Tradução, divulgação científica e Terminologia – um ensaio
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Tradução, divulgação científica e Terminologia – um ensaio
Tradução, divulgação científica e Terminologia – um ensaio exploratório Maria Teresa Santos* Artigo recebido em: 02/10/2012 Aceito em: 29/11/2012 Resumo: A crescente perspectiva de investimento em pesquisas, assim como a intensificação das trocas não apenas comerciais de bens e serviços, mas intelectuais - de conhecimento científico, metodologias e técnicas de pesquisa – entre países, tem impulsionado a produção de textos especializados repletos de terminologias. Por circularem entre comunidades linguísticas com diferentes idiomas, frequentemente demandam tradução. Os tradutores, por sua vez, diante da especialidade dos textos com que se deparam, necessitam não apenas de proficiência nos idiomas envolvidos, mas consciência do conjunto de variáveis extralinguísticas incidentes sobre a tradução desses textos. Nesta perspectiva, o estudo que segue tem como fim problematizar a tradução de textos de divulgação científica considerando a terminologia e suas contribuições no que diz respeito a linguagens de especialidade e banalização. Palavras-chave: Tradução. Terminologia. Divulgação científica. Translation, scientific dissemination and Terminology: an exploratory paper Abstract: Increasing investments in research and the intensification of exchange of knowledge, methodologies and research techniques among countries have boosted the production of specialized texts full of terminologies. Because these texts move around communities of distinct languages, translation is often required. Translators, for their turn, when facing specialized texts are required not only proficiency in the languages involved, they also need to be conscious of the extralinguistic issues that affect their translations. Under this perspective, the present study aims at discussing the translation of scientific dissemination texts focusing on terminology and its contribution to the matter of specialized languages and banalization. Keywords: Translation. Terminology. Scientific dissemination. * UnB, [email protected] In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.24‐38, jul./dic., 2012. 24 Bem difundido entre os estudiosos da comunicação está o reconhecimento de que a linguagem é a única instituição social sem a qual nenhuma outra [instituição social] pode existir. É por meio da linguagem que nos percebemos integrantes de uma cultura e reconhecemos, no Outro, traços e necessidades comuns a desencadear-nos identificação, noção de pertencimento. É especialmente por meio do léxico e de suas articulações (flexões de gênero, número, grau, tempos/modos verbais), que, enquanto humanos, nos situamos no mundo e respondemos a ele. É ainda através dos recursos expressivos da linguagem verbal que distintas comunidades, afastadas entre si cultural, temporal e espacialmente, entram em contato com as mais variadas descobertas e inovações provindas da racionalidade humana. A necessidade de saber do homem aliada à busca por melhorias em suas condições de vida possibilitou descobertas que, a fim de serem devidamente exploradas e categorizadas, necessitavam ser nomeadas. Especialmente a partir do século XX, com os crescentes esforços no sentido de delimitação dos campos do saber e de seus objetos de análise, e ainda com o aprimoramento dos métodos de pesquisa científica, fez-se evidente a necessidade de estruturação sistemática dos recursos expressivos pertencentes às mais diversas áreas do saber humano. O anseio pela estruturação de unidades lexicais menos suscetíveis a incompreensões ocasionadas por lacunas socioculturais e contextuais motivou, desta forma, a consolidação da disciplina Terminologia, cujos esforços referem-se principalmente ao processo de nomear conceitos e objetos pertencentes a áreas especializadas de estudo. Cabré, esclarecendo o objeto de estudo da Terminologia, ensina: A terminologia é, antes de tudo, um estudo do conceito e dos sistemas conceituais que descrevem cada matéria especializada; o trabalho terminológico consiste em representar esse campo conceitual e estabelecer as denominações precisas que garantirão uma comunicação profissional rigorosa.i (1993, p. 52, tradução minha) Esse trabalho terminológico que mira uma comunicação mais precisa entre campos especializados do saber está associado ao tratamento das chamadas linguagens de especialidade. Linguagem e não língua pelo fato de o inventário lexical especializado estar In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.24‐38, jul./dic., 2012. 