UFPI Universidade Federal do Piauí

Transcrição

UFPI Universidade Federal do Piauí
UFPI Universidade Federal
do Piauí
Caminhadas de universitários de origem popular
UFPI
UFPI
Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.
O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.
Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
Organização da Coleção:
Monique Batista Carvalho
Francisco Marcelo da Silva
Dalcio Marinho Gonçalves
Aline Pacheco Santana
Programação Visual:
Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ
Coordenação:
Claudio Bastos
Anna Paula Felix Iannini
Thiago Maioli Azevedo
C183
Caminhadas de universitários de origem popular : UFPI / organizado por Ana Inês Souza,
Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.
92 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)
Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e
as Comunidades Populares.
Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
ISBN: 978-85-89669-42-9
1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração
universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.
Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.
Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.
V. Universidade Federal do Piauí. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII. Observatório
de Favelas do Rio de Janeiro.
CDD: 378.81
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares
Organizadores
Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
UFPI
Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ
Rio de Janeiro - 2009
Coleção
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministério da Educação
Fernando Haddad
Ministro
Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade – SECAD
André Luiz de Figueiredo Lázaro
Autores
Aemerson Rodrigues de Carvalho
Alexander Almeida Morais
Ana Cláudia dos Santos Silva
Ana Cristina de Sousa Silva
Secretário
Ana Karoline de Sousa Carvalho
Armênio Bello Schmidt
André Vieira dos Santos
Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI
Cícero José Pereira
Leonor Franco de Araújo
Coordenação Geral de Diversidade – CGD
Cleane Maria Alves
Cleylce Santana da Silva
Elizabeth Pereira Cabral
Programa Conexões de Saberes:
diálogos entre a universidade e
as comunidades populares
Jorge Luiz Barbosa
Jailson de Souza e Silva
Coordenação Geral
Cecília Maria Resende Gonçalves de Carvalho
Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFPI
Edileusa Maria Galvão Figuerêdo
Coordenação Técnica
Eric Willian do Nascimento Carvalho
Francisco das Chagas de Sousa Silva
Francivaldo Pinheiro Fernandes
Hélio Costa Vieira
Herbert Cèsar de Moura
Jeane Maria da Silva
João Santos Andrade
João Silvestre da Silva Neto
Joselene Oliveira
Juliana Rodrigues Cavalcante
Kalinka Kelciane Teixeira de Brito
Universidade Federal do Piauí
Luiz de Sousa Santos Júnior
Reitor
Maria da Conceição Pereira da Costa
Maria da Penha da Silva Santos
Maria dos Remédios Batista da Silva
Marlúcia Oliveira Lima
Antonio Silva do Nascimento
Vice-Reitor
Antonio Aderson dos Reis Filho
Pró–Reitor de Extensão
Prefácio
A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.
A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela
melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma
intensa e sistemática esses objetivos.
Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta
contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um
lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,
por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas.
Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na
cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de
Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento
em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,
inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais,
distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos
o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,
UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os
estados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,
UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,
UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.
Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,
ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como
pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em
comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de
1
A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao
menos 35 bolsistas.
práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem
popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,
ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.
Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do
Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19
publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes
e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses
livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que
contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das
camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os
cursos com menor prestígio social.
Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais
justa e uma humanidade cada dia mais plena.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Ministério da Educação
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro
Sumário
Apresentação ........................................................................................................ 9
Introdução ........................................................................................................... 11
O sertanejo
Aemerson Rodrigues de Carvalho ..................................................................... 13
Trilhando
Alexander Almeida Morais ................................................................................. 17
Mais uma caminhada
Ana Cláudia dos Santos Silva ........................................................................... 19
Pequeno diário
Ana Cristina de Sousa Silva .............................................................................. 21
Retratos da minha história
Ana Karoline de Sousa Carvalho ...................................................................... 24
Minha história, minha luta
André Vieira dos Santos ..................................................................................... 27
Caminhos do aprendizado
Cícero José Pereira ............................................................................................. 30
Passos de resistência
Cleane Maria Alves ............................................................................................ 33
Cleylce, botão de rosa que desabrochou
Cleylce Santana da Silva ................................................................................... 36
Minhas memórias
Elizabeth Pereira Cabral ................................................................................... 39
Lionheart: Forte, perseverante, astuto e determinado
Eric Willian do Nascimento Carvalho ............................................................... 41
Minha vida, minha luta
Francisco das Chagas de Sousa Silva ............................................................... 46
Vencendo desafios
Francivaldo Pinheiro Fernandes ....................................................................... 48
A caminhada de um vencedor
Hélio Costa Vieira............................................................................................... 50
Um principiante e sua estrela guia
Herbert César de Moura ..................................................................................... 53
Os passos de um homem bom são confirmados pelo senhor e ele
deleita no seu caminho (salmo 37.23)
Jeane Maria da Silva .......................................................................................... 55
Fragmentos de uma cartografia sentimental
João Santos Andrade .......................................................................................... 58
A saga do filho de um vaqueiro e de uma Quebradeira de coco
João Silvestre da Silva Neto .............................................................................. 61
As reminiscências de Joselene
Joselene Oliveira ................................................................................................ 67
Sonhei, sonho e sonharei, com um futuro mais justo
Juliana Rodrigues Cavalcante .......................................................................... 71
Sob a luz da fama
Kalinka Kelciane Teixeira de Brito ................................................................... 74
Vencendo as adversidades da vida
Maria da Conceição Pereira da Costa ............................................................. 77
Sonhos de uma vida
Maria da Penha da Silva Santos ....................................................................... 80
"Esperei confiantemente pelo senhor. Ele se inclinou para mim e me
ouviu quando clamei por socorro" (Salmo 40.1)
Maria dos Remédios Batista da Silva ................................................................ 84
Um novo jeito de olhar
Marlúcia Oliveira Lima ...................................................................................... 87
Introdução
A Universidade Federal do Piauí-UFPI, de forma programática, tem a missão de
propiciar a elaboração, sistematização e socialização do conhecimento filosófico, científico,
artístico e tecnológico permanentemente adequado ao saber contemporâneo e à realidade
social, formando profissionais que possam contribuir para o desenvolvimento econômico,
político, social e cultural do Piauí, do Nordeste e do Brasil.
No cumprimento desta missão, evidenciamos a responsabilidade social como
norteadora de ações afirmativas bem como da integração dos estudantes assistidos à política
de inclusão social praticada na UFPI, no sentido de estabelecer um equilíbrio de
oportunidades aos menos favorecidos, explicitando tal inclusão social em sua verdadeira
grandeza.
Da leitura dos textos e do resultado alcançado, pode-se constatar que o Ministério da
Educação-MEC, através da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e DiversidadeSECAD, por intermédio do Programa "Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade
e as comunidades populares", proporciona, de modo afirmativo e brilhante, a oportunidade
a 35 (trinta e cinco) jovens da UFPI de serem atores, em um cenário de vitórias, construído
a partir de uma história real de sucesso individual, embalados pelo sonho próprio de suas
idades, uma trajetória pura e verdadeira, oportunizando o registro que irá fortalecer a memória
universitária em realce.
Por conseguinte, iniciativas como estas não apenas reforçam o papel da Universidade
como agente transformador da sociedade, mas também criam e ampliam metodologias
adequadas de interação com as camadas populares e de periferia na geração, visibilidade e
troca de saberes populares e científicos, através do diálogo. O desafio, outrossim, é que esta
ação seja contínua e eficiente, para que possa decifrar e colaborar na solução dos diversos
problemas de permanência destes alunos de camadas populares nas Universidades.
Ressaltamos, por outro lado, a demonstração de sensibilidade e o apoio incondicional
do Reitor Prof. Dr. Luiz de Sousa Santos Júnior, bem como a abnegação das coordenadoras
Profª Drª Cecília Maria Resende Gonçalves de Carvalho e Profª Edileusa Maria Galvão
Figueredo, sobretudo na orientação deste importante Programa, tendo em vista seu
comprovado sucesso com a ampliação de bolsistas na UFPI que ainda não fazem parte do
Projeto, porém enfatizando as caminhadas de universitários de origem popular,
sensibilizando, ainda mais, cada um de nós nesta contribuição à construção democrática na
plenitude da vida nacional.
