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Maria Cristina Ramalho A questão da transferência: a experiência psicanalítica Por meio de breves comentários sobre a entrada em cena, na psicanálise, do conceito de transferência, avaliaremos, no ponto de apoio da experiência de análise, a transfenomenologia do campo transferencial enquanto apresentação repetida de vividos infantis numa perspectiva acentuada de atualidade. > Palavras-chave: Psicanálise, transferência, repetição, temporalidade transfenomenal Depois, haverá outras transferências: amaremos, trabalharemos, “sublimaremos”. Em suma, nós nos sentiremos menos dominados e mais aptos a localizar as marcas de nossa servidão, e, assim, a responder ao velho desejo freudiano, mais capazes de diferenciar o presente do passado, isto é, de acolher o presente como um dom, mais do que como uma sobrevivência. Mas a transferência agida, experimentada na análise, produzida por ela, não se transfere. Inutilmente será esquecida, como o sonho, nos movimentos que a percorreram – sua escanção de queixas, prantos, ressentimento e prazer, seus altos e baixos – ela é inesquecível no acontecimento, no advento que ela foi. Tal é a sua força de atração. J.-B. Pontalis, A força de atração, p. 111-12 A evolução da prática clínica de Freud pode nos orientar no interesse de reencontrar a trama de conceitos psicanalíticos que ainda hoje guiam nossa prática. Essa construção de conceitos começa, curiosamente, numa época diretamente anterior à invenção da psicanálise. É que Freud não conseguiu, com seu trabalho no terreno da neurobiologia, responder às questões levantadas quanto à correspondência anátomo-clínica e começa a fazer algumas descobertas advindas do pulsional > revista de psicanálise > artigos > p. 23-31 ano XVI, n. 168, abr./2003 Through brief comments on the appearance of the concept of transference in psychoanalysis and on the support of psychoanalytical practice, this paper is intended as an evaluation of the transphenomenology of transference as a repeated presentation of childhood experiences from the present-day perspective. > Key words: Psychoanalysis, transference, repetition, transphenomenal temporality >23 artigos pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 168, abr./2003 >24 discurso dos pacientes e o que deles ele pôde ouvir graças aos progressos sustentados por seu próprio percurso pessoal. Essa “audaciosa complicação”1 impede a concepção da metapsicologia da técnica como a elaboração pura e simples da pesquisa de modelos conceituais distantes da prática clínica e o que ela impõe ao analista. Foi assim que Freud, ainda numa época dominada pela tradição anátomoclínica, e orientado por essa dificuldade epistemológica, vai junto a Charcot, Bernheim, Breuer e Janet, desenvolver uma paixão pelo “invisível”, já que apenas o “visível” não oferecia sustentação para o desvio que a cena histérica autenticava. O fato é que, ainda hoje, a medicina tem o interesse de exercer um domínio sobre a doença e uma vontade de compreender completamente as implicações psicopatológicas de certas perturbações e de exigir que toda observação crie um procedimento científico através da padronização e da classificação, basta pensar no efeito da ortodoxia da prática das neurociências e seu adestramento de idéias. Podemos, acompanhando Freud, avaliar o acompanhamento médico que à sua época era dispensado às histéricas: Com o rótulo de histeria pouco se altera, portanto, a situação do doente, enquanto que para o médico tudo se modifica. Pode-se observar que este se comporta para com o histérico de modo completamente diverso que para com o que sofre de uma doença orgânica. Nega-se a conceder ao primeiro o mesmo interesse que dá ao segundo, pois não obstante as aparências, o mal daquele é muito menos grave. Mas acresce outra circunstância: o médico que, por seus estudos, adquiriu tantos conhecimentos vedados aos leigos, pode formar uma idéia da etiologia das doenças e de suas lesões, como, por exemplo, nos casos de apoplexia ou de tumor cerebral, idéia que até certo ponto deve ser exata, pois lhe permite compreender os pormenores do quadro mórbido. Em face, porém, das particularidades dos fenômenos histéricos, todo o seu saber e