25 compreendido no - e vinculado ao - inventário da língua geral, compartilhada pelo grupo de indivíduos falantes de uma língua, não constituindo, pois, uma língua a parte. Convém salientar que o conceito de linguagem de especialidade não dialoga com o de língua artificial. Enquanto o primeiro encontra-se inserido no domínio da língua geral, estando a esta subordinado, ainda que com características e especificidades próprias que diferenciam termos de palavras, no caso das línguas artificiais, estas são constituídas por uma estrutura sistemática desvinculada de uma língua geral específica – a título de exemplo temos as linguagens de programação que, na informática, possibilitam a comunicação entre software e hardware. As linguagens de especialidade refletem, assim, os esforços em direção à otimização da comunicação por meio de uma linguagem que melhor atenda à necessidade de representação, sistematização e transmissão do saber especializado. Ainda segundo Cabré: O uso de repertórios terminológicos sistematizados ou harmonizados – por meio da Terminologia – contribui para tornar mais eficaz a comunicação entre especialistas, comunicação essa que se propõe, acima de tudo, a ser concisa, precisa e adequada. (1996 apud ALMEIDA et al., 2003, p.01) Tal ideal de comunicação persegue o princípio de que um termo, considerando o contexto específico X, deve vincular-se a um único conceito, evitando-se equívocos oriundos da polissemia da língua geral. Ainda que críticas direcionadas a essa hipótese de estabilidade semântica - um termo para um conceito – sejam pertinentes, elas não parecem reduzir a importância da Terminologia e as contribuições de sua ocupação. Na verdade, após o reconhecimento das incongruências presentes na Teoria Geral da Terminologia (TGT), com as reflexões propostas por Maria Teresa Cabré (1993) e a ascensão da Teoria Comunicativa da Terminologia (TCT) e da Socioterminologia, que põe em relevância a questão das variações e da instabilidade dos termos e conceitos, o objetivo da disciplina desvinculou-se do postulado normativo de um para um, que trata os termos como unidades estanques, e direcionou-se à valorização dos aspectos linguísticos, sociais e cognitivos relacionados ao tratamento das terminologias. Observa-se o rompimento com a busca por uma sistematização rígida e fechada, e, reconhecendo a dinamicidade das línguas e da própria sociedade que as consagra, preza-se uma abordagem descritiva que, longe de desconsiderar as normas e tentativas de In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.24‐38, jul./dic., 2012. 26 padronização, percebe-as como sistematizações auxiliares e por si mesmas suscetíveis a transformações. Dissertar sobre a relevância dos estudos terminológicos para as diversas disciplinas que deles se beneficiam é, de certa maneira, um metadiscurso, é argumentar sobre os benefícios da terminologia tendo a própria argumentação como comprovação de tais benefícios. As linguagens de especialidade permeiam os mais diversos campos do saber, sem distinção quanto à complexidade e/ou tecnicidade da área, porém com diferenciações quanto ao grau de especialização. Estudos terminológicos aplicam-se a desde manuais explicativos sobre motores de avião, passando por disciplinas das ciências agrárias, humanas, jurídicas, religiosas, e chegando ao inventário de termos que compreendem receitas culinárias, horóscopos, folclore e esportes. Enquanto disciplina cujo objeto de estudo é, de maneira geral, a linguagem humana e a problemática a ela relacionada, faz-se possível reconhecer o diálogo entre Terminologia e Tradução. Da mesma forma como aquela lida com a linguagem em contextos especializados, a tradução, da mesma forma, não se encontra desvinculada do conceito de especialidade. Se para os terminólogos o objetivo, entre outros, é otimizar a transmissão dos mais variados saberes especializados - tendo em vista obstáculos como variedades linguísticas, diferenças socioculturais e econômicas, política, ideologia e ainda normas (impostas ou socialmente difundidas) -, para os tradutores, os desafios são coincidentes. É possível alegar que a prática da tradução não se resume a textos especializados, enquanto que o objeto da terminologia seja necessariamente a linguagem especializada. Entretanto, ainda que abordando o conceito de especialidade segundo uma nova perspectiva