Do plâncton ao pós-modernismo

Transcrição

Do plâncton ao pós-modernismo
MARTIN ARGYROGLO CALLIAS BEY
Do
plâncton
ao pós-modernismo
Philippe Quesne regressa a Lisboa
neste fim-de-semana de abertura
do Alkantara Festival. Big Bang é o
abecedário do mundo de um dos
mais entusiasmantes encenadores
contemporâneos.
Tiago Bartolomeu Costa
Não é por acaso que a companhia
do francês Philipe Quesne se chama
Vivarium, que naturalmente pode
traduzir-se por viveiro: Quesne pratica um teatro de laboratório, instalando as suas peças num território
de indefinição entre o teatro, enquanto estrutura formal, e as artes
visuais, enquanto possibilidade de
evasão. O que quer que resulte do
encontro entre esses dois mundos
faz dos espectáculos de Quesne um
dos mais entusiasmantes discursos
da cena contemporânea. Pela velocidade com que se estendeu aos
mais diversos festivais de todo o
mundo, o encenador deslocou-se,
aos 41 anos, da categoria de disruptor do teatro contemporâneo francês para a de portador de um discurso apelativo a diferentes ambições.
Big Bang, que se apresenta hoje e
amanhã às 21h30 na Culturgest, em
Lisboa, dentro do Alkantara Festival, é a terceira parte de uma trilogia
cujos dois primeiros capítulos passaram por cá em 2009: L’Effet de
Serge e La Mélancolie des Dragons
tratavam, como Big Bang, justamente da nossa capacidade de invenção
(e de reinvenção) humana, seja a
uma escala mais reduzida, como no
primeiro caso, ou, agora, como parte integrante da grande História da
humanidade.
O encenador descreve Big Bang
como “uma comédia sobre os primeiros homens e as primeiras mulheres” de onde parte para um exercício de imaginação sobre o estado
do mundo, “sem um fio condutor”,
avançando e recuando conforme
dita a imaginação e não a linearidade cénica. “Os actores são compositores e artesãos do corpo, dos
sons, dos objectos”, diz, falando que
mais lhe agrada no teatro: “Há uma
dimensão artesanal que é preciso
salvaguardar”. Durante muito tempo, Quesne teve na mesa de trabalho
o livro Royaume de l’artifice.
L’Émergence du Kitsch au XIXe Siècle,
de Céleste Olalquiaga, e andou a ver
documentários “sobre a vida do infinitamente pequeno plâncton submarino”, pequenas “comédias musicais” do investigador Jean Painlevé. Big Bang saiu portanto assim:
pequenino como o plâncton, ambicioso como a história do mundo.
Tudo começou com o título, “um
pretexto para a experimentação”
que segue, na aparência, a teoria
evolucionista, “registando rupturas,
invenções, decomposições, desaparecimentos, tal como nas mais estranhas mutações”. Citamos do programa da estreia no Festival de Avignon, no Verão de 2010, em que a
peça foi recebida com frieza e dividindo opiniões — tal como, meípsilon | Sexta-feira 25 Maio 2012 | 15
MARTIN ARGYROGLO CALLIAS BEY
RT
OMA
I/ A RTC
NELL
R TO
V ICTO
nos de um ano depois, um outro
objecto que de certa forma recontextualizou Big Bang, A Árvore da
Vida, o filme new age de Terrence
Malick sobre a invenção do mundo.
Big Bang é, dizemos nós, melhor, e
leva-se muito menos a sério. Mas há
por ali muita cosmogonia malickiana. Novamente do programa: “Do
plâncton ao pós-modernismo, indubitavelmente, homens e animais,
silêncio e linguagens, nada e tudo
co-existirão: a flutuação do vivente”.
Hoje, Quesne diz que “Big Bang
abre múltiplas pistas que evocam,
ao mesmo tempo, uma explosão gigantesca, uma teoria fundadora ou,
tão simplesmente, uma simples onomatopeia da banda desenhada —
mas também o nascimento do que
é orgânico, do que prexistiu ao aparecimento da vida humana”. A peça
vive, assim, de “atmosferas contrastantes, como pranchas de um livro
em permanente evolução”. Quesne
reconhece neste espectáculo a influência da banda desenhada, que
lhe permite trabalhar um universo
imaterial — nomeadamente de autores como Chris Ware, Jens Harder,
Ludovic Debeurme, Paul Hornschemeier ou Charles Burns, que trabalham entre o absurdo e o estudo
social.
Cada prancha, cada sequência
tem um nome diferente; juntas, essas peças curtas agirão sobre uma
estrutura maior que “ambiciona
questionar o próprio teatro”. O encenador dá o exemplo dos animais:
“Devem ser representados por actores? E como? Com que aspecto? E
o que é vegetal e o lugar de contemplação pura que isso pode ocupar
no próprio espectáculo?”. Dúvidas
que se traduzem em imagens, sons,
palavras e objectos que vão coexistindo num jogo de experimentação
permanente, explica: “Durante o
processo de criação de uma nova
peça, acumulamos pequenas histórias, coleccionamos pequenas situações, e arquivamo-las para que,
16 | ípsilon | Sexta-feira 25 Maio 2012
“Esperamos
qualquer coisa e,
zás!, a História
muda de direcção.
É preciso estarmos
disponíveis para
aceitar o que se
passa”
Philippe Quesne
Aos 41 anos, Quesne já não é
figura disruptora no quadro do
teatro francês contemporâneo;
as suas peças tornaram-se
fenómeno de exportação
mais parte, possam ser usadas numa
partitura final”. O uso da expressão
partitura, ao invés de guião, não é