todo o seu preparo em anatomia, fisiologia e patologia deixam-no desamparado. Não pode compreender a histeria, diante da qual se sente como um leigo, posição nada agradável a quem tenha em alta estima o próprio saber. Os histéricos ficam, assim, privados de sua simpatia. Ele os considera como transgressores das leis de sua ciência, tal como os crentes consideram os hereges: julga-os capazes de todo mal, acusaos de exagero e de simulação, e pune-os com lhes retirar seu interesse. (1910, p. 15) A vontade de fazer calar a doença fazia com que toda doença que a medicina não conseguisse acessar por meio de seu catálogo, por escapar àquilo que era cientificamente codificável, fosse cultivada por necessidade de pesquisa. Foi assim com Charcot, para quem os esforços iam na direção da precisão diagnóstica e da experimentação, fazendo com que a fala do histérico produzisse fontes de informação para a ciência mais o alienando dos efeitos de verdade que ela poderia produzir. O teatro da histeria se vê reduzido ao sintoma corporal, mas a fala que a dramatização produz não é levada em conta e a idealidade anátomo-clínica e seu instantâneo fotográfico vão dar su- 1> Fédida (1989) vai dispor desta nomenclatura adjetiva para comentar a metapsicologia da técnica como correlativa de uma metapsicologia dos processos psíquicos do analista durante o tratamento, enquanto implicação na atividade de pensamento metapsicológico do analista. Os impulsos inconscientes não desejam ser recordados da maneira pela qual o tratamento quer que o sejam, mas esforçam-se por reproduzir-se de acordo com a atemporalidade do inconsciente e sua capacidade de alucinação. Tal como acontece aos sonhos, o paciente encara os produtos do despertar de seus impulsos inconscientes como contemporâneos e reais; procura colocar suas paixões em ação sem levar em conta a situação real. O médico tenta compeli-lo a ajustar esses impulsos emocionais ao nexo do tratamento e da história de sua vida, a submetê-los à consideração intelectual e a compreendê-los à luz de seu valor psíquico. Esta luta entre o médico e o paciente, entre o intelecto e a vida pulsional, entre a compreensão e a procura da ação, é travada, quase exclusivamente, nos fenômenos da transferência. É nesse campo que a vitória tem de ser conquistada — vitória cuja expressão é a cura permanente da neurose. Não se discute que controlar os fenômenos da transferência representa para o psicanalista as maiores dificuldades; mas não se deve esquecer que são precisamente eles que nos prestam o inestimável serviço de tornar imediatos e manifes- artigos uma causalidade para o visível, mas aposta no paradoxo que permeia a ontogênese dos símbolos, símbolo como o que representa uma situação traumática e o fato de se livrar dela, símbolo como gênese do objeto e sua equivalência erótica e erógena. Foi só fazendo o percurso entre a anatomia e a sua representação imaginária inscrita na linguagem, que Freud pôde se aventurar numa outra via, uma via que privilegia esse “entre o somático e o psíquico”, “entre o visível e o invisível”. Para aquele que sofre em seu corpo e em seus pensamentos, o analista testemunha, pela sua presença, a intemporalidade e o caráter alucinatório do inconsciente: pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 168, abr./2003 porte aos procedimentos utilizados com o interesse de dar conta do visível e do descritível, do fenômeno. O visível será capturado pela exibição e repetição da cena traumatizante, objetivando uma verificação para fins didáticos e o discurso fica engessado à guisa de confissão, impossibilitando que a dimensão de verdade ganhe sentido através da aparência da “mentira”. Na medicina, o sintoma é apenas um sinal, uma mensagem enviada como alarme, tem valor indicativo e introdutório da patologia. Na psicanálise, ao contrário da medicina, o percurso inventado pela formação do sintoma tem peso. É como se fabricou este percurso que vai do conteúdo latente, “a verdade”, ao conteúdo manifesto, “a mentira”, essa trama psíquica com sua cadeia de representações, suas insistências e entrecruzamentos que vai mobilizar Freud. Já passados alguns anos, a escuta e a leitura de Freud vão se dispor ao invisível que sustenta o sintoma e