e julgando pela especificidade que cada texto a ser traduzido/vertido apresenta – gênero, funcionalidade ou skopos, peculiaridades socioculturais, espaciais e mesmo linguísticas, além de todos os obstáculos referidos no parágrafo anterior – a tradução não se encontra desassociada do conceito de especialidade. Ademais, o volume preponderante de textos a demandarem tradução/versão compreende produções intelectuais oriundas das mais diversas áreas científicas e técnicas: contratos jurídicos internacionais, documentos, manuais de instrução, bulas, rótulos de produtos, textos normativos, além de bibliografias, artigos, dissertações e teses de áreas In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.24‐38, jul./dic., 2012. 27 especializadas, assim como textos de divulgação científica. Todas essas tipologias textuais são constituídas por termos cuja tradução não está unicamente subordinada à dimensão linguística, mas também à esfera sociocultural que tanto influencia quanto é influenciada pela língua. Neste sentido, Camargo, analisando a tradução de terminologias da área médica oferece-nos exemplos de como cada sociedade concebe a realidade sob diferentes ângulos e, naturalmente, utilizando línguas e associações semióticas diferentes: Apesar dos esforços para uma sistematização da nomenclatura anatômica, esta passou por uma fase caótica, visto que estruturas idênticas eram descobertas e descritas em diferentes idiomas. Como exemplo do problema surgido não apenas para os médicos, mas também para os tradutores, Paiva (2006) cita o termo ‘epífase’ ou ‘corpo pineal’, que chegou a apresentar, em três idiomas ocidentais (francês, inglês e alemão), mais de cinqüenta sinônimos. ( 2006, p. 59) Ainda segundo consta na pesquisa de Camargo (2006), o anseio por padronização dos termos da anatomia tornou-se mais concreto apenas em 1950 quando, em Oxford, foi criada a Comissão Internacional de Nomenclatura Anatômica. Esta, perseguindo uma postura prescritiva, estipulou princípios a serem obedecidos com relação à denominação de conceitos. Embora este recorte diga respeito ao processo de normatização da linguagem da anatomia, a ele subjaz uma dificuldade incidente não apenas sobre este campo de estudo. Aplicada às diversas áreas do saber está a problemática de que cada grupo social - em específico os falantes de diferentes idiomas - cria recortes diferentes da realidade, oriundos de associações semióticas diversas. Em face da grande quantidade de tipologias textuais objeto de tradução e de análise terminológica, impõe-se, a este artigo, a necessidade de fazer um recorte, colocando o enfoque em um determinado tipo de texto a fim de melhor desenvolver o tema. Neste estudo, abordarei em específico os textos de divulgação científica. 1. A divulgação científica O reconhecimento da importância de se investir em educação e em pesquisas a fim de se agregar valor aos produtos comercializados em mercado global – desvinculando-se do In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.24‐38, jul./dic., 2012. 28 perfil de meros exportadores de commodities - tem motivado governos de países emergentes a investirem tanto na produção quanto no intercâmbio de novos conhecimentos e técnicas. Parcerias entre universidades internacionais e estímulo ao contato entre docentes, discentes e pesquisadores parece ser, hoje, a estratégia preponderante. Segundo Camargo: Profissionais brasileiros têm contribuído amplamente para o desenvolvimento das diversas áreas técnicas e científicas por meio de pesquisas realizadas em nosso país e no exterior. Esse fato pode ser constatado pelo aumento de publicações de revistas nacionais especializadas em diferentes campos da Engenharia, Informática, Medicina, etc. (2006, p. 56) Leite apesar de hoje estar com dados ultrapassados, em 2001 já alertava sobre o progresso da ciência brasileira e sua divulgação: Segundo dados do Livro Verde do MCT, o Brasil ocupa o décimo sétimo lugar no mundo em números de trabalhos científicos aceitos por publicações indexadas, com 12333 artigos no ano 2000 (dados do Institute for Scientific Information – ISI). Isso representa um acréscimo de mais de 400% em relação a 1981, contra uma média de crescimento mundial da ordem de 90%. (2001, s/p) Todavia, nem todos os interessados nos temas abordados podem ler os textos originalmente escritos em português, assim como publicações em língua estrangeira nem sempre são de fácil acesso a não falantes do idioma. Diante de tal limitação, a tradução