O SENTIDO SOCIAL DA FESTA DE CRISTO REI (Conferência
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O SENTIDO SOCIAL DA FESTA DE CRISTO REI (Conferência
O SENTIDO SOCIAL DA FESTA DE CRISTO REI (Conferência pronunciada pelo prof. H. J. Hargreaves, em Belo Horizonte, a 25 de outubro último, no Teatro Municipal). O MISTÉRIO DO PAPADO Se o mistério do papado constituiu sempre o maior desafio à arrogância ridícula dos séculos, o desmentido mais formal à sua versatilidade leviana, a confusão, enfim, do espírito flutuante e movediço da raça expatriada de Roma – esse mistério amplia-se, cresce e transcende a mentalidade dos homens, sobretudo, nos nossos dias, na figura desta “obra prima da graça”, em carne e osso, que é o grande Pontífice Reinante, Pio XI. Reservou Deus, para o seu coração sensível e para sua alma delicadíssima, a contemplação confragedora dos quadros, talvez mais dolorosos do destino de crucificação e redenção do cristianismo. O epílogo dos grandes erros se consuma, aos olhos mareados de Roma imortal desde que “Cristo se fez romano”, na expressão de Dante, e que Pio XI, tantas vezes, gosta de repetir (Yves de La Briére). A Alemanha expia a separação de Roma pela Reforma. A Rússia expia a separação de Roma pelo cisma ortodoxo. A França, da Enciclopédia, que apressou a agonia de Pio X, é uma desalentadora indagação. A Inglaterra, de Henrique VIII, assiste assustada à canonização gloriosa de Thomas Morus e John Fisher. A Espanha de Cristo luta contra a Espanha de Stálin, para decidir, quem sabe, o destino da Europa. E, assim, todos os povos, na medida em que se afastaram de Roma, anemizam-se, entram em colapso e fendem a harmonia da civilização. Parece que a Providência quis que Pio XI vivesse no isolamento terrível e sublime, de seu coração paterno, a solidão sombria do Caminho abandonado, a agonia angustiosa da Verdade Crucificada, a nostalgia melancólica da Vida desconhecida e desprezada. Se cada um de nós, consoante a nossa fé, representa uma hóstia, uma oferenda e uma oblação e se, por vezes, sinceramente, à sobra das Oliveiras do horto íntimo e profundo de nosso ser, balbuciamos: “Senhor passe de nós este cálice”... imaginemos, agora, o que não será o estado da alma do Santo Padre, por sobre as sete colinas de Roma, fora e acima da zona das tempestades, no rito sagrado de seu sacrifício permanente pela Igreja! Já no crepúsculo do século passado, o grande Augusto Cochin, líder do partido espiritual da esperança, num rasgo de visão genial, assim fixava o quadro da situação da Igreja: “A religião católica está oprimida em toda a face da terra. Suas doutrinas são combatidas em todas as línguas, suas instituições, em todos os países. A Igreja está escravizada na Itália, vilipendiada na Franca, desdenhada na Inglaterra, torturada na Polônia, comprometida na Áustria, garroteada na Suécia, suspeita na Espanha, corrompida no Brasil, humilhada na Turquia, perseguida na Ásia, martirizada na África e na Oceania. Como o seu Divino Mestre, ela não tem uma pedra para repousar a cabeça” (Les Esperances Chrétiennes, Augustin Cochin, Plon, 1926, Introduction, págs. 5/6). Ora, se num detalhe ou noutro, poderíamos esbater um pouco o carregado das cores, por outro, quantos elementos novos poderiam somar-se a estes, avivando ainda mais as tintas desta realidade trágica e comovedora, para castigo do orgulho da vida de nossos dias. Pois bem, nada disso é estranho ao Vigário de Cristo. Sua Santidade não se alheia um minuto sequer da marcha da vida. O seu coração bate em consonância com o coração da Igreja. Registra as mais leves pulsações de vida do Corpo Místico de Cristo, porque o Papa é a expressão sensível da sua personalidade. “Se as quatro notas da Igreja sugerem sua personalidade, é que elas não se animam plenamente, não têm de si mesmas toda sua força e amplitude. Daí à Igreja uma consciência