tratá-lo, no caso da histeria, como nada mais do que os fantasmas inconscientes que, por “conversão”, encontraram uma forma figurada e, à medida que são sintomas somáticos, muito freqüentemente são emprestados ao domínio das mesmas sensações sexuais e das mesmas inervações motoras que, na origem, acompanharam o fantasma quando ele ainda era consciente. A concepção do sintoma, em psicanálise, vai sair do campo objetivo justamente quando ela não se limita a transpor uma causalidade orgânica para uma causalidade psíquica. A idéia de causalidade não tem lugar no pensamento psicanalítico e só está vencida quando se dispõe a trilhar um percurso que não reconhece um destino único, explicativo e >25 tos os impulsos eróticos ocultos e esquecidos do paciente. Pois, quando tudo está dito e feito, é impossível destruir alguém in absentia ou in effligie. (1912, p. 143) Podemos perceber a clareza com que Freud apresenta aqui o fenômeno da transferência como sendo, sem nenhuma ambigüidade, a continuidade do sonho, e possibilitando vivenciar o mesmo presente real que faz com que o sonhador dê crédito ao que vive no sonho, com a diferença que aqui o sonhador está acordado. “A situação analítica pode ser descrita como um lugar, caso estejamos de acordo para reconhecer-lhe uma organização cênica cujo paradigma é o sonho” (Fédida, 1991). Vai ser, portanto, tomando a situação analítica como um lugar, um sítio, onde a inquietante estranheza emerge na “transparência e na trans-sonância” do invisível, que a transferência vai se ocupar de um lugar de desterritoriolização e de um tempo entre o passado e o futuro, o tempo do acontecimento, e pela mobilização e a reanimação da vida psíquica abre possibilidades de irrupção do inesperado, do desesperado. imagens do nomadismo pela via da apresentação de dois aspectos que se sobressaem no estilo e nas formas de arte nômades: “... o ideal fundamental, segundo o qual toda vida, experiência e existência não têm limites e fronteiras” e “a idéia básica de não se glorificar um desempenho em termos de territórios e de recursos” (p. 174 ). O nomadismo serve de referência às experiências fragmentadas e descontinuadas, que pressupõem uma estética de vida errante onde as flutuações de forma e conteúdo lhe dão passe livre nessa viagem sem contornos estanques. Citando Deleuze e Guattari (1983, 1987) ele os apresenta como “sido particularmente influentes neste contexto, não apenas sobre a sua discussão sobre o ‘pensamento nômade’ e a ‘arte nômade’, mas graças também a sua crítica geral sobre as categorias e as identidades fixas e sua celebração de um retorno às formas précognitivas da experiência e seu conceito de fluxos”. Ele acrescenta também que a valorização dessa perspectiva da experiência nômade como constitutiva da subjetividade se apresenta desde o século XVIII e sua valorização faz referências a ideais estéticos de movimento. pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 168, abr./2003 Transferência e Temporalidade >26 Na situação psicanalítica nossa navegação no tempo toma aspectos inusitados, tudo parece um rodamoinho. A direção e a espessura do tempo se evaporam, como se a memória pudesse sofrer um aplainamento no tempo e no espaço. Esse “modo de navegação”, em que a complexidade e a fluidez tomam assento, engendra referenciais onde as metáforas de nomadismo apresentam-se como características da condição da situação analítica. Featherstone (1997) vai perspectivar as A Temporalidade Transfenomenal Nosso interesse é apresentar uma forma de compreensão da transferência através de uma temporalidade em que esses ideais estéticos de movimento são sua gênese. Vamos chamar a essa temporalidade de transfenomenal. A temporalidade transfenomenal é essa temporalidade onde a dinâmica da transferência é pensada para além dos fatos, pela via dos acontecimentos. Para falar de acontecimento será necessário, por oposição, falar de fatos. Podemos Esta necessidade de apreender aquilo que, de uma certa maneira já se sabe, pode evocar o que diz Proust do modo como “conheceu” a morte de sua avó, quando um detalhe familiar e surgido de improviso (o fato de inclinar-se sobre as botinas) acabava de restituir qualquer coisa de sua presença: “Foi nesse instante