tierra del fuego, chile
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tierra del fuego, chile
CAPA Inocuo > Ricardo Galésio > Ana Elisa Ângelo Fernandes Christian Demarco Clara Tehrani Cláudio Parentela Constança Carvalho Homem Hugo Mortágua João Pedro Rato Pedro Palrão Pedro Rio Sara Toscano Sónia Bettencourt Teresa Cortez Vanessa Teodoro Wilson Neto ONZE 11ELEVEN NOVEMBRO2007 Hoje é novembro. As coisas novas vêm sempre em novembro. Somos agora mais, fazemos por ser melhores. Acrescidos. Temos outros. Originais. Caixas grandes por abrir, segredos para contar a toda a gente. Falamos alto nas tascas e comemos tremoços de boca aberta. Enchemos as goelas para dizer asneiras e não lavamos o surro debaixo das unhas. Somos porcos. O cheiro é intenso e todos reparam. Fazemos bolinhas com os macacos do vosso nariz e atiramos às montras das lojas finas. Saímos do risco e cortamos a direito. Curvamos as costas, olhamos de esguelha e pensamos em nada. No entanto, há quem goste. Ainda bem. SÃO LUIZ NOV O7 SONATA DE OUTONO INGMAR BERGMAN 2 A 25 NOV QUA A SÁB ÀS 21H DOM ÀS 17H3O INTERPRETAÇÃO FERNANDA LAPA ANA BUSTORFF VIRGÍLIO CASTELO MARTA LAPA ENCENAÇÃO FERNANDA LAPA CUCHA CARVALHEIRO CENOGRAFIA E FIGURINOS GET OUT LAUREAR A PEVIDE LISBOA PORTO ISTAMBUL SANTIAGO AMESTERDÃO ANTÓNIO LAGARTO UMA CO-PRODUÇÃO SLTM – ESCOLA DE MULHERES /OFICINA DE TEATRO SESSÃO COM INTERPRETAÇÃO EM LÍNGUA GESTAL PORTUGUESA: 18 NOV, DOMINGO, ÀS 17H30 LISBOA.EXPOSIÇÃO ARTE E CULTURA DO IMPÉRIO RUSSO NAS COLECÇÕES DO HERMITAGE De Pedro, o Grande, a Nicolau II Palácio da Ajuda Até 17 de Fevereiro de 2008 LISBOA.CONCERTO BORDELL Beat Laden, Silvio Rosado, Luis Simões, Abdul, VJ Alatak e Rui Pregal da Cunha Fábrica de Braço de Prata 15 de Novembro de 2007, 22h00 LISBOA.EXPOSIÇÃO ESPONJA #02 - NELSON ARAÚJO Grémio Lisbonense De 7 de Novembro a 7 de Dezembro de 2007 PORTO.EXPOSIÇÃO LOMOFÉRIAS ‘O7 Centro Português de Fotografia Abertura a 16 de Novembro de 2007 WWW.TEATROSAOLUIZ.EGEAC.PT SÃO LUIZ TEATRO MUNICIPAL EGEAC, EM WWW.EGEAC.PT RUA ANTÓNIO MARIA CARDOSO, 38 1200-027 LISBOA BILHETEIRA T: 213 257 650 TODOS OS DIAS DAS 13H00 ÀS 20H00 WWW.TICKETLINE.PT, LOJAS FNAC, AGÊNCIA ALVALADE €5 PARA MENORES DE 30 ANOS ISTAMBUL.EXPOSIÇÃO TIME PRESENT TIME PAST Highlights from 20 years of The International Istanbul Biennale Istanbul Modern Até 2 de Dezembro de 2007 A ESCOLA DE MULHERES – OFICINA DE TEATRO É UMA ESTRUTURA FINANCIADA PELO MINISTÉRIO DA CULTURA / DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES M/16 SANTIAGO.CONCERTO BJORK San Carlos de Apoquindo Stadium 10 de Novembro de 2007 AMESTERDÃO.CONCERTO MARIZA Muziekgebouw aan het IJ 18 de Novembro de 2007, 20h30 MODALISBOA ESTORIL PRIMAVERA VERÃO ‘08 JOÃO PEDRO RATO 11 13 15 fin. 17 - Acho justo que, não tendo sido consultada acerca do meu nascimento, tenha ao menos o direito de decidir quando e como quero morrer… Ficámos em silêncio. Ambos a pensar na lógica da afirmação. O chá estava quente demais. Aliás, a sala estava quente demais… Até no verão lhe conhecia o ambiente sombrio e abafado, lareira acesa e persianas corridas. O sol só entrava em linhas. Dei um golo a medo. Ao menos estava delicioso! - Bem, parece-me justo, de facto! Alguma coisa rangeu quando se levantou. A cadeira ou os ossos. Talvez ambos. Era impossível dizer o que existiu primeiro, a casa ou o dono. - Já volto… Fica à vontade mas não mexas em nada! Como sempre se resto. Efectivamente, o ar sombrio, o silêncio colado às paredes e aos móveis, os artefactos