A entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional à

Transcrição

A entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional à
FLÁVIA NUNES DE CARVALHO
A entrega de nacionais ao Tribunal Penal
Internacional à luz da Constituição Federal e
das alterações advindas da Emenda
Constitucional nº 45 de 2004
Monografia apresentada à Fundação
Escola Superior do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios- FESMPDFT
como exigência parcial para obtenção do
grau de pós-graduado em Direito Público
sob a orientação do Professor Paulo
Gustavo Gonet Branco.
Brasília
2009
2
Dedico o presente trabalho a Deus,
alicerce da minha vida. Aos meus pais,
irmã e sobrinhos, por me darem o que há
de melhor na vida: amor!
3
Agradeço ao meu orientador Paulo
Gustavo Gonet Branco, pelo exemplo,
solicitude e carinho com o qual
desempenha o magistério.
Ao professor Paulo Afonso Cavichioli
Carmona, pelo incentivo e valiosos
ensinamentos.
À promotora Hiza Maria Silva Carpina
Lima pela amizade e apoio na realização
deste trabalho.
Aos meus colegas de turma, pelos
inúmeros
sonhos
e
anseios
compartilhados durante o período de
convivência acadêmica.
Aos servidores da Fundação Escola
Superior do Ministério Público do Distrito
Federal e Territórios, pela disponibilidade
em atender bem os alunos.
4
“Se a justiça pudesse perecer, não teria
sentido e nenhum valor que os homens
vivessem sobre a Terra.”
Immanuel Kant
5
RESUMO
CARVALHO, Flávia Nunes de. A entrega de nacionais ao Tribunal Penal
Internacional à luz da Constituição Federal e das alterações advindas com a
Emenda Constitucional nº 45 de 2004. Fl. 74. Trabalho de conclusão de curso de
Pós-Graduação – Direito Público, Fundação Escola Superior do Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios - FESMPDFT, Brasília, 2009.
Pesquisa a entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional à luz da
Constituição Federal e das alterações advindas com a Emenda Constitucional nº45
de 2004. A impossibilidade de extradição de brasileiros imposta como cláusula
pétrea na Carta Magna. Principais características e diferenças entre os institutos da
extradição e da entrega. Análise do artigo 5º, LI da Constituição, bem como dos
artigos 89 e 102 do Estatuto de Roma. Aspectos hermenêuticos a serem
considerados na recepção do Tribunal Penal Internacional pela Lex Superior,
fundamentando-se nos princípios da dignidade humana e da prevalência dos direitos
humanos nas relações internacionais. Análise dos reflexos da Emenda constitucional
45/2004 no que diz respeito ao Tribunal Penal Internacional e na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal. Precedentes históricos e a contribuição dos Tribunais
Temporários – Tribunal de Nuremberg, Tribunal de Tóquio, Tribunal Penal
Internacional para antiga Iugoslávia e Tribunal Penal Internacional para Ruanda –
para a criação de uma Corte de caráter permanente, que veio consagrar a
internacionalização da justiça penal individual.
Palavras-chave: Tribunal Penal Internacional, Estatuto de Roma, entrega de
nacionais, extradição, constitucionalidade, Emenda Constitucional 45/2004.
6
LISTA DE SIGLAS
ADCT – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
CDI – Comissão de Direito Internacional
EC – Emenda Constitucional
ONU – Organização das Nações Unidas
STF – Supremo Tribunal Federal
RE – Recurso Extraordinário
TMI – Tribunal Militar Internacional
TPI – Tribunal Penal Internacional
TPII – Tribunal Penal Internacional para a antiga Iugoslávia
TPIR – Tribunal Penal Internacional para Ruanda
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................ 9
Capítulo 1 ................................................................................................................... 12
A criação do Tribunal Penal Internacional e seus principais aspectos .................. 12
1.1Antecedentes ................................................................................................................12
1.1.1 Tribunal de Nuremberg ...................................................................................................... 15
1.1.2 Tribunal de Tóquio............................................................................................................. 19
1.1.3 Tribunais ad hoc para ex-Iuguslávia e Ruanda .................................................................. 22
1.2 Estatuto de Roma – características do Tribunal Penal Internacional ...................25
1.2.1 Aspectos institucionais ....................................................................................................... 27
1.2.2 Jurisdição do Tribunal Penal Internacional ........................................................................ 28
1.3 Ratificação do Estatuto de Roma pelo Brasil...........................................................32
Capítulo 2 ................................................................................................................... 35
Extradição e entrega.................................................................................................. 35
2.1 Extradição ...................................................................................................................36
2.1.1 Princípios e Formas de extradição ..................................................................................... 39
2.1.2 Extradição no ordenamento jurídico brasileiro .................................................................. 40
2.1.3 Princípio da igualdade de soberania – cooperação horizontal ............................................ 42
2.2 Entrega ........................................................................................................................44
2.2.1 Entrega no contexto do Estatuto de Roma ......................................................................... 45
2.2.2 Princípio da complementaridade – cooperação vertical ..................................................... 46
Capítulo 3 ................................................................................................................... 50
8
A entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional à luz da Constituição
Federal e das alterações advindas da Emenda Constitucional nº 45 de 2004 ...................... 50
3.1 Princípio da prevalência dos Direitos Humanos nas relações internacionais .......52
3.2 Princípio da dignidade da pessoa humana ...............................................................54
3.3 Hermenêutica constitucional ante a questão da entrega de nacionais ...................56
3.3 Os reflexos da Emenda Constitucional 45/2004 no que diz respeito ao Tribunal
Penal Internacional e na jurisprudência correlata do Supremo Tribunal Federal ...................62
CONCLUSÃO ............................................................................................................ 68
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 72
9
INTRODUÇÃO
O Tribunal Penal Internacional (TPI) foi criado ante a necessidade de uma
corte internacional permanente, independente e competente para julgar os crimes de
maior seriedade de interesse internacional1.
Dessa forma, foi aprovado em 17 de julho de 1998, na denominada
conferência “United Nations Diplomatic conference of Plenipotentiaries on the
Establishiment of an International Criminal Court”, o Estatuto de Roma do Tribunal
Penal Internacional, o qual teve sua atuação jurisdicional iniciada em 1 de julho de
2002.
O Brasil tornou-se membro originário do TPI ao ratificar em 20 de junho de
2002 o Estatuto de Roma, promulgado pelo decreto nº 4.388, de 25 de setembro de
2002. Obrigando-se, assim, segundo a prática consuetudinária que rege o Direito
Internacional, a cooperar e cumprir as normas previstas neste.
Impende aventar, que no ordenamento pátrio, a Constituição é tida como a
Lex Superior e, portanto “erige-se como parâmetro de validez das demais normas
jurídicas do sistema”2. Neste prisma, com a ratificação do Estatuto de Roma, pelo
Brasil, surgiram algumas questões acerca da constitucionalidade de alguns de seus
artigos, dentre elas o tema da presente monografia, qual seja, a entrega de
nacionais ao Tribunal Penal Internacional à luz da Constituição Federal das
alterações advindas com a Emenda Constitucional 45 de 2004.
O cerne da questão encontra-se no fato de o Estatuto de Roma prevê em
seu artigo 89 a entrega de pessoa que cometa qualquer um dos crimes de
_____________
1
GUSKOW, Miguel. O Tribunal Penal Internacional e os problemas futuros a enfrentar em relação à
soberania nacional. Tribunal Penal internacional: universalização da cidadania. Câmara dos
Deputados, Brasília: Centro de documentação e informação, coordenação de publicação, 2000, p. 11.
2
SANTOS, Fernando Ferreira. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo:
Celso Bastos Editor: instituto brasileiro de Direito constitucional, 1999, p. 13.
10
competência do TPI3, sem estabelecer qualquer exceção aos nacionais; ao passo
que a Constituição Federal tem como uma de suas Cláusulas Pétreas a proibição da
extradição
de
nacionais.
Assim,
gerou-se
uma
polêmica
acerca
da
constitucionalidade de tal entrega, ou melhor, se esta seria uma espécie de
extradição.
Justifica-se a escolha do tema, uma vez que não se tem definida a postura a
ser adotada pelo Brasil, ante a um caso prático de pedido de entrega de um nacional
brasileiro ao TPI, mais precisamente, se a Constituição admite a entrega. Ainda
neste sentido, nas entrelinhas, encontra-se uma matéria bem mais ampla a ser
estudada que é a relação da soberania brasileira e as relações internacionais
quando o que se encontra em voga é um bem maior e de interesse mundial, que são
os direitos humanos.
Neste
contexto,
um estudo
aprofundado
é
de
suma
importância,
notadamente pelo fato de ainda ser escassa a literatura acerca do tema.
A problematização do tema, portanto, fixa-se em dois pontos: a) a entrega
prevista no artigo 89 do Estatuto de Roma pode ser considerada uma espécie de
extradição? b) a entrega de um nacional ao Tribunal Penal Internacional é, ou não,
uma afronta a Constituição Federal de 1988?
O objetivo maior da presente pesquisa, como já mencionado, é averiguar a
constitucionalidade da entrega de nacionais ao TPI, para tanto, faz-se necessário
em um primeiro momento buscar o contexto histórico em que o TPI foi criado, bem
como entender suas características; em seguida há de se comparar os institutos da
entrega e da extradição, para enfim analisar aspectos constitucionais e hermenêutas
de tal entrega.
Destarte, para alcançar todos os objetivos acima propostos o presente
trabalho está estruturado da seguinte forma:
_____________
3
Segundo o artigo 5º o Estatuto o Tribunal terá competência para julgar os seguintes crimes: a) O
crime de genocídio; b) Crimes contra a humanidade; c) crimes de guerra; d) O crime de agressão.
11
No primeiro capítulo tratar-se-á dos Tribunais que antecederam a criação do
TPI, o seu surgimento, as suas características, aspectos institucionais e sua
jurisdição, bem como a ratificação do Estatuto de Roma, pelo Brasil.
No segundo capítulo, será traçado um paralelo entre o instituto da extradição
e da entrega no intuito de que seja estudado com profundidade cada um com suas
peculiaridades e os seus princípios.
No terceiro e último capítulo, tendo por fundamento os anteriores, o leitor
poderá embasado no enfoque deste, qual seja: princípios da prevalência dos direitos
humanos nas relações internacionais, da dignidade humana, alguns aspectos
hermenêuticos constitucionais e análise dos reflexos da Emenda Constitucional
45/2004, concluir se a entrega de nacionais é uma afronta à Constituição Federal de
1988.
No que diz respeito à metodologia de abordagem será utilizado,
principalmente, o método dedutivo, o qual parte do geral, versando noção de
interpretação jurídica, tratando os métodos ou técnicas principais, como processos
de raciocínio, para se chegar ao específico. Sem, contudo, descartar o uso da
metodologia jurídica lógica, do razoável e dos métodos teleológico e evolutivo.
Salienta-se, ainda, que a técnica a ser empregada na coleta de dados é a pesquisa
bibliográfica, a qual terá como fonte os textos legais, doutrina e publicações.
Considerando o número de obras citadas, optou-se pela remissão completa
nas notas de rodapé e a utilização do sistema numérico de chamada. No texto, foi
utilizada a fonte Arial, no tamanho 12 (doze), reservando-se a letra em itálico às
palavras de língua estrangeira e ao destaque dos títulos das obras citadas.
12
Capítulo 1
A CRIAÇÃO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E SEUS
PRINCIPAIS ASPECTOS
A idéia da criação de um Tribunal Penal Internacional nos termos adotados
no Estatuto de Roma é fruto de um longo processo, que foi catalisado com as
atrocidades decorrentes, em especial, da I e II Guerra Mundial.
Assim, o mundo almejava paz e decidiu não mais fechar os olhos às
agressões, genocídios ou qualquer tipo de violação aos direitos humanos. Dessa
forma, conclamou-se a necessidade da internacionalização da justiça penal
individual.
1.1Antecedentes
Remonta-se de 1474 a primeira notícia de um tribunal penal internacional, o
qual foi instituído em Breisach, Alemanha, para julgar Peter Von Hagenbach, por
haver permitido que suas tropas saqueassem, estuprassem e matassem civis,
durante um momento que não havia hostilidades4
_____________
4
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito
penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 37.
13
Embora tal fato seja freqüentemente abordado como precedente histórico do
atual Tribunal Penal Internacional, segundo Carlos Eduardo Adriano Japiassú, tal
julgamento “não influenciou na criação de Tribunal permanente”.5
Verifica-se, portanto, que foi em 1872 a primeira vez que aventou-se a
necessidade da criação de uma jurisdição internacional penal permanente, cujo o
objetivo seria processar e julgar os responsáveis pelas violações da Convenção de
Genebra de 1864, que se deu com as atrocidades cometidas na guerra FrancoPrussiana de 18706. No entanto, tal idéia não prosperou.
Após a I Guerra Mundial, mais especificamente em 1919, foi criada uma
comissão
de
investigação
para
julgamento
de
criminosos
em
conflitos
internacionais7, a fim de investigar os excessos cometidos durante a guerra, no
massacre de 600.000 armênios praticado pelo Império Turco-Otamano. Neste
sentido, ao recomendar o julgamento dos militares turcos, a comissão utilizou a
noção de crime contra a humanidade o que fez com que os Estados Unidos
alegassem que tais crimes não existiam no cenário internacional.8
Dessarte, o Tratado de Sèvres que serviria de base ao Tribunal, pois previa
em seu artigo 230 o julgamento dos responsáveis pelo massacre supramencionado,
“não foi ratificado pela Turquia, sendo substituído em 1927 pelo Tratado de
Lausanne, que concedeu anistia geral aos oficiais turcos".9
Não obstante, em 28 de junho de 1919 o Tratado de Versalhes previu a
criação de um tribunal criminal internacional para processar o Kaiser Guilherme II e
_____________
5
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito
penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 38.
