sangonçalistas seguem
atrás de N. S. do Rosário, a música cantada cessa e os sinos tocam fomentando a idéia
do tempo sagrado e da fundação de um novo mundo, representado pela cosmogonia39
do eterno retorno. Provavelmente, o grupo de sangonçalistas segue a Nossa Senhora do
Rosário por não ser São Gonçalo Garcia o santo da predileção comunitária, afinal
segundo, Marcos de Oliveira Souza, historiador e pesquisador de educação patrimonial
e religiosidade popular (Depoimento: 2009):
Existe o São Gonçalo de Amarante que é a devoção do São Gonçalo que
dança e existe São Gonçalo Garcia. São Gonçalo Garcia era filho de uma
portuguesa com um indiano. Não! A mãe dele era indiana e o pai era
português, por isso que ele tem esta cor morena (...) E São Gonçalo, ele foi
para o Japão e os franciscanos foram fazer uma missão e eles tavam até bem
a missão; mas você sabe: em toda organização sempre tem aquele que se
incomoda quando o trabalho de um sobressai, né?! E tavam se incomodando
e fizeram a cabeça do Imperador e o Imperador mandou pregá-lo na cruz
(você tá vendo o símbolo da cruz) e mesmo pregado na cruz (...) enfiavam
lanças nele (...) Aí, por isso que tem esta devoção. Como aqui a devoção é da
devoção africana, Nossa Senhora do Rosário sempre teve esta identidade com
os africanos, São Benedito era devoto de Nossa Senhora do Rosário e São
Gonçalo Garcia tinha uma devoção a Nossa Senhora do Rosário – a mãe de
Jesus, a medianeira de todas as graças. Por isso, todos os santos que vocês
vêem na festa de Reis sempre eles têm um caráter um pouco voltado à cor
africana (...) a devoção popular africana.
Uma banda de música toca então determinadas marchas de simbolismo cívico, e
todo o cortejo segue até o final da Rua Direita ou Rua José do Prado Franco (ponto do
Chico Preto, entre a Rua da Palha e a Rua Comandaroba); ambos os grupos de São
Gonçalo seguem silenciosos enquanto alguns outros grupos como o Samba de Pareia e
os Cacumbis retomam seus cantos. No ponto do Chico Preto, apreendo que os grupos
retornam em formato coreográfico (em simultaneidade, aqueles que vão à direção do
fim da rua fazem o percurso por fora e aqueles outros que retornam o fazem por dentro).
O carro de som toca canção religiosa (enquanto os grupos se arranjam pelos
meandros estreitos da cidade); sem deixar, contudo, de perceber os tambores e vozes, a
algazarra e a alegria dos homens e mulheres na cidade, posso apreender alguns versos
da música eclesiástica:
39
Aqui, aplicamos o termo para designar o modelo exemplar da Criação Divina, das ações e mitologias
dos santos e o processo de reatualização deste modelo pela ação simbólica dos homens.
74
Segura na mão de Deus (2X)
Pois ela, ela te sustentará
Não temas, segue adiante e não olhes para trás
Segura na mão de Deus e vai
A procissão, em seu retorno, passa novamente pela Igreja de Nossa Senhora do
Rosário e São Benedito, alcança a Praça Augusto Maynard e, a eito, prossegue rumo a
Praça da Matriz. Neste momento, a Igreja Matriz abre suas portas e toca seus sinos
congregando ali não apenas devotos, mas pesquisadores, turistas, rede autóctone, senão
pelos ideais religiosos pelo apelo à celebração.
Ilustração 10: Retorno da Procissão
A procissão segue pela Rua do Roque (ou Rua Sagrado Coração de Jesus) e
percorre a Praça Samuel de Oliveira e a Praça da República, porém aí percebo que a sua
estrutura faz-se diversa, há predomínio da serenidade e o silêncio envolve a ação
cerimonial, apreendo que após a passagem pela Matriz, quase todos silenciam.
A ordem da procissão apresenta-se, então, mais claramente: à frente um jovem
empunha uma cruz todo vestido de branco, seguido de dois outros jovens; atrás destes
algumas crianças vestidas de anjos seguem; a seguir, determinadas pessoas sustentam as
bandeiras do Brasil, de Sergipe, seguidas de outras três bandeiras. Após, provêm alguns
estandartes com imagens da Virgem do Rosário e em suas laterais os homens da
Chegança; a este quadro segue a figura do padre (promovendo orações, tal qual a Ave
Maria) e dos Cacumbis. Em seguida, vem a imagem dos santos: São Gonçalo Garcia,
São Benedito e Nossa Senhora do Rosário. Os devotos de São Gonçalo de Amarante
acompanham a Nossa Senhora, porém já não tão contíguos e concentrados em torno da
75
Virgem, mas próximos a todo o conjunto de pessoas que “guardam” o cortejo (turistas,
pesquisadores, comunidade local, etc.). Finalmente, a banda passa seguida das senhoras
do Samba de Pareia e alguns brinquedos e bonecos (en)cantados. A procissão prossegue
pela Rua João Ribeiro (ou Rua do Cangaleixo), transpõe a Rua Josino Menezes (antiga
Praça da Conceição) onde fica localizada a Igreja de Nossa Senhora da Conceição
(também conhecida como Igreja do Galo) e segue pela Rua Francisco Bragança, por
onde retorna à Rua Direita e à Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito: aí,
os sinos tornam a tocar para legitimar a entrada dos santos na igreja e a cerimônia tem
seu “fim”.
Agora são 17h40min. Leoziro dos Santos e José Neilton dos Santos – Nenel, pai
de Neilton Santana – (figuras adultos de São Gonçalo) me convidam enquanto os sinos
continuam a tocar para irmos ao bar bebermos uma cerveja, aceito o convite, apesar de
não beber alcoólicos e de temer perder alguma manifestação relevante da cerimônia; em
seguida, seguimos para residência de Dona Adelaide Ribeiro Vieira para promover uma
visita com dança, o relógio aponta 17h54min. A visita, nestas circunstâncias, consiste
em uma homenagem que se eleva ao plano dos afetos: só é realizada para pessoas
especiais e representativas ao grupo; no caso de Adelaide, a visita é uma saudação
especial ao Mestre Oscar Ribeiro (um dos maiores folcloristas de Laranjeiras, piloto da
Chegança Almirante Tamandaré, seu falecido e saudoso pai) que se estrutura como
tradição. A propósito, Adelaide (Depoimento: 2010) nos esclarece:
O São Gonçalo dança na minha casa por sermos filhas do Mestre Oscar e por
uma tradição que já vem acontecendo há muitos e muitos anos, não só o São
Gonçalo, mas todos os grupos como: Chegança, Taieiras, Cacumbi, Reisados,
etc. Nas outras residências são afinidades de amizade, mas aqui na minha
casa é uma tradição desde os tempos do meu saudoso pai.
Em a casa de Adelaide, os dançantes entoam três jornadas e apesar da casa estar
cheia de gente, eles desenham o espaço com suas coreografias cheias de sinuosidade,
volúpia e fé; primeiro realizam uma pequena introdução sem cantos apenas com os
instrumentos tocando, depois dançam “Nas Horas de Deus Amém”, “Suzanê” e a
“Chula”, após esta ultima jornada os homens se abaixam e ao finalizar a música Mestre
Sales reclama algumas vivas:
Viva a Deus do Céu!
E o coro responde: Viva!
Viva a São Gonçalo de Amarante – Viva!
Viva aos Tocadores – Viva!
Viva a Secretária de Cultura – Viva!
76
Infelizmente, a “Viva” à Secretária de Cultura como forma de saudar e estreitar
laços com uma convidada ilustre, representante da política cultural do estado, que ali
está, torna-se vão. À noite, ao percorrer as ruas da cidade de Laranjeiras, os mestres
dançantes não conseguem jantar com tranqüilidade, devido à precariedade da refeição
oferecida pela Prefeitura e não conseguem efetivar as obrigações relacionadas às
atividades do Encontro Cultural de Laranjeiras marcadas para o horário em que a noite
caí. Sem espaço para encenar e dramatizar suas manifestações, devido a deslocamentos
arbitrários realizados pela Secretária de Cultura de Laranjeiras que fornece o lugar das
representações populares para o “show” do Padre Antonio Maria, os grupos populares
vão se deslocando pelas ruas da cidade sem obter informações sobre as representações
que realizariam em aquele tempo.
Após, algumas horas de pé, que simbolizam nada mais nada menos do que a
falta de respeito e o descaso da Prefeitura da Cidade de Laranjeiras a todos os
pesquisadores congregados no evento, mas, mormente, aos mestres populares (que são
apenas valorizados na “capital do popular” em estruturas de simulacro) optamos por nos
retirar daquele recinto, todos os pesquisadores se comprometeram em enviar cartas e
artigos a congressos, jornais e revistas reclamando itens de valorização aos mestres
populares no evento que não sejam apenas seus nomes em programas que nem sequer se
cumprem. Por fim, seguimos com Dona Nadir (cantadora do Grupo de São Gonçalo)
para a rodoviária da cidade fizemos uma boa batucada como protesto e criamos nosso
espaço de queixas, ativismo e promoção da arte popular. Ao término de nossos jogos
em roda e de nossas exclamações sobre o absurdo descaso, ovacionamos o ônibus que
levaria os sangonçalistas e demais grupos para Mussuca gritando inúmeras vezes o
nome do povoado, batendo palmas e dando vivas à Cultura Popular!
77
3 - REGOZIJAI-VOS NA FÉ
“Louvem a Deus com dança
e tambor, louvem a ele com
cordas e flauta! Louvem, a
Deus com címbalos sonoros,
louvem a ele com címbalos
vibrantes!” (Salmo 150).
3.1 - DEVOÇÃO E DIVERSÃO: FÉ E(M) FESTA
Em seu livro, O Sagrado e o Profano: A Essência das Religiões, Mircea Eliade
(1992: 14) propõe que “a primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se
opõe ao profano”, apresentando, pois, ambas as categorias da experiência humana no
mundo como distintas e contrárias. Segundo o autor, a manifestação do sagrado – aqui
designada por hierofania, cujo conteúdo etimológico indica algo de sagrado que se nos
revela – instala o homo religiosus em um espaço não homogêneo, consistente,
qualitativamente diferenciado dos espaços cotidianos/utilitários e em um universo real à
medida que “potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e
eficácia. A oposição entre sagrado/profano traduz-se muitas vezes como uma oposição
entre real e irreal ou pseudo-real”40.
Desse modo, a experiência numinosa (do latim numen, “deus”) torna possível ao
homem a estruturação de um mundo onde a hierofania revela o real através da irrupção
do sagrado e produz uma rotura dos níveis cósmicos, ou seja, possibilidades de trânsito
entre a Terra e o Céu que suscitam a passagem de um modo de ser a outro, a comunhão
com o Ignoto e representam o desejo de viver em um Cosmos puro e santo, tal como era
no princípio, no instante mítico da Criação.
Neste sentido:
(...) o sagrado é o real por excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência,
fonte de vida e fecundidade. O desejo do homem religioso de viver no
sagrado equivale, de fato, ao seu desejo de se situar na realidade objetiva, de
não se deixar paralisar pela relatividade sem fim das experiências puramente
subjetivas, de viver num mundo real e eficiente – e não numa ilusão41.
A instalação do sagrado, portanto, em uma espécie de Cosmos estrutura-se como
forma indispensável aos arranjos da religiosidade que integra o homem à natureza
devocional, amparando-o, protegendo-o e afastando-o, periodicamente, dos aspectos
profanados da vida; a experiência do espaço tal como é vivida pelo homem religioso,
40
41
Eliade, 1992: 16.
Ibidem: 27.
78
por um homem apto a viver a sacralidade do mundo, assume um valor existencial que
implica orientação, aquisição de um ponto fixo e a fundação de um espaço
qualitativamente diferenciado dos demais; por isso, sobretudo, é que:
(...) a vida religiosa e a vida profana não podem coexistir no mesmo espaço.
Para que a primeira possa desenvolver-se, é preciso arranjar-lhe lugar
especial do qual a segunda seja excluída. Vem daí a instituição dos templos e
dos santuários: são parcelas de espaço reservadas às coisas e aos seres
sagrados e que lhes servem de moradias; porque não podem se estabelecer
em terra senão com a condição de se apropriar totalmente dela num raio
determinado42.
No entanto, o desejo do homem religioso de mover-se em um mundo numinoso,
sua necessidade de existir em um universo total e organizado, ou seja, em um Cosmos,
sua tentativa de permanência em estados supraterrestres colaboram à estruturação não
apenas do processo de sacralização do espaço, mas também na organização e inscrição
de conteúdos e significados religiosos à dimensão temporal. Assim, apreendemos que o
tempo também não é para o homem religioso, nem homogêneo, nem contínuo e, por
isso, não se situa na duração temporal ordinária, mas faz-se potencialmente
reatualizável e indefinidamente recuperável ou repetível43; portanto:
(...) a vida religiosa e a vida profana não podem coexistir nas mesmas
unidades de tempo. É, pois, necessário destinar à primeira dias ou períodos
determinados dos quais todas as ocupações profanas sejam eliminadas (...)
Não existe religião nem, por conseguinte sociedade que não tenha conhecido
e praticado essa divisão do tempo em duas partes estanques, alternando uma
com a outra conforme uma lei variável de acordo com os povos e as
civilizações; é até muito provável, como dissemos, que tenha sido a
necessidade dessa alternância que levou os homens a introduzirem, na
continuidade e na homogeneidade da duração, distinções e diferenciações que
ela não comporta naturalmente (DURKHEIM, 2008: 373).
Desta maneira, compreendemos que “o tempo sagrado é por sua própria natureza
reversível, no sentido em que é, propriamente falando, um Tempo mítico primordial
tornado presente”44 caracterizando-se, portanto, como um tempo ontológico por
excelência, ou seja, um tempo que não se esgota, não muda, não flui. Depreendemos,
pois, que:
O homem religioso vive assim em duas espécies de Tempo, das quais a mais
importante, o Tempo sagrado, se apresenta sob o aspecto paradoxal de um
tempo circular reversível e recuperável, espécie de eterno presente mítico que
o homem reintegra periodicamente pela linguagem dos ritos. Esse
comportamento em relação ao Tempo basta para distinguir o homem
religioso do homem não religioso. O primeiro recusa-se a viver unicamente
no que, em termos modernos, chamamos de “presente histórico”; esforça-se
42
Durkheim, 2008: 373.
Utilizamo-nos, aqui, do termo repetição “não como algo alienante que exclui a capacidade criativa do
ser humano, mas como forma de reviver, de resgatar a mitologia e o tempo mítico nas condições sociais
de hoje e na perspectiva do novo” (LARA, 2008: 28).
44
Eliade, 1992: 59.
43
79
por voltar a unir-se a um Tempo sagrado que, de certo ponto de vista, pode
ser equiparado à Eternidade45.
Deste modo, se para o homem não-religioso o Tempo não pode apresentar nem
roturas, nem heterogeneidades, nem deslocamentos entre as modalidades da experiência
humana no mundo, para o homem religioso, a duração temporal profana pode ser
potencializada periodicamente pela inserção, por intermédio dos ritos, de um Tempo
sagrado, não-histórico, estruturado pela cosmogonia do eterno retorno.
A extrema facilidade com a qual as forças religiosas se irradiam, se difundem e
se confundem às coisas do mundo profanado nada tem, portanto, de surpreendente se
avaliarmos sua concepção, formulação e composição como estruturas exteriores às
coisas, espaços, tempos e pessoas nas quais elas residem.
Elas não são, com efeito, senão forças coletivas hipostasiadas, ou seja, forças
morais; constituem-se das idéias e dos sentimentos que o espetáculo da
sociedade desperta em nós, não das sensações que nos vêm do mundo físico.
Elas são, portanto, diferentes das coisas sensíveis nas quais as situamos.
Podem tomar de empréstimo a essas coisas as formas exteriores e materiais
sob as quais são representadas; mas não lhes devem nada daquilo que
constitui a sua eficácia. Não se ligam por laços internos aos diversos suportes
sobre os quais se colocam; não têm raízes aí; segundo uma expressão que já
empregamos e que pode servir para caracterizá-las melhor, elas lhes são
acrescentadas. Assim, não existem objetos que, com a exclusão de todos os
outros, estejam predestinados a recebê-las; os mais insignificantes, os mais
vulgares até, podem exercer essa função: são circunstâncias adventícias que
decidem quais serão eleitos (DURKHEIM, 2008: 389).
Aí, percebemos que sagrado e profano não são propriedades das coisas, mas
significações que se estabelecem pelas atitudes dos homens perante coisas, espaços,
tempos, pessoas, através de seus processos de ritualização e suas tentativas de
transubstancialização da natureza que promovem coisas inertes, tal como pedras,
árvores, fontes a sinais visíveis de uma teia invisível de significações. “Todos eles são
símbolos, ou pelo menos elementos simbólicos, pois, são formulações tangíveis de
noções, abstrações da experiência fixada em formas perceptíveis, incorporações
concretas de idéias, atitudes, julgamentos, saudades ou crenças” (GEERTZ, 1989: 68).
Neste sentido, deduzimos que em um ritual o que se faz não é:
(...) uma veneração da pedra como pedra, um culto da árvore como árvore. A
pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como
árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque “revelam” algo que já
não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere46 (ELIADE,
1992: 15).
A este respeito, Rubem Alves (1984: 26) complementa:
45
Ibidem: 60.
A expressão ganz andere indica o totalmente outro; manifestando o sagrado um objeto qualquer parece
uma outra coisa, sem deixar, entretanto, de ser ele mesmo.
46
80
Pão como qualquer pão, vinho como qualquer vinho. Poderiam ser usados
numa refeição ou orgia: materiais profanos, inteiramente. Deles não sobe
nenhum odor sagrado. E as palavras são pronunciadas: “Este é o meu corpo,
este é o meu sangue...” – e os objetos visíveis adquirem uma dimensão nova,
e passam a ser sinais de realidades invisíveis.
Esta visão auxilia-nos a compreender a relação estabelecida entre o mundo
secular/profano e a utilidade e efemeridade das coisas e aproxima-nos de um
entendimento do sagrado como arranjo de fenômenos perenes e sobre-humanos, ou seja,
“o que vai além da compreensão e da explicação do homem e o que ultrapassa sua
possibilidade de mudá-lo”47. O homem, por isso:
Sente-se ligado às coisas sagradas por laços de profunda reverência e
respeito; ele é inferior; o sagrado lhe é superior, objeto de adoração. O
sagrado é o criador, a origem da vida, a fonte da força. O homem é a criatura,
em busca de vida, carente de força. Vão-se os critérios utilitários. (...). Sentese dominado e envolvido por algo que dele dispõe e sobre ele impõe normas
de comportamento que não podem ser transgredidas, mesmo que não
apresentem utilidade alguma. De fato, a transgressão do critério de utilidade é
uma das marcas do círculo do sagrado (ALVES, 1984: 61).
Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 12
EXT – MUSSUCA – MANHÃ
Cena: Enquadramento de Danilo dos Santos em entrevista
Duração no vídeo: 11’39” a 12’16”
Finalidade expressiva: Apresentar os vínculos sociais estabelecidos pela prática
ritual a partir de emoções e afetos que regulam as relações dos homens entre si e com
o Ignoto.
O sagrado e o profano se instalam, portanto, não como forças doutrinárias, a
despeito de Rubem Alves (1984) afirmar que a essência da religião seja a força
(conjugando no termo fé, devoção, respeito e esperança), mas sim como significações e
emoções que regulam as relações dos homens com os homens, dos homens com a
natureza, dos homens com os deuses; tais significações e emoções, todavia, não derivam
de propriedades intrínsecas dos objetos – afinal, “o sagrado (...) não é um valor
absoluto, mas um valor que indica situações respectivas”48 – mas consistem em
atributos elaborados e decodificados pelos próprios sujeitos, o que nos induz a
relativizar as estâncias possíveis de manifestação do homem no mundo e nos conduz a
apreender possibilidades de trânsito, deslocamento ou fluxo entre as esferas do real e o
do irreal; porquanto, como nos informa Durkheim (2008: 390):
47
48
Canclini, 2006: 192.