Antônio Aderson dos Reis Filho
Pró-Reitor de Extensão-UFPI
Universidade Federal do Piauí
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Apresentação
"Caminhadas de Universitários de Origem Popular" é um livro diferente, que publica
a autobiografia de 25 (vinte e cinco) universitários da UFPI, oriundos de setores populares,
bolsistas do Programa "Conexões de Saberes". Nele está contida a experiência daqueles que
lutam contra a exclusão social e por uma sociedade mais justa.
A construção deste livro foi, para os autores conexistas, uma retrospectiva de suas
vidas até o ingresso na universidade. É também um exercício de reminiscências, que revelou
momentos de incertezas, desencantos, lutas, alegrias e conquistas.
O início das oficinas de Leitura e Produção de Texto foi marcado por dúvidas e
indagações, mas com o laboratório das experiências vivenciadas pelos autores, nas entrelinhas
de suas narrativas, foram sendo reveladas suas histórias de vida. Foi uma convivência
maravilhosa. Choramos juntos e sorrimos muito. Palavras de carinho e ânimo soavam na
sala de aula, onde cada autor expunha suas ousadias e auto-superação. Foi uma explosão de
garra e emoção.
Jamais esquecerei os momentos em que cada um mergulhou nas lembranças de suas
trajetórias individuais, nas vivências familiares, escolares e em muitos acontecimentos da
vida pessoal, mesclados com as dimensões coletivas do bairro, da cidade, rememorando
suas histórias em um contexto reflexivo em busca da construção de projetos de vida para a
concretização de sonhos. Para alguns estudantes, esta regressão foi muito dolorosa. Não é
fácil recordar tristezas. Eles jamais esquecerão que a vida é feita de luta. Por outro lado, há
sempre exemplos de solidariedade e desprendimento. A família é a célula forte,
inquebrantável; apoio e carinho nas horas difíceis. Os amigos são um caso à parte. Eles
guardam segredos sutilíssimos e são os grandes conselheiros. Muitos mestres passaram
incógnitos, mas aqueles que foram mais que simples professores estão marcados
indelevelmente na mente e no coração dos conexistas. Isto faz brotar no âmago de todos o
agradecimento em forma de citação. Aqui e ali vão aparecer muitos cidadãos comuns que
estenderam suas mãos em momentos cruciais. São os Joões e Marias que escreveram seus
nomes nas histórias do Doutor João e da Doutora Maria.
Estou feliz e realizada com mais esta missão cumprida. Agradeço a Deus, à Profª
Cecília Resende e à Profª Edileusa Figuerêdo, pela oportunidade de participar desta
"Caminhada" tão rica e bela, e por fazer parte da Família Conexões de Saberes - Piauí.
Verônica Maria Teles de Melo Cavalcanti
Profª de Leitura e Produção de Texto
Universidade Federal do Piauí
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O sertanejo
Aemerson Rodrigues de Carvalho *
Sou o primeiro filho do casal de lavradores Antônia Rodrigues de Carvalho e Manuel
Ribeiro de Carvalho. Nasci em Curimatá, no Sul do Piauí. Ao completar cinco anos, fui com
meus pais trabalhar na roça. Quando a seca chegava, eu tinha que ir buscar água a distância
de uma légua (6 km). Ficamos no interior até 1990, ano em que nasceu minha irmã Anelma
e meu pai comprou uma carroça. Com sua bela carroça, meu pai arranjou um emprego na
Prefeitura como catador de lixo. Eu e meu irmão Emerson estávamos estudando em uma
escola que distava 4 km de nossa casa, em uma sala onde ficavam alunos da alfabetização
a quarta série e um só professor. Era difícil para meu pai trabalhar na cidade e voltar para o
interior. Foi então que eles decidiram mudar definitivamente para a cidade e fomos morar
em uma casa emprestada durante seis meses. Com muita luta, conseguimos construir nossa
casinha; e, mesmo sem portas e janelas, nos mudamos. Isso não tinha muita importância
naquele momento, pois o mais importante era estar debaixo de nosso teto.
Quando nos mudamos para a cidade, as brincadeiras eram muitas, apesar da proibição
de nossa mãe, que não permitia que saíssemos sem sua autorização. A nova escola ficava
perto de nossa casa, e ali estudavam duas turmas por sala. Um só professor ministrava aulas
para alunos de primeira e segunda séries. Certamente o rendimento era muito ruim.