cobertos de pó e as velas aromáticas davam à casa uma sensação de santuário. Acolhedor e confortável mas sério e intimidante. Merda, o chá estava definitivamente quente demais. Acendi o cachimbo. O fumo massajou-me os pulmões. Logo apareceu o Zorbas, o gato cinzento, olhos caramelo, sempre afável e gorducho. O dono remexia a despensa ruidosamente. Habituado ao aconchego do silêncio doce, o barulho pertubou-lhe o sono e inquietou o pacífico Zorbas. Sentou-se na poltrona ao lado da lareira a aquecer a alma. Para se acalmar, lambeu uma pata, depois o lombo e desceu até à cauda felpuda. Dei-lhe uma festinha na cabeça. Como que assegurado que a casa continuava segura apesar da estranheza do barulho, o Zorbas deitou-se e retomou a sua actividade laboral. Livreime dos agasalhos e sentei-me no chão a seu lado a olhar para o lume. - Esta é a tua viagem. Ninguém te pode acompanhar. Pensa bem… Não há retorno! Estendeu-me uma chávena. Bebi-a até ao fim, de um só golo, sem respirar, sem pensar. Nada aconteceu. Levou-me à porta e despediu-se de mim com um abraço. Inesperadamente. Um abraço de adeus, boa viagem! Na rua o Sol estava forte demais. Não tinha óculos de sol… é Inverno porra! Fui para casa. Estava tudo na mesma mas em breve faltaria lá eu. Estranhamente, era uma sensação reconfortante. Viajaria e não ia voltar. Cachimbei junto à janela a olhar o movimento na rua. Dormi traquilamente. Muito mais tranquilamente… O dia estava fantástico e a água um espelho transparente. Iria ser fascinante atravessá-lo para o outro lado. O choque com a frieza da água lembrou-me o choque com a frieza do mundo quando se nasce. Lá longe, a margem. Inspirei pela última vez. Cheirava a mar e a sal. Mergulhei. Enchi as minhas recém formadas guelras de água… funcionou! Tinha apenas umas escassas horas de vida no meu mundo novo. Inspirei novamente, longamente, saboreando. Fui cada vez mais fundo, não havia limites agora. Estou rodeada de peixes multicolor, arco-íris da água olham para mim curiosos, tão apaixonados como eu. - Afinal não vou fazer esta viagem sozinha… CLARA TEHRANI 19 CLAUDIO PARENTELA THE POWER OF COLOR 21 23 25 ZPAIPGN ZAPPING ÂNGELO FERNANDES # Tudo começa por uma razão específica, algo que enceta todo um processo de mutação. Para cada indivíduo há o seu catalizador, a sua razão para perfilhar um novo percurso – nem sempre o mais desejável. Ainda assim, apesar dos contratempos que se pode encontrar é necessário percorrer tal caminho para haver mudança. O meu aconteceu hoje quando cheguei a casa após um dia relativamente produtivo e pouco cansativo. Em suma um bom dia de trabalho. Como hábito, mesmo antes de abrir a porta, já o cão ladrava e saltava freneticamente enquanto me aguardava ansioso. Abri a porta, entrei e dediquei-me a fazer-lhe a vontade até se acalmar minimamente. Segui até ao quarto de banho, lavei as mãos e dirigi-me até à sala onde se encontrava Marta, via um dos programas de final de tarde onde reestruturam uma casa completa em apenas dois dias. Olhou rapidamente para mim, sorriu feliz, apesar de um sorriso profundamente maquinal e, como sempre, perguntou-me: - Como te correu o dia? - Bem – retorqui automaticamente, fiz uma pequena pausa e continuei – Correume bastante bem. Sentei-me ao seu lado, na televisão desvendavam o antes e depois da casa em questão. A cozinha tinha adquirido mais espaço, era notório, contudo esteticamente era um pesadelo com as paredes pintadas de cores vivas e diferentes. Um circo culinário. Marta colocou a sua mão