Gennep, 1978: 32.
81
(...) se as forças religiosas nunca têm lugar próprio, a sua mobilidade torna-se
facilmente explicável. Já que nada as vincula às coisas nas quais as
localizamos, é natural que, ao menor contato, escapem, a despeito delas
mesmas, por assim dizer, e se propaguem mais adiante. A sua intensidade
incita-as a essa propagação a que tudo favorece .
E prossegue:
Por si mesmas, essas emoções não estão ligadas à idéia de nenhum objeto
determinado; mas, como se trata de emoções e como elas são particularmente
intensas, são também eminentemente contagiosas. Elas se alastram, pois;
estendem-se a todos os outros estados mentais que então ocupam o espírito;
penetram e contaminam sobretudo as representações nas quais se exprimem
os diversos objetos que o homem, no momento, tem nas mãos ou sob os
olhos: os desenhos totêmicos que cobrem o seu corpo, os bull-roares que faz
ressoar, os rochedos que o circundam, a terra em que pisa etc. É assim que
esses objetos assumem valor religioso que, na realidade, não lhes é inerente,
mas lhes é conferido do exterior (DURKHEIM, 2008: 390-1).
Ora, se sagrado e profano são experiências com possibilidades de re-localização,
trânsito e circulação – à medida que são elaboradas pelos homens e podem ter suas
estâncias relativizadas – é possível pensarmos em perfis interativos, entre estes campos,
articulados por diálogos e confrontos, combinações e resistências, que conquanto
instaurem uma solução de continuidade entre estas modalidades da experiência ritual
não necessariamente as anula, tampouco as extingue: eis o limiar.
O limiar que separa os dois espaços indica ao mesmo tempo a distância entre
os dois modos de ser profano e religioso. O limiar é ao mesmo tempo o
limite, a baliza, a fronteira que distinguem e opõem dois mundos – e o lugar
paradoxal onde esses dois mundos se comunicam onde se pode efetuar a
passagem do mundo profano para o mundo sagrado49.
E, com efeito, é quase impossível que o sagrado consiga concentrar-se de modo
absoluto, irrestrito e hermético em ambientes espaciais e temporais que lhes são
atribuídos; é inevitável que haja um vazamento que indique tanto um estado de
isolamento e mútua oclusão quanto um caráter de extraordinária contagiosidade e
fugacidade entre sagrado e profano; desta maneira:
(...) por uma espécie de contradição, o mundo sagrado parece tender, por sua
própria natureza, a se propagar nesse mesmo mundo profano que, por outro
lado, exclui: ao mesmo tempo que o repele, tende a derramar-se sobre ele
assim que se aproximam (DURKHEIM, 2008: 384).
Aí, apreendemos que se produz uma rotura de nível que abre espaço à
comunicação e possibilita a passagem, de ordem ontológica, de um modo de ser a outro,
promovendo destacamentos e integrações, oposições e junções, saliências e inibições,
traços ambíguos de perfis, a priori, significativamente diversos e opostos. Este espaço
limiar – qual a pele ou a membrana dos organismos vivos que serve ao intercambio do
49
Eliade, 1992: 24.
82
mundo interior com o exterior, através de suas porosidades, formando uma unidade
complexa indivisível que caracteriza a presença do homem no mundo, ou ainda como o
osso que promove o intercâmbio entre as camadas mais íntimas de nosso ser e os
arranjos de cadeias musculares – engendra espaços limítrofes, onde sagrado e profano
se encontram, confundem e fecundam campos difusos e indeterminados no espaço
entre: o cenário da intertransponibilidade.
O limiar, a porta, mostra de uma maneira imediata e concreta a solução de
continuidade do espaço; daí a sua grande importância religiosa, porque se
trata de um símbolo e, ao mesmo tempo, de um veículo de passagem
(ELIADE, 1992: 25).
Esta visão teleológica50 do limiar conjugada à sua multivalência simbólica
possibilita-nos perceber uma extensão do conteúdo essencial e, por isso, profundo do
sagrado e do profano e permite-nos, sobretudo, apresentar e desenvolver reflexões
acerca das novas e possíveis estruturas de relação entre o real e o irreal que como
eventos fomentam traços de oposições complementares e contrastes em novas
harmonias a partir da festividade e da fantasia – categorias limiares que transcendem o
hiato entre sagrado e profano e estabelecem a afirmação jogralesca e imaginosa às
situações da vida consideradas radicalmente contrárias, reunindo através da conjugação
de seus elementos aspectos do real e do irreal.
Esta reunião nos induz a crer que “entre outras coisas, é o homem em sua
verdadeira essência, um homo festivus e homo phantasia. Celebrar e imaginar são partes
integrantes de sua humanidade”51 e, por isso, sem estas potências, que vinculam o
homem ao passado e ao futuro em presença, este não seria um ente-histórico.
Assim, compreendemos que a festividade habilita o homem a ampliar seu
quadro de experiências (re)vivendo eventos do passado e atualizando a cosmogonia
exemplar através da remodelação de símbolos presentes; esta capacidade, entretanto, de
relacionar o homem ao passado não é elaborada tão somente por nossa capacidade
intelectual, mas pelo exercício da ação; afinal “o passado não se revoca recordando-o
apenas, mas revivendo-o”52.
Neste espaço de re-validação do pretérito, apreendemos a festividade “como
uma ocasião socialmente aprovada para expressar sentimentos normalmente reprimidos
ou negligenciados”53 cuja composição essencial abarca três elementos: 1) excesso
50
Termo proveniente do vocábulo grego telos que significa fim, propósito.
Cox, 1974: 20.
52
Ibidem: 18.
53
Ibidem: 26.
51
83
consciente; 2) afirmação celebrativa; 3) justaposição, que propicia-nos, respectivamente
a dispensa das convenções sem o elemento das infrações, ou seja, “o comportamento é
dominado pela liberdade decorrente da suspensão temporária das regras de uma
hierarquização repressora”54, o prazer e alegria da ação e a manifestação dos contrastes
entre celebração e o espaço/tempo ordinário que nos permite apreender, de modo mais
apurado, o estado das coisas que nos cercam, num processo de reconhecimento nítido
entre o domínio do cotidiano e o universo dos acontecimentos extracotidianos.
É por isso que a própria idéia de cerimônia religiosa de alguma importância
desperta naturalmente a idéia de festa. Inversamente, toda festa quando, por
suas origens é puramente leiga, apresenta determinadas características de
cerimônia religiosa, pois, em todos os casos, tem como efeito aproximar os
indivíduos, colocar em movimento as massas e suscitar assim estado de
efervescência, às vezes até de delírio que não deixa de ter parentesco com o
estado religioso. O homem é transportado fora de si mesmo, distraído de suas
ocupações e de suas preocupações ordinárias. Assim, de ambas as partes,
observam-se as mesmas manifestações: gritos, cantos, música, movimentos
violentos, danças, procura de excitantes que restaurem o nível vital etc.
Observou-se muitas vezes que as festas populares levam a excessos, fazem
perder de vista o limite que separa o lícito do ilícito; o mesmo se dá com as
cerimônias religiosas que determinam como que uma necessidade de violar
as regras normalmente mais respeitadas (DURKHEIM, 2008: 456).
Por sua vez, a fantasia possibilita ao homem alargar as fronteiras do futuro,
aproximando-nos através dos devaneios à dimensão do porvir sem precauções e/ou
reticências; sua manifestação plena – como conjunto de aspectos estéticos, emocionais e
simbólicos da vida humana – não se dá, todavia, tão somente pela preparação do futuro,
mas conjurando-o e desvelando-o. Daí, apreendermos na fantasia elementos de arte e de
criatividade consciente, atributos de invenção e inovação, aspectos opostos a unidades
espúrias.
A fantasia é, no sentido que eu emprego o vocábulo, “imaginação avançada”.
A fantasia não conhece barreiras. Não apenas suspendemos as normas de
conduta social, mas toda a estrutura da “realidade” de cada dia. Pela fantasia
não só nos transformamos em nosso próprio ser ideal, mas em gente
totalmente diferente da que somos. Abolimos os limites de nosso poder e de
nossa percepção. Pairamos no ar (COX, 1974: 66).
E, de fato:
A imaginação criativa é muito mais rica do que as imagens; ela não consiste
na habilidade de evocar impressões sensoriais e não se restringe a preencher
as lacunas do mapa oferecido pela percepção. É chamada “criativa” porque
consiste na habilidade de criar conceitos e sistemas conceituais que podem
não encontrar nenhum correspondente nos sentidos (...) e também porque
suscita idéias não-convencionais (TURNER, 2008: 45-6).
A fantasia, portanto, se apresenta aqui como a transmutação de formas e
símbolos familiares e a elaboração de impulsos e idéias que irrompem o estado presente,
54
DaMatta, 1997: 49.
84
cooperando ativamente no processo de transcendência do mundo e sublimidade da
existência, desafiando todos os cânones existentes sobre o útil e o real e favorecendo,
deste modo, estados de hibridação e relações entre o sagrado e o profano.
Com efeito, ainda que, como definimos, o pensamento religioso seja algo
completamente diferente de um sistema de ficções, as realidades às quais ele
corresponde só chegam, no entanto, a se exprimirem religiosamente se a
imaginação as transfigura (...) O mundo das coisas religiosas é, portanto (...)
mundo parcialmente imaginário e que, por essa razão, presta-se mais
facilmente às livres criações do espírito55.
Nesta perspectiva, percebemos que o ritual ao propiciar forma e ocasião à
expressão da festividade e da fantasia, por intermédio do movimento, gesto, canto,
dança, invenção e criação, desempenha papel fundamental à articulação e expressão de
estruturas limiares que permitem aos homens conviverem periodicamente na presença
dos deuses, participando dos valores da religiosidade e da santidade do mundo, através
do riso, da festa, do pagode e(m) ação.
Desta maneira, o caráter cerimonial do rito articula-se como drama, ou seja, ação
constituída pela força coletiva onde o que é fundamental é que os indivíduos estejam
reunidos, sentimentos comuns sejam experienciados e estes se exprimam por atos
compartilhados em um processo de partilha do sensível56.
O ritual é um dromenon, isto é, uma coisa que é feita, em ação. A matéria
desta ação é um drama, isto é, uma vez mais um ato (...) O rito, ou “ato
ritual”, representa um acontecimento cósmico, um evento dentro do processo
natural (...) O ritual produz um efeito que, mais do que figurativamente
mostrado, é realmente reproduzido na ação. Portanto, a função do rito está
longe de ser simplesmente imitativa, leva a uma verdadeira participação no
próprio ato sagrado (HUIZINGA, 1990: 18).
A perspectiva do ritual como evento re-atualizado, dentro do processo natural, a
identificar-se com um acontecimento cósmico, auxilia-nos a perceber o agenciamento
entre a substância da devoção e a textura da diversão – que inclinam os homens a
executarem determinados atos e a experimentarem certas espécies de sentimentos
através do reconhecimento de conceitos, concepções e disposições que participam de
uma ordem de existência geral e coletiva – e a partir da promoção deste encontro
apreender a exibição de fenômenos consagrados destinados a provocar admiração e
respeito pelos ideários religiosos.
É no ritual – isto é, no comportamento consagrado – que se origina de
alguma forma essa convicção de que as concepções religiosas são verídicas e
de que as diretivas religiosas são corretas. É em alguma espécie de forma
55
Durkheim, 2008: 454.
“Partilha significa duas coisas: a participação em um conjunto comum e, inversamente, a separação, a
distribuição em quinhões. Uma partilha do sensível é, portanto, o modo como se determina no sensível a
relação entre um conjunto comum partilhado e a divisão de partes exclusivas” (RANCIÈRE, 2009: 07).
56
85
cerimonial – ainda que essa forma nada mais seja que a recitação de um mito,
a consulta a um oráculo ou a decoração de um túmulo – que as disposições e
motivações induzidas pelos símbolos sagrados nos homens e as concepções
gerais da ordem da existência que eles formulam para os homens se
encontram e se reforçam umas às outras (GEERTZ, 1989: 82).
Aí, portanto, apreendemos o drama como ação em um mundo (com)partilhado
simbolicamente, cuja estruturação se funde à motivação da elaboração dos atos rituais.
Em verdade, o rito não possui essência diferente do mundo que nos cerca, mas
corresponde, sobretudo, a (trans) e (con)substancialização de nosso entorno e sistemas
habituais de crença, funcionando como um aspecto das relações sociais, onde “o
princípio sagrado outra coisa não é senão a sociedade hipostasiada e transfigurada”57.
Por isso, o “mundo do sagrado não é uma realidade do lado de lá, mas a transfiguração
daquilo que existe do lado de cá” (ALVES, 1984: 98-100).
Nesse sentido, o estudo dos rituais não seria um modo de procurar as
essências de um momento especial e qualitativamente diferente, mas uma
maneira de estudar como os elementos triviais do mundo social podem ser
deslocados e, assim transformados em símbolos que, em certos contextos,
permitem engendrar um momento especial ou extraordinário (DAMATTA,
1997: 76).
Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 09
INT – TRANSPORTE ALTERNATIVO – MANHÃ
Cena: Enquadramento de Grupo de São Gonçalo Mirim no transporte.
Duração no vídeo: 07’45” a 08’42”
INT – CENTRO DE CONVENÇÕES – MANHÃ
Cena: enquadramento de Grupo de São Gonçalo Mirim em ação performática
Duração no vídeo: 09’10” a 09’48”
Finalidade expressiva: Apontar o modo pelo qual os elementos triviais da vida
ordinária se deslocam e transformam em símbolos rituais, como expressão gestual,
musical e memória do corpo.
Depreendemos, pois, que a matéria-prima do mundo ritual é a mesma que
garante plasticidade à vida diária e que entre elas as diferenças são apenas de grau não
de qualidade; o rito, portanto, estrutura-se como a permanência que se realiza,
contraditoriamente, na passagem e, por isso, é limiar, espaço/estágio intermediário entre
profano e sagrado, plano irreal e realidade.
Neste caminho, podemos analisar o corpo que dança, em contexto ritual, como
lugar de atravessamentos dos conteúdos sagrados e profanos, espaço próprio à
57
Durkheim, 2008: 416.
86
manifestação da cosmogonia, ou melhor, à atualização do “eterno retorno” da Criação
Numinosa. Isto porque o pensamento religioso se exprime a partir da transfiguração da
imaginação, afinal “as entidades religiosas são entidades imaginárias”58, processos
gerados pelas livres combinações do espírito, que nos induzem a compreender melhor a
natureza do culto, à medida que evidenciam um importante elemento do rito: a estética.
Considerando, pois, que o “objeto estético tem em primeiro lugar uma existência
física”59 apreendemos, nestas celebrações da devoção em atos de diversão, a fé qual
abstração adimensional a concretizar-se tridimensionalmente no corpo que dança e
cultua a Vida e compreendemos a possibilidade de o corpo tornar-se lócus da
hierofania; afinal “ a espiritualidade não impede nem contradiz a corporalidade e a
estética” (PAVIS, 2010: 262).
Dançando os indivíduos podem estabelecer o seu modo de existir, de viver e
de se relacionar com o mundo, renovando-se. Têm a possibilidade de efetivar
todas as interações possíveis, intensificando as relações sociais, as criações, o
potencial comunicativo, retornando ao tempo sagrado (LARA, 2008: 45).
A este respeito, Durkheim (2008: 455) nos informa:
Assim, a religião não seria ela mesma se não deixasse algum espaço para as
livres combinações do pensamento e da atividade, ao jogo, à arte, a tudo o
que recreia o espírito cansado por aquilo que há de demasiado pesado no
labor cotidiano: as próprias causas que a trouxeram à existência determinam
esta necessidade. A arte não é apenas ornamento exterior com que o culto se
revestiria para dissimular o que pode ter de muito austero e de muito rude;
mas, por si mesmo, o culto tem algo de estético.
O corpo inserido em um contexto ritual é o estágio intermediário que possibilita
a passagem entre a porta que distingue e relaciona o mundo profano e o sagrado,
concretizando “tanto a delimitação entre o ‘fora’ e o ‘dentro’, como a possibilidade de
passagem de uma zona a outra”60 que através da atualização das atividades simbólicas
rearranjam a trama social organizando um universo que abriga homens e deuses, festa e
devoção, folia e oração numa situação alternada e indissolúvel que promove e estrutura
o ritual; tal estado de indissolubilidade, que nos aponta incoerências e ambivalências, se
reflete não apenas nas práticas devotas, mas também no imaginário coletivo, onde
percebemos que o mundo para os devotos (em especial àqueles que se prestam a modos
inconscientes de atividade ritual) é percebido:
(...) como uma teia de forças em iteração, forças de diferentes tipos e
intensidades que tendem ao equilíbrio. Num universo sacralizado, qualquer
ação do homem ganha caráter ritual, direcionando-se para equilibrar a sua
força vital com as demais energias do Cosmo. E convivem em continuum o
58
Alves, 1984: 30.
Vázquez, 1999: 115.
60
Eliade, 1992: 146.
59
87
mundo dos homens, da materialidade, e o mundo invisível, dos ancestrais e
divindades. Sendo, pois, a vivência do sagrado total e quotidiana, ela não
exclui as emoções humanas, o prazer e a alegria: a fé com festa que tanto
intriga aos cronistas (DIAS, 2001: 866).
A devoção como atividade lúdica estrutura-se, então, como um misto de fé e(m)
festa, em processo de completude (fundador dos rituais representativos, como ilustração
e transfiguração coletiva da vida social) que nos habilita analisar não uma simples
transferência de valores do real para o irreal ou o reverso, mas, sobretudo celebrar o
hibridismo, a impureza, a mistura, a (trans)formação originária de combinações,
diálogos e reconciliações dos contrários – coincidentia oppositurum; assim:
Mesmo com suas especificidades, os opostos são necessários e
interdependentes, pois o sagrado não seria o que é sem o profano, o qual não
sobreviveria sem a atuação do sagrado. A reciprocidade é, portanto,
necessária e fundamental (LARA, 2008: 40).
A reunião destes elementos aparentemente incongruentes; a capacidade de
emparelhar, há um tempo, modos de ser, à primeira vista, contraditórios; o
congraçamento matiz a matiz dos símbolos e poderes de uma esfera sagrada à outra
profanada auxilia-nos a descobrir o elemento lúdico que existe e, potencialmente, se
estabelece em estados tão graves como a fé e nos habilita a perceber o estreito
parentesco entre riso e oração através da brincadeira. “E brincar significa literalmente
‘colocar brincos’, isto é, unir-se, suspender as fronteiras que individualizam e
compartimentalizam grupos, categorias e pessoas”61.
Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 12
EXT – MUSSUCA – MANHÃ
Cena: Enquadramento de Adelilton em entrevista.
Duração no vídeo: 11’00” a 11’38”
Finalidade expressiva: Indicar o valor do entusiasmo, da alegria e da brincadeira no
ritual como fundamento para a manutenção e desdobramento da fé entre os devotosbrincantes.
A propósito Rahner (apud COX, 1974: 152) complementa:
Brincar é entregar-se a uma espécie de magia, encenar para si o totalmente
outro, antecipar o futuro, fazer de mentiroso o abominável mundo dos fatos
(...) o espírito se prepara a aceitar o inimaginado e inacreditável, a entrar num
mundo onde valem leis diferentes, a ser aliviado de todos os pesos que o
oneram, a ser livre, régio, descontraído e divino.
61
DaMatta, 1997: 62.
88
Ante esta perspectiva, apreendemos nítidas evidências a corroborarem, através
de diversos ângulos, à familiaridade entre o riso e a oração; ambos estabelecem a
suspensão de fronteiras, nos direcionam a um espaço/tempo sublimado e a estados de
entendimento que não se circunscrevem ou limitam ao mundo dos fatos. O riso,
portanto, se enraíza na oração e esta, por sua vez, se desdobra naquele; ambos são
formas lúdicas.