e uma memória: ouvireis, imediatamente, essa consciência gritar a sua unidade, vê-la-eis elaborar e erigir sua santidade. A memória de suas origens apostólicas impedi-la-á de se enganar a esse respeito; e, como o depósito dos apóstolos é definitivo, ele não deve ser substituído por nenhuma economia nova, ele é pois também universal: a Igreja se proclama católica e se sabe indefectível. Conclusão: ... esta personalidade não se pode conceber sem um Chefe visível, sem Pedro e o Papa. O meio, pelo qual se manifesta e se afirma a pessoa humana e a voz, que exprime pela palavra, melhor do que qualquer outro órgão, os pensamentos e as decisões livres do ser racional. A voz sensível da Igreja é o Papa” (Le Mystére de l´Eglise. H. Clérissac, O. P., pgs 57/8 – Editions du Cerf, 1917). Eis o sentido da expressão mistério do Papado: Cristo é o Verbo e o Papa, a Voz do Verbo, que não enfraquece e nem se apaga, sob o fragor das derrocadas parciais ou totais que vinte séculos assistem. E é, quando meditamos intensamente sobre os destroços morais de nossa época, à qual, como um espelho de faces convexas, reflete a caricatura da racionalidade desfigurada... É quando pensamos no hibridismo crescente da moral que decai, ao ritmo enganador de dogmas que se substituem, de direitos que se ab rogam, em nome de pseudo-direitos, que repontam viciados... É, quando medimos a curva de nosso destino, atordoado pelo rumor dos institutos que se esfacelam, de tronos que caem, de multidões que sabem, numa clarinada lúgubre de guerras que se anunciam, na subconsciência das massas amotinadas, e que se manifestam na orla do Eu social, pelo alvoroço das revoluções que se multiplicam... É, nesta hora grave de receios, em que o pensamento humano revolto no seu âmbito, numa agonia de Titan, arrebenta aos pés da Dúvida, em ondas nervosas de indagações ardentes... É nesta hora quase impenetrável em que mal distinguimos, se os povos pisam os umbrais de uma civilização que apodrece... É nesta hora trêmula de fraqueza, trepidante de incongruências, eclipsada de paradoxos que o mistério do Papado, na pessoa do Augusto Pontífice, Pio XI – transcende a tudo o que a razão do homem pode atingir e dominar... A ENCÍCLICA QUAS PRIMAS E A SUA OPORTUNIDADE Com efeito, seria para esperar que, apreciadas as coisas, dum ponto de vista apenas natural, a consciência humana ficasse a mercê das agulhas que marcam as direções dos grandes erros, sem um norte, na mais perfeita noite de vacilações... Assim, porém, não aconteceu e nem acontece. Com uma vidência santa e penetrante das necessidades morais de nossa época, alheio a que seja ouvido ou não, o Verbo ilumina os quadrantes do mundo, com o brilho de Sua presença sensível, com a sua Voz de carne... A maneira de Pio IX, quando definiu o dogma da infalibilidade, em meio o paroxismo da autoridade atomizada e do mundo em adiantado processo de desagregação – Pio XI, dentro da procela dos tempos modernos, pisando firme sobre as ondas bravias da sua desordem, proclama, através de sua luminosa encíclica Quas Primas, o reinado de Cristo. Essa coragem insólita da Igreja, tantas vezes, demonstrada, através dos séculos, e, máxime, no pontificado de nosso glorioso Papa Reinante, desaponta a má fé, abala a incredulidade e reconforta a boa vontade. Velho, na sua essência, como a própria tradição, é o culto a Cristo Rei. Não se contam as várias passagens do Velho Testamento em que seu reinado se prenuncia, em haustos proféticos, que o Novo Testamento confirma a todo momento. Parece, porém, ser uma das notas marcantes da predileção providencial de Deus, por Pio XI, isto de fazê-lo revelar ao mundo a mocidade eterna, a atualidade sempre renovada de sua Igreja. É o que se dá, por exemplo, também com este outro mistério dos tempos presentes, que é a Ação Católica, da mesma Idade da Igreja, mas que ele revelou ao mundo