6
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito
penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 38.
7
MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da
Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 46.
8
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do direito
penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 39.
9
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2ª Ed., São Paulo : Max Limonad, 2003, p.
149/150.
14
oficiais militares que haviam violado leis de guerra. Neste tribunal, os 21.000
acusados foram reduzidos a 895. Destes, o Procurador Geral Alemão reduziu para
45, sendo julgados efetivamente 21, e apenas 13 condenados a pena máxima de
três anos10, cabendo salientar que o Kaiser não foi condenado, prevalecendo-se,
assim, a política em detrimento à justiça.
Apesar da idéia da criação de uma corte penal internacional ter surgido no
século XIX e evoluído, na medida do possível, ao longo do tempo, foram às
agressões e atrocidades cometidas pela Alemanha e Japão durante a II Guerra
Mundial que instigaram os aliados a “constituírem dois tribunais penais
internacionais: em Nurmberg e em Tóquio”.11
Ao fim da guerra, mais precisamente em 1947 a ONU criou a Comissão de
Direito Internacional (CDI), com o intuito de elaborar um código contendo o que seria
considerado delitos contra a paz e a segurança da humanidade, bem como criar
uma corte internacional permanente com competência de julgar indivíduos, uma vez
que a Corte Internacional de Justiça limitava-se à resolução de conflitos e
conseqüente punição de Estados. Dessa forma, a CDI apresentou em 1951 um
anteprojeto, e outro revisado em 1953, no entanto, o mundo encontrava-se em meio
a guerra fria, o que fez com que os trabalhos fossem procrastinados por 35 anos,
sendo reabertos somente em 198912 com a queda do muro de Berlim, por iniciativa
de Trinidad e Tobago.
Cabe ressaltar, que esta reabertura foi impulsionada pelo violento conflito
étnico ocorrido na ex-Iugoslávia, o que levou o conselho de segurança da ONU a
criar o Tribunal Penal Internacional para ex-Iugoslávia. Da mesma forma, o conselho
_____________
10
ARAUJO JR., João Marcello. Tribunal penal internacional permanente, instrumento de garantia dos
direitos humanos fundamentais (processo legislativo histórico e características). Parecer apresentado
ao Instituto dos Advogados Brasileiros, indicação nº 036/98,1999,p. 38.
11
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2ª Ed., São Paulo : Max Limonad, 2003, p. 150.
12
MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da
Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 51/52.
15
interveio criando uma segunda Corte de Justiça, o Tribunal Penal Internacional para
Ruanda, devido a um genocídio sem precedentes lá ocorrido.
É inegável que os Tribunal de Nuremberg, Tribunal de Tóquio, Tribunal ad
hoc para ex-Iugoslávia e Tribunal ad hoc para Ruanda representaram um avanço em
favor do desenvolvimento da paz e do respeito ao direito internacional, no entanto,
suas competências estavam circunscritas ao julgamento de determinados crimes,
cometidos em um certo território e dentro de um lapso temporal definido, assim,
careciam de princípios fundamentais do direito.
Neste mesmo sentido encontra-se o posicionamento de Juan Antônio
Martabit Scaff (in verbis):
“(...) Los tribunales de Nuremberg y Tokio, estabelecidos al término de la
segunda guerra mundial para juzgar a los responsables de crimines de
guerra, si bien constituyen precedentes de una ”justicia internacional”,
sufren el stigma de ser la manifestación de la ley del vencedor sobre el
vencido. Asimismo, los tribunales de naturaleza ad-hoc creados por el
consejo de seguridad para juzgar los crimines de la Ex Yugoslavia y
Ruanda, sin perjuicio de las circunstâncias que justificaron su instauración,
carecen de las condiciones de legitimidad, representatividad y amplio
consenso con que deberia ser consagrado un tribunal con tales
13
atribuiciones (...)
1.1.1 Tribunal de Nuremberg
Considerado “o mais célebre dos tribunais penais ocorridos até hoje, o
Tribunal de Nuremberg julgou alguns dos homens mais importantes da Alemanha,
_____________
13
SCAFF, Juan Antônio Martabit. Tribunal Penal internacional: universalização da cidadania. Câmara
dos Deputados, Brasília: Centro de documentação e informação, coordenação de publicação, 2000, p
31/32.
16
considerados responsáveis pelo desencadeamento de toda a sorte de atrocidade
cometidas sob a égide do nazismo.”14
O contexto histórico do final da Primeira Guerra, na qual a Alemanha foi
derrotada e teve que solicitar armistícios, sendo gravosamente atingida com as
severas cláusulas do Tratado de Versalhes, corroboraram para surgimento de um
sentimento de ódio, concomitantemente, ao de um nacionalismo exacerbado, que foi
o palco perfeito para o ascensão ao poder de uma figura como Adolf Hitler com
ideais nazistas, nitidamente evidenciados na questão judaica que “teve três
soluções: inicialmente, a expulsão; após a deportação para campos de
concentração; e, ao final, o extermínio”15de milhares de judeus.
Neste ínterim, os aliados denunciaram inúmeras vezes tais atrocidades
cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, cabendo salientar a Declaração de
Saint James, de 13 de janeiro de 1942, e a Declaração de Moscou, de 30 de outubro
de 1943, a qual, por seu turno, fixou o modelo de julgamento a ser seguido para os
que tivessem praticado violações16.
No entanto, somente com o fim da Guerra, mais precisamente em 8 de agosto
de 1945, na Conferência de Londres, os países vencedores – Estados Unidos,
Reino Unido, União Soviética e França – firmaram o Acordo no qual delineavam a
Carta do Tribunal Militar Internacional (TMI) – também conhecido como Tribunal de
Nuremberg – prevendo no seu texto as regras de processo e julgamento dos
criminosos ligados ao regime nazista, que cometessem crimes contra a paz , crimes
de guerra e crimes contra a humanidade17.
_____________
14
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional:
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 43.
15
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional:
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 44.
16
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional:
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 48.
17
MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais,
Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 48.
a internacionalização do
a internacionalização do
a internacionalização do
Jurisdição e princípio da
17
O Tribunal de Nuremberg, em sua composição contava com um
representante e respectivo suplente de cada um dos países supracitados. Geoffrey
Lawrence (escolhido como presidente do Tribunal) e Normann Birkett (suplente)
eram os representantes do Reino Unido; Francis Biddle e John Parker (suplente)
foram indicados pelos Estados Unidos; Henri Donnedieude Vabres e Robert Falco
(suplente) pela França; e o Major-General Iona T. Nikitchenko e o Tenente-Coronel
Alexander F. Volchkov pela União Soviética.
Não obstante, as quatro nações também cuidaram da composição do
Ministério Público, nomeando assim, cada uma o seu represente na qualidade de
Procurador-Chefe da seguinte forma: Robert H. Jackson, pelos Estados Unidos;
François de Menthon, pela França; General R. A. Rudenko , pela União Soviética; e
Sir Hartley Shawcross, pela Grã-Bretanha.18
Por oportuno, ressalta-se que a defesa foi representada por advogados
alemães indicados pelos aliados.
Por base em sua organização, difícil seria entender a conotação que é
conferida ao Tribunal de Nuremberg de Tribunal “Militar”, haja vista que a maioria
dos juizes eram civis considerados juristas notáveis. No entanto, esta foi a forma que
os Estados Unidos encontraram para contornar o “princípio da anterioridade da lei
previsto no Direito Penal comum interno e inexistente em seu Direito Penal Militar”19.
A cidade de Nuremberg foi escolhida como sede porque lá foram
promulgadas as leis de perseguição racial, bem como foi local que houve a maior
concentração do partido nazista.
_____________
18
FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nurembreg: dos precedentes à confirmação de seus
princípios. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 139.
19
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 50.
18
No que concerne ao julgamento, o estatuto do Tribunal de Nuremberg previa
tanto o julgamento de indivíduos, como de organizações. Neste sentido, foram
denunciados vinte e quatro líderes nazistas e seis organizações: o Governo do
Reich, o corpo dos chefes políticos do Partido Nacional Socialista Alemão (NSDAP);
grupos de segurança do Partido Nacional Socialista (SS); grupos de segurança (SD);
a polícia secreta (GESTAPO); seções de assalto do Partido Nacional Socialista (AS);
o Estado-Maior das forças armadas.20
Neste viés, em 20 de novembro de 1945 iniciou-se o julgamento o qual era
feito em inglês, francês, alemão, russo e na língua do acusado, caso não fosse
nenhuma das línguas oficiais. As decisões advinham sempre da maioria, e em caso
de empate o voto do presidente do Tribunal era o decisivo.
Ao final do julgamento, em 01 de outubro de 1946, chegou-se aos seguintes
números: dos 24 indiciados, dois não chegaram a ser julgados, pois um, Robert Ley,
cometeu suicídio e o outro, Gustav Krupp, sofreu um acidente circulatório e perdeu a
razão. No entanto, dos 22 que foram efetivamente processados, 03 foram
absolvidos, 03 condenados à prisão perpétua, 04 condenados de 10 à 20 anos e os
12 restantes, condenados à pena de morte. Estes, tiveram suas penas executadas
por enforcamento em 16 de outubro de 1946 na própria prisão de Nuremberg.
De fato, o Tribunal de Nuremberg representou um avanço, no Direito
Internacional Penal, pois além de dar uma resposta ao mundo que viu atemorizado o
massacre de milhares de judeus, trouxe uma importante contribuição teórica ao
definir crime contra humanidade e reconhecer os crimes de guerra e agressão.
Embora, não se possa negar a fragilidade sob a qual se ergueu a estrutura
do TMI, pois além de ter sido um tribunal de vencedores sobre vencidos, prejudicou
princípios importantes tal como o da irretroatividade da lei penal; também não se
_____________
20
FERRO, Ana Luiza Almeida. O Tribunal de Nurembreg: dos precedentes à confirmação de seus
princípios. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002, p. 143.
19
pode negar o seu mérito, de levar a julgamento ao invés de somente punir, em um
mero exercício de vingança.
A contribuição do Tribunal de Nuremberg para o direito penal internacional
sintetiza-se bem com os ensinamentos de S Herbst, in verbis:
“(...) una evolución que abrió nuevos cauces al Derecho Penal Internacional
y la convivencia entre los pueblos, pues esa era la primera vez que la
comunidad internacional hizo el intento de llevar ante los Tribunales a
criminales de guerra y responsables de crímines contra los Derechos
humanos, y así juzgar a los acusados en un proceso justo, es decir,
hacerles acreedores de la protección y la dureza de la justicia, sin
abandonarlos en manos de la arbitrariedad de los vencedores, pero
tampoco dejarlos impunes, sino exigirles responsabilidad por sus hechos
21
ilícitos.
1.1.2 Tribunal de Tóquio
Na Conferência do Cairo, em 1º de dezembro de 1943, suscitou-se, pela
primeira vez, a idéia da criação de um Tribunal Militar para o Extremo Oriente. Tal
intuito foi reiterado em Potsdam, julho de 1945; ganhando força em 2 de setembro
do mesmo ano, com o ato de rendição japonesa, o qual definia “como se daria a
prisão e o tratamento imposto aos criminosos de guerra” 22.
Neste ínterim, as Nações Unidas também recomendaram a criação do
referido Tribunal, tendo a Conferência de Moscou decidido que o esse seria em
Tóquio.
_____________
21
HERSBT, S. Los derechos humanos ante las cortes: los juicios de Nuremberg y su significado
actual. Revista Memoria, Nuremberg,n.8,p.12-20,1996 apud MAIA, Marriele. In: Op cit, p. 48.
22
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 61.
20
Assim, em 19 de janeiro de 1946, baseado no ato de rendição dos japoneses,
foi instituído o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente – também
conhecido com Tribunal de Tóquio – com a finalidade de julgar as agressões
japonesas cometidas durante a Guerra.
No que diz respeito à composição, o Tribunal era formado por onze juízes,
representantes da Austrália, do Canadá, da China, dos Estados Unidos, das
Filipinas, da França, do Reino Unido, dos países Baixos, da Nova Zelândia, da
URSS e da Índia.23 Assim, verifica-se que o Tribunal de Tóquio possuía uma
estrutura mais diversificada do que o Tribunal de Nuremberg, aproximando-se mais
da regra da imparcialidade.24
No entanto, semelhantemente ao TMI, foi também um tribunal de vencedores
julgando vencidos e os procedimentos adotados foram marcados por irregularidades
e abusos, dado ao critério político utilizado na escolha dos acusados.
A carta do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente possuía 17
artigos de natureza similar aos 30 artigos da carta do TMI. Competiu ao Tribunal de
Tóquio julgar os crimes contra paz; crimes de guerra e crimes contra Humanidade.
As atividades do Tribunal tiveram início em 29 de abril de 1946, terminando
em 12 de novembro de 1948, neste período dos 80 prisioneiros, apenas 28 foram
acusados, sendo que três não chegaram a ser julgados pois dois, Yosuke Matsuoka
e Osami Nagano, morreram de morte natural no decorrer do processo, e o terceiro,
Sumei Okawa, foi hospitalizado e libertado em 1948.
Ocorre que, diferentemente do TMI, somente foram levadas a julgamento no
Tribunal de Tóquio pessoas físicas, salientando-se ainda, que nenhum dos
acusados julgados foi absolvido, embora as decisões não tenham sido sempre
_____________
23
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 61.