É coisa estranha que a teologia cristã tenha perdido durante tantos anos o seu
senso do cômico. Dante, talvez o maior poeta cristão de todos os tempos, não
foi sem razão que batizou sua obra-prima de Divina Comédia. Dom Quixote,
criação da consumada imaginação de Cervantes, é, sem dúvida, uma figura
cômica, no mais amplo sentido do termo. Na época em que esses homens
escreveram, os escultores cinzelavam, nas catedrais, carrancas, e os pintores
debuxavam quadros dum Deus criança, sentado no colo da mãe e brincando
com o globo terrestre. Deus Ludens é o Deus que brinca. Faz piscadelas aos
homens, sua criatura-séria-demais, abrindo-lhe a dimensão cômica de tudo
isso (COX, 1974: 156).
A festividade e a fantasia, portanto, estruturas limiares que congregam o sagrado
e o profano na elaboração dos rituais representativos projetam na autenticidade do riso e
da oração, através da ludicidade e esperança, a voz da fé. O fundamento do humor está
diretamente relacionado à disposição religiosa, pois é ele que põe à mostra o quanto se
reduzem as coisas terrenas e humanas, sob a medida de Deus, fomentando nos homens a
necessidade de participação na luta por um mundo mais justo e fraterno de modo
equilibrado e são, a partir dos dispositivos da sacralidade do corpo profanado ou dos
agenciamentos profanos do corpo em ação de graça.
Deste modo, inferimos que o corpo que dança nos rituais promove a partir da
prática gestual, programada pelos mecanismos da fantasia e da festividade, o
estabelecimento dos traços sincréticos e relações hibridizadas entre sagrado e profano; o
homem funda ontologicamente as estranhezas (ou seja, o lugar em que as oposições, as
contrariedades, as dualidades, os opostos se transformam uns nos outros, fundindo-se e
confundindo-se) em seu ser, instituindo aí o binômio fé e(m) festa e estruturando o
(des)aparecimento dos contornos da Vida no entre.
Esta religiosidade onde a alegria é o principal ingrediente da fé, numa vivência
sagrada impregnada de lúdico promove soluções plásticas e tramas fluidas às relações
do homem no mundo, transformando o ato devocional não em estrutura oposta ou
separada da vida social, mas, sobretudo como essência, âmago, cerne de nossa
existência em sociedade.
89
3.2 - PORTA ESTREITA: ENTRE RITUAL E DRAMA
Os conteúdos limiares estruturantes da relação entre sagrado e profano como a
festividade, a fantasia, o riso e a oração que em conjugação instituem o binômio
devoção e diversão, permitem-nos, neste momento, analisar o perfil interativo que se
estabelece entre ritual e drama na realização da Dança de São Gonçalo de Amarante,
dispondo-nos, assim, a discutir os estados intermediários que revelam uma solução de
continuidade entre a ação cultual e o ato dramático, ou seja, a passagem de um estado de
espírito a outro que possuem ambos como denominador comum a construção de
metáforas e a representação do sensível.
A metáfora, portanto, é o conceito-chave em nossos estudos sobre ritual e
drama; e à medida que orienta nossa atenção para além dos cistos, nódulos ou pontos de
interseção que representam linhas de repouso cristalizadas, definidoras e estáticas e
amplia nossa compreensão sobre o desconhecido a partir daquilo que é conhecido
possibilita fecundidade e adequação às nossas idéias; afinal:
A metáfora é, em sua definição mais simples, uma maneira de proceder do
conhecido para o desconhecido (...) É uma forma de cognição na qual as
qualidades que definem uma coisa são transferidas em um insight
instantâneo, quase inconsciente, para alguma outra coisa que nos é, graças a
sua complexidade ou distância, desconhecida (Nisbet apud TURNER, 2008:
21).
Assim, a metáfora, além de conduzir nossa atenção à dinâmica possível ao
processo de identificação dos fenômenos e dilatar nosso entendimento acerca do
incomum, possibilita que nos aproximemos de um dado território sem que
necessariamente seu repertório sistêmico de idéias aí se aplique de modo imediato e
literal. “Esta visão enfatiza a dinâmica inerente à metáfora, em vez de meramente
comparar os dois pensamentos, ou considerar que um ‘substitui’ o outro. Os dois
pensamentos agem em conjunto, eles ‘engendram’ o pensamento em sua coatividade”
(TURNER, 2008: 25).
Neste sentido, buscamos analisar o aspecto global das manifestações expressivas
(ritual e drama) atribuindo através dos dispositivos da livre e metamórfica, aberta e
dinâmica, combinação do pensamento que as constituem o exame da estrutura
processual da ação social que além de apontar a construção de metáforas como força
90
motriz para o entendimento das práticas culturais espetaculares62, abarca, em si, a
complexidade plástica do movimento, sua expressão e caráter lúdico e jocoso e sua
dimensão estética.
Neste ínterim, apreendemos o ritual como um “comportamento formal prescrito
para ocasiões não devotadas à rotina tecnológica tendo como referência a crença em
seres ou poderes místicos”63, ou seja, como ação que se origina nas formas e concepções
religiosas e funda um comportamento consagrado coletivamente; daí, a declaração de
Durkheim (2008: 460), ao concluir, que “os ritos são, antes de tudo, os meios pelos
quais o grupo social se reafirma periodicamente”, porquanto em o ato cultual o
sentimento constituído das impressões de segurança e de respeito, solidariedade e
integração despertados nas consciências individuais promove e reflete, através dos
dispositivos da fé, a força coletiva.
Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 04
INT – SALA DE COSTURAS – MANHÃ
Cena: Enquadramento de mulheres do povoado preparando a indumentária ritual a
ser utilizada pelos devotos-brincantes no ritual.
Duração no vídeo: 01’31” a 02’02”
Finalidade expressiva: Exibir a dimensão do ritual, como expressão da força
coletiva, na estruturação de sentimentos de solidariedade e integração repercutidas
mesmo entre as entidades inviabilizadas de tomar parte ativa da dança, mas nem por
isso impossibilitadas de participarem e integrarem o ritual.
O rito é, portanto, um sistema pelo qual a crença além de se (re)velar, se
(trans)forma, e se (di)funde no campo da ação social cuja eficácia, por isso, está
estritamente relacionada à sua adequação e eficiência em comunicar: evidenciando a
idéia da partilha e(m) comunhão e reunindo indivíduos ou grupos a determinadas regras
de conduta; por isso:
A fé comum reanima-se naturalmente no seio da coletividade reconstituída;
ela renasce porque se vê nas mesmas condições em que nascera
primitivamente. Uma vez restaurada, ela triunfa facilmente de todas as
dúvidas privadas que puderam surgir nos espíritos. A imagem das coisas
62
Pavis (2008: 163) define a prática cultural espetacular como uma espécie de “cultura em ação” que não
se encerra às artes da cena, mas se expande de modo elíptico na direção das cerimônias, rituais e
comportamentos humanos.
63
Turner, 2005: 49.
91
sagradas retoma força suficiente para resistir às causas internas ou externas
que tendiam a enfraquecê-la (DURKHEIM, 2008: 415).
Depreendemos, pois, que os “rituais parecem partilhar alguns traços: uma
ordenação que os estrutura, um sentido de realização coletiva com propósito definido, e
também de que eles são diferentes dos do cotidiano”64 e esta partilha de crenças que
projetam ideais coletivos sobre o plano cultural dá-se por intermédio de redes
simbólicas; afinal, “os significados só podem ser ‘armazenados’ através de símbolos”
(GEERTZ, 1989: 93).
O símbolo é a menor unidade do ritual que ainda mantém as propriedades
específicas do comportamento ritual; é a unidade última de estrutura
específica em um contexto ritual (...) um “símbolo” é uma coisa encarada
pelo consenso geral como tipificando ou representando ou lembrando algo
através da posse de qualidades análogas ou por meio de associações em fatos
ou pensamentos (TURNER, 2005: 49).
À medida que apreendemos os rituais não “como momentos essencialmente
diferentes (em forma, qualidade e matéria-prima) daqueles que formam e informam a
chamada rotina da vida diária” (DaMatta, 1997: 76), mas como um aglomerado de
aspectos das relações sociais, compreendemos também, por conseqüência, que “os
símbolos estão essencialmente envolvidos com o processo social”65 e, por isso, em
constante processo de perlaboração66.
O símbolo ritual, portanto, é aqui percebido como elemento dinâmico que se
diferencia do símbolo de referência67 por não ser exclusivamente cognitivo e
convencional, mas por revelar através de suas propriedades de condensação (coisas e
ações representadas por uma única formação simbólica/ economia de referência),
unificação (aglomerado de significados díspares na estruturação de um símbolo ritual
dominante) e polarização de significados (estruturação de pólos de significados distintos
– (1) pólo sensório, responsável pela produção de desejos e sentimentos; (2) pólo
ideológico, responsável pela produção de conteúdos morais e coletivos) a saturação e
conjugação de qualidades emocionais e convencionais e, deste modo, mobilizar a
liberação de tensões, conscientemente ou não, no campo da ação humana.
A propósito, Geertz (1989: 93-4) complementa:
Tais símbolos religiosos, dramatizados em rituais e relatados em mitos,
parecem resumir, de alguma maneira, pelo menos para aqueles que vibram
64
Peirano, 2000: 10.
Turner, 2005: 49.
66
Adotamos o termo perlaboração para indicar um processo contínuo e freqüente de re-significação a
partir de estados de anamnese, anagogia e anamorfose que nos habilitam re-escrever o símbolo.
67
Segundo Langer (1962: 62) o símbolo referencial opera sobre “a função de referência ou direção de
interêsse do usuário a algo à-parte do símbolo, e a natureza convencional da conexão entre o símbolo e o
objeto por ele referido, conexão em virtude da qual a referência ocorre”.
65
92
com eles, tudo que se conheceu sobre a forma como é o mundo, a qualidade
de vida emocional que ele suporta, e a maneira como deve comportar-se
quem está nele. Dessa forma, os símbolos sagrados relacionam uma ontologia
e uma cosmologia com uma estética e uma moralidade: seu poder peculiar
provém de sua suposta capacidade de identificar o fato com o valor no seu
nível mais fundamental, de dar um sentido normativo abrangente àquilo que,
de outra forma, seria apenas real68.
Assim, o ritual estrutura-se como uma tentativa de “conservar” a provisão de
significados gerais em torno dos quais cada indivíduo e sociedade interpreta sua
experiência e organiza sua conduta a partir de seus aspectos cognitivos, existenciais e
seus arcabouços valorativos – seu estilo moral e estético. “Pois é graças aos símbolos
que o homem sai de sua situação particular e se ‘abre’ para o geral e o universal. Os
símbolos despertam a experiência individual e transmudam-na em ato espiritual, em
compreensão metafísica do Mundo” (ELIADE, 1992: 170).
Tais aspectos e arcabouços são condições fundamentais, portanto, à
compreensão dos significados que estruturam o sistema ritual e à análise do
relacionamento deste mosaico sensível ao processo social, onde a prática vincula-se a
crença e esta, por sua vez, aos símbolos rituais que ofertam aos homens:
(...) uma garantia cósmica não apenas para sua capacidade de compreender o
mundo, mas também para que, compreendendo-o, dêem precisão a seu
sentimento, uma definição às suas emoções que lhes permita suportá-lo,
soturna ou alegremente, implacável ou cavalheirescamente (GEERTZ, 1989:
77).
O ritual, parafraseando Geertz, é um sistema de símbolos que atua para
estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens
através da formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e vestindo essas
concepções com tal aura de fatualidade que as disposições e motivações parecem
singularmente realistas em um processo cosmológico. Por cosmologia:
I mean the body of conceptions that enumerate and classify the phenomena
that compose the universe as an ordered whole and the norms and processes
that govern it. From my point of view, a society's principal cosmological
notions are all those orienting principles and conceptions that are held to be
sacrosanct, are constantly used as yardsticks, and are considered worthy of
pepetuation relatively unchanged (Tambiah apud PEIRANO, 2000: 11)69.
E, acrescenta:
68
Aqui, o autor utiliza o termo real para designar e indicar o continente das situações convencionais e
formais que caracterizam o cotidiano.
69
“Refiro-me ao corpo de concepções que enumeram e classificam o fenômeno que compõe o universo
como um todo ordenado e as normas e os processos que o regem. Do meu ponto de vista, as noções
cosmológicas de uma sociedade são todos aqueles princípios orientadores e aquelas concepções que são
consideradas sacrossantas, são constantemente utilizadas como pontos de referência e são consideradas
dignas de uma perpetuação que se faça, relativamente sem alterações” (Tradução minha).
93
As such, depending on the conceptions of the society in question, its legal
codes, its political conventions, and its social class relations may be as
integral to its cosmology as its "religious" beliefs concerning gods and
supernaturals. In other words, in a discussion of enactements which are
quintessentially rituals in a "focal" sense, the traditional distinction between
religious and secular is of little relevance… (Tambiah apud PEIRANO, 2000:
11)70.
Daí, a habilidade do ritual, como processo cosmológico, em atravessar diversas
camadas sociais e validar sentidos complexos em sua tessitura, acerca das relações
hibridizadas entre sagrado e profano, devoção e diversão, fé e festa; o símbolo ritual,
entretanto, para exercer tais agenciamentos, atravessamentos e entrecruzamentos,
aplica-se como elemento dinâmico a condensar um fato relativamente desconhecido
que, todavia, é postulado como existente; o símbolo ritual é, pois, metáfora da vida
social, aquilo que liga o ignoto ao conhecido.
Pois as metáforas compartilham uma das propriedades que atribuí aos
símbolos. Não estou falando da multivocalidade, da sua capacidade de
ressoar entre vários significados de uma só vez, como um acorde na música,
embora as metáforas-radicais sejam multivocais. Estou falando de um certo
tipo de polarização do sentido no qual o sujeito subsidiário é, na realidade,
um – universo – profundo de imagens proféticas semivislumbradas, e o
sujeito principal – o visível, plenamente conhecido (ou que se supõe
plenamente conhecido) –, no extremo oposto, adquire novos e surpreendentes
contornos e valências do seu companheiro obscuro (TURNER, 2008: 45).
Um símbolo ritual, como uma metáfora, está vivo prenhe de significados cujos
valores axiomáticos/ propriedades rizomatosas situam o ritual em campos significantes
que se desdobram de modo dinâmico qual a dimensão cultural; os símbolos instigam a
ação social e articulam-se como forças que influenciam e determinam pessoas ou grupos
para a ação; o símbolo é uma unidade de ação.
A este respeito, Turner (2005: 52) nos esclarece:
Os símbolos, como eu disse, produzem ação, e os símbolos dominantes
tendem a se tornar focos de interação. Os grupos mobilizam-se ao seu redor,
cultuam-nos, desempenham outras atividades simbólicas perto deles, e
acrescentam-lhes outros objetos simbólicos, frequentemente para formar
santuários compostos.
E, continua:
(...) as propriedades cruciais de um símbolo ritual envolvem esses
desdobramentos dinâmicos. Os símbolos instigam a ação social. Num
contexto de campo71, poderíamos inclusive descrevê-los como “forças”, na
medida em que constituem influências determináveis que inclinam pessoas
70
“Como tal, dependendo das concepções da sociedade em questão: seus códigos legais, suas convenções
políticas e suas relações de classe social podem tanto ser parte integrante de sua cosmologia quanto suas
crenças ‘religiosas’ relativas aos deuses e aos sobrenaturais. Em outras palavras, em uma discussão sobre
enactments que são essencialmente rituais, em um sentido focal, a tradicional distinção entre religioso e
secular é de pouca relevância...” (Tradução minha).
71
“No contexto atual, ‘campos’ são os domínios culturais abstratos nos quais os paradigmas são
formulados, estabelecidos e entram em conflito” (TURNER, 2008: 15).
94
ou grupos para a ação (...) é num contexto de campo que as propriedades por
nós descritas, ou seja, polarização de significados, transferência de qualidade
afetiva, discrepância entre significados e condensação de significados
manifestam-se de forma mais eloqüente (2005: 68).
As propriedades do símbolo ritual – condensação, unificação e polarização de
significados – auxiliam-nos a apreendê-los como constituídos tanto por uma função
oréctica72quanto por uma função cognitiva, ante a ausência daquilo que presumimos,
mas ainda não concebemos e que por escapar ao conceito pleno nasce do “fracasso”; por
isso:
Símbolos assemelham-se a horizontes. Horizontes: onde se encontram eles?
Quanto mais deles nos aproximamos mais fogem de nós. E, no entanto,
cercam-nos atrás, pelos lados, à frente. São o referencial do nosso caminhar.
Há sempre os horizontes da noite e os horizontes da madrugada... As
esperanças do ato pelo qual os homens criaram a cultura, presentes no seu
próprio fracasso, são horizontes que nos indicam direções. E esta é a razão
por que não podemos entender uma cultura quando nos detemos na
contemplação dos seus triunfos técnico/ práticos. Porque é justamente no
ponto onde ele fracassou que brota o símbolo, testemunha das coisas
ausentes, saudade de coisas que não nasceram73.
Assim, apreendemos que o símbolo ritual ao discriminar coisas, espaços,
tempos, pessoas e entidades e relacioná-los a sinais visíveis de uma trama invisível de
significações promove, não apenas através de propriedades referenciais, mas também de
propriedades de condensação, unificação e polarização, a validade da ação ritual no
contexto das representações religiosas, cujo conteúdo sagrado:
(...) se instaura graças ao poder do invisível. E é ao invisível que a linguagem
religiosa se refere ao mencionar as profundezas da alma, as alturas dos céus,
o desespero do inferno, os fluidos e influências que curam, o paraíso, as bemaventuranças eternas e o próprio Deus. Quem, jamais, viu qualquer uma
destas entidades?74
O símbolo ritual articula-se como estrutura umbralina das relações entre sagrado
e profano porquanto (trans)forma e (con)funde os elementos profanos em
representações sagradas à medida que os envolve e reconhece pelos nomes e poderes do
invisível promovendo aí relações de metáfora entre aquilo que se apresenta como
revelado e descoberto e isto que se identifica como obscuro e velado. A força de um
ritual “ao apoiar os valores sociais repousa, pois, na capacidade dos seus símbolos de
formularem o mundo no qual esses valores, bem como as forças que se opõem à sua
compreensão, são ingredientes fundamentais”75.
72
Oréctico é um neologismo derivado de orexis, termo geral para designar todas as funções, fenômenos e
formas afetivas e sensoriais do organismo.
73
Alves, 1984: 22.
74
Ibidem: 25-6.
75
Geertz, 1989: 96.
95
Não se deve esquecer que os símbolos rituais não são meramente signos
representando coisas desconhecidas; eles são considerados como possuindo
eficácia ritual, como carregados de poder de fontes desconhecidas, e como
capazes de agir sobre pessoas e grupos que entram em contato com eles de
modo a mudá-los para melhor ou em uma direção desejada. Os símbolos, em
resumo, têm tanto uma função oréctica (orectic) quanto uma função
cognitiva. Eles produzem emoções e mobilizam desejos (TURNER, 2005:
90).
Neste sentido, ao conjugar metáforas e validar estruturas do invisível à
manifestação da própria crença, o símbolo ritual situa-se como estrutura da fantasia na
rede cultual, cujo aspecto funciona como “um húmus do qual faz brotar a habilidade do
homem de inventar e inovar”76, ressignificar e perlaborar, enfim, ritualizar. A exemplo
do ritual, a fantasia edifica-se em símbolos, na transmutação de formas familiares e na
elaboração de impulsos e idéias que ultrapassam os confins da limitação
consuetudinária; aí, sua habilidade em possibilitar, tanto quanto o ritual, ao homem
transcender o mundo empírico, a partir dos elementos deste, e apreciar a sublimidade e
o mistério da existência. O ritual é, pois, ação que proporciona e corporifica a fantasia
na sociedade e na história.
O ritual é a “fantasia corporalizada”. E é importante o termo “corpo”. Indica
ele que no ritual a fantasia não é só mental. São igualmente importantes o
gesto e o movimento. O termo “corpo” significa ainda uma locação histórica
e social. Quem nos situa num lugar é nosso corpo. Recebemo-lo de nossos
pais e por meio dele nós tocamos, batemos, acariciamos e transmitimos a
vida ao futuro. De modo semelhante, é pelo ritual que a fantasia se inspira na
história, atinge outras pessoas e abarca o futuro. Ela não está simplesmente
vibrando no éter. Na fantasia, nosso corpo físico é abandonado e um corpo
imaginário, muitas vezes marcadamente diferente do corpo físico, assume o
comando (...) A fantasia só “conecta” e exerce sua função quando está
corporalizada (COX, 1974: 78).