em cima da minha. Já há muito tempo que o seu toque não provoca em mim qualquer tipo de sensação; nenhum formigueiro ou até a sensação quente quando duas mãos se tocam. Nada. Indiferença total. Lentamente retirei a minha mão debaixo da sua. Marta não reparou sequer, ou se notou não reagiu. Estava hipnotizada com a reacção da feliz dona de casa cuja sala estava irreconhecível. Entre um dos seus gritos de felicidade histérica virei-me para Marta e disse-lhe: - Quero o divórcio. À nossa frente a dona de casa saltava e batia palmas ao ver o jacuzi que tinha sido instalado no seu quarto de banho. Naquele momento estava realmente feliz. 27 ARRIEROS EN RUSSFIN TIERRA DEL FUEGO, CHILE CHRISTIAN DEMARCO 29 Los arrieros de tierra del fuego habitan una de las regiones más remotas del planeta. Una vasta isla que se extiende desde el Estrecho de Magallanes, frente a Punta Arenas, hasta la provincia de la Antártica chilena. En la sección Russfin (a 180 kms. de Porvenir, capital de Tierra del Fuego) el día de estos pastores y sus perros transcurre lento, solitario y nostálgico. Unos recordando siempre los años de bonanza. otros, los más jóvenes, extrañando su familia o su tierra natal, ambas abandonadas hace tiempo, para venir aquí a trabajar por un sueldo mínimo. Con diferentes tareas cada día y sin horarios, los arrieros llegan siempre a tiempo al galpón que sirve de cocina–comedor en donde se reúnen para comer el plato único a lo largo de toda la tierra del fuego : el cordero. Estos hombres (en Russfin vive sólo una mujer), comparten pequeñas casas sin luz eléctrica ni muebles, solamente un par de sillas hechas de troncos en donde todas las noches se sientan a compartir amargos mates y cigarrillos traídos de la frontera argentina, encendiéndolos en una vela que ya se apaga, indicándoles que es el último pucho antes de ir a dormir. The “arrieros”* of Tierra del Fuego live in one of the most remotes regions of the planet. A vast island that begins in the Magallanes strait, in front of the Punta Arenas city, and ends in the antartic chilean province. In Russfin (180 kms from “Porvenir”, the main city of Tierra del Fuego), the day of this shepherds goes slowly. Always nostalgic about the family and the land of their birth, long time abandoned, to come here and work for a minimun wage. With different tasks every day and with no schedule, they always arrive on time at the dinning–kitchen room to eat the principal plate along all Tierra del Fuego: the lamb. This men (in Russfin lives no women) share a little houses with no electric light, and no furniture, just a few chairs made with trunks. There, with light candles, they smokes longs cigarettes (brought from the argentinian border) and drinks bitters “mates” (a tipical herbal drink) before to sleep. *arrieros : a kind of shepherds 31 33 35 37 39 o silêncio pesado é a minha única poesia. Porém, o que deveria ser contentamento tomou o meu corpo em solidão, desejos confusos, desânimo e um pensamento medíocre que se lamentava egoísta: sentia-me melhor se soubesse que ficavas bem. E não hesitei em colocar questões para te saber o rumo, a febre e o destino. “Não me perguntes para onde vou!”, exclamaste no dissoluto da despedida. Sim, concordo, é demasiado estranho abandonar uma pessoa e não querer deixá-la sozinha. Sem intenção me deixei cair numa perplexidade, para não falar no enorme ridículo e na fúria que despertei em ti. Não havia sentido naquilo tudo, mas cansei-me de esperar de mim uma vitória ou uma derrota