UFPI Universidade Federal do Piauí
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UFPI Universidade Federal do Piauí Caminhadas de universitários de origem popular UFPI UFPI Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão. O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores. Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Inês Sousa Organização da Coleção: Monique Batista Carvalho Francisco Marcelo da Silva Dalcio Marinho Gonçalves Aline Pacheco Santana Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ Coordenação: Claudio Bastos Anna Paula Felix Iannini Thiago Maioli Azevedo C183 Caminhadas de universitários de origem popular : UFPI / organizado por Ana Inês Souza, Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009. 92 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular) Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. ISBN: 978-85-89669-42-9 1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I. Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. V. Universidade Federal do Piauí. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII. Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. CDD: 378.81 Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares Organizadores Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Inês Sousa UFPI Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ Rio de Janeiro - 2009 Coleção Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministério da Educação Fernando Haddad Ministro Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD André Luiz de Figueiredo Lázaro Autores Aemerson Rodrigues de Carvalho Alexander Almeida Morais Ana Cláudia dos Santos Silva Ana Cristina de Sousa Silva Secretário Ana Karoline de Sousa Carvalho Armênio Bello Schmidt André Vieira dos Santos Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI Cícero José Pereira Leonor Franco de Araújo Coordenação Geral de Diversidade – CGD Cleane Maria Alves Cleylce Santana da Silva Elizabeth Pereira Cabral Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares Jorge Luiz Barbosa Jailson de Souza e Silva Coordenação Geral Cecília Maria Resende Gonçalves de Carvalho Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFPI Edileusa Maria Galvão Figuerêdo Coordenação Técnica Eric Willian do Nascimento Carvalho Francisco das Chagas de Sousa Silva Francivaldo Pinheiro Fernandes Hélio Costa Vieira Herbert Cèsar de Moura Jeane Maria da Silva João Santos Andrade João Silvestre da Silva Neto Joselene Oliveira Juliana Rodrigues Cavalcante Kalinka Kelciane Teixeira de Brito Universidade Federal do Piauí Luiz de Sousa Santos Júnior Reitor Maria da Conceição Pereira da Costa Maria da Penha da Silva Santos Maria dos Remédios Batista da Silva Marlúcia Oliveira Lima Antonio Silva do Nascimento Vice-Reitor Antonio Aderson dos Reis Filho Pró–Reitor de Extensão Prefácio A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental. A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma intensa e sistemática esses objetivos. Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e, por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas. Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou, inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS, UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os estados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC, UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar, UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB. Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma, ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de 1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao menos 35 bolsistas. práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição, ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais. Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19 publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor prestígio social. Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais justa e uma humanidade cada dia mais plena. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Ministério da Educação Observatório de Favelas do Rio de Janeiro Sumário Apresentação ........................................................................................................ 9 Introdução ........................................................................................................... 11 O sertanejo Aemerson Rodrigues de Carvalho ..................................................................... 13 Trilhando Alexander Almeida Morais ................................................................................. 17 Mais uma caminhada Ana Cláudia dos Santos Silva ........................................................................... 19 Pequeno diário Ana Cristina de Sousa Silva .............................................................................. 21 Retratos da minha história Ana Karoline de Sousa Carvalho ...................................................................... 24 Minha história, minha luta André Vieira dos Santos ..................................................................................... 27 Caminhos do aprendizado Cícero José Pereira ............................................................................................. 30 Passos de resistência Cleane Maria Alves ............................................................................................ 33 Cleylce, botão de rosa que desabrochou Cleylce Santana da Silva ................................................................................... 36 Minhas memórias Elizabeth Pereira Cabral ................................................................................... 39 Lionheart: Forte, perseverante, astuto e determinado Eric Willian do Nascimento Carvalho ............................................................... 41 Minha vida, minha luta Francisco das Chagas de Sousa Silva ............................................................... 46 Vencendo desafios Francivaldo Pinheiro Fernandes ....................................................................... 48 A caminhada de um vencedor Hélio Costa Vieira............................................................................................... 50 Um principiante e sua estrela guia Herbert César de Moura ..................................................................................... 53 Os passos de um homem bom são confirmados pelo senhor e ele deleita no seu caminho (salmo 37.23) Jeane Maria da Silva .......................................................................................... 55 Fragmentos de uma cartografia sentimental João Santos Andrade .......................................................................................... 58 A saga do filho de um vaqueiro e de uma Quebradeira de coco João Silvestre da Silva Neto .............................................................................. 61 As reminiscências de Joselene Joselene Oliveira ................................................................................................ 67 Sonhei, sonho e sonharei, com um futuro mais justo Juliana Rodrigues Cavalcante .......................................................................... 71 Sob a luz da fama Kalinka Kelciane Teixeira de Brito ................................................................... 74 Vencendo as adversidades da vida Maria da Conceição Pereira da Costa ............................................................. 77 Sonhos de uma vida Maria da Penha da Silva Santos ....................................................................... 80 "Esperei confiantemente pelo senhor. Ele se inclinou para mim e me ouviu quando clamei por socorro" (Salmo 40.1) Maria dos Remédios Batista da Silva ................................................................ 84 Um novo jeito de olhar Marlúcia Oliveira Lima ...................................................................................... 87 Introdução A Universidade Federal do Piauí-UFPI, de forma programática, tem a missão de propiciar a elaboração, sistematização e socialização do conhecimento filosófico, científico, artístico e tecnológico permanentemente adequado ao saber contemporâneo e à realidade social, formando profissionais que possam contribuir para o desenvolvimento econômico, político, social e cultural do Piauí, do Nordeste e do Brasil. No cumprimento desta missão, evidenciamos a responsabilidade social como norteadora de ações afirmativas bem como da integração dos estudantes assistidos à política de inclusão social praticada na UFPI, no sentido de estabelecer um equilíbrio de oportunidades aos menos favorecidos, explicitando tal inclusão social em sua verdadeira grandeza. Da leitura dos textos e do resultado alcançado, pode-se constatar que o Ministério da Educação-MEC, através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e DiversidadeSECAD, por intermédio do Programa "Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares", proporciona, de modo afirmativo e brilhante, a oportunidade a 35 (trinta e cinco) jovens da UFPI de serem atores, em um cenário de vitórias, construído a partir de uma história real de sucesso individual, embalados pelo sonho próprio de suas idades, uma trajetória pura e verdadeira, oportunizando o registro que irá fortalecer a memória universitária em realce. Por conseguinte, iniciativas como estas não apenas reforçam o papel da Universidade como agente transformador da sociedade, mas também criam e ampliam metodologias adequadas de interação com as camadas populares e de periferia na geração, visibilidade e troca de saberes populares e científicos, através do diálogo. O desafio, outrossim, é que esta ação seja contínua e eficiente, para que possa decifrar e colaborar na solução dos diversos problemas de permanência destes alunos de camadas populares nas Universidades. Ressaltamos, por outro lado, a demonstração de sensibilidade e o apoio incondicional do Reitor Prof. Dr. Luiz de Sousa Santos Júnior, bem como a abnegação das coordenadoras Profª Drª Cecília Maria Resende Gonçalves de Carvalho e Profª Edileusa Maria Galvão Figueredo, sobretudo na orientação deste importante Programa, tendo em vista seu comprovado sucesso com a ampliação de bolsistas na UFPI que ainda não fazem parte do Projeto, porém enfatizando as caminhadas de universitários de origem popular, sensibilizando, ainda mais, cada um de nós nesta contribuição à construção democrática na plenitude da vida nacional. Antônio Aderson dos Reis Filho Pró-Reitor de Extensão-UFPI Universidade Federal do Piauí 9 Apresentação "Caminhadas de Universitários de Origem Popular" é um livro diferente, que publica a autobiografia de 25 (vinte e cinco) universitários da UFPI, oriundos de setores populares, bolsistas do Programa "Conexões de Saberes". Nele está contida a experiência daqueles que lutam contra a exclusão social e por uma sociedade mais justa. A construção deste livro foi, para os autores conexistas, uma retrospectiva de suas vidas até o ingresso na universidade. É também um exercício de reminiscências, que revelou momentos de incertezas, desencantos, lutas, alegrias e conquistas. O início das oficinas de Leitura e Produção de Texto foi marcado por dúvidas e indagações, mas com o laboratório das experiências vivenciadas pelos autores, nas entrelinhas de suas narrativas, foram sendo reveladas suas histórias de vida. Foi uma convivência maravilhosa. Choramos juntos e sorrimos muito. Palavras de carinho e ânimo soavam na sala de aula, onde cada autor expunha suas ousadias e auto-superação. Foi uma explosão de garra e emoção. Jamais esquecerei os momentos em que cada um mergulhou nas lembranças de suas trajetórias individuais, nas vivências familiares, escolares e em muitos acontecimentos da vida pessoal, mesclados com as dimensões coletivas do bairro, da cidade, rememorando suas histórias em um contexto reflexivo em busca da construção de projetos de vida para a concretização de sonhos. Para alguns estudantes, esta regressão foi muito dolorosa. Não é fácil recordar tristezas. Eles jamais esquecerão que a vida é feita de luta. Por outro lado, há sempre exemplos de solidariedade e desprendimento. A família é a célula forte, inquebrantável; apoio e carinho nas horas difíceis. Os amigos são um caso à parte. Eles guardam segredos sutilíssimos e são os grandes conselheiros. Muitos mestres passaram incógnitos, mas aqueles que foram mais que simples professores estão marcados indelevelmente na mente e no coração dos conexistas. Isto faz brotar no âmago de todos o agradecimento em forma de citação. Aqui e ali vão aparecer muitos cidadãos comuns que estenderam suas mãos em momentos cruciais. São os Joões e Marias que escreveram seus nomes nas histórias do Doutor João e da Doutora Maria. Estou feliz e realizada com mais esta missão cumprida. Agradeço a Deus, à Profª Cecília Resende e à Profª Edileusa Figuerêdo, pela oportunidade de participar desta "Caminhada" tão rica e bela, e por fazer parte da Família Conexões de Saberes - Piauí. Verônica Maria Teles de Melo Cavalcanti Profª de Leitura e Produção de Texto Universidade Federal do Piauí 11 O sertanejo Aemerson Rodrigues de Carvalho * Sou o primeiro filho do casal de lavradores Antônia Rodrigues de Carvalho e Manuel Ribeiro de Carvalho. Nasci em Curimatá, no Sul do Piauí. Ao completar cinco anos, fui com meus pais trabalhar na roça. Quando a seca chegava, eu tinha que ir buscar água a distância de uma légua (6 km). Ficamos no interior até 1990, ano em que nasceu minha irmã Anelma e meu pai comprou uma carroça. Com sua bela carroça, meu pai arranjou um emprego na Prefeitura como catador de lixo. Eu e meu irmão Emerson estávamos estudando em uma escola que distava 4 km de nossa casa, em uma sala onde ficavam alunos da alfabetização a quarta série e um só professor. Era difícil para meu pai trabalhar na cidade e voltar para o interior. Foi então que eles decidiram mudar definitivamente para a cidade e fomos morar em uma casa emprestada durante seis meses. Com muita luta, conseguimos construir nossa casinha; e, mesmo sem portas e janelas, nos mudamos. Isso não tinha muita importância naquele momento, pois o mais importante era estar debaixo de nosso teto. Quando nos mudamos para a cidade, as brincadeiras eram muitas, apesar da proibição de nossa mãe, que não permitia que saíssemos sem sua autorização. A nova escola ficava perto de nossa casa, e ali estudavam duas turmas por sala. Um só professor ministrava aulas para alunos de primeira e segunda séries. Certamente o rendimento era muito ruim. Em 1993, eu estava cursando a primeira série, mas ao final do ano tive que interromper os estudos, pois meu pai ficou cego de catarata, só voltando a enxergar seis meses depois, quando se submeteu a uma cirurgia. Se antes a vida estava difícil, com o problema de saúde de meu pai as coisas pioraram. Passamos a vender dindim, cheiro verde, puba de mandioca e esterco. Em 1996, eu cursava a terceira série na Unidade Escolar Mergelina Dourado Guerra; de uma turma de oito alunos, fui o único a passar de ano. A diretora queria que eu repetisse o ano, mas minha mãe não concordou. Mudei-me então para o Colégio Alírio Guerra de Macedo onde cursei a quarta série e iniciei a quinta. Neste mesmo ano, foi feito o primeiro teste seletivo para a Escola Agrotécnica de Curimatá, que ficava pertinho de minha casa. Vinte e cinco vagas foram oferecidas. Fiz o teste e fiquei em 26º lugar. Por um capricho do destino, o aluno que passou em primeiro lugar desistiu e eu fui convocado. Eu não queria ir. Estudar em escola agrotécnica, para mim, significava voltar para a roça e isso eu não queria, jamais. Mas acabei indo, e isso foi determinante em minha vida. Aprendi a ver o mundo com outros olhos e a querer saber mais. Se hoje estou na Universidade, devo muito à Escola Agrotécnica de Curimatá, pois foi lá que conheci o professor Gerônimo Leopoldo Paranaguá * Graduando em Agrimensura pela UFPI. Universidade Federal do Piauí 13 Eivas Barjud, amigo e incentivador. Certa feita ele me levou para visitar a Exposição e Feira de Agronegócio do Sul do Piauí-EXPOSUL. Ali, pude fazer inúmeros contatos com alunos e professores do Colégio Agrícola de Bom Jesus-CABJ. Vislumbrei a possibilidade de conhecer novos horizontes, saber mais. O problema é que, apesar de ter que pagar apenas as refeições, eu tinha que morar em outra cidade, e as nossas condições financeiras não permitiam esse extra. Então pensei: "eu vou de qualquer jeito e eles não vão me deixar passar fome". Deu certo! Eles me deram todo o apoio e carinho. Mudei-me para Bom Jesus. Como sempre, todo começo é muito difícil. A saudade de casa e a minha base escolar deficiente foram obstáculos difíceis de transpor. As notas eram sempre baixas e os alunos veteranos viviam me ridicularizando. Ainda bem que contei com o apoio e a boa vontade dos professores. Juntamente com Gábino Nunes de Araújo e Gledson Lustosa Freitas, formamos um trio inseparável. Passamos juntos muitas noites sem dormir, debruçados nos livros, tentando fazer boas provas, mas também curtimos a vida e nos divertimos muito. No CABJ, pude entender o que é uma universidade, posto que este é uma extensão da UFPI. Vestibular para mim era uma novidade. Foi aí que pude, mais uma vez, avaliar a precariedade do ensino público no Brasil, tanto na área pedagógica quanto no setor sociocultural. Naquele momento, prometi a mim mesmo voltar à minha Curimatá, ingressar na política e lutar, com todas as forças, para mudar esse triste quadro, e ajudar as crianças, jovens e adultos a ter um ensino de qualidade. Final de 2004. Minha formatura se aproximava. Nesse período eu estava dividido entre os vários caminhos a seguir: continuar estudando? Trabalhando? Eu estava recebendo várias propostas de emprego, e era hora de ajudar e retribuir o esforço de meus pais. Por exigência do mercado, resolvi tirar minha carteira de motorista. Foi aí que mais uma vez as amizades funcionaram. Minha estimada professora Maria Majaci Moura da Silva, que morava em Teresina, ofereceu-me sua residência. Desta forma, abri mão da festa de formatura e guardei o dinheiro para tirar a habilitação. Eu pensava em trabalhar, mas não queria deixar de estudar. Tanto que me inscrevi para fazer vestibular para o curso de Engenharia de Agrimensura da UFPI. O trio mencionado anteriormente juntou-se novamente e estudamos com afinco. Foi assim que nós - os piores alunos da classe - nos tornamos os melhores e fomos vistos como exemplo de esforço e abnegação. No dia cinco de janeiro de 2005, durante o intervalo do ensaio da colação de grau, fui à sala dos professores e acessei o computador para ver o resultado do vestibular. Fiquei branco, pasmado, gelado, paralisado. Todas as emoções ao mesmo tempo. Eu não queria acreditar, mas lá estava meu nome: Aemerson Rodrigues Carvalho. Conferi várias vezes o número da identidade. Podia ser um homônimo. Só depois fui me convencendo de que era eu mesmo. A primeira coisa a fazer foi dividir aquele momento com minha família. Voltei para o ensaio e, ao contar a novidade para minha mãe, percebi em seu rosto uma sombra de tristeza. Mais tarde eu soube a razão: Ela só pensava que eu não teria como estudar, pois não tínhamos nenhum parente na capital. Liguei também para a professora Majaci. Eu tinha que compartilhar minha alegria com as pessoas queridas. Aproveitei e desmarquei a viagem para tirar a carteira. Majaci era só alegria. Conhecendo minha situação econômica, ela me fez uma série de perguntas: - Como manter-me? Onde iria morar? Eu lhe disse que ia requerer a residência universitária, mas até conseguir eu não tinha onde ficar. A professora então propôs: - "Venha tirar sua carteira e, até conseguir a residência, pode ficar em minha casa". Assim foi feito. Tirei a habilitação e morei durante quatro meses na residência da professora Majaci, a quem serei eternamente grato pelo resto de minha vida. 14 Caminhadas de universitários de origem popular A universidade amplia nossos horizontes e engrandece nossos sonhos. Resolvi fazer este parágrafo para citar o nome do meu sobrinho, Walerson Rodrigues, que é uma pessoa muito importante para mim, e dizer que acalento o sonho de ver o Piauí dividido com a criação do Estado do Gurguéia. Desta forma, o Sul do Estado, até então esquecido pelos políticos, passará a ser visto, e, no auge do desenvolvimento, poderá oferecer uma educação pública de qualidade para as futuras gerações, entre elas, meu sobrinho Walerson. Hoje estou muito feliz e com muita força de vontade e obstinação; continuo na residência universitária e cursando o quarto período de Engenharia de Agrimensura na Universidade Federal do Piauí, onde participo do Programa Conexões de Saberes, programa este que tem como objetivo o ingresso e a permanência de alunos de origem popular na Universidade. Universidade Federal do Piauí 15 Trilhando Alexander Almeida Morais * No dia nove de novembro de 1983, na cidade de Teresina, eu nasci. Meu pai chama-se Raimundo Morais Silva e minha mãe Maria da Conceição Almeida Morais. Até onde lembro, minha infância foi muito boa. O lado ruim ficou por conta das brigas entre meus pais, principalmente quando ele bebia. Isto até hoje acontece, mas com menos freqüência. Meu pai é uma boa pessoa. Filho de pais analfabetos, ele veio do interior cearense para trabalhar no Piauí. Até os vinte anos ele jamais havia entrado em uma escola. Aqui em Teresina ele trabalhou em uma gráfica e estudou ao mesmo tempo, conseguindo concluir o Ensino Fundamental e Médio. Costumo dizer sempre que, se passei no vestibular e continuo estudando na Universidade Federal do Piauí, devo a meu pai, que me estimulou e me ajudou financeiramente; pois, até entrar para o Programa Conexões de Saberes, eu me encontrava desempregado juntamente com meu irmão mais velho, Marcos Paulo Almeida Morais. Minha mãe faz apenas bicos, trabalhando como empregada doméstica e sem jamais ter tido uma carteira de trabalho assinada. Ela se casou com meu pai aos 16 anos e deixou de estudar logo em seguida, quando meu irmão nasceu. Nos dias atuais, aos 38 anos de idade, ela voltou a estudar e está fazendo o Supletivo. Ela tem muitas dificuldades em acompanhar os assuntos escolares, devido ao longo tempo em que ficou fora da escola. Eu e meu irmão procuramos ajudá-la sempre para que ela nunca desista. Atualmente estou residindo com minha avó, Raimunda Ferreira de Morais Silva, noventa e três anos, viúva de meu avô, Manoel Leôncio da Silva, que morreu aos noventa e cinco anos. Apesar da idade, vovó ainda faz muitas coisas. Seus doces são deliciosos, e seu caldo de carne com paçoca é de dar água na boca. Ultimamente seus problemas de saúde vêm se agravando; são distúrbios no aparelho digestivo e osteoporose em alto grau. Estudar e cuidar de minha avó tem sido uma situação difícil de conciliar. Por duas vezes tive que trancar matérias e desistir de outras, o que faz com que eu me encontre um pouco "atrasado" em relação aos meus colegas. Mas não me arrependo. É claro que vovó tem outros filhos. São sete homens e três mulheres, porém todos são casados, têm seus filhos e seus trabalhos. Meu pai é um deles. Como ela não quer sair de sua casa, eu assumi a responsabilidade. Atualmente ela está morando perto da casa de uma de suas filhas, tia Maria de Fátima, que também é minha madrinha. Isto tem me deixado mais despreocupado, principalmente naqueles dias em que saio pela manhã e só regresso da Universidade no final da tarde. * Graduando em Filosofia pela UFPI. 16 Caminhadas de universitários de origem popular Só estudei em duas escolas, ambas estaduais. Na Unidade Escolar Júlia Nunes Alves, cursei até a 4ª série. À época, eu só pensava em brincar, fazer amigos, e adorava as aulas de Educação Física; desculpa para ficar horas jogando futebol. Quando ingressei na Unidade Escolar Professor Odylo de Brito Ramos, passei a levar os estudos com seriedade. Lá estudei da 5ª a 8ª série e depois fiz todo o Ensino Médio. Foram muitas as greves. No princípio eu achava legal, "férias forçadas". Certamente esta era a visão de um menino que ainda não havia acordado para a dura realidade do mundo. Depois fui tomando consciência, e, a partir do momento em que percebi que só através dos estudos um jovem como eu poderia alcançar uma melhor condição de vida, comecei a lamentar, e vi que estava sendo prejudicado. Eu e todos aqueles que estudam nas escolas públicas do Brasil. No início do Ensino Médio, foi implementado o Programa Seriado de Ingresso na Universidade-PSIU. Este programa estabelece que, em vez do tradicional vestibular, o aluno do Ensino Médio faz três provas, ou etapas, como são chamadas, ao final de cada ano letivo, cuja matéria abrangerá apenas o conteúdo curricular daquele ano. Há também a prova específica e de Redação, feita no dia seguinte à realização da terceira e última etapa. Fica claro que este sistema de acesso à Universidade exige que o aluno tenha cursado um bom Ensino Médio. Foi justamente isso o que não aconteceu comigo. No 2º e 3º ano em que fiz o Ensino Médio, a escola ficou fechada quase metade do ano letivo. Não estou exagerando. Conseqüentemente, quando a greve acaba, fala-se muito em reposição de aulas perdidas, mas não há tempo hábil. Os professores fazem algumas provas e passam trabalhos, porém não mais se recupera o que se perdeu. Resultado: os alunos não vão estudar nem a metade dos assuntos referentes à prova do PSIU. O que fazer? Arregaçar as mangas e estudar, dia e noite, em busca do tempo perdido. Felizmente, no ano de 2004, fui aprovado para o Curso de Licenciatura Plena em Filosofia, na UFPI. Hoje estou muito contente por estar na universidade, apesar das dificuldades iniciais, tais como a falta de dinheiro para transporte, alimentação e até para tirar xerox. Outro problema grande diz respeito ao meu "analfabetismo" com o computador. Isto tem dificultado a realização dos meus trabalhos escolares; contudo, já estou experimentando algum progresso, a partir do instante que ingressei no Programa Conexões de Saberes. Este Programa visa estimular um diálogo entre a Universidade e as comunidades populares, através de ações que criam mecanismos políticos, pedagógicos e institucionais que contribuem para o ingresso e permanência de estudantes de origem popular na universidade. Ou seja, o objetivo do Programa é fazer com que pessoas das camadas menos favorecidas possam adentrar o ensino superior para que se tornem protagonistas de seu próprio desenvolvimento intelectual e profissional. Confesso que me sinto muito bem por estar participando deste Programa, tendo em vista que, além de estar sendo auxiliado em minha vida acadêmica, eu posso ajudar outras pessoas que também vieram da população menos favorecida. Cada um pode e deve modificar seu destino, basta ter força de vontade e perseverança. Universidade Federal do Piauí 17 Mais uma caminhada Ana Cláudia dos Santos Silva * Memorial... Parece que estou no fim da vida e sou levada a relembrar tudo o que já passei. Então, escrevo em uma visão panorâmica e contraditoriamente profunda do que vivenciei e vivo. No nono dia do mês do homem mais influente da civilização cristã-ocidental, nasci. Minha família agora em cinco: minha mãe, minha amada guerreira, cozinheira