A corporeização da fantasia, o ritual, compõe-se de elementos (trans) e
(con)substancializados que têm a propriedade de devir espaço-corpo produzindo pontos
de contato, cruzamentos, interfaces porosas e diáfanas entre corpo e(m) espaço como
representação do ser em ação. O corpo, desta maneira, inserido em uma perspectiva
ritual “torna-se também ele espaço. Os movimentos do espaço do corpo não se detêm na
fronteira do corpo próprio, mas implicam-no por inteiro: se o espaço do corpo se dilatar,
por exemplo, a dilatação atingirá o corpo e o seu interior”77. Por isso, o corpo da
fantasia – a estrutura ritual – é aqui apreendido:
(...) não como um “fenômeno”, um percebido concreto, visível, evoluindo no
espaço cartesiano objetivo, mas como um corpo metafenômeno, visível e
virtual ao mesmo tempo, feixe de forças e transformador de espaço e de
tempo, emissor de signos e transsemiótico, comportando um interior ao
76
77
Cox, 1974: 63.
Gil, 2009: 53.
96
mesmo tempo orgânico e pronto a dissolver-se ao subir à superfície. Um
corpo habitado por, e habitando outros corpos e outros espíritos, e existindo
ao mesmo tempo na abertura permanente ao mundo por intermédio da
linguagem e do contato sensível, e no recolhimento da sua singularidade,
através do silêncio e da não-inscrição. Um corpo que se abre e se fecha, que
se conecta sem cessar com outros corpos e outros elementos, um corpo que
pode ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida. Um corpo
humano porque pode devir animal, devir mineral, vegetal, devir atmosfera,
buraco, oceano, devir puro movimento. Em suma, um corpo paradoxal78.
Este corpo paradoxal – que fomenta estados contrastantes no indivíduo em
situação ritual – é cena a engendrar uma superfície de imanência que impregna a
consciência do corpo ao espaço da consciência e o processo de reconhecimento das
formas dinâmicas79/expressivas ao corpo e aos seus movimentos habilitando o ato
cultual a preparar “a construção de um plano de imanência em que as ações do corpo já
não se distinguem dos movimentos do pensamento”80; o ritual é, portanto, ação
simbólica a se estruturar como drama social.
Entretanto, a noção de ação simbólica como empreendimento ou evento social,
permite-nos expandir a análise sobre o drama para além daquilo que convencionamos
chamar de representação – isto é, uma cena realizada com o objetivo de “re-presentar
um presente que estaria noutro lugar e antes dela, cuja plenitude seria mais velha do que
ela”81 – situando-o e identificando-o com a trama processual da ação social.
O ritual, como drama social, portanto, é espaço de “mudança” onde
determinados conflitos evidenciam-se através de inúmeras operações simbólicas; lugar
entre aqueles períodos de estabilidade onde as situações sociais se encontram reguladas
por um conjunto de normas bem definidas; ambiente que, por sua própria natureza,
torna-se propício à fantasia à medida que, ao revés de apresentar significados explícitos
ou conteúdos claros e inequívocos, provoca sensações de dúvidas e incertezas, promove
paradoxos, contradições e estados intermediários e estimula o preenchimento de suas
lacunas de sentido.
78
Ibidem: 56.
A expressão formas dinâmicas é definida por Langer (1962: 83-4) como aquelas formas produzidas
pelo movimento, quão os fios de chuva a aspergirem formas sinuosas nas vidraças, os mosquitos a
traçarem círculos no ar, ou bandos de pássaros a revolutearem no espaço.
80
Gil, 2009: 36.
81
Derrida, 1971: 157.
79
97
Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 05
INT – VARIADOS – MANHÃ
Cena: Enquadramento de Nadir e Sales, ambos em entrevista.
Duração no vídeo: 13’15” a 14’43”
Finalidade expressiva: Apresentar incongruências e conteúdos desencontrados entre
as informações oferecidas pelos atores sociais, o que favorece a possibilidade de
preenchimento das lacunas de sentido da Dança de São Gonçalo de Amarante ante o
cenário estruturado por dúvidas e incertezas sobre o fim do ritual.
A relação entre drama e conflito pontualmente apreendida nas operações
efetivadas pelo símbolo ritual demarca a vinculação entre a vida ordinária e os instantes
de (con)substancialização dos elementos cotidianos, denominados por Turner como
estrutura e antiestrutura ou communitas, respectivamente. Segundo o autor (2008: 41-2),
estrutura é o que mantém as pessoas separadas, define suas diferenças e limita suas
ações, já a communitas são aquelas condições que escapam ou desenham-se fora das ou
nas periferias da vida cotidiana.
Neste sentido, o clima do ritual é dado não por meio de transformações
essenciais do mundo, mas por meio de manipulações dos elementos e relações deste
mundo que permitem, através de combinações inúmeras, modos de salientar aspectos do
mundo cotidiano no ato ritual. Nesta dialética social, a estrutura institui a antiestrutura e
em um segundo momento a antiestrutura revitaliza a estrutura social; pois:
(...) a “antiestrutura” não configura a ausência de estrutura, mas um modelo
alternativo e espontâneo de organização social que emerge
momentaneamente nos interstícios da sociedade. A “antiestrutura”, pois,
dialoga com a “estrutura social” contribuindo inclusive, para a revitalização
desta última (SILVA, 2005: 39).
A antiestrutura ou communitas configura um espaço liminar, elíptico e
incoerente que acompanha a elaboração e execução dos dramas permitindo, aí, a
interação entre sagrado e profano, promovendo encontros e interações entre diversos
pontos e estados, e fomentando a noção de margem ao ato ritual. A condição liminar
furta-se à rede de classificações que, de modo geral, determina a localização de valores
e posições no plano cultural e escapa à cristalização das denominações utilitárias e
comuns ao universo cotidiano, por isso, as entidades liminares não possuem status;
afinal:
(...) não são nem uma coisa nem outra; ou podem ser as duas; ou podem não
estar nem lá, nem cá; ou podem, até, não estar em parte alguma (em termos
98
de qualquer topografia cultural reconhecida), e estão, em última análise,
“aquém e além” de todos os pontos fixos, no espaço-tempo da classificação
estrutural (TURNER, 2005: 142).
Tal aspecto de antagonismos em equilíbrio auxilia-nos a compreender e
exemplificar a condição liminar a partir da natureza devocional que caracteriza a prática
ritual dedicada, como pagamento de promessa, aos mortos a partir da Dança de São
Gonçalo de Amarante no povoado Mussuca. Por isso, conquanto encontremos à
promoção de nossos estudos determinadas dificuldades – fomentadas pelo fato de o
sentido religioso, que engendra o ato de se dançar para os mortos, encontrar-se
transformado pelo alto índice de apresentações informais estruturadas em espetáculos,
encenações e festas sem perfil, explicitamente, devoto onde o rito “de uma prática social
vinculada a um contexto religioso, o qual se constituía em sua única motivação de
realização; passa a ser objeto de apreciação em apresentações e outros tipos de eventos
distantes de sua razão inicial: o pagamento de promessa”82 – persistimos na árdua tarefa
de investigar os arcabouços cosmológicos fundadores do pensamento religioso da
Mussuca, movimentando esforços na compreensão do ritual e analisando, desse modo,
seu alcance social. Além do mais, apreendemos que:
Essa ambigüidade demonstra que a função real de um rito consiste, não nos
efeitos particulares e definidos que parece visar e pelos quais normalmente
são caracterizados, mas em uma ação geral que, mesmo permanecendo,
sempre e por toda a parte, semelhante a si mesma, é, no entanto, suscetível de
assumir formas diferentes de acordo com as circunstâncias (DURKHEIM,
2008: 459).
Neste sentido, apreendemos que pouco importa as espécies sensíveis sob as
quais os indivíduos se reúnem e organizam o culto ritual, mas sim que comunguem em
ação e pensamento no processo cerimonial porquanto um mesmo ritual pode nascer de
diversas causas, produzir múltiplos efeitos e adquirir inúmeras estruturas. Deste modo,
mesmo quando um rito serve apenas para distrair não podemos considerá-lo como nãorito; afinal:
(...) o ritual não pode ser considerado falso ou errado em um sentido causal,
mas, sim, impróprio, inválido ou imperfeito. Da mesma maneira, a semântica
do ritual não pode ser julgada em termos da dicotomia falso/verdadeiro, mas
pelos objetivos de “persuasão”, “conceptualização”, “expansão de
significado”, assim como os critérios de adequação devem ser relacionados à
“validade”, “pertinência”, “legitimidade” e “felicidade” do rito realizado
(Tambiah apud PEIRANO, 2000: 12).
82
Bomfim, 2006: 110.
99
Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 13
EXT – LARANJEIRAS – NOITE
Cena: Enquadramento de Grupo de São Gonçalo Jovem dançando pelas ruas da
cidade.
Duração no vídeo: 12’20” a 13’13”
Finalidade expressiva: Exibir a apresentação do grupo de jovens fora do contexto
de pagamento de promessa e expor a impossibilidade de considerar em tais casos a
manifestação como um ‘não-rito”.
Inferimos, pois, que a experiência ritual expressa não somente a representação
da rede de códigos pertencentes ao vocabulário da tradicional Dança de São Gonçalo de
Amarante, mas também um contínuo diálogo entre o estado presente do rito, seu
conjunto de crenças e a ordem social, que nos auxilia a perceber que ao concebermos o
ritual como:
(...) a colocação em foco, em close up, de um elemento e de uma relação (...)
é mais ou menos inútil classificar os ritos quando não se entendem bem as
relações básicas de que são construídos. E, de fato, entender as relações
básicas do mundo social é, automática e simultaneamente, entender o mundo
ritual (DAMATTA, 1997: 83).
Daí, depreendemos que o rito de morte atesta e soleniza o reconhecimento
coletivo de que os mortos continuam a estabelecer relações com os vivos e legitima a
possibilidade de uns auxiliarem aos outros através de um conjunto de orações, missas,
procissões, cantos e danças, ou seja, cerimônias que validem simbolicamente a ordem
social. A ação ritual, pois, acontece “em um universo político, sociocultural, econômico
e simbólico. Ela concebe, sustenta e se alenta de todos esses elementos. Ela é memória,
é tradição” (ROSA, 2002: 22).
Esta memória articulada como dramatização dinâmica da experiência coletiva
apresenta quatro fases principais e acessíveis à observação, a saber: ruptura ou
separação, crise ou intensificação da crise, ação corretiva ou retificação e reintegração.
1. A ruptura de relações sociais formais, orientadas pelas normas
estabelecidas, ou seja, o descumprimento deliberado de alguma regra ou
lei crucial que regule as relações em sociedade é o que observamos nesta
primeira etapa; no pagamento de promessa aos mortos esta ruptura dá-se
pela intromissão do plano invisível no mundo material. Ou seja, apesar
de a doutrina católica estabelecer lugares definitivos aos finados, qual o
100
céu, o inferno, o limbo e um único lugar provisório: o purgatório – que
caracteriza-se como uma sociedade intermediária – percebemos que os
mortos apreendidos aqui tal qual “entidades liminares não se situam aqui
nem lá; estão no meio entre as posições atribuídas e ordenadas pela lei,
pelos costumes, convenções e cerimonial. Seus atributos ambíguos e
indeterminados exprimem-se por uma rica variedade de símbolos”83 que
os possibilita a ocupação de um lugar mitológico na estrutura ritual,
tendo em vista que (são raros os devotos que acreditam de modo
ortodoxo no purgatório como pena aos mortos devedores) quase “todos
crêem que eles permanecem no mundo dos vivos ou em algum lugar de
onde podem vir de volta aos vivos para falar com eles” (BRANDÃO,
2001: 196).
2. Na segunda etapa apreendemos o estabelecimento da crise – momento
em que indivíduos e entidades se dividem e assumem posições
contrárias: conflitos, perturbações e atos de violência tornam-se comuns;
na dança aos mortos a crise (e seu processo de escalada) inicia-se
quando o morto devente impossibilitado de pagar promessa por haver
sido separado das condições sociais de atualização da dívida – pode
procurar convencer os vivos da indigência do cumprimento de seu voto
para que sua entrada no Reino dos Céus, através da elaboração da dança,
se faça sem empecilhos; atestam este fato os relatos coletados em campo
onde percebemos que a alma – segundo a crença coletiva – após o tempo
irremediável de sua purgação, se dirige em sonho84 a um de seus
amigos, parentes ou familiares e implora (com insistência) para que seja
realizada a promessa, por ela não cumprida (quando encarnada) a São
Gonçalo de Amarante. Este grau de insistência pode gerar perturbações
nervosas e incômodos que se perpetuam até a elaboração do ritual e que,
por isso, caracteriza a escalada da crise; a culpa e o arrependimento do
falecido, entretanto, em não ter cumprido o voto ao santo é o que
determina a fundação da crise, tendo em vista que os devotos atribuem
83
Turner apud Nascimento, 1999: 44.
A tradição do sonho como elemento de contato entre homem e invisível, tem origem nas culturas
hebréias e pagãs da Antiguidade, como apreendemos em Gênesis 37:5, na História de José e seus irmãos.
O Cristianismo herdou esta tradição, no seus primeiros tempos, no entanto, no século IV a Igreja busca
monopolizar a sua interpretação, intercedendo assim na relação onírica entre os indivíduos e o Ignoto.
84
101
ao santo um perfil paradoxal, atribuindo-lhe caracteres prestimosos e
vingativos, pois de maneira geral:
acredita-se que não existe possibilidade de que um promesseiro “seja salvo”,
“descanse em paz”, ou “vá para o Reino de Glória”, possuindo sem haver
pago uma dívida de promessa com São Gonçalo. Dívida assumidamente
contraída através de um voto feito e reconhecido como “válido”, isto é,
atendido pelo santo. Uma promessa sempre deve ser cumprida, por pequena
que seja (...) Mais do que outros santos de culto católico (...) São Gonçalo
(...) é considerado (...) um santo atento e vingativo. Não perdoa o devente e
possui poderes para conseguir junto à própria divindade que o promesseiro
“não entre nos céus” mesmo que seus outros pecados sejam leves o bastante
para livrá-lo definitivamente da “maldição do inferno”, e até de um estágio
prolongado no purgatório (BRANDÃO, 2001: 192).
3. A retificação do campo de relações é o estágio onde todos os gêneros de
dramas sociais se desdobram através de dispositivos compensatórios e
“mecanismos” responsáveis pela integridade e continuidade das ações
sociais. A ação corretiva na promessa aos mortos dá-se quando o
mensageiro do solicitante falecido busca o grupo de dançadores de São
Gonçalo e “promesseia” (isto é, realiza um pedido de pagamento de
promessa), responsabilizando-se, então, pela refeição ritual (o almoço) e
pela preparação do espaço onde será saldada a dívida.
Ligando-se ao sagrado através de relações pessoais e contratuais regidas pelo
princípio de “toma lá, dá cá”, o devoto encontra na promessa a contraparte
dos benefícios que espera dos santos. O cumprimento desta é, por
conseguinte, condição indispensável à manutenção da relação estabelecida
entre santo e devoto. A morte do promesseiro antes de cumprir o voto causa
uma quebra nesse equilíbrio, com repercussões negativas para o morto e seus
parentes vivos, que deverão providenciar o pagamento da promessa do
defunto a fim de estabelecer o equilíbrio rompido (DANTAS, 1976: 18).
4. Na fase da reintegração que caracteriza-se pelo restabelecimento da
ordem, há uma reconciliação dos sujeitos e entidades envolvidas no
conflito e uma articulação do drama à unidade social, que habilita o
homem a apreender e relembrar a validade da promessa na reunião dos
laços comunitários com o Divino, através de um conjunto sígnico
estruturado em relações regidas pelo princípio da troca, onde o devoto
encontra no voto os benefícios esperados. A promessa, pois, “enquanto
expressão da relação homem-divindade, encontra na dança de São
Gonçalo uma alternativa de associar o lúdico ao sacral, fazendo da
dança um rito destinado a manter a reciprocidade santo e devoto”85;
estas celebrações, portanto, “postulam uma reciprocidade e fazem parte
85
Dantas, 1976:18.
102
de um sistema de relações em que tudo repercute tudo: os homens
gozam da proteção propiciada pelos santos (...) em troca daquilo que
lhes oferecem” (WACHTEL, 1996: 91).
Analisando estas etapas do rito percebemos que os sonhos são agentes
indispensáveis à promoção da Dança para os Mortos, pois parecem desempenhar função
não prescindível no intercâmbio entre vivos e não vivos; a partir deste evento “(quando,
após a morte, os espíritos aparecem a amigos ou familiares...), verifica-se uma certa
amplitude e uma certa ‘simbolização’, como a assumida na interpretação dos sonhos ao
longo de todas as épocas e civilizações”86 que nos permite – ao apreendermos o trabalho
dos sonhos como indício de que “o inconsciente é dinâmico e não constituído por
formações arquetípicas cristalizadas”87 e ao percebermos os mitos não “como
estruturados pela tradição de uma forma marcadamente ‘estável’, onde a estrutura das
narrativas é pensada de modo fechado, com pouca ou nenhuma atenção para o processo
de mudança social”88 – estabelecer uma contigüidade orgânica, uma relação direta entre
as esferas do sonho, do mito, e do ritual, configurando uma tríade sobre modos de fazer
afirmações e articulações sobre as relações da cultura: uma produzindo imagens, outra
palavras, a terceira ações.
No entanto, embora esta ação ritual seja desenvolvida no âmago de um conflito
e, justamente, por isso se estruture como drama social, sua natureza não exclui a razão
da festividade; pelo contrário, a retificação do campo de relações sociais, através de
mecanismos responsáveis pela ação corretiva da crise, reclama o estado de fé e(m) festa,
inaugurando no ato cultual o encontro entre devoção e diversão que mobiliza os agentes
sociais a revigorarem o prazer de viver sob a proteção e o auxílio do Incriado
articulando-os a fonte que movimenta a força coletiva: o conjunto de crenças, histórias e
saberes comuns.
Mas, o que tem a festividade a ver com tudo isso? A festividade é o meio de
refrigerar a história sem fugir dela. A festividade como “excesso legitimado”,
como alegria e como justaposição, representa um papel indispensável na
restauração do senso humano para a paisagem mais ampla em que se
processa a história. Dá-lhe uma perspectiva da história, sem removê-lo do
terror nem da responsabilidade que carrega em sua qualidade de fazedor da
história. Como? (COX, 1974: 50).
Ao reconhecermos que as festas celebram alguma coisa, um acontecimento, um
fenômeno ou evento histórico localizado no passado ou no futuro e identificarmos a
86
Malinowiski, 1984: 176.
Barbosa, 2001: 117.
88
Ibidem: 118.
87
103
estrutura festiva como composição que agrega tanto elementos que lhe são inerentes
quanto aspectos que lhe escapam, apreendemos a festividade quão um corpo composto
que não se faz como um enredo insulado ou como mera afirmação da história, mas
como fenômeno que articula agentes cônscios no processo de reajustamento entre
crenças, histórias e saberes ao panorâma da Eternidade; por isso:
Seja qual for a complexidade de uma festa religiosa, trata-se sempre de um
acontecimento sagrado que teve lugar ab origine e que é, ritualmente,
tornado presente. Os participantes da festa tornam-se os contemporâneos do
acontecimento mítico. Em outras palavras, “saem” de seu tempo histórico –
quer dizer, do Tempo constituído pela soma dos eventos profanos, pessoais e
intrapessoais – e reúnem-se ao Tempo primordial, que é sempre o mesmo,
que pertence à Eternidade. O homem religioso desemboca periodicamente no
Tempo mítico e sagrado e reencontra o Tempo de origem, aquele que “não
decorre” – pois não participa da duração temporal profana e é constituído por
um eterno presente indefinidamente recuperável89.