exato por causa deste anacronismo que tão freqüentemente impede o calendário dos fatos de coincidir com o dos sentimentos – que eu acabava de saber que ela estava morta (…) que eu a havia perdido para sempre. Neste exemplo proustiano podemos nos dar conta de que não é só de uma realidade perceptiva que se trata aqui, mas para além da visão das botinas é com ela e por meio dela que se produz na realida- de psíquica esse processo de subjetivação ancorado na temporalidade transfenomenal, “este desatamento da alma em retorno: constitui o atrás como uma potência de linguagem em cuja presença a fala se relembra vendo voltar a ação do acontecimento ‘esquecido’” (Fédida, 1996, p. 84).2 Entre o passado e o futuro A dinâmica transferencial pensada pela via de uma temporalidade transfenomenal vai se fazer através de movimentos, no espaço e no tempo, que vão tecer a trama dessa história. Esses movimentos obrigam o sujeito a tecer e a(o) destecer a trama dessa história, num incessante impacto de tradução de fatos em acontecimentos, e oferecem continuamente ao presente a possibilidade de um encontro com o passado e a abertura de um futuro não implicados com um determinismo temporal impeditivo de transformações, mas retirado das aparências ou com as aparências enquanto tais – “nem com a figura nem com a posição” como estão dadas aos nossos sentidos –, mas apenas com as aparências enquanto afetam nosso “estado interno” no qual determina “a relação das representações, relações pelas quais tornamos presente o que fenomenicamente está ausente. Aqui nem o passado determina o presente e este determina o futuro e nem só no futuro se decide e se constrói o destino do passado. Nas óticas deterministas de temporalidade o tempo presente é empobrecido: de um ponto de vista ele nada mais é do 2> Podemos acompanhar Fédida mais profundamente neste texto, onde ele faz uma leitura de H. Maldiney desse tempo implicado que é o tempo da transferência, onde a anacronia dos fatos reverbera a presença do ausente e a ausência da presença. pulsional > revista de psicanálise > ano XVI, n. 168, abr./2003 distinguir o tempo em vários níveis, quais sejam: o tempo dos processos físicos (tempo cósmico), o tempo dos processos biológicos (tempo das vivências) e o tempo da história das coletividades. Esses tempos são factuais na medida em que se apresentam ao sujeito como uma vivência, é o tempo do modo de funcionamento dos aparelhos perceptivos, que impõe uma temporalidade baseada no ritmo do contato com o chamado do mundo exterior. O tempo da existência é um tempo que se faz acontecimento para o sujeito, acontecimento como potência de ação do tempo, em que o fato é admitido ao processo existencial de temporalização. Schneider (1993, p. 99), para nos falar com clareza do processo de “admitir, reconhecer, adotar em si” (Annaηme), recorre a Proust: >27 que decorrência do passado e nele nada de inesperado pode acontecer, e do outro modo é o futuro que decide o sentido do passado, que é o presente hoje e que, portanto, se encontra também aprisionado nessa rotina referencial. O Tempo da Agoridade Ele tem dois antagonistas: o primeiro empurra-o para trás a partir da origem. O segundo veda o caminho à frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro lhe dá apoio na luta contra o segundo, pois ele quer empurrá-lo para frente; e, da mesma forma, o segundo apóia-o na luta contra o primeiro, pois ele empurra-o para trás. Mas isso é assim apenas teoricamente. Pois não somente os dois antagonistas que estão lá, mas também ele; e quem conhece realmente suas intenções? Todavia, o seu sonho é que num momento de desatenção – e isto, é preciso admitir, exigiria uma noite tão escura como nenhuma já foi – ele pulasse para fora da linha de batalha e, graças a sua experiência em lutar, fosse promovido à posição de árbitro na luta de seus adversários entre si. pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XVI, n. 168, abr./2003 Kafka, coleção de aforismos: Ele >28 É no nomadismo do tempo presente com a possibilidade de irrupção do inesperado e do desesperado (cf. Comte-Sponville, 2001, p. 120-8) , do surpreendente que se anuncia o acontecimento. O acontecimento é o tempo do aqui e agora embalado por essa estética