Em 1993, eu estava cursando a primeira série, mas ao final do ano tive que interromper os
estudos, pois meu pai ficou cego de catarata, só voltando a enxergar seis meses depois, quando
se submeteu a uma cirurgia. Se antes a vida estava difícil, com o problema de saúde de meu pai
as coisas pioraram. Passamos a vender dindim, cheiro verde, puba de mandioca e esterco.
Em 1996, eu cursava a terceira série na Unidade Escolar Mergelina Dourado Guerra;
de uma turma de oito alunos, fui o único a passar de ano. A diretora queria que eu repetisse
o ano, mas minha mãe não concordou. Mudei-me então para o Colégio Alírio Guerra de
Macedo onde cursei a quarta série e iniciei a quinta. Neste mesmo ano, foi feito o primeiro
teste seletivo para a Escola Agrotécnica de Curimatá, que ficava pertinho de minha casa.
Vinte e cinco vagas foram oferecidas. Fiz o teste e fiquei em 26º lugar. Por um capricho do
destino, o aluno que passou em primeiro lugar desistiu e eu fui convocado. Eu não queria ir.
Estudar em escola agrotécnica, para mim, significava voltar para a roça e isso eu não queria,
jamais. Mas acabei indo, e isso foi determinante em minha vida. Aprendi a ver o mundo com
outros olhos e a querer saber mais. Se hoje estou na Universidade, devo muito à Escola
Agrotécnica de Curimatá, pois foi lá que conheci o professor Gerônimo Leopoldo Paranaguá
*
Graduando em Agrimensura pela UFPI.
Universidade Federal do Piauí
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Eivas Barjud, amigo e incentivador. Certa feita ele me levou para visitar a Exposição e Feira
de Agronegócio do Sul do Piauí-EXPOSUL. Ali, pude fazer inúmeros contatos com alunos
e professores do Colégio Agrícola de Bom Jesus-CABJ. Vislumbrei a possibilidade de
conhecer novos horizontes, saber mais. O problema é que, apesar de ter que pagar apenas as
refeições, eu tinha que morar em outra cidade, e as nossas condições financeiras não permitiam
esse extra. Então pensei: "eu vou de qualquer jeito e eles não vão me deixar passar fome".
Deu certo! Eles me deram todo o apoio e carinho. Mudei-me para Bom Jesus. Como sempre,
todo começo é muito difícil. A saudade de casa e a minha base escolar deficiente foram
obstáculos difíceis de transpor. As notas eram sempre baixas e os alunos veteranos viviam
me ridicularizando. Ainda bem que contei com o apoio e a boa vontade dos professores.
Juntamente com Gábino Nunes de Araújo e Gledson Lustosa Freitas, formamos um trio
inseparável. Passamos juntos muitas noites sem dormir, debruçados nos livros, tentando
fazer boas provas, mas também curtimos a vida e nos divertimos muito.
No CABJ, pude entender o que é uma universidade, posto que este é uma extensão da
UFPI. Vestibular para mim era uma novidade. Foi aí que pude, mais uma vez, avaliar a
precariedade do ensino público no Brasil, tanto na área pedagógica quanto no setor
sociocultural. Naquele momento, prometi a mim mesmo voltar à minha Curimatá, ingressar
na política e lutar, com todas as forças, para mudar esse triste quadro, e ajudar as crianças,
jovens e adultos a ter um ensino de qualidade.
Final de 2004. Minha formatura se aproximava. Nesse período eu estava dividido
entre os vários caminhos a seguir: continuar estudando? Trabalhando? Eu estava recebendo
várias propostas de emprego, e era hora de ajudar e retribuir o esforço de meus pais. Por
exigência do mercado, resolvi tirar minha carteira de motorista. Foi aí que mais uma vez as
amizades funcionaram. Minha estimada professora Maria Majaci Moura da Silva, que
morava em Teresina, ofereceu-me sua residência. Desta forma, abri mão da festa de formatura
e guardei o dinheiro para tirar a habilitação.
Eu pensava em trabalhar, mas não queria deixar de estudar. Tanto que me inscrevi para
fazer vestibular para o curso de Engenharia de Agrimensura da UFPI. O trio mencionado
anteriormente juntou-se novamente e estudamos com afinco. Foi assim que nós - os piores
alunos da classe - nos tornamos os melhores e fomos vistos como exemplo de esforço e abnegação.