Aí, depreendemos que a festividade não indica superficialidade, seu estado
fundado por um período representativo de tempo reservado à expressão plena dos
sentidos e sentimentos, admite o conflito e o drama; afinal, “a verdadeira celebração não
foge diante da realidade da injustiça e do mal, mas se realiza de maneira mais autêntica,
onde se reconhecem e superam essas realidades negativas e não, onde são evitadas”90,
inferimos que a festividade não se confunde com frivolidade porquanto àquela faz-se
indispensável um espaço de originalidade e não de absurdidade que se assemelha à
confiança lúdica e à frivolidade cínica – respectivamente, e por fim, observando a festa
como o lugar em que os homens tornam-se contemporâneos dos deuses e do
acontecimento mítico primordial compreendemos que seu ambiente é dos mais
adequados à solução de crises, conflitos e perturbações sociais.
No tempo consuetudinário, há sempre o risco de esquecermos o que é
fundamental: que a existência não é dada por aquilo que chamamos de Natureza, mas
uma criação do Ignoto; nas festas, ao contrário, reencontramos plenamente a dimensão
sagrada da Vida, experimentamos a santidade da existência humana como criação
divina e não nos furtamos em observar as representações do sensível a nos apontar que
o matiz de nossa embrionária sensibilidade religiosa é a fé e sua manifestação na
gestualidade lúdica e no riso, projetando-nos em oração e alegria à esperança.
Desta maneira, percebemos que a fé encontra no riso a possibilidade de
comunicar e estender seus fundamentos e a estrutura da força coletiva, induzindo o
89
90
Eliade, 1992: 75.
Cox, 1974: 29.
104
homem a mover-se e, sobretudo, comover-se à compreensão dos fenômenos do mundo
comum; assim, “o riso tem justamente a função de reprimir as tendências separatistas.
Seu papel é corrigir a rigidez, transformando-a em flexibilidade, readaptar cada um a
todos, enfim aparar arestas” (BERGSON, 2004: 132).
Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 15
INT – CENTRO DE CONVENÇÕES – MANHÃ
Cena: Enquadramento de Grupo de São Gonçalo Mirim louvando ao santo.
Duração no vídeo: 15’01” a 16’07”
Finalidade expressiva: Apresentar o processo de iniciação das crianças no ritual
como fundamento da estruturação da força coletiva, onde o riso ao revés de
reprimido é utilizado para favorecer o sentido comum e a fé no porvir.
A festa como arcabouço da fé, ou a fé como substrato à festa representa e
descobre o estreito parentesco entre atividade lúdica e religião, estabelecendo encontros
entre o ritual e o jogo, fomentando o enlace entre culto religioso e jogo cênico e
promovendo associações e similaridades entre os aspectos sociais do complexo “jogofesta-ritual”. A representação sagrada, neste circuito triádico, estimula-nos a apreender
o perfil interativo que o coordena como conjunto de atividades livres e voluntárias,
conscientemente tomadas como “não sérias” e exteriores à vida habitual (ou seja,
processos de evasão e transformação da vida cotidiana), mas ao mesmo tempo capazes
de absorver os homens de maneira intensa e total dentro de limites espaciais e temporais
próprios – a nível físico ou material – orientando-os, por um conjunto de ordens e regras
que dispõem e motivam os indivíduos a compreensão do mundo trans-humano e a
celebração deste Ser Supremo.
A palavra celebrar quase diz tudo: o ato sagrado é celebrado, isto é, serve de
pretexto para uma festa. A caminho dos santuários, o povo prepara-se para
uma manifestação de alegria coletiva. As consagrações, os sacrifícios, as
danças e competições sagradas, as representações, os mistérios, tudo isto vai
constituir parte integrante de uma festa. Pode acontecer que os ritos sejam
sangrentos, que as provas a que é submetido o iniciado sejam cruéis, que as
máscaras sejam atemorizantes, mas tudo isso não impede que o ambiente
dominante seja de festividade, implicando a interrupção da vida quotidiana
(HUIZINGA, 1990: 25).
No terreno da celebração, portanto, as fronteiras do jogo, da festa, do ritual se
dissolvem no campo da atividade e do movimento, eliminando nódulos inseridos entre
tais representações coletivas e fomentando um estado de compartilhamento onde ideais
105
e práticas adquirem fluidez e ductilidade possibilitando, assim, a construção de uma
contigüidade orgânica entre as formas de expressão social, através da dança, da música,
da cena.
106
3.2.1 - MODALIDADES DO ATO(R) RITUAL
Aplicamo-nos a análise das modalidades da experiência sagrada e profana em
hibridação, para melhor compreendermos o binômio que se constata na formação do
ritual ao santo amarantino, onde a diversão é (con)sagrada pelo ato devoto. Este
binômio – que se constrói a partir das relações entre fé e festa com que os
sangonçalistas participam a todo o momento da estrutura cultual – patenteia autênticas
expressões de religiosidade e ludicidade que influenciam, estruturam e articulam as
representações sensíveis.
Daí, a relevância de se conceber, anteriormente, um espaço analítico acerca dos
relacionamentos entre devoção e diversão, como processos estruturais de contínuas e
persistentes (inter)ações simbólicas. Neste momento, todavia, após analisarmos o
complexo triádico elaborado entre jogo-festa-ritual, dispomo-nos a compreender a
trama que ordena os vínculos entre os atores rituais e suas “personagens”, examinando a
plástica ritual, analisando os objetos da manifestação popular e investigando os traços
compositores do drama social.
Esta composição, que configura as relações que o homem devoto produz em
estado de atuação ritual, encontra-se intimamente vinculada àquilo que exorta a
humanidade a celebrar deuses e naturezas, chorar os mortos, dignificar os vivos,
provocar angústias ou admiração, gozar de prazer, convencer e seduzir, festejar o amor,
solenizar os reencontros, dialogar com potências invisíveis, rir, zombar, recitar, cantar,
dançar: a habilidade de associar corpo e espírito em um acontecimento social
espetacular91.
Tal estado de associação entre corpo e espírito, na dimensão social espetacular,
promove agenciamentos e cruzamentos que atravessam as condições nodais que
observamos, habitualmente, nos dados da realidade e não-realidade; os fatores
cristalizados que examinamos, usualmente, como distintivos do sagrado e profano; as
qualidades perras que consideramos, frequentemente, como permanências isoladas do
ser e não-ser; habilitando-nos, deste modo, a uma compreensão mais dilatada da Vida.
91
“Por ‘espetacular’ deve-se entender uma forma de ser, de se comportar, de se movimentar, de agir no
espaço, de se emocionar, de falar, de cantar e de se enfeitar. Uma forma distinta das ações banais do
cotidiano” (PRADIER, 2009: 24).
107
Neste sentido, apreendemos que há um processo de “co-habitar” corpo e(m)
espírito que entrecruza cotidiano e drama como modalidades do ato(r) ritual, aplica
(ainda que de modo dialético) a ambivalência do convívio ator e personagem e, por isso,
promove tênues limites entre vida e arte através de (trans) e (con)substancializações
simbólicas.
Estas associações, portanto, entre corpo e espírito, ator e personagem, cotidiano
e drama, engendram possibilidades de relacionamento entre o “rito” e o “teatro”,
identificando-os como categorias que representam, embora substancializados de modo
diverso, eventos da mesma natureza, elípticos em si: são performances.
Para esclarecer a diferença que deve ser considerada entre eventos
performáticos entendidos como “ritos” e aqueles definidos como “teatro”,
Schechner destacou as noções de “eficácia” e “entretenimento”. De acordo
com ele, uma performance defini-se como “eficácia” quando tem
repercussões significativas na sociedade, tais como solucionar conflitos,
provocar mudanças radicais, redefinir posições, papéis e/ou o status dos
atores sociais (...) Inversamente, as performances voltadas para o
“entretenimento” não alteram de modo efetivo nada na sociedade, conforme
seria o caso dos espetáculos teatrais. Portanto, para Schechner, seria esta
polaridade, entre “eficácia” e “entretenimento”, que consiste na diferenciação
considerável do “rito” (ou “ritual”) para o “teatro”, pois, segundo ele, de fato,
nenhuma performance é puramente “entretenimento” ou absolutamente
“eficácia”, uma vez que dependendo das circunstâncias, ocasião, lugar e,
principalmente, o tipo de envolvimento da audiência, “rito” pode ser visto
como “teatro” e vice-versa (SILVA, 2005: 49-0).
Assim, depreendemos que a formação e vivência no mosaico devoção-diversão é
“sujeito-dependente”, no entanto, conquanto seja um processo individual faz-se,
constantemente, “impregnado de certa qualidade social. Trata-se de um processo vivido
por um indivíduo concreto, mas condicionado pela sociedade em que vive”92, ou seja, é
validada por um conjunto de bens simbólicos que possibilita aos homens o
compartilhamento de determinados ideais, hábitos, costumes, ações, viabilizando, desta
maneira a participação e integração dos indivíduos na organização social e facilitandonos o entendimento de que toda sociedade humana se edifica através de processos que
possibilitam aos homens identificarem-se e reconhecerem-se pela utilização de
materiais culturais comuns.
Esta relação, pois, de “sujeito-dependência” localiza-se a nível pessoal e
coletivo, processo do substrato individual e dos materiais culturais de que dispomos nos
atos performáticos, que induz o ato(r) ritual a estruturar categorias de transportation e
transformation.
92
Vázquez, 1999: 137.
108
O primeiro termo faz referência a uma experiência que caracteriza qualquer
tipo de evento performático, independentemente dele se apresentar aos olhos
do observador como “eficácia” ou “entretenimento”. Isso sugere que
participar de uma performance implica deslocar-se para determinado local,
estar no ambiente exclusivo ou, então, penetrar os espaços reservados, físicos
e simbólicos de um “mundo recriado” momentaneamente; envolver-se na
experiência singular de “ser levado a algum lugar”, quando num estado de
“transe”, ou o desafio (psicológico) de tornar-se “outro” sem deixar de ser a
si mesmo, quando da representação cênica de um personagem qualquer (...)
O processo de transportation consiste em uma experiência temporária que, às
vezes, também implica um status permanente. Essa experiência Schechner
denomina transformation, que se refere ao desdobramento de certos eventos
performáticos que instituem um novo papel e/ou condição de status para o
performer na sociedade, bem como propiciam ao ator social, na qualidade de
performer ou de espectador, desenvolver uma “consciência crítica” de si
mesmo e do “mundo lá fora” ou da realidade social em que está inserido
(SILVA, 2005: 50).
Esta relação entre “ritual” e “teatro”, induz-nos a perceber a situação dos
sangonçalistas como atores rituais na Dança de São Gonçalo de Amarante que
promovem e articulam personas93 ao seu papel social transitando pela experiência
singular da liminaridade ou ambigüidade de papéis e estruturas, transportando e
transformando-se em “sujeitos duplos”, promovendo o compartilhamento simultâneo de
estados de um “não-eu” e “não não-eu”.
Ainda reconhecemos o ator, mas sabemos que ele é simultaneamente um
outro. É o jogo de reviramento de si, articulado à questão do olhar, que
multiplica situações, opera deslocamentos, deslancha a ação, confunde
planos, divide, revira, aproxima e afasta o eu e seu outro, ao mesmo tempo
em que os mantém unidos (MIRANDA, 2008: 63).
Em verdade, o “ator não pode ‘ser’ e construir um outro ser [a personagem] ao
mesmo tempo. É a impossibilidade física de dois corpos ocuparem o mesmo lugar no
mesmo instante, e também a impossibilidade psíquica de haver dois egos numa só
psique” (Cohen, 2007: 94), todavia a condição liminar habilita o artista-devoto a
vivenciar estados conflitantes e contraditórios, inviáveis e, no quadro de representações
comuns, impossíveis. Por isso, conquanto apreendamos que se “a personagem não for
concretamente individual em cada uma de suas ações, não será uma personagem
artisticamente realizada”94, notamos que no ato ritual o papel de personagem não pode
ser visto como desvinculado da vida pessoal de quem o representa, mas como
indissociável desta, eis a função do rito (como ação performática): fundir (em encontros
possíveis) vida e arte; afinal, em um ritual, esclarece Geertz (1989: 82), tanto o mundo
93
Aqui, adotamos os termos persona e personagem como equivalentes, conquanto reconheçamos que há
diferenças entre aquele (comum para designar arquétipos e universais) e este (corrente para algo mais
bem definido ou convencional).
94
Eco, 2006: 213.
109
vivido como o imaginado fundem-se em um só, mediados por um único conjunto de
formas simbólicas.
Atesta este relacionamento intrincado entre a personagem e o ator o fato de a
figura representada não possuir um lugar concreto na vida social; pois, “a personagem
não existe, biologicamente falando”95, sua existência é uma remodelação do corpo físico
e cultural do ser que se mostra, um processo de extrojeção96.
A atuação da personagem, logo, faz-nos compreender a plasticidade existente no
comportamento humano; ao compô-las, inspirados no imaginário coletivo que através
de um conjunto de crenças, orienta a fé no santo amarantino, os devotos não perdem sua
integridade enquanto homens, mas se desdobram em elementos da ação performativa. A
noção de persona aqui utilizada, portanto, é a do papel que o indivíduo preenche em
dramas sagrados, sendo na Dança de São Gonçalo de Amarante, tal papel
desempenhado por uma equipe que se subdivide em quatro grupos:
1) Patrão: Líder do grupo, esta é a personagem que detém a última palavra em
qualquer situação interna ou externa tornando-se responsável por todas as atividades
que envolvem o ritual. O domínio do grupo, o saber lidar com as pessoas em
comunidade, a criatividade e alegria constante são fundamentais para o exercício do
papel. Representante de São Gonçalo vestido de marinheiro (posto que a crença local
traça uma ligação do santo com o mar) a função primordial do patrão é comandar a
dança através de sinais e gestos convencionais tocados na caixa (instrumento musical).
O patrão usa um tênis branco, calça branca com uma fita vermelha de cada
lado, compreendendo toda a extensão da peça, e tem um cinturão preto. A
roupa de cima é uma camisa branca de manga comprida – normalmente
dobrada até a metade do antebraço –, com detalhes em azul na gola, que se
estende para a parte de trás da peça, de onde se percebe duas âncoras brancas
– uma de cada lado. Na parte da frente da camisa está bordado “S. Gonçalo
de Amarante”. E por fim um quepe azul e branco, com um brasão na frente.
A menção ao marinheiro que se acredita por aqui, que tenha sido São
Gonçalo (BOMFIM, 2006: 74-5).
95
Aslan, 1994: 63.
Cohen (2007: 105) propõe o uso do termo extrojeção para designar o processo pelo qual o performer
compõe sua persona a partir de sentidos e emoções que lhe são particulares.
96
110
Ilustração 11: Mestre Sales
Segundo José Ranulfo Paulo dos Santos, conhecido como Mestre Ranulfo
(Depoimento: 2010), o primeiro patrão denominado Mulungu ao retornar à África elege
como líder da brincadeira Manoel Dadare; então:
(...) ficou Manoel Dadare como patrão (...) aí, foi quando ele morreu, ficou
Heitor, brincou, brincou, brincou. Quando ele não pôde mais brincar entregou
a outro (...) ao finado Manoel Ligório – ficou brincando – quando o finado
Manoel Ligório não agüentou brincar mais, entregou a Zé Augusto (que é
irmão de finado Arthur) quando Zé Augusto enfraqueceu (...) aí, ele não pôde
mais (...) entregou ao finado Arthur de Aragão. Meu pai [Mestre Paulino]
nesta altura era rapaz novo, não tava nem na Mussuca, ele tinha brincado na
idade de doze anos, mas foi pra Salvador pra estudar um bocado de ano.
Quando meu pai chegou, ele chegou com trinta e poucos anos, aí foi brincar.
Neste entrecho, apreendemos os nomes dos seguintes patrões: Mulungu, Manoel
Dadare, Heitor, Manoel Ligória, Zé Augusto, Arthur de Aragão, José Paulino e ao
acrescentarmos a alcunha do atual patrão Sales, habilitamo-nos a elaborar uma
estimativa acerca da origem do culto nas terras mussuquenses, tendo em vista que tal
função abarca dois fatores: I) o primeiro diz respeito à participação do devoto no núcleo
de dançadores antes de se tornar patrão; afinal, o devoto precisa ter integrado o grupo de
figuras por determinados anos, antes de destacar-se como líder, e à medida que a
entrada no grupo de veteranos se dá apenas a partir de dezoito anos, o ingresso ao cargo
de patrão demanda idade superior aos trinta anos; II) o segundo vincula-se ao “tempo de
serviço” do patrão, pois, sendo uma dança de considerável exigência e alto vigor físico,
dificilmente os homens ocupam a posição de patrão com idade acima dos setenta anos.
Seguindo esta perspectiva estimativa e considerando a média de trinta anos para
os dois últimos patrões e vinte anos para os demais, voltamos à década de oitenta,
111
quando Paulino entrega a função a Sales e, seguindo o processo de antecedência,
retornamos aos anos da década de cinqüenta. A partir daí, temos seis nomes, o que
resulta em 120 anos contando desta data e nos leva ao ano de 1830, século XIX; talvez a
idade da manifestação seja mais recente, quiçá mais retrógrada, no entanto, isto apenas
um estudo mais voltado ao universo de composição histórica da Dança de São Gonçalo
de Amarante, poderá afirmar, estimula-nos, neste momento, tão-somente levantar
dados, comparar histórias e promover pontos possíveis e fecundos às investigações do
porvir.
A apresentação dos patrões no relato de Mestre Rufino, nos faz observar,
contudo, que se em décadas passadas encontrar um substituto para a função de patrão
parece ter sido tarefa natural, hoje em dia uma problemática relaciona a figura do patrão
ao fim da manifestação. Mestre Sales (Depoimento: 2010) em um desabafo diz que “pra
ser patrão tem que ser uma pessoa que não faça nada”, os jovens da Mussuca trabalham,
estudam e, por isso (pelas responsabilidades, distintas às de seus pais, que a eles são
atribuídas) temem e recusam assumir uma posição tão grave e séria reconhecida por
todos como a de uma liderança local, o que induz Sales a exclamar que:
Daqui uns dias vai parar [fala do fim da brincadeira] porque eles tão tudo
trabalhando, não têm tempo de brincar, (...) só quem tem um tempuzinho só
os mirins que por enquanto não trabalha ninguém ainda (...) Aí, com o tempo,
São Gonçalo vai acabar.
O fato de muitas apresentações ocorrerem em “meio de semana” torna este fato
ainda mais problemático porquanto ocupados, os devotos deixam de integrar o circuito
de pagamentos de promessa e as apresentações durante a semana ou deslocam
calendários e datas cerimoniais. Inserimos em campo, por isso, uma grave especulação
sobre o desfecho da manifestação na Mussuca [Você acredita que a Dança de São
Gonçalo de Amarante vai morrer?]; percebemos a presença de apologistas e
apocalípticos, mas a resposta mais profunda que recebemos nos foi fornecida por um
jovem de, aproximadamente, treze anos chamado Fernando Gomes da Silva; eis aqui:
“Não, porque é popular da Mussuca”.
2) Mariposa: Originalmente, única componente do gênero feminino a participar
da dança, esta personagem (atualmente representada por Dona Maria Santana, esposa de
Mestre Sales) conduz a imagem do santo em uma embarcação à frente do grupo,
durante os cortejos e procissões. Este barco assume papel de destaque durante a Dança
de São Gonçalo de Amarante propiciando aos homens devotos uma infinidade de gestos
112
simbólicos. Diante de sua figura, os folgazões ajoelham-se, benzem-se e ditam vivas ao
santo.
Assumindo a função de ponte entre o céu e a terra, a embarcação – portando a
imagem do santo – é uma espécie de altar (objeto ausente no repertório dos cortejos)
móvel, conduzido pelos devotos como um elemento de alto simbolismo e estimulante de
uma estrutura de fé. Decorada com fitas, a embarcação traz por intermédio de sua
composição um estado de renovação da vida onde a profusão de cores e formas
alimentam a esperança na chegada de um tempo de graça e beleza.