24
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2ª Ed., São Paulo : Max Limonad, 2003, p. 151.
21
unânimes; e os que foram condenados à pena de morte tiveram suas sentenças
executadas na prisão de Sugamo, Tóquio, em 23 de dezembro de 1946.
As questões políticas no Tribunal Militar para o Extremo Oriente
sobressaíram, mais uma vez, em detrimento da justiça. Fato que comprova-se com o
não julgamento do imperador Hirohito, que ao que tudo indica estava diretamente
relacionado com os crimes cometidos durante a Guerra, sobremaneira com o ataque
de Pearl Harbor. 25
Outra crítica que se faz ao Tribunal é o fato de mais uma vez somente os
vencidos terem sido julgados, ao passo que os responsáveis aos ataques cruéis de
Hiroshima e Nagasaki ficaram impunes.
Evidencia-se, ainda, a influência norte-americana, no que tange ao fato de
terem libertado inúmeros criminosos de guerra sem qualquer processo. “Os Estados
Unidos financiavam o Tribunal, dessa forma, haviam imposto a rendição aos
japoneses à derrota e o seu Comandante Supremo podia escolher os juízes e
igualmente reduzir as penas, somente não podia aumentá-las.”26
Adstrito ao todo elucidado, verifica-se que tanto o Tribunal de Tóquio, quanto
o Tribunal de Nuremberg violaram o princípio da reserva legal. Por outro lado,
significaram um passo significativo na história do Direito ao trazer à tona a questão
da responsabilidade penal internacional individual.
_____________
25
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 67.
26
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 67.
22
1.1.3 Tribunais ad hoc para ex-Iuguslávia e Ruanda
Desde a idade antiga há conflitos na região dos Balcãs, no entanto, a idéia
denominada de “limpeza étnica” surgiu com vigor em 1941 com a invasão dos
nazistas alemães à Iugoslávia que uniram-se aos croatas para deportarem e
executarem os sérvios.27
Em 1944 o Marechal Josep Braz Tito, com apoio da União Soviética e do
Reino Unido, expulsam os alemães, instaurando-se o regime comunista que, nas
quatro décadas seguintes, conseguiu manter uma harmonia no território. Entretanto,
com a morte do Marechal, em 1980, ressurgem os conflitos que se agravaram ainda
mais devido à crise econômica em 1987.
O cenário da época aliava a derrocada do regime comunista no Leste
Europeu, com antigos ódios raciais que fizeram eclodir uma série de conflitos onde
as atrocidades cometidas chocaram o mundo.
Desse modo, em 17 de novembro de foi constituído o Tribunal Penal
Internacional para ex-Iugoslávia (TPII), o qual possuía poderes para julgar graves
violações à Convenção de Genebra, violações de leis e costumes de guerra,
genocídio e crimes contra a humanidade, que tenham sido cometidos no território da
ex-Iugoslávia, a partir de 1991.28
O Tribunal para ex-Iugoslávia é composto por dezesseis juízes permanentes
e no máximo nove ad litem, provenientes de diversos países, distribuídos em três
câmaras de julgamento e uma câmara de apelação, a qual representou um avanço
considerável em relação aos tribunais de Nuremberg e Tóquio, onde o acusado não
tinha direito a recorrer de sua sentença.
_____________
27
MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da
Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 48.
28
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 97.
23
As investigações ficam a cargo da promotoria, no entanto, o indiciamento
precisa ser confirmado pelo juiz. Mister se faz a presença do acusado para que haja
o julgamento, não sendo permitido julgamento in absentia, sendo que a maior pena
a ser imposta é a de prisão perpétua.
Dessa forma, constata-se que o procedimento adotado pelo TPII sofre
influência de características de vários sistemas judiciais, especialmente o da
commom law e da civil law.29
Quanto ao andamento do tribunal, observa-se que mais de sessenta
pessoas foram condenadas e, atualmente, mais de quarenta estão em diferentes
fases do processo perante o Tribunal.30
Não obstante a criação e efetivo funcionamento do Tribunal, recentemente
reapareceu em Kosovo mais um conflito decorrente de uma questão étnica, pois os
sérvios
reagiram
belicosamente
ao
intuito
dos
albaneses
se
tornarem
independentes, ação esta que resultou em milhares de albaneses refugiados. Assim
demonstra-se que longe está de haver uma situação de paz na região dos Balcãs.
O leste africano, mais especificamente, Ruanda, também viveu momentos
de tensão e terror devido a fatores étnicos.
O processo de colonização da África havia colocado em um mesmo território
etnias historicamente rivais, como é o caso dos tutsi e hutus. Nos anos 60 com o
processo de independência da maioria dos países africanos, por conseguinte o
processo de descolonização, juntamente com as dificuldades econômicas
desencadearam conflitos como o de Ruanda. 31
_____________
29
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 99.
30
INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR THE FORMER YUGOSLAVIA. About the ICTY.
Disponível em: <http://www.icty.org/sections/AbouttheICTY>. Acesso em: 07 nov. 2009.
31
MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da
Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 10/11.
24
A ditadura hutu estabelecida neste país, fizeram inúmeros refugiados tutsi.
Em contrapartida, com o processo de redemocratização em 1990, adveio a
competição pelo poder. A situação foi agravada em 1994, com a morte dos
presidentes de Ruanda, Juvenal Habyarimana e do Burundi, Cyprien Ntaryamira, os
quais ao voltarem de uma conferência de paz tiveram o avião abatido, por razões até
hoje desconhecidas.
Assim, Ruanda se viu envolta em uma enorme guerra entre as etnias, onde
os direitos humanos sucumbiram em face às atrocidades cometidas.
Diante de tal barbárie o Conselho de Segurança criou, por meio da
resolução 955 de 08 de novembro de 1994, o Tribunal Penal Internacional para
Ruanda (TPIR), com sede em Arusha, capital da Tanzânia, o qual possui
competência para processar e julgar os crimes de genocídio, crimes contra a
humanidade, violações da convenção de Genebra e de seu protocolo Adicional II,
cometidos entre 1º de janeiro e 31 de dezembro de 1994, que tenham sido
cometidos por cidadãos ruandenses no território de Ruanda e de seus vizinhos,
assim como de cidadãos estrangeiros, por crimes cometidos naquele país.32
Em sua composição e procedimento o Tribunal para Ruanda muito se
assemelha ao Tribunal para ex-Iugoslávia, uma vez que foram criados nos mesmos
moldes, ao ponto de dividirem a segunda instância.
Os dados atuais do tribunal traçam a seguinte realidade: 3 casos aguardam
julgamento, vinte seis estão em andamento,
trinta e uma condenações, seis
absolvições, seis absolvições e dez estão aguardam resultado de recurso.33
A contribuição dos Tribunais ad hoc para Antiga Iugoslávia e para Ruanda
ao Direito Penal Internacional, está, principalmente, no fato de demonstrar a
_____________
32
INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA. About the Tribunal. General Information.
Disponível em: <http://69.94.11.53/default.htm>. Acesso em: 7 nov. 2009.
33
INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA. About the Tribunal. Status of Cases.
Disponível em: <http://69.94.11.53/default.htm>. Acesso em: 7 nov. 2009.
25
possibilidade de uma justiça internacional que não seja imposta pelos vencedores
aos vencidos, bem como no fato da responsabilização do indivíduo que pratica crime
contra os direitos humanos.34
No entanto, a natureza temporária e a competência limitada daqueles
Tribunais, ratificaram a necessidade da criação de uma corte penal internacional
permanente com capacidade de atuação em qualquer circunstância e tempo dentro
de sua jurisdição.
1.2 Estatuto de Roma – características do Tribunal Penal
Internacional
Mediante o contexto histórico supracitado e, impulsionada pela criação dos
tribunais ad hoc, em “25 de novembro de 1992, a Assembléia Geral, pela resolução
47/33, recomendou à Comissão de Direito Internacional que elaborasse um Projeto
de Estatuto de um Tribunal Penal Internacional”35 permanente.
Em 1993, as resoluções 47/33 e 48/31, solicitaram a apresentação do
projeto do Estatuto. Já em 1994, a Assembléia Geral, por meio da resolução 49/53,
resolveu-se estabelecer um Comitê Especial em que todos os países da ONU
poderiam discutir acerca do projeto que havia sido elaborado pela Comissão.
O ano de 1995, por seu turno, foi marcado por algumas controvérsias dentro
do Comitê, assim, os países começaram a constituir blocos de interesses. Em
dezembro do mesmo ano, com a conclusão do mandato do Comitê em questão, a
_____________
34
MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da
Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 123.
35
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 108.
26
Assembléia Geral convocou um Comitê Preparatório para o estabelecimento do
TPI.36
O Comitê Preparatório, em 1996, reuniu-se por duas vezes para discutir
sobre jurisdição, princípios gerais do direito internacional, direito dos acusados e
definição de crimes. Em dezembro, a Assembléia Geral decidiu que a Conferência
dos plenipotenciários para a criação do Tribunal Penal Internacional seria em 1998,
ano da comemoração dos 50 anos da Convenção de prevenção e Punição para os
crimes de Genocídio e da declaração Universal dos Direitos Humanos.
Dessa forma, o Tribunal Penal Internacional foi criado em 17 de julho de
1998, tendo 120 países votado a seu favor, 21 abstenções e sete votos contra
(Estados Unidos, China, Filipinas, Índia, Israel, Sri Lanka, e Turquia).37
Os avanços que o Direito Penal Internacional sofreram ao longo do tempo,
encontra-se consolidados no Estatuto de Roma, o qual a fim de garantir o perfeito
andamento do TPI, encontra-se estruturado em um preâmbulo e 128 artigos
dispostos em 13 capítulos, são eles: Criação do Tribunal; Competência,
Admissibilidade e Direito Aplicável; Princípios gerais do Direito Penal; Composição e
Administração do Tribunal; Inquérito e procedimento criminal; O Julgamento; As
Penas; Recurso e Revisão; Cooperação Internacional e Auxílio Judiciário; Execução
da Pena; Assembléia dos Estados Partes; Financiamento e Cláusulas Finais.
Dentre as características do TPI, as principais encontram-se elucidadas em
seu próprio preâmbulo, o qual define que o Tribunal tem caráter permanente,
independente e vinculado ao sistema das Nações Unidas, com jurisdição sobre os
crimes mais graves que preocupam a comunidade internacional em seu conjunto.
_____________
36
MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da
Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 57.
37
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 113.
27
Enfatiza-se, ainda, o caráter de jurisdição complementar do TPI, o qual
somente deverá agir nos casos em que as Cortes nacionais não forem capazes de
exercer sua jurisdição, ou se mostrarem desinteressadas ou precárias em fazê-lo.
1.2.1 Aspectos institucionais
O Tribunal Penal Internacional está localizado em Haia, na Holanda e, é
composto por dezoito juízes permanentes os quais são eleitos em votação secreta
pela Assembléia dos Estados Partes, atualmente, os juízes que compõem o TPI são
dos seguintes países: Coréia, Mali, Alemanha, Costa Rica, Gana, Finlândia, Letônia,
Reino Unido, Bulgária, Uganda, França, Quênia, Botsuana, Bélgica, Itália, Bolívia e
Brasil. 38
Segundo o artigo 34 do Estatuto o Tribunal dividi-se no seguintes órgãos:39
Presidência – a qual é representada por um presidente (Sang-Hyun Song da
Coréia), primeiro (Fatoumata Dembele Diarra de Mali) e segundo vice-presidente
(Hans-Peter Kaul da Alemanha), os quais são eleitos pela maioria absoluta dos
juízes e terão como atribuição a administração de todos os demais órgãos, exceto a
acusação.
Seções – divididas em uma Seção de Apelações; uma Seção de Primeira
Instância e uma Seção de Questões Preliminares.
Promotoria – que funciona de forma independente, como órgão autônomo do
Tribunal. É dirigida por um Procurador-Geral, que é eleito por votação secreta da
_____________
38
INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. Structure of the Court. Disponível em: <http://www.icccpi.int/Menus/ICC/Structure+of+the+Court/>. Acesso em 07 nov. 2009.
39
INTERNATIONAL CRIMINAL COURT. Structure of the Court. Chambers. Disponível em:
<http://www.icc-cpi.int/Menus/ICC/Structure+of+the+Court/Chambers/>. Acesso em 07 nov. 2009.
28
maioria absoluta dos membros da Assembléia supramencionada, com plenos
poderes de administração, inclusive no que diz respeito ao quadro funcional,
instalações e outros recursos.40
Secretaria – é um órgão administrativo o qual seu titular, que deverá ser
eleito pelos luízes em seção plenária, se encarregará dos aspectos não judiciais da
administração.
No que concerne às línguas oficiais do TPI, o artigo 50 estabelece a árabe,
chinesa, espanhola, francesa, inglesa e russa, ressalvando-se que outros idiomas
oficiais poderão ser utilizado para efeito de regras de procedimento e prova.
Outro aspecto salutar é o financeiro, nesse sentido, o artigo 114 do Estatuto
afirma que as despesas do Tribunal e da Assembléia dos Estados Partes, incluindo
a sua mesa e os seus órgãos subsidiários, serão pagas pelo fundo do Tribunal; e
complementa no artigo 115 que estas se forem inscritas no orçamento aprovado
pela referida Assembléia, serão financiadas: pelas quotas dos Estados Partes e
pelos fundos provenientes da ONU.
1.2.2 Jurisdição do Tribunal Penal Internacional
O TPI, no que diz respeito a sua jurisdição, possui caráter complementar às
jurisdições nacionais, ou seja, somente atuará quando estas “não puderem ou não
quiserem fazer, ou ainda quando os procedimentos observados não sejam
considerados genuínos".41.