moderno, sob um aspecto novo e, como ele mesmo o diz, até um certo ponto, pela inspiração do céu. Eis, como Yves de La Brière nos conta a fixação da data pelo Sumo Pontífice, para a celebração da festa de Cristo Rei, que nós, hoje, também celebramos. Referindo-se à última alocução consistorial de Pio XI, em Dezembro de 1925, assim continua ele: “Ao terminar a sua alocução, Pio XI, antes de ordenar o fechamento das portas santas, nas quatro basílicas maiores, para a vigília do Natal, anuncia a promulgação da encíclica, que vai estender, por mais um ano, os favores do jubileu a todos os países da terra e que vai proclamar a Realeza de Cristo sobre as nações, instituindo uma festa especial, com ofício e missa próprios, para render solene homenagem a esta magnífica prerrogativa de nosso Salvador. Nove dias após essa alocução, aparece, com efeito, a encíclica prometida. Ela ordena que, em cada ano, a festa de Cristo Rei das Nacoes, seja celebrada no último domingo de outubro, isto é, poucos dias antes da festa de Todos os Santos, e que então se renove, nesta festa, a consagração universal do Gênero Humano ao Sagrado Coração de Jesus”. (L´Organisation Internationale du Monde Contemporain et la Papaté Souveraine – pg. 185 – Yves de La Briére, Spes, 1927). Meditemos um pouco a oportunidade desta memorável encíclica, o brasão de nobreza de todas as hostes da Ação Católica. No crepuscular do primeiro quartel do século XX, nos seus últimos dias de dezembro, quando, talvez, o homem moderno supusesse firme o seu domínio intelectual, moral, social e político sobre os tempos – eis que se lhe antolha mais vive do que nunca, na alma da cristandade, o reinado do homem eterno, que encarna o Cristo, como a suprema perfeição física e espiritual. É, justamente, em meio à apostasia do século, que a Verdade deve brilhar. É, exatamente, na hora dos grandes e profundos ressentimentos do mundo contra o cristianismo, cuja missão, a nossa covardia e a nossa pusilanimidade traíram – que a Igreja se apresenta mais pura do que nunca, na simplicidade de suas convicções, afirmando a sua espiritualidade intacta e imaculada, na figura do Cristo Rei. Quatro séculos de civilização processados, à margem de Roma e contra Roma, deramnos, como resultado, o espetáculo confragedor do mundo moderno, que estertora, numa agonia desesperada, ante o delírio dos erros que ele pregou como verdades, extraídas das suas próprias entranhas. “O mundo saído da Renascença e da Reforma se encontra falado desde essa época por energias possantes e verdadeiramente monstruosas, onde a mentira e a verdade se misturam intimamente e se alimentam uma da outra, verdades que mentem e mentiras que dizem a verdade”. (Humanisme Integral, pg. 7, Jacques Maritain, F. Aubier, 1936). O mundo moderno, pela cultura humanística dos séculos XV e XVI, precipitou o seu afastamento do Cristo. A única continua do mundo medieval, no Cristo, ele opôs a união continua, no mito humano. Ao Cristocentrismo ele opôs o antropocentrismo. Deixou o Cristo de ser a medida de todas as coisas, para se tornar o homem a medida de todas as coisas. Suprimiu o mundo moderno nas relações do Criador com a criatura, a mediação do Cristo. E, como ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e a quem o Filho quiser revelar”. (S. Matheus, 11, 25-90) – o mundo se lançou, pelas suas próprias mãos, nas trevas da obscuridade. Com a supressão do Cristo, processou-se uma redução no conteúdo de todos os valores do mundo moderno. O seu espiritualismo desceu ao nível de um vitalismo indefinido, vago; e o seu vitalismo a uma expressão mecanicista da Vida. Com a expulsão do Cristo, ficou o homem moderno incapaz de conhecer o próprio Deus, que passou a ser, para ele, uma voz, um vocábulo, um som, uma palavra, mas, sem conteúdo. Um contorno vazio. Uma ausência, que se reflete em todas as manifestações do seu