Ilustração 12: São Gonçalo de Amarante
Apesar de nos tempos hodiernos a personagem não possuir indumentária fixa,
tampouco um repertório gestual definido e reconhecido como tal, Maria Nadir dos
Santos, Dona Nadir (Depoimento: 2010) nos esclarece que no passado a mariposa
compunha uma persona complexa ao afirmar que:
A mariposa não é este gesto, a roupa dela não era deste jeito, a mesma roupa,
o sapato que o homem usava ela também usava. A roupa da mariposa era ou
um azul claro ou então branca (...) o vestido dela era de manga por aqui
[aponta para o cotovelo] dispunhada. O colarinho, a gola era batida (...)
Naquela gola colava bico, aqui na manga colava bico, aqui na cintura colava
bico e era saia tudo comprida, franzida, bem rodada. E aquele gorro branco
na cabeça (quando não era um pano branco de renda na cabeça), colares e
tudo. E agora a mariposa não usa (...) opa: colar usa, mas não é pro São
Gonçalo, a roupa nunca é pro São Gonçalo – quer dizer que a origem do São
Gonçalo não tá completa, não é como começou.
No entanto, ainda que a consideremos incompleta em suas ações, esta
personagem traz a delicadeza do caráter feminil à cena, orientando os devotos,
folgazões e transeuntes a um encontro primordial entre a devoção e a diversão em seu
movimento, sorriso, afabilidade e generosidade a todos.
113
3) Tocadores: Em número de quatro (ou três) não se limitam apenas a tocar os
instrumentos, mas fomentam serenidade, harmonia e sutilidades à ação ritual. Dois
tocam cavaquinho e os dois outros violão (é comum haver apenas um único violão), não
possuem indumentária fixa, embora, nos últimos tempos percebamos uma preocupação
com um traje comum entre estes.
Neste grupo, o maior representante é Mestre Ranulfo (Depoimento: 2010) que
inicia-se no ritual como dançador mas descobre especial vocação à música.
Eu tava com idade de doze anos; aí papai disse – “Ranulfo” – “Sim, senhor”
– “Eu vô dar um treino em você no São Gonçalo”; aí, finada minha mãe –
“Vá meu filho” (...) Eu brinquei umas quatro vezes; depois tio de minha mãe
disse – “Paulino, compre um cavaquinho que é pro Ranulfo aprender pra ele
ficar de tocador de São Gonçalo. Aí, papai me comprou um cavaquinho e eu
fui lá aprender; aí, ele disse – “Mas, tem que procurar mais quatro” –
procurou o finado Arnaldo, procurou o compadre Agostino, Zé Augusto e o
finado Zé Pereira (que é irmão de Zé Augusto). Aí, nenhum deu pra violão só
deu pra violão eu; aí, eu comecei a tocar mais eles.
Dentre este complexo de personas podemos considerar a cantadora – papel
criado recentemente – cuja função é tirar os cantos; esta função, em verdade, pertence
ao patrão, todavia, devido às condições vocais de Mestre Sales este papel passa a ser
executado por uma segunda pessoa: Maria Nadir dos Santos ou Dona Nadir (filha do
antigo patrão, Mestre Paulino e irmã de Mestre Ranulfo). A cantadora não possui
indumentária fixa e por ser uma importante mestre popular da Mussuca, por integrar,
coordenar e dirigir diversos movimentos culturais, porta-se, de modo geral, com
vestidos estampados e rodados representativos de outras manifestações. Sobre sua
iniciação como cantadora, Nadir (Depoimento: 2010) comenta:
Na época (...) eu cantava com meu pai, mas não era assim, como eu faço
parte agora, sabe?! Aí, o tempo foi passando, meu pai ficou véio (...) aí
passou a doença de meu pai, aí meu pai não agüentou mais nem cantar e nem
brincar. Aí, Seu Sales como já brincava que era figura de frente, aí meu pai
colocou ele pra ser o pratrão. Perguntou as figuras todas, mas ninguém
aceitou; aí, Sales ficou, entendeu?! Disso pra cá (...) Edivaldo que era figura
também ficou cantando, sabe?! Puxando o grupo (...) Como o grupo virou,
assim, para representar em todo evento, aí Edivaldo saiu – ele disse que só ia
brincar agora quando fosse promessa – porque quando ele entrou pra brincar
só era só por promessa. Aí, eu fiquei cantando no São Gonçalo, eu passei
ainda uns quase cinco anos sem cantar, sabe?! Aí, depois foi quando eu me
separei do meu ex-marido, aí foi que eu comecei mesmo com tudo: a cantar
todas festas que tinha até hoje.
4) Dançadores ou Figuras: Em número de oito nas situações tradicionais de
pagamento de promessa este número pode aumentar nas apresentações de palco, de
caráter informal. Dois deles são os guias ou figuras de frente cujas principais funções
são liderar as fileiras de dançadores, iniciar as evoluções e tocar uma espécie de
instrumento musical feito de bambu (chamado de pule ou reco-reco ou querequexé) e
114
tocado por uma baqueta; em geral, é o patrão que escolhe quem há de ficar na posição
de figura de frente e como diz José Neilton dos Santos, apelidado como Nenel, pai de
Neilton dos Santos (Depoimento: 2010) “algum da gente que se interessar pode brincar
de frente”; porém, segundo Mestre Ranulfo (Depoimento: 2010) o mais habitual é o
treinamento aos figuras de modo extensivo, dos treinos, então, “aquele que dá pra guia
é aquele que fica”.
O modelo “exemplar” acerca da indumentária ritual dos figuras está em
Cadernos de Folclore, Dança de São Gonçalo, de Beatriz G. Dantas onde percebemos
que:
À exceção do patrão, que se veste de marinheiro, influenciado pelos versos
que afirmam que “São Gonçalo é santo, ele já foi marinheiro”, os dançarinos
têm sua indumentária ritual à base de trajes e adornos femininos. Por cima
das calças usam anáguas e saias floridas que lhes chegam até a altura dos
joelhos, traje que é completado por uma blusa cavada de cor branca,
geralmente rendada. Um xale colorido enfeitado de fitas atravessa-lhes o
tronco em diagonal, sendo preso na cintura. Na cabeça usam turbante branco
enlaçado de fitas coloridas. Pulseiras, colares e brincos servem-lhes de
adornos. Os colares no entanto são mais do que simples enfeites, pois
deverão ser usados necessariamente quando da realização da dança, mesmo
durante o “ensaio geral”, quando não trajam a indumentária acima registrada.
Embora não tenham cores específicas nem se lhes atribua significado
especial, são símbolos identificadores dos dançarinos (DANTAS, 1976: 06).
A este respeito, Falcão (2006: 06) ratifica:
A indumentária ritual dos dançantes é composta por calça de brim branca,
camisa branca sem manga com bicos na gola e nas cavas, saia estampada
com bicos de renda, um xale branco de crochê enfeitado com fitas coloridas
enviesado no peito das figuras, um lenço branco com uma fita vermelha ou
azul, como tem sido ultimamente na cabeça, além dos adereços, colares,
brincos e pulseiras. Na ponta de cada fila ficam os guias que tocam cada um
o pule, forma de reco-reco feito de bambu.
Ilustração 13: Neilton dos Santos - Figura da Dança de São Gonçalo
115
No entanto, segundo Dona Nadir (Depoimento: 2010) algumas coisas descritas
por Dantas transformaram-se, durante os anos: algumas quadras foram esquecidas,
ritmos perdidos, detalhes incorporados, o que justifica reivindicações por parte dos
partidários da tradição que rejeitam modificações e mudanças na estrutura ritual.
Não é como era antigamente: as músicas é uma música só, é que eles
mudaram de ritmo; as roupas é as mesmas roupas, mas não é como era
antigamente; as saias são curtas não têm roda; eles não usa anágua,
entendeu?! Não usa pó, não usa brinco, não usa pulseira e o que eles usam
mal é o colar e acabou! Mas, na época quando começou era tudo: era pó, era
colar (...) porque era tudo mulé.
E prossegue:
Os gesto dele dançar não é como era antigamente porque o São Gonçalo não
é saltando, na hora da chula, não é aquele remelexo todo, não é! Era tudo
normal, mexia um pouquinho, sabe?! (...) Mas, agora não, eles dançam que
nem tá dançando o arroxa. E a saia era tudo rodada, era tanto (...) que minha
mãe botava goma nas anágua; e as anágua era tudo de bico, os homens
parecia uma mulé mesmo.
As críticas de Dona Nadir às modificações pelas quais o ritual passa, como
dinâmica em processo da cultura popular, possibilita-nos apreender que o que o homem
é pode estar tão envolvido com onde ele está, quem ele é e no que ele acredita, que se
torna inseparável dele. Esta indissolubilidade permite-nos avaliar o cruzamento entre
devoção e diversão como produto de uma sociedade formada das mais diversas matizes
culturais. Por isso, a partir desta breve análise das personagens tentamos promover
através destas quatro figuras a revelação de um todo ritual; entretanto, sabemos haver
ainda muito a desvendar. E, aprender, a pensar os saberes locais como estruturas
dinâmicas, com estes artistas, ditos populares, é apenas o primeiro passo de nossas
investigações.
116
3.3 - GESTUALIDADE E(M) BRINCADEIRA: EXPRESSÃO DA DANÇA
Neste tópico pretendemos observar e descrever aspectos estruturais da
gestualidade mussuquense na formação da Dança de São Gonçalo de Amarante,
promovendo a análise do crescente diálogo entre devoção e diversão a partir da
anatomia simbólica da estrutura física97 dos sangonçalistas, ou seja, das confecções
sígnicas e psicomotoras do corpo que dança no contexto ritual. No entanto, ao revés de
utilizarmo-nos da descrição do movimento corporal como unidade correspondente à
prática gestual – o que reduziria a elaboração do movimento a depósito localizado em
alguma qualquer vereda do passado – optamos, aqui, a relacioná-la e integrá-la ao
exame do corpo ritualizado pela prática coletiva.
Isto porque escrever sobre a dança é diferente de descrever a dança. O que a
descrição busca fazer é uma tentativa de aproximação do universo gestual
que, dificilmente será apreendida em seu todo, na forma como acontece e
com as sensações que provoca (LARA, 2008: 21).
Por isso, não adotamos, em nossa pesquisa, a descrição do movimento como
elemento substituto do movimento, propriamente dito, tampouco efetivamos uma
relação de filiação ou parentela entre este e aquela, mas perfilhamos o exercício da
descrição como fenômeno relevante para uma maior compreensão dos discursos sociais.
Neste contexto, a descrição de movimento não forma uma unidade com seu
movimento original. Há necessariamente uma diferença entre a descrição e a
dança. Pesquisadores não pretendem descrever com absoluta precisão, nem
preservar a dança, mas abrir novas possibilidades de entendimento. Ao invés
de estabelecer correspondentes, símbolos e significados, a descrição
multiplica as possibilidades de interpretação, de associações teóricas, e a
criação de mais material escrito e coreográfico (FERNANDES, 2002: 28).
Assim, propomo-nos a analisar e decodificar, através da descrição ritual, a
formação e estruturação da dança em louvor ao santo amarantino, desenvolvendo
conciliações entre a realidade estética e social e promovendo, desse modo, o encontro
entre as dimensões expressivas e os arcabouços culturais que organizam o universo
cerimonial. Esta brincadeira em formato de coreografia se organiza em jornadas, ou
seja, cantos que estabelecem a seqüência do conjunto e estruturam a ordem-ritual
proposta a seguir:
97
Rodrigues (1997: 43) define como estrutura física a forma pela qual o corpo se organiza para realizar
diversas categorias de linguagem de movimento.
117
Jornada 1: Nas Horas de Deus Amén
Nas Horas de Deus, Amén (2X)
Pade, Filho e Espírito Santo (2X)
Ore Vive, Ore Viva (2X)
Refrão
Viva a São Gonçalo Viva (2X)
Essa Premera Cantiga (2X)
São Gonçalo é Um Santo (2X)
Para São Gonçalo Eu Canto (2X)
Casamenteiro das Veia (2X)
Refrão
Refrão
Eu Perdi a Minha Agulha (2X)
Porque Não Casar as Moça ? (2X)
No Caminho de Amerante (2X)
Que Mal lê Fizero a Ela? (2X)
Refrão
Refrão
Quem Dançar o São Gonçalo (2X)
São Gonçalo é Um Santo (2X)
Tem Que Ter o Pé Ligeiro (2X)
Feito do Pau da Afavaca (2X)
Refrão
Refrão
Na Saída do Batente (2X)
Quem Não Tem Cama nem Rede (2X)
Tem Garrocha no Terreiro (2X)
Dormi no Couro da Vaca (2X)
Refrão
Refrão
Le Vem o carro Cantando (2X)
Deus nos Salve a Casa Santa (2X)
Cheio de Cravo de Rosas (2X)
Onde Deus Fez a Morada (2X)
Refrão
Refrão
São Gonçalo Vem no Meio (2X)
Onde Mora o Cálice Bento (2X)
Escolhendo a mais Formosa (2X)
E a Hóstia Consagrada (2X)
Refrão
Refrão
São Gonçalo é Um Santo (2X)
Vamo S’imbora meus marujo (2X)
Ele Já Foi Marinheiro (2X)
Pra cidade da Bahia (2X)
Refrão
Refrão
Vamo S’imbarcar com Ele (2X)
São Gonçalo Navegante (2X)
Para o Rio de Janeiro (2X)
Nossa Senhora da Guia (2X)
Refrão
Nos dois primeiros versos da jornada, todos os figuras e a
cantadora se concentram elevando assim o plano mental e
benzem-se – realizando o sinal da cruz – e apenas no terceiro
verso, os dançantes iniciam a estrutura coreográfica. As duas
fileiras realizam então cada qual um círculo pelo espaço –
Il. 14: Legenda
118
coordenadas pelos figuras de frente – aqui designado Círculo A.
Em seguida, os dançantes invertem o círculo, fazendo-o no
sentido contrário (Círculo B) até retornarem à formação inicial. A
seguir, um dos guias segue ao encontro do patrão e ambos realizam
um jogo de aproximação de calcanhares e rodopios (com uma e
outra perna); o figura de frente, então retorna a seu lugar e o
segundo guia efetiva o mesmo jogo de calcanhares e giros com o
patrão.
Os figuras subseqüentes realizam a mesma manobra
(alternando-se continuadamente os figuras equivalentes de cada Ilustração 15:
fileira) e após terminarem assumem a posição momentânea dos guias
Formação Inicial
até que os figuras seguintes realizem as mesmas evoluções com o patrão e os
substituam.
A corporalidade dos figuras ao encontrar com o patrão é
variável, estruturada por diversas matizes gestuais, no entanto,
percebemos em comum uma movimentação, que através de suas
qualidades expressivas caracterizam a atitude interna dos
indivíduos; a mobilização do dançante ocorre em fluxo livre,
espaço indireto – ou melhor, em “atenção expandida por milhares
de pontos ao mesmo tempo, como se seu corpo tivesse olhos em
todos os poros, e se movesse com todos esses simultâneos focos”98
– e peso leve. Tais fatores de movimento associados caracterizam,
Il. 16: Círculo A
ao instaurar um tempo contínuo consagrado pela circularidade e
sinuosidade do “eterno retorno”, um impulso expressivo de
transformação mágico.
O Impulso Mágico (...) combina os fatores de peso, fluxo e espaço, excluindo
o fator tempo. Ou seja, ao mover-se em Impulso Mágico, o corpo mantém
seu tempo constante (...) e parece prender a atenção dos espectadores, como
se os hipnotizasse. Como o nome indica, “mágico” refere-se a esta
combinação de sentimento (fluxo), sensação (peso) e atenção (espaço),
instalando uma atmosfera de eternidade, onde o tempo parece ter parado
(FERNANDES, 2002: 131).
Aí, apreendemos porque para “o homem religioso (...) a duração temporal
profana pode ser ‘parada’ periodicamente pela inserção, por meio dos ritos, de um
98
Fernandes, 2002: 108.
119
Tempo sagrado, não histórico (no sentido de que não pertence ao presente histórico)”99.
O tempo torna-se uma dimensão repetível, que ao articular-se com os fatores de peso,
fluxo e espaço gera uma temporalidade incomum, suspensa e atemporal.
Após as manobras realizadas por cada figura com o
patrão, os guias que, então, se encontram no final das fileiras
realizam o Círculo A e retornam pelo Círculo B às posições
iniciais – confundindo os olhares que observam. Em seguida, o
patrão entrelaça uma das fileiras de dançantes percorrendo o
espaço entre os seus integrantes acompanhado por todos os
figuras da outra fileira.
O patrão retorna pelo mesmo espaço entre os figuras da
fila que permanece estacionária, gingando no lugar para um
Ilustração 17:
Entrelaçamentos
lado e outro e ao recompor as duas fileiras no espaço, coordena
a realização dos Círculos A e B, então a outra fileira efetua os
entrelaçamentos e, em seguida, novamente fazem Círculos A e B. Neste momento, os
brincantes atravessam um o espaço do outro e ao encontrarem-se no centro realizam
manobras e giros. Novamente, executam Círculos A e B retornando à formação inicial e
favorecendo-nos, assim, a apreensão de que os movimentos circulares se apresentam de
modo insistente nos percursos espaciais da estrutura ritual.
Ilustração 18: Atravessamentos
99
Eliade, 1992: 61.
120
Ambas as filas são orientadas pelo patrão a realizarem, então (lado a lado) um
círculo pelo espaço. Ao retornarem para seus lugares realizam Círculos A e B e tornam
a serem orientados pelo patrão a fazerem um outro círculo, porém no sentido contrário.
Ilustração 19: Círculo pelo Espaço
Novamente, efetivam Círculos A e B e tornam a jogar com os calcanhares de
seus respectivos pares; aí, percebemos que apesar da qualidade do peso aplicado ao ato
coreográfico os esforços empregados pelos pés na relação com o solo são variados e
apreendemos que:
Duas ações ocorrem simultaneamente: enquanto um dos pés recolhe energia
do solo, o outro libera energia para o solo. Na ação de recolher, os pés sugam
o solo (ventosa) acentuando o contato do metatarso e calcâneo e o
conseqüente aumento do arco do pé. Na ação de liberar os pés se expandem
no solo, ampliando, progressivamente sua área de contato. O movimento
desenvolve-se pela alternância dos pés nas respectivas ações (RODRIGUES,
1997: 46-7).
Cada figura (a começar pelos guias) seguida do correspondente da fileira oposta
segue em direção ao patrão e realiza um círculo em seu entorno, retornando a seu lugar
inicial nas fileiras. Neste giro, percebemos a predominância da flexão dos joelhos em
todos os dançantes o que “possibilita aos pés desempenharem uma gama de
movimentos altamente articulados100” e influencia, significativamente, a relação sinuosa
estabelecida no corpo como um todo; aí, nesta operação tortuosa, sem dúvida,
percebemos que é o corpo inteiro que se junta para efetivar a ação; no entanto:
(...) cada região do corpo – cabeça, tronco, braços, pernas – exerce uma por
vez um papel principal. A hierarquia entre esses seguimentos nunca é fixa,
cada um podendo, por sua vez, concentrar os olhares e se colocar no coração
do evento gestual. Cada seguimento se torna então no centro do movimento
100
Rodrigues, 1997: 48.
121
da energia, como se, em uma espécie de uma democracia cultural (...) todo
seguimento pudesse, a qualquer momento, encabeçar o poder101.
Em seguida, os figuras realizam Círculos A e B; após os últimos versos, o patrão
dá toques acentuados na caixa e finaliza, desse modo, a jornada. Percebemos, através
das observações realizadas em campo, que as jornadas que se seguem, no processo de
sobreposição da estrutura ritual, apresentam um fraseado coreográfico comum que, com
exceção da chula, sofrem apenas determinadas subtrações no percorrer da cerimônia
festiva e, por isso, tornam-se prescindíveis de descrição.