de resto casual: “A palavra, a música, a linguagem são descobertas que
levaram a outras descobertas”, conta o encenador.
Micro-mundos
Desde que começou a produzir espectáculos, Philippe Quesne tem
trabalhado não a partir de narrativas
lineares, mas a partir de sujeitos
mais amplos, muitas vezes especulativos, dando aos seus espectáculos
a dimensão exploratória dos laboratórios e também a possibilidade
de contemplação de um outro paradigma teatral.
Em 2003, com La Démangeaison
des Ailes, experimentava uma dramaturgia em queda livre que permitia ao espectador projectar nas várias sequências um desejo de evasão
que se revelaria trágico. A ressaca
dessa experiência deu origem à série Des Expériences (2005), uma estupefacção perante as consequências futuras das nossas acções. Um
ano depois, em D’Après Nature,
Quesne começava a deixar que preocupações à escala global, como o
ambiente, se tornassem numa metáfora da nossa incapacidade para
lidar com algumas dessas ameaças.
O desejo de invenção e de recriação
surgiria depois, com L’Effet de Serge
(2007), La Mélancolie des Dragons,
(2008) e Big Bang. Como se Quesne
procurasse, através de uma inventariação de dados, relacionamentos
e memórias, colectivas ou individuais, emocionais ou construídas, sugerir uma outra história para o mundo. É um projecto ambicioso, admite, mas o modo como o construiu
permite a sua modelação permanente. “Eu vejo-o como algo melancólico, não necessariamente sobre
a presença humana, mas sobre um
mundo natural que se gere a si mesmo”.
Big Bang é um festim visual porque o reduzido uso do texto e as
muitas situações em que os actorescientistas deslocam os objectos (canoas, mesas, paus para uma fogueira, um carro) redesenham uma cenografia que produz belíssimas
imagens, é certo mas, sobretudo, se
comporta como uma paisagem não
apenas visual mas também dramatúrgica.
Se nos recordarmos de L’Effet de
Serge, já lá estavam as pequenas narrativas, contadas pelo solitário Serge em rotineiras tardes de domingo
com os amigos. No final dessa peça
víamos já, a espreitar pela janela, os
mesmos cientistas de fato imaculadamente branco que agora regressam; do mesmo modo, as longas
cabeleiras de La Mélancolie des Dragons reenviam para as barbas dos
homens primitivos que reencontramos em Big Bang.
Quesne não recusa uma ideia de
evolução. Não apenas de escala, no
estrito sentido cénico — do pequeno
estúdio de Serge para o atelier dos
cientistas em Big Bang —, mas também de interrogação, como se procurasse ir mais longe no que à História diz respeito, confundindo planos ficcionais com planos reais. Que
narrativa comanda: a do tempo criado em palco, ou a que é criada pela
distância histórica? “Para mim é
muito importante mostrar como se
pode habitar um palco”. Nesse “habitar”, Quesne supõe contiguidade
entre o palco e a plateia, ou seja,
entre o tempo da acção e o tempo
da narrativa. O seu teatro joga-se
entre o formalismo “moralista” do
teatro e a possibilidade de evasão
promovida pelas artes visuais. “Gosto de ver as pequenas tentativas que
se passam em cena como naturezas
vivas”, diz. “Como se o teatro pudesse viver sem os constrangimentos dos esquemas do drama teatral
— os conflitos, a morte ou a traição
— e apenas com mundos utópicos,
proporcionados pela fixação das
artes visuais”. A pequena comunidade de La Mélancolie des Dragons
ou de Big Bang “não pretende mu-
dar o mundo, mas reconfigurá-lo a
partir de pequenos objectos, de materiais simples, como se cada um
desses objectos fosse um micromundo colocado à disposição do
olhar do espectador”.
O que esperar?
Em Big Bang, ao contrário de L’Effet
de Serge, “já não há lugar para a fábula, ou pelo menos, para a fábula
da evolução”. O que significa que “o
espectador é ainda mais livre de fazer o seu caminho”. Quesne não
acredita que seja possível “esperar”
alguma coisa do que se mostra —
“ou, pelo menos, do que eu mostro”, corrige. É uma ideia antiga,
que está na base do seu teatro. Numa das primeiras performances que
criou quando ainda era estudante,
recorda, era já disso que falava.
“Chamava-se Expectative fallacieuse
porque essa expectativa é entusiasmante mas é uma falsa expectativa:
aquilo que esperamos que aconteça
nunca acontece realmente e, por
isso mesmo, os sentimentos de frustração e de surpresa misturamse”.
Desde essa primeira experiência
até Big Bang podem não ter passado
muitos anos, mas passou tempo suficiente para que Quesne tenha podido ler nessa teoria da expectativa
defraudada o nosso próprio modo
de relacionamento com a História
do mundo: “Esperamos qualquer
coisa e, zás!, a História muda de direcção. É preciso estarmos disponíveis para aceitar o que se passa, e
servirmo-nos disso, reajustando permanentemente a nossa relação com
o mundo”.
No fundo, os passos de Quesne no
seu teatro são exactamente os passos de um cientista num laboratório:
tese, hipótese e antítese.
Acompanhe o que se passa nos
palcos portugueses no novo
blogue do crítico Tiago
Bartolomeu Costa, Teatro
Público

Documentos relacionados