mostra-se imprescindível para a divulgação desses estudos. Não bastasse a barreira linguística, relacionada à diferença de idiomas, há um obstáculo igualmente relevante para a tradução e a divulgação científica: a questão da acessibilidade dos textos ao público não especialista no assunto e a estratégia de banalização. Antes, porém, de introduzir a problemática da banalização, convém esclarecer o conceito de divulgação científica. Bueno (1985), em sua tese de doutorado situa difusão científica como um gênero que se desdobra nas espécies: divulgação científica, disseminação científica e jornalismo científico. A difusão, assumida de maneira abrangente, diz respeito ao compartilhamento de informações científicas e tecnológicas através dos mais diversos recursos e estratégias. Os subgêneros deste conceito maior são delimitados e caracterizados conforme o público ao qual In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.24‐38, jul./dic., 2012. 29 essa difusão se destina: a especialistas ou a um público geral. Enquanto a disseminação científica tem como público os especialistas e, como exemplo, os comunicados e trabalhos apresentados em congressos e reuniões científicas, a divulgação científica visa a uma maior abrangência e tem como destinadores também o público não especialista nas áreas abordadas. Sua prática geralmente é intermediada por jornalistas. Ainda sobre o subgênero divulgação científica, este é dirigido para fora do seu contexto originário – a comunidade científica – mobilizando diferentes recursos, técnicas e processos para a veiculação das informações científicas e tecnológicas ao público em geral. Isso se dá especialmente através de revistas consideradas científicas e se relaciona com outro domínio social, o jornalismo. O discurso de disseminação científica, produzido por uma comunidade de especialistas que tem por objetivo atingir seus pares possui, assim, características distintas em relação aos textos de divulgação científica. Enquanto o discurso científico circula primordialmente nas academias e institutos de pesquisa e segue uma metodologia que visa a formar profissionais e/ou pesquisadores, a divulgação científica – como é o caso das revistas - não se propõe necessariamente a formar especialistas, mas a partilhar saberes e despertar interesses. Disso resulta-se que a diferença entre os dois universos discursivos não se resume ao amplo emprego de terminologias por parte do discurso científico ou à recorrência à banalização, considerando textos de divulgação científica. O recorte do fato a ser tratado ocorre de distintas maneiras. Tomando a área médica como exemplo, no caso da divulgação científica, Moirand ensina: As descobertas médicas não são realmente explicadas, antes se explicam suas consequências positivas sobre a saúde (preservação do corpo); aos especialistas de catástrofes, a mídia demanda não tanto explicar o fenômeno, mas sua opinião sobre a previsão ou conselhos sobre a construção de prédios (preservação dos bens); não são os mecanismos internos das novas tecnologias que são expostos, mas a imagem da modernidade que confere sua utilização. (2000, p.21) Também Santos reafirma: “O que há na mídia é o alheamento ao fazer científico. Ela apresenta resultados como produtos acabados, sem expor os processos que levaram a eles.” (2007, p. 39). In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.24‐38, jul./dic., 2012. 30 Não é possível, no entanto, afirmar que toda e qualquer revista com fins de divulgação científica siga o mesmo modelo de abordagem. Dois exemplos são a revista Superinteressante, publicada pela Editora Abril, e a Scientific American Brasil, veiculada pela Duetto Editorial a partir de traduções da Scientific American escrita em inglês americano. Enquanto a Superinteressante prioriza um jornalismo que não tanto explique o fenômeno e suas propriedades, mas os impactos destes sobre a vida do cidadão comum – recorrendo à estratégia de banalização da linguagem -, a Scientific American Brasil inclina-se a discutir o fenômeno, suas propriedades e a problemática imposta com maior rigor científico. O público da Scientific certamente é mais filtrado, porém os textos não se direcionam exclusivamente a especialistas. Em ambos os casos ocorre o tratamento da linguagem, que nem deve ser simplória a ponto de trazer descrédito ao leitor mais rigoroso, gerando-lhe a impressão de que nada ali há para acrescentá-lo, e nem deve, por outro lado, ser especializada e seletiva a ponto de excluir do