de mãocheia, a melhor do mundo! Minha avozinha, agora tão frágil, e meus dois irmãos. Naquela época contávamos com a presença de meu pai. Houve a separação e tudo mudou. Sete anos depois, após haver deixado a creche municipal onde passava meus dias enquanto minha mãe trabalhava, entrava em uma nova escola. Vestida em meu conjunto favorito, rosa e cinza, percebi uma realidade diferente, logo na primeira aula. Era uma escola particular. Lá, estudando com uma bolsa por mérito próprio, fui punida por me defender da discriminação racial. Descobri que crianças podem ser cruéis umas com as outras, principalmente com uma garotinha pobre e negra. Mas não guardo mágoas, pois nem tudo eram espinhos. Aprendi com o tempo a me sentir uma bela rosa. Escolão: lugar de seis anos de diversão, crescimento e algumas traquinagens, como, por exemplo, quando fui parar na Diretoria, por brigar com uma colega que se tornou uma grande amiga depois. Enfim, Ensino Médio, Liceu Piauiense. Não fiz rios de amigos, mas algumas pessoas ficaram totalmente marcadas, assim como Ana, amiga que trago comigo até hoje. Simultaneamente, estagiei na Secretaria de Estado da Fazenda, sem padrinhos, vale esclarecer. De mil garotos concorrendo a cinqüenta vagas, aconteceu minha primeira grande vitória. Lá conheci pessoas boas e legais, como também pessoas não legais. Passei por situações das quais herdei amadurecimento profissional ainda na adolescência. Vestibular! Passei na primeira vez. Mas não foi sorte, sempre fui uma boa aluna. Estudei em um pré-vestibular muito barato, depois que concluí o terceiro ano. Ano em que não brinquei, não me diverti, apenas senti que era o que eu deveria fazer. Estudava, enquanto minhas amigas do Ensino Fundamental tinham seus primeiros namorados. Estudei, enquanto tinham seus primeiros filhos; e estudo, enquanto são donas de casa. É o Brasil de uma mulher de família sem escolaridade adequada. Felizmente tenho uma boa orientadora, minha mãe, que me indicou o caminho do sucesso. * Graduanda em Letras-Português pela UFPI. 18 Caminhadas de universitários de origem popular Sou exceção, sou sonho, sou apenas a essência do que fui e sempre serei; ou seja, Ana Cláudia, filha de Antonia e Francisco, neta de Maria, moradora da Piçarreira. Gozando sempre do que os bens públicos podem oferecer, estou no Programa Conexões de Saberes. E, acreditem, vou ser sincera, não era bem o que eu queria. Agora é ao que mais tenho me dedicado. Através dele, entendi qual é o meu papel dentro da UFPI: - o de levar esperança a outras garotas pobres e negras de se tornarem belas rosas, nessa sociedade desigual e politicamente injusta. Afinal, o ser humano é mais corpo físico; é como somos tratados diariamente pelos dirigentes desse país. Ele é cérebro, espírito e conhecimento; conhecimento que deveria ser, na realidade, direito de todos, não apenas no papel, onde tudo está bem escrito. Jovens, de origem popular, deveriam ser a maioria nas universidades públicas, e não o contrário. No programa, lutarei para que um dia isso se torne realidade. Universidade Federal do Piauí 19 Pequeno diário Ana Cristina de Sousa Silva * “O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.” Fernando Pessoa Por força do destino, no dia primeiro de maio de 1984, às 02:25h da madrugada, em Brasília, eu nasci. Filha da piauiense Maria das Graças Gaspar de Sousa e de Luís Lobo da Silva, um maranhense. Onze meses após essa feliz data, uma grande tristeza se abateu sobre nós. Meu pai voltava do hospital onde trabalhava como auxiliar de Enfermagem e, ao ser assaltado, levou um tiro, à queima-roupa, no peito, vindo a falecer. Decorrido um ano de sua morte, minha mãe resolveu voltar para sua terra natal, a cidade de Parnaíba no Piauí; ali comprou uma casa, no Bairro São José, onde até hoje vivo doces momentos. Minha primeira experiência educacional foi aos quatro anos de idade, em uma creche próxima a minha casa. Ali fiquei dois anos, indo, em seguida, para a Escola Municipal Godofredo de Miranda, onde permaneci do Jardim de Infância até a 1ª série do Ensino Fundamental. Lembro-me que sofri muito no Jardim, por ser gordinha. As outras crianças viviam me botando apelidos. Eu também tinha muita dificuldade em dividir as coisas. Provavelmente por ser filha única. Eu ficava dividida. Por um lado, as pessoas diziam que eu tinha que repartir; e, do outro, minha mãe dizia o contrário. Confesso que até hoje isso gera conflitos em minha vida. A partir da 2ª série, passei a estudar no Centro da Cidade, na Escola Monsenhor Lopes, onde se pagava uma pequena mensalidade. Fiz um teste de Português, fui aprovada e me tornei aluna de uma professora muito legal: a Tia Gracinha. Da 3ª série, não me lembro de quase nada, mas toda sexta-feira a diretora fazia um teste de Matemática, com todos os alunos, e eu sempre tirava nota baixa, pois sempre fui péssima com os números. Lembro também das festinhas nas datas comemorativas. Na 4ª série, havia uma professora de Matemática que era um horror; nem lembro mais o nome dela. Em compensação, havia a Tia Diná, um anjo que nos tratava como filhos. Neste período, comecei a usar óculos e logo apareceram os apelidos. * Graduanda em Pedagogia pela UFPI. 20 Caminhadas de universitários de origem popular Sempre fui uma criança tímida, mas também sempre gostei de estudar, além de ser muito comportada. Acho que isto justifica o carinho que as professoras tinham por mim. No ano seguinte, 1996, passei a estudar na Escola Comercial de Parnaíba, onde permaneci da 5ª a 8ª série. Ela fica na minha rua e, à época, era considerada uma das melhores da cidade. Isto explica o porquê de minha mãe ter ficado muitas horas na fila para me matricular. A escola era particular, mas sua mensalidade era pequena. A 5ª série foi um pouco complicada. Mudança de colégio, os novos colegas, professores, disciplinas e até mudanças físicas, já que eu estava entrando na adolescência, mas também foi um ano excelente, pois fiz minha 1ª comunhão e os novos colegas me acompanharam até a 8ª série. Da 6ª e 7ª séries não tenho fatos marcantes a relatar. Recordo-me apenas dos desfiles de Sete de Setembro que eu adorava participar. A 8ª série foi muito difícil. Tirei notas baixas em Matemática e em Inglês, mas acabei passando de ano. Falando nisso, eu já fiquei em recuperação, mas nunca fui repetente. Em 2002, tive que escolher entre o Científico e a Escola Normal. O científico era ministrado em um colégio público, o único da cidade, àquela época. Ambos ficavam no mesmo quarteirão. Eu não queria ir para nenhum dos dois, mas minha mãe falou que não tinha condições de pagar uma escola particular. Optei pela Escola Normal Francisco Correia. Ali formamos uma grande família, e passei três ótimos anos. Nos dois primeiros anos, eu ia de bicicleta, e levava cerca de 10 minutos até chegar à escola. No último ano, a Prefeitura disponibilizou um ônibus do transporte escolar que passava no meu bairro. O coletivo era muito velho e havia um enorme buraco no assoalho, mas, graças a Deus, nunca aconteceu nenhum acidente. Nesse mesmo ano, minha rotina ficou bem corrida. Pela manhã Escola Normal; à tarde estágio; e, à noite, freqüentava aulas em um cursinho particular de uma escola cooperativa. O fim do ano chegou e com ele o vestibular. Fiz a inscrição nas duas universidades, UFPI (federal) e UESPI (estadual), e no final a bomba estourou. Não passei em nenhuma, e aí veio uma grande frustração. No ano seguinte, decidi não freqüentar nenhum cursinho, e passei a estudar em casa. Novamente tentei as duas universidades e fui aprovada na UFPI onde estou atualmente, cursando o sexto período. Minha vida acadêmica tem sido muito proveitosa. Em 2005, tentei uma monitoria, mas não consegui; contudo, recebi um convite para uma outra monitoria em uma amostra fotográfica do SESC. Em seguida, uma ONG, em parceria com o Banco do Brasil e SENAC estavam procurando universitários para ministrar aulas de reforço aos sábados para jovens do Programa Adolescente Trabalhador-PAT. Ministrei aulas de Língua Portuguesa e tive a primeira experiência com adolescentes. Achei ótimo! Em 2006, tive meu primeiro emprego em uma escola cooperativa, próxima de minha casa. Lecionei apenas no primeiro semestre para a 3ª série do Ensino Fundamental. Também participei da II Jornada Pedagógica. Não estive na I Jornada por falta de dinheiro. Em março de 2006, a UFPI deu início ao projeto Movimento de Articulação Norte Piauiense para o Desenvolvimento Sustentável-MANDU, cujo objetivo era criar um observatório da juventude nas cidades e microrregiões. Não fiz a inscrição, pois a bolsa era de R$ 150,00, o mesmo valor que eu ganhava lecionando no colégio. Em abril, surgiu uma nova bolsa através do Programa Conexões de Saberes. Fiz a inscrição, fui chamada e hoje atuo junto ao MANDU. Para mim é uma nova experiência, Universidade Federal do Piauí 21 pois nunca havia participado de um projeto tão grande. Através do Conexões, conheci os municípios vizinhos e sua juventude, pois embora estivessem tão perto, ao mesmo tempo estavam longe pela falta de contato. A maior parte dos alunos do programa reside em Teresina. Daqui de Parnaíba havia apenas eu e um rapaz. Tem sido muito bom conhecer a realidade dos outros colegas. O Conexões me proporcionou uma incrível experiência, que foi participar do II Seminário Nacional no Rio de Janeiro. Foi um sonho realizado que nunca vou esquecer, pois sempre tive vontade de conhecer a cidade. Adorei tudo e espero viver outras experiências enquanto estiver no programa. Em relação a minha caminhada até chegar à universidade, agradeço a Deus e a minha mãe, que, além de mãe, foi pai, irmã e guia, pois soube me conduzir nesta estrada, sempre segurando minha mão. “Aqueles que são incapazes de compreender o que há de grande nas pequenas coisas, terminarão sem enxergar o que há de pequeno nas grandes coisas e serão confundidos pelo resto da vida.” Paulo Coelho 22 Caminhadas de universitários de origem popular Retratos da minha história Ana Karoline de Sousa Carvalho * O casamento de meus pais, por si só, já daria um livro. Suas irmãs não queriam que ele se casasse com minha mãe, por julgar que ela era de uma família muito pobre. Apenas tia Eliane (minha madrinha) apoiou sua decisão, e o presenteou com o fogão. Minha avó materna, mesmo sendo dona de uma loja de tecidos, mandou apenas um metro de pano, e ainda perguntou qual seria a cor. Isso magoou muito minha mãe, pois ela sempre pregou a castidade, por ter sido educada pelos meus avós, Adelino e Das Dores, duas pessoas maravilhosas que eu amo de paixão. Contra tudo e contra todos, eles se casaram. Parece mentira, mas, no dia, o padre esqueceu a data do casamento e estava tranqüilamente bebendo na sacristia, e o noivo chegou depois da noiva. Os dois acabaram se casando. Mamãe disse que se casou porque foi forçada pelo longo tempo de namoro, mas eu sei que, no fundo, ela gosta dele, embora não queira admitir por tudo o que ele lhe fez passar. Quando eu nasci, minha mãe, Jaqueline, disse que foi a maior alegria da vida dela. Meu pai bebia muito e ela estava sempre sozinha. Ela costumava dizer que eu era sua melhor amiguinha; conversava tudo comigo, e eu, embora não entendesse o que estava se passando, a ouvia e isso ajudava muito. Meu pai, Evandro, tem problema com o alcoolismo. Às vezes ele passava três dias sem aparecer em nossa casa e ficávamos tristes. Eu, por ver minha mãe sempre chorando, e ela por levar aquela vida sempre sofrida, principalmente nos fins de semana. Minha mãe era muito nova quando se casou (19 anos), e estava concluindo o pedagógico. Quando eu nasci, meu pai tomava conta de mim para que mamãe pudesse ir estudar. Deus é muito bom! Ficávamos, os dois, de 14:00 até às 23:00 e, nesse período, ele não bebia sequer uma gota de álcool. Quando completei três anos, nos mudamos do Bairro Bela Vista para o apartamento de tia Marilene, irmã de meu pai, situado no Bairro Buenos Aires, em Teresina. Foi aí que teve início minha vida escolar, mais precisamente no Educandário Tia Mara, escolinha que ficava em frente à nossa casa e onde estudei até a Alfabetização. Como era muito pequena, não tenho muitas recordações desse tempo. Meu pai trabalha na Assembléia Legislativa do Piauí, e os funcionários resolveram formar uma cooperativa; em seguida, fundaram a Escola Cidadão Cidadã, entidade sem fins lucrativos para o ensino dos filhos dos funcionários. Foi nessa época que nasceu minha irmã, Luana, e, um ano depois, a caçula, Jéssica. O nascimento de minhas irmãs promoveu * Graduanda em Nutrição pela UFPI. Universidade Federal do Piauí 23 uma grande mudança no comportamento de meu pai. Ele decidiu que não podia mais continuar bebendo nem causando sofrimento à sua família. Imediatamente minha mãe e uma irmã dele, tia Margareth, lhe deram todo apoio, e ele começou a freqüentar as reuniões do AA - Alcoólicos Anônimos. Para nossa alegria, nunca mais ele bebeu. No Colégio - Cidadão, Cidadã - fiz muitas amizades e conheci pessoas com as quais me relaciono até hoje. Participei de passeios, gincanas e, principalmente, estudei com bons professores por um custo reduzido. A vida em casa seguia calma até começarem as brigas. À época eu não entendia muito, mas hoje sei que as seqüelas causadas pela bebida eram a causa principal. Hoje tudo está superado. Quando completei 11 anos, novas rusgas entre meus pais causaram um grande rebuliço na família. Meus pais quase se separaram. Minha mãe viajou e ficou um mês em Brasília, na casa de uma tia, junto com minha avó. Eu e minhas irmãs fomos espalhadas nas casas das irmãs de meu pai. Foi um tempo muito ruim para todas nós. Nenhuma casa é igual a nossa. Mais uma vez tudo acabou bem. Os dois se reconciliaram e a paz voltou a reinar. A parte financeira começou a apertar quando minhas outras irmãs começaram a estudar. Recordo-me que, após as aulas, voltávamos para casa no ônibus circular, o amarelão, cujo ponto final ficava dentro da Universidade Federal-UFPI, bem perto da nossa casa; meu pai nos comprava dindim e me dizia que um dia eu iria estudar ali. Estes problemas levaram as irmãs de meu pai a se cotizarem para nos ajudar. Foi assim que, ao completar 13 anos, nos mudamos para o Condomínio Santa Marta. Tia Carminha arca com a prestação do apartamento e tia Margareth paga o condomínio. Minha mãe continua costurando para fora e, graças a seu talento, tem uma clientela fiel e pode ajudar nas despesas da casa. Em 2002, eu cursava o segundo ano do Ensino Médio, e, na festa de aniversário de uma amiga, conheci o Vinicius, que é meu namorado até hoje. Um momento muito triste em minha vida foi o falecimento de minha tia e madrinha Eliane. Confesso que não tenho palavras para descrever essa perda. Ela era a maior amiga de minha mãe, de meu pai e sua irmã mais querida. Ela sempre esteve ao lado deles. No terceiro ano do Ensino Médio, passei por grandes dificuldades, como por exemplo, falta de livros, cansaço... eu estava desestimulada. Por outro lado, meus pais diziam que eu ia ser uma doutora e não passaria pelos problemas que eles viveram. Então eu buscava forças e continuava a estudar. Terminado o Ensino Médio, inscrevi-me no vestibular da UFPI para cursar Nutrição. Dias depois, em 28 de dezembro de 2004, Vinicius, meu namorado, sofreu um acidente de moto e quebrou a clavícula. Fiz as provas, mas estava muito insegura quanto ao resultado. Passei a visitá-lo em casa todos os dias. Em uma dessas visitas, ouvimos o rádio transmitindo a lista dos aprovados no vestibular. Quando ouvi meu nome, não acreditei. Fiquei muito emocionada e Vinicius me disse que nunca duvidou de minha aprovação. Sei que ele foi muito importante nessa minha conquista. Com muita ansiedade, corri para casa, louca para contar a meus pais. Quando cheguei, meu pai me disse, olhando nos meus olhos, que estava orgulhoso de mim. Amo demais a minha família e, no fundo, tinha medo de decepcioná-los, pois eles sempre acreditaram em mim e me deram força. Com relação à UFPI, pude contar com a ajuda de minha tia Margareth, que me dava os passes de ônibus para as aulas do centro; ajudava-me com o xerox e em muitas outras coisas, 24 Caminhadas de universitários de origem popular tais como: impressão de meus trabalhos, acesso à Internet, visto que ainda não tenho estes benefícios. Ela também me incentiva muito a estudar, a fazer mestrado, doutorado e me passa muitas dicas! Por tudo isso, sou-lhe muito grata, sei que quando precisar posso contar com ela. Atualmente estou na Universidade e, com fé em Deus, no segundo período de 2008, me formo nutricionista. Também participo de um Programa de ideologia admirável, "Conexões de Saberes", que me tem dado meios de ajudar pessoas que precisam assim como eu precisei e preciso. Estou muito feliz por me sentir útil, como também agradecida pelas oportunidades que tive na vida. Apesar das dificuldades, sou muito feliz. Universidade Federal do Piauí 25 Minha história, minha luta André Vieira dos Santos * A razão da existência dos obstáculos em nossa vida é a certeza de que temos a capacidade de ultrapassá-los e a consciência da satisfação de conseguirmos uma vitória com sabor especial; porém é necessário que acreditemos nisso. Deste modo, não tenho a vergonha, mas sim o orgulho de admitir que minha trajetória, até ingressar na UFPI, foi marcada por muitas dificuldades que me fizeram aprender e compreender que a vida não é feita somente para rir, mas também para chorar. Meus pais Minhas dificuldades são provenientes da infância de meus pais; eles são naturais de um pequeno povoado chamado Barreira, situado próximo ao município de Araiozes (MA), onde o meio de sobrevivência era a pesca e o trabalho na roça. Meu pai, Raimundo Nonato Gomes dos Santos, perdeu o afeto paterno aos seis anos por motivo de separação de meus avós. A partir de então, ele foi morar com sua mãe e começou a ajudá-la na roça e nos afazeres domésticos. Mesmo assim, com muita força de vontade, conseguiu concluir o Ensino Médio, dividindo seu tempo entre a escola e o trabalho. Por outro lado, minha mãe, Rosinete Maria Vieira dos Santos, dividia a casa com nove irmãos, sendo quatro homens e cinco mulheres, com ela seis, totalizando dez filhos. Somando meus avós daria um time de futebol com um jogador na reserva. Mais tarde o time, infelizmente, se desfalcou com o falecimento de uma das filhas. Seguindo a lógica, os homens acompanhavam meu avô na roça e nos trabalhos pesados, enquanto as mulheres dividiam as tarefas de casa com minha avó. Detalhe: todos estudavam. Diferentemente de meu pai, minha mãe não foi longe nos estudos, tendo concluído apenas o Ensino Fundamental. Em 1979, meu pai mudou-se do Maranhão para a cidade de Parnaíba-PI, onde moramos até hoje. Em 1982, meus pais começaram a namorar e, exatamente, um ano depois, casaram-se no civil. Em 1984, minha mãe engravidou pela primeira vez e, no dia 31 de março, deu a luz a minha única irmã, Andréia Cristina Vieira dos Santos. Aos dois dias do mês de dezembro de 1985, eu nasci. A vida seguiu com muitas dificuldades, até que, após oito anos de aluguel, adquirimos nossa casa própria. * Graduando em Ciências Econômicas pela UFPI. 26 Caminhadas de universitários de origem popular Vida escolar Excetuando-se o Jardim I, II, e III, devido à ausência de recursos, estudei sempre em colégios públicos. Como nunca fui de mudar muito de colégio, fiz minha caminhada estudantil em apenas quatro escolas, sendo a UFPI meu quinto estabelecimento de ensino e progresso. Comecei a estudar na idade adequada. Aos três anos meus pais me matricularam no Jardim I. Diferentemente de minha irmã e da maioria das crianças, eu não chorava querendo voltar para casa, pois rapidamente me familiarizei com o ambiente escolar. Eu gostava de cobrir as figuras tracejadas, para, em seguida, cobri-las, brincar com os colegas na hora do recreio e, o que era melhor, cantar para lanchar. Aos cinco anos eu já sabia ler. Terminada esta fase, mudei-me para outra escola onde permaneci até a 4ª série da Alfabetização. O maior problema era a grande distância entre minha casa e o colégio, o que me obrigava a tomar uma condução. Isto me levou a mudar para uma escola mais próxima de casa, então completei o meu Ginásio (Fundamental Maior). O Ensino Médio chegou e com ele um caminho cheio de desafios e novos obstáculos. Era um novo significado que eu deveria compreender e saber superar. A educação pública nos cria barreiras difíceis de serem superadas: fraco conteúdo, pouco incentivo e falta de compromisso de muitos professores. Mesmo assim nunca perdi a esperança de um dia ingressar na tão esperada universidade. Através do Programa Seriado de Ingresso a Universidade-PSIU, fiz uma prova, que é chamada Etapa, ao fim de cada ano, sendo que, ao final do 3º ano, era feita uma avaliação específica do curso escolhido, além da prova de Redação. Eu dei tudo de mim, mas não tinha certeza de aprovação. Sabia ser uma tarefa difícil, pois ia me encaixar na pequena percentagem de aprovados provenientes do ensino público. A sorte estava lançada e a esperança não me abandonava. No dia do resultado eu precisei sair. Minha irmã ouviu meu nome no noticiário de uma Rádio local. Ao chegar em casa, ela me deu a boa nova. Fiquei feliz e atônito. Corri então para a Universidade Federal do PiauíUFPI, a fim de conferir meu nome na lista de aprovados para o curso de Ciências Econômicas. O sorriso estampado em meu rosto era o resultado da grande alegria pela aprovação e também pela emoção que meus pais deviam estar sentindo. Ali nascia um futuro economista. A matrícula na UFPI Passada a euforia daqueles belos dias, chegou a hora de juntar todos os documentos necessários à matrícula. Aí começou uma série de complicações. Eu pensei comigo: "Se para chegar aqui eu tive que superar muitos obstáculos, esse então será mais um". Mas não foi nada fácil. Minha mãe estava sempre me acompanhando. Quando chegamos ao colégio para pegar meu histórico escolar, apenas o último estava pronto. Então bateu o desespero, pois a data da matrícula se aproximava. Mais uma vez a ineficiente burocracia aprontava das suas. Os documentos deveriam ir para a Regional de Educação de Parnaíba, depois seguiriam para a capital Teresina e, após serem autenticados, retornariam para Parnaíba. Passei dias de angústia e medo. O dia da matrícula finalmente chegou. Eu tinha em mãos todos os documentos exigidos pela Universidade, menos o certificado de conclusão do Ensino Médio. Tive então que assinar um termo de compromisso com prazo limite estipulado. Caso não entregasse o documento até aquela data eu corria o risco de perder a vaga. Sete outros colegas se encontravam em igual situação. A data limite se aproximava e nada de documento. Nós Universidade Federal do Piauí 27 íamos ao colégio todos os dias. Estudar anos a fio, passar no vestibular e não poder estudar por falta de um simples documento. Eis aí uma provação que não desejo a ninguém, por mais que mereça. A diretora da escola, vendo nossa situação, tomou uma sábia e santa atitude. Viajou para Teresina e resolveu o problema. Para alívio de todos, os papéis foram entregues antes do prazo final. A vida acadêmica Meu primeiro dia de aula como acadêmico estava muito próximo, e a ansiedade não parava de crescer. Eu tinha consciência que minha vida ia mudar. A convivência, a partir de agora, seria feita em nível superior. Sabia também que ia conviver com pessoas de todas as classes sociais, desde o aluno vindo das camadas populares, como eu, ao acadêmico de classe média alta. Isso mexia um pouco comigo, mas não a ponto de me desviar do foco de meus objetivos. O dia 22 de março de 2004 finalmente chegou, e nunca mais saiu de minha memória. Eu estava me sentindo um estranho no meio daquelas pessoas que nunca havia visto. Aliviei-me ao encontrar uma conhecida que, por sinal, fora aprovada no meu curso. Os calouros foram recepcionados com a exposição da programação e da grade curricular. O primeiro semestre foi muito conturbado, pois a UFPI estava em processo eleitoral para a escolha do reitor, e, senti-me importante por estar participando de uma ação democrática dentro da universidade. O tempo foi passando e eu comecei a descobrir que nem tudo era maravilhoso. A Biblioteca era deficiente, pois a demanda era maior que a oferta de livros. Como não havia dinheiro para adquirir os livros, que eram muito caros, apelei para a xerox e para a cópia fiel das transparências exibidas em sala de aula. Às vezes eu fraquejava, mas logo me reanimava e continuava minha trajetória. Contudo, jamais pensei em desistir, pois aprendi com meus pais que a vitória não tem graça se não ultrapassarmos os obstáculos; e que as coisas difíceis são feitas para os corajosos, para aqueles que têm vontade de vencer na vida, sem medo de errar. As coisas fáceis ficam para os preguiçosos, os acomodados, para aqueles que têm medo de dar o primeiro passo e caminhar. Atualmente estou cursando o 6º período de Ciências Econômicas e sou bolsista do Programa "Conexões de Saberes". Além da valiosa contribuição econômica, o programa me oferece uma imensurável aprendizagem que, futuramente, tenho certeza, irá contribuir para me tornar um cidadão mais humano e consciente de minhas responsabilidades para com a nossa sociedade, mediante minha colaboração com as políticas públicas que o programa propõem. Sei também que já começo a pensar sobre minhas ações e tenho a convicção de que meus sonhos se tornarão reais se, a cada obstáculo, eu tiver a consciência de que sou suficientemente forte para superá-lo. 28 Caminhadas de universitários de origem popular Caminhos do aprendizado Cícero José Pereira * Os reflexos em família Antes de discorrer minha vida nestas linhas, tão inéditas para mim quanto as pretensões deste Programa no Piauí, espero conseguir traduzir grandes momentos de uma vida de muita luta, simplicidade, compromisso e correlação humana. Os que me conhecem sabem que sou um tanto reservado, por isso, quando soube da anunciada publicação, fiquei receoso com essa idéia de contar minha vida. Neste caso, vamos aos fatos. Minha vida sempre foi direcionada para o estudo, para a educação. As frases do tipo: "Na vida nada se consegue sem educação" ou "Estude para ser alguém na vida" sempre foram minhas diretrizes. Meus pais, logicamente pensando em um futuro melhor para os filhos, sempre estiveram presentes na minha educação, e sua sábia influência foi decisiva para meu momento atual. Eles vieram do campo, são pessoas batalhadoras, mas de pouca instrução. Mesmo assim, ao chegarem à cidade grande, procuraram nos mostrar o caminho certo diante das dificuldades da vida. Sou-lhes grato por serem meus professores da vida, presentes em todos os momentos, e cujos esforços quero corresponder sempre com meus sentimentos. Sou o mais novo de três irmãos. Suas vidas foram bem mais difíceis que a minha. Ainda assim eles me deram todo o apoio que precisei. Atualmente eles estão casados, mas continuo achando que a vida de solteiro é boa. Vivi boa parte de minha infância estudando. A diversão de sair à rua e brincar como todo moleque deixou muito a desejar. Quando aprendi a ler, minha rotina mudou. Eu catava todos os tipos de publicação, tais como livros, jornais, revistas, e lia sem parar e com muito prazer. Outras reflexões em linhas Minha fase