decisiva, porque te amo, as coisas nunca serão simples e redondas. Fica a loucura, se é que se pode ir tão longe. Mas não é uma questão de distância apenas. É um acumular de ameaças, uma Finalmente, acalmei-me um pouco e conformei-me da tua partida. Da tua ausência. Mais difícil do que saber-te longe, é não saber de ti. E com quem poderás estar. O ciúme é uma serpente feroz que não se pode entender: uma vez que nos morde o pensamento deixa de nos considerar. Todos os dias quando chego a casa finjo não perceber que ali já não moras – é como uma birra masoquista que me leva a espreitar quarto a quarto, abrir porta a porta, subir e descer andares, percorrer corredores, deter-me em cada esquina equivocada pelo teu vulto ou pela tua voz. Por qualquer razão ou circunstância, que não alcanço, quando percebi que estavas longe, estavas mesmo longe. Então ali fiquei, outra vez e como sempre, sozinha entre quatro paredes, numa casa imensa repleta de janelas e portas de vidro, a imaginar o quão distante aquilo significava. Sempre pensei que tinha tempo. Tempo para ter todo o tempo. Tempo para ti. Porque no fundo, no âmago, onde agora salta em mim um qualquer bicho estranho de face horrenda, o qual não consigo agarrar, julgamo-nos imortais. A verdade é que sempre nos sentimos atraídos para o alto, para o reino das alturas. Quem não quer libertar-se, para além das suas cadeias e das suas dádivas, da sua vida? Mas então, o que é que nós queremos nas alturas, se quando chegamos lá em cima, sempre nos encontramos sozinhos? Deixei-te apesar de gostar de ti. Deixei-te porque não compreendias o quanto o mundo é dominado pelo mal, o que se torna um mal maior; o quanto o homem quer fazer sofrer o que o faz sofrer. Deixei-te porque queria desaparecer diante de mim mesma; porque as tuas virtudes ainda me contrariavam mais do que os teus defeitos e as tuas falsidades. Deixei-te porque não compreendias a loucura de querer abrir caminho para fora do mundo; porque na vida tudo muda num breve instante gerando contradições. Deixei-te porque éramos dois. Mais uma palavra seria ver-te chorar, no momento em que te mandei abandonar a casa, diluída e mínima, agora que não te vejo dormir, que sinto já o vazio da cama e SÓNIA BETTENCOURT desistência mais aflitiva de tudo o que nos acontece e nos pode acontecer. O homem, esse sonhador definitivo, disse André Breton, cada dia mais desgostoso com o seu destino. Porque leva várias vidas ao mesmo tempo e só o que o exalta é a liberdade – a sua única aspiração. Cheguei a casa, e por incrível que pareça, não consegui encontrar o caminho para o quarto de cama, para a sala de estar, ou para a cozinha. Muitas portas e janelas à minha volta; móveis, mesas, cadeiras e sofás; quadros, fotografias, peças de madeiras e de vidro, como se passassem por mim a correr, como se andassem ao meu redor perdidas e apressadas. Senti-me insegura, quase histérica a tentar andar pela casa dentro, as paredes desmoronavam-se e todos os objectos empurravam-me porque queriam passar e eu estava no meio do seu caminho. Fecho os olhos. E penso: vou te encontrar. Naquele momento não houve lágrimas. Estava tudo distante de me alcançar, tudo distante de entrar dentro do tempo e de me tornar parte do irreal presente – voar e não temer a queda – enquanto caminhava à tua procura. Lentamente fui me concentrando na minha respiração, nas linhas concretas dos objectos domésticos, na luz pálida do fim do dia e fiquei estática, ainda sonolenta, convencida que me esperavas algures, numa divisória qualquer. Permaneci naquela posição, minha aventura de ser o caos e o labirinto, naquela casa que abriga o nada, porque ali estarei infinitamente só na tua companhia. 