público não especialista a possibilidade de leitura e interação. Fica claro, deste modo, que a adequação ao saber já compartilhado pelo público leigo impõe-se como condição necessária ao objetivo de divulgação do conhecimento científico. Se o contato com a novidade não for viabilizado por meio de um discurso minimamente acessível, com os devidos acréscimos explicativos e uso de recursos que acionem o repertório lexical já familiar ao leitor, intercalando entre o novo e o já conhecido, não será possível cumprir os propósitos da divulgação científica que, como defendido por seus idealizadores, referem-se à democratização do conhecimento científico. É neste momento que a estratégia de banalização mostra-se pertinente. 2. A Banalização A explicação de Cabré sobre a questão da banalização possibilita uma introdução clara sobre o conceito: Quando explicamos detalhes de nosso trabalho a amigos de profissões diferentes, quando explicamos a um advogado um assunto patrimonial, quando comentamos sobre a partida de futebol no domingo, entre outros, “banalizamos” a terminologia de cada área. Os meios de comunicação de massa contribuem especialmente para a banalização da terminologia especializada.ii (1993, p.136, tradução minha) In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.24‐38, jul./dic., 2012. 31 Também Barbosa, tendo em vista o discurso técnico-científico e as dificuldades de comunicação entre indivíduos com diferentes graus de formação, discorre sobre o conceito de banalização. Este, segundo ela, refere-se ao: [...] processo de transcodificação que, a partir da linguagem técnicocientífica, procura tornar compreensíveis aos não especialistas de uma área mas por ela interessados os significados e os valores específicos do universo de discurso em causa. Trata-se de uma metalinguagem mais acessível, que ainda remete para o universo de experiência técnico-científico. (2002, s/p) Sobre o processo de transcodificação, este se refere à explicação de uma linguagem primeira – a técnico-científica/especializada – por uma linguagem segunda – a banalizada -. Para tornar compreensível uma linguagem de especialidade é necessário, portanto, utilizar um léxico adequado, que represente a via de acesso a um universo de discurso especializado. Neste sentido, Barbosa (2002, s/p) esclarece que: [...] o desenvolvimento de mecanismos que permitam estabelecer relações entre vocábulos da linguagem banalizada e termos técnico-científicos revela-se muito eficaz para a comunicação entre o leigo e o especialista e como instrumento - para o aluno ou iniciante - de acesso a um novo universo de discurso, sem que este lhe pareça uma linguagem artificial e completamente desvinculada do seu saber anterior. Dentre os citados mecanismos de otimização da compreensão está não somente a substituição de termos por palavras da língua comum, mas estratégias como definição de termos provavelmente desconhecidos, utilização de paráfrase, exemplos, explicitações, etc. Barbosa (2002, s/p) assim, reitera que a banalização: [...] compreende também certas operações como intertextualidade, paráfrase, estabelecimento de equivalências entre estruturas semânticolexicais de universos de discurso diversos, dos quais resulta, também um metatexto explicativo. A consciência de todas essas implicações incidentes sobre as linguagens de especialidade e, no caso do foco deste estudo, sobre textos de divulgação científica, é bastante relevante para a tradução desses textos. Com respeito aos tradutores, infere-se que familiaridade com o repertório da língua geral e proficiência gramatical no idioma estrangeiro não bastarão para que seu trabalho atenda às necessidades impostas pela divulgação científica. In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.24‐38, jul./dic., 2012. 32 Será preciso, tendo em vista o público ao qual se traduz, reconhecer o momento de substituir terminologias por palavras que permitam a compreensão por parte de não especialistas, bem como acionar os recursos expressivos de facilitação da leitura e explicação das terminologias que se manterão no texto, tudo isso considerando os aspectos pragmáticos e socioculturais dos idiomas envolvidos. Uma das grandes dificuldades impostas à tradução de terminologias consiste em encontrar termos, nos diferentes idiomas, que se relacionem ao mesmo conceito e, em um segundo momento, adequar estes termos conforme o grau de especialização do público ao qual se destina. Barbosa (2005, s/p) oferece exemplos neste