na escola teve início em uma sala improvisada de ensino particular, com apenas uma única turma de Alfabetização, cujas regras infringidas por comportamento valiam como castigo. Com sua mente rudimentar, quase "neanderthal", a professora lançava mão da "palmatória" (régua de madeira), que, à época, ainda era o método utilizado para acalmar os ânimos. Mas de tão acostumados com aquela bagunça, a molecada não tava nem aí para ela. Nos anos posteriores do Ensino Fundamental, tive bom desempenho, apesar da baderna. No segundo ano, aconteceu um fato que até hoje nunca esqueci. A professora estava à lousa escrevendo e explicando ao mesmo tempo, a matéria do dia. Nas carteiras ao * Graduando em Pedagogia pela UFPI. Universidade Federal do Piauí 29 fundo da sala, alguns alunos faziam um barulho ensurdecedor; certamente ninguém conseguia ouvir nada. Foi então que ela, olhos vermelhos de raiva, tomada por uma fúria insana, pegou o apagador; seus olhos buscaram sofregamente aquele que era o mais bagunceiro e que ela conhecia muito bem; com precisão e certeza ela mirou o alvo e arremessou o apagador. Quando dei por mim, vi, assustado, aquele objeto viajando célere em minha direção. Ele parecia mais um tijolo, à medida que voava sobre minha cabeça. O tiro tinha a direção certa, mas o moleque foi mais rápido e se esquivou. A professora Lourdes, Deus levou, quanto àquele menino, nunca mais o vi. Após concluir o Ensino Fundamental, consegui uma vaga para cursar o Ensino Médio em uma escola pública na minha cidade, Timon-MA, situada à margem esquerda do rio Parnaíba; do lado direito, Teresina, capital do Piauí. Os problemas de infra-estrutura nas escolas públicas são comuns tanto no Ensino Médio quanto no Ensino Fundamental, e sobejamente conhecidos. Entretanto, tive bons professores, e, durante o ano em que lá permaneci, pude aproveitar para colocar em prática o meu aprendizado, quando fiz um teste seletivo para Eletrotécnica do CEFET de Teresina. No ato da inscrição, eu não tinha a menor idéia do que me esperava futuramente. Eu havia sido aconselhado por terceiros que diziam tratar-se de um curso rentável financeiramente. Fui aprovado e passei a freqüentar as aulas em meio a protestos de estudantes e professores. Os primeiros clamavam por melhorias na infra-estrutura física, tais como a substituição de equipamentos sucatados; e os segundos, aumento salarial. Hoje, posso afirmar, com segurança, que as condições de ensinoaprendizagem também eram deficientes. Cito como exemplo a valorização excessiva de teorias em detrimento do ensino prático que a própria atividade requer. O estágio que nos foi oferecido, em uma companhia de energia elétrica local, foi uma decepção. Nossa mão-de-obra foi explorada e subutilizada em tarefas burocráticas não condizentes com nossos objetivos de aprendizado. A decepção foi tamanha que não consegui me firmar na profissão. Foi então que resolvi tentar meu primeiro vestibular na Universidade Estadual. Escolhi um curso muito concorrido e, como não estava bem preparado, não fui aprovado. No ano seguinte, tentei novamente, desta vez na Universidade Federal do Piauí, e escolhi uma área de conhecimento que admirava tanto pela importância que representa para a sociedade quanto pelo rico conteúdo de leituras voltadas para a educação. Desta vez, com grande êxito, consegui a aprovação. E que festa veio depois! Os primeiros contatos com a Universidade deram-me informações de grande valia sobre o espaço acadêmico e sobre o Curso de Pedagogia. A partir daí, comecei a me inteirar da vida de estudante universitário. Contratempos, convivências, sonhos e realizações cotidianas. A forma como desenvolvo este escrito é para expressar a minha insatisfação quanto aos problemas de ensino que enfrentei em minha vida escolar. É notória a absurda injustiça social que diferencia os ricos dos pobres, inclusos e excluídos dos mesmos direitos. Isto aliado à falta de compromisso dos dirigentes públicos deste país, que não assumem, de fato, suas obrigações para com os interesses da maioria da população desprovida de políticas públicas sérias e eficientes. Atualmente sou estudante de Pedagogia da UFPI, e vejo perspectivas de vida promissora neste novo empreendimento. Quando tomei conhecimento do Programa "Conexões de Saberes", de seu diálogo entre a Universidade e as Comunidades Populares, de seus objetivos tendo em vista a causa social, não perdi tempo, e abracei esta idéia, pensando nas possibilidades enriquecedoras que o Programa pode proporcionar à carreira de um estudante 30 Caminhadas de universitários de origem popular universitário juntamente com a oportunidade de poder contribuir para a melhoria da qualidade de comunidades populares marcadas pela hipocrisia elitista. Em Teresina, estamos atendendo a comunidade da "Vila Parque Ininga", proporcionando atividades educacionais, de lazer, saúde, entre outras tais que podem inserir a participação daquela gente no meio acadêmico. Neste primeiro ano do "Conexões", tivemos a grande chance de poder, juntamente com as delegações de outros Estados, participar do Encontro Nacional ocorrido na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao apresentarmos nossos trabalhos e nossas propostas, reafirmamos politicamente o "Conexões de Saberes" para todo o País. Universidade Federal do Piauí 31 Passos de resistência Cleane Maria Alves * Neste texto, tentarei fazer uma retrospectiva de minha vida. Falar de si mesmo é sempre algo muito complicado. É impossível fazê-lo sem que nos envolvamos e sem carregar o texto de subjetividades. Deste modo, ressalto que é este o meu objetivo, ou seja, envolver-me e fazer com que conheçam um pouco da minha caminhada até o momento atual. Nasci na pequena cidade de Guadalupe, localizada no interior do Piauí. Sou de uma família de oito filhos, liderada por meu pai, Luiz Alves, um agricultor, e minha mãe, Maria Cleide, assalariada do município. Fui a penúltima a nascer. Minha trajetória de vida iniciase com um parto prematuro que resultou em uma criança debilitada e de saúde frágil. Eu ficava durante semanas no hospital, e meus pais, desesperados, não sabiam como agir, já que os poucos médicos da cidade diziam que a única coisa a fazer era me levar para casa e aguardar o momento de minha morte. Felizmente, "mãe de verdade nunca desiste", e meus pais continuaram procurando assistência para manter vivo aquele pequeno e frágil ser. Como drible na fatalidade, eles conseguiram vencer essa primeira batalha, e tornei-me uma criança alegre e cheia de energia. Desfrutava de todas as delícias de viver em uma cidade pequena, com total liberdade e segurança para brincar. Lembro-me bem que adorava ficar mexendo nos cadernos velhos de meus irmãos, pois havia em mim uma enorme curiosidade sobre como seria a escola; e imaginava como um universo mágico e misterioso. Aos cinco anos de idade, fui matriculada em uma escolinha municipal, próxima a minha casa, e onde minha mãe trabalha como zeladora. Eu era uma criança muito tímida na escola; tinha poucos amigos, mas eram amizades sinceras, sendo que minha melhor amiga era minha prima Edite. Estávamos sempre juntas. Depois dessa primeira fase, fui transferida para uma outra escola a fim de iniciar a 5ª série. A escola também era pública, mas era mais exigente, e comecei a perceber a fragilidade do meu ensino básico. Nós não éramos preparados para a compreensão dos assuntos abordados, mas sim para sua memorização. Ao terminar o Ensino Fundamental, na 8ª série, eu me perguntava como ia fazer para continuar estudando, pois em Guadalupe o Ensino Médio municipal ainda não estava regulamentado, e faltavam opções de uma educação de melhor qualidade. Foi então que percebi o quanto era importante conseguir passar em um teste seletivo para a Escola Agrícola de Floriano-PI, cidade vizinha, que era considerada pólo educacional no Sul do Estado. * Graduando em História na UFPI. 32 Caminhadas de universitários de origem popular Ao enfrentar o teste, tinha em mente várias dúvidas: - e se eu passar? Como e onde morar? Por outro lado, se não fosse aprovada, seria uma grande decepção. Essas dúvidas não cessaram, mesmo quando eu soube que havia sido selecionada, tendo vencido aquele primeiro desafio. Na verdade, até no momento de alegria, da comemoração, aquela angústia não me saía do pensamento. Felizmente meu pai tinha uns parentes em Floriano. Eu não os conhecia, não havia muita aproximação, mas meu pai conseguiu entrar em contato e ficou acertado que eu iria morar, temporariamente, com a família de uma prima. Dona Luzia me recebeu muito bem. Ela é uma pessoa que admiro muito e que sempre me tratou com muito carinho. Passado o primeiro ano do Ensino Médio, ela me chamou para conversar, e disse que eu não mais poderia ficar com ela, pois estava para receber uma sobrinha que morava em Teresina, e que havia passado em um concurso público para Floriano. Eu tinha apenas 15 anos de idade e já estava, novamente, sem possibilidade de dar continuidade à minha caminhada como estudante. De sorte, encontrei duas pessoas maravilhosas: o Sr. Miguel e sua esposa Dª Carmelita. Eles me deram muita força e permitiram que eu fosse morar com seus filhos que já estudavam em Floriano, dividindo apenas algumas despesas. Esta foi mais uma família que me acolheu, em um momento de resistência à minha realidade. Eu me preocupava como minha mãe iria fazer para retirar parte do salário mínimo que recebia para custear meus estudos. Sentia um peso na consciência, pois, além de mim, havia mais três irmãos e um sobrinho que viviam com meus pais. Resistir até onde pudesse foi sempre o meu objetivo, e, apesar dessa dura realidade, considero que consegui vencê-la. Não apenas por mim, mas principalmente pelas e através das pessoas que, de alguma forma, me deram apoio. Não fossem as oportunidades que surgiram e que pude aproveitá-las, eu jamais teria conseguido chegar até aqui. Reconheço o mérito, mas penso que somente acreditar e traçar objetivos não leva à vitória, pois, se assim fosse, estaríamos atribuindo a cada excluído socialmente a culpa por seu fracasso. Ao contrário, acredito que só conseguimos vencer se, de alguma forma, tivermos oportunidade para tanto, caso contrário, assim como acontece com a grande maioria, não conseguiríamos "remar contra a maré". Diante de tal realidade, ultrapassei cada etapa do Programa Seriado de Ingresso a Universidade-PSIU, e, na 3ª etapa, optei pelo Curso de Licenciatura em História. Só recebi o resultado dias depois de sua divulgação, pois não havia jornal na minha cidade e o acesso à Internet era muito difícil. Eu estava sozinha com um amigo que conferiu o resultado pela Internet, em sua casa. Conferimos várias vezes a lista, e meu nome não estava ali. Olhamos mais uma vez, então vimos: Cleane Maria Alves, aprovada. Comecei a chorar, em um misto de alegria e tristeza. Mais uma vez a incerteza veio à minha mente. De que adianta passar se não vou poder morar em Teresina, estudar e realizar meu sonho de ter um curso superior? Naquele primeiro momento, fiquei mais triste que alegre. Cheguei em casa e não disse nada a ninguém. Minha irmã, Celma Alves, me perguntou por que eu estava tão calada, e eu disse que havia passado no vestibular. Ela, muito feliz, perguntou-me: - então, por que você não está feliz? Expliquei os motivos e ela me deu a maior força. Disse que ia conversar com meu pai e tudo ia dar certo. Passei um longo tempo deprimida, até meus pais perceberem o quanto aquilo era importante para mim. Como sempre, meu pai esforçou-se ao máximo, e entrou em contato com um sobrinho, residente em Teresina. Mais uma vez, consegui um lugar temporário para ficar. Eu já tinha ouvido falar na Casa do Estudante do Campus da UFPI, e parti com a Universidade Federal do Piauí 33 esperança de conseguir uma vaga, pois era minha única chance. Agarrei-me a esta esperança e recuperei a vontade de lutar. Foram muitas idas e vindas ao Centro de Assistência Social da UFPI, até que, finalmente, consegui minha vaga. Agradeço muito ao Dr. José Alves, por ter me acolhido durante os dias decisivos de espera. Atualmente estou me realizando em um curso que é minha paixão. Sinto meus horizontes se alargarem a cada dia, e me delicio com as maravilhas do saber em cada momento de construção de conhecimento. Faço parte do Programa "Conexões de Saberes", que visa promover oportunidades àqueles que desejam lutar pelo sucesso estudantil e se deslumbrar nos labirintos do saber. Além disso, promove o debate sobre diversos temas de grande relevância social. Para mim é um grande prazer estar com pessoas que, de alguma forma, têm ou tiveram as mesmas aflições que eu. Afinal, não ficar de braços cruzados diante das desigualdades que se alastram por nossa sociedade é o primeiro passo para construirmos uma realidade social menos segregadora, preconceituosa, racista, discriminatória e elitista. 34 Caminhadas de universitários de origem popular Cleylce, botão de rosa que desabrochou Cleylce Santana da Silva * Mesmo com os empecilhos que dificultam atingir os objetivos, comparo a vida a uma longa viagem de trem. Isso mesmo, "a vida não passa de uma viagem de trem, cheia de embarques e desembarques, alguns acidentes, surpresas agradáveis em alguns embarques e desagradáveis em outros".* Deste modo, menina/mulher, relato alguns momentos marcantes de minha viagem. Nasci de uma família que, até eu completar dez anos, era constituída de seis pessoas. Posteriormente, em 1992, foi reduzida para cinco com o falecimento de meu pai e chefe de família, Antônio de Pádua. A partir daí, todos, e em especial minha mãe, Gleuce Santana, tivemos que lutar pela sobrevivência. "Às vezes, sem você perceber, fico lhe observando e vejo que aquele bebezinho, mais que os outros, foi enviado por Deus. Explico o 'mais que os outros'. Eu esperava um menino e veio uma menina. Como tudo o que tenho me foi dado por Deus, você é o bem mais precioso que recebi" (palavras de minha mãe). Nasci em 30 de janeiro de 1982, sou a caçula da família. Mesmo com todas as dificuldades, minha infância foi muito feliz. Minha educação infantil foi concluída em uma pequena, mas aconchegante, escola de bairro chamada Monteiro Lobato. Jamais quero esquecer minha infância, pois desejo ter sempre dentro de mim a inocência de uma criança. Foi também em uma escola de bairro que comecei a descobrir os segredos da vida, e concluí o Ensino Fundamental. Esta parte de minha vida também foi feliz, mas com alguns solavancos. Quando nascemos e entramos nesse trem nos deparamos com algumas pessoas que julgamos estarão conosco durante todo o trajeto: nossos pais. Infelizmente não é bem assim. Em alguma estação eles descerão e nos deixarão órfãos de seu carinho, amizade e de sua insubstituível companhia. Por outro lado, pessoas interessantes e que se tornarão muito especiais vão embarcando. Chegam os irmãos, aparecem os amigos e surgem amores maravilhosos.** * Graduanda em Pedagogia pela UFPI. Os trechos do presente texto, aspeados ou com asteriscos, são de uma mensagem, de autor anônimo, intitulada "A Viagem", apresentada em slides do microsoft Power Point. ** Universidade Federal do Piauí 35 Sentindo-me uma mulher, mas sempre com a inocência de uma criança, munida de muita força de vontade para vencer na vida, comecei a cursar o Ensino Médio na Escola Corujão, e, posteriormente, no Instituto de Educação Antonino Freire, onde concluí o Magistério em nível médio. Desde então, senti-me estimulada a conhecer mais profundamente o processo educacional e tornar-me uma agente transformadora da realidade social. Para tanto, iniciei os estudos para o vestibular. Este foi um dos períodos mais duros. Os problemas econômicos e emocionais pareciam intransponíveis, mas jamais pensei em desistir. Muitas pessoas tomam o trem apenas para passear. A viagem de outras é cheia de tristezas. Algumas circularão pelos vagões, prontas a ajudar a quem precisa. Muitas descem e deixam saudades eternas. Outras tantas entram e saem despercebidas.** Estamos em 2003. É hora de enfrentar, pela primeira vez, o vestibular na Universidade Federal do Piauí. Agora sou uma rosa e uma grande mulher. Quem luta sempre consegue, e eu consegui. A alegria foi ainda maior porque minha irmã, Cláudia Santana, também foi aprovada. Mais uma etapa de minha vida foi vencida, graças ao esforço e superação. É curioso constatar que alguns passageiros, que nos são tão caros, acomodam-se em vagões diferentes do nosso. Isto nos obriga a fazer a viagem longe daqueles que amamos. Muitas vezes deixamos nosso vagão e vamos até o deles, porém quando chegamos não podemos dividir o mesmo banco, pois já tem gente ocupando o lugar.** O tempo não pára. Em 2006, uma nova conquista veio me trazer mais evolução pessoal e crescimento profissional. Integrei-me ao Programa "Conexões de Saberes". O aprendizado e a troca de saberes são feitos em grupo e este se torna uma grande família. E o trem segue viagem. Cheia de atropelos, sonhos e fantasias, esperas e partidas. Retorno, jamais! Façamos o trajeto da melhor maneira possível, procurando ter um bom relacionamento com os outros passageiros, buscando, em cada um deles, o que tiverem de melhor, lembrando sempre que, em algum momento, alguém poderá fraquejar e, provavelmente, precisaremos entender porque nós também, várias vezes, fraquejamos. Nesta hora sempre haverá alguém que nos entenderá e estenderá sua mão amiga. O grande mistério, afinal, é que jamais saberemos em qual parada vamos descer. Muito menos os nossos companheiros, nem mesmo aquele que está sentado ao nosso lado. Eu fico pensando... Será que sentirei saudades quando descer? Acredito que sim. Separar-me de alguns amigos será, no mínimo, doloroso. Deixar meus filhos viajarem sozinhos será, com certeza, muito triste. Contudo me agarro à esperança de reencontrá-los na estação principal e aí 36 Caminhadas de universitários de origem popular sentirei a enorme emoção de vê-los chegar trazendo uma bagagem que não tinham quando nos separamos. O que vai me deixar mais feliz é a certeza de ter colaborado para o crescimento deles.** Façamos, meus amigos, com que nossa estadia nesse trem seja tranqüila. Que possamos deixar saudades e boas recordações para aqueles que seguirão viagem. Mas a viagem ainda não acabou... Universidade Federal do Piauí 37 Minhas memórias Elizabeth Pereira Cabral * Decidi começar minhas memórias com o significado da palavra vitória,1 pois é assim que minha vida tem sido. Grandes lutas, mas no final grandes vitórias. Aos quatro anos de idade, minha querida mãe, Dona Graça, me ensinou meu nome. As vogais, ou seja, o básico, já que ela não tinha condições de me colocar em um Jardim de Infância, pois, além de mim, havia mais três boquinhas: Orlando, Verônica e Júnior, meus irmãos, para ela sustentar. Aos sete anos, fui fazer a primeira série no Colégio Estadual Gayoso de Almendra, de onde só saí porque lá não havia a 4ª série. Não tínhamos casa própria e, por isso, vivíamos como nômades; nessas mudanças, acabei morando muito longe do meu colégio. Oh! Tempinho doloroso para as minhas perninhas. Como não havia dinheiro para o ônibus, o jeito era ir a pé, em pleno sol do meio dia. Detalhe: “não era um Sol qualquer, mas o Sol do meu querido Piauí”. Ao iniciar a 5ª série, meu maior sonho era ter um caderno de 10 matérias e um estojo com tudo dentro, porém, como eu disse, era apenas um sonho, já que minha mãe só conseguia comprar o suficiente para podermos escrever e estudar. Apesar das poucas condições financeiras, não lhe faltavam ânimo e palavras encorajadoras para cada um de nós, seus filhos. Eu sempre estudei sozinha. Quando não entendia o assunto, estudava mais ainda, pois sabia que não tinha ninguém para me auxiliar. Da 5ª a 7ª séries, vivi o período mais difícil de minha vida, porque agora entra em cena uma figura há muito esquecida, não por vontade minha, mas sim por sua ausência voluntária: meu pai, Divanildo Pereira Cabral. Mamãe o trouxe de volta para nossas vidas por ele estar doente e sozinho. Foi aí que tivemos que apertar ainda mais o cinto devido aos gastos com remédios e internações. Foi triste ver nosso pai definhando a cada dia. No dia 2 de abril de 1989, da mesma forma repentina que entrou, meu pai saiu de minha vida. Tempos depois de seu falecimento mamãe ganhou uma casa própria e fomos morar na zona sul de Teresina. Fui matriculada no Escolão do Parque Piauí, em regime de semi-internato. Foi durante a 8ª série que tive que fazer uma escolha: ou fazia o Ensino Médio em uma escola do Estado, sujeita a inúmeras greves, ou estudava muito para fazer o teste do Centro Federal de Educação Tecnológica do Piauí-CEFET-PI. Fiquei com a segunda opção, e logo começaram as dificuldades. Mamãe não tinha dinheiro para pagar a inscrição e o prazo estava acabando. Fui salva na última hora, pois mamãe conseguiu uma faxina * Graduanda em Ciências Econômicas pela UFPI. Vitória: sf. Ato ou efeito de vencer o inimigo ou competidor; triunfo (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. O novo dicionário Aurélio século XXI. São Paulo: Nova Fronteira, 2001). 1 38 Caminhadas de universitários de origem popular (trabalho doméstico temporário) salvadora. Paguei a taxa, fiz o teste e fui aprovada. Então iniciei meu curso profissionalizante na área de Saneamento Básico. Começava assim mais um período de batalhas que enfrentei com todo ânimo e coragem. Eu passava muito tempo estudando na biblioteca, e, quando mamãe me dava algum dinheiro para o lanche, era bom; do contrário... Quando estava próximo o fim do Ensino Médio, deparei-me com outro dilema: fazer ou não o vestibular? Resolvi fazer, mesmo sabendo que meu conhecimento, em relação a outros estudantes, era muito restrito. Como não tínhamos condições de pagar um cursinho pré-vestibular, passei a estudar em casa, tentando me preparar da melhor maneira possível. Não foi difícil escolher o curso. Eu queria ser médica e realizar um sonho de infância. A escolha também pesou, em razão da doença e morte de meu pai. Minha mãe conseguiu o dinheiro da inscrição. Fiz as provas, e, em seguida, a decepção. Não desanimei e insisti. Fiz mais dois exames sem sucesso. Foi então que aconteceu um fato que, de uma forma inesperada e brutal, abriu meus olhos para a realidade. Era a festa de aniversário de meu primo e a família estava reunida na maior alegria. De repente, meu tio, irmão de minha mãe, homem bem sucedido, aproximouse de mim e conversamos muito até chegar ao assunto vestibular. Ouvi dele um sermão que até hoje ecoa em minha mente e no mais profundo do meu ser. Calmamente ele me disse: "Minha filha, eu acho melhor você escolher outro curso, porque a Medicina está destinada aos filhos de gente rica. Os livros são caríssimos, e muitos não são encontrados na biblioteca, sem falar que, quando têm, estão escritos em inglês. Não vai dar para você terminar o curso. Isto é, não vai dar nem para você passar no vestibular que é muito concorrido. Você não tem capacidade para enfrentar os ricos que estão bem preparados". Quase morri de desânimo, mas aquilo ficou na minha cabeça, martelando, martelando. Pensei bem nas palavras de meu tio e tomei uma atitude: inscrevi-me para Ciências Contábeis; e, mesmo assim, não passei. Quase joguei tudo para o alto. Eu estava revoltada, não queria saber mais de estudar. Minha mãe me deu carinho e apoio. No entanto, a mão de Deus colocou um anjo da guarda no meu caminho: Irmã Cícera Filomena, uma senhora que é da minha igreja. Ela me disse para confiar em Deus e deixá-lo agir em minha vida, perguntar a Ele qual curso eu deveria seguir. E assim eu fiz. Na hora da inscrição, para prestar o quinto vestibular em 2004, escolhi Ciências Econômicas. Mantive segredo e esperei o resultado. Desta vez foi só alegria. Fui aprovada para o segundo período. Mais uma etapa vencida e mais uma por vencer. Todos sabem das dificuldades que temos em permanecer na Universidade, principalmente para os estudantes de origem popular; mas estou consciente e preparada para travar minhas batalhas; certamente as vencerei, pois minha trajetória de vida tem como sinônimo a palavra VITÓRIA. Universidade Federal do Piauí 39 Lionheart: forte, perseverante, astuto e determinado Eric Willian do Nascimento Carvalho* “Eu sabia, desde a primeira vez que trilhei este caminho, que haveria momentos de desespero total, quando se busca arrancar o véu do santuário, e quando se grita por ela, sabendo que não responderá porque não está ali, porque nunca esteve ali, não há Deusa, mas apenas nós mesmos, e estamos sós na zombaria dos ecos refletidos por um santuário vazio... Não há ninguém ali, nunca houve alguém ali, E toda a Visão não passa de sonhos e alucinações...” Marion Zimmer Bradley Acredito que, assim como muitos vêm de famílias de baixa renda, comigo não poderia ser diferente. Meus pais nunca tiveram grandes oportunidades de emprego para nos sustentar, mas sempre nos ensinaram, a mim e minha irmã, que para tudo se dá um jeito. Minha mãe veio do interior do Piauí, Alto Longá, e conheceu meu pai na capital, Teresina. Ele completou o Ensino Médio e tentou duas vezes o vestibular para Ciências Econômicas, mas não conseguiu sucesso. Assim que começou a namorar minha mãe, ele propôs que ela estudasse em alguma escola perto de sua casa, porém ela teve medo de os professores maltratarem-na porque assim acontecia no interior, já que, por ser ela franzina e fraca, era motivo de chacota durante as aulas. Os castigos que ela recebia eram variados: ficar ajoelhada no milho e apanhar com ramos de mangueira na brincadeira de gato e rato. Casaram-se. E eu vim ao mundo com apenas duas coisas: pecado original, segundo a Bíblia, e um cérebro enorme, que quase não saía das entranhas de minha mãe. Tive uma infância sem muitos regalos, só o básico. Um carrinho de plástico, clássico brinquedo para meninos, e uma latinha de doce de goiaba onde fazia minhas refeições. Apanhava muito de meu pai, quando criança. O cinto era lei e ficava sempre no mesmo lugar, onde pudesse ser visto e temido. Nos intervalos entre uma chicotada e outra, descobriram que eu não rabiscava no piso da sala por traquinagem, e sim porque, aos três anos, eu já estava me interessando pelos estudos. * Graduando em Letras-Inglês pela UFPI. 40 Caminhadas de universitários de origem popular Antes que eu me esqueça, gostaria de agradecer ao meu tio Antônio de Pádua Carvalho e à Maria José (ela era minha vizinha), a quem chamo até hoje de tia Zezé. A ele porque no momento em que meus pais não puderam arcar com as despesas de material durante a minha segunda fase escolar, ele nos ajudou, e à tia Zezé, que hoje está sentada à direita do Pai, por ter ajudado minha mãe a me educar. Por muitas vezes era ela quem me socorria, no momento de necessidade aguda, como falta de comida e até mesmo de roupas para vestir. Até nos momentos de lazer familiar, tia Zezé me levava, para clubes, sítios e festas de aniversário. Ensinava-me quando podia, por causa do seu trabalho. Também cuidou de mim, tanto na terrível cirurgia que fiz, quanto na recuperação quando tinha oito anos. Ainda hoje tenho a vela caseira feita de papelão na comemoração do meu oitavo aniversário. Amo-te, tia Zezé, muito obrigado. Quem me descobriu e me deu uma oportunidade foi Elza Freire, que eu chamo Tia Elza. Ela me levou para sua