41 WILSON, UM AMIGO DE PASSAGEM OU UM QUADRO CHAMADO MOSAIQUE Passou por Lisboa. Fugaz, tal como quando poisa na minha caixa de emails, breve como um pássaro mas sempre cheio de beleza. Falamos sempre com uma distância de estações, entre as nossas migrações e o tempo que passa. Já me passou, à despedida, a mão pelos ombros como passou comigo a fronteira entre cidades, quando eu passei pelo Brasil. Os seus quadros aterraram em Lisboa, no meu quarto, onde passaram de bocaem-boca, por aqueles que por lá passaram.. Passaram comigo para a Grécia, quando eu me passei, já lá vai.. Passam agora (que coloridos!) na minha sala de Amsterdao - uma passa desse cigarro - não passam despercibidos. Gémeos anoitecidos, cor do fundo do mar. São costuras do mesmo tecido, irmãos sob o mesmo luar. Tanto Portugal e Quanto Brasil. São distâncias de ondas mil, extenso oceano febril, sem paragens nem terminal: eu aqui... e lá o meu amigo. Gémeos anoitecidos, os cabelos arrancados nevam ao fundo, como ondas que só o mediterrâneo não tem. Salva-os as bochechas de lua, esse sorriso que flutua, esse azul de ninguem. Apanhamos um papagaio de papel, é a fralda da bandeira do japão e aterramos em Liberdade, um S. Paulo amarelo, o olho amendoado, a saudade. Bebemos juntos um cocktail de raças, a rir. Passa ao lado o rafeiro, vestido de jardim, para infrentar o inverno de sol hibernado...enfim! As 4 bacantes - de dionísio amantes - uivam ao deus, que as abençoa de vinho tinto, cântigos de ginjinhas, mulheres vindimadas que amadurecem antes de serem brindadas. No fim desse mosaico somos tu e eu, e um remoto projecto aborígene SARA TOSCANO 43 WILSON NETO Há projectos que se inventam e outros que surgem imbuídos de urgência e vitalidade. www.pauloribeiro.com SMALL THOUGHTS BIG NATURE TERESA CORTEZ 45 47 PEDRO PALRÃO VIAGEM DE COMBOIO (BEIRUT) Empacotei as malas porque o comboio estava já à minha espera, encostado ao apeadeiro cinzento de cimento. A estação era simples, mas eu também não fazia questão de uma grande decoração. Aliás, a rudeza de tudo o que lá se encontrava atraía-me e fazia borbulhar um sorriso no canto da minha boca. Fiz questão de emalar todas as coisas e todas as pessoas que me interessavam num malão antigo, a fazer lembrar um armário (claro que fiz questão que todos ficassem confortáveis, a viagem era grande). Arrastei-o com todas as minhas forças e tive de pedir ajuda a um senhor para poder colocá-lo dentro do comboio. Sabia que o comboio não se ia embora sem mim, mas eu não gosto de fazer esperar, e além disso já estava à minha espera há demasiado tempo. Com o tamanho da mala que levava acabei por ocupar uma cabina sozinho, e tive de eu entrar primeiro para que a mala coubesse, para além de que eu fazia questão de ir à janela. Não ia perder a oportunidade de ver o mais importante da viagem, e, afinal, os melhores lugares são sempre à janela. Antes de entrar, certifiquei-me de largar o que trazia nos bolsos e de limpar bem as solas dos sapatos do que restava de memórias que deveriam passar a fronteira do esquecimento para que pudessem desaparecer…ou, na eventualidade de tal ser demasiado radical ou mesmo impossível, pelo menos tornarem-se grãos de pó no areal das minhas memórias ou, pequenas ervas daninhas na floresta do meu consciente, ou mesmo pequenos insectos no meio da fauna rica