_____________
40
CHOUKR, Fauzi Hassan et alli (organizadores). Tribunal Penal Internacional. São Paulo: ERT,
2000, p. 312/313.
41
COSTA, Alberto. Tribunal Penal Internacional: para o fim da impunidade dos poderosos. Portugal:
Editorial Inquérito. 2002, p.17.
29
Neste mesmo prisma, a jurisdição do Tribunal deverá ser analisada quanto à
matéria (ratione materiae), ao tempo (ratione temporis), à pessoa (ratione personae)
e ao lugar (ratione loci).
Quanto à jurisdição ratione materiae, se dá sobre os crimes de genocídio, de
agressão, de guerra e contra a humanidade, considerados os crimes de maior
seriedade de interesse da comunidade internacional. Cumpre, portanto, definir tais
crimes à luz do Estatuto de Roma:
Genocídio – disposto no artigo 6º é conceituado como qualquer um dos atos
praticados com intenção de destruir total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico,
racial ou religioso, matando membros do grupo; ofendendo–os gravemente a
integridade física ou mental; sujeitando-os intencionalmente a condições de vida
com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; impondo-os medidas
destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; ou transferindo, à força,
crianças do grupo para outro grupo.
Não houve dificuldades para definir esse crime. A convenção sobre a
prevenção e punição do crime de genocídio, de 09 de dezembro de 1948, já havia
definido, em termos semelhantes ao acima exposto, o crime de genocídio.
Crime Contra Humanidade – os denominados crimes de lesa humanidade
podem ser cometidos tanto durante um conflito armado quanto em tempo de paz,
distinguem-se dos crimes de guerra ou dos delitos comuns por se tratarem de delitos
cometidos contra qualquer população civil e pela escala em que são cometidos.42
Está estatuído no artigo 7º e inspirou-se nas Cartas dos tribunais de
Nuremberg e de Tóquio. Sua definição foi objeto de difícil negociação durante a
Conferência, no entanto, concluiu-se de que seria crime contra a humanidade os
_____________
42
SABÓIA, Gilberto Vergne. A Criação do Tribunal Penal Internacional. Revista CEJ, Brasília, nº 11,
2000, p. 8.
30
atos cometidos no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra
qualquer população civil.
Compreendem tais atos: assassinato; extermínio; escravidão; deportação ou
translado forçado de populações; e encarceramento ou outra privação grave da
liberdade física em violação de normas fundamentais de direito internacional; tortura;
violação; escravidão sexual; prostituição forçada; gravidez forçada; esterilização
forçada ou abusos sexuais de gravidade comparável; perseguição de um grupo ou
coletividade com identidade própria; fundada em motivos políticos; raciais; nacionais;
étnicos, culturais, religiosos, de gênero ou outros motivos universalmente
reconhecidos como inaceitáveis pelo direito internacional, em conexão com qualquer
ato mencionado no presente parágrafo ou com qualquer crime de competência do
tribunal; desaparecimento forçado de pessoas; apartheid; outros atos desumanos de
caráter similar que causem intencionalmente grandes sofrimentos ou atentem
gravemente contra a integridade física ou à saúde mental.
Crime de Guerra – disposto no artigo 8º o Estatuto reserva grande redação
para tipificá-lo, indicando primeiramente que “A Corte terá competência para julgar
os crimes de guerra, em particular quando cometidos como parte integrante de um
plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala desse tipo
de crime”.
Verifica-se que apesar do intuito das superpotências em fazerem do caráter
planejado e maciço dos crimes de guerra um elemento constitutivo; o uso do termo
“em particular” não limita definitivamente a competência do TPI, tendo, portanto,
atribuição para julgar todos os crimes de guerra.43
Entende-se por crime de guerra: as violações graves das Convenções de
Genebra de 1949; violações graves das leis e costumes aplicáveis aos conflitos
armados internacionais no âmbito do direito internacional; em caso de conflito
_____________
43
BAZELAIRE, Jean Paul. A justiça penal internacional: sua evolução, seu futuro: de Nuremberg a
Haia. Tradução de Luciana Pinto Venâncio. Barueri: Manole, 2004, p. 77.
31
armado que não seja de índole internacional, as violações graves do artigo 3º da
Convenções de Genebra de 1949, qualquer ato cometido contra indivíduos que não
participem diretamente das hostilidades, incluídos os membros das forças armadas
que tenham deposto as armas e os que estejam fora de combate por doença,
lesões, detenção ou por qualquer outra causa: aplica-se aos conflitos armados que
não tenham caráter internacional.
Tem-se, ainda, caracterizado como crimes de guerra: outras violações
graves das leis e usos aplicados nos conflitos armados que não sejam de cunho
internacional, no quadro do direito internacional: aplica-se ao conflitos armados que
não sejam de índole internacional e, por conseguinte, não se aplicará a situações de
distúrbio e de tensão internas, tais como motins, atos de violência esporádicos ou
isolados. Aplicar-se-á, ainda, a conflitos armados que tenham lugar no território de
um Estado, quando exista um conflito armado prolongado entre as autoridades
governamentais e grupos armados organizados ou entre estes grupos.
Crime de Agressão – “hoje previsto no Estatuto do Tribunal Penal
Internacional, outrora era denominado 'crimes contra paz', e de todos os crimes
internacionais, é o de mais difícil conceituação”.44 Por essa razão o TPI não trouxe
ainda uma definição de agressão.
Assim, o TPI só exercerá sua jurisdição sobre o crime após a aprovação de
um dispositivo que conceitue e enuncie as condições pelas quais o Tribunal
exercerá sua jurisdição. O dispositivo será apresentado através de emendas ou na
revisão, previstas sete anos após a entrada em vigor do Estatuto.
Com relação à jurisdição ratione temporis, o art. 11 do TPI determina que
somente serão abarcados os crimes cometidos após a entrada em vigor do
Estatuto45, ou seja, a partir de 1º de julho de 2002.
_____________
44
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 251.
45
CHOUKR, Fauzi Hassan et alli (organizadores). Tribunal Penal Internacional. São Paulo: ERT,
2000, p. 222.
32
Por último, impende salientar que o Tribunal Penal Internacional em respeito
ao princípio nullun crimen, nulla poena sine lege só julga crimes praticados após sua
entrada em vigor; seus crimes são imprescritíveis; não tem competência para julgar
menores de dezoito anos; não responsabiliza quem tem deficiência mental ou
praticou crime sob coação quando se defendia; e não tira a responsabilidade de
quem cometeu crime sob cumprimento de ordem superior a não ser que tenha sido
obrigado a cumpri-la, ou ainda, se a pessoa não sabia que a ordem era ilegal.46
1.3 Ratificação do Estatuto de Roma pelo Brasil
Em uma primeira análise, faz-se salutar conceituar ratificação, a qual para
Francisco Rezek: “é o ato unilateral com que o sujeito de Direito internacional,
signatário de um tratado, exprime definitivamente, no plano internacional, sua
vontade de obrigar-se.47
Dentre as etapas que compreendem o processo de ratificação no
ordenamento brasileiro, verifica-se que foram todas cumpridas. O Brasil participou
das negociações, assinou em 07 de fevereiro de 2000 o Estatuto de Roma, sendo
este aprovado pelo Congresso Nacional e ratificado pelo Presidente de República
em 20 de maio de 2002.
Cabe ressaltar, que no momento da ratificação o Brasil obriga-se no plano
internacional a cumprir o ali disposto, in verbis:
“O País ao assinar e ratificar uma convenção – e essas ratificação se
processa depois da aprovação do Congresso Nacional –, automaticamente,
_____________
46
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito Internacional Público. 12. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000, p. 909.
47
REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
1996.
33
está aceitando o que está naquele tratado internacional. Não há diminuição
de soberania, ao contrário, o País, ao ratificar uma convenção, pratica ato
de soberania, e o faz de acordo com sua constituição”
48
Não obstante, também obrigou-se no plano interno, ao promulgar o decreto
nº 4388, de 25 de setembro de 2002, o qual foi devidamente publicado no Diário
Oficial.
O Estatuto de Roma em seu artigo 120 já prevê que não se admitirá
reservas, esta, por sua vez, é uma declaração unilateral do Estado que consente
visando a excluir ou modificar efeito jurídico de certas disposições do tratado em
relação a esse Estado. Dessarte, o Estatuto foi ratificado pelo Brasil sem nenhuma
cláusula de reserva.
No Brasil o Supremo Tribunal Federal tinha o posicionamento consolidado
no sentido se que os tratados e convenções internacionais adentram no
ordenamento pátrio com o valor correspondente à lei federal. Embora, há de se
destacar, que recentemente o Pretório Excelso tenha indicado uma tendência mais
aberta aos tratados que versem sobre direitos humanos, apontando para uma
hierarquização que lhes imprimem o caráter de norma supralegal. Entendimento
este, sustentado por Gilmar Mendes em julgamento recente do RE 466.343/SP. 49
Sob qualquer dos prismas acima delineados o Estatuto de Roma ainda seria
considerado uma norma infraconstitucional, razão pela qual são suscitadas algumas
hipóteses acerca da inconstitucionalidade de alguns artigos, tais como o artigo 89
que prevê a entrega de pessoas ao TPI, sem nenhuma ressalva quanto aos
nacionais.
_____________
48
SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e. A Incorporação ao Direito Interno de Instrumentos
Jurídicos de Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Direitos Humanos. Revista
CEJ, Brasília, nº 11, 2000, p. 20.
49
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 708.
34
Na Conferência Internacional que elaborou o Estatuto de Roma, a própria
delegação brasileira fez questão de ressalvar, em seu voto favorável, o temor de
suposto conflito entre o artigo que refere a necessidade de entrega de acusados
com o artigo da Constituição Federal que proíbe a extradição de nacionais.50
Em contrapartida, não é esse o entendimento de grande parte dos
doutrinadores, como Flávia Piovesan que defende que os tratados que versam sobre
direitos humanos tem status de norma constitucional, para tanto fundamenta-se no
artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal. 51 Assim, respaldado nesse posicionamento,
o Estatuto que instituiu o TPI, por ser indiscutivelmente um Tratado de direitos
humanos, teria valor constitucional.
Outra vertente, encontra-se no posicionamento da doutrina de Celso D. de
Albuquerque Mello, o qual entende que no que diz respeito aos direitos humanos, a
norma internacional deve prevalecer sobre norma constitucional, devendo ser
aplicada sempre a norma mais benéfica ao ser humano. 52
_____________
50
CHOUKR, Fauzi Hassan et alli (organizadores). Tribunal Penal Internacional. São Paulo: ERT,
2000, p. 247.
51
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 5ª Ed., São Paulo:
Max Limonad, 2002, p.111.
52
MELLO, Celso D. de Albuquerque, O § 2º do art. 5º da Constituição Federal. In: Teoria dos direito
fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 25.
35
Capítulo 2
EXTRADIÇÃO E ENTREGA
A questão suscitada no capítulo anterior, mais precisamente no item 1.3,
referente a um aparente conflito entre a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto
de Roma para o Tribunal Penal Internacional tem como ponto principal à discussão
acerca da relação entre Extradição e Entrega.
O documento diplomático mais antigo da história da humanidade é um
tratado de extradição. Dessa forma, além de ser considerada uma prática milenar, é
o mais tradicional de todos os instrumentos de cooperação internacional penal.53
A extradição, embora tenha sofrido mudanças ao longo do tempo, é um
instituto já consolidado, com características e peculiaridades próprias. Em
contrapartida, surge recentemente, com a criação do TPI, a Entrega que erige-se
como outro instituto que busca conquistar o seu lugar no direito internacional penal.
Assim, um estudo mais detalhado faz-se salutar para o esclarecimento da
primeira dúvida surge ao analisar o tema da presente monografia, qual seja, o que
difere Extradição de Entrega?
De antemão, Carlos Eduardo Adriano Japiassú assevera: “A distinção não
se restringe à denominação, mas também à substância dos institutos”54
_____________
53
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 211.
54
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 214.
36
2.1 Extradição
A extradição, conforme Celso D. de Albuquerque Mello “pode ser definida
como sendo o ato por meio do qual um indivíduo é entregue por um Estado a outro,
que seja competente a fim de processá-lo e puni-lo”.55
Neste mesmo sentido, leciona Francisco Rezek: “É a entrega por um Estado
a outro, e a pedido deste, de indivíduo que em seu território deva responder a
processo penal ou cumprir pena”.56
Em uma terceira e última explanação, Hildebrando Accioly assevera:
“Extradição é o ato pelo qual um Estado entrega um indivíduo acusado de fato
delituoso ou já condenado como criminoso à justiça de outro Estado, competente
para julgá-lo e puni-lo”57
Perante as definições de renomados juristas, verifica-se que o conceito de
extradição é, em geral, pacífico na doutrina, não havendo grandes divergências
quanto aos seus elementos constitutivos, dentre os quais, o fato da entrega se dar
de Estado para Estado, merece especial atenção.
Historicamente, remonta de 1291 a.C. o primeiro registro de extradição,
constante do tratado de paz celebrado entre Ramsés II e Hattisuli, rei dos Hititas,
devido à tentativa frustada de seu povo invadir o Egito. Assim, o tratado dispunha
expressamente sobre o retorno de pessoas procuradas por seus soberanos, que
tinham se refugiado em outros territórios.58
_____________
55
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito Internacional Público. 12ª. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000, p. 947.
56
REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 6ª. ed. São Paulo: Saraiva,
1996, p. 197.
57
ACCIOLY, Hildebrando. Manual de direito internacional público. 12ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1996,
p. 347.