No dia cinco de janeiro de 2005, durante o intervalo do ensaio da colação de grau, fui à
sala dos professores e acessei o computador para ver o resultado do vestibular. Fiquei branco,
pasmado, gelado, paralisado. Todas as emoções ao mesmo tempo. Eu não queria acreditar, mas
lá estava meu nome: Aemerson Rodrigues Carvalho. Conferi várias vezes o número da identidade.
Podia ser um homônimo. Só depois fui me convencendo de que era eu mesmo. A primeira coisa
a fazer foi dividir aquele momento com minha família. Voltei para o ensaio e, ao contar a
novidade para minha mãe, percebi em seu rosto uma sombra de tristeza. Mais tarde eu soube a
razão: Ela só pensava que eu não teria como estudar, pois não tínhamos nenhum parente na
capital. Liguei também para a professora Majaci. Eu tinha que compartilhar minha alegria com
as pessoas queridas. Aproveitei e desmarquei a viagem para tirar a carteira. Majaci era só alegria.
Conhecendo minha situação econômica, ela me fez uma série de perguntas: - Como manter-me?
Onde iria morar? Eu lhe disse que ia requerer a residência universitária, mas até conseguir eu não
tinha onde ficar. A professora então propôs: - "Venha tirar sua carteira e, até conseguir a residência,
pode ficar em minha casa". Assim foi feito. Tirei a habilitação e morei durante quatro meses na
residência da professora Majaci, a quem serei eternamente grato pelo resto de minha vida.
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Caminhadas de universitários de origem popular
A universidade amplia nossos horizontes e engrandece nossos sonhos. Resolvi fazer
este parágrafo para citar o nome do meu sobrinho, Walerson Rodrigues, que é uma pessoa
muito importante para mim, e dizer que acalento o sonho de ver o Piauí dividido com a
criação do Estado do Gurguéia. Desta forma, o Sul do Estado, até então esquecido pelos
políticos, passará a ser visto, e, no auge do desenvolvimento, poderá oferecer uma educação
pública de qualidade para as futuras gerações, entre elas, meu sobrinho Walerson.
Hoje estou muito feliz e com muita força de vontade e obstinação; continuo na residência
universitária e cursando o quarto período de Engenharia de Agrimensura na Universidade
Federal do Piauí, onde participo do Programa Conexões de Saberes, programa este que tem
como objetivo o ingresso e a permanência de alunos de origem popular na Universidade.
Universidade Federal do Piauí
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Trilhando
Alexander Almeida Morais *
No dia nove de novembro de 1983, na cidade de Teresina, eu nasci. Meu pai chama-se
Raimundo Morais Silva e minha mãe Maria da Conceição Almeida Morais. Até onde lembro,
minha infância foi muito boa. O lado ruim ficou por conta das brigas entre meus pais,
principalmente quando ele bebia. Isto até hoje acontece, mas com menos freqüência. Meu
pai é uma boa pessoa. Filho de pais analfabetos, ele veio do interior cearense para trabalhar
no Piauí. Até os vinte anos ele jamais havia entrado em uma escola. Aqui em Teresina ele
trabalhou em uma gráfica e estudou ao mesmo tempo, conseguindo concluir o Ensino
Fundamental e Médio. Costumo dizer sempre que, se passei no vestibular e continuo
estudando na Universidade Federal do Piauí, devo a meu pai, que me estimulou e me
ajudou financeiramente; pois, até entrar para o Programa Conexões de Saberes, eu me
encontrava desempregado juntamente com meu irmão mais velho, Marcos Paulo Almeida
Morais. Minha mãe faz apenas bicos, trabalhando como empregada doméstica e sem jamais
ter tido uma carteira de trabalho assinada. Ela se casou com meu pai aos 16 anos e deixou de
estudar logo em seguida, quando meu irmão nasceu. Nos dias atuais, aos 38 anos de idade,
ela voltou a estudar e está fazendo o Supletivo. Ela tem muitas dificuldades em acompanhar
os assuntos escolares, devido ao longo tempo em que ficou fora da escola. Eu e meu irmão
procuramos ajudá-la sempre para que ela nunca desista.