Jornada 2: Vosso Reis Pediu uma Dança
Vosso Reis Pediu uma Dança
É de Ponta de Pé, é de Calcanhar;
E o coro responde:
Aonde Mora Vosso Reis de Conga
É de Ponta de Pé, é de Calcanhar
Jornada 3: Adeus Parente
Adeus Parente que eu vou imbora
Pra terra de Conga vou ver Angola
Mas eu vou imbora, eu vou agora
Pra terra de Conga vou ver Angola
Segundo relatos compartilhados, durante o processo de pesquisa em campo,
percebemos que esta jornada faz-se, continuadamente, como referência a despedida de
alguém, que importante para a coletividade local, parte em direção das terras de Conga
ou Angola. Entre as personalidades mais comumente presentes nos depoimentos,
todavia, destaca-se a figura do santo amarantino e de um velho negro chamado Mulungu
(ambos relacionados diretamente com a origem do ritual na Mussuca). Segundo Nadir
(Depoimento: 2010) a música é uma despedida de São Gonçalo às suas companheiras
de jornada, realizada a partir dos versos de sua despedida e seu retorno à sua terra natal:
“Eu vô viajar, eu vô pra terra de Conga e de lá eu vô ver Angola”; entretanto para
Ranulfo (Depoimento: 2010) os versos da música apontam a figura de uma outra
personagem chamada Mulungu (negro cativo habitante das terras de Angola,
considerado o primeiro chefe de São Gonçalo na Mussuca) que após a alforria resolve
retornar à sua terra natal, dizendo: “Eu vô imbora, (...) nós tamo forro, (...) eu vô
m’imbora pra Angola”.
101
Pavis, 2010: 277.
122
Jornada 4: Jiruarê
Ô jiruarê ô isquitin bamba ê
Ô jiruá, jiruá isquitin calamundê
Ô jiruarê ô isquitin bamba ê
Ô vai, vai, isquitin calamundê
Nesta jornada a cantadora oferece o canto a um dos guias e ele segue cantando o
primeiro e terceiro verso, enquanto os demais e a cantadora cantam o segundo e o
quarto. Esta jornada diferencia-se coreograficamente das demais por subtrair o desfecho
comum às outras com o circulo entorno da figura do patrão.
Dona Nadir nos informa (Depoimento: 2010) que apesar de não saber o que
significam estes termos, ela tem o dever de “falar as línguas que era antigamente de
quando começou” e, prossegue afirmando que mesmo não sabendo falar explicado, sua
função é “falar da origem do grupo”, ou seja, cantar os termos que são reproduzidos
desde a época da escravidão.
Jornada 5: Mamãe Zambi
Inderêrê Mamãe Zambi (coro)
Ó ia ia mãe Zambi, que faz aqui
Inmderêrê Mamãe Zambi (coro)
Ai, ai, ai mãe Zambi, oi ela ali
Inderêrê Mamãe Zambi (coro)
Oh papai diz a missa pra mamãe ouvi
Inderêrê Mamãe Zambi (coro)
Ò ia ia mãe Zambi, oi ela ai.
Inderêrê Mamãe Zambi (coro)
As informações coletadas em campo sobre Mamãe Zambi anunciam o encontro
entre esta e o santo amarantino e apontam à validade do conjunto de crenças do
imaginário coletivo que sustentam o ritual na região. De acordo com Dona Nadir
(Depoimento: 2010):
Mamãe Zambi era uma mulher e ela também fazia parte do São Gonçalo (...)
Na época que brincava só era mulé (...) ela se chamava a Mamãe Zambi
porque ela era escrava (...) adepois (...) São Gonçalo tirou ela dessa vida (...)
aí ela foi brincar São Gonçalo (...) Mas, na época (...) ela chegava pra assistir
o grupo brincar, né?! Aí, ela não fazia parte do grupo, (...) depois ela ficou
fazendo parte porque ela foi chegada das escravidão (...) aí sempre que São
Gonçalo tava brincando com as mulheres ela aparecia. Repare a música:
Inderêrê Mamãe Zambi/ Ó ia ia mãe Zambi, que faz aqui.
Ainda há hipóteses, entretanto, de a jornada Mamãe Zambi estar diretamente
vinculada à figura de Nzambi (que significa Deus em kimbundo e atesta herança
123
angolana no ritual) ou Zambi que como sabemos é a designação de Deus na
nomenclatura ubandística, cujo ponto apresentamos a seguir:
Ponto de Zambi (Deus)
Só Zambi é quem governa o mundo
Só Zambi sabe governar
Só Zambi é quem governa o mundo
Só Zambi sabe governar
Foi Zambi quem deu a estrela
Que guiou Oxóssi lá no Juremá
Foi Zambi quem deu a estrela
Que guiou Oxóssi lá no Juremá
Mas ele é rei, ele é rei, ele é rei
Mas ele é rei, ele é rei Orixá
Jornada 6: Suzanê
Ô Suzanê
Cadê mãe Suzana
Ô Suzanê
Mãe Suzana morreu
Ô Suzanê
No tope da ladeira
Ô Suzanê
Mas meu Deus cadê ela
Ô Suzanê
Vamos orar por ela
Ô Suzanê
Ai, ai mãe Suzana
Jornada 7: Chula
Chorei Maria já chorei não choro mais
A vida de solteiro já gozei não gozo mais
Refrão
Essa Premera Cantiga
Tem Garrocha no Terreiro
Para São Gonçalo Eu Canto
Refrão
Eu Perdi a Minha Agulha
Le Vem o carro Cantando
No Caminho de Amerante
Cheio de Cravo de Rosas (2X)
Refrão
São Gonçalo Vem no Meio
Quem Dançar o São Gonçalo
Escolhendo a mais Formosa (2X)
Tem Que Ter o Pé Ligeiro
Refrão
Na Saída do Batente
124
São Gonçalo é um santo
Vo pedir a Deus do Céu
Ele já foi marinheiro (2X)
Pra Ele vir me Ajudar (2X)
Vamo s’imbarcar com ele
Pra vencer esta batalha
Lá pro Rio de Janeiro (2X)
Esta batalha real (2X)
Refrão
Refrão
São Gonçalo é Um Santo
Deus nos salve a casa santa
Casamenteiro das Veia (2X)
Onde Deus fez a morada (2X)
Porque Não Casar as Moça?
Onde mora o cálice bento
Que Mal lê Fizero a Ela? (2X)
E a hóstia consagrada (2X)
Refrão
Refrão
São Gonçalo é um santo
Eu canto é pra São Gonçalo
Feito do Pau da Afavaca (2X)
Eu canto é com tanto amor (2X)
Quem não tem cama nem rede
Eu gosto de São Gonçalo
Dorme no couro da vaca (2X)
É o santo protetor (2X)
Refrão
Refrão
A jornada, a única que se produz de modo completamente diferente das demais,
se inicia com um passo que embarca os dançantes em um ritmo de “dois para lá, dois
para cá”, os figuras, com braços direcionados para o Altíssimo e mãos na altura da
cabeça, requebram o quadril ao som da música e jornadeiam realizando Círculos A e B.
Em seguida promovem encontros (a começar com os guias e em sucessão) com os
figuras subseqüentes da fileira oposta, em que reproduzem movimentos de quadris e
produzem movimentos laterais de tronco finalizados com uma aproximação de cabeças,
que quase se tocam.
A este respeito, Rodrigues (1997: 54) comenta que o “gesto de ‘bater cabeça’,
mais do que um cumprimento, uma saudação, significa entregar-se às forças divinas e
assim estabelecer a união do interior com o exterior”.
O estado de efervescência em que se encontram os fiéis reunidos traduz-se
necessariamente, no exterior, por movimentos exuberantes que não se deixam
submeter facilmente a fins muito estreitamente definidos. Eles explodem, em
parte, sem objetivo, manifestam-se apenas pelo prazer de se manifestar,
comprazem-se em toda espécie de jogos (DURKHEIM, 2008: 454).
Nesta dinâmica “efervescente” o último figura vai a frente das fileiras e ao
encontrar com o patrão faz referências à umbigada, em uma gestualidade sensual –
carregada de potenciais de volúpia. As fileiras realizam Círculos A e B, algumas vezes,
e finalizam a jornada. Estas simulações de umbigada – que trazem sentidos de
sensualidade e sexualidade à dança e estabelecem a presença de jogos de sedução,
conquista e desafio que caracterizam a composição coreográfica – estruturam relações
125
entre os ritos de fecundidade que estão vinculados à prática ritual e à dimensão mítica
de São Gonçalo.
Vide Anexo 1 – DVD Flor das Laranjeiras – SEQUÊNCIA 17
INT – CASA DE ADELAIDE – NOITE
Cena: Enquadramento de Grupo de São Gonçalo adulto dançando em louvor ao
santo
Duração no vídeo: 16’46” a 17’25”
Finalidade expressiva: Exibir a execução da jornada Chorei Maria pelos devotosbrincantes.
Percebemos, nas estruturas de movimento produzido pelos quadris dos
sangonçalistas um caráter gestual sinuoso e ondulado que integra a geração, a
concentração e a dimanação de energia e instaura o estabelecimento das conjunções
entre fé e festa; afinal:
A bacia representa um vaso que recebe e nutre, interligando-se ao aspecto da
vitalidade, sendo um gerador de energia para todo o corpo. Observamos a
sensualidade e a sexualidade conjugando com o sentido mais genuíno de
sacralidade implantada na bacia (RODRIGUES, 1997: 50).
Jornada 8: Nas Horas de Deus Amén
Jornada 9: Instrumental de Chula
Os figuras iniciam a jornada, em o mesmo ritmo da chula (gingando o corpo em
um ritmo de “dois para lá e dois para cá”), em seguida executam Círculos A e B e ao
retornarem à formação inicial realizam afastamentos e aproximações com seus
correspondentes da fileira oposta. Em requebros constantes de quadril, os figuras se
aproximam da figura do santo amarantino e ajoelham-se, fazendo flexões laterais de
tronco e pedindo vivas ao Ignoto.
126
3.4 - CELEBRAÇÕES E(M) CAMPO
3.4.1 - FESTA DO SENHOR DA CRUZ NA MUSSUCA
Domingo, 04 de abril de 2010: após três meses de ausência, estou de volta ao
povoado Mussuca onde acompanho os festejos do fim de semana pascal (Sexta-Feira
Santa, Sábado de Aleluia e Domingo de Páscoa) hospedado na residência de Mestre
Sales. Acordo, então, às 07h20min com Dona Santana varrendo a casa e reclamando a
presença de alguns pesquisadores intrometidos que estão no portão aguardando para
fazerem filmagens de Mestre Sales se aprumando e seguindo para o ensaio e apreendo,
de imediato, meu privilégio no campo de relações estabelecido com o povoado; a
hospitalidade com que me recebem aponta a construção de redes de alianças e fomenta
o entendimento de uma consideração mútua (entre eu e eles) baseada em uma relação
gentil, afetuosa e consagrada por uma cordialidade branda e brincalhona. Após me
levantar, Dona Santana e eu conversamos sobre a festa do dia anterior e minha
animação, dança e “rebolation”102 nos festejos de Sábado de Aleluia; são 08h25min
quando sigo para tomar café e me arrumar para as celebrações do Domingo de Páscoa.
Partimos em direção à igreja (onde será realizado o ensaio do grupo) às 10h00min, a
chuva caí. Logo aparece um carro, olho em seu interior (ao volante, um senhor e no
banco ao lado uma senhora) e reconheço dois dos pesquisadores “intrometidos” – que
agora adquirem a simpatia da família e descubro serem do IPHAN – eles fornecem
carona para as crianças e à Dona Santana; eu e Mestre Sales, contudo, prosseguimos a
pé.
Nosso percurso, todavia, não se faz monótono, Seu Sales caminha lentamente
dando toques na caixa e convocando os figuras a participarem do ensaio, percebo que
muitos se negam a seguirem com ele, mas ele prossegue atraindo os homens reticentes;
ao passarmos pelo bar da sogra de Vanilson (conhecido na comunidade como pilhinha –
uma das figuras de frente que se negou a assumir o posto de patrão, após Sales) somos
convidados por ele a tomar refrigerantes. Mestre Sales não aceita e pergunta se ele não
irá ao ensaio, ao que é respondido com uma recusa (provavelmente fundamentada no
fato de pilhinha estar, desde o ano de 2009, com uma lesão visual): “este ano não vô
não”; o patrão prossegue sua marcha, porém um tanto decepcionado, afinal “o sagrado
contém em si mesmo um sentido de obrigação intrínseca: ele não apenas encoraja a
102
Single lançado pelo grupo de axé Parangolé, no final do ano de 2009.
127
devoção como a exige, não apenas induz a aceitação como reforça o compromisso
emocional”103.
Ao chegarmos à Igreja Senhor da Cruz percebo que há três imagens de santos
sendo aprumadas, por um conjunto de três homens e quatro mulheres ocupados com o
ofício de organizar a igreja e arrumar os andores.
Ilustração 20: Arrumação da Igreja e dos andores
Pergunto a Dona Santana (Depoimento: 2010) sobre os outros santos ao que ela
me responde: “Antigamente, só havia Senhor da Cruz e São Gonçalo depois que surgiu
esta outra aí” – se referindo a Nossa Senhora da Conceição. Por sua vez, Jaílza Bispo
dos Santos – filha de Eupídeo Bispo dos Santos, um dos mais antigos figuras de São
Gonçalo (Depoimento: 2010), comenta que a motivação da presença de São Gonçalo na
Festa do Senhor da Cruz na Mussuca é fenômeno recente e resultante das relações
conflitantes entre os interesses eclesiásticos e o conjunto de crenças do povoado no
processo de legitimação e promoção do padroeiro, indicado e determinado pela Igreja,
do lugar.
Antes a festa de São Gonçalo era separada (...) aí depois que passou pra ser
Senhor da Cruz. Aí sai Senhor da Cruz mais São Gonçalo. Porque o povo
falava que aqui, só na Mussuca, que tinha duas festas que era a Festa de São
Gonçalo e a Festa de Senhor da Cruz. Aí, depois juntaram tudo pra fazer uma
festa só (...) Em todos povoado só tinha uma festa só, só tinha um padroeiro e
na Mussuca (...) tinha dois padroeiro que era São Gonçalo e Senhor da Cruz.
Aí, saí Senhor da Cruz na frente e depois São Gonçalo.
103
Geertz, 1989: 93.
128
Atesta este fato o relato de Dona Nadir (Depoimento: 2010):
Que eu alcanço aqui na Mussuca todo ano tinha Festa de Senhor da Cruz; não
era naquela igreja era numa capelinha pequenininha (...) que só cabia mesmo
o altar e os santos (só e pronto), só cabia quatro ou cinco pessoas, o resto
ficava do lado de fora porque não cabia ninguém. E a festa do São Gonçalo
era no dia 16 de agosto não era misturado com do Senhor da Cruz, não.
Daí, inferimos que a associação das celebrações de louvor a São Gonçalo de
Amarante aos Festejos do Senhor da Cruz auxilia a promover e atribuir um lugar
secundário ao santo amarantino – desprovido de maiores importâncias e marginalizado
no contexto hierárquico proposto pela Igreja – ao mesmo tempo em que valida o ideário
do Senhor da Cruz como “dono da casa” e, por isso, padroeiro do lugar. Apreendemos,
pois, que a Igreja mantém-se, nos dias hodiernos, na posição conjuntiva e conglobada,
que o período colonial havia lhe concedido, interferindo e propondo hierarquias rituais
estruturadas a partir da coordenação eclesiástica. Todavia, percebemos que a população
insiste em afirmar que homenageado nestas terras é São Gonçalo de Amarante, muito
embora haja certa aceitação ao Senhor da Cruz como padroeiro da Mussuca.
De acordo com estes depoimentos, percebemos que várias posições antagônicas
se configuram na confecção ritual, explicitando a posição da Igreja como agente
coordenador da festa e interventor na elaboração dos ritos. A incorporação, portanto, de
Nossa Senhora da Conceição no ritual e a admissão eclesiástica do Senhor da Cruz
como padroeiro do povoado no lugar que (não institucionalmente, mas simbolicamente
era e, de certo modo) continua sendo ocupado pelo santo amarantino podem ser
fenômenos apreendidos como tradições inventadas, ou seja:
(...) um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas ou
abertamente aceitas; tais práticas de natureza ritual ou simbólica visam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o
que implica automaticamente uma continuidade em relação ao passado (...)
histórico apropriado (...) a nova tradição é, muitas vezes, de origem recente
(HOBSBAWN, 1997: 9-10).
Tal estado de continuidade em relação ao passado, no entretanto, faz-se à guisa
de superficialidade, afinal “são reações a situações novas que assumem a forma de
referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através
repetição quase obrigatória”
104
da
. Este dado nos permite apreender o porquê de a Festa a
São Gonçalo de Amarante (anteriormente realizada em agosto na Mussuca) ser
deslocada para o período das cerimônias pascais.
104
Hobsbawn, 1997: 10.
129
Os figuras chegam pouco a pouco e estruturam uma formação de oito devotos
(dentre os quais percebemos um processo de mistura dos grupos jovem e adulto ou
veterano – por questões relativas à desmotivação, falta de tempo e ao ofício de cada
qual). Dá-se início ao ritual de ensaio: os homens trajam calça jeans, blusa branca (com
exceção de dois figuras que vestem blusas estampadas), pano branco na cabeça e colares
variados. Dona Nadir usa como vestuário um vestido de estampa floral e porta uma tiara
na cabeça, Sales veste uma roupa de marinheiro antiga (comum aos ensaios). As
jornadas cantadas são “Nas Horas de Deus Amén”, “Vosso Reis Pediu uma Dança”,
“Adeus Parente”, “Jiruaê”, “Mamãe Zambi”, “Suzanê”, “Chula” e “Nas Horas de Deus
Amén”.
Ilustração 21: Figura em Traje de Ensaio
Percebo que o corpo que dança apresenta-se como espaço de relação, lugar dos
agenciamentos entre as potências sagradas e profanas, espaço próprio à manifestação da
cosmogonia; o corpo inserido no contexto ritual torna-se um sítio primordial e, por isso,
articula-se como elemento-chave para o entendimento da tensão entre devoção e
diversão que através da atualização das atividades simbólicas rearranjam a trama social.
130
A organização do espaço da igreja é a seguinte:
Ilustração 22: Espaço da Igreja Senhor da Cruz
Chove torrencialmente; enquanto o ensaio é realizado a igreja é simultaneamente
preparada para a Missa Pascal, a chuva penetra o espaço deixando o piso escorregadio,
alguns figuras resvalam, outros caem sensibilizando algumas pessoas da comunidade
que estavam na assistência a varrer a água que invade a igreja, direcionando-a aos
umbrais. Durante a música “Mamãe Zambi” no verso que diz “oi ela aí”, Nadir faz
referência às chuvas que caem do céu – apontando possibilidades de sincretismo
religioso para aqueles que conhecem sua simpatia e predileção aos cultos e entidades da
Umbanda; ao término da música há uma forte trovoada e ela diz: “Viva a Deus
Senhor!”, favorecendo-nos a compreensão de que ao revés de recebida como
problemática a chuva é grande benção do Ignoto.
Ilustração 23: Ensaio Ritual na Igreja
131
Ao término da cerimônia e após as “Vivas” habituais de Mestre Sales o público
se dispersa; os preparativos para os festejos da igreja tornam-se mais urgentes, há uma
grande movimentação de assentos em seu interior e outros trabalhadores cooperam para
a recolocação da “ordem” na paróquia. Retiro-me e sigo a pé para a casa de Sales (Dona
Santana e as crianças retornam de carona e o patrão opta por ficar no caminho a fim de
se reunir a alguns figuras que estacionam no bar), onde me aguardam para a refeição,
espaço de construção dos laços de afinidade e parentesco que permitem mais uma vez
ouvir Dona Santana dizer que eu pareço um dos seus; isto porque:
(...) as refeições tomadas em comum criam um laço de parentesco artificial
entre os participantes. Parentes, com efeito, são seres, naturalmente
constituídos da mesma carne e do mesmo sangue. Mas a alimentação refaz
continuadamente a substancia do organismo. Uma alimentação comum pode,
portanto, produzir os mesmo efeitos que uma origem comum (DURKHEIM,
2008: 405).