escola particular, de bairro, inicialmente com tudo pago, material e fardamento. O trato seria o seguinte: meus pais pagariam os três anos que eu lá estudasse em parcelas, após o último ano. Funcionava, como é atualmente, o crédito universitário, mas sem burocracia. Do que me lembro, daquela época, posso dizer que foi muito bom, brincar e estudar. Eu pensava que tinha tudo, quando passei a ser motivo de piadas por usar o mesmo uniforme desde que entrei, já que meus pais não podiam comprar um novo. Foi aí que comecei a sentir o desprezo das outras pessoas, a sua mesquinhez florescendo nos primeiros anos de minha vida. Em seguida, fui para o Colégio das Irmãs; ou seja, Unidade Escolar Irmã Maria Catarina Levrini. Muita gente confunde quando digo onde estudei, porque em Teresina existe uma escola privada, muito famosa e direcionada para a elite, chamada Colégio Sagrado Coração de Jesus. Como muitos que estão lendo já pagaram ou ouviram falar sobre legislação do ensino, sabem que escolas confessionais têm que explicar para onde vai o dinheiro dos impostos que deveriam ser pagos como qualquer outra empresa. Então eles criam instituições filantrópicas, como uma das escolas em que estudei o primeiro ciclo do Ensino Fundamental. O ensino era muito rígido. Acho que esse meu jeito certinho de lidar com as coisas deve-se à educação que recebi lá. Todos os dias, enfrentávamos uma rotina em que não podíamos sair da linha. Chegávamos as sete e rezávamos o Pai-Nosso, a Ave Maria e a oração do anjo protetor. Tínhamos a primeira aula de religião e, em seguida, as outras matérias. Vinha o intervalo, mas não podíamos ficar suados, senão ficávamos de castigo na frente dos colegas. Quando retornávamos do recreio, tínhamos que cantar o hino do Piauí inteirinho. Imagine-se oito meses de sua vida, durante quatro anos, seguindo essa ditadura. Só mudávamos o hino, ou melhor, adicionávamos mais um por causa da Independência do Brasil. Que independência nós temos mesmo? Alguém pode me dizer? Lembro até hoje do meu baile de formatura. Tenho as fotos que não me deixam esquecer. Os três melhores alunos das turmas de 4ª séries de 1996 receberiam medalhas. Eu fiquei com a de ouro. A de prata foi para Luana da Cunha (a primeira mulher por quem me apaixonei e de quem recebi um NÃO por ser gordo e ter a dentição amarela), e Janiele ficou com a de bronze (esta era minha grande amiga, até brincávamos de ser namorados, mas tudo não passava de fantasia). Depois voltarei a falar nelas. Para dar continuidade ao Ensino Fundamental, fui para a Escola Santa Angélica, uma escola particular de bairro e a melhor da redondeza, onde cursei da 5ª a 8ª séries. Universidade Federal do Piauí 41 Como todos sabem, nessas escolas de bairro, a clientela não é tão religiosa como deveria ser ou como eu pensava que fosse, já que eu provinha de uma rígida educação religiosa. Eu evitava coisas como ir à diretoria, ser chamado a atenção pelos professores; mas fui me rebelando aos poucos. No primeiro dia, não fui bem recebido, pois todos os alunos já haviam estudado juntos desde as primeiras séries, mas fui me adaptando. Certo dia, fui chamado à Diretoria. Eu nunca tinha entrado antes em um lugar tão temido. Eu estava gelado e nervoso, prestes a urinar nas calças e quiçá vomitar. Isto aconteceu porque a pessoa que me dava carona, pois tinha um filho que estudava na mesma escola e só entrava mais tarde, sempre relaxava, conseqüentemente eu me atrasava. Felizmente só fui chamado a atenção, e avisado que o fato não deveria se repetir. Então meu pai resolveu montar uma bicicleta para mim. Comecei com uma pequena, toda vermelha e acabei com uma grande também vermelha, mas com garupa. Eu gostei de todas as minhas escolas. A Santa Angélica tinha tudo, inclusive um Laboratório de Ciências com seus microscópios onde fazíamos experiências. Eu achava aquilo tudo fascinante. Os outros nem ligavam, mas eu adorava. Outra coisa que me encantou foi o estudo do Inglês, o que realmente sempre gostei, mas sem pensar que aí estava o meu futuro. Tudo para mim era interessante, ou como dizem aqui em Teresina, muito massa. Participei de gincanas, festas e de todos os eventos escolares. Percebam que até agora não mencionei nenhum tipo de esporte ou educação física. Não sei o porquê de nunca ter gostado de esportes. Os únicos exercícios que eu fazia era estudar, escrever, e correr com meus colegas nas noturnas brincadeiras de rua. Além do mais, eu era muito gordo. Nas escolas onde estudei, as aulas de educação física se restringiam aos jogos de Futsal, que eu odiava. Perguntava-me se aqueles professores não eram profissionais ou se o dinheiro de nossa mensalidade só dava para comprar bolas de couro. No último ano, 2000, tínhamos algumas provas simuladas para o teste do Centro Federal de Educação Tecnológica do Piauí-CEFET-PI. A única escola pública bem equipada da região e onde todos queriam estudar. Fiz o teste, passei e virei gente lá. Por quê? Porque lá as máscaras caíram, e posso afirmar que nunca havia aprendido tanto em minha vida. Lá nos ensinaram a enfrentar a realidade, deixando para trás o mundo da fantasia. Entrei em um mundo mesquinho, preconceituoso, hipócrita, porém esperançoso. Sim, acredito, até hoje, que há jeito para tudo, menos para a morte. Daí minha esperança em dias melhores. Passei três anos estudando à tarde. Isso foi terrível. Onze anos estudando pela manhã e, de repente, essa mudança mexeu com meus miolos. Os dois primeiros meses foram insuportáveis. O CEFET fica no centro de Teresina, e sempre ouvi coisas horríveis vindas de lá. Então, durante o ano de 2001, eu ia para a escola e voltava direto para casa. As aulas de Educação Física eram cheias de teorias e mais teorias para aprender e estudar. Além do mais, fazíamos provas ao final de cada mês. Futsal? Claro que tinha! E eu me dava sempre mal. As turmas que primeiro iniciavam as atividades esportivas tinham o privilégio de escolher o esporte a ser praticado. Também existiam turmas específicas, como seleção para vôlei, basquete, handbol, futsal e judô. Como nunca fui bom esportista, resolvi entrar para o teatro, e fiquei durante os três anos. Assim obtinha nota com o trabalho que desenvolvia como ator na "Companhia Entre Rios de Dança e Teatro", 42 Caminhadas de universitários de origem popular onde vivi momentos maravilhosos ao representar as lendas de minha terra e também homenagear o poeta Carlos Drummond de Andrade em seu centenário. Foi durante esse período que, com a ajuda financeira de meu pai, fiz dois cursos: Inglês Técnico e Curso Básico de Informática. No CEFET conheci pessoas de diferentes cores, credos, níveis sociais e orientações sexuais. Tornei-me amigo de muitas delas, já que tenho facilidade em me relacionar. Creio ser este um ponto positivo de minha personalidade. A partir daí, comecei a freqüentar muitos lugares, entre eles o "Boca da Noite", no Clube dos Diários, evento cultural de música que promove e divulga os artistas piauienses. Muitos nomes que hoje estão na mídia surgiram lá. Teófilo Lima, Acesso, Madame Baterfly, Brigite Bardot são alguns deles. Durante os três anos do Ensino Médio, deixei de ser aquele menino gordo, ingênuo, bobo e CDF. Em casa, passei a ser acusado de rebelde e outros nomes que prefiro não revelar. Meus pais sempre foram muito rígidos em relação à minha educação, além de superprotetores. Eu estava passando por grandes transformações, em todos os sentidos, e isto acontecia ao mesmo tempo em que eu me tornava um homem maduro e responsável com meus estudos, pois eu tinha que me definir em relação ao ano de 2004. Minha mãe, que adora um hospital e seus profissionais, queria que eu fosse médico, mas eu sempre tive uma queda pelas Ciências Humanas, excluindo História que eu sempre achei uma matéria muito chata. Por outro lado, eu amava Português, Inglês e Geografia. Em 2003, decidi que ia ficar com a área de Humanas. Curso? E agora? O que mais gosto? Inglês, é claro. Pronto! Está decidido, vai ser Inglês. No CEFET, eu recebia uma bolsa-auxílio de R$ 40,00. Com este dinheiro paguei três meses de aulas de Redação e Inglês. Isto me deu uma incrível sensação de independência. Eu pagava, com meu suor, por aquilo que almejava. Prestei o vestibular e passei. No dia da matrícula, quase morri de tanta felicidade, pois era meu aniversário e eu estava recebendo um grande presente: um cartão confirmando minha matrícula como universitário da UFPI. Foi lindo! Foi perfeito! No início de 2004, eu estava cheio de expectativas, mas depois de dois anos de curso, elas começaram a desaparecer. Isto aconteceu quando percebi que alguns professores não eram tão educados e éticos como deveriam ser. Além das greves que aconteciam todos os anos, tive dificuldades nas aulas, pois eu sabia ler em Inglês, mas não sabia falar a língua. Os professores nos tratavam como se fôssemos membros veteranos de um clube de línguas, mas nós estávamos lá para desenvolver o conhecimento da matéria até seu ponto culminante, na conclusão do curso. Quando comecei a cursar o quarto período, percebi que tinha enrolado os três últimos semestres. Decidi então fazer o teste de nivelamento do English Resource and Information Center-ERIC. O ERIC corresponde à Cultura Inglesa da UFPI. O teste era muito simples e consistia em uma conversa, totalmente em Inglês, com um dos professores. O resultado me surpreendeu e me alegrou. Eu fui direto para o módulo quatro. Atualmente estou cursando o módulo cinco e, se não houver greve, devo concluir o curso de Inglês no final de 2007. Paralelamente estou iniciando o módulo um de Espanhol no Complexo Noé Fortes, da UFPI. O Inglês já me serve financeiramente, pois ministro aulas particulares e sou professor de Inglês Instrumental no Self Access Project, um curso de extensão. Com relação à Luana e à Janielle, citadas anteriormente, a primeira estuda Pedagogia na UFPI; a segunda trabalha como Agente na Rio Poty Turismo. Universidade Federal do Piauí 43 Apesar das dificuldades, eu nunca desisti daquilo que pretendia ser. Para algumas pessoas eu sou um cara determinado. Prefiro ser chamado de "sortudo", pois, mesmo enfrentando as adversidades, sempre consegui tudo na hora certa. Acredito que a perseverança, a força de vontade e o trabalho duro são as melhores ferramentas para se construir uma pessoa, uma carreira e uma vida digna. Desta forma, as coisas se tornam agradáveis para você mesmo, para as pessoas que você ama e também para aqueles que lhe rodeiam e participam do seu desenvolvimento humano. 44 Caminhadas de universitários de origem popular Minha vida, minha luta Francisco das Chagas de Sousa Silva * Nasci em Campo Maior, no meu querido Piauí, e ali morei até os dois anos de idade. De lá nos mudamos para uma fazenda, nos arredores do município de Aroazes, mas que hoje é parte da cidade de Santa Cruz dos Milagres, a Meca do Piauí. Lá, durante seis meses, moramos com meus avós maternos até que meu finado avô disse a meu pai que melhor seria viver em São Félix do Piauí. Sugestão aceita. Mudamo-nos novamente. Em São Félix, passei parte de minha infância, me entendi por gente e comecei meus estudos. De lá tenho boas e más lembranças. Joguei futebol, triângulo e peteca. Brinquei de pega e, às vezes, ficava só, com meus carrinhos, pois sou filho único e nem sempre tinha amigos para brincar. Lembrando que, muitas vezes, mamãe não me deixava sair para a rua. De todas as brincadeiras, o futebol era a minha preferida. Meu sonho era ser jogador profissional e atuar no Flamengo do Rio de Janeiro, meu time do coração. Interiormente, sou um homem, simples, humilde e verdadeiro. Com estranhos sou tímido, mas à medida que vou me relacionando me torno brincalhão e pacato. Neste mundo, algumas coisas me causam revolta, como, por exemplo, o investimento maciço que os EUA fazem em armamentos, que vão alimentar os conflitos e as guerras. O certo seria usar o dinheiro para saciar a fome do mundo e também combater a AIDS, principalmente em países da mãe África. Também não aceito o baixo investimento em educação que é feito no Brasil. É preciso valorizar a figura do professor. Nenhum país chegou ao primeiro mundo sem investir pesado em educação. Em São Félix, iniciei minha vida de estudante no Jardim de Infância Menino Jesus, onde hoje funciona o Fórum. Depois, estudei na Unidade Escolar Maria José, onde fiz a 1ª série do Ensino Fundamental. No ano de 1988, eu e minha família nos mudamos para a capital, Teresina, e fomos morar no Bairro Monte Castelo. Fui matriculado na Unidade Escolar Estelina Dantas, onde cursei da 2ª a 4ª série do Ensino Fundamental. Infelizmente uma greve me impediu de concluir a 4ª série, e tive que repetir na Unidade Escolar Desembargador Henrique Couto. Quando estava cursando a 6ª série, em 1993, os meus estudos foram interrompidos devido à separação de meus pais. Um acontecimento que marcou e dividiu a minha história. Depois da separação, eu e minha mãe voltamos para Santa Cruz dos Milagres, onde residia minha avó materna. O retorno foi chocante. Eu já estava acostumado à vida urbana e nunca havia trabalhado, apenas estudava. Agora residia na zona rural e trabalhava na roça. Foi um ano * Graduando em Geografia pela UFPI. Universidade Federal do Piauí 45 duro, mas também me trouxe ensinamentos e muito amadurecimento. Minha estada na roça durou apenas um ano, pois voltei novamente a morar em Teresina, juntamente com minha companheira de todas as horas, ou seja, minha mãe. Na capital, fomos trabalhar em uma casa de família, a residência de Dona Vânia Guerra, esposa do Dr. José Wilson, ortopedista. Lá eu exercia a função de jardineiro e minha mãe era cozinheira. Voltei a estudar, o que me deixou muito feliz, pois o tempo em que fiquei no interior eu não freqüentava a escola. Como estava atrasado, fiz o supletivo, 6ª e 7ª séries na Unidade Escolar Lucídio Portela, que ficava próxima ao meu local de trabalho. Então passei a trabalhar de dia e a estudar à noite. Concluí o Ensino Fundamental na Escola Municipal Simões Filho. No ano seguinte, ingressei na Unidade Escolar Álvaro Ferreira; ali fiz todo o Ensino Médio. Não foram fáceis, tantas mudanças de escola. Minhas provas de vestibular foram um sucesso. Passei da primeira vez, e escolhi fazer Química, pois o curso era noturno e eu podia conciliar com o trabalho. Foram dois anos e meio de grande frustração. Eu não gostava da matéria e, logicamente, não estava indo bem. Resolvi então fazer novo vestibular. Desta vez escolhi a matéria em que sempre me saí bem: Geografia (Queres entender o mundo? Estude Geografia). Estudei bastante, me preparei e, faltando apenas um dia para a prova, começaram a aparecer em meu corpo umas bolhinhas. No dia da prova eu estava com muita febre e me dei conta que estava com catapora (varicela). Não desisti e, com apoio de Deus, suportei os quatro dias de provas e venci. Estou muito feliz com a escolha. A geografia me caiu como uma luva. Posso dizer que já antevejo minha formatura. Atualmente não mais trabalho em casa de família, só minha mãe continua. Lá entrei adolescente e saí adulto. Foram 10 anos seguidos. Apesar da separação de meus pais e de morar com minha mãe, que é uma pessoa maravilhosa, dona de um grande coração e caráter, meu apoio e porto seguro, eu não me afastei muito de meu pai. Sempre mantivemos contato, pelo menos duas vezes por semana, quando então conversamos bastante e nos inteiramos da vida um do outro. Meu pai é um modesto pedreiro, mas também um bom homem, um homem de caráter. Hoje sou bolsista do Programa "Conexões de Saberes". Um programa de grande valor social que tenta propiciar aos jovens de origem popular (assim como eu) uma permanência com qualidade na universidade pública, tentando também integrar o saber popular com o conhecimento científico. Para mim o Programa tem sido muito proveitoso, pois também estou tendo a oportunidade de crescer como ser humano, além da convivência com pessoas maravilhosas. 46 Caminhadas de universitários de origem popular Vencendo desafios Francivaldo Pinheiro Fernandes * Nasci em Barão de Grajaú, interior do Maranhão, e tenho uma família muito legal, a qual amo muito. Meu pai, Manoel Francisco Fernandes, é um homem honesto, humilde e trabalhador. Desde cedo, ele teve que trabalhar na roça, ajudando meu avô. Por ser o filho mais velho, teve que assumir responsabilidades e pouco tempo sobrou para estudar. Mesmo assim, com muito esforço, conseguiu estudar até a 4ª série do Ensino Fundamental. Minha Mãe, Luiza do Carmo Pinheiro Fernandes, só atingiu a 1ª série. Seus pais eram trabalhadores rurais e ela os ajudava na lavoura, e também cuidava dos irmãos menores. Ela é uma mulher guerreira, carinhosa e amável. Eu sou o filho caçula de nove irmãos, sempre vivi em um ambiente agradável, onde faltava dinheiro, mas sobravam amor e carinho de nossos pais. Recordo minha infância com alegria. Os jogos de futebol, peteca, soltar pipa e jogar pião. Eu era feliz e gostava de assistir televisão e andar de bicicleta. Comecei a estudar no Colégio Imparcial, e ali cursei da Alfabetização até a 8ª série do Ensino Fundamental. A escola distava de casa e, muitas vezes, minha irmã mais velha ia me levar. Depois, mais crescido, ia sozinho e voltava para casa com os colegas. Meu primeiro dia de aula tornou-se inesquecível. A excitação era tamanha que acordei por volta das 5 horas da madrugada. Chamei minha mãe e ela disse que eu podia dormir mais um pouco, pois ainda era cedo. Voltei a dormir e, na hora certa, estava no colégio, acompanhado de minha mãe. Fiquei admirando as paredes, cheias de cartazes coloridos, as mesinhas e suas cadeiras. Ali era minha sala de aula. A professora recebeu-me muito bem e, aos poucos, fui fazendo muitas amizades. Ao fim do curso, o colégio promoveu a festa de colação de grau. Aquele dia também ficou em minha memória. Minha família estava bastante emocionada, principalmente meus pais que tinham baixa escolaridade. Aquele pequeno passo significava uma grande vitória. O próximo desafio era passar no teste seletivo da Escola Técnica Federal do Piauí-CEFET, situada em Floriano ou então na seleção do Colégio Agrícola de FlorianoCAFS. Estas duas instituições sempre foram muito conceituadas e suas provas difíceis. Apesar do nervosismo, fiz uma boa prova e fui aprovado no CEFET. Quinze dias depois, agora mais calmo, me saí bem também no CAFS. Optei pelo CEFET. Durante os três anos do Ensino Médio, fui superando os obstáculos e as dificuldades que surgiam. Fiz boas amizades e recebi integral apoio dos professores e funcionários. Assim foi dado outro passo. O próximo desafio seria mais difícil: passar no vestibular. Por falta de condições financeiras, * Graduando em Física pela UFPI. Universidade Federal do Piauí 47 não freqüentei nenhum cursinho preparatório, ao contrário da maioria dos colegas. Estudei em casa, sozinho. Passava o dia com os livros até altas horas da noite. Lendo, resolvendo questões e fazendo textos para treinar redação. Durante esse período, meus pais foram importantíssimos, pois me davam forças e me mostravam, através do seu próprio exemplo, que só o estudo poderia mudar o meu destino, evitando que eu tivesse que passar dificuldades como eles. Meu pai dizia que o estudo seria a grande herança que ele estava me deixando. Eu me apoiava naquelas palavras e me motivava para vencer o cansaço e partir em busca da realização de meus objetivos. Ao final de 2003, prestei vestibular para o Curso de Bacharelado em Física na UFPI. As imagens voltam claras à minha mente. Lembro-me muito bem que os portões fechavam, impreterivelmente, às 8 horas da manhã. Temendo me atrasar, saí de casa bem cedo, pedalando minha bicicleta. Atravessei o rio Parnaíba em um barco, e continuei pedalando, agora no Estado do Piauí. De repente caiu uma tempestade. Não dava mais para continuar. Tive que parar e procurar abrigo. A chuva não diminuía de intensidade. Pensei em desistir, mas fui em frente. Cheguei ao local da prova completamente encharcado. A sala estava fria e minhas roupas molhadas aumentavam meu desconforto. E foi assim que, graças a Deus, fiz minha prova. Não fiquei de folga. Voltei imediatamente aos livros, pois dentro de quinze dias tinha o vestibular da UESPI, para o Curso de Ciências Contábeis. Prova feita, resultado positivo. Eu, minha família e meus amigos vivenciamos, então, momentos de extrema felicidade. Passada a euforia da vitória, era hora de planejar minha mudança para Teresina. Surge um novo desafio, pois eu não tinha onde ficar. Meu pai lembrou de uma amiga que morava na capital. Entramos em contato, e ela, juntamente com sua filha Katyuscia, me deram grande apoio. Meus primeiros dias em Teresina foram de difícil adaptação. Tudo era diferente. A cada momento, uma experiência nova, começando por dividir um aluguel com mais três amigos. Mesmo assim, os custos eram altos para meu padrão. Foi aí que resolvi pedir o benefício da Residência Universitária da UFPI. Hoje estou vivendo lá, em um ambiente agradável, cercado de vários amigos que formam minha segunda família. Tenho percebido que minha entrada na Universidade transformou minha vida. Conheci gente de todo tipo, costume e pensamento. Isso tem mudado e ampliado minha visão do mundo. Em março de 2006, tomei conhecimento do Programa "Conexões de Saberes" e fiz minha inscrição. Após passar por uma seleção muito rigorosa, tive meu nome aceito. A documentação exigia, entre os pré-requisitos, que o aluno fosse de origem popular, possuísse baixa renda, e tivesse estudado em escola pública. Depois fui entrevistado pelas coordenadoras. No Conexões, ministro aulas de Física, no cursinho pré-vestibular que criamos para ajudar estudantes de baixa-renda, como eu, que sonham em ingressar na Universidade. Ao fazer este relato sobre minha história de vida, espero que sirva de estímulo para os estudantes de origem popular. Eles precisam saber que nada se consegue sem luta; e quanto mais pobre mais difícil é o caminho e muito mais saborosa a vitória. Termino agradecendo a Deus por me ter dado forças para seguir em busca da realização dos meus sonhos. Agradeço a minha família que sempre esteve presente, apoiando-me em todos os momentos; à professora Verônica e as coordenadoras do Conexões, professoras Cecília e Edileusa; e finalmente meus sinceros agradecimentos a todos aqueles que, de alguma forma, me ajudaram durante minha trajetória. 48 Caminhadas de universitários de origem popular A caminhada de um vencedor Hélio Costa Vieira * Minha família Oriundo de família humilde, nasci no bairro Buenos Aires, um dos mais pobres de Teresina. Quando eu tinha apenas um ano de idade, meu pai comprou uma casa em um terreno de invasão. Assim tivemos que nos mudar para a Vila Risoleta Neves, local onde vivemos há mais de dezenove anos. Minha família segue padrões mundiais quanto ao número de pessoas por família. São cinco membros: minha mãe, meu pai, eu e meus dois irmãos, Érica e Ellisson. Minha irmã, assim como eu, sempre estudou em escola pública. Formou-se para ministrar aulas para crianças de até seis anos de idade, e atualmente estuda para o vestibular. Meu irmão também estudou em escolas públicas, porém decidiu abandonar os estudos e apenas trabalhar com mecânica. Meus pais são elementos decisivos em minha vida, com influências positivas, no caso de minha mãe, e negativas, por parte de meu pai, que serviram a mim como estímulo, que será tratado mais à frente. Minha mãe nasceu em um pequeno povoado da zona rural de Teresina, chamado Taboca. Filha de uma família pobre, sua mãe quebrava coco babaçu e seu pai fazia carvão vegetal, para vender no centro da capital, distante 26 km do povoado. Toda semana, de bicicleta, ele fazia esse trajeto, e, assim, sustentar os filhos. Meu pai nasceu em José de Freitas, município do Piauí. Nunca quis saber dos livros, pois perdeu seus pais quando criança e não teve apoio para estudar, passando toda a infância trabalhando na roça. Ele, com sua "inconsciência da realidade", devido à falta de instrução, apresenta uma visão simplificada do mundo; por isso age de forma negativa em relação a mim, mas eu encaro como desafio a ser superado. Sem estudo, mas com muita vontade, meu pai trabalhou para sustentar a família, sempre ganhando apenas um salário. Ressalte-se, ainda, a importância de minha “segunda mãe”, minha tia Lúcia de Fátima, que sempre nos ajudou. Minha infância não foi boa, porque meus pais me prendiam muito em casa, em virtude do alto índice de violência e o fácil acesso às drogas no local em que moramos. Porém tive alguns momentos de alegria com meus colegas, ao brincarmos na rua, jogando futebol, bola de gude, empinando pipas. Na verdade, passei minha infância estudando bem mais do que brincando. * Graduando em Geografia pela UFPI. Universidade Federal do Piauí 49 Trajetória escolar Iniciei minha vida escolar aos seis anos, pois não passei pelos níveis elementares como o Jardim I e II. Minha primeira escola foi a Creche Tia Anita, na qual não tive muito êxito no aprendizado. Após um ano, saí da creche para ingressar na primeira série do Ensino Fundamental; era necessário fazer um teste, para qualificar aqueles que poderiam estudar na escola. Fiz o teste na Escola Municipal José Carlos, bem próxima de casa. Sofri minha primeira decepção. Fui reprovado. Descobri que não sabia de nada, pois o teste era muito simples, bastando apenas circular as palavras iniciadas com vogais e identificar as consoantes. Passado o fracasso, eu precisava ingressar na primeira série. Foi aí que apareceu o primeiro anjo em minha vida. Uma mulher chamada Demetiude, colega de minha tia-mãe. Ela me conseguiu uma vaga na Escola Ambiental 15 de Outubro. Comecei a freqüentar as aulas, mas senti-me ignorado, desprezado, pois a maioria de meus colegas já sabia ler, escrever, contar os números, e eu nada sabia. O segundo anjo foi minha professora Ana. Ela era formada em Educação Física, mas, mesmo assim, com muita paciência, ensinou-me a ler, escrever, contar e muitas outras coisas básicas, que tiveram grande influência em minha vida. Os resultados logo aparecerem. Na segunda série, fui o melhor aluno da classe e ganhei um certificado, que, infelizmente, se extraviou. Cursei todo o Ensino Fundamental nesta escola. Ao terminar o curso, preparei-me para o teste que me faria ingressar no Ensino Médio. Desta vez, não tive dificuldades e me matriculei na Escola Estadual Helvídio Nunes. Foi quando percebi, assim como a maioria dos jovens de baixo poder aquisitivo, que precisava trabalhar para ajudar a família. Meu pai defendia apenas o lado do trabalho. Ele dizia que era melhor trabalhar, mesmo ganhando apenas um salário. Eu não pensava assim. Os estudos faziam parte dos meus planos, pois eu queria viver e não apenas sobreviver. Diante de tal realidade, minha mãe ficou sabendo de um curso gratuito oferecido pelo SENAI, que formava profissionais eletricistas de alta tensão. Infelizmente não fui aprovado no teste seletivo. Meses depois, sabendo da necessidade de uma qualificação, fui informado que a Ação Social Arquidiocesana-ASA, ligada à Igreja Católica, estava realizando cursos gratuitos. Depois de muito insistir, eu consegui uma vaga no Curso de Datilografia. Tempos depois, o professor Gerson me indicou para um teste no cargo de aprendiz na Empresa Brasileira dos Correios e Telégrafos, que mantinha convênio com a ASA. Meu pai, com seu negativismo, foi logo tentando me derrotar, afirmando que eu não seria aprovado. Cinco meses depois, fui chamado para assumir o posto. A alegria foi muito grande. Meu primeiro trabalho, meu primeiro salário, tudo conseguido com meus próprios méritos. Aqueles tempos foram duros e cansativos. Eu acordava geralmente por volta das 05:30h e, muitas vezes, não dava tempo de tomar o café da manhã. Eu pegava minha bicicleta e pedalava até o colégio, cujas aulas começavam às 07:00 e terminavam ao meio-dia e meia. Então, eu pegava a bicicleta e, debaixo de um Sol escaldante, voltava para casa, almoçava às pressas, e às 13:30 partia para o emprego, de onde retornava ás 19:00, para trabalhar e assistir às aulas. Era só o que eu fazia. Não havia tempo para estudar para as provas nem mesmo para a primeira etapa do Programa Seriado de Ingresso à UniversidadePSIU. O resultado logo apareceu. Tirei uma nota mediana e fiquei preocupado com meu futuro universitário. 