58
LISBOA, Carolina Cardoso Guimarães. A relação extradicional no direito brasileiro. Belo horizonte:
Del Rey, 2001, p. 95.
37
A referida extradição, não apresentava as características do instituto tal
como é reconhecido hoje, pois naquela época extraditava-se o criminoso político e
não o criminoso comum.59 Devido ao elucidado, Celso Albuquerque D. de Mello,
menciona que alguns autores refutam a tese de ter havido na antigüidade o instituto
da extradição, no entanto, como contra-argumento, ressalva que um instituto jurídico
não conserva as mesmas características através dos séculos, e que sua essência,
qual seja a de conduzir um indivíduo para fora de um Estado a fim de entregá-lo a
outro, existia na prática desde aquele tempo.
Não obstante, cumpre ressaltar que tanto na Grécia, embora houvesse a
existência do direito de asilo, quanto em Roma, a extradição foi praticada e estava
sempre associada ao caráter político.
Já na Idade Moderna, com o aparecimento do absolutismo, os tratados de
extradição se caracterizaram por vislumbrar a entrega de criminosos militares e a
defesa dos regimes.60
A extradição começa a aparecer com as suas características atuais no
século XIX, devido “à grande influência que as idéias de que soberania reside no
povo, sustentadas por contratualistas como Locke, tiveram na organização dos
Estados que se construíram sobre bases democráticas”61.
No que concerne a regulamentação internacional acerca de extradição,
deve-se salientar, no âmbito da Europa, a convenção geral de extradição 1957 com
os protocolos de 1975 e 1978; já na América a convenção de Montevidéu (1933); o
Código de Bustamante (1928); e por último, em Caracas (1981) foi concluída a
convenção interamericana de extradição.
_____________
59
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito Internacional Público. 12ª. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000, p. 947.
60
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito Internacional Público. 12ª. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000, p. 948.
61
LISBOA, Carolina Cardoso Guimarães. A relação extradicional no direito brasileiro. Belo horizonte:
Del rey, 2001, p. 101.
38
Finda a parte de conceituação e abordagem histórica. Passemos a análise
detida do instituto da extradição, o qual “predomina, na espécie, o sentido superior e
universal de justiça, que busca impedir sua oposição à impunidade”62.
Inserto no direito penal encontra-se o princípio da territorialidade, presente
na maioria dos países, o qual dispõe que o país terá competência para julgar os
crimes cometidos em seu território. Desse modo, em um primeiro momento, seria
fácil a um indivíduo que cometesse um crime, se evadir para outro país tentando
fugir do processo e da pena.
No entanto, “o fato de um criminoso transpor os limites territoriais do país
onde cometera o delito não importa a extinção de sua punibilidade”.63 Para tanto, a
fim de evitar a impunidade, os Estados vislumbram a extradição de tais indivíduos
por meio de uma colaboração mútua, que tem respaldo no Direito Internacional, mais
precisamente no artigo 1º, nº 03 da Carta da ONU64.
O fundamento de tal instituto está alicerçado na necessidade internacional
de segurança e de defesa social, podendo-se afirmar que a extradição é atualmente
considerada um dever recíproco dos Estados, que se legitima amparado no sistema
universal do direito de punir65.
Quanto a sua natureza jurídica, a maioria dos autores entendem que a
extradição é um instrumento processual da cooperação penal internacional na luta
contra o crime, sob a forma tradicional de cooperação judicial, que se desenvolve
entre dois Estados, segundo a lei internacional, tratado e convenção e até mesmo os
costumes, a promessa de reciprocidade e a lei nacional do País requerido.
_____________
62
GUIMARÃES, Francisco Xavier da Silva. Medidas compulsórias: a deportação, a expulsão e a
extradição. Rio de Janeiro: Forense,1994, p. 59.
63
GUIMARÃES, Francisco Xavier da Silva. Medidas compulsórias: a deportação, a expulsão e a
extradição. Rio de Janeiro: Forense,1994, p. 59.
64
“os propósitos das Nações Unidas são: (...) 3. Conseguir uma cooperação internacional para
resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para
promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem
distinção de raça, sexo, língua ou religião.”
65
GORAIEB, Elizabeth. A extradição no direito brasileiro. Rio de janeiro: Mauad, 1999, p. 22.
39
2.1.1 Princípios e Formas de extradição
Em linhas gerais, são dois os princípios norteadores da extradição. O
primeiro, denominado princípio da especialidade, versa que o indivíduo não pode ser
julgado por delito diferente do que fundamentou o pedido de extradição.
Já o segundo, denominado princípio da dupla incriminação do fato ou da
identidade de infração, determina que nenhuma extradição terá seguimento sem que
o fato motivador do pedido seja considerado crime tanto no país requerente quanto
no país requerido.
Faz-se necessário, ainda, uma breve analise a respeito de algumas formas
de extradição definidas por internacionalistas.
A priori, estas se classificam como sendo de fato ou de direito, de forma
que a primeira consiste na entrega do criminoso sem que haja qualquer
procedimento jurídico, já a segunda ocorre conforme as normas jurídicas internas e
internacionais.66
Pelo ângulo de quem formula o pedido de extradição, tem-se a denominada
extradição ativa, ao passo que pelo ângulo de quem recebe o pedido, tem-se a
extradição passiva.
Por último, encontra-se a extradição instrutória, a qual o pedido objetiva
que o indivíduo se submeta ao processo criminal, enquanto a executória o pedido
visa obrigar o indivíduo a cumprir a pena a que foi condenado.
_____________
66
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito Internacional Público. 12ª. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2000, p. 950.
40
2.1.2 Extradição no ordenamento jurídico brasileiro
A Constituição Brasileira de 1891, não vedava a extradição, em face a tal
omissão, adveio em 1911 a lei de nº 2.416 que a permitia tanto para estrangeiro,
quanto para nacional, desde que esta última se desse mediante reciprocidade por
parte do Estado interessado. Em contrapartida, a constituição de 1934 impediu
expressamente a extradição de nacionais, erigindo tal condição a princípio
constitucional.67
Neste mesmo prisma, a Constituição de 1988 em seu artigo 5º que delibera
acerca dos direitos e deveres individuais e coletivos, inciso L I afirma: “Nenhum
brasileiro será extraditado, salvo naturalizado, em caso de crime comum, praticado
antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de
entorpecentes e drogas afins, na forma da lei”. Assim, manteve a proibição da
extradição de nacionais.
Enfatiza-se, ainda, que esta previsão constitucional sequer pode ser alterada
por emenda constitucional, ante a cláusula pétrea inserida no § 4º do artigo 60 que
dispõe in litteris: "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir: (...) IV- os direitos e garantias individuais.”
Adstrito ao disposto no artigo 5º inciso LI cumpre distinguir brasileiro nato, o
qual é vedado, expressamente, qualquer forma de extradição do brasileiro
naturalizado, que se enquadra nas hipóteses ressalvadas.
Considera-se brasileiros natos: os nascidos na República Federativa do
Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de
seu pais; os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que
qualquer deles esteja à serviço do Brasil, e os nascidos no estrangeiro, de pai
_____________
67
GORAIEB, Elizabeth. A extradição no direito brasileiro. Rio de janeiro: Mauad, 1999.
41
brasileiro ou mãe brasileira, desde que venham residir no Brasil e optem, em
qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira.
Quanto aos brasileiros naturalizados o artigo 12, inciso II, alíneas a e b, da
Constituição define como: os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade
brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa apenas residência
por um ano ininterrupto e idoneidade moral; e os estrangeiros de qualquer
nacionalidade residentes na República Federativa do Brasil há mais de quinze anos
ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade
brasileira.
Entende-se por nacionalidade “um vínculo jurídico político pelo qual uma
pessoa passa a ser considerada parte integrante de um Estado.” 68Assim, diz-se que
os natos possuem nacionalidade originária resultante de seu nascimento; ao passo
que os naturalizados enquadram-se na nacionalidade secundária, a qual se adquire
por um processo voluntário de naturalização pós nascimento.
A regra, de fato, é a inextraditabilidade do brasileiro, nato ou naturalizado,
sendo excepcional as duas hipóteses previstas na segunda parte do inciso LI, do
artigo 5º. No entanto, a referida inextraditabilidade não significa impunidade, pois
nenhum crime pode ficar impune, sendo que nos casos em que não se possa
extraditar, deve-se observar o disposto no artigo 7º do Código Penal, efetivando o
princípio aut detere aut judicare, o qual disciplina que se o Estado não entrega a
pessoa solicitada, deverá julgá-la.69
No Brasil, o foco principal na doutrina e jurisprudência, é a extradição
passiva, tendo havido poucos casos em que atuou no pólo ativo. Dessa forma, fazse necessário mencionar como se processa no ordenamento interno um pedido de
extradição recebido.
_____________
68
BENARDES, Wilba Lúcia Maia. Da nacionalidade: brasileiros natos e naturalizados. Belo Horizonte:
Del Rey, 1995, p 91.
69
SOUZA, Artur de Brito Gueiros; ARAUJO, Nádia de. As novas tendências do direito extradicional.
Rio de Janeiro: Renovar , 1998,124/126.
42
Segundo Francisco Xavier Guimarães, opera-se em três fases distintas: na
primeira (denominada administrativa) não há a intervenção do judiciário, cabendo
exclusivamente ao governo aceitar ou não o pedido de extradição; caso seja aceito o
pedido, na segunda fase (classificada como controle jurisdicional do ato de
extradição) o judiciário analisará os seus requisitos legais, proferindo assim sua
decisão; se esta for pelo deferimento da medida passará, então, para terceira fase
(conhecida como entrega), na qual ficará novamente a cargo do governo acatar a
decisão da segunda fase, ou em caso de recusa por parte do Estado requerente em
assumir determinados compromissos, poderá até mesmo adiar ou impedir a
extradição.70
O fato do Poder Judiciário ser responsável pelo controle da legalidade da
extradição é uma forma de dar efetividade aos direitos e garantias individuais
salvaguardados
na
Constituição
de
1988.
Cabe
ressaltar,
ainda,
que a
regulamentação da matéria em questão no Brasil, encontra-se no Estatuto dos
Estrangeiros (Lei nº 6.815/80), na Lei nº 6.964/81 e no Regimento Interno do STF,
artigos 207 a 214.
2.1.3 Princípio da igualdade de soberania – cooperação horizontal
No direito internacional as relações que ocorrem entre Estados soberanos,
são regidas pelo princípio da igualdade de soberania, haja vista que não há que se
falar em tal direito, da prevalência de um Estado em face a outro. Nesse âmbito, as
relações são regidas pela cooperação dos países que se dá de forma horizontal,
uma vez que todos são igualmente soberanos.
_____________
70
GUIMARÃES, Francisco Xavier da Silva. Medidas compulsórias: a deportação, a expulsão e a
extradição. Rio de Janeiro: Forense,1994, p. 241.
43
Miguel Guskow leciona que “a extradição diz respeito à cooperação entre
Estados, regida pelo princípio da igualdade soberana, ou, podendo-se qualificá-la
como cooperação horizontal”.71
A idéia inicial de soberania, de Jean Bodin, tal como sendo um poder
absoluto e perpétuo de uma República, vem cedendo, ao longo do tempo, espaço a
um ideário mais comunitário, bem demonstrado por Francisco RezeK ao referir-se
que é possível identificar o Estado quando o seu governo não se subordina a
qualquer autoridade que lhe seja superior, e só se põe de acordo com seus
homólogos na construção da ordem internacional, e na fidelidade aos parâmetros
dessa ordem, a partir da premissa de que aí vai um esforço horizontal e igualitário de
coordenação no interesse coletivo.72
Dois fundamentos se depreendem da idéia de soberania, qual seja, a
independência e a supremacia, pois no plano interno nada pode se sobrepor às
decisões emanada do Poder Público. Já no campo externo o estado encontra-se em
igualdade com todos os membros da comunidade internacional.73
Neste mesmo sentido, Jorge Miranda explica que “a soberania hoje significa
essencialmente que os Estados são iguais e não que os Estados excluem qualquer
poder proveniente da ordem jurídica internacional”.74 Dessarte, esta não deverá ser
invocada como empecilho ao cumprimento das normas do TPI.
Cumpre ressaltar, que aqui o estudo refere-se a denominada soberania
jurídica, a qual é completamente diversa da soberania política, onde não há que se
falar em igualdade entre os Estados uma vez que o fator determinante é a força e o
_____________
71
GUSKOW, Miguel. O Tribunal Penal Internacional e os problemas futuros a enfrentar em relação à
soberania nacional. Tribunal Penal internacional: universalização da cidadania. Câmara dos
Deputados, Brasília: Centro de documentação e informação, coordenação de publicação, 2000, p. 21.
72
REZEK, José Francisco. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 6ª. ed. São Paulo: Saraiva,
1996, 226
73
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 129.
74
MIRANDA, Jorge. A Incorporação ao Direito Interno de Instrumentos Jurídicos de Direito
Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Direitos Humanos. Revista CEJ, Brasília, nº 11,
p. 23-26, 2000, 25.
44
poder. Desse modo, vislumbrando segurança nas relações jurídicas internacionais,
os países devem relevar a questão da soberania política.
Em uma última abordagem, Carlos Eduardo Adriano Japiassú afirma que
atualmente, há juristas sociólogos e pensadores que afirmam que a soberania é um
conceito em evidente declínio, que já não mais se coaduna com as exigências do
Estado
moderno,
muito
menos
com
internacionalização dos Direitos dos Homens.
uma
concepção
que
busque
a
75
Ante ao todo exposto, sem entrar necessariamente no mérito deste último
posicionamento, pode-se perceber que tanto o fato da “decadência” da idéia de
soberania, quanto o conceito desta, se revelam no plano internacional como a
igualdade entre os Estados, não implicam em obstáculos para que os países
cooperem com o TPI.