gênio criador, inclusive nas expressões de seu idealismo, que, segundo Maritain, não resiste aos climas de violência, é um fermento sem gérmen, uma espécie de pão de amido, ou, como diríamos, nós mais a brasileira, alguma coisa de semelhante ao biscoito de polvilho. Muito vistoso. Muito crescido. Mas vazio. Sem resistência. Pronto a se partir, estrepitosamente, ao primeiro toque mais violento. Tal e qual todas essas formas do idealismo contemporâneo que se não baseiam na caridade, ao Amor, no Cristo. REPERCUSSÕES NA IGREJA Esse desfalque, entretanto, pecaminoso que o mundo moderno operou no conceito integral da vida repercutiu na conduta da Igreja. Como depositária da Verdade e preposta da ordem moral – sob a pressão do liberalismo luterano, do racionalismo e do laicismo, teve ela que retomar suas posições de defesa. Não se alheiou do curso da vida, mas, por uma contingência, perfeitamente explicável, teve que se esforçar a fundo, na defesa de seus dogmas e de suas divinas instituições. E, com tanto mais dificuldade, quanto é fácil compreender a dureza do coração do mundo que a atacava, e a quase impossibilidade dela se fazer compreendida por ele. Dutroncy, falando da angústia da Igreja, nestes últimos tempos, das suas, das deserções de que ela foi vitima, compara-a, carinhosa e lindamente, “a uma mãe, que perdeu vários de seus filhos num acidente... e, desde então, eis que ela resolveu erissar os seus muros, as suas barreiras de proteção e de defesa, para os lazeres livres dos que conseguiram sobreviver”. Essa legítima defesa necessária e inevitável da Igreja, entretanto, não deixou de ser um castigo, quase fatal, que o mundo moderno, inconscientemente, se aplicou. A inteligência humana, no-lo mostra Gilson, coroando toda a natureza criada, só é boba, quando, por ela e nela, a natureza toda se encaminha para o seu legítimo, que é Deus. Desde, porém, que ele se afaste de Deus, ele arrasta consigo, nesse movimento, também toda a natureza. Ora, a inteligência do mundo moderno, se erigindo em fim próprio, rebelando-se contra Cristo, seu fim e seu Rei, elaborou toda uma técnica da vida, destinada a reformar os homens, mas, completamente, à margem da Igreja, que passou a ser considerada um mero órgão da piedade universal. “Desde então, uma grande parte da atividade humana, várias gerações com a sua ciência, com as suas misérias e com as suas grandezas, se privou da encarnação do Verbo – a Igreja não deu sua alma a esse corpo que crescia e que devia como todo o valor humano, receber a comunicação do Espírito do Cristo, para se tornar, assim, seu Corpo e render glória a Deus”. (Congar, Conclusion Théologique á Penquête sur l’incroyance. La Via Intelectuelle, 25/7/1935). De um mundo em que o céu da consciência humana era iluminado pela fé, caímos num mundo em cujo céu interior só deveria brilhar a razão. E, como a razão não tem em si a faculdade de ligar ou desligar vontades, de ligar ou desligar consciências, o tecido nervoso e muscular do mundo moderno, deixou escapar, pelas suas malhas frouxas, quase que, totalmente, a soma de espiritualidade que lhe legou a concepção Cristocêntrica da vida. DEFICIT DA ENCARNAÇÃO Pois bem, foi constatando a grande desencarnação da fé católica, que Pio XI promulgou solenemente a festa de Cristo Rei, cuja significação social é restaurar o verdadeiro sentido da Igreja, o verdadeiro sentido da catolicidade. Embora não possamos confundir católicos e catolicismo, cristãos e cristianismo, fiéis e Igreja, certo é, porém, que, nos católicos, nos cristãos e nos fiéis, é que se deve manifestar a plenitude visível do catolicismo, do cristianismo, da Igreja, respectivamente. E essa plenitude de visibilidade humana, essa plenitude de realidade física da Igreja, será tanto mais completa, quanto mais exaltarmos a nossa personalidade – crendo firmemente, que, como o diz Clérissac, “cada