nômade que o levaria do presente, presente sempre a exigir e sofrer traduções, ao passado e ao futuro. O acontecimento é o hoje fazendo história e neste processo mudando, transformando a rota da temporalização, é a conjunção de um tempo estático e de um tempo dinâmico aceitando essa nomadização paradoxal de constante e fecun- da reversibilidade. O acontecimento se expressa na nomadização temporal, nesse percurso onde a coexistência do passado pela memória, e do futuro por um projeto se atualizam num agora onde descontinuidades e diferenças não são descartadas. Podemos pensar a trajetória temporal transfenomenal como o tempo da agoridade (cf. Ramalho, 1998), uma construção a partir desse interjogo de retrospecção através da memória (passado) e de prospecção através do projeto (futuro). O tempo da agoridade tira de cena o determinismo e impõe a construção livre do sentido dos enigmas que se oferecem a traduções e retraduções incessantes. Figueiredo (1996) retoma a noção de “transpassibilidade” da obra do filósofo H. Maldiney como sendo a passibilidade – o que é passível ao inesperado, ao inacreditável, ao surpreendente –, o motor do acontecimento. Ele acrescenta que as noções de acontecimento e de transpassibilidade é que vão dar o suporte a um presente onde algo de crítico e decisivo, fora da trama tecida pelas representações e pelas rotinas, possa emergir. Este tempo referenciado por nós como tempo da agoridade, é um tempo processando perdas e ganhos, inputs e outputs, memórias e projetos, momento de um processo de dar sentido, mesmo que imperfeitamente, visto que as traduções se sucedem ao acontecimento. O acontecimento – Interjogo na transferência Na fantasia infantil, é sem dúvida o estrangeiro que desempenha, por excelência, o papel de sedutor. O adulto, ou melhor, o mundo adulto é um mundo es- de, estaria fundada neste tempo transfenomenal, que inaugura a agoridade. A subjetividade se faria na posteridade desses encontros com o enigma de si mesmo e da estranheza do outro. Esses encontros desvelam partes não traduzidas e mesmo intraduzíveis de si mesmo e do outro e essa estrangeiridade que emerge sofrerá expressivo e expansivo trabalho obrigando o sujeito a uma contínua tradução. Ferenczi (1919-1926), “O problema da afirmação do desprazer”, nos oferece uma importante contribuição. Neste artigo, ele apresenta a construção de si mesmo e, do outro, como um percurso entre o sentimento de onipotência e a afirmação do desprazer, onde os “progressos no conhecimento do sentido de realidade”3 se fazem pela via da representação de objeto. A assunção da representação de objeto se materializa após sucessivas experiências de prazer e desprazer, pelo reconhecimento do amor e do ódio, pelo reconhecimento de si mesmo e do outro, pelo reconhecimento do estrangeiro em si e no outro, pelo desintrincamento pulsional de que nos fala Ferenczi, ou seja, é o desprazer que “cria” o objeto e sua representação. Vai ser neste instável equilíbrio, nesta ambivalência, com esta “espécie de máquina de calcular cuja existência nos põe diante de novos enigmas” que amorosidade e hostilidade, como um par de oposição e de complementaridade, oferecem uma temporalidade capaz de gerar o desintrincamento pulsional e, por conseqüência, a assunção do objeto e o que ela oferece de estranheza e proximidade. Fe- 3> Ferenczi no artigo citado apõe este subtítulo “Progressos no conhecimento do sentido de realidade” fazendo crer que é o desprazer que vai promover a distinção entre o sujeito e o meio circundante, entre o sujeito e o outro. pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XVI, n. 168, abr./2003 trangeiro para a criança, um mundo de onde pipocam chamados, sugestões e invasões. A quantidade e qualidade dessa invasão na economia psíquica infantil “causa impressão e desaparece, levando consigo o desejo que capturou. A ambigüidade de sua aparência faz com que ele tome corpo no sonho e se esvaneça ao despertar, mas alimentando uma expectativa de volta. Que a análise proporcione uma reprodução imaginária de uma tal cena não deve ser motivo de surpresa, tão florescente foi a vida amorosa em seus inícios, tendo ela também perecido tão precocemente em uma terrível catástrofe” (Fédida, 1991, p. 