2.2 Entrega
A entrega adveio com o Estatuto de Roma, a fim de operacionalizar e
assegurar a eficácia do TPI. Conforme o disposto no artigo 102, b, a Entrega deverá
ser entendida como a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos
do Estatuto.
Cabe ressaltar que, diferentemente da extradição, a entrega ocorrerá de
Estado para organismo internacional, pois “o Tribunal não é uma jurisdição
estrangeira, como, no mesmo sentido, os outros Estados o são”.76
_____________
75
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 133.
76
RODAS, João Grandino. Entrega de Nacionais ao Tribunal Penal Internacional. Revista CEJ,
Brasília, nº 11, 2000, p. 33.
45
Não é difícil encontrar afirmativas no sentido de que a distinção feita entre os
dois institutos (extradição e entrega)77 no estatuto, foi uma forma de fugir dos óbices
que encontrariam nas ratificações em diversos países que vedam a extradição de
seus nacionais, como é o caso do Brasil.
Em que pese este argumento, certo é que de fato a extradição (extradition)
se mostra diametralmente diversa à entrega (surrender), pois, em favor desta, milita
o caráter complementar do TPI e o fato de ser uma corte supranacional a qual o
Brasil faz parte.
2.2.1 Entrega no contexto do Estatuto de Roma
O capítulo IX do Estatuto de Roma versa a respeito da cooperação
Internacional e auxílio judiciário, vislumbrando a apoio pleno dos Estados Partes
para com o TPI.
Neste sentido, está previsto no artigo 89 do Estatuto que o Tribunal poderá
solicitar a cooperação dirigindo um pedido de detenção e entrega de um indivíduo a
qualquer um dos Estados Partes em cujo território esse possa se encontrar. Desse
modo, ao solicitar a detenção e entrega da pessoa, os Estados darão satisfação por
meio do disposto no capítulo IX do Estatuto e nos procedimentos previstos nos
respectivos direitos internos.
No entanto, se o indivíduo, o qual a entrega foi solicitada, impugnar tal
pedido invocando o ne bis in idem perante a Corte nacional, o Estado requerido
entrará em contato com o TPI a fim de verificar se há uma decisão acerca da
_____________
77
Nos termos do artigo 102, a definição adotada para os fins do Estatuto (in litteris): a) Por "entrega",
entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto. b)
Por "extradição", entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado conforme
previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno.
46
admissibilidade do caso. Se este houver sido considerado admissível o Estado
prosseguirá com o pedido, por outro lado, se não houver ainda a decisão, o Estado
poderá postergar a execução do pedido de entrega até que o TPI se pronuncie.
Impende aventar, que ao longo do Estatuto em momento algum há ressalvas
quanto a entrega pelos Estados Partes de seus nacionais.
2.2.2 Princípio da complementaridade – cooperação vertical
O instituto da Entrega reger-se-á pelo princípio da complementaridade, que
diz respeito à cooperação entre Estados e o Tribunal Penal Internacional, o qual a
jurisdição tem caráter excepcional e complementar. Isto quer dizer que somente será
exercida em caso de manifesta incapacidade ou desinteresse do sistema judiciário
nacional em exercer sua primazia. Assim, “se a jurisdição do TPI for acionada, os
Estados se obrigam a cooperar com o Tribunal, no que se aplica à entrega de
pessoas, qualquer que seja sua nacionalidade. Pode-se dizer assim, que este é um
caso de cooperação vertical.”78
Havia desde o início dos trabalhos preparatórios, um acordo entre as
delegações no sentido de que o TPI não exerceria a primazia de jurisdição sobre os
tribunais nacionais, tal como ocorreu nos tribunais ad hoc.79
Cabe ressalvar, que tanto o Tribunal de Nuremberg, quanto o Tribunal de
Tóquio previam que suas jurisdições eram primárias em face das legislações
nacionais. Não obstante, embora os Tribunais ad hoc para ex-Iugoslávia e para
_____________
78
GUSKOW, Miguel. O Tribunal Penal Internacional e os problemas futuros a enfrentar em relação à
soberania nacional. Tribunal Penal internacional: universalização da cidadania. Câmara dos
Deputados, Brasília: Centro de documentação e informação, coordenação de publicação, 2000, p. 2122.
79
MAIA, Marriele. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, Jurisdição e princípio da
Complementaridade. Belo horizonte: Del Rey, 2001, p. 78.
47
Ruanda declarassem que a jurisdição internacional e nacional eram concorrentes, a
primeira possuía primazia ante a segunda.
Deve-se frisar ainda, que a primazia é conseqüência direta do modo de
criação de tais Tribunais, que se deu por decisão
do Conselho de Segurança,
conforme o disposto da carta da ONU.80
Em contrapartida, o TPI possui características diversas dos tribunais
supramencionados e por ser um organismo permanente, a forma encontrada e
indispensável
à
sua
existência
e
funcionamento
foi
o
princípio
da
complementaridade.
Nas discussões que se travaram até chegar de fato a tal princípio, encontrase posicionamentos contrários no sentido de que viam a atribuição complementar à
jurisdição do TPI como um retrocesso no direto penal internacional e, portanto,
defendiam a ampliação da competência do Tribunal.
Em torno dessa discussão, unânime é o entendimento da universalidade do
direito de punir (abordado no item 2.1) quando se fala de criminalidade internacional
e quando o objetivo é estabelecer uma jurisdição penal de caráter internacional, no
entanto, no que diz respeito a sua competência o ponto foi bastante controverso.
Superada a etapa polêmica com a determinação de fato do princípio da
complementaridade como fundamento do TPI, há de se observar como ele está
estatuído no art. 17, no qual refere-se exatamente que o TPI tem uma presunção
relativa em favor dos Estados nacionais, que em primeiro momento estarão
legitimados para agir. Não obstante, como já mencionado, esta presunção poderá
ser superada quando se observar a falta de interesse ou a impossibilidade de fazêlo.
Neste mesmo prisma, Flávia Piovesan assevera, in verbis:
_____________
80
JAPIASSÚ, Carlos Eduardo Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do
direito penal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 167.
48
“O Estatuto de Roma reitera a idéia de que o Estado tem a responsabilidade
primária, o dever jurídico de emprestar a sua jurisdição. No entanto, se isso
não ocorrer, a responsabilidade subsidiária é da comunidade internacional
(...) Dessa maneira, entendemos que o estatuto busca equacionar a
garantia do direito à justiça, o fim da impunidade, a soberania do estado à
81
luz do princípio de complementaridade.
O princípio da complementaridade é baseado em duas regras a publicidade
e a possibilidade de impugnação do processo. A primeira disposta no artigo 18
ressalta a necessidade de notificação dos Estados Partes, com jurisdição sobre um
determinado caso, sempre que o TPI iniciar investigações a fim de que possam se
manifestar no que diz respeito ao exercício de sua jurisdição. Já a segunda disposta
no artigo 19 estabelece o direito do Estado com jurisdição sobre o caso de
impugnar, por uma única vez, a jurisdição do Tribunal, devendo este fazê-lo antes ou
no início do processo, na primeira oportunidade que tiver.82
No que se refere às conseqüências decorrentes do princípio da
complementaridade, o Estatuto discorre sobre o princípio do ne bis in idem que
dispõe, em regra, que o TPI não julgará novamente alguém que já tenha sido
julgado pelo mesmo fato no tribunal nacional, no entanto, cria exceções caso o
processo tenha tido objetivo de subtrair o acusado à sua responsabilidade, ou não
tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial (artigo 20, 3, a e b),
O caráter complementar, por si sós, não bastaria para a efetivação do
Tribunal, para tanto o Estatuto impõe aos Estados Partes a obrigação da
cooperação, a qual implica, dentre outros, na adoção de procedimentos internos
para a implementação do Estatuto, a realização de prisões preventivas, proteção de
testemunhas, produção de provas e entrega de pessoas, inclusive de seus
nacionais.83
Sob esse viés, feliz foi a ressalva de Miguel Guskow ao atribuir a referida
cooperação o sentido vertical, diferentemente da horizontalidade que se dão às
_____________
81
PIOVESAN, Flávia. Princípio da Complementaridade e Soberania. Revista CEJ, Brasília, nº 11,
2000, 73.
82
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2ª Ed., São Paulo : Max Limonad, 2003, p. 162.
83
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2ª Ed., São Paulo : Max Limonad, 2003, p. 163.
49
relações entre Estados. De fato, o TPI é uma corte supranacional, assim, os Estados
ao cooperarem com o Tribunal o estarão fazendo de baixo para cima, sem, contudo
ferir sua soberania, pois estarão colaborando com um organismo internacional que
eles próprios outorgaram poderes (ao ratificarem o Estatuto) e que, de certa forma,
operará como uma extensão, ou complemento, no que concerne aos crimes de
competência do TPI, da justiça nacional.
50
Capítulo 3
A ENTREGA DE NACIONAIS AO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL À
LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DAS ALTERAÇÕES ADVINDAS DA
EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 45 DE 2004
A Constituição Federal de 1988 representa um marco jurídico da transição
democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil, trazendo
consigo o valor de dignidade humana como núcleo básico e informador do
ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de valoração do sistema
constitucional84.
O referido diploma legal inova significativamente ao trazer os princípios da
prevalência dos direitos humanos, autodeterminação dos povos, cooperação entre
os povos, repúdio ao terrorismo e ao racismo, os quais realçam uma orientação
internacionalista nunca vista antes na história constitucional brasileira.85
Sob a égide dessa Constituição, ratificou-se o Estatuto de Roma, surgindo
assim, como já mencionado, a problemática tema da presente monografia e capítulo,
que se restringe a verificar se a entrega de nacional seria ou não compatível com a
Carta.
Após a devida distinção entre Extradição e Entrega, cabe analisar se na
Constituição de 1988 há respaldo para o TPI e, por conseguinte, para a entrega.
_____________
84
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional internacional. 5ª edição p.319
85
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o Direito Constitucional internacional. 5ª edição p.320
51
Impende aqui mencionar o parecer jurídico, acerca da ratificação do TPI,
encaminhado ao Congresso Nacional pelo Doutor Antônio Paulo Cachapuz de
Medeiros, in verbis:
“Enfatiza a citada exposição que a ratificação do Estatuto de Roma pelo
Brasil estaria em plena sintonia com os princípios da prevalência dos
direitos humanos nas relações internacionais e da dignidade da pessoa
humana como fundamento do Estado, inscritos na Constituição de 1988.
Ressalva, porém, que a perspectiva da segurança jurídica pode tornar
recomendável que a ratificação seja precedida da aprovação de emenda
86
constitucional que lhe dê “endosso explícito”.
Neste sentido, o fundamento para subdivisão deste capítulo encontra-se
respaldo na declaração alhures, fazendo-se imprescindível a elucidação dos
princípios da dignidade humana, da prevalência dos direitos humanos nas relações
internacionais, bem como aspectos hermenêuticos constitucionais e o denominado
“endosso explícito”, que veio por meio da EC 45/2004, a qual inseriu no artigo 5º, o
parágrafo 4º, os quais conjuntamente formarão sustentáculos suficientes a um juízo
de valor sobre a constitucionalidade do Estatuto.
_____________
86
BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Secretaria de estado das relações Exteriores.
Consultoria Jurídica. Parecer CJ nº 002/2001. Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
Submissão ao Congresso nacional. Diário do Senado federal, Brasília, DF, 30 abr. 2002.
52
3.1 Princípio da prevalência dos Direitos Humanos nas relações
internacionais
Dentre os princípios constitucionais que regem a República Federativa do
Brasil no cenário internacional, encontra-se o da prevalência dos direito humanos, o
qual está disposto no artigo 4º, inciso II, da Constituição de 1988, in litteris: “Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos
seguintes princípios: (...) II – prevalência dos direitos humanos”. Ante a inserção de
tal princípio, o direito internacional dos direitos humanos foi incluído no elenco dos
direitos constitucionalmente protegidos.
A
Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948 combina
ineditamente o discurso liberal e o discurso social da cidadania, aliando o valor da
liberdade ao da igualdade. Ao assim agir, a Declaração demarca a concepção
contemporânea de direitos humanos, pela qual, estes passam a ser concebidos
como interdependente e indivisível. Nesta concepção, todos os direitos humanos
constituem um complexo integral, único e indivisível, em que diversos direitos são
inter-relacionados e interdependentes. Contudo, é universal, pois decorre da
dignidade inerente a pessoa humana.87
De fato, no atual contexto mundial, a interação do direito internacional com o
direito interno, é salutar para assegurar o cumprimento dos direitos humanos, os
_____________
87
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 5ª Ed., São Paulo:
Max Limonad, 2002, p. 325.
53
quais “devem ser interpretado do modo mais amplo possível”,88 bem como para
evitar possíveis violações contra estes.
O princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais
traz ao Brasil a necessidade de colaborar e cumprir qualquer decisão de órgão ou
tribunal, do qual faça parte, que envolvam matéria de direitos humanos.89 Dessa
forma, pode-se dizer que tal princípio “invoca a abertura da ordem jurídica interna ao
sistema internacional de proteção dos direitos humanos”.90
No que concerne à sua relação com o Tribunal Penal Internacional, verificase que o princípio em questão é uma das formas que fazem com que o TPI adentre
ao ordenamento jurídico em plena conformidade com a Constituição Federal.