sentido. O que, em português, na medicina, é hemiparesia, na enfermagem é comumente referido como adormecimento. Na comunicação entre leigos, todavia, formigamento é de uso preponderante. O raciocínio é o mesmo se considerarmos Hálux valgo, termo científico, ossinho e joanete, sendo este último vocábulo uma forma de interface entre o científico e o banalizado; como outro exemplo temos condrocalcinose, inflamação articular e gota. Resta saber, no momento em que se verte um texto escrito em português para um idioma estrangeiro, se existe, na comunidade para a qual se traduz, uma alternativa ao termo científico, um vocábulo também banalizado e de uso recorrente que satisfaça o conceito ao qual o termo se refere. Não havendo tal intermediário, há a opção de banalização não por meio de um vocábulo equivalente, mas através da explicitação do conceito por meio da língua geral. É o que ocorre, conforme exemplo sugerido por Aubert (2001, p. 47), com “certidão negativa junto ao INSS”. Por se tratar de termos culturalmente marcados, há de se encontrar soluções contextualmente pertinentes como good standing certificate from the Brazilian Institute of Social Security. Good standing certificate, (certificado de boas procedências) apresenta marcas de banalização que facilitam a compreensão do que é uma certidão negativa. Em sentido contrário, do inglês para o português, temos, como exemplo, o termo “FDA” ou [U.S] Food and Drug Administration - órgão comumente mencionado em pesquisas relacionadas à gestão de alimentos e produtos farmacêuticos. Por ser uma sigla desconhecida para outras comunidades, é comum, na ocasião da tradução, recorrer-se não In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.24‐38, jul./dic., 2012. 33 apenas à tradução literal da sigla: Departamento de administração de produtos alimentícios e farmacêuticos, mas também paráfrases como: o departamento norte-americano responsável por testar, controlar e inspecionar alimentos e remédios. Relações de equivalência como uma espécie de ANVISA dos Estados Unidos a desencadearem familiaridade também caracterizam a banalização. Exemplos de banalização por meio não da substituição de termos por palavras, mas pela explicação com linguagem popular desses termos é estratégia recorrente principalmente em revistas de divulgação científica cujo público alvo inclui leitores não especializados. O seguinte parágrafo, retirado de uma reportagem da revista Scientific American intitulada “Aplicações dos animais transgênicos” ilustra bem essa estratégia: Nos últimos anos, os avanços da biotecnologia sucederam-se a um ritmo frenético. Graças a eles foi possível dominar o processo de alteração genética, a ponto de alterar o genoma animal, ou seja, o material responsável pelas características hereditárias do ser vivo, e criar um organismo transgênico em laboratório que pode possuir genes de outras espécies em seu genoma. Isso aconteceu porque o DNA – que contém a informação genética – é uma molécula que pode ser transferida de uma espécie a outra. (PESQUERO, 2007, p 78, grifo meu) Os animais transgênicos são definidos de várias formas. Para a Federação Européia das Associações de Ciência em Animais de Laboratório, transgênico é ‘um animal que possui seu genoma [vide que o termo genoma foi pormenorizado no parágrafo anterior] modificado artificialmente pelo homem, quer por meio da introdução, quer da alteração ou da inativação de um gene [uma sequência definida de DNA]. Esse processo deve culminar na alteração da informação genética contida em todas as células desse animal, até mesmo nas células germinativas [óvulos e espermatozóides], fazendo com que essa modificação seja transmitida aos descendentes. (PESQUERO, 2007, p 78, grifo meu) Os exemplos acima citados são comuns tanto em textos de divulgação científica em português quanto em inglês. Como exemplo em sentido inverso, o texto intitulado “Special delivery: World’s first ‘test tube baby’ turns 30”, divulgado pela Scientific American, também emprega o mesmo recurso: Louise Brown, the first child conceived by assisted reproductive technology or in vitro fertilization (IVF), as it is commonly known, enters her 30s today. (Scientific American, 2008, s/p) Because we have identical DNA in each of our cells, our bodies have mechanisms, such as DNA methylation, to control which genes are In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.24‐38, jul./dic., 2012. 