50 Caminhadas de universitários de origem popular Após completar seis meses de trabalho, eu e meus colegas fomos demitidos dos Correios. A explicação dada foi apenas "contenção de despesas". A partir de então, comecei a estudar, visando o vestibular; e tirei uma nota melhor na segunda etapa do PSIU. Estava no terceiro ano do Ensino Médio. Ano de vestibular, ano de decisões. A escolha da profissão foi muito difícil. Eu contava apenas com o apoio de minha mãe. Inicialmente pensei em fazer Economia, mas desisti, pois eu não queria ficar sentado diante de um computador fazendo previsões sobre a economia nacional. Eu desejava uma carreira que me possibilitasse um contato humano. Decidi então ser professor (Mas de quê?). Primeiramente pensei em Biologia, influenciado pelas aulas mágicas do professor Lauro Miguel. Depois pensei em História, mas acabei optando por Geografia, pois ela envolve todas as outras: Matemática, Biologia, História, Química, Economia etc. Em meio a este festival de dúvidas, surge, novamente, a incrédula figura pessimista de meu pai, dizendo que eu não iria passar no vestibular porque não sabia de nada, não tinha estudado em escola particular e não era filho de rico. Embora estivesse desempregado, minha rotina não mudou. Tendo em vista que não mais estava nos Correios, eu agora fazia um cursinho pré-vestibular, localizado na principal avenida da cidade, e custeado por minha mãe, com o dinheiro ganho na lavagem de roupas e venda de produtos anunciados em uma revista. As aulas do Cursinho eram de segunda a quinta-feira, de 14:00 às 18:00. Como o dinheiro não dava, eu ia de ônibus e voltava a pé, a uma distância de 10 km. Em razão de perceber o grande esforço de minha mãe e o desafio que me lançavam, meu pai e alguns familiares, comecei a estudar até às três horas da madrugada. Eu não tinha sossego, pois meu pai se levantava e me xingava, mandando eu apagar a luz para não gastar energia. Na escola, eu era chamado de louco, pois não desgrudava dos livros. Esse período caracterizou-se como tempo de sacrifícios. Eu abri mão de vários encontros familiares, tais como: festas de aniversários, Natal, Ano Novo. Meu objetivo era um só e eu precisava alcançá-lo. Fiz as provas do vestibular e fiquei certo que tinha passado na Universidade EstadualUESPI, mas tinha dúvidas quanto à aprovação na Universidade Federal-UFPI. Em janeiro de 2005, recebi, com grande alegria, o primeiro resultado. Fui aprovado na Universidade Federal do Piauí, no curso de Geografia. Agora eu era o segundo membro da família de meus pais a ingressar na Universidade. Para completar minha alegria, fui aprovado também na UESPI. - E meu pai?... Não me deu parabéns, nem um abraço, sequer um aperto de mão. Fui o único, em uma sala de 42 alunos, a ser aprovado. A vida universitária me trouxe algumas decepções. Encontrei pessoas arrogantes e muita disputa. Novamente senti necessidade de uma qualificação. Consegui uma vaga no Curso de Inglês do CEFET, a um custo abaixo dos outros. As dificuldades financeiras continuaram. Muitas vezes não havia dinheiro para o ônibus ou para tirar uma cópia xerox. Atualmente estou no quinto período de Geografia, no quarto bloco do Curso de Inglês e pretendo, após a graduação, fazer mestrado e também doutorado. Também sou bolsista deste grande Programa denominado "Conexões de Saberes", projeto muito importante no resgate de nossas origens, na conscientização de nossa importância dentro da sociedade, como também na busca de transformar novos jovens que, assim como nós, têm dificuldades em ingressar na universidade. Universidade Federal do Piauí 51 Um principiante e sua estrela guia Herbert César de Moura * Nasci na pequena e acolhedora cidade de Campinas do Piauí, no Centro-Sul do estado, no dia 9 de setembro de 1985, em uma segunda-feira, às seis horas da manhã. Costumo dizer que nasci junto com o Sol. Em Campinas, fiz todo o Ensino Fundamental. Meus pais são: Maria Ana de Moura e Francisco de Assis César. Tenho um irmão, Paulo César. Logo, em minha casa éramos quatro, mas caminhávamos para três, pois a separação de meus pais era algo previsível. Minha vida de estudante começou na Escolinha Chapeuzinho Vermelho. A fase do pré-escolar foi muito legal. Na verdade eu só brincava, pintava e merendava. A escola parecia um eterno recreio. As aulas só ficaram mais sérias a partir da primeira série. Aí já tínhamos que ler e escrever. Dona Toinha, uma professora muito aplicada e gentil, mandava tarefas para casa e eu as trazia devidamente respondidas, pois era um aluno muito dedicado. Minha mãe sempre me ajudava. Fazíamos os deveres sentados no chão da cozinha, perto da porta que ficava aberta para entrar um ventinho. Assim fui passando por todo o primário, como era chamado, naquele tempo, o curso que ia da primeira à quarta série. Durante esse período, eu não tinha grandes preocupações. Era muito criança e vivia minha infância com muita alegria. Minha maior expectativa era o fim-de-semana que eu passava na casa da vovó Ana. Foi lá que aprendi muito sobre a vida, com os ensinamentos passados pelos meus avós; estava sempre em contato com a terra e os animais. Ali vivi momentos muito felizes, tenho saudades daquela época. Mas, voltando à vida escolar, vejo-me agora na quinta série do Colégio Dr. José de Moura Fé. Lá estudei até a oitava série. Nesse tempo, eu era um adolescente com todos os problemas, medos e incertezas da idade. Tudo era novo para mim. Aquelas matérias eram difíceis, mas era aquilo que eu havia sonhado. Estar na quinta série era o máximo. Eu me sentia como gente grande, e, apesar das dificuldades, esforçava-me para ser um dos melhores da classe junto com minhas amigas Gabiana, Ludmila e Roberta. Nosso sonho era fazer o Ensino Médio, mas este não havia em nossa cidade. A Universidade ainda era uma coisa muito distante. Foi nessa época que passei por dois momentos muito difíceis: A separação de meus pais e alguns problemas de saúde. Estes problemas atrapalharam-me um pouco no estudo, mas não me desestimularam, pois eu era um garoto muito persistente, sabia o que queria. Nesse período, contava na escola com o apoio de uma pessoa muito especial, a professora Alzira Alves, minha madrinha "Zirinha". * Graduando em Ciências Sociais pela UFPI. 52 Caminhadas de universitários de origem popular Finda a oitava série, eu estava pronto para continuar. Mas onde? Teresina, a capital, era um sonho há muito desejado, mas difícil de concretizar. Eu não tinha onde morar. A saída foi viajar todos os dias para a vizinha cidade de Simplício Mendes que distava 28 km. A estrada de terra era péssima. Enfrentávamos chuva, buracos, mas com o tempo fui me acostumando. Os colegas eram muito divertidos. Ríamos e conversávamos durante todo o percurso feito na camionete amarela do Sr. Neto Félix. Eu saía de casa às cinco da tarde, assistia às aulas e retornava por volta de meia-noite. Assim cursei o primeiro e segundo ano do Ensino Médio. Paralelamente ao estudo, eu trabalhava diariamente das oito ao meio-dia em um programa do Governo Federal Portal da Alvorada. Foi um tempo muito especial. Eu tinha apenas quinze anos e uma vida cheia. Era bom ter responsabilidades. Esta rotina foi interrompida com a implantação em nossa cidade do Ensino Médio Módulo Tele-aulas. Por esse motivo, não tinha mais o transporte para Simplício Mendes. O problema é que eu teria que esperar seis meses, pois o ano letivo na tele-sala só começava no meio do ano, o que atrasaria minha vida escolar. Foi então que surgiu uma oportunidade fantástica. Minha tia Sônia mudou-se para Teresina com a família e eu vim morar com eles. Cursei o terceiro ano na Fundação Nossa Senhora da Paz. O vestibular se aproximava e eu tinha que escolher um curso. Eu estava cheio, de dúvidas, mas finalmente fiz minhas opções: Ciências Sociais na UFPI e Geografia na UESPI. No dia do resultado, liguei para uma amiga e ela me disse que eu não havia passado. Meu nome não estava na lista. Realmente não é fácil passar na UFPI. Eu tinha que estudar muito e tentar no ano seguinte. Passei duas horas sentindo uma grande frustração até que de repente a vizinha entrou correndo com o telefone na mão. Era minha tia dizendo que meu nome estava na lista, sim. Passei! Eu, um simples aluno de escola pública, fui aprovado no meu primeiro vestibular. Ali era o começo de uma vida nova. Tornei-me universitário. No início, tive dificuldades de adaptação. Eram muitas disciplinas em horário integral. Na Universidade, o aluno tem que se destacar para conseguir monitorias e bolsas de pesquisas, que são muito importantes para a nossa formação. Graças a minha dedicação, consegui ingressar no Programa "Conexões de Saberes". Este Programa veio para me proporcionar muitas alegrias, pois, nele, posso trabalhar, pesquisar e melhorar meus conhecimentos, e, principalmente ajudar pessoas simples e humildes como eu. Isso me dá mais forças para desenvolver nosso trabalho comum, para que, juntos, possamos ajudar as comunidades envolvidas. Essa pequena história de um principiante no mundo de lutas e desafios deve-se à ajuda recebida de muitas pessoas, mas certamente há alguém muito especial para mim, responsável por todo o meu aprendizado e vitórias, uma estrela que me guia e protege com toda sua força, coragem e fé em Deus: MINHA AMADA MÃE. É a ela que dedico essa História e todas as minhas vitórias, mesmo as que ainda estão por vir. Universidade Federal do Piauí 53 Os passos de um homem bom são confirmados pelo senhor e ele deleita no seu caminho (salmo 37.23) Jeane Maria da Silva * Para falar de minha vida é necessário viajar no tempo, até 1982, no Povoado Gameleira, município de Timon-MA. Ali começa minha família, minha história. Meus pais, Carlos Alberto e Maria Francisca, casaram-se e, quando ainda estavam curtindo a vida a dois, surgiu uma gravidez não planejada. Para meu pai, só importava se fosse menino. Passaramse os dias, e, quando enfim chegou a primavera, no dia 30 de setembro, na Maternidade São José, nasceu uma flor. Claro que sou eu. Jeane Maria da Silva. Fui recebida com muito amor e logo cativei meu pai. Minha mãe diz que eu era um chamego com ele. Meu reinado, porém, durou apenas quatro anos, período de minha amamentação. Mamãe comenta que eu expulsava as pessoas que estavam na nossa sala para que ela pudesse sentar-se e me aleitar. Minha família começou a crescer. Primeiro veio meu irmão Francisco Carlos, e, em seguida, Carlos Júnior. Francisco nasceu com problemas cardíacos. Minha mãe tinha que se deslocar sempre para a cidade para tratá-lo. Enquanto isso, meu pai trabalhava na roça. Infelizmente tanto cuidado não possibilitou a continuação de sua vida. Com apenas um ano e dez meses, Francisco foi morar com Deus. Oito meses se passaram. Eu completei cinco anos. Em uma triste madrugada, meu pai nos deixou. Aquela noite ficou gravada na minha memória. Vi meu pai se debatendo e corri para ajudá-lo. Minha mãe pediu que eu segurasse uma vela na mão dele. Foi aí que percebi que ele estava morrendo em meus braços, deixando saudades e um vazio em nossos corações. Por mais que eu soubesse o que estava acontecendo, não conseguia entender. Tentamos nos levantar e nos acostumar com a ausência e a dor da perda de dois membros da família. Minha mãe matriculou-me em uma escolinha do povoado, e assim teve início a minha vida escolar. Tempos depois, ela me tirou de lá e começou a me ensinar em casa, juntamente com dois primos. Minha mãe passou a ser mãe, pai, professora, e a trabalhar na roça para nos manter. Certo dia meu tio a convidou para morar em São Paulo, arranjar um trabalho e melhorar de vida. Para tanto, ela teria que deixar os filhos. Só faltava essa. A morte nos tirou nosso pai e agora queriam nos separar de mamãe. Ela não aceitou e resolveu mudar-se para Timon. Ali, ela lavava roupas nas casas de outras pessoas para ajudar no orçamento, pois não tinha ajuda de ninguém para pagar o aluguel da casa. Como havia sido ensinada por minha mãe e já tinha oito anos, não freqüentei o Ensino Infantil, e fui matriculada na 1ª série do Colégio Maria do Carmo Viana Neiva. Comecei bem e tirei boas notas. * Graduanda em Artes Plásticas pela UFPI. 54 Caminhadas de universitários de origem popular Minha mãe sempre me deixava e pegava na escola. Certo dia, saí com minha prima para conhecer sua casa e não avisei. Minha mãe chegou ao colégio e eu não estava. Perguntou a todos até descobrir meu paradeiro. Quando ela, furiosa, chegou à casa de minha tia, eu não mais estava. Minha tia pediu que ela não me batesse. Em casa ela me olhou bem nos olhos e disse para eu não fazer mais aquilo. Os quatro anos em que estudei no Colégio Maria do Carmo foram anos mágicos. Minha mãe acertou mais uma vez. Eu me sentia muito feliz. Lá, fiz amizades que até hoje permanecem. Com os professores tive uma boa relação. Entre eles cito a professora Antina, que muito me incentivou e que ficará para sempre em meu coração. Meu tio pediu para minha mãe ir morar em sua casa enquanto ele se organizava para retornar. Ficamos lá um tempo, até quando ele chegou. À época, graças a minha mãe que dormiu na porta da escola, consegui ingressar na Unidade Integrada Higino Cunha e cursei o Ensino Fundamental da 5ª a 8ª séries. Comecei a tirar notas baixas. Fiquei surpresa comigo mesma, pois estava acostumada a tirar sempre nove ou dez. A Matemática, que antes eu dominava, estava ficando complicada. Cheguei a 6ª série muito desmotivada, mas fui despertando para as disciplinas de História, Geografia e Português. Naquele tempo, em Timon, só havia uma escola de Ensino Médio. Conseguir vaga foi outro sacrifício. No primeiro ano, enfrentei dificuldades ao me deparar com a Física, Química, Matemática e Biologia. Quando cheguei ao 3º ano, eu não sabia o que era vestibular. Fui aprender com meus primos que tinham sido aprovados. A cada dia, eu tinha novidades sobre a vida universitária. Fiz minha inscrição para garantir a inserção na UFPI. Não foi nada fácil. Só consegui depois de três tentativas. Fui em um dia e, na minha vez, a senha acabou. Fui em outro e a senha acabou novamente, na minha vez. Passei a estudar pela manhã na escola, e à tarde no cursinho popular da Prefeitura de Timon, em seu primeiro ano de funcionamento. E assim fui levando a vida. Não fui feliz em meu primeiro vestibular para Ciências Sociais, mas não desisti. Continuei freqüentando o Cursinho à noite e estudando em casa, já que tinha terminado a escola. Para ajudar a família, eu trabalhava como camelô no Calçadão da rua Simplício Mendes, em Teresina, e dava aulas de reforço escolar. Foi aí que surgiu uma nova oportunidade de entrar para a Universidade. Eles estavam fazendo inscrições para isenção da taxa do vestibular. Desta vez fui uma das primeiras e optei por Educação Artística. O resultado do vestibular foi adiado duas vezes. Senti um certo alívio, pois estava muito insegura. Fui trabalhar normalmente e, por volta do meio-dia, minha prima e uma amiga apareceram no meu trabalho e começaram a gritar bem alto: - PASSOU! PASSOU! Eu fiquei assustada, e elas continuaram a gritar. Eu não estava acreditando. Minha prima então abriu o jornal e lá estava meu nome. Comecei a chorar sem parar. Apesar dos obstáculos eu tinha conseguido entrar na Universidade. Imediatamente liguei para minha mãe. Ela já sabia. Foi uma grande festa. Estamos em 2006 e eu sigo fazendo meu Curso de Educação Artística na Universidade Federal do Piauí-UFPI. Muitos pensam que é um curso fácil de concluir. Estão redondamente enganados. Falam por preconceito, ignorância ou ingenuidade. A arte está em tudo o que fazemos. Por ser um curso caro, inscrevi-me no Programa "Bolsa Trabalho", que ajuda estudantes de origem popular a manterem-se na Universidade. Trabalhei por dois anos na Biblioteca Central da UFPI onde muito aprendi e me fortaleci. Universidade Federal do Piauí 55 Logo que o Programa "Bolsa Trabalho" acabou, fiquei aguardando o resultado da entrevista que havia feito para ser bolsista do Programa "Conexões de Saberes". Fui até lá, mas meu nome não constava da lista. Fiquei esperando. Eu sabia que Deus não ia me faltar. Informaram-me que a Professora Edileusa, uma das coordenadoras, estava a minha procura. Liguei para ela, que me perguntou se eu ainda tinha interesse em participar do Programa. Não pensei duas vezes e disse: SIM. Hoje sou apaixonada pelo Programa. Aprendi a ter mais amor por todos e estou muito feliz em poder ajudar outras pessoas. Conscientizá-las de que elas também podem entrar em uma Universidade. Minha vontade é permanecer aqui para sempre, pois este maravilhoso projeto, além do seu lado solidário, tem me ajudado a refletir sobre a minha vida e a dos meus semelhantes. Em novembro de 2006, fui, juntamente com os conexistas do Piauí, participar do II Seminário de Estudantes de Origem Popular, no Rio de Janeiro. O encontro serviu para discutir sobre as ações que precisam ser implantadas dentro da Universidade, a fim de ajudar jovens, como eu, a manterem-se com qualidade na Universidade. Conhecer o Rio de Janeiro foi inesquecível. Acho que cresci material e espiritualmente, pois é uma cidade mágica. Finalizo agradecendo a Deus, a meu saudoso pai, a minha querida mãe, a meus irmãos, meus avós que tanto torcem por mim, aos coordenadores do Conexões, aos colegas conexistas e a todos que fazem parte da minha vida. 56 Caminhadas de universitários de origem popular Fragmentos de uma cartografia sentimental João Santos Andrade * Nasci na cidade de Floriano (PI) mais conhecida como "Princesinha do Sul". Quando completei dois meses, meus pais, Nivaldo de Sousa Andrade e Francisca dos Santos Oliveira, se separaram. Eu e minha mãe fomos morar na casa de meus avós maternos, em um povoado chamado Recreio, que faz parte da pequena cidade de Angical, próxima de Amarante, terra do famoso poeta piauiense Da Costa e Silva. Ali, juntamente com meu irmão Franklin, vivi a minha infância. Tratava meus avós de pai e mãe. Pela manhã, ia para a escola e à tarde trabalhava na roça com meu avô Raimundo. A vida no interior é muito difícil. Temos que dar duro para conseguir o pão de cada dia. A primeira vez em que fui para a roça, por inexperiência, cortei a mão do meu irmão; mas aos cinco anos trabalhava como um adulto. A rotina do trabalho no campo é sempre a mesma, quer chova quer faça Sol. Porém, ao fim do dia, havia sempre um gostoso joguinho de futebol; embora estivéssemos cansados, funcionava como uma terapia anti-estresse. Às vezes não tínhamos nada para comer, a não ser arroz branco. O jeito era pescar. Eu, Franklin e alguns amigos, que estavam na mesma situação, íamos para o riacho das Mangueiras. Lá escolhíamos um poço, que é a parte mais funda, mas que tem pouca água, e fazíamos uma parede em volta dele, isolando a passagem da água. Em seguida com umas latas tirávamos a água até encontrar os peixes que ficavam no fundo. Depois dividíamos, igualitariamente. Foi durante a minha infância que perdi minha querida avó. Ela sofria de câncer no útero. À época, minha mãe conheceu um homem com quem vive até hoje, e com ele teve duas filhas, minhas queridas irmãs: Vânia e Walquíria. Como eu e meu irmão estávamos vivendo com mamãe e meu avô ficou viúvo, ele decidiu construir uma casa perto da nossa. A faina diária continuava a mesma, mas com um agravante: eu tinha que acordar todos os dias às quatro horas da manhã para ir buscar água no chafariz para as necessidades da casa. Em seguida, por volta das seis horas, rumava para a roça e retornava às onze e meia, pois tinha que ir à escola à tarde. Morar com minha mãe não mudou minha qualidade de vida. Certa noite, quando estava dormindo, quando acordei e ouvi um choro. Era minha mãe. Ela chorava porque naquele dia não havia comida em casa. Comecei a chorar também, mas de raiva. Naquele momento, eu prometi a mim mesmo que aquela seria a última vez que iríamos passar fome. Portanto este é o momento em que a emoção me leva ao passado e me motiva para conseguir meus objetivos. * Graduando em Matemática pela UFPI. Universidade Federal do Piauí 57 Todo mês de julho minha mãe levava a mim e a meu irmão Franklin para Floriano, para visitar nosso pai, irmãs e avós paternos. Eu tinha um padrinho, que era como um pai, e eu o estimava muito. Era o Padre João. Aí está a origem do meu nome. Infelizmente ele faleceu prematuramente. Em uma dessas viagens, em 1995, Franklin e eu decidimos morar com nosso pai. A mudança acarretou minha reprovação na terceira série do Ensino Fundamental. Eu estava com 11 anos e bastante atrasado. O trabalho na roça tomava muito do meu tempo. Às vezes eu perdia até uma semana de aula. Fiquei triste e sem estímulo, mas logo lembrei de minha mãe e da promessa que eu havia feito. Em 1996, meu pai me matriculou na Escola Santa Teresinha, onde cursei a terceira e quarta séries. Neste mesmo ano, ele decidiu candidatar-se a vereador na cidade maranhense de Barão do Grajaú, que fica separada de Floriano pelo rio Parnaíba. Eu logo fui contra. Resultado: ele perdeu a eleição e ainda contraiu uma dívida de mais ou menos vinte mil reais. A saída foi vender a casa. Tudo parecia uma loucura, mas era a única opção. A casa foi vendida, mas o valor só deu para cobrir uma parte da dívida. Para completar, meu pai vendeu um terreno no interior do Maranhão. Sem casa, tivemos que procurar uma para alugar. Mudamo-nos de Floriano para Barão do Grajaú, no início de 1998. Passei a estudar no Colégio Imparcial, onde conheci grandes amigos e completei o Ensino Fundamental. Eu estudava à tarde e, pela manhã, ajudava meu pai. Ele vendia mandioca, que servia para alimentar o gado. O transporte era feito em um velho caminhão que ele tinha. Era esse o nosso ganha pão. Em 2001, eu estava finalizando o Ensino Fundamental e me preparando para o teste classificatório do Ensino Médio no CEFET de Floriano. Fui aprovado em sexto lugar e também na oitava série. Iniciei o Ensino Médio em 2002, e, apesar das dificuldades, falta de dinheiro para o transporte (muitas vezes fui a pé) entre outras, consegui passar. Matemática e Física foram as matérias nas quais me sobressaí. Sempre fui bom nos cálculos. Neste mesmo ano, fiz a primeira etapa do Programa Seriado de Ingresso na Universidade (PSIU - UFPI). Obtive um total de 41 pontos e fiquei feliz. Em 2003, iniciei o segundo ano do ensino Médio e consegui uma bolsa para trabalhar na cantina da escola. Foi uma experiência muito positiva, além de conhecer muitas pessoas. Também passei a ministrar aulas de Matemática para 18 alunos da turma de reforço no Colégio Imparcial e tive um aluno particular. Assim fui me mantendo e custeando meus estudos. Eu tinha que pagar minha passagem de ônibus para o colégio, pois meu pai havia vendido seu velho caminhão, sua única fonte de renda, e estava passando dificuldades. Meu pai tinha apenas o Ensino Básico, o que lhe dificultava conseguir um emprego. Concluí o segundo ano e fiz a segunda etapa do PSIU. Desta vez não me saí bem e obtive apenas 24 pontos. Mesmo assim não desanimei. Eu sabia que seria aprovado no vestibular para Engenharia Civil. Em 2004, continuei com a bolsa na cantina e as aulas de Matemática. Concluí o Ensino Médio e realizei a terceira etapa do PSIU. É o momento de escolher sua área. Como minha pontuação estava baixa para Engenharia Civil, optei por Matemática. Concomitantemente fiz minha inscrição na Universidade Estadual do Piauí-UESPI para Ciências Contábeis. Na UESPI, o vestibular é, teoricamente, mais fácil, pois é específico. Fiz uma boa prova e saí muito contente. Já na Universidade Federal do Piauí-UFPI, quando terminei a prova, estava triste. Eu havia feito uma boa redação, uma ótima prova específica, mas, mais uma vez, minhas notas no PSIU não foram boas. A saída foi fazer o teste do CEFET para Técnico em Eletromecânica. 