Atualmente estou residindo com minha avó, Raimunda Ferreira de Morais Silva,
noventa e três anos, viúva de meu avô, Manoel Leôncio da Silva, que morreu aos
noventa e cinco anos. Apesar da idade, vovó ainda faz muitas coisas. Seus doces são
deliciosos, e seu caldo de carne com paçoca é de dar água na boca. Ultimamente seus
problemas de saúde vêm se agravando; são distúrbios no aparelho digestivo e
osteoporose em alto grau. Estudar e cuidar de minha avó tem sido uma situação difícil
de conciliar. Por duas vezes tive que trancar matérias e desistir de outras, o que faz com
que eu me encontre um pouco "atrasado" em relação aos meus colegas. Mas não me
arrependo. É claro que vovó tem outros filhos. São sete homens e três mulheres, porém
todos são casados, têm seus filhos e seus trabalhos. Meu pai é um deles. Como ela não
quer sair de sua casa, eu assumi a responsabilidade. Atualmente ela está morando perto
da casa de uma de suas filhas, tia Maria de Fátima, que também é minha madrinha. Isto
tem me deixado mais despreocupado, principalmente naqueles dias em que saio pela
manhã e só regresso da Universidade no final da tarde.
*
Graduando em Filosofia pela UFPI.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Só estudei em duas escolas, ambas estaduais. Na Unidade Escolar Júlia Nunes Alves,
cursei até a 4ª série. À época, eu só pensava em brincar, fazer amigos, e adorava as aulas de
Educação Física; desculpa para ficar horas jogando futebol. Quando ingressei na Unidade
Escolar Professor Odylo de Brito Ramos, passei a levar os estudos com seriedade. Lá estudei
da 5ª a 8ª série e depois fiz todo o Ensino Médio. Foram muitas as greves. No princípio eu
achava legal, "férias forçadas". Certamente esta era a visão de um menino que ainda não
havia acordado para a dura realidade do mundo. Depois fui tomando consciência, e, a partir
do momento em que percebi que só através dos estudos um jovem como eu poderia alcançar
uma melhor condição de vida, comecei a lamentar, e vi que estava sendo prejudicado. Eu e
todos aqueles que estudam nas escolas públicas do Brasil. No início do Ensino Médio, foi
implementado o Programa Seriado de Ingresso na Universidade-PSIU. Este programa
estabelece que, em vez do tradicional vestibular, o aluno do Ensino Médio faz três provas,
ou etapas, como são chamadas, ao final de cada ano letivo, cuja matéria abrangerá apenas o
conteúdo curricular daquele ano. Há também a prova específica e de Redação, feita no dia
seguinte à realização da terceira e última etapa. Fica claro que este sistema de acesso à
Universidade exige que o aluno tenha cursado um bom Ensino Médio. Foi justamente isso
o que não aconteceu comigo. No 2º e 3º ano em que fiz o Ensino Médio, a escola ficou
fechada quase metade do ano letivo. Não estou exagerando.
Conseqüentemente, quando a greve acaba, fala-se muito em reposição de aulas perdidas,
mas não há tempo hábil. Os professores fazem algumas provas e passam trabalhos, porém
não mais se recupera o que se perdeu. Resultado: os alunos não vão estudar nem a metade
dos assuntos referentes à prova do PSIU. O que fazer? Arregaçar as mangas e estudar, dia e
noite, em busca do tempo perdido. Felizmente, no ano de 2004, fui aprovado para o Curso
de Licenciatura Plena em Filosofia, na UFPI. Hoje estou muito contente por estar na
universidade, apesar das dificuldades iniciais, tais como a falta de dinheiro para transporte,
alimentação e até para tirar xerox. Outro problema grande diz respeito ao meu "analfabetismo"
com o computador. Isto tem dificultado a realização dos meus trabalhos escolares; contudo,
já estou experimentando algum progresso, a partir do instante que ingressei no Programa
Conexões de Saberes. Este Programa visa estimular um diálogo entre a Universidade e as
comunidades populares, através de ações que criam mecanismos políticos, pedagógicos e
institucionais que contribuem para o ingresso e permanência de estudantes de origem
popular na universidade. Ou seja, o objetivo do Programa é fazer com que pessoas das
camadas menos favorecidas possam adentrar o ensino superior para que se tornem
protagonistas de seu próprio desenvolvimento intelectual e profissional.