que povoava a minha mente, ou…era melhor parar porque já estava à entrada do comboio há demasiado tempo e sinceramente a expectativa da viagem roubava-me toda e qualquer vontade de perder tempo em metáforas pomposas para explicar algo ao qual eu queria retirar o privilégio da importância. Ouvi o apitar do comboio em sintonia com o sangue a jorrar-me do coração… quase como se sentisse o jacto a entrar nas veias e a bombear-me o corpo todo…arrepiando-me todos os poros à medida que me percorria…Um sorriso tolo latejava-me nos lábios, e fossem alvos os meus dentes brilhariam a acompanhar o brilho que eu sentia nos meus olhos (que se marejavam um pouco até, mas que eu tentava esconder), quase fechados das ganas do meu sorrir… Sentia-o em toda a parte de mim…estava pronto! O comboio começou a andar aos poucos… lentamente… lentamente… sentia por baixo dos meus pés o roçar dos carris, a ferrugem que ouvia pela porta entreaberta (e que não me surpreendia dado o tempo que eu fizera esperar esta jornada). Com os primeiros movimentos soaram também os primeiros acordes da música que me acompanharia toda a viagem (pudesse eu sorrir mais do que sorria…). Soltei um suspiro e não contive o impulso de entoá-la em uníssono. As melodias que afluíam aos meus ouvidos fluíam por mim despertando todas as sensações, espicaçando as emoções que me latejavam por debaixo da pele. Pela janela via florestas imensas, montes a pique, a correrem lá fora enquanto eu ficava no meu lugar, quieto, esmagado pelo malão contra o vidro. Por entre a paisagem que forrava o caminho comecei a distinguir um rol de memórias que se materializava…comecei a distinguir as imagens que as compunham, as pessoas e situações que eu escondia na recordação. Finalmente, a nostalgia começava a fazer efeito e, como num filme, as imagens do passado sucediam-se como num rolo de fita, começavam a mostrar-se sem pudores…afinal, estava incluído no preço do bilhete, era algo que qualquer viajante esperaria…só os mais insensíveis tudo isto deixariam passar despercebido. Via de tudo um pouco e aproveitei até para comer umas pipocas, parecia que ajudavam a embrenhar-me no que, à partida, mais ninguém estaria tão embrenhado quanto eu. Como batia o meu peito…como sentia o pulsar no pescoço das veias que batiam com o coração…Rasgava sorrisos espontâneos nos lábios cerrados da expectativa… fazia explodir gargalhadas que irrompiam na garganta e me brotavam com a maior das sinceridades… vertia as mais tristes e mais felizes lágrimas que alguma vez havia vertido, deixava-as formar cursos de água nas minhas bochechas vermelhas do calor que começava a sentir (apetecia-me bebê-las de volta para não as perder e poder chorá-las vezes e vezes sem conta)… Abri a janela para deixar entrar um pouco de ar, que me aclarasse o rubor do rosto…e o som do que me perpassava os olhos entrava às golfadas grandes, ao que eu juntava o barulho das recordações. De quando em quando olhava para o destino do comboio escrito a letras garrafais no bilhete e disperso nas paredes da cabina (devia ter feito esperar esta viagem por mesmo muito tempo) para que eu não me esquecesse… sacudia o rosto e soprava, como que para disfarçar as lágrimas que corriam, e sorria… sorria por dentro, por fora… gritava sorrisos em todas as direcções. Se um arrepio de receio, de medo me corria na espinha, esbofeteava-me com vontade para me acordar…enchia o peito de ar e expelia tudo o que pudesse manchar a força e a coragem que eu sabia (tinha de acreditar) estar dentro