58 Caminhadas de universitários de origem popular No início de 2005, terminada minha "Bolsa Trabalho", fui passar minhas férias lá no Recreio. Fazia tempo não via minha querida mãe. Certo dia, voltando do futebol, minha mãe me disse que meu pai havia ligado várias vezes. Lembrei que era tempo do resultado do vestibular da UFPI. Liguei para ele, mas quem atendeu foi dona Laise, sua esposa atual. Ela me informou que ele tinha uma notícia para mim, mas só ele poderia dar. Isto me deixou muito ansioso. Liguei para meu amigo Hudson que me deu a boa notícia. Eu havia sido aprovado para Matemática em 15º lugar. Aí explodi de emoção. Liguei "para o velho" que estava mais feliz que eu. Na manhã seguinte, voltei para Floriano e, dias depois, recebi o resultado positivo do vestibular da UESPI. Para completar a alegria, fui aprovado também no CEFET. Logicamente fiquei com a Matemática na UFPI. Meu destino agora era Teresina. Passei quinze dias na companhia de minha irmã Liana, que estava fazendo pré-vestibular, custeada por uma tia, já que papai não tinha condições de pagar. Inscrevi-me na Residência Universitária e, enquanto aguardava o resultado, morei no Bairro Renascença, na casa de um amigo do cunhado de meu pai. Fiquei lá cerca de um mês até que no dia 18 de maio de 2005, mudei-me para a Residência Universitária. Ali conheci gente como eu. Todos de origem popular. Entre eles a minha princesa Elcilene, de quem gosto muito. Ela é muito especial para mim e está sempre pronta a me ajudar. Atualmente faço parte do Programa "Conexões de Saberes" e estou ajudando pessoas que têm a mesma origem que eu. Minha história vai seguindo e pretendo vivenciar a experiência de fazer Pós-Graduação em Álgebra, parte da Matemática que mais me atrai. Universidade Federal do Piauí 59 A saga do filho de um vaqueiro e de uma Quebradeira de coco João Silvestre da Silva Neto * Meus pais Vou começar a minha história contando um pouco sobre meus pais. Meu pai, José Geraldo da Silva, é pernambucano, e foi para o Maranhão com 18 anos, juntamente com meus avós e tios, no dia 25 de novembro de 1975. Eles foram trabalhar na fazenda de um primo, na cidade de Paraibano. Meu pai conta que meu avô vendeu tudo o que tinha em Pernambuco e embarcou com a família em um caminhão pau-de-arara. Ao chegar à Fazenda Pé-de-Serra, habitada por umas setenta famílias, eles se tornaram a atração do lugar. Ele conta que à noite, famintos e sedentos, acharam um saco com mangas-rosas, e aquela foi a primeira refeição naquele lugar onde meu pai ia viver grandes histórias e encontrar seu grande amor, minha mãe, Eliene Alencar da Silva, que morava no interior, em um povoado chamado Esfregador, perto da fazenda. Ela vivia com meus avós maternos e seus irmãos, e trabalhava quebrando coco babaçu com seu machado. Como fazia todos os dias, ela foi vender coco babaçu e viu meu tio Gilson brincando de pular corda. Ela não resistiu e foi brincar também. Na hora em que ela estava rodando a corda, botou tanta força que a corda bateu nos lábios dele, que começaram a sangrar. Ela chorou e saiu correndo, com medo que meu avô, João, brigasse com ela. Tempos depois, meus pais começaram a namorar e minha mãe foi morar com seus padrinhos em Paraibano. Ela conta que um dia recebeu uma carta de meu pai cujo conteúdo é um segredo guardado a sete chaves. O fato é que no ano de 1981 eles se casaram. Meu pai com 24 e minha mãe com 17 anos. Foi uma grande festa, cheia de parentes vindos de todos os lugares. Mamãe conta que no outro dia, depois da lua-de-mel, ao acordar ela foi pentear o cabelo e, como tinha esquecido de levar o pente, usou um garfo. Nove meses depois, nasceu o primeiro filho do casal, no dia 8 de novembro de 1981, José Geraldo da Silva Filho, o Zezim. Ele nasceu com um problema de saúde e, por isso, minha mãe esperou quatro anos para ter outro filho, por temer que o próximo nascesse com o mesmo problema. No dia 14 de junho de 1985, eu, João Silvestre da Silva Neto, o herói da história, nasci, mas só fui registrado no dia 14 de julho. Meu nome foi uma homenagem ao meu avô, João, que foi me visitar no hospital e disse que eu me parecia demais com ele. Eu, logicamente, fico muito feliz com isso. * Graduando em Engenharia Agronômica pela UFPI. 60 Caminhadas de universitários de origem popular No ano seguinte, no dia 29 de dezembro de 1986, nasceu minha irmã, Eliane Amélia da Silva, completando os filhos legítimos do casal. Anos depois, eles adotaram outros filhos. Estava formada a minha família. Infância Fui criado, até os cinco anos, na Fazenda Pé-de-Serra, onde meu pai era vaqueiro. Fui criado com todo o carinho que uma criança merece. Meu quarto era cheio de brinquedos, mas minha mãe não me deixava brincar, pois tinha medo que os quebrasse. Eu era o oposto do meu irmão. Enquanto ele gostava de jogar bola, andar a cavalo, ficar no curral, no meio dos animais, eu preferia ficar em casa assistindo à televisão. Eu também gostava de ir para a casa de minha avó, Teresinha. Isto não quer dizer que eu não gostasse da vida na fazenda, eu apenas tinha outras preferências. No ano de 1990 ou 1991, não lembro bem, meus pais foram morar em Graça Aranha, pois o dono da fazenda onde meu pai trabalhava havia comprado outra propriedade e convidou meu pai para trabalhar lá. Na época da mudança, já vivíamos em Paraibano, e meu pai trabalhava como vendedor e comprador de animais, profissão muito comum na cidade. Papai passava vários dias viajando, vendendo e comprando gado, enquanto eu ficava em casa com minha mãe e minha irmã. Meu irmão morava com nossa avó, na fazenda. Foram anos muito felizes. Lembro-me de ter passado momentos maravilhosos. Meu tio, irmão de minha mãe, morava conosco e vendia salada de frutas na rua. Na hora de preparar a salada, era uma farra. Também havia a Helena, nossa vizinha de frente. Ela sempre nos convidava para brincar na casa dela. Às vezes passávamos o dia inteiro brincando, lá, juntamente com umas primas. Um dia minha mãe fez um doce de leite e deixou a panela para eu raspar o fundo. Minhas primas não me deixaram comer, e eu, com raiva delas, quebrei a torneira da casa alheia. Minha mãe me deu uma surra. Em Graça-Aranha, tudo era novidade. Eu não conhecia ninguém. Fomos morar em uma fazenda que ficava a três quilômetros da cidade. Lembro-me que chegamos ao final de tarde, quase escurecendo. Minha primeira impressão foi positiva. Havia uma casa enorme, outras duas menores, um galpão e um curral na frente. No dia seguinte, fui conhecer a fazenda onde passaria longos anos da minha vida. Começamos a estudar na cidade e, como éramos pequenos, íamos para a escola com o Adão, que trabalhava na fazenda ajudando meu pai. Todos os dias ele nos deixava e buscava em sua bicicleta. Quando fomos crescendo, passamos a viajar no carro do Seu Ciço, um transporte de linha que passava pela manhã para pegar as pessoas do interior, e voltava ao meio-dia. À época, tínhamos a companhia de uma tia pequena, que foi morar conosco e estudava na mesma escola. Muitas vezes, quando saíamos da aula, o carro já tinha ido embora e a gente voltava a pé ou na moto do Seu Fracalino, o homem da SUCAM, morador da vizinhança. Imaginem quatro pessoas em uma motocicleta. Uma vez saímos mais cedo da aula e resolvemos voltar a pé. Eu, minha tia e minha irmã. Como já estávamos cansados, resolvemos pegar um jumento que estava pastando. Foi uma luta pegar o animal, mas acabamos conseguindo. No momento em que montei no jumento, ele saiu em disparada e eu levei uma queda. Enquanto eu chorava de dor, minha tia e minha irmã riam de mim. Por sorte, passou uma camionete D20, cabine dupla, e nos deu carona. Mal andamos alguns quilômetros, o motorista nos avisou para não ter medo, pois ele estava transportando um defunto na carroceria. Minha tia morria Universidade Federal do Piauí 61 de medo de gente morta e começou a chorar junto comigo. Ela de medo e eu de dor na perna. Para completar o quadro, à medida que o carro andava as pessoas perguntavam se o morto era nosso parente. Lembro-me, como se fosse hoje, do meu primeiro dia na escola. Cheguei todo tímido. Os meus futuros colegas brincavam, conversavam e eu, ali, quieto, sentado no meu canto. A minha primeira professora foi a tia Maria, na Pré-Escola Saci Pererê. Ela me ensinou a ler e escrever. No princípio, eu era como manteiga derretida. Ninguém podia tocar em mim que eu chorava, mas com o passar do tempo fui-me enturmando e, até hoje, sou amigo de Maria Luiza, Nareline, Willane, Ezilda, Kelliane, Fabio e muitos outros. Duas pessoas marcaram meus primeiros anos em Graça Aranha. A primeira foi uma menina pela qual me apaixonei. Nós estudamos juntos da pré-escola até a quarta série, mas eu nunca tive coragem de me declarar. Com o término da quarta série, ela foi embora e perdermos contato. Anos depois eu a vi algumas vezes, mas a coragem não veio. A outra pessoa foi minha professora da primeira série. Ela era muito boa, me ensinou muita coisa e muito compreensiva. Meu ensino na cidade de Graça Aranha foi muito proveitoso. Vivi momentos maravilhosos e convivi com uma turma muito unida que adorava fazer peças de teatro, eu escrevia o texto e ensaiava o pessoal e sempre tirava dez nas apresentações. Quando fui fazer a quinta série, tive que estudar à tarde. Eu ia de bicicleta, juntamente com minha irmã e a Ritinha, irmã de um tratorista da fazenda. Saíamos de casa ao meio-dia e voltávamos às cinco ou seis da tarde. Uma vez eu fui sozinho e dois meninos me jogaram uma manga podre. Eu fiquei todo sujo, mas fui para a escola assim mesmo, pois tinha prova. A sétima série foi feita à noite. O trajeto era feito em uma camionete D20 que levava os alunos do interior para a cidade. Era um monte de gente, uma folia e tanto. Nesse tempo, conheci minhas amigas Vandeca e Mauricéia. Eu pegava o carro às cinco horas da tarde e chegava em casa onze ou doze horas da noite, às vezes, até uma da manhã, pois o motorista ia namorar e esquecia a gente na praça. Várias vezes fomos ao cabaré, chamá-lo, e ele estava lá, bebendo com as mulheres. Também não sei dizer quantas vezes ele nos transportou completamente embriagado. Às sextas-feiras era comum matarmos aulas para ir à boate. Certa noite, eu esqueci da hora e o carro foi embora com os outros alunos. Tive que ir debaixo de chuva, pedalando uma bicicleta emprestada que furou o pneu no meio do caminho. Em Graça Aranha, duas pessoas marcaram minha vida: Sueli e Juce, duas irmãs professoras com histórias de vida exemplares e que sempre me disseram que eu jamais seria alguém se não estudasse. Terminei a oitava série e, com muita alegria, fui morar na casa de minha avó, na cidade de Paraibano, minha paixão. Minhas férias quando criança Uma coisa era sagrada para mim. Passar as férias em Paraibano. A casa de vovó ficava cheia de netos. Nós acordávamos cedo e íamos para o curral ver meu avô tirar o leite das vacas. Depois tomávamos um café caprichado e saíamos a brincar. Eu adorava brincar de cavalo-de-pau. Nós passávamos o dia nos divertindo, e muitas vezes nem lembrávamos de comer. No final da tarde, nos juntávamos com os filhos dos moradores da região, e jogávamos bola até a noitinha. Depois íamos tomar banho no olho d'água que ficava perto da casa de minha avó. No sábado, vovô nos levava para ver a feira na cidade. Saíamos pela manhã e voltávamos à tarde. 62 Caminhadas de universitários de origem popular Família A minha família é a melhor do mundo. Não tenho nem palavras para expressar meus sentimentos e fico sempre emocionado quando falo sobre ela. Agradeço a Deus por ter me dado uma família tão maravilhosa. Amo a todos eles, sem distinção. Graça-Aranha Mudei-me para essa cidade quando tinha seis anos e morei lá até 2000, lá vivi momentos felizes e tristes. Na verdade, eu não gostava de morar lá, mas sim de passar férias e passear. Eu gostava mesmo era da fazenda de meus avós. Quando fomos morar em Graça Aranha, toda Semana Santa nós hospedávamos o dono da fazenda, sua mulher e um monte de gente. A mulher era uma cobra em forma de gente. Minha mãe trabalhava como uma louca, fazendo comida, lavando louça; e eu e minha irmã não podíamos sequer ir a cozinha beber água. Comer? Só quando eles terminavam. No final ela ainda saía falando mal da gente. Paraibano Em 2001 fui morar em Paraibano para cursar o Ensino Médio, inexistente em Graça Aranha. Fiz a inscrição e passei a freqüentar as Tele-aulas. Conheci grandes amigos e me recordo que todos os domingos havia banho na barragem. Foi também em Paraibano que comecei a trabalhar com minha tia, matando e vendendo frango. Eu acordava às cinco horas da manhã e começava a matar frangos. Às seis horas eu ia ao interior buscar leite em uma moto velha. Essa minha labuta durou um ano e meio. Em 2001, aconteceu uma tragédia que abalou toda a família. A morte do meu tio Antonio, encontrado morto em Floriano. Foi um desespero, pois uma semana antes ele veio visitar os pais, as irmãs e os sobrinhos. Foi uma despedida. Este fato me marcou muito, pois eu era muito ligado a ele. Em Paraibano conheci pessoas que guardo até hoje no meu coração: Valéria, Aquinélia, Liliane, Paulo. Quando viajo para lá tenho que encontrá-los. No ano de 2002, mais precisamente em junho, terminei o Ensino Médio pela Telesala. Eu sempre sonhei em me formar, ser médico. Para tanto, eu tinha que estudar fora. Comecei a fazer planos e pedi ajuda às minhas tias a fim de convencer meus pais. Neste ano também vivi um momento inesquecível. No dia do meu aniversário, minhas tias e meus amigos me fizeram uma festa de surpresa. Este era um sonho acalentado há muito tempo, pois eu nunca tive festa de aniversário. Aí também foi uma despedida, já que dias depois viajei para Teresina. Em Paraibano tem um evento que sempre marcou a minha vida, a Vaquejada, um rodeio em que meu avô João foi pioneiro na região. Ele promoveu a primeira vaquejada de Paraibano, que hoje está na vigésima primeira edição e é uma das atrações turísticas da cidade. Teresina Cheguei a Teresina no dia 4 de agosto de 2002, e fui morar com uma amiga de minha mãe e seu filho. Passei a estudar à tarde no CPE. Nos primeiros dias eu andava com medo, pois tudo era novo e eu tinha medo de me perder nas ruas. Saía de casa ao meio-dia, ia para a escola e retornava às oito horas da noite. Depois do banho ia conversar com os vizinhos. Universidade Federal do Piauí 63 Tudo estava indo bem, na casa onde eu morava, até que um dia a dona da casa viajou e me deixou, sozinho, com seu filho. Em uma noite em que cheguei mais tarde o menino não quis abrir a porta, e eu tive que dormir na casa do vizinho. Nunca contei esta história a ninguém, nem mesmo a minha mãe, mas eu agradeço àquela senhora por ter me aceito em sua casa, caso contrário eu nunca teria vindo para a capital. Minhas tias sempre ligavam e me incentivavam. Uma vez elas mandaram uma caixa com biscoitos, doces e uma quantia em dinheiro. Prestei o vestibular para Nutrição na UFPI e História na UESPI. Levei bomba em ambas. Fiquei muito triste, mas é preciso entender que há uma grande diferença entre o ensino praticado no Interior e o da Capital, além do mais eu só estudei durante seis meses. Em 2003, fui morar em outra casa com minha irmã e um casal de irmãos, Jorge e Josélia, filhos de uns amigos de meus pais que tinham uma casa aqui em Teresina. A casa ficava no Parque Piauí, e eu comecei a fazer um cursinho pré-vestibular em uma escola do bairro. Foram tempos difíceis. Muitas vezes só tínhamos arroz branco para comer. Nossa mãe não podia nos ajudar e minha irmã se punha a chorar. Nessas horas meu vizinho, seu Valmir, nos trazia um ovo para misturar ao arroz. Fomos levando, aos trancos e barrancos. Comecei a estudar duro, sem hora para parar, dia e noite, sábados e domingos. Eu estava determinado a passar no vestibular. No fim do ano prestei vestibular para Agronomia na UFPI e Química na UESPI. No dia do resultado eu estava no centro da cidade, quando as emissoras de rádio começaram a divulgação dos aprovados. Peguei um ônibus para casa cujo motorista era uma lesma e, impaciente, comecei a brigar com ele, e nada de ele acelerar. Desci do coletivo e comecei a correr para casa, mas entrei na casa do vizinho. Quando chegou a vez do resultado Agronomia eu só ouvia o nome dos outros. O meu nada. Comecei a me desesperar, até que chegou a minha vez. Eu havia sido aprovado para o segundo período de Agronomia na Universidade Federal do Piauí. Dei um pulo e um grito tão grande que desmaiei. Quando acordei eu estava deitado na cama com a cabeça completamente raspada. Corri para o telefone para avisar meus pais e minhas tias. Foi uma alegria muito grande para todos nós. Houve festas em Graça Aranha e Paraibano. Quando lá cheguei todos os meus amigos vieram me dar os parabéns, pois eu era o único filho das duas cidades, um rapaz de origem popular que, com raça e determinação, havia passado em uma universidade federal. Meus primos, tios e avós passaram a me chamar de doutor. Um dia antes do início das aulas fui à Universidade conhecer minha sala de aula. Depois comprei um caderno de vinte matérias, quatro canetas de cores diferentes e passei a noite em claro, sem conseguir dormir, cheio de ansiedade. No dia seguinte, a frustração. A Universidade entrou em greve e as aulas só foram iniciadas no dia 22 de setembro de 2004. No ano passado, uma tragédia atingiu minha família. O dono da fazenda onde meu pai trabalhava começou a ameaçá-lo dizendo que ia matá-lo. Ele não teve outra saída senão ir embora. Para nosso desespero, ele ficou desaparecido durante seis meses, sem dar nenhuma notícia. Minha mãe também recebeu ameaças e eu tive que viajar para lhe dar proteção. Ainda bem que a UFPI estava em greve e eu não fui prejudicado nos meus estudos. 64 Caminhadas de universitários de origem popular No fim do ano, novo dissabor. A mãe de um dos meninos com os quais morávamos colocou minha irmã para fora de casa. Ficamos sem lugar para morar até que um amigo, o Júnior, a quem muito agradeço, convidou-me para morar com ele e lá estou até hoje. Em abril, fiz minha inscrição no "Conexões de Saberes" e fui selecionado com uma bolsa. Atualmente estou feliz por participar de um programa tão importante e espero que minha história de vida sirva para incentivar pessoas a nunca desistir de seus sonhos. Dedicatória Dedico minha história primeiramente aos meus familiares, que sempre me deram força para estudar e me formar. Eu sei que quando isto acontecer será o dia mais feliz de suas vidas. Dedico também aos meus amigos de Paraibano e Graça Aranha, que, mais que amigos, são meus irmãos. Aos amigos da Universidade Federal do Piauí com quem convivo a maior parte do ano e com quem tenho vivido situações inesquecíveis. Universidade Federal do Piauí 65 As reminiscências de Joselene Joselene Oliveira * Falar sobre minha história de vida é um pouco difícil. Sou uma pessoa muito reservada e tímida. Foi uma surpresa quando fiquei sabendo que cada um de nós, integrantes do Programa "Conexões de Saberes", tínhamos que escrever sobre nossas vidas, mas já me acostumei com a idéia. Não poderia falar sobre minha vida sem falar em meus pais. Minha mãe, Luiza Olindina, nasceu nas proximidades da cidade de São João do Piauí, mais precisamente no interior. Meu pai, Aderson Oliveira, em outro lugarejo vizinho. Minha mãe dizia que não queria casar-se com ele, mas queria sair do interior e ir para a cidade, porque não gostava de trabalhar na roça. Queria mudar o estilo de vida, por isso resolveu casar-se. Aqui entre nós, acho que ela gostava dele sim, mas nunca quis dar o braço a torcer. Após o casamento eles moraram um tempo em São João do Piauí e logo depois decidiram mudar para São Paulo. Lá nasceram meus irmãos. Gilmar, o mais velho; Jaime, que infelizmente morreu com menos de um mês de vida; minha irmã, Joselita; e depois meu irmão Nelson. Após alguns anos, retornaram todos ao Piauí. A fim de evitar mais filhos, minha mãe queria fazer laqueadura. Tudo ia muito bem até que um dia minha mãe descobriu que estava grávida mais uma vez. Adivinhem quem era? Isso mesmo, eu, Joselene, nascida de uma gravidez não planejada. Pois é, nasci e aqui estou na luta de sempre. Minha infância foi em São João do Piauí. Bons tempos aqueles. Em frente à nossa casa morava Dona Dejesus, a lavadeira. Eu ficava o tempo todo na casa dela, e adorava sair com ela para entregar as roupas nas casas de seus fregueses. Onde ela ia, lá estava eu. Quem não gostava disso era meu pai, pois sempre foi muito ciumento. Outra grande amiga chamavase Bebela. Infelizmente morreu muito cedo, coisa de criança. Imaginem que um dia ela me convidou para brincar em uma casa abandonada. Minha irmã não deixou. Sorte a minha, pois a casa desabou e Bebela faleceu. Estudei o Jardim da Infância em São João Piauí, lá residi até completar sete anos. Ali também cursei a primeira série do Primário. Nessa fase, sofri muito com a separação de meus pais. Eles estavam brigando muito e resolveram se separar. Meu pai casou-se novamente com outra mulher, e continua morando em São João do Piauí, antes de se casar foi para São Paulo para trabalhar para pagar uma dívida que tinha no banco, ele passou a mandar um pouco de dinheiro para nós, mas mal dava para as contas, pois éramos cinco pessoas. Minha mãe também trabalhava para ajudar nas despesas, como empregada doméstica em várias * Graduanda em Enfermagem pela UFPI. 66 Caminhadas de universitários de origem popular casas. Por sorte, meu avô materno morava em uma região próxima e mandava alguns mantimentos. Era a nossa salvação. Não tínhamos televisão. Lembro-me que ia assistir na casa de uma vizinha. Parece bobagem, mas qual criança não gosta de ver programas e desenhos animados? Eu e meus irmãos estudávamos todos em escolas públicas. Gilmar, o mais velho, era muito estudioso. Meus pais conseguiram para ele uma bolsa de estudos em Teresina. Ele se mudou e estudou durante um ano. Infelizmente meus pais não puderam mais sustentá-lo e ele perdeu a bolsa. Desanimado, resolveu ir tentar a vida em São Paulo, no que foi seguido por minha irmã, Joselita. Preocupada com os filhos, minha mãe acabou indo embora também para São Paulo. Eu e meu irmão menor ficamos na casa de nossos avós. A vida em São Paulo estava muito difícil. Minha mãe e meus irmãos ganhavam pouco e ainda tinham que pagar aluguel. Mesmo com dificuldades, mamãe mandou nos buscar, pois sentia nossa falta e nós não estávamos estudando. Cheguei em São Paulo com nove anos de idade. Minha mãe alugou uma casa com um quarto, uma sala e uma cozinha. Tudo muito pequeno. Dormíamos todos em beliche para poder nos caber. O quintal da casa era comum para várias outras residências. O proprietário morava na casa em frente à nossa. No corredor residia uma senhora e sua filha. Dona Hilda tornou-se uma grande amiga. Nesse tempo minha mãe matriculou-me na primeira série. Tive que começar tudo de novo, pois meus estudos no Piauí foram interrompidos com a viagem de minha mãe. No começo eu tinha vergonha por ser a maior e a mais velha da classe, mas, com o tempo, deixei essas bobagens de lado e esforcei-me com ajuda de minha família para recuperar o atraso. Meu irmão mais novo também estudava na mesma escola. Minha mãe e meu irmão juntaram suas economias e conseguiram comprar um terreno em um bairro popular. Ali construímos uma casa de três cômodos e um banheiro. Tudo feito com muito sacrifício e em várias parcelas. Minha irmã, que trabalhava em um supermercado, gastava quase todo seu salário com as compras de alimentos, higiene pessoal e material de limpeza. Enfim saímos do aluguel. Lembro até hoje o dia da mudança. Quando chegamos a casa, havia faltado energia. Fizemos um lanche com pães e refrigerante. Em seguida, colocamos os colchões no chão e dormimos. Nos dias que se seguiram, tratamos de arrumar a casa. Ficamos vários meses sem vidros nas janelas e nas portas; e, no lugar do vidro, papelão. Eu e minha irmã detestávamos aquele lugar. As coisas eram lavadas em um tanque que havia no corredor. Na nossa rua não havia água encanada. Um motor puxava água de um poço na vizinhança e abastecia uma caixa d'água que ficava perto de nossa casa. Dois anos depois, finalmente tivemos água encanada. Minha mãe me matriculou na segunda série do primário em uma outra escola estadual que ficava perto da nova casa. Como toda escola pública, o ensino era muito fraco. Meu irmão também estudava lá. Nesse bairro e na mesma escola concluí meu curso primário. Mamãe então me matriculou em uma escola de datilografia. No início, detestei. Depois fui vendo que era uma boa. Como me destaquei na digitação, consegui matricular-me em uma ONG que estava oferecendo cursos de auxiliar de Administração e técnico em Informática. O curso tinha uma carga horária pequena e duração de seis meses. Com quinze anos de idade, comecei a trabalhar e a ajudar nas despesas da casa. Eu trabalhava na mesma empresa onde minha mãe era faxineira e minha irmã costureira. Minha função era de ajudante de costureira. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Até então não sabia que profissão seguir. Foi quando arranjei um trabalho de recepcionista em uma clínica médica. O trabalho Universidade Federal do Piauí 67 dos médicos despertou em mim o interesse pela área de Saúde. Eu estava dividida entre Fisioterapia e Enfermagem. Minha mãe, percebendo minha dúvida, sugeriu que eu fizesse o curso técnico em Enfermagem, mas o que eu queria mesmo era entrar em uma universidade, fazer um curso superior. Continuei estudando, trabalhando para ajudar em casa e lendo muito para que pudesse ampliar meus conhecimentos. O segundo grau foi concluído em 2001. Meu objetivo agora era prestar vestibular para uma universidade pública de São Paulo; porém os dois cursos que pensava fazer exigiriam tempo integral. Determinada, resolvi trocar de emprego, no qual ganharia menos, mas teria a possibilidade de seguir com meus planos. Conversei com minha mãe e expliquei minha estratégia: fazer o vestibular em uma universidade particular. A mensalidade eu pagaria com o salário e a venda dos tickets de alimentação. As refeições eu levaria de casa. A condução seria feita mediante os vales-transportes que a empresa dava para os funcionários. Minha mãe não concordou e até foi contra. Ela temia que eu perdesse o emprego e não pudesse continuar os estudos. Estudei com afinco. Em qualquer folga, estava eu com um livro na mão. Fiz as provas e passei. No início, não tive apoio da família. Sofri muitas críticas, pois havia muita discriminação. Mergulhei no estudo e fui vencendo com esforço e determinação. Não era nada fácil. Acordava bem cedo para ir trabalhar das oito da manhã até às seis da tarde. Depois saía correndo para a Universidade cujas aulas começavam às 19:00 e terminavam às 22:45. Eu chegava em casa por volta de meia-noite; e muitas vezes estudava durante a madrugada, fazendo trabalhos ou me preparando para as provas. Continuei ajudando em casa com uma cesta básica que recebia da empresa, pois meu salário mal dava para pagar a Faculdade. Para conseguir mais um dinheiro, eu fazia bombons, espetinhos de frutas, e lanches que vendia na Faculdade. Foi uma fase muito difícil, mas eu tinha o objetivo de me formar em Enfermagem, trabalhar e ajudar minha mãe. No mesmo ano em que entrei na Faculdade, minha mãe sofreu uma tendinite e fortes dores na coluna. Ela teve que se afastar do trabalho por um tempo e, quando voltou, foi demitida. Minha mãe ficou muita revoltada com a falta de respeito e consideração da empresa na qual deu seu suor por tantos anos. Eu já havia concluído o primeiro ano de Enfermagem e continuei enfrentando grandes dificuldades, pois já não contava com a ajuda de minha mãe. Nas minhas férias resolvi viajar para Teresina, conhecer a cidade e ver as oportunidades de estudo, já que minha mãe ultimamente só falava em voltar ao Piauí. Hospedei-me na casa da sogra de minha irmã, em Timon-MA, cidade separada de Teresina pelo rio Parnaíba. Tive boa impressão de Teresina e resolvi preparar-me para ingressar na Universidade Federal do Piauí-UFPI. Tive sucesso e iniciei meus estudos em 2004. No começo foi difícil, pois senti muitas saudades de minha família que ficou em São Paulo, minha mãe, minha sobrinha Mônica filha da minha irmã Joselita, meu irmão e amigos. Também foi difícil dispensar os pré-requisitos, porque a grade curricular era diferente. Inicialmente pedi dispensa das matérias cursadas em São Paulo e fui cursando as sem prérequisitos. Isso me atrasou um pouco, mas atualmente tudo está normalizado. Minha vinda para cá causou muita tristeza em minha mãe, mas eu não tinha mais condições de permanecer em São Paulo. As mensalidades foram aumentando e tornando-se impagáveis; minha mãe continuava desempregada e eu tive que buscar uma alternativa. Residi durante um tempo na casa da sogra de minha irmã, a Vó Raimunda, como eu a chamava. Todos me trataram muito bem. Ela tem uma neta, Penha, pessoa que muito estimo. Em uma das idas e vindas de Timon para Teresina, conheci, em um ônibus, o Márcio Ricardo, um homem maravilhoso. 68 Caminhadas de universitários de origem popular Nos tornamos amigos e em seguida namorados. Ele tem sido muito importante para mim, pois suas palavras sábias, seu apoio psicológico têm sido uma fortaleza que me abriga e me protege nas horas difíceis. Estamos fazendo planos para casar, quando houver melhores condições financeiras. Atualmente moro na residência da UFPI, onde formei um seleto grupo de amigos. Participei da seleção do Programa "Conexões de Saberes", fui aprovada, e aqui estou continuando minha luta em busca de oportunidades e da realização dos meus sonhos. Paralelamente vou ajudando a quem quer fazer um curso superior, ampliar seus conhecimentos e melhorar sua condição de vida. Universidade Federal do Piauí 69 Sonhei, sonho e sonharei, com um futuro mais justo Juliana Rodrigues Cavalcante * [...] Quando permitimos que a liberdade soe de todos os municípios e de todas as vilas, de todas as cidades, estaremos em condições de apressar a chegada daquele dia em que todos os filhos de Deus, homens negros e homens judeus e cristãos, protestantes e católicos, poderão unir suas mãos e cantar as palavras do velho espiritual negro: 'Enfim livres! Grande Deus Todo Poderoso, somos finalmente livres!'