Confesso que me sinto muito bem por estar participando deste Programa, tendo em
vista que, além de estar sendo auxiliado em minha vida acadêmica, eu posso ajudar outras
pessoas que também vieram da população menos favorecida. Cada um pode e deve modificar
seu destino, basta ter força de vontade e perseverança.
Universidade Federal do Piauí
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Mais uma caminhada
Ana Cláudia dos Santos Silva *
Memorial... Parece que estou no fim da vida e sou levada a relembrar tudo o que já
passei. Então, escrevo em uma visão panorâmica e contraditoriamente profunda do que
vivenciei e vivo.
No nono dia do mês do homem mais influente da civilização cristã-ocidental, nasci.
Minha família agora em cinco: minha mãe, minha amada guerreira, cozinheira de mãocheia, a melhor do mundo! Minha avozinha, agora tão frágil, e meus dois irmãos. Naquela
época contávamos com a presença de meu pai. Houve a separação e tudo mudou.
Sete anos depois, após haver deixado a creche municipal onde passava meus dias
enquanto minha mãe trabalhava, entrava em uma nova escola. Vestida em meu conjunto
favorito, rosa e cinza, percebi uma realidade diferente, logo na primeira aula. Era uma
escola particular. Lá, estudando com uma bolsa por mérito próprio, fui punida por me
defender da discriminação racial. Descobri que crianças podem ser cruéis umas com as
outras, principalmente com uma garotinha pobre e negra. Mas não guardo mágoas, pois
nem tudo eram espinhos. Aprendi com o tempo a me sentir uma bela rosa.
Escolão: lugar de seis anos de diversão, crescimento e algumas traquinagens, como,
por exemplo, quando fui parar na Diretoria, por brigar com uma colega que se tornou uma
grande amiga depois.
Enfim, Ensino Médio, Liceu Piauiense. Não fiz rios de amigos, mas algumas pessoas
ficaram totalmente marcadas, assim como Ana, amiga que trago comigo até hoje.
Simultaneamente, estagiei na Secretaria de Estado da Fazenda, sem padrinhos, vale
esclarecer. De mil garotos concorrendo a cinqüenta vagas, aconteceu minha primeira grande
vitória. Lá conheci pessoas boas e legais, como também pessoas não legais. Passei por
situações das quais herdei amadurecimento profissional ainda na adolescência.
Vestibular! Passei na primeira vez. Mas não foi sorte, sempre fui uma boa aluna.
Estudei em um pré-vestibular muito barato, depois que concluí o terceiro ano. Ano
em que não brinquei, não me diverti, apenas senti que era o que eu deveria fazer.
Estudava, enquanto minhas amigas do Ensino Fundamental tinham seus primeiros
namorados. Estudei, enquanto tinham seus primeiros filhos; e estudo, enquanto
são donas de casa. É o Brasil de uma mulher de família sem escolaridade adequada.
Felizmente tenho uma boa orientadora, minha mãe, que me indicou o caminho
do sucesso.
*
Graduanda em Letras-Português pela UFPI.
18
Caminhadas de universitários de origem popular
Sou exceção, sou sonho, sou apenas a essência do que fui e sempre serei; ou seja, Ana
Cláudia, filha de Antonia e Francisco, neta de Maria, moradora da Piçarreira. Gozando
sempre do que os bens públicos podem oferecer, estou no Programa Conexões de Saberes.
E, acreditem, vou ser sincera, não era bem o que eu queria. Agora é ao que mais tenho me
dedicado. Através dele, entendi qual é o meu papel dentro da UFPI: - o de levar esperança a
outras garotas pobres e negras de se tornarem belas rosas, nessa sociedade desigual e
politicamente injusta.
Afinal, o ser humano é mais corpo físico; é como somos tratados diariamente pelos
dirigentes desse país. Ele é cérebro, espírito e conhecimento; conhecimento que deveria ser,
na realidade, direito de todos, não apenas no papel, onde tudo está bem escrito. Jovens, de
origem popular, deveriam ser a maioria nas universidades públicas, e não o contrário. No
programa, lutarei para que um dia isso se torne realidade.