de mim, pulsar-me a viva força e sempre ao meu dispor. Segui de viagem…e ainda sigo….aliás, escrevo estas linhas com o tremor da jornada, com o coração cheio e as memórias bem guardadas para me acompanharem em novas paragens…e, sempre que suspeitar da força da minha vontade terei as memórias desta viagem para dissolver as dúvidas que possam aparecer em surdina…E, por agora, aqui continuo, olhando, bebendo a paisagem que paira lá fora, relembrando o que se mostra aos meus olhos…sigo a viagem que demorei tempo demais a encetar… vou no comboio que deixei tempo demais à espera… * Inspirado e escrito ao som da música da banda Beirut 49 “Nike celebra sus 35 años de historia con una innovadora exposición que une deporte, arte y cultura. La Sala Vinçon de Paseo de Gracia (BARCELONA) acoge una exposición de 9 de los mejores artistas gráficos y estudios de diseño de la generación de los 70: Actop, Toormix, Silvia Prada, Inocuo, Vasava, Area 3, Catalina Estrada, Diva y Bernat Lliteras, fotografiados por Javier Tles. De esta espontánea unión entre deporte, cultura y arte salen nueve trabajos que sorprenden por su frescura y espontaneidad de unos jóvenes que han crecido, vestido e incluso customizado algunos de estos productos originales de Nike hasta convertirlos en iconos de toda una generación. La exposición es a su vez un recorrido histórico por los anales de la historia de Nike, cultural porque asocia los productos con lugares imborrables de Barcelona y, generacional, porque los 9 artistas que en ella colaboran son coetáneos de la generación del 70 con la marca.” > Escolhemos 4 trabalhos para publicar: VASAVA, INOCUO, AREA 3 E BERNAT LLITERAS (por ordem de paginação). Fotografias de JAVIER TLES 51 53 55 57 59 VANESSA TEODORO SCREAM DOLLS BLUE BIRD NEVER 61 63 Tu és No espaço que ocupas Com o teu corpo e o teu sentir. Tu és No tempo que acolhe a vida Que tiveste, tens e terás. Tu és! E sem barreiras Fazes o que fazes na certeza Do que sentes ser a tua medida. Nem mais… nem menos, Cedo ou tarde pouco importa; Tanto para os pássaros Que voam alto lá no céu azul, Como para nós… Que aguardamos aqui em baixo Por ti e pelo que crês ser. Tudo pode acontecer Sem que tenhas que forçar a tua vontade. Apenas és. Afinal de contas... O mundo é teu... Tu não te adaptas... A vida adapta-se a ti E tu sentes-te bem assim. CANTIGA DO BANDIDO És livre e transbordas grandiosidade, E enches o coração do povo Com todos os grandes sentimentos Que fizeram grandes os homens. Nada te faz sentir menos que isto: Tudo parecer acontecer Para o teu sorriso nascer. Porquê? Porque tu és. HUGO MORTÁGUA 65 QUANDO A. MORRER FOTOS DE PEDRO RIO E TEXTO DE CONSTANÇA CARVALHO HOMEM 67 69 Quando A. morrer, é certo, ninguém há-de enviar cartões com tarja preta. A notícia há-de correr lesta às primeiras horas da manhã, ao abrir das persianas, quando for notada a sua ausência no circuito habitual. Há-de sentir-se primeiro a estupefacção própria destas coisas; só depois, o aflorar da água. Quando A. morrer, é certo, há-de vir de longe uma irmã velar-lhe o corpo. Trará, para lhe pousar ao ouvido, uma cantiga de roda. Há-de chorar-se um atlântico entre o lado de lá e o de cá, ainda que nenhum mar a devolva. Há-de encontrar-se o melhor vestido para a circunstância, ainda que nenhum pareça estar à altura. Quando A. morrer, é certo, a procissão há-de descer a alameda de Agramonte. Terra à terra, cinzas às cinzas, flores às flores, como um refrão de todos conhecido. Há-de passar-se o dia à tona de um