. Luther King A minha história tem início com meu pai e minha mãe conhecendo-se em TeresinaPI. Começaram a namorar e logo se casaram. Minha mãe engravidou e, tempos depois, descobriu que se tratava de uma menina. Meu pai ficou muito feliz, e, meses depois, no dia 16 de junho de 1985, para alegria de todos, eu nasci. Meu pai estava desempregado e minha mãe havia deixado o emprego por conta da gravidez. Logicamente a situação financeira da minha família era muito delicada. Meu pai chegou a concluir o Ensino Médio, mas não conseguia arranjar emprego. Então resolveu montar seu próprio negócio. Ele alugava geradores de energia para as festas nas periferias da cidade, lugares carentes de energia elétrica. À época, ainda morávamos na casa de meus avós, na cidade de Timon-MA. Minha mãe engravidou outra vez, e nasceu meu irmão. Tio Johnson, irmão de meu pai, deu-lhe o nome de Thomas Jefferson, em homenagem ao presidente norte-americano. Quando eu tinha onze meses, nos mudamos para Campo Maior, distante duas horas de Teresina. Ali passei minha infância e parte de minha adolescência. Foram tempos inesquecíveis, pois lá também conheci o Senhor Jesus Cristo e convivi com minhas melhores amigas do mundo: Luciana e Daniele, mas também foi lá que perdi uma das pessoas que mais amei na vida: meu pai. * Graduanda em Ciências Sociais pela UFPI. 70 Caminhadas de universitários de origem popular Trajetória do ensino de base Quando completei cinco anos de idade, meus pais resolveram ir morar na casa de meus tios Carlinhos, Wilsa e Gracinha, em Curitiba, Paraná. Lá ficamos um ano e oito meses e eu tive meu primeiro contato com os estudos, pois tia Wilsa, preocupada com meu futuro, cuidou logo de matricular-me na escola onde ela trabalhava. Curitiba é linda, e ali passei momentos felizes. Não me recordo de muita coisa, pois era muito pequena. Tudo ia bem até que meu avô materno adoeceu e nós tivemos que retornar ao Piauí. Em Campo Maior, eu e meu irmão fomos matriculados na mesma escola. Eu na Alfabetização e ele no Jardim I. Estudei a 1ª e 2ª séries na Unidade Escolar Monsenhor Mateus e a 3ª e 4ª séries na Unidade Escolar Professor Altivo. Foi nesse momento que perdi meu pai. Passei um longo tempo sem ir à escola, pois eu estava fiquei arrasada. Nós éramos muito apegados um ao outro. Fiquei cheia de traumas e acho que ainda hoje tenho alguns. Quase perdi o ano letivo, mas, graças a Deus, professores maravilhosos acudiram-me, apoiaram-me, e eu passei de ano. Prometi a meu pai que um dia seria doutora, e continuo com esse propósito. Estudei a 5ª e 6ª séries no GOT, que também é um colégio público; e terminei a 8ª série em Teresina, na Escola Estadual Fontes Ibiapina. Depois da morte de meu pai, passamos a viver da pensão que ele deixou. É escassa, mas minha mãe faz milagres e temos sobrevivido até agora. Contamos também com a preciosa ajuda de tia Gracinha. Eu e meu irmão temos total reconhecimento e gratidão por tudo que ela tem feito. A minha família, tanto do lado materno quanto do lado paterno é muito especial, mas tia Gracinha é um caso à parte. Minha existência não seria a mesma se ela não existisse. Ela foi e é fator preponderante na minha trajetória escolar e de vida. Ela é um presente de Deus. Pré-Universidade Estamos agora na fase do Ensino Médio. Cursei também o 1º ano na Escola Fontes Ibiapina, que ficava perto de minha casa. Graças à persistência de minha vizinha Elizabeth, entrei para o Colégio Zacarias de Góis, o famoso "Liceu Piauiense", onde estudei o 2º e 3º anos. Este foi o melhor colégio de toda a minha vida. Lá vivi meus melhores anos e conheci a galera mais bacana do Ensino Médio que pode existir na face da terra (sei que sou exagerada). Terminei o Ensino Médio com 17 anos e sem saber muito o que queria fazer. Era hora de decidir meu futuro profissional e dar um sentido à minha vida. Resolvi inscrever-me nos vestibulares das duas universidades públicas: Universidade Federal do Piauí-UFPI, onde preferi Licenciatura em História; e Comunicação Social na Universidade Estadual do Piauí-UESPI. Vivi enorme frustração, pois, embora tendo estudado bastante, não fui aprovada em nenhuma das duas. Decidi que ia passar em 2004. Comecei a estudar em casa, pois minha mãe não tinha recursos para pagar um cursinho. No meio do ano de 2003, arranjei uma vaga em um cursinho pré-vestibular popular que ficava no meu bairro. De segunda a sábado, das 18:00 às 22:00, ali estava eu firme e forte. Fiz novamente minha inscrição nas duas Universidades mencionadas, mas inverti as opções. Ciências Sociais na UFPI e História na UESPI. No dia do resultado, acordei bem cedo e, bastante ansiosa, fui aguardar o resultado ao pé do rádio aqui de casa. Na sala, minha mãe e meu irmão compartilhavam minha ansiedade, de repente toca o telefone. Era uma amiga me dizendo que ouvira meu nome na lista de aprovados para o curso de Ciências Sociais da UFPI. Pulei, gritei, abracei, e agradeci a Deus aquele momento. Não passei na UESPI, mas Deus sabe o que faz. Hoje estou completamente apaixonada por Ciências Sociais. Universidade Federal do Piauí 71 Ressalte-se que a Tia Gracinha, mencionada anteriormente, sempre me surpreende. Desta vez, ela me deu de presente um computador, que tem sido de grande valor para meus estudos: - Tia Gracinha, muito obrigada! Sempre. A Universidade No que se refere à Universidade, o primeiro semestre foi bastante complicado. Eu tinha aula das 14:00 às 22:00; Era cansativo e eu não entendia nada do que lia. Devido à minha renda familiar, fui considerada carente e ganhei uma bolsa de alimentação para o RU (Restaurante Universitário). No segundo período, as coisas ficaram mais tranqüilas. Eu já entendia o que lia. Ciências Sociais exige muita leitura e dedicação, e eu vivo constantemente estudando, lendo, pesquisando e fichando textos. No terceiro período, inseri-me no projeto de um professor através do PIBIC. Minha bolsa era voluntária, mas meu orientador conseguiu uma outra pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí-FAPEPI. Mergulhei então no mundo fantástico e real das pesquisas científicas e não pretendo mais parar. Nos dias atuais, estou no sexto período e agora vinculada ao Programa "Conexões de Saberes", onde pesquiso uma temática e trabalho no Cursinho Pré-Vestibular de uma comunidade popular. Com base neste relato, é perceptível que sou uma estudante de origem popular. Muitas vezes faltei às aulas por falta de um passe de ônibus. Muitas vezes deixei de tirar uma cópia xerox por falta de dinheiro. Comprar livros? Nem pensar. Mas aprendi a ser estratégica. Escapar diante das dificuldades. Se eu cheguei à Universidade, vou sair dela com o que de melhor ela tiver para me oferecer. Se não posso comprar livros, vou à Biblioteca. Foi assim que descobri o ambiente que mais me fascina, onde gosto de passar meu tempo livre. Sempre que vou a um lugar e não visito sua biblioteca é como se não houvesse ido. Os livros são para mim a expressão de voz e vez de uma determinada época. A visão crítica do passado e futuro de uma realidade social. Agradeço a oportunidade de poder contar minha história acadêmica. Estou perto de me formar, falta só um ano. Já estou rabiscando minha Pós-Graduação, pois pretendo fazer mestrado em Sociologia. Quanto ao doutorado, ainda não decidi, mas certamente será em alguma área de Ciências Sociais. 72 Caminhadas de universitários de origem popular Sob a luz da fama Kalinka Kelciane Teixeira de Brito * Quem sou eu? Tenho um nome um tanto incomum - Kalinka Kelciane - escolhido ao acaso, sem nenhum significado especial. Minha mãe queria dar-me um nome diferente, com "ar de exclusividade" e que, de certa forma, "chamasse a atenção". Acho que conseguiu! De índole complicada, costumo dizer que sou uma incógnita até para mim mesma. Também não é para menos. Desde cedo, vi-me confusa, envolvida em mundos distintos, ao mesmo tempo em que convivia com uma família na qual não se economizam insultos, mas que no final todos acabam sempre se entendendo. Minha mãe, Neusa Teixeira de Brito, é uma mulher batalhadora. Embora tenha que enfrentar as restrições financeiras, como, por exemplo, a dificuldade de morar em um cômodo emprestado, onde quarto, sala e cozinha se amontoam, o peso de ser pai e mãe. Contudo, nunca mediu esforços quando o assunto é minha educação, meu futuro. Ela acredita que o pouco pode render muito quando se trabalha com força de vontade e perseverança. Por isso luta com garra para superar os obstáculos ao invés de acomodar-se no pessimismo em que se encontra a maioria das famílias de baixa renda. Pedras, flores e espinhos Há mais de quinze anos, minha mãe é zeladora da Escola Santa Helena, um colégio privado onde também concluí meus estudos e ao qual serei eternamente grata, por ter me proporcionado uma boa educação como estudante e cidadã. Minha irmã mais nova, Denise, não teve a mesma oportunidade, pois foi registrada e criada por meus tios. Eis aí mais uma conseqüência da ausência da casa própria e das limitações econômicas. Ter estudado em uma escola particular não significa que minha vida escolar tenha sido um "mar de rosas". Muito pelo contrário. Ali passei os meus piores momentos. Todos os dias sentiame como um peixinho fora d'água, perdida em um "mundo de doces e flores", vivendo uma realidade totalmente antagônica ao meu bairro, onde eu e minha turma, sujos de areia, suados e descalços corríamos e gritávamos pelos quarteirões, apertando as campainhas e roubando mangas nos quintais alheios. Não conhecíamos os shoppings, tampouco o cinema, sobre os quais o pessoal do colégio estava sempre comentando, mas nos divertíamos muito com as brincadeiras de rua: queimada, bandeira, taco etc. e também passeando de patins no aeroporto. * Graduanda em Serviço Social pela UFPI. Universidade Federal do Piauí 73 A turma se revezava para que todos pudessem usar o único par de patins. Lembro muito bem que invadimos uma casa abandonada na rua vizinha e ali fundamos nosso clubinho, onde passávamos horas e horas planejando "loucuras de criança". As missões foram inúmeras e, dentre elas, uma manhã de sol no rio Parnaíba que me custou uma bela surra. Um dia, resolvemos fundar uma banda de música com instrumentos feitos de latas. Eu era uma das bailarinas (desde criança já era fascinada pela dança). Tudo ia bem até que certo dia os donos da casa nos descobriram e fomos expulsos. Ficamos sem sede e desintegrados. Todo começo de ano era um sufoco. Graças ao "salvador dos pobres", o crediário, minha mãe dava um jeito de comprar meu material escolar. O resto do ano ela pagava as compras em eternas e suaves prestações mensais. Quando falavam em festas, eventos ou viagens do colégio, eu nem me animava. Eu já sabia que os gastos seriam exorbitantes. Serra da Capivara, Sete Cidades, São Raimundo Nonato, Delta do Parnaíba eram lugares que o pessoal do colégio sempre falava. O jeito era ver de longe, admirando as fotos e acreditando que um dia eu teria condições de conhecer as belezas naturais do Piauí, do Brasil e, quem sabe, de outras partes do mundo. Outro grande fardo que tive que suportar foram os múltiplos, cruéis e incontáveis apelidos que meus queridos colegas de sala me taxavam. Eu era motivo de risos para todos, inclusive para as minhas "amigas". Os professores fingiam não ver e eu não tinha a quem reclamar; afinal eu era bolsista e meu dever era agradecer. Sonhei inúmeras vezes em estudar em uma escola pública. Apesar de conhecer as dificuldades daquele ensino, eu queria conviver com pessoas de minha classe social, onde não me sentisse feia, inferiorizada e não tivesse vergonha de mostrar quem sou e como vivo. Concentrar-me para estudar era outro desafio. Além do calor insuportável, as pessoas do meu conjunto habitacional não sabiam viver em coletividade. Ali é um dos lugares mais barulhentos da cidade. Suportei, a duras penas e em volume ensurdecedor, o brega, a suingueira, o forró e o reggae. A boa vizinhança não media esforços quando o assunto era incomodar. A máxima já diz tudo: "Os incomodados que se retirem". As bibliotecas eram um luxo que o custo do transporte impedia. Com o tempo, fui amadurecendo e me dando conta de que não adianta ficar lamentando. Naquele momento, o mais importante era tirar o máximo proveito daquela oportunidade. Eu também aprendi que, por mais que eu reivindicasse ou derramasse lágrimas, aquelas pessoas jamais se importariam. Passei a encarálas como mais uma árdua etapa a ser superada. Rumo à UFPI Último ano do Ensino Médio. Era hora de fazer tudo ter valido a pena e decidir meu futuro. Eu estava determinada a vencer. Além dos estudos semanais, quatro horas por dia, o Cursinho Popular Pré-Vestibular foi de suma importância para meu ingresso na Universidade Federal do Piauí. Ali revi e aprendi melhor alguns assuntos que, apesar de terem sido ministrados por bons professores no colégio, estavam mal compreendidos. Provavelmente porque tenham sido dados no sétimo horário. Considero contraproducente esse tipo de carga horária, na medida em que sobrecarrega o estudante e limita sua aprendizagem diante de tanta pressão. Retornando ao cursinho, lembro, com carinho, de alguns professores que sempre se mostraram bastante comprometidos conosco, mesmo diante das dificuldades de 74 Caminhadas de universitários de origem popular trabalhar com poucos recursos, sem material didático, cadeiras insuficientes, e em uma área improvisada coberta de palha que foi cedida pela Associação de Moradores. A batalha foi árdua, mas é sempre muito gratificante a conquista de uma vitória após longa e dolorosa luta. Passei em primeiro lugar para o Curso de Serviço Social, no ano de 2005. Tudo foi recompensado. Meu nome saiu até em notas de jornal. O segredo? Acreditar que não existem metas inalcançáveis para quem luta com determinação e sabe onde quer chegar. E eu sou assim. Uma pessoa que luta com tenacidade pelo que quer e que não desanima diante de uma queda, pois as dificuldades da vida dão às virtudes condições para que se tornem mais fortes e belas. Meu sonho sempre foi ser artista Depois que ingressei na Universidade, continuei em busca de outros objetivos. Dessa vez investi naquele meu velho sonho de criança: a dança. Há dois anos faço e amo o balé e a dança do ventre, graças a uma bolsa que ganhei na prestigiada Academia de Ballet Helly Batista. Aprendi que nunca é tarde demais para se realizar um sonho, pois o que realmente influi são o amor, o esforço e a dedicação que você vai depositando ao longo do percurso. Aprendi também que a vida levada através da dança é muito mais bonita de ser vivida. A dança não é só movimento, mas acima de tudo é sentimento, que eleva o espírito e afugenta as tristezas, proporciona auto-estima, autoconfiança, faz-me sentir o valor que tem a vida e o valor que eu tenho diante desta. São esses os sentimentos que tento passar às crianças para as quais dou aulas de balé, assistidas pelo Programa "Conexões de Saberes". Acredito que a arte, além de ser uma fonte de alegria e prazer, pode ser um caminho para transformar a realidade e descobrir novos talentos. Finalmente, a grande lição que o Conexões vem me oferecendo é a de que o combate às diferentes formas de exclusão social passa por um significativo processo de mudanças de visões de mundo, de atitudes e de comportamentos dos indivíduos entre si e entre as instituições, em uma prática contínua de "reconstrução social". Universidade Federal do Piauí 75 Vencendo as adversidades da vida Maria da Conceição Pereira da Costa * Ternas raízes Guardo na retina / um fulgor da infância / e me revejo / portanto archotes de esperança / que, em sonho, ainda / mantenho flamejantes. Creuza C. França Sou a quarta filha de sete irmãos, pai e mãe analfabetos. Nasci em uma cidadezinha no interior do Maranhão e minha infância foi muito difícil, uma vez que vivia em um meio social bastante precário, tanto cultural quanto financeiro. Lembro-me de acordar e tomar banho retirando água de um reservatório. Depois eu vestia minha roupa e ia para a escola. Esta é, certamente, a melhor de todas as lembranças, pois sempre fui muito dedicada aos estudos. Eu sempre acreditei que somente o saber poderia me tirar daquela realidade difícil. Minha querida mãe, em sua santa inocência, dizia sempre que eu tinha o espírito de gente rica. Acho que ambição seria a palavra mais adequada. Quando eu completei dez anos, meu pai teve uma atitude que lhe serei grata pelo resta da vida: mandou-me para Teresina-PI, para morar com uma tia. Não foi fácil separarme de minha família. Só concordei porque vislumbrei a oportunidade de melhorar de vida e, posteriormente, retornar para ajudá-los. Agarrei a chance como se fosse única. O início em Teresina foi muito difícil. Longe de casa, da minha realidade interiorana, eu tinha dificuldades até no modo de falar. Problemas com a documentação retardaram meus estudos e eu, aos onze anos, tive que ser matriculada na primeira série do Ensino Fundamental. Não reclamei, pois o importante era alcançar meus objetivos. Tudo ia bem até deparar-me com duas greves que resultaram em mais dois anos de atraso. Finalmente terminei o Ensino Fundamental. Achei que isso seria a solução de meus problemas; mas só depois percebi que estava vivendo um dilema. Eu estava feliz por ter realizado uma façanha. Mas... E então? O que ia fazer? Jovens pobres não podem se dar ao luxo de fazer vestibular porque têm que trabalhar. * Graduanda em Pedagogia pela UFPI. 76 Caminhadas de universitários de origem popular Deste modo, decidi fazer Magistério, pois seria uma possibilidade de conseguir um emprego rápido. Aos 22 anos estava terminando o Ensino Médio e trabalhando como professora de Educação Infantil. Passei dois anos só trabalhando; mas quanto mais se conquista mais se quer conquistar; e eu, nesse sentido sou muito ambiciosa. Ambiciono um bom emprego, uma boa casa e, principalmente, ajudar minha família. Voltei a estudar, dedicando-me de corpo e alma para enfrentar o vestibular. Na primeira tentativa, inscrevime para analisar o nível e o modelo das questões. No ano seguinte, eu já estava bem mais preparada, mas não obtive sucesso. Desistir, jamais. No ano de 2002, estabeleci uma estratégia de estudo: trabalhar pela manhã e estudar à tarde. Comecei freqüentando um Cursinho, mas não me adaptei. Achava uma perda de tempo. Então resolvi estudar por conta própria. Comprei duas gramáticas e um livro de História. O resto foi emprestado. Em seguida, planejei um horário de estudo com todas as matérias exigidas no vestibular. Sentava à mesa por volta da meia-noite e só parava no dia seguinte às 05:00. Entretanto, se agi certo ou errado, não sei. Mas sei que no início de 2004 eu não era mais uma aluna a ingressar no Curso de Pedagogia da UFPI, eu era A ALUNA, que driblou a falta de material, o cansaço e as noites insones. Quando me perguntavam se eu havia vencido, eu dizia que sim: - "Esta primeira batalha, eu venci por mérito pessoal". A emoção de ser aprovada no vestibular não tem preço. É algo indescritível, extraordinário! É a sensação do dever cumprido. Acredito que todo jovem precisa vivenciar esta experiência. É o tipo de conquista que nos engrandece, enobrece e nos faz sentir capazes, determinados, corajosos e fortalecidos para enfrentar a vida. Vale lembrar que me reconheci ambiciosa. Contudo, isto era apenas o começo. A partir de então eu iria enfrentar a Universidade e suas adversidades. Na UFPI tenho tido muita sorte. Faço o curso que sempre sonhei fazer, e, logo que as aulas começaram, conheci aquelas que são hoje minhas melhores amigas: Ruisenilde Gomes da Cunha e Carla Andréa Santos Mazza Alencar. A elas devo algo que jamais poderei pagar: "favores". Favor não tem preço. Amizades feitas, laços fortes, colegas de turma, professores, pessoas que passaram por minha vida, umas deixaram pegadas outras rastros, outras cicatrizes, mas todas contribuíram para o meu crescimento pessoal. Entre essas pessoas existe uma que jamais esquecerei; ela foi o meu outro pilar de sustentação e apoio. Por dever de gratidão, cito a Professora Doutora Maria Divina Ferreira Lima. A esta Senhora, cujo próprio nome já faz referência "Divina", meu eterno agradecimento pelo apoio moral, intelectual e humano. Ela me abriu as portas para o mundo de conhecimentos científicos, abrangentes e memoráveis. Minha família é um caso à parte. Não tenho como pagar nem a terça parte do que minha tia fez por mim. Ela me transformou em uma mulher capaz de levantar sempre que o "meu mundo desabava". Com apoio e incentivo fui vencendo minhas batalhas, mas uma coisa é certa: eu quis lutar, eu insisti até superar todos os obstáculos, para conquistar meu objetivo. Não foi fácil, mas eu venci. Penso em outras batalhas que terei que enfrentar na construção da minha profissionalidade, pois pretendo voar mais alto. Atualmente faço parte do Programa "Conexões de Saberes", motivo pelo qual faço este relato. O Programa deu-me condições de ajudar outras pessoas que necessitam de uma oportunidade. Agora posso dizer-lhes que não são os ricos quem conseguem êxito, mas aqueles que lutam por seus objetivos, aqueles que vislumbram metas a curto e longo prazo. Basta acreditar em si próprio, valorizar-se. Não é o poder aquisitivo que dita a dimensão dos nossos sonhos, mas sim nossa vontade de realizá-los. Universidade Federal do Piauí 77 Estamos em dezembro de 2006 e meu curso está quase terminando. Estou planejando fazer Mestrado. Para uns, algo inatingível devido à grande concorrência. Para mim é mais um desafio, já que aprendi desde cedo a ignorar a concorrência e acreditar na minha capacidade de trabalho tendo minhas vitórias como referencial. Costumo dizer para alguns amigos que nascer já foi uma vitória, pois para quem nasceu em uma cidadezinha do interior do Maranhão, sem nenhuma perspectiva de vida, chegar onde cheguei é mais que uma vitória. É uma demonstração de que somos aquilo que queremos ser, não importa o sistema, os obstáculos. Ao fazer uma retrospectiva, posso assegurar que já não sou nem a sombra daquela menina tímida e cheia de medos. Não parei de sonhar nem consegui tudo o que queria, mas estou começando a colher os bons resultados de minhas suadas vitórias. “Normalmente não se pode impedir o êxito de uma pessoa realmente determinada, se colocaram objeções em suas trajetórias de vida, ela transforma em degraus para a subida. Se houver obstáculos a mais em seu caminho ainda assim ela prossegue de cabeça erguida.” MARCELO WILLIAM 78 Caminhadas de universitários de origem popular Sonhos de uma vida Maria da Penha da Silva Santos * Tudo outra vez Abra os olhos e sonhe, acorde para o momento. Não desista de ser feliz. O mundo é de quem quer conquistá-lo. Se cair, levante-se. E tente tudo outra vez, pois você é o que você sonha. Emmy Julie Vou começar minha história a partir dos meus seis anos de idade, quando meu pai me levava para meu primeiro dia de aula na Escola Municipal Coronel Boa Vista, no Povoado Fazenda Nova, Zona Rural de Teresina. Nesta escola estudei do Pré-escolar a 3ª série, do Primário (à época). Depois nos mudamos para Teresina-PI, onde fomos morar no Bairro Santa Luzia e passei a freqüentar a Escola Municipal Miriam Portella Nunes, no Conjunto Sacy, periferia da capital. Aos nove anos de idade, fui estudar na Escola Estadual Professor Edgar Nogueira, onde cursei da 5ª a 7ª séries do Ginásio, hoje Ensino Fundamental. Quando estava na 7ª série, tive o desprazer de ser aluna de um professor que era considerado o bicho-papão da escola; como tinha muito medo dele, terminei o ano reprovada em Matemática, matéria que ele ministrava. Foi a partir daí que decidi ser professora e jamais amedrontar meus alunos, como ele fazia. Em 1990, mudamos do Bairro Santa Luzia, onde morávamos, e fomos morar em uma casa que meu irmão ganhou no Conjunto Renascença II, Zona Sudeste de Teresina. Neste mesmo ano, meu irmão resolveu adotar um menino, que está com 16 anos e não quer nada com os estudos. Foi um ano em que não consegui estudar, pois as escolas estavam em uma greve que se estendeu até 1991. O dinheiro de minha mãe só dava para pagar uma escola, e este foi destinado à minha irmã, que, em vez de estudar, queria apenas curtir a vida. Voltei a estudar somente em 1992, na Unidade Escolar Professor Pires de Castro, onde cursei, com muito sucesso, a 7ª e 8ª séries. Nesta escola, conheci dois maravilhosos professores, Osvaldo, de Matemática; e Claudete, que ensinava Técnicas Comerciais. A eles muito devo, pelo apoio e força. No final do ano, resolvemos fazer uma festa; meu vestido foi um presente da minha falecida amiga Maria José. Ela costurou o vestido mais lindo que eu já tive. * Graduanda em Letras-Português pela UFPI. Universidade Federal do Piauí 79 Quando ainda cursava a 8ª série, preparei-me para fazer testes para cursar o 2º grau, já que só estudavam nas boas escolas os alunos aprovados. Inscrevi-me em várias escolas públicas, e em todas fui aprovada. Fiquei muito surpresa por ter sido a primeira colocada na Escola Técnica Federal do Piauí, atual CEFET. Lamentavelmente lá não pude continuar a estudar, minha mãe não tinha dinheiro para pagar a taxa da matrícula, comprar o fardamento e pagar as passagens de ônibus. Meus irmãos também não puderam ajudar, pois estavam ocupados demais cuidando de suas vidas. Resolvi então me matricular em uma boa escola que ficava perto da minha casa. Como estudava à noite, eu ia a pé e voltava de ônibus, pois era perigoso andar sozinha. Em 1993, comecei a estudar em uma nova escola, chamada Fundação Bradesco, mantida pelo Banco do mesmo nome. Ali fiz o curso Técnico em Administração de Empresas e encontrei os melhores profissionais de ensino de minha vida, até entrar na UFPI. As amizades foram muitas. Nesta escola, conheci pessoas maravilhosas, que me deram todo o apoio, foram amizades que ultrapassaram os muros da escola e deixaram ensinamentos que trago comigo até hoje. Foi com eles que solidifiquei meu desejo de ser professora e cursar uma Universidade. Em 1994, minha irmã teve uma menina linda, Beatriz, meu bebê, minha princesinha, que, carinhosamente, chamamos de "rolinha". Hoje ela está com 12 anos e gosta muito de estudar. Acho que, depois de mim, ela será a próxima da família a entrar na Universidade. Terminei meu curso em 1995. Não prestei vestibular, pois, apesar de trabalhar em casa de família, meu dinheiro não dava, porque a pensão que minha mãe recebia havia sido cortada e eu precisava ajudar nas despesas de casa, e não havia ninguém para me ajudar ou talvez não acreditasse em meu potencial. E então o sonho de me tornar uma universitária foi adiado, mas não esquecido. De 1996 a 2001, fiquei sem estudar. Fiz alguns cursos, continuei a trabalhar, e fui perdendo o estímulo para os livros. No Natal de 1998, conheci uma pessoa que mais tarde iriam