Neste prisma, George Rodrigo Bandeira Galindo lecionou ao tratar do tema
quando o Estatuto de Roma ainda estava por ser ratificado in verbis:
“Lido em conjunto com o artigo 7º das Disposições Constitucionais
Transitórias (O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional
dos direitos humanos), este princípio favorece uma futura ratificação por
parte do Brasil do estatuto de Roma, criando o Tribunal Penal Internacional,
uma vez que uma ampla proteção dos Direitos humanos não pode
prescindir do princípio da responsabilização individual por crimes contra a
91
humanidade”.
_____________
88
GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Tratados internacionais de direitos humanos e a Constituição
Brasileira. Belo horizonte: Del Rey, 2002, p.120.
89
GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Tratados internacionais de direitos humanos e a Constituição
Brasileira. Belo horizonte: Del Rey, 2002, p.120.
90
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 5ª Ed., São Paulo :
Max Limonad, 2002, p. 320.
91
GALINDO, George Rodrigo Bandeira. Tratados internacionais de direitos humanos e a Constituição
Brasileira. Belo horizonte: Del Rey, 2002, p.120/121.
54
3.2 Princípio da dignidade da pessoa humana
O conceito de pessoa como possuidora de direitos subjetivos ou
fundamentais e, por conseguinte, dignidade, surge com o cristianismo, com a
denominada filosofia patrística, sendo depois aprimorada pelos escolásticos.92
De fato, a definição de dignidade veio sendo elaborada no decorrer da
história e chega ao século XXI repleta de significado em si mesma, como um valor
supremo, construído pela razão jurídica. 93
Um dos grandes colaboradores para a idéia de dignidade foi Kant, segundo
o qual afirma que o homem é o fim em si mesmo, não podendo, por conseguinte, ser
usado como instrumento para algo, e justamente por isto, tem dignidade, é pessoa.
Assim, ao trazer o conceito de dignidade humana como o fim em si mesmo,
sobressalta que o Estado está para o homem e não o inverso. Não obstante,
verifica-se que tanto o Estado, quanto o direito, só encontra justificativa se regido
em função das pessoas.94
Neste sentido, constata-se dignidade humana como um valor preenchido a
priori, ou seja, todo o ser humano tem dignidade só pelo fato de ser pessoa.
_____________
92
SANTOS, Fernando Ferreira. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo:
Celso Bastos Editor: instituto brasileiro de Direito constitucional, 1999, p. 19.
93
NUNES. Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e
jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 46.
94
SANTOS, Fernando Ferreira. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo:
Celso Bastos Editor: instituto brasileiro de Direito constitucional, 1999, p.107/108
55
Para que seja possível uma melhor compreensão do que seja dignidade,
faz-se necessário considerar todas as violações que já foram praticadas, destaca-se
aqui o nazismo e toda sorte de atrocidades que já foram cometidas na humanidade,
para que contra elas se possam lutar. Portanto, extrai-se desse contexto histórico
que a dignidade nasce com o homem, sendo inata, inerente a sua essência. O ser
humano é digno, porque assim o é.95
No entanto, cumpre salientar que o ser humano é um ser sociável e como tal
a sua dignidade deverá receber um plus, pois sua liberdade, imagem, intimidade
deverão ser respeitadas. Em contrapartida, se em seu convívio social o ser humano
- tão dignamente protegido - violar a dignidade de outrem, ter-se-á aí que incorporar
no conceito de dignidade certos limites, pois a dignidade só é garantia ilimitada se
não ferir outra.96
O ideal jurídico do princípio em questão evolui mundialmente e caso
brasileiro encontra-se a Constituição Federal de 1988 traz o princípio da dignidade
humana disposto no seu artigo 1º, III, in verbis:
“Art. 1º - a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
democrático de direito e tem como fundamentos: (...) III – a dignidade da
pessoa humana”.
Neste viés, é considerado o primeiro fundamento de todo o sistema
constitucional, funcionando como princípio maior para interpretação de todos os
_____________
95
NUNES. Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e
jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 49.
96
NUNES. Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e
jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 49/50.
56
direitos e garantias conferidas às pessoas, não podendo assim ser desconsiderado.
É, sem dúvida, como leciona Rizzatto Nunes, um verdadeiro supraprincípio
constitucional que ilumina todos os demais princípios e normas constitucionais e
infraconstitucionais.97
Adstrito ao todo elucidado, constata-se que a dignidade humana é um dos
fundamentos da República Federativa do Brasil. Dessa forma, a dignidade deve ser
vista como o fim e, o ordenamento jurídico, deve ser voltado à sua busca, de modo
que, a jurisdicidade das normas devam caminhar para tal fim.
Neste sentido, não há que se falar em óbices para a inserção e efetivação
do Tribunal Penal Internacional no ordenamento pátrio, pois a Constituição e o
Tribunal têm finalidades convergentes no que concerne a resguardar a dignidade
humana. Pois o TPI tem como seu objetivo cuidar dos crimes mais cruéis contra a
dignidade humana, resguardando a paz, a segurança e o bem-estar da humanidade.
3.3 Hermenêutica constitucional ante a questão da entrega de
nacionais
É salutar, não obstante o estudo já realizado acerca dos princípios supra,
para o deslinde da questão da entrega de nacionais ser, ou não, uma afronta a
_____________
97
NUNES. Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e
jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 49/50.
57
Constituição Federal de 1988, elucidar alguns aspectos da hermenêutica
constitucional no atual contexto.
Para Interpretar a Lei Maior, primeiramente, deve-se observar que as
normas constitucionais são normas jurídicas, com todas as conseqüências teóricas e
práticas que resultam dessa qualificação. Entretanto, em sua parte dogmática possui
estrutura normativo-material distinta das normas infraconstitucionais, principalmente
no que se refere à interpretação, pois enquanto a lei possui alto grau de
determinação material, podendo ser diretamente aplicável; a Constituição apresentase como um sistema aberto de regras e princípios, que necessitam da mediação de
intérpretes para lograrem efetividade. 98
Grandes
doutrinadores
do
Direito
Constitucional
já
reconhecem
a
importância das relações internacionais no processo de interpretação da
Constituição. Entendem, assim, que a Constituição deve ser aberta no sentido de
admitir sua reinterpretação galgada nas dinâmicas políticas e jurídicas, tanto
internas, quanto internacionais.
Neste sentido, valioso é o ensinamento de Pablo Lucas Verdú, in verbis:
“ (...) la normativa constitucional es abierta en la medida que permite una
reinterpretación constante de si mesma: tiene considerable capacidad
expansiva y receptiva como “(...) (consecuencia de factores internos y
externos al hacerse depender el texto constitucional de dinâmicas políticas y
99
juridicas interiores y internacionales) (...)“.
_____________
98
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris
Editor, 1997, p. 25/26.
99
VERDÚ, Pablo Lucas. La Constituición abierta e sus enemigos. Madrid: Ediciones Beramar, 1993,
p. 57.
58
Canotilho também demonstra a necessidade da cooperação, apontando a
importância do Direito Internacional dentro de uma ótica constitucional ao afirmar
que hoje os fins dos Estados podem e devem ser os da construção de Estados de
Direito Democráticos, sociais e ambientais, no plano interno, e Estados abertos e
internacionalmente “amigos” e “cooperantes”, no plano externo. Afirma, ainda, que o
princípio de autodeterminação deve ser reinterpretado no sentido de que a
legitimação da autoridade e soberania política deve e pode encontrar suportes
sociais e políticos em outros níveis – supranacionais e subnacionais – diferentes do
“tradicional” e “realístico” Estado-Nação.100
Nesse prisma, o STF sentiu a necessidade de rever o posicionamento
adotado quanto ao status de lei federal atribuído a todos os tratados internacionais
indistintamente. Agora, em julgados recentes este tribunal dá sinais de evolução no
sentido de que aos tratados que versem sobre direitos humanos deverá ser
conferido no mínimo o status de norma supralegal. 101
Assim, demonstra-se valioso o entendimento de Inocêncio Mártires Coelho
acerca da interpretação constitucional que aponta a necessidade releitura da norma
_____________
100
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed.
Coimbra: Livraria Almedina, 2002, p.1353-1354.
101
Depreende-se da leitura do acórdão do RE 466343/SP, de relatoria no Ministro Cezar Peluso,
onde se discutia inadmissibilidade da prisão do depositário infiel, uma nova postura daquela Corte
que aproveitou a oportunidade para adentrar no tema que há tempos pedia uma nova interpretação,
qual seja, onde os tratados internacionais de direitos humanos se encaixam no ordenamento pátrio.
Nesse ponto, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, em seu voto, sustenta, a tese da supralegalidade, ao
passo que o Ministro Celso de Mello defende que os referidos instrumentos adentram ao
ordenamento como norma constitucional. Independentemente da tese que se solidificará nos
próximos julgados, de antemão, já se constata que a tese de que tratados internacionais de direitos
humanos equivalem a leis federais (tese esta, que vigorou por muito tempo), sucumbiu perante
aquele órgão.
59
quando há alteração no contexto, o que está ocorrendo na atual fase da história
jurisprudencial. Vejamos:
“Em razão dessa abertura e infinitude, toda interpretação é sempre um
resultado, entre outros, a que se pode chegar em função de um
determinado contexto, mas que deve ser modificado quando se alterarem as
coordenadas da situação hermenêutica. As mudanças de jurisprudência
comprovam que essa é uma lei de desenvolvimento da experiência
interpretativa no âmbito do direito em geral, atestando por outro lado a
unidade dialética do processo hermenêutico, no qual se fundem,
necesariamente – como etapas distintas, mas complementares – a
102
compreensão, a interpretação e a aplicação dos modelos”.
Diante do atual contexto de abertura ao direito internacional e considerando
os princípios de interpretação constitucional, quais sejam, da unidade da
Constituição, do efeito integrador, da máxima efetividade, da conformidade
funcional, da concordância prática, da força normativa e da interpretação conforme a
Constituição103; fácil fica a interpretação do exposto no artigo 1º, inciso III104 e no
_____________
102
COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris
Editor, 1997, p. 96.
103
Segundo Inocêncio Mártires Coelho, em sua Obra Interpretação Constitucional: o princípio da
unidade da Constituição versa que as normas constitucionais devem ser consideradas como um
sistema interno unitário de regras e princípios; o princípio do efeito integrador dispõe que na
resolução dos problemas jurídico-constitucionais, deve-se dar primazia aos critérios ou pontos de
vista que favoreçam a integração política e social e o reforço da unidade política; o princípio da
máxima efetividade traz que deve-se atribuir as normas constitucionais o sentido que lhes empreste
maior eficácia ou efetividade; o princípio da conformidade funcional assevera que não se pode
chegar a resultados que subvertam ou perturbem o esquema organizatório-funcional; o princípio da
concordância prática demonstra que os bens constitucionalmente protegidos, em caso de conflito ou
concorrência, devem ser tratados de maneira que a afirmação de um não implique o sacrifício do
outro; o princípio da força normativa assevera que deve-se dar primazia às soluções que,
densificando as suas normas, as tornem eficazes e permanentes; e o princípio da interpretação
conforma a Constituição, o qual afirma que em face de normas infra-constitucionais polissêmicas ou
plurissignificativas, deve-se dar prevalência à interpretação que lhes confira sentido compatível e não
conflitante com a Constituição.
104
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em estado Democrático de Direito e tem como Fundamentos: (...) III
– a dignidade da pessoa humana.
60
artigo 4º, inciso II105, em um paralelo com o artigo 5º, § 2º da Constituição Federal de
1988,
Atendo-se a primeira parte do § 2º da CF, qual seja, “os direitos e garantias
expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime dos
princípios por ela adotados” e, apoiando-se no pressuposto de que um dos
princípios adotados pela Carta é o da prevalência dos direitos humanos nas relações
internacionais, a outro entendimento não se pode chegar, senão o de que a
Constituição de 1988 atribui ao Tratado Internacional de direitos humanos a
hierarquia de norma constitucional. Posicionamento este, que acredito ser o mais
correto e brilhantemente defendido pelo ministro Celso de Mello no já mencionado
RE 466.343/SP.
Cabe ainda destacar que em caso aparente de conflito deverá sempre ser
aplicada a norma mais benéfica às vítimas, independente se a interna ou a
internacional.
Neste sentido, leciona Velerio de Oliveira Mazzuolli, in litteris:
“Dessa forma, com base na própria Carta da República, deve-se entender
que em se tratando de direitos humanos provenientes de tratados
internacionais de que a República Federativa do Brasil seja parte, há de ser
sempre aplicado, no caso de conflito entre o produto normativo
convencional e a Lei Magna Fundamental, o princípio da primazia da norma
106
mais favorável às vítimas”.
_____________
105
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes
princípios: (...) II – prevalência dos direitos humanos.
106
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direitos humanos & relações internacionais. Campinas, São
Paulo: Agá Juris Editora, 2000, p. 133.
61
Por base nesse entendimento advindo de interpretação sistemática e
teleológica, especialmente em face da força expansiva dos valores de dignidade
humana107, a entrega de um brasileiro ao Tribunal Penal Internacional nos termos da
Constituição deverá ser interpretada seguindo a mesma linha de raciocínio.
Assim, ainda que se entendesse a entrega como uma forma de extradição,
haveria amparo para ela no ordenamento pátrio, pois embora a vedação da
extradição de nacional ser tida como uma garantia fundamental, ela não exclui
outras decorrentes de princípios, tais como a dignidade da pessoa humana e a
prevalência dos direitos humanos, e de tratados internacionais em que o Brasil seja
parte.