um de nós é a Igreja e faz a Igreja, porque cada um de nós edifica o Corpo do Cristo”. Urgia que a Igreja voltasse a ser para nós a casa onde nós nascemos, onde nós crescemos e onde nós ressuscitamos na graça e pela graça – ao invés de ser, apenas, o santuário de nossas visitas periódicas, o asilo de nossas evasões esporádicas do mundo, alguma coisa de artificial na nossa vida, de aderido apenas à nossa existência. Aquela dicotomia social desastrosa que enferma a realidade cósmica, em cujo âmbito flutuam, como dois mundos estranhos: “Dum lado, o universo espiritual humano, abandonando exclusivamente à luz interior, à luz da razão, emancipado de todos os complexos históricos e dogmáticos do catolicismo e fazendo dessa autonomia e dessa liberdade, a substância mesma de seu céu-espiritual; do outro lado o universo espiritual cristão ligado ao aparelho tradicional da Igreja, como todo o seu regime de dogmatismo, de autoridade, de submissão...” (Congar, Conclusion Théologique á Penquête sur l’incroyance. La Via Intelectuelle, 25/7/1935). ... Fruto dessa divisão de ter o mundo moderno negado a realeza do Cristo, - precisava ser reintegrada, precisava ser mais uma vez denunciada ao mundo, sob a forma de um ato ardente de fé em Cristo Rei. Unir o universo intra ou extra Cristo, como diria Dutroncy: eis a trágica opção. Viver a fé segundo sua natureza, q ue é algo de total, algo de absoluto. Fazer da fé alguma coisa que nos invada e nos domine o ser, de tal forma que todas as nossas atividades, se modele, consoante a estruturação interior do conceito católico da vida. Restabelecer a harmonia entre a técnica moderna e a piedade. Eis em princípio o sentido social da festa de Cristo Rei. “Restaurar na sua plenitude os valores teológicos, fazer com que eles impregnem o pensamento do sábio que calcula ou que experimenta, com que eles forrem a razão do filósofo que medita, com que eles inflamem a imaginação criadora do artista, eis o que, nos diz Gilson, significa pôr a inteligência a serviço de Cristo Rei, pois, que isto é fazer com que o seu reino se realize auxiliando a natureza a renovar-se sob a ação fecundante de sua graça e na luz de sua verdade. Restaurar o prestígio da Cruz, como fundamentação única da moral, mas, como fundamentação única da moral, mas, da crua vivida, da cruz realidade, da cruz sacrifício, da cruz ascetismo, da cruz purificação, da cruz heroísmo – e não da cruz, metáfora literária, da cruz símbolo vazio, da cruz, que a mentalidade burguesa, na sua inconsciência sacrílega, lavra no ouro maciço, ao invés de lavrar no cerne da vida; na sua própria carne – eis o que significa pôr a nossa vontade a serviço do Cristo Rei. Restaurar o conceito da Cidade, que deve ser o meio natural, um meio propício à prática das virtudes, que precisa ser encarada como o complemente da ética, segundo Santo Tomás. E, conseqüentemente, reabilitar a idéia de Política, que precisa ser considerada, como alguma coisa de honesto e grave, na expressão de Leão XIII. Que precisa ser praticada como a mais difícil e árdua de todas as virtudes sociais, porque se aplica a conduzir a própria vida-social – que exige, para se deixar conduzir, um punhado de outras virtudes, tais como, “a experiência, o discernimento, a previdência, a capacidade de julgar, a retidão moral e o espírito de decisão”. Eis uma feição importantíssima do estabelecimento do reino de Cristo, da ordem, a cujo respeito Solovieff escreve estas linhas de ouro: “Um cristão, seja ele rei ou imperador, não pode ficar fora do reino fora do reino de Deus e opor seu poder ao de Deus. O mandamento supremo “Daí a Deus o que é de Deus” é, necessariamente, obrigatório para César também, se ele quiser ser cristão. Ele também tem que dar a Deus o que é de Deus, isto é, antes de tudo, o poder soberano e absoluto sobre a terra – porque para bem compreender a palavra