34 expressed in certain cell types – a process called genomic imprinting. When a methyl group (a carbon atom with three hydrogen atoms attached) binds to a cytosine molecule (one of the four nucleotides that make up DNA), it tells the cell’s transcription machinery not to transcribe that gene. (Scientific American, 2008, s/p, grifo meu) É razoável inferir que, em proporções consideráveis, banalização, no discurso de divulgação científica, está menos relacionada à substituição de termos por palavras e mais ligada à preservação de termos - simples ou complexos - com o acréscimo de explicações que possam acionar o repertório já conhecido pelo leitor não especialista. Convém salientar que tais explicações adicionais seriam desnecessárias caso o texto fosse direcionado exclusivamente a especialistas. A estes, termos como gene, célula germinativa, DNA, ou mesmo IVF - in vitro fertilization dispensam informações conceituais como as apresentadas. Uma das possíveis justificativas para a estratégia verificada é a de que simplificando demais o vocabulário, por meio de substituições lexicais que prezem por tornar o texto o mais compreensível possível ao público leigo, o discurso acabe sendo associado como superficial aos olhos do leitor mais rigoroso, gerando-lhe descrédito em relação àquele canal de informação. Em suma, o objetivo deste trabalho foi o de explicitar as contribuições da Terminologia para os Estudos da Tradução – em específico para a tradução de textos de divulgação científica -, tendo em vista, especialmente, o tratamento da linguagem de especialidade e a estratégia de banalização do discurso, que visa a incluir, ao público leitor da revista, indivíduos não especialistas nas áreas abordadas. Para tanto, foi necessário abordar tópicos sobre terminologia, tradução, assim como salientar a relação harmoniosa entre as disciplinas para, num segundo momento, dedicar atenção ao subgênero divulgação científica. Fez-se necessário ressaltar as peculiaridades e diferenças entre discurso científico – utilizado pela própria comunidade científica com o objetivo de atingir seus pares – e discurso de divulgação científica – que visa a difusão do conhecimento científico para fora do contexto originário. A DC, como vimos, pressupõe um maior tratamento da linguagem: além da preocupação com os termos e suas designações em contextos especializados, é preciso recorrer a estratégias discursivas que permitam a interação com interlocutores não In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.24‐38, jul./dic., 2012. 35 especializados, já que entre seus pressupostos está, segundo os mais idealistas, a “partilha social do saber” (SANTOS, 2007, p.38). A presente análise, de natureza dissertativa - posto que não traz resultados de uma pesquisa empírica substancial -, apesar de sucinta contribui para o reconhecimento de que diferentes campos do saber concebem a realidade de distintas formas - conforme indicam os exemplos citados da medicina -, daí a dificuldade enfrentada por aqueles que se lançam em busca de equivalências conceituais perfeitas. Outra consideração final razoável diz respeito à percepção de que, ao tradutor desses textos especializados, não basta o domínio linguístico dos idiomas envolvidos: é preciso estar consciente da função e do público ao qual seu trabalho se destina, bem como ter consciência dos fatores pragmáticos, culturais e ideológicos que lhe impõem desafios como, por exemplo, a escolha pelo emprego de agrotóxico ou de defensivo agrícola, invasão ou ocupação de terras. A terminologia mostra-se, nessa perspectiva, de importância fundamental não apenas para a prática tradutória, mas para qualquer tipo de produção textual que envolva conhecimentos especializados. In‐Traduções, ISSN 2176‐7904, Florianópolis, v. 4, n. 7, p.24‐38, jul./dic., 2012. 36 Referências bibliográficas ALMEIDA, G. M. B.; ALUÍSIO, S.M.; TELINE, M.F. Extração manual e automática de terminologia: comparando abordagens e critérios. In: 1º Workshop em Tecnologia da Informação e da Linguagem Humana. São Carlos, 2003. Disponível em: [http://www.lbd.dcc.ufmg.br/colecoes/til/2003/0012.pdf]. Acesso em: 17/12/2012. AUBERT, F. H. Tradução técnico-científica e terminologia: um ensaio exploratório de uma via de mão dupla. TradTerm, vol. 07, 2001, p. 41-52. BARBOSA, M. A. Transposições vocabulares e terminológicas em campos lexicais - ensino da metalinguagem técnico-científica. In: VI Congresso nacional de Linguística e Filologia. Cadernos do CVLF, Ano VI, n.07. Agosto de 2002. 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