59). Ferenczi (1933) em “Confusão de língua entre os adultos e a criança” nos fala da “hipocrisia” presente no relacionamento da criança com o adulto e a aproxima da relação entre o paciente e o analista, enfatizando que é a alteridade de si mesmo, do adulto e do analista, que propõe essa “hipocrisia”, esse saber que não se sabe, esse enigma de si mesmo do adulto, do analista, que derrota as capacidades e recursos simbólicos da criança e promove, nesse movimento, processos de construção de subjetividade e de alteridade. O olhar ferencziano sobre a constituição subjetiva inclui esse outro adulto também enigmático para si mesmo, que se encontra com seus próprios enigmas a decifrar, num eterno trabalho de tradução e retradução, posto que sempre precárias e vulneráveis. A gênese da construção da subjetividade estaria fundada na emergência simultânea de si e da alterida- >29 renczi (1919-1926, p. 397) assim apresenta a percepção de objeto: As coisas que nos amam sempre, ou seja, que satisfazem constantemente todos os nossos desejos, não tomamos conhecimento delas como tais, incluímo-las simplesmente em nosso ego subjetivo; as coisas que nos são e sempre nos foram hostis, recalcamo-las simplesmente; quanto às coisas que não estão incondicionalmente a nossa disposição, aquelas de que gostamos porque nos dão satisfação e que detestamos porque não nos obedecem em tudo, criamos para elas marcas particulares em nossa vida psíquica, traços mnêmicos aos quais se liga um caráter de objetividade, e rejubilamo-nos quando as reencontramos na realidade, ou seja, quando podemos amá-las de novo. E quando odiamos um objeto e não conseguimos recalcá-lo suficientemente para poder negá-lo de maneira duradoura, o reconhecimento de sua existência prova que, na realidade, gostaríamos de amá-lo e só a “maldade do objeto” nos impede disso. pulsional > revista de psicanálise > artigos ano XVI, n. 168, abr./2003 O Sítio do Estrangeiro >30 O estranho pode ocupar um espaço potencial no “próprio lugar onde as pulsões oscilam numa inscrição psíquica” bastando, para tanto, que como complementaridade ou oposição ele marque presença no sujeito e no outro e sem indiferenciação, repúdio ou distância possamos nos aproximar dele e promover um trabalho de tradução, retradução e detradução sempre incômodas porque referidas a uma estética nômade, não fixadas e sempre móveis no tempo da agoridade e que “leva a uma organização psíquica simbólica”. Gagnebin (1994), referindo-se à teoria da narração e da historiografia em Benjamin nas teses “Sobre o conceito de história”, apela para o que chama de “rup- turas eficazes” onde as cesuras que quebram com a narração não são apenas e simplesmente as marcas da desorientação moderna ou o fim de uma visão universal coerente, mas são, também, os indícios de uma ruptura mais essencial da qual pode emergir uma outra história, uma outra verdade e da qual podem nascer outras histórias, outras verdades. Por essa perspectiva gostaríamos de fazer uma aproximação deste pensamento benjaminiano com o tempo da agoridade onde a temporalidade da transferência obedece a essa “ruptura eficaz” por essa falha da irrupção, no presente, de um processo de significação inédito. O tempo da agoridade ou o tempo do acontecimento deixam transparecer neste ineditismo da significação uma crítica a uma causalidade determinista. Este processo opera decisões singulares proporcionadas pelos encontros do sujeito com a oposição e a complementaridade do outro e de si mesmo e sua potência de interrogação. O sítio do estrangeiro é, portanto, esse lugar paradoxal onde a ambivalência se expressa pela oposição e complementaridade com que se defronta/confronta o sujeito pela alteridade e pela diferença com a possibilidade de, afastado de ambições universalistas, dar vida a estas “rupturas eficazes”, a essas intensidades e interrogações perturbadoras, advindas de uma implicação audaciosa nossa, como psicanalistas, essa ousadia de um saber que não se sabe. Referências COMTE-SPONVILLE, A. A felicidade, desesperadamente. São Paulo: Martins Fontes, 2001. F EATHERSTONE , M. O desmanche da cultura: globalização, pós-modernismo e identidade. São Paulo: Nobel, 1997. 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