Verifica-se, portanto, que o TPI amolda-se com perfeição no contexto
supracitado, pois é oriundo de um tratado de direitos humanos, em que o Brasil é
Estado Parte, e visa assegurar dignidade humana.
Dessa forma, constata-se que a entrega é uma hipótese de garantia
decorrente de tratado internacional de direitos humanos, que adentra ao
ordenamento brasileiro como norma constitucional, não podendo, portanto, ser
excluída somente pelo fato de haver a garantia de não extradição de nacional.
Então, nesse caso, de aparente conflito, dever-se-ia observar os
ensinamentos de Valerio Mazzuoli e aplicar o princípio da primazia da norma mais
favorável às vítimas.
_____________
107
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. 2ª Ed., São Paulo : Max Limonad, 2003, p. 45.
62
Pôr
último,
cabe
asseverar
que
qualquer
aspecto
hermenêutico
constitucional deverá ser fundado no princípio da dignidade humana, o qual é
considerado núcleo essencial da Lex Superior.
Por óbvio, toda a questão de interpretação constitucional abordada neste
item visa dar respaldo para o posicionamento que entendo ser o mais correto, qual
seja, de que os tratados internacionais de direitos humanos, como é o caso do
Estatuto de Roma, tem hierarquia de norma constitucional. Em contrapartida, por
uma questão de honestidade científica torna-se necessária a sistematização das
correntes doutrinárias acerca do tema, as quais serão abordadas no tópico a seguir.
3.3 Os reflexos da Emenda Constitucional 45/2004 no que diz
respeito ao Tribunal Penal Internacional e na jurisprudência
correlata do Supremo Tribunal Federal
O “endosso explícito” do Estatuto de Roma, referido pelo Doutor Antônio
Paulo Cachapuz, veio por meio da Emenda Constitucional 45/2004 que acrescentou
ao artigo 5º, o parágrafo 4º: “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal
Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”.
É importante lembrar que o próprio poder constituinte originário já assinalava
no art. 7º do ADCT que: “o Brasil propugnará pela formação de um tribunal
internacional dos direitos humanos“.
63
Ora, diante das assertivas supramencionadas parece ser incontestável a
constitucionalidade do TPI, que nada mais é do que uma corte de caráter
permanente e mundial que tem por objetivo principal a proteção dos direitos
humanos.
A constitucionalidade do Tribunal Penal Internacional como um todo,
certamente é indene de dúvida, mas algumas questões polêmicas como a ora
analisada, certamente sempre sofrerá resistência por uma parcela da doutrina que
não está aberta às questões internacionais.
Caberá, assim, ao Supremo Tribunal Federal, que é órgão competente para
o deslinde de questões que envolvam organismos internacionais (artigo 102, inciso I,
alínea “e”, CF), decidir acerca de cada ponto polêmico, dentre eles, a entrega de
nacionais ao TPI.
Desse modo, é importante observar que após a referida EC 45/2004, o
Supremo Tribunal Federal já mostra sinais de mudança no posicionamento,
abandonando
o
antigo
posicionamento
consolidado
de
que
os
tratados
internacionais, inclusive os de direitos humanos, tinham o status de Lei Ordinária.
Nesse ponto cabe elucidar, que a mudança de posicionamento mostrou-se
no julgamento do RE 466.343/SP, onde o ministro Gilmar Mendes ao analisar a
inserção do Pacto de São José da Costa Rica, tratado internacional de direitos
64
humanos, no ordenamento brasileiro, já aponta para as quatro correntes acerca do
tema: 108
A primeira é defendida por Celso Duvivier de Albuquerque Mello e
reconhece a natureza supraconstitucional dos tratados e convenções internacionais
de direitos humanos.
A segunda entende que os referidos tratados têm natureza constitucional.
Entendo, por toda a explanação já desenvolvida nos itens anteriores, ser esta a
corrente cientificamente mais correta. São defensores desta tese doutrinadores
como Antônio Augusto Cançado Trindade, Flávia Piovesan, Valério de Oliveira
Mazzuoli e, mais recentemente, o ministro Celso de Mello, que reviu o seu
posicionamento no julgado supracitado.
A terceira corrente atribui aos diplomas internacionais o status de lei
ordinária. Esta corrente já apresenta nítidos sinais de superação, ante a nova
composição do STF.
A quarta e última corrente ganhou um ilustre defensor no julgamento em
comento Ministro Gilmar Ferreira Mendes, que pauta-se na supralegalidade dos
tratados internacionais de direitos humanos, os quais estariam abaixo da
Constituição, mas acima da legislação ordinária. Esta tese já havia sido aventada
pelo Ministro Sepúlveda Pertence no julgamento do RHC 79.785/RJ em 2000, mas
após a Emenda Constitucional 45/2004, notadamente devido ao § 3º do artigo 5º da
_____________
108
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 466.343/SP. Min. Rel. Cezar Peluso. Brasil. DF,
03.dez.2008. DJE. 104, publicado em 05-06-2009.
65
Constituição Federal, o Ministro Gilmar Mendes defende uma postura jurisdicional
mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas
primordialmente à proteção do ser humano, sugerindo, assim, a adoção da tese da
supralegalidade.
O ministro Gilmar Mendes afirma, ainda, que o legislador, no entanto, poderá
submeter o tratado que verse de direitos humanos ao procedimento especial de
aprovação previsto no artigo 5º, § 3º, da Constituição, conferindo-lhes status de
Emenda Constitucional.
Observa-se que a cláusula que afirma a submissão do Brasil à jurisdição do
Tribunal Penal Internacional já passou pelo referido procedimento especial, o que
faz com tenha ganhado segundo Gilmar Mendes, status de Emenda Constitucional.
Por outro lado, entendo ter maior razão o ministro Celso de Mello que com
base em autores renomados elaborou um brilhante voto, subscrevendo a tese da
segunda corrente, que afirma que as alterações trazidas pela emenda constitucional
45/2004, abre a possibilidade de que a matéria disciplinada em tratados de direitos
humanos, as quais são materialmente constitucionais, quando submetidas ao
procedimento especial do § 3º do artigo 5º da constituição se tornem, também,
formalmente constitucionais.
Sob este aspecto, o Tribunal Penal Internacional é materialmente e
formalmente constitucional, encontrando-se perfeitamente incorporado no direito
brasileiro.
66
Oportuno lembrar, no entanto, a preocupação aventada pelo ministro Celso
de Mello, na condição de presidente em exercício, ao proferir despacho no primeiro
caso de pedido de cooperação judiciária que objetiva a detenção para ulterior
entrega ao TPI de Omar Hassan Ahmad Al Bashir, chefe de Estado da República do
Sudão,onde assinalou algumas dúvidas em torno da suficiência da cláusula inscrita
no § 4º do artigo 5º da Constituição, para efeito de se considerarem integralmente
recebidas, por nosso sistema constitucional, todas as disposições constantes no
Estatuto de Roma.109
Em que pese as dúvidas suscitadas, por outro lado o ministro Celso de Mello
já aponta a nítida distinção entre os institutos da entrega e da extradição, de modo a
sugerir que não vislumbrará óbices quanto ao deferimento de eventuais pedidos de
entrega.
Esse é, em apertada síntese, o atual quadro doutrinário e jurisprudencial em
que o Tribunal Penal Internacional e, por conseguinte, as suas questões
controvertidas no que diz respeito à compatibilidade com a Constituição Federal, se
encontra.
Embora não se possa precisar qual será a postura do Supremo Tribunal
Federal ante aos pedidos formulados pelo Tribunal Penal Internacional, já se pode
verificar uma maior sensibilidade por parte dos ministros com os tratados que
_____________
109
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Pet. 4625. Min. Rel. Ellen Gracie. Brasil. DF, 17.jul.2009. DJE.
145 publicado em 04-08-2009.
67
versam sobre direitos humanos, o que se apresenta como um avanço nas relações
internacionais em que o Brasil é Estado Parte.
68
CONCLUSÃO
É notória a evolução da justiça penal internacional ao longo do tempo. Os
tribunais temporários – Tribunal de Nuremberg, Tribunal de Tóquio, Tribunal Penal
Internacional para antiga Iugoslávia e Tribunal Penal Internacional para Ruanda –
foram criados ante a necessidade de se dar uma resposta às grandes atrocidades
que o mundo viu, principalmente decorrentes da I e II Grande Guerra Mundial.
Tais Tribunais representaram, sem dúvida, um avanço no Direito Penal
Internacional. No entanto, são alvos de inúmeras críticas pelo fato de serem
marcados pela parcialidade e desrespeito a princípios básicos do direito penal, onde
a justiça, muitas vezes, era preterida em favor da política.
Dessarte, a idéia de uma corte penal internacional de caráter permanente,
desprovida dos vícios dos tribunais temporários, ganhava força e viu-se concretizada
com a criação do Tribunal Penal Internacional, uma corte supranacional, de caráter
complementar, que tem por finalidade resguardar direitos humanos e zelar pela
dignidade humana.
A ratificação do Estatuto de Roma da criação do TPI pelo Brasil, fez surgir a
dúvida acerca da constitucionalidade do artigo que obriga os Estados Partes a
cooperarem, entregando a pessoa que tenha cometido qualquer um dos crimes de
sua competência, sem fazer ressalva aos nacionais.
Ao longo do estudo, pode-se perceber que a extradição e a entrega, apesar
de demonstrar um conflito aparente, são institutos distintos, apresentando em seus
69
conceitos, elementos constitutivos distintos. Assim, a Extradição ocorre entre
Estados igualmente soberanos – cooperação horizontal – e a Entrega ocorre entre
Estado e organismo internacional – cooperação vertical.
Caso ocorra de o TPI solicitar que o Brasil coopere entregando um de seus
nacionais, deverá ser levado em consideração que o estará fazendo à uma corte
supranacional, da qual é Estado Parte e, inclusive, possui uma representante
brasileira como juíza, Sylvia Steiner. Portanto, em nenhum momento sua soberania
estará sendo prejudicada, pois estará cedendo a um pedido de um tribunal
internacional, e não de um Estado. Neste mesmo sentido, cumpre salientar que a
jurisdição do TPI funcionará como um complemento à justiça nacional.
Sob o aspecto constitucional da entrega de nacionais, deverá se observar
que ao interpretar a Carta, no atual sistema aberto de regra e princípios, suas
normas não deverão ser consideradas isoladamente, mas sim como um sistema
unitário, buscando sempre uma interpretação compatível.
Desse modo, primeiramente, constata-se que o Estatuto de Roma é um
tratado internacional de direitos humanos o que faz com que, por base no disposto
no artigo 5º, § 2º, adentre ao ordenamento pátrio com o status de norma
constitucional, conforme disciplina da melhor doutrina.
O segundo aspecto é que o Tribunal Penal Internacional tem como uma de
suas preocupações, resguardar a dignidade humana, que é considerada o primeiro
dentre os fundamentos constitucionais. Dessa forma, deverá servir sempre como
base para interpretação da Lex Superior.
70
Por último, há ainda que se verificar o disposto no § 4º, do artigo 5º da
Constituição Federal, fruto da EC 45/2004, que explicitou a submissão do Brasil à
jurisdição do TPI. Ademais, o próprio artigo 7º do ADCT, já previa a colaboração do
Brasil na criação de um tribunal internacional de direitos humanos. Estes elementos
demonstram o real intuito da Constituição, qual seja, cuidar para que os direitos
humanos sejam respeitados tanto no âmbito interno quanto no internacional.
Adstrito ao elucidado, outra não poderia ser a conclusão, senão que a
entrega está em conformidade com a Lei Maior, pois além de não se confundir com
a
extradição,
está
prevista
no
Estatuto
de
Roma,
o
qual
encontra-se
constitucionalmente protegidos pelos princípios da dignidade humana e da
prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais.
O Tribunal Penal Internacional é uma realidade incontestável que traz
consigo uma nova ordem jurídica internacional, pautada no respeito ao ser humano,
à imparcialidade e aos princípios do direito penal. No entanto, não se objetiva, aqui,
dizer que o TPI é infalível, até mesmo porque embora já tenha iniciado as suas
atividades, ainda se mostra prematuro um juízo de valor quanto à sua atuação.
Em contrapartida, não se pode negar o brilhantismo de sua proposta, pois
não se pode silenciar ante aos extermínios, crimes de guerra e toda sorte de
atrocidades. De fato, o mundo não pode ficar sujeito aos desmandes de uma minoria
que atenta contra a dignidade humana.
71
Assim, o Tribunal Penal internacional é a esperança de que os que cometam
tal crime, considerado de maior interesse e seriedade internacional, não saiam
impunes.
Neste viés, impende aventar que os Estados Partes não podem, sob o
manto da nacionalidade, deixar de entregar aquele indivíduo que foi capaz de
cometer crimes de extrema gravidade, que afetam a toda comunidade internacional,
deixando vulnerável a segurança da humanidade, colocando em risco os direitos
que foram erigidos à categoria de fundamentais, data a sua máxima importância.
Caberá aos Estados Partes, inclusive ao Brasil, que segundo as mais
recentes orientações da Supremo Tribunal Federal tem se mostrado mais aberto a
estas questões, cooperarem para que o TPI seja eficaz, devendo todos se unirem na
luta contra a impunidade e, em favor do homem, da dignidade e dos direitos
humanos.
A Constituição Brasileira vê o homem como o bem maior, portanto, não fica
difícil extrair que é a favor da inserção de instrumentos que tendem a garantir a paz
mundial. O direito tem que trabalhar para a justiça, e da forma como o Tribunal Penal
Internacional se impõe, a entrega é o meio capaz de assegurar que a justiça penal
internacional alcançará o seu propósito.
72
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