Após o almoço, encaminho-me com Luciana (uma das filhas de Mestre Sales)
para o show na tenda e após as apresentações sigo, novamente, para a Igreja Senhor da
Cruz, lá assisto a missa dividida, então, em duas partes: 1) Cerimônia Batismal – com
início às 14h30min e término às 15h00min e 2) Missa Pascal – com duração
aproximada de uma hora. Não percebo durante o batizado nenhum dos figuras presentes
na igreja, apenas quando a missa – propriamente dita, formada pelos ritos iniciais,
liturgia da palavra, liturgia eucarística e ritos finais – inicia percebo a presença de Seu
Sales, agora vestido com sua indumentária ritual padrão, na igreja.
A missa prolonga-se sem nenhuma circunstância digna de menção e ao seu
término dá-se início a procissão; o relógio marca 16h10min quando me situo externo ao
universo eclesiástico farto de cores e visualidades. O roteiro da procissão segue da
Igreja Senhor da Cruz (localizada na Mussuca de Baixo) para a Mussuca de Cima e
após passar pelo cemitério do povoado, retorna à Mussuca de Baixo.
A disposição da procissão é a seguinte: à frente seguem seis crianças trajadas de
anjos (vestidas de branco); em seguida, vêm os mastros dos santos: o primeiro é de
Nosso Senhor da Cruz, em segundo o mastro de uma coroa enfaticamente representando
a Virgem pelos dizeres: “Nossa Senhora, Rogai por Nós”, após percebo outros quatro
mastros dentre os quais o ultimo consiste na figura de São Gonçalo de Amarante
(referenciada no imaginário popular, com a viola na mão). Após, senhor José dos Santos
(62 anos de idade) conduz a imagem do santo violeiro em sua embarcação; a condução
da imagem (antes realizada nos festejos do Senhor da Cruz por Dona Santana) passa às
132
suas mãos (e assim será até o dia de sua morte) desde o momento em que uma promessa
a favor de sua saúde foi efetivada pelo santo há seis anos atrás.
Ilustração 24: José dos Santos
A seguir, vêm os padres e os andores com a imagem do Nosso Senhor da Cruz,
Nossa Senhora da Conceição e, por último, São Gonçalo de Amarante: uma falange de
devotos segue as imagens dos santos, acompanhada pela banda do município de
Laranjeiras – tocando músicas cívicas – e os grupos de cultura popular: sangonçalistas
(mirins e adultos105); as moças e senhoras do Samba de Coco e alguns policiais que
vigiam as “costas” do cortejo seguidos de ambulância.
A procissão (...) reúne (...) o alegre ao triste, o sadio ao doente, o puro ao
pecador e, mais importante, as autoridades ao povo. Pois, ao mesmo tempo
em que o santo homenageado está num andor e separado do povo por sua
natureza e pela mediação das autoridades que o cercam, ele caminha com o
povo e dele recebe na rua (e não na igreja) suas orações, cânticos e piedade
(DAMATTA, 1997: 65).
Durante a procissão visualizo alguns fiéis do Grupo de Oração que estavam na
missa, eles cantam:
Segura na mão de Deus (2X)
Pois ela, ela te sustentará.
Não temas, segue adiante e não olhes para trás
Segura na mão de Deus e vai
E uma outra canção:
Quando Jesus Passar
Quando Jesus Passar
105
Aqui, conquanto digamos adultos, reconhecemos que o grupo estava marcadamente estruturado pela
mistura dos grupos adulto e juvenil.
133
Quando Jesus Passar
Eu Quero Estar no Meu Lugar
Percebo que as músicas raramente são tocadas em simultaneidade – como ocorre
na Festa de Reis em Laranjeiras – o que inviabiliza a sobreposição de sonoridades; entre
as pausas da banda cívica e do Grupo de Oração posso apreender em determinado
momento os sangonçalistas adultos tocando, cantando e dançando a jornada “Suzanê” e
as crianças, em seguida, jornadeando com “Quizamba” e “Suzanê”.
A festa, então, transforma dor em alegria, a desesperança em fé, a história em
riso, transubstancializando o corpo em linguagem e arte, brincadeira e devoção, a festa é
transfiguração da organização social, que ao solicitar espaços mais irreverentes às
convenções herdadas torna-se fato político, religioso ou simbólico; por isso:
Os jogos, as danças e as músicas que a recheiam não só significam descanso,
prazeres e alegrias durante sua realização; eles têm simultaneamente,
importante função social: permitem às crianças, aos jovens, aos espectadores
e atores da festa introjetar valores e normas de vida coletiva, partilhar
sentimentos coletivos e conhecimentos comunitários (PRIORE, 1994: 10).
Este compartilhamento simbólico permite ao sagrado se instaurar e mobilizar o
pensamento e as ações dos devotos assumindo e promovendo um ideal coletivo que o
relaciona à ordem pública e, portanto, à dimensão social; as atividades cerimoniais,
portanto, “colocam a coletividade em movimento; os grupos se reúnem para celebrá-las.
O seu primeiro efeito é, pois, o de aproximar os indivíduos, de multiplicar os contatos
entre eles e de torná-los mais íntimos. Já, por isso mesmo, o conteúdo das consciências
muda” (DURKHEIM, 2008: 418).
Ilustração 25: Imagem da Procissão ao Senhor da Cruz
134
A procissão termina às 17h00min com a entrada dos santos e fiéis na igreja, ao
som de música suave tocada pela banda cívica; no interior da igreja, Padre Diógenes
Oliveira Silva diz: “E agora vamos todos pedir para que N. S. Jesus Cristo nos
acompanhe” e todos respondemos: “Amén”.
Noite alta, os grupos da Mussuca se apresentam na tenda, tanto o São Gonçalo
mirim quanto o grupo adulto tocam as mesmas jornadas: “Nas Horas de Deus Amén”,
“Vosso Reis Pediu uma Dança” e “Chula”. Os dançadores, apesar de exaustos, buscam
a direção de suas casas ou a companhia de pessoas amigas onde a íntima comemoração
de seus familiares ou do grupo os aguarda. A oração é cumprida; as ações de graças
realizadas em formas de brincadeira, jogo e dança; as súplicas erigidas ao Alto e,
finalmente, a fé vivenciada como história sobre eles, é prática que a Mussuca conta a si
mesma – para não esquecer quem é.
135
CONCLUSÃO
De tudo, ficaram três coisas:
a certeza de que (...) estava
sempre
começando,
a
certeza de que era preciso
continuar e a certeza de que
seria interrompido antes de
terminar.
Fazer
da
interrupção um caminho
novo. Fazer da queda um
passo de dança, do medo
uma escada, do sono uma
ponte, da procura um
encontro (Fernando Sabino.
O Encontro Marcado).
Alcançamos, neste momento, o desfecho da pesquisa; entretanto, apesar de
reconhecermo-nos a caminho das considerações finais, aí chegamos não porque
tenhamos posto termo ao material de análise ou porque tenhamos alcançado a graça
plena de uma conclusão em nossas investigações, mas tão-somente porque somos
interrompidos pela idéia de que a pesquisa se faz inesgotável optando, deste modo, por
desdobrá-la na direção de caminhos novos, consubstancializando quedas, medos e
estados de sono, tornando a busca em encontro. Nossa deambulação intelectual,
portanto, faz-se como um sentido onde o encontrar é o próprio buscar e buscar o
encontro entre a devoção e a diversão na Dança de São Gonçalo de Amarante é o
próprio encontro; encontrar, porém, não é de modo algum encontrar no sentido do
resultado prático ou científico, encontrar é tornear (como tourner em francês), dar a
volta, ir em volta de, é buscar ainda em meio à circularidade, como se o sentido da
busca fosse um giro. Então, estabelecemos uma busca que (con)torna o que é busca em
objeto, pois achá-lo seria perdê-lo e engendramos estratégias de pensamentos nômades
que rejeitam a demora (como dimora em italiano), a morada em um reino seguro de
relações, formas e conceitos.
A análise da estrutura ritual da Dança de São Gonçalo de Amarante através
daquilo
que
pesquisamos,
sentimos,
apreendemos,
festejamos,
bailamos,
transcendemos, nesta acepção, representa o conjunto de sentidos experienciados e o
corpo da experiência de sentidos aqui apresentados que fundamentam a discussão
acerca dos conteúdos referenciais da devoção e da diversão e o exame daqueles agentes
geradores de tensão, elasticidade e maleabilidade na discussão de seus elementos.
136
Estudamos, por isso, as relações entre a fé e a festa através dos dispositivos do sagrado
e do profano, das espacialidades e temporalidades de relação com o Ignoto, dos
mecanismos da fantasia e da festividade, do limiar e da liminaridade, aproximando,
deste modo, conceitos e realidades, promovendo diálogos entre saber e fazer e, por fim,
conciliando o riso à oração.
A Dança de São Gonçalo de Amarante, portanto, além de ser reconhecida como
uma manifestação popular presente no imaginário religioso coletivo, define-se como um
processo histórico de relações cujo contexto gestual e motivacional revela e expressa
diversos fatores e sentidos que transitam entre o mito e o rito. O estudo das relações
entre corpo, dança e religião e a análise dos conflitos e pontos de tangência ou encontro
entre as dimensões da arte e religiosidade popular habilitam-nos, na pesquisa proposta,
a abordar as conexões entre a realidade social e o conteúdo ritual, estruturando aquilo
que designamos por histórias do corpo e auxiliam-nos a investigar os vínculos entre as
substâncias míticas e o comportamento cultual, organizando aquilo que identificamos
como histórias do santo: processos de atravessamentos de valências simbólicas.
Neste contexto, apreendendo de um lado a imagem do santo que veste batina, e
do outro a imagem daquele mesmo santo vestindo calção, buscamos analisar as elipses,
incoerências, emendas e conciliações entre as composições históricas que edificam a
(con)tradição de louvor ao beato amarantino, disponibilizando-nos a analisar a natureza
expressiva do ritual em uma perspectiva dialógica com seus sistemas de crença e as
manifestações do corpo. O corpo como lugar de encontro entre a manifestação artística
e religiosa, por isso, orienta as discussões acerca das relações entre os elementos
sagrados e os aspectos profanos que desdobram as redes de significação e a
expressividade plástica do ritual.
Entretanto, conquanto tenhamos nos empenhado em auxiliar – através da
apresentação do caráter religioso da festa – a formulação de concepções, estruturas de
reconhecimento e aproximações necessárias à compreensão dos estados da devoção e da
diversão em hibridação, não nos propomos, aqui, a pormenorizar o ritual, mas,
sobretudo a analisar – no conjunto de ações e histórias – as cerimônias e, desse modo,
fomentar a apreensão da celebração religiosa como estrutura local das dramatizações
sociais.
Por isso, não resolvemo-nos investigar apenas os significados de ordem cultural
circunscritos a prática gestual, mas também optamos por expandir nossos horizontes no
entendimento da imagem, do mito e dos ritos; deliberamos considerar o todo ritual não
137
como encenação teatral baseada no fenômeno da espetacularização, mas fomentar a
compreensão do culto como elemento dinâmico da expressão coletiva; e, por fim,
optamos em conciliar os signos que compõe o drama organizando o pensamento na
vinculação dos bens simbólicos às bases da sociedade.
Neste campo de tensões, desvelamos a imagem do mito como aquele meio de
expressão e comunicação que Joly (2006) designa como o vínculo que nos une às
tradições mais antigas cuja memória reativada fomenta autonomia, solidariedade e
significado aos panoramas de representação humana e encontramos, na estruturação
destas urdiduras simbólicas pela imagem do mito, a configuração de dramas plásticos
que compõe o sistema de signo do ritual.
Daí, iniciamos uma análise acerca dos mecanismos que agenciam o espaço da
Mussuca à prática devocional, examinando a cultura popular como uma tessitura de
elementos que não falam por si, e nada significam individualmente, mas que adquirem
ampla representação na conjuntura do evento; segundo Arantes (2006), o significado é
função do contexto de ocorrência desdobrado através das relações sociais entre atores,
memória, esquecimento, discursos sobre o cotidiano e sobre o imaginário em notas e/ou
observações sobre aquilo que se estrutura como comum.
Observar, portanto, a Dança de São Gonçalo de Amarante é observar
simultaneamente o enredo determinado pela tradição católica/popular e as histórias
sobre o espaço em que a manifestação se desdobra; o lugar prenhe de metáforas e
informações sobre a comunidade insere a pesquisa, pois, em campo amplo de
possibilidades articulando questões acerca do pertencimento através de conteúdos
relacionados a formação do povoado: a territorialidade, a etnicidade e a convivialidade.
Entretanto, ao examinarmos o espaço da Mussuca, o que pretendemos não é identificar
aspectos materiais do povoado ou identificar as formas geométricas, mas relacionar
ambiências, objetos e ações, revelando aspectos significantes que nos aproximem
daquilo que Milton Santos (2006) define como espaço híbrido: geografias afetivas de
objetos e ações, materialidades e eventos.
O espaço, pois, como sistema de valores coopera no empreendimento de análise
e interpretação das situações do ritual dentro do contexto de fé e(m) festa em que está
inserido tendo em vista que sua dinâmica estrutura a síntese entre os conteúdos sociais e
as formas espaciais; afinal:
É a sociedade, isto é, o homem, que anima as formas espaciais, atribuindolhes um conteúdo, uma vida. Só a vida é passível desse processo infinito que
138
vai do passado ao futuro, só ela tem o poder de tudo transformar amplamente.
Tudo o que não retira sua significação desse comércio com o homem, é
incapaz de um movimento próprio, não pode participar de nenhum
movimento contraditório, de nenhuma dialética (SANTOS, 2006: 70).
Assim, a vida como espaço híbrido de ações e materialidades, compósito de
plasticidades e gestualidades, habilita-nos a apreender a partir da noção de campo,
adotada pela investigação, as representações do espaço como espaços de representação,
aproximando-nos o olhar daquilo que se estabelece como ponte sígnica entre aquilo que
é visível e o que se dá a ver de modo invisível. A radiação desta formas de organização
de saber-fazer vinculadas ao espaço sugere a constituição daquilo que apreendemos
como entorno vivido: lugar de trocas, matriz poética da cognição, sentido de afetos.
A representação sensível se constrói, por isso, de maneira que a consciência pelo
lugar se superponha a consciência no lugar, efetivando em presença as relações
temporalizadas entre passado, presente e futuro; desta maneira, examinamos o espaço
como campo de forças em interação capazes de significar as realizações humanas
através de seus arcabouços, atributos e caracteres: dinâmicos, não normativos e
transitórios, porquanto, em formação.
A partir destas relações, investigamos o campo de atuação entre os parâmetros
correspondentes ao domínio do profano e do sagrado, analisando aspectos promotores
da devoção e diversão na experiência do espaço-tempo como composição da
religiosidade, ou seja, conjunto de símbolos capazes de elevar os homens à
transcendência e sublimar intimidades, espacialidades e temporalidades. Aí, as
motivações da ação ritual examinadas no contexto religioso revelam-se como forças
morais auxiliando-nos a apreender o trânsito estabelecido entre sagrado e profano na
estrutura daquilo que reconhecemos como objetos, atos, acontecimentos, qualidades,
etc., não como propriedades de tais coisas ou representações, mas como fenômenos a
elas atribuídos pela atuação dos sujeitos em coletividade. Por isso, Durkheim (2008:
415) nos revela que “a única maneira de renovar as representações coletivas que se
referem aos seres sagrados é retemperá-los na própria fonte da vida religiosa, ou seja,
nos grupos reunidos”, porquanto é no sentido comum, agenciado pela sociabilidade, que
o caráter sagrado impregna os objetos de culto e adoração; o sagrado não está em suas
constituições naturais, mas lhes é acrescentado pela crença na consciência partilhada.
Os níveis do sagrado e do profano como campos de significação da fé e da festa
engendram espaços de comunicabilidade, geradores de passagem, estados híbridos e
confusos que articulam acentos expressivos distintos ao rito elaborado no povoado
139
Mussuca; o limiar, neste sentido, examinado como a imagem da ponte ou da porta
estreita, abundante nas estruturas míticas que conjugam devoção e diversão, coopera na
formulação do entendimento de que o cenário “entre” é abstração sígnica, representativa
daquilo que Aumont (2009) identifica não como uma presença direta do mundo visível,
mas a presença da forma, dos princípios que formulam visibilidade à arte e à religião em
união.
A análise deste princípio de visibilidade possibilita, aqui, que estudemos e
examinemos os suportes, mecanismos e dispositivos que a partir da idéia do limiar
atualizam os desdobramentos visíveis na Dança de São Gonçalo de Amarante, como a
festividade, a fantasia, o jogo, a esperança, o humor, a fé, fomentando encontros
equilibrados entre o riso e a graça, a folia e a oração, a brincadeira e a procissão.
Outrossim, discutimos o lugar da metáfora, como conceito-chave à percepção de
determinados
aspectos das manifestações expressivas analisando, então, conteúdos
sobre a formação do ritual, do drama, e sobre o lugar do corpo na semântica da
celebração.
Um corpo composto de matéria especial cujas propriedades habilitam-no a se
combinar de modo tão estrito ao espaço do mito e do rito que tem a potência de ser no
espaço e de devir espaço estruturando texturas e confecções sobre a própria crença nos
arranjos que edificam a potência de expressão dos sujeitos ativos e envolvidos ao ritual.
Este corpo que se relaciona com o passado, o futuro e se estrutura como presença da
devoção em aliança com a diversão é, pois, a essência daquilo que designamos como
vida, a desenvolver ambiências de imanência entre a consciência e o espaço, a memória
e o desejo relacionando suas esferas simbólicas e valências sígnicas.
Este corpo do ator ritual aponta que, em verdade, existem tênues limites entre
vida e arte, cotidiano e representação, apresentando-nos, desta maneira, a natureza
performativa em que os homens estão a todo instante inseridos: campo de
experimentação estética do espaço da vida, evocação sugestiva de sentidos, corpo de
consciência do corpo. Estas ações performativas, segundo Glusberg (2009), operam não
necessariamente com o corpo, mas com o discurso do corpo, onde a ilusão de um corpo
desprovido de significados se desvanece, por completo, habilitando-nos a investigar no
corpo, através de experiências, afetos e práticas, as histórias compartilhadas.
A gestualidade em estado de brincadeira, portanto, como expressão da dança é
investigada a partir deste vínculo entre corpo-ritual e prática social, onde cantos, versos
e dramas desenham mapas de religiosidade que aproximam as trocas entre os homens e
140
o sagrado, através de um conjunto cartográfico de relações identificadas por Brandão
(1981) como estáveis (fidelidade, amor, devoção, proteção, fé) e atuais (entendidas
como atualizadas durante a reza e a dança: os gestos, os cânticos, as histórias).
A alegria popular revelada em cada ato de consagração caracteriza os aspectos
da hibridação dos valores sagrado e profano no quadro de representação cultural que
estrutura a Dança de São Gonçalo de Amarante na Mussuca; cada particularidade, cada
especificidade, cada peculiaridade estabelece-se aqui como arranjo simbólico a
comunicar aquilo que os homens através da participação ativa no domínio da
religiosidade, da territorialidade, da memória e do esquecimento edificam como
construção acerca deles mesmos.
A análise, pois, aqui verificada faz nos crer que a Dança de São Gonçalo de
Amarante é um conjunto de histórias, narrativas, ações sobrepostas umas às outras ao
mesmo tempo; sua organização não se dá de forma hierarquizada, do artístico ao
religioso, do popular ao performativo, do profano ao sagrado, mas elíptica de modo que
as suas camadas compositoras se interpenetrem continuamente estruturando aquilo que
Matos (1998) define, em nível de entrecruzamentos temporais, como “alegorias de
reminiscências”.
A guisa de conclusão, portanto, apreendemos a dança como a ressignificação da
vida onde a sobreposição, anunciando a validade da crença em todas as coisas,
aproxima os homens do santo, através da incorporação de seus atributos, da união, da
solidariedade e do inconsciente a revelar o valor da religião no cotidiano, expressando
através da plasticidade e da expressividade do ritual, as interações entre o real e o irreal,
apresentando a partir dos fenômenos sensíveis a dimensão e valor da experiência
compartilhada em estâncias comuns de representação simbólica e, por fim, mostrando
que o santo está presente (pois seus fiéis lhe são caros) a cada encontro entre a devoção
e a diversão em atos de fé e(m) festa.
141
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