sobre César, dirigida pelo Senhor a seus inimigos, antes de sua Paixão – precisamos completá-la com esta outra palavra mais solene, que, depois de sua Ressureição. Ele dirigiu a seus discípulos, aos representantes de sua Igreja: “Todo o poder me foi dado nos céus e sobre a Terra”... Se a palavra a propósito da moeda já tirou a César, a sua divindade, esta nova lhe tira a sua autocracia”. (Solovieff, La Russie et l’Eglise universelle, pgs. 74/76 cit. Maritain, Primauté du Spirituel, pg. 279). Eis o que significa aceitar o cetro de Cristo Rei, na ordem temporal, que tem que ficar nas mãos, principalmente, do poder civil, na pessoa de seus delegados e legítimos representantes. Não pode haver estado cristão, política cristã, alheios à ordem espiritual, alheios à catolicidade, ao espírito universal da Igreja, que deve incluir e superar todas as demais ordens. Tudo o que fugir daí, corre por conta do grande “déficit da encarnação” do Verbo na vida, de que é vítima infeliz o mundo moderno. CONCLUSÃO Ao terminar esta nossa rápida meditação sobre o sentido social da festa de Cristo Rei – que iniciamos com o nosso pensamento n’Ele, na pessoa de sua Voz Sensível, no tempo, que é S. S. o papa – fazemos questão de finalizá-la, na mesma atitude mental. Ora, o desejo máximo do coração do Santo Padre, na hora presente, é que não retardemos mais o processo, o trabalho de reencarnação do Verbo, na vida social. Mas, como a vida social não é um ser, como, erradamente, a supõem Durkheim e o neopositivismo sociológico, - e – sim – apenas, um modo de ser, - para iniciar o cumprimento do programa social que ele nos oferece, precisamos começar a realizá-lo em nós. É inútil pensarmos na transfiguração da vida, é inútil supormos que a humanidade vive o advento de uma nova idade, que caminhamos, para um modo novo de viver o cristianismo – se cada um de nós não se preocupar, seriamente, com a sua própria renovação. E eis-nos em face de uma realidade, quase inatingível para a mentalidade do filho legítimo do século XIX, que sugou o leite desnatado do nominalismo filosófico. Infelizes desses decrépitos ingênuos de pensamento, sejam eles, de fato, velhos ou mocos, porque serão sempre, os eternos desnutridos. Os que crêem, apenas, na realidade das palavras e que, com elas, querem salvar o mundo, descrêem do fato cristão, ou, pelo menos, vivem, como se nele não cressem, mas, nem por isso, deixam de falar no Cristo e na sua moral, como que oficiando, no templo do seu farisaísmo, o rito das fórmulas e o desprezo da sua essência. Pois bem, o anelo mais quente do coração do Santo Padre, neste momento, é apagar da face da terra esse catolicismo parcial. Ele aspira o livre curso das verdades dogmáticas, na entrosagem total da vida, como único meio eficiente de fazer com que o cristianismo seja mais do que um episódio histórico. É sua ânsia máxima que volte o fato cristão para a medula da vida, ao invés de se conformar com a sua posição na epiderme da vida. E, por isso, e, para isso, foi que, completando a doutrina de seus antecessores e ampliando-a – Pio XI lançou as bases da organização universal da Ação Católica, como alguma coisa de sobrenatural e que ele, “por assim dizer, canonicamente, definiu”, como a participação do laicato no apostolado da hierarquia. (Monsenhor Pizzardo). Nada mais justo, nada mais adequado, nada mais necessário, mesmo que seja o último movimento de nosso espírito, nesta noite, um movimento de adesão incondicional, um movimento de adesão até o sacrifício heróico de nossa vida, a Cristo Rei, na pessoa de seu Representante Visível, na terra, e cujo coração pulsa acabrunhado ao peso das responsabilidades tremendas da cristandade inteira, genuflexo, aos pés de Deus, no silêncio fecundo de sua alma – implorando, neste momento mesmo, para todos nós: “SENHOR, VENHA A NÓS O VOSSO REINO”. A Ordem, janeiro de 1937.