me fazer voltar a estudar. Começamos a namorar e logo ficamos noivos, por dois anos; terminamos em meados de 2000. Com a separação e a decepção, resolvi voltar a estudar. Eu tinha que procurar alguma forma de esquecê-lo; e, para tanto, resolvi me dedicar aos estudos. Hoje agradeço tudo de ruim que ele me fez, pois o considero um dos responsáveis por minha aprovação no vestibular. Em 1999, fui morar com minha irmã mais velha, que tinha acabado de se separar. Mas logo comecei a trabalhar em uma loja de material de construção e aprendi o verdadeiro significado da palavra trabalho. Eu trabalhava cerca de 10 horas por dia, em pé, já que não tinha o direito de me sentar e vivia sob intensa pressão. Então eu não conseguia fazer outra coisa a não ser trabalhar. Contudo, foi também nesta loja que ouvi do meu patrão uma frase que me fez acordar: - "Filho de pobre nasceu para trabalhar. Vocês são tão burras que nunca conseguirão nada na vida e agradeçam-me pelo bem que estou lhes fazendo". Percebi então que, mesmo sendo filha de pobre, eu merecia uma vida melhor. E, depois de uma discussão, pedi demissão. Pedi minhas contas e saí. Nunca mais andei por lá, apesar das amizades que deixei. Em 2001, começou minha batalha para conseguir vaga em uma escola perto de minha casa. Sempre que eu me apresentava diziam que não havia mais lugar. Em uma dessas escolas, fiquei sabendo que se conseguisse uma carta de recomendação de um vereador, que ali havia sido professor, eu teria uma vaga garantida. Resolvi tirar a prova. Fui à Secretaria 80 Caminhadas de universitários de origem popular da escola, perguntei se havia vaga e me disseram que as turmas estavam todas lotadas. Voltei meia hora depois trazendo a carta do político, que consegui através de uma amiga, e matricularam-me sem pedir qualquer documento. Assim comprovei que em muitos lugares as "coisas" só funcionam se houver alguém influente para subsidiar. A partir daí, teve início uma fase estafante em minha vida. Saía de casa às 06:30 e só retornava às 23:00, quando terminava a última aula. Era muito cansativo e, muitas vezes, pensei em desistir. Nessas horas, eu era sempre estimulada pelos amigos e, aos poucos, fui superando os obstáculos e adaptando-me à nova rotina. No final do ano, fiz minha primeira inscrição para o Programa Seriado de Ingresso na Universidade-PSIU, e não me saí bem. No ano seguinte, graças ao incentivo do professor de Literatura, Josenildo Brussio, a quem muito agradeço, fiz a segunda etapa e minha nota melhorou muito. Foi então que percebi que a realização do meu sonho estava mais próxima. No ano de 2003, tive que escolher em que área iria me inscrever para prestar o vestibular. Minha carreira já estava determinada. Eu queria ser professora. Faltava agora escolher uma área que me permitisse trabalhar de dia e estudar à noite. Joguei na sorte. Ao chegar ao local de inscrição, fechei os olhos e apontei o dedo. Deu Licenciatura Plena em Letras-Português Noturno. Pronto! A sorte estava lançada. O destino mostrou-me o caminho. Pedi a Deus que me ajudasse a passar, pois não tinha muito tempo para estudar. Após ter saído do meu emprego, transformei meu tempo de trabalho em tempo de estudo. Por ser o último ano na escola, resolvemos fazer uma festa de despedida, que foi muito legal. Nesta festa estavam as pessoas que mais me apoiaram nos últimos três anos: Nayla, que me deu um afilhado lindo. Dona Toinha, Daniel, Mazé, minha afilhada, o Adriano, hoje meu namorado, e todos os outros colegas de sala de aula. São meus amigos até hoje e sempre acreditaram na minha aprovação. Todos diziam, com muita convicção, que eu logo seria uma universitária. Nesta mesma noite, ouvi a diretora da escola me chamar de louca, apenas porque eu disse que, dentro de alguns anos, voltaria à escola, desta vez como professora de Português. Enfim chegou o dia do vestibular. Saí cedo de casa junto com meu amigo Daniel, que estava inscrito para Geografia, e fizemos a prova na própria Universidade. Ao chegar, comentei que, a partir do próximo ano, ali seria minha casa. Terminada a prova, eu e Daniel começamos a conversar sobre as questões e fui percebendo que minhas respostas não coincidiam com as dele e isto me fez sentir muito mal. Achei que não ia passar, até que, no dia seguinte, ao ler no jornal o gabarito, verifiquei que tinha acertado todas as questões que Daniel havia dito que eu tinha errado. Ele, infelizmente, não foi aprovado; e eu ganhei confiança e fiz a segunda prova. Decidi não mais comentar, não discutir as questões nem conferir gabarito. Para me distrair, resolvi viajar para casa de uma amiga e me desliguei do mundo. Chegou o dia 9 de janeiro de 2004, o dia do resultado. Eu dizia que aquele seria o dia mais triste ou mais feliz da minha vida. Pontualmente, às 12:30, a estação de rádio começou a divulgar o resultado do Curso de Letras-Português. Fiquei nervosa e mal conseguia me controlar. Ao ouvir meu nome (confesso que não ouvi todo) senti a maior emoção de minha vida. Eu não sabia se ria ou se chorava; e, naquele momento, como se fosse um filme, minha vida inteira passou diante dos meus olhos. Emoldurando minha vitória, estavam todos os meus sonhos e os de uma mãe, que, apesar das dificuldades, sempre rezou e apostou em mim. Também estavam presentes os meus amigos que não conseguiram aprovação, mas que, através de mim, estavam representados na Universidade. Não uma universidade qualquer, mas a Universidade Federal do Piauí. Aquele dia foi glorioso. Universidade Federal do Piauí 81 As aulas só começaram em setembro de 2004, porque houve uma greve. Meu primeiro dia de aula será sempre inesquecível. No percurso até à UFPI, fui relembrando fatos e pessoas. Muitos me apoiaram e acreditaram em minha vitória. Outros diziam que eu jamais conseguiria. E ali estava eu, a filha da lavadeira e do tocador de viola, universitária da UFPI. Os primeiros períodos na Universidade não foram fáceis, como estava desempregada, tinha dificuldade em conseguir as passagens de ônibus para chegar à UFPI; e, às vezes, precisava alternar o dia para ir à aula; por isso quase fiquei reprovada por faltas, no primeiro período. No início de 2006, soube, através de uma amiga, que estavam abertas as inscrições para o Programa "Conexões de Saberes". Fiz a inscrição e fui selecionada. Nos dias atuais, devo ao Programa parte da realização do meu sonho, pois comecei a lecionar no Cursinho Pré-Vestibular que criamos para ajudar alunos como nós, oriundos de escolas públicas, que desejam entrar em uma universidade. Aqui, no "Conexões", realizei também o sonho de conhecer a Cidade Maravilhosa, ocasião em que realizou-se o II Seminário Nacional. Foi maravilhoso. Hoje, se alguém me perguntar por que estou escrevendo este memorial, direi que o faço para mostrá-lo a cinco pessoas especiais: Eletícia, minha sobrinha; Mazé, minha afilhada; Daniel e Marcos, meus melhores amigos, e ao meu namorado, Adriano (amor da minha vida). Apesar dos empecilhos e das dificuldades que passamos na vida, nunca devemos desistir dos nossos sonhos. Podemos até adiá-los, mas desistir jamais. Depois que realizamos um sonho, outros maiores vão surgindo. Agora, por exemplo, sonho com o Mestrado e o Doutorado. Se alguém me chamar de louca, servir-me-á de incentivo; prefiro ser chamada de louca e realizada a ser normal e frustrada. Por fim, sou a filha caçula de sete irmãos. Meu pai, já falecido desde quando eu tinha sete anos, chamava-se José Vieira dos Santos, e minha mãe, Joaquina Nunes da Silva Santos, mulher a quem devo tudo o que tenho e sou. Espero que, no dia da minha formatura, ela esteja lá, junto a mim, partilhando a realização do nosso sonho. Estou cursando LetrasPortuguês na UFPI, tenho treze sobrinhos e quero vê-los na Universidade. Na UFPI, fiz amizades que jamais esquecerei; e, qualquer que seja o caminho a seguir, jamais nos esqueceremos uns dos outros. Quanto aos meus sonhos, os sonhos de minha vida, vou realizando-os, ano após ano. 82 Caminhadas de universitários de origem popular "Esperei confiantemente pelo senhor. Ele se inclinou para mim e me ouviu quando clamei por socorro" (Salmo 40 : 1) Maria dos Remédios Batista da Silva * Nasci aos doze dias do mês de dezembro do ano de mil novecentos e setenta e dois na cidade piauiense de Picos, a 300km da capital Teresina-PI. Quando pequena morei em uma casa que foi construída no terreno da Igreja Católica. Aquele local era conhecido como Chão dos Padres. Da parte de minha mãe pouco sei de sua história, já que ela mesma pouco falava. Apenas dizia que sua mãe havia morrido e apenas nos apresentou a um tio. Ela também dizia que eu me parecia muito com um irmão dela, nas atitudes. Meu pai, quando conheceu minha mãe, vinha de um casamento desfeito e uma prole de oito filhos, desconhecidos para mim e minha irmã, Artenira. Eu também pouco sei sobre meu pai, que faleceu quando eu tinha apenas um ano de idade. Dos irmãos dele, tenho o maior carinho e admiração, principalmente pela Tia Missia e por Tio Marcelinho. Minha mãe conta que meu pai, antes de morrer, pediu a ambos que cuidassem de mim. Como eles viviam em Colônia, povoado próximo à cidade de Oeiras-PI, fui morar lá. Minha mãe e minha irmã ficaram em Picos. Esse foi o período mais feliz de minha vida. O ensino das primeiras letras foi cheio de aventuras. O colégio funcionava na casa da professora, Tia Francisca. Como a escola era distante da casa de meu tio, ele comprou para mim uma jumentinha que era meu meio de transporte. Hoje sinto certa tristeza, pois tenho poucas lembranças de minha professora que muito estimava. As últimas notícias que tenho são de que ela se mudou para São Paulo. Quando o ano findou, minha mãe me avisou que eu ia voltar para Picos, a fim de continuar meus estudos. Aquilo me encheu de tristeza. Eu não queria ir. Meus tios tudo fizeram para eu continuar com eles, mas minha mãe estava irredutível. Esta cena não sai de minha memória, pois foi aí que começaram meus sofrimentos e torturas. Só de pensar, sinto vontade de chorar. Fui matriculada na primeira série aos nove anos de idade. Minha irmã também estudava na mesma sala. Eu sempre fui muito travessa e gostava de uma briga, principalmente porque os meninos me chamavam de "fundo de panela" e "cabelo de Bombril". Brigava no colégio e apanhava de minha mãe em casa. Hoje acho engraçado lembrar dos momentos em que tinha que fazer as tarefas de casa. Às vezes eu tinha dúvidas e ficava impaciente dizendo que não sabia fazer a lição. Como minha mãe não sabia ler, ralhava comigo dizendo que eu sabia sim, pois a professora havia me ensinado. Depois ela me perguntava se eu tinha feito tudo certo. Este foi um bom período em minha vida. Minha mãe trabalhava no mercado e na casa de uma senhora * Graduanda em Ciências Biológicas pela UFPI. Universidade Federal do Piauí 83 que nos dava, diariamente, um litro de leite. O açougueiro nos presenteava com ossos sem carne que, aos domingos, minha mãe cozinhava com arroz na panela de pressão. Enquanto ela fazia a comida, eu e minha irmã tomávamos banho. Depois ela penteava nossos cabelos com óleo de mamona e fazia um coque que eu odiava, mas não desmanchava. Enquanto minha mãe estava viva, minha vida era maravilhosa. Nós éramos pobres, morávamos em casa de taipa, mas nossa vida era considerada boa. Pena que eu só fui descobrir isto tarde demais. Eu era louca para trabalhar em casa de família e ganhar o meu dinheiro, mas minha mãe não deixava. Tempos depois mamãe adoeceu. Ela tinha febre todas as noites, e de manhã saía para trabalhar, mas não ia nunca ao médico. A doença foi piorando até seu falecimento. Nesse triste dia, minha vida mudou totalmente. Ficamos órfãs, Artenira com doze anos; eu com onze; e meu irmão caçula com apenas três anos de idade. Não tínhamos dinheiro para fazer o sepultamento, mas nossa vizinha, Maria do Carmo, conseguiu tudo com a Prefeitura Municipal. Após o enterro, ficamos com a Tia Míssia e seu filho adotivo, chamado Pelé, e por nós considerado como um irmão. Ele completou 18 anos e foi servir ao Exército. Como era muito inteligente e trabalhador, logo começou a nos sustentar. Eu vivia brigando na escola e ninguém se aproximava de mim. Certo dia minha irmã, que estava na sétima série, resolveu parar de estudar. Eu fiquei revoltada e parti para a briga. Brigamos feio e fomos entregues aos cuidados de uma assistente social. Comigo não funcionou. À época, o Pelé conheceu uma prostituta, que eu odiava, e se casou com ela. Eu vivia alertando que ela não prestava, mas só diziam que eu era a encrenqueira. Continuei falando e acabei levando um tapa na cara. Esta foi a última vez que vi Pelé. Tempos depois ele descobriu a traição da mulher e deu um tiro nela. Preso, foi transferido para Teresina onde se matou. Certo dia, conheci Dona Beta, com quem vivo até hoje. Ela tinha acabado de ter um filho, João Ricardo, e me convidou para ajudá-la a tomar conta do bebê. Aceitei na hora, pois assim eu ia me afastar daquela casa onde só eu era problema. Mais tarde, levei meu irmão para morar comigo. Passei a viver um novo tempo e fui estimulada a estudar. Todos queriam que eu me formasse como enfermeira técnica, mas eu queria mesmo era ser doutora. Quando a filha mais velha de Dona Beta teve que se mudar para uma cidade grande, para continuar seus estudos, ela escolheu a cidade de Recife. E assim, todas as férias nós passávamos na Ilha de Itamaracá, até que eu me mudei definitivamente para a capital pernambucana, indo morar com a sogra de Dona Beta, a filha mais velha que estudava Medicina e Manuela, a filha do meio. A vida estava bem complicada, pois eu cuidava da casa pela manhã e estudava à tarde. O dinheiro que eu ganhava era empregado no pagamento das aulas de Português, Matemática, Física e Química. Quando terminei o segundo grau, fiz o primeiro vestibular. Como era esperado, não passei. Ocorre que sou evangélica e o dono do Colégio 2001 freqüentava a minha igreja, não tive dúvidas em pedir uma bolsa para cursar o pré-vestibular. Ninguém acreditou, mas o fato é que ganhei a bolsa. No dia em que fui me inscrever para prestar o vestibular, pedi dispensa do pagamento da taxa de inscrição. A resposta veio pelos Correios e foi positiva. A URPE me isentava totalmente do pagamento da taxa de matrícula. Pronto! Agora vou prestar mais um vestibular. Mais uma vez vou ter medo de não ser aprovada. 84 Caminhadas de universitários de origem popular A vida ia seguindo até que um dia a bomba estourou: - "Vamos embora do Recife. A minha sobrinha Maria vai estudar em Teresina e precisa de alguém para tomar conta dela". Ao chegar aqui eu fazia as tarefas domésticas, mas nada de estudo, pois eu estava sendo vítima de preconceito racial em todos os lugares onde andava. Em 2004, conheci uma professora da Universidade Federal do Piauí-UFPI que me convidou para fazer um estágio voluntário em seu departamento. Aceitei de imediato, pois eu amo estudar Leishmaniose Visceral e gosto da pesquisa. Em seguida, a professora conseguiu para mim uma bolsa de estudos e eu me reintegrei à UFPI no Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas. Atualmente faço parte do Programa "Conexões de Saberes". Universidade Federal do Piauí 85 Um novo jeito de olhar Marlúcia Oliveira Lima * É com muita alegria e, ao mesmo tempo, com uma leve tensão que hoje escrevo estas linhas sobre minha história de vida. Alegria por ter sido convidada pelo Programa "Conexões de Saberes" a olhar mais uma vez a minha história e tensão por ser eu uma pessoa muito reservada. Isso torna essa tarefa um pouco difícil, mas essa tensão, no fundo, é emocionante. É como aquela tensão que se sente no início das aulas, quando a professora nos pede para fazer uma redação contando as nossas férias. Eu ficava horas, pensando no que escrever e nada de idéias. Eu não conseguia externar nada do que tinha vivido. Era como se eu parasse no tempo. Hoje, com a tarefa de escrever minha história, voltei a sentir a mesma sensação e isto está sendo maravilhoso. Tudo começou na madrugada do dia 26 de julho de 1982, em Teresina-PI quando cheguei a este mundo. Sou filha de Martinho Cardoso Lima (in memoriam) e de Maria Lúcia Oliveira Lima; tenho três irmãos: Martogil, Maria Simone e Mariele. Esta é minha família e o meu referencial. Certamente temos nossas diferenças, mas nada que desfaça os laços de nossa união, de nosso respeito e de nosso amor. Sou muito grata a Deus por ter me presenteado com uma família assim, hoje incompleta, mas muito unida. Meus pais são pessoas politicamente corretas, meu pai principalmente. Eles nos ensinaram a prezar, de modo absoluto, a família; isso para mim foi e é muito importante. Atualmente não tenho a mesma alegria, devido à perda de meu querido e amado pai. Ele era um homem de garra, autêntico, amigo, cuidadoso e muito exigente. Um superpai. Queria sempre que as coisas fossem do seu jeito. Às vezes eu achava tudo muito chato e sempre questionava. Cheguei, algumas vezes, a contrariá-lo. Hoje, porém, vejo tudo de forma diferente, pois tudo o que ele sempre quis foi preservar e garantir o bem-estar de todos nós. Embora meus pais fossem de Alto Longá-PI, sempre vivi em Teresina-PI. Quando nasci, meus pais moravam no bairro Real Compagre, na Avenida Batalha. Era uma casa pequena, mas tinha um quintal enorme onde brinquei muito. Tínhamos apenas dois vizinhos, pois em frente à nossa casa ficava a fábrica da Coca-Cola, onde meu pai trabalhava como pintor, e nos fundos havia uma garagem dos ônibus da Viação Teresinense. Ali vivi durante dez anos, no meio de adultos, o que talvez tenha influenciado muito a minha personalidade. Em relação aos estudos, meus pais sempre diziam: - "O estudo é a única herança que podemos lhes deixar". Diante disso e com a graça de Deus, meus irmãos e eu sempre tivemos a oportunidade de estudar, embora não fosse nada fácil educar quatro filhos e garantir escola para todos. Certamente houve muita dificuldade, mas no final acabava dando certo. * Graduanda em Química pela UFPI. 86 Caminhadas de universitários de origem popular Minha trajetória escolar começou na Creche Tia Anita, localizada pertinho de casa, onde fiz todo o Jardim. Ela era pequenina e muito aconchegante. Hoje, quando passo em frente, viajo na lembrança: as brincadeiras com massinhas de modelar, as aulas de pintura, os passeios de trenzinho e as festinhas nos dias dos pais, das mães e juninas. Lembro também de algumas professoras e amiguinhas. No meio do ano em que ia terminar o Jardim e colar grau, a diretoria providenciou minha transferência para a Unidade Escolar Wall Ferraz onde fui matriculada na 1ª série. Dessa forma, não tive festa de formatura. Meu primeiro ano no novo colégio foi muito conturbado pelas greves. Meu pai então conseguiu uma vaga na Escola Municipal Professor José Carlos, onde fiz os outros três anos, completando assim o Ensino Primário. Tudo era muito legal, menos a tensão e o frio na barriga, na hora de fazer a redação sobre as férias. Nesse período, meu pai perdeu o emprego. Mesmo assim, ele e minha mãe, que ajudava costurando para fora, nunca deixaram que os filhos sofressem qualquer conseqüência. Eles lidavam com o problema de uma forma tão discreta que nós nada percebíamos. Acho que dessa forma eles sofriam muito mais. Foi também nesse tempo que comecei a participar da catequese e fiz a Primeira Comunhão - Sacramento da Eucaristia. Meus pais compraram uma casa no bairro Água Mineral, e para lá nos mudamos e até hoje vivemos. Como conseqüência, tive que mudar de escola e acabei voltando para a Unidade Escolar Raimundo Wall Ferraz. Meu pai, que estava trabalhando em uma panificadora, montou um pequeno comércio e minha mãe continuou fazendo suas costuras, e as encomendas aumentaram, pois o bairro era muito populoso. Eu e meus irmãos alternávamos nossos horários, pois todos ajudávamos na quitanda, principalmente quando nosso pai se ausentava. No começo, quando tudo era só novidade, nós achávamos muito bom, mas, com o passar do tempo, foi ficando chato. Além de alguns prejuízos, estava ficando difícil conciliar os estudos e a quitanda, isto sem falar que lidar com gente não é nada fácil. Ao terminar o Ensino Fundamental, tive que fazer testes seletivos em algumas escolas, pois na que eu estudava não havia Ensino Médio. Foi assim que me transferi para o Colégio Estadual Zacarias de Góis, o Liceu Piauiense. Essa etapa escolar marcou muito a minha vida. Foram três anos de muito esforço e pude aprender muitas coisas, conquistar novas amizades. A partir daí, passei a sonhar com um curso superior e me tornar enfermeira. Para tanto, eu e todos os alunos da rede pública tivemos que superar muitos obstáculos, em razão do quadro da educação reinante. Baixo rendimento, pela qualidade do ensino ministrado, falta de livros didáticos, e a péssima atuação dos professores que não assumiam sua real profissão. À época, procurei conversar com alguns deles sobre o vestibular e sondei as minhas chances de aprovação. Alguns diziam que eu não devia sonhar muito alto. Outros davam a maior força e me estimulavam a estudar muito e não desistir, pois nada é impossível. Durante todo o Ensino Médio, continuei ministrando aulas de reforço. Eu agora tinha um bom número de alunos para dar atenção, o que era muito gratificante. Eu também passei a fazer bombons de chocolate, juntamente com minha amiga Alessandra Menezes. Nossos ovos de Páscoa fizeram o maior sucesso. Isto nos estimulou e começamos a organizar festinhas de aniversário, a fazer pequenas lembranças e, em seguida, passamos a receber encomendas de cestas de café da manhã. Embora fosse muito trabalhoso, eu e minha amiga achávamos muito legal, pois era uma maneira gostosa de viver a vida. Ah! Que tempo bom! Minha família sempre me deu muito apoio. Universidade Federal do Piauí 87 Quando terminei o Ensino Médio, encarei dois vestibulares: Enfermagem na Universidade Federal do Piauí-UFPI e Psicologia na Universidade Estadual do Piauí-UESPI. O resultado foi uma grande frustração. Não passei em nenhum. Aí tive vontade de desistir de estudar. Eu não aceitava que depois de tanta luta, tanta expectativa, tantos sonhos ter que passar por tamanha desilusão. Fiquei totalmente arrasada. O carinho e a presença de minha família e dos amigos foram muito importantes e essenciais para que eu pudesse voltar a erguer a cabeça e seguir em frente. Precisando trabalhar e querendo continuar meus estudos, continuei dando aulas de reforço. Meus pais conseguiram uma bolsa de estudos para eu fazer o Curso Técnico em Enfermagem; desta forma, garantiram a continuação de meus estudos. Fazer este curso foi de grande importância. Ele teve a duração de dois anos e foi feito no Centro Integrado de Ensino Regular e Profissionalizante-CIERP. Decidi não fazer o vestibular, mas, ainda assim, continuei estudando em casa. Na última etapa do curso, fiz o estágio, experiência grandiosa e delicada, pois eu tinha que lidar com a vida, do nascer ao morrer. Ao terminar o curso eu não sabia o que fazer. Comecei a procurar emprego, pois queria pagar um cursinho preparatório para o vestibular. Em janeiro de 2002, um mês depois da conclusão do curso técnico, surgiu uma oportunidade para trabalhar como recepcionista em um consultório médico no Centro da cidade. Preparei meu currículo e fui à luta. Passei por uma entrevista e um teste de redação. Fui aprovada e comecei a trabalhar com um casal de médicos: Dr. Joaquim Vilarinho e Dra. Maria da Cruz Vilarinho, duas pessoas a quem tenho muito que agradecer. Meses depois, saio à procura de um cursinho pré-vestibular. Matriculei-me em um Cursinho Popular que funcionava nas dependências da Biblioteca Comunitária Cromwell de Carvalho, no Centro de Teresina. As aulas eram ministradas por alunos de graduação da UFPI e UESPI. Ele caiu do Céu. Graças a Deus, pude conciliar estudo e trabalho, mas não foi nada fácil. Era grande o cansaço físico ao chegar na sala de aula. Eu rezava para não desistir. O ano passou e o vestibular chegou. Eu decidi fazer somente as provas da UFPI. Biologia e Química como segunda opção. Para todos, eu era candidata a uma vaga de Biologia. Ocorre que na hora da inscrição eu cometi um engano e coloquei o código de Química como minha primeira opção. Fiquei muito contrariada. A essa altura do campeonato, decidi não contar o fato para ninguém. Como estava muito difícil guardar o segredo só para mim, decidi falar com um amigo, mas ele estava muito ocupado e resolvi não incomodá-lo. Abracei a mudança e segui sozinha com meu segredo. Passei dias de grande ansiedade até que a hora do resultado chegou. Todos estavam aguardando meu nome na relação de Biologia e como não fui citada eles passaram a me consolar. Eu, quieta, não falei nada. A ansiedade aumentava cada vez mais até que anunciaram os aprovados em Química. Como não ouvi meu nome comecei a chorar. Nesse momento, o telefone começou a tocar. Eram amigos me dando os parabéns pela aprovação ao mesmo tempo em que brigavam comigo por não lhes ter comunicado minha mudança de curso. Eu não estava acreditando neles, pois não tinha ouvido meu nome. Eu perguntava por que eles estavam fazendo aquilo comigo e chorava ainda mais. Eles insistiam e riam. Não demorou muito e eles chegaram à minha casa trazendo uma folha do jornal com o nome dos aprovados. Ali estava meu nome. Quanta alegria! Tive que explicar a mudança do curso e, em seguida, corri para o abraço. 88 Caminhadas de universitários de origem popular Fui aprovada para o segundo período de 2003. Ao iniciar o curso, um novo sentimento apossou-se de mim. Passei a me sentir "um peixe fora d'água". Grande parte da turma interagia, falando de assuntos que eu nem sabia do que se tratavam. Perguntei a Deus: - O que fazer? Se eu continuar assim, não acompanharei o nível da turma. O primeiro mês passou e o resultado das primeiras provas foi um fracasso. À época, minha família passava por um problema muito delicado. Estudando e trabalhando, eu pouco ficava em casa. Isso me deixava muito mal (lágrimas), pois sabia que algo de ruim podia acontecer a qualquer momento. Todos os dias, ao chegar à Universidade e ao trabalho eu pedia a Deus que as horas passassem rapidamente, pois eu queria estar com minha família. Essa angústia me acompanhou por, mais ou menos, um mês e meio. Meu desempenho na Universidade não melhorava e então decidi trancar algumas disciplinas e assim garantir um aprendizado de melhor qualidade em outras. Dias depois, perdi meu pai. Sua morte fez desabar o meu mundo. Fiquei totalmente impotente para realizar qualquer coisa, para continuar vivendo (lágrimas). Tudo isso foi e ainda está sendo muito difícil para mim, mas com a força de minha mãe, meus irmãos, amigos e parentes, hoje estou aqui, lutando pela vida. Amo meu curso, apesar de todas as dificuldades. Por fim, quero agradecer a Deus pela vida; à minha família pelo amor e apoio; ao amigo Francisco Silva, pela dedicação; ao Programa "Conexões de Saberes", por esta oportunidade magnífica de nos fazer olhar a nossa história; às professoras Cecília Carvalho, Edileusa Figuerêdo e Verônica Cavalcanti, por sua atenção e orientação; e também ao meu grupo de trabalho - bolsistas do "Conexões de Saberes" do Piauí, pela amizade. Enfim, a todos os que me ensinaram um novo jeito de olhar. Muito obrigada. Universidade Federal do Piauí 89