soluço. Há-de pedir-se à noite permissão para adormecer. Mas quando A. morrer, é certo, ainda antes que passe muito tempo, há-de venderse a casa e partilhar-se o recheio útil. 71 73 75 Porque sempre gostei de ler. Os livros são objectos de arte. Escolhi mesmo esta profissão porque gostava de ler e de estar perto dos livros. Quando era mais nova lia imenso, livros emprestados, livros dos meus pais…até dos meus avós. Havia na altura uma carrinha, aliás aquilo chamava-se um biblioteca ambulante, levava livros aos bairros uma vez por semana e eu lembro-me de ter lido quase todos os livros que existiam lá. Lembro-me que o senhor João me aconselhava…quase sempre aventuras. Sim, sou há uns anos. Desde os 24 ou 25 anos. Adoro. Gosto mesmo. Trabalhei alguns anos em Faculdades e não gosto tanto, porque as pessoas aí viram-se mais para os livros técnicos. Eu gosto de estar aqui porque posso aconselhar, porque há pessoas que vêm buscar livros que não encontram à venda, há leitores assíduos com quem se pode falar sobre os livros. Claro que há sempre quem venha aos livros técnicos, ou buscar livros mais antigos e que só existem aqui, esta é uma granda biblioteca, temos mesmo muita coisa arquivada, mas muitas pessoas vêm buscar livros comuns. Comuns…ah, não são comuns, mas que não são livros de estudo. Os miúdos mais novos não têm gosto pela leitura, os poucos que cá aparecem gostam só de livros de aventuras, ficção científica, terror. Não tem mal nenhum, mas são poucos os jovens. Pelos vintes sim, há muita gente. Ohh, tratar mal os livros?? Muita gente. Livros sublinhados, com anotações, livros que ficam mal colados porque os fotocopiaram, livros rasgados, com manchas…amachucados, é muito comum. Eu fico mesmo chateada nessas alturas. Pessoas que não entregam livros…temos várias. Mas também não é assim um problema tão grande. Qualquer problema pode ser tratado com calma. Sei onde estão quase todos os livros. Quase todos. É normal, é a minha casa. Sei os mais antigos, os mais recentes, os que estão requisitados. Mas isso é normal, porque eu gosto mesmo disto. Tenho uma grande biblioteca em casa, com os clássicos todos, e com muitos livros recentes. Acho que se está a começar a ler outra vez, com os jornais gratis e os grandes sucessos agora. Mas há muitos livros que me fazem confusão…histórias demasiado comuns, e muita coisa mal escrita, sem conteúdo nenhum. Acho que se está a ler mais, sim. Mas acho que se está a ler pior. A qualidade tem vindo a diminuir. Hoje em dia toda a gente escreve, e a escrita é uma arte, por isso nem tudo o que aparece é bom. Acredito mesmo que às vezes se perdeu tempo com aquele livro. Mas pronto. Histórias peculiares?? Claro que tenho. Recados nos livros, pessoas que desenvolvem teorias DaVinci e Dante e que procuram mensagens nos livros mais antigos. Há histórias muito engraçadas. E há alguns leitores fixos que só lêem aquilo que eu indico. É bom porque se tornaram ao longo dos anos pessoas intimas, com quem estabeleci uma amizade. Diga-me você…acha que sou sexy? Isso é o cliché da mulher com aspecto profissional, mas que depois consegue tranformar-se… Lisboa, lisboa é uma cidade maravilhosa. Já viu este tempo? Este tempo faz a diferença. É uma cidade lindíssima. Culturalmente pouco desenvolvida, eu ainda acho. Mas muito bonita, claro. Qualquer livro do Eça, “O Idiota”, Isabel Allende, “Don Quixote de la Mancha”…são tantos. Um livro para Lisboa…hum… “O estrangeiro” de Camus, sem dúvida. ANA ELISA B.I. Madalena 43 anos Bibliotecária 77