Universidade Federal do Piauí
19
Pequeno diário
Ana Cristina de Sousa Silva *
“O valor das coisas não está no tempo em
que elas duram, mas na intensidade com
que acontecem. Por isso existem momentos
inesquecíveis, coisas inexplicáveis e
pessoas incomparáveis.”
Fernando Pessoa
Por força do destino, no dia primeiro de maio de 1984, às 02:25h da madrugada, em
Brasília, eu nasci. Filha da piauiense Maria das Graças Gaspar de Sousa e de Luís Lobo da
Silva, um maranhense. Onze meses após essa feliz data, uma grande tristeza se abateu
sobre nós. Meu pai voltava do hospital onde trabalhava como auxiliar de Enfermagem e,
ao ser assaltado, levou um tiro, à queima-roupa, no peito, vindo a falecer. Decorrido um
ano de sua morte, minha mãe resolveu voltar para sua terra natal, a cidade de Parnaíba no
Piauí; ali comprou uma casa, no Bairro São José, onde até hoje vivo doces momentos.
Minha primeira experiência educacional foi aos quatro anos de idade, em uma creche
próxima a minha casa. Ali fiquei dois anos, indo, em seguida, para a Escola Municipal
Godofredo de Miranda, onde permaneci do Jardim de Infância até a 1ª série do Ensino
Fundamental. Lembro-me que sofri muito no Jardim, por ser gordinha. As outras crianças
viviam me botando apelidos. Eu também tinha muita dificuldade em dividir as coisas.
Provavelmente por ser filha única. Eu ficava dividida. Por um lado, as pessoas diziam que
eu tinha que repartir; e, do outro, minha mãe dizia o contrário. Confesso que até hoje isso
gera conflitos em minha vida.
A partir da 2ª série, passei a estudar no Centro da Cidade, na Escola Monsenhor Lopes,
onde se pagava uma pequena mensalidade. Fiz um teste de Português,
fui aprovada e me tornei aluna de uma professora muito legal: a Tia Gracinha. Da 3ª série,
não me lembro de quase nada, mas toda sexta-feira a diretora fazia um teste de Matemática,
com todos os alunos, e eu sempre tirava nota baixa, pois sempre fui péssima com os números.
Lembro também das festinhas nas datas comemorativas. Na 4ª série, havia uma professora
de Matemática que era um horror; nem lembro mais o nome dela. Em compensação, havia a
Tia Diná, um anjo que nos tratava como filhos. Neste período, comecei a usar óculos e logo
apareceram os apelidos.
*
Graduanda em Pedagogia pela UFPI.
20
Caminhadas de universitários de origem popular
Sempre fui uma criança tímida, mas também sempre gostei de estudar, além de ser
muito comportada. Acho que isto justifica o carinho que as professoras tinham por mim.
No ano seguinte, 1996, passei a estudar na Escola Comercial de Parnaíba, onde
permaneci da 5ª a 8ª série. Ela fica na minha rua e, à época, era considerada uma das
melhores da cidade. Isto explica o porquê de minha mãe ter ficado muitas horas na fila para
me matricular. A escola era particular, mas sua mensalidade era pequena. A 5ª série foi um
pouco complicada. Mudança de colégio, os novos colegas, professores, disciplinas e até
mudanças físicas, já que eu estava entrando na adolescência, mas também foi um ano
excelente, pois fiz minha 1ª comunhão e os novos colegas me acompanharam até a 8ª série.
Da 6ª e 7ª séries não tenho fatos marcantes a relatar. Recordo-me apenas dos desfiles de Sete
de Setembro que eu adorava participar. A 8ª série foi muito difícil. Tirei notas baixas em
Matemática e em Inglês, mas acabei passando de ano. Falando nisso, eu já fiquei em
recuperação, mas nunca fui repetente.
Em 2002, tive que escolher entre o Científico e a Escola Normal. O científico era
ministrado em um colégio público, o único da cidade, àquela época. Ambos ficavam no
mesmo quarteirão. Eu não queria ir para nenhum dos dois, mas minha mãe falou que não
tinha condições de pagar uma escola particular. Optei pela Escola Normal Francisco
Correia. Ali formamos uma grande família, e passei três ótimos anos. Nos dois primeiros
anos, eu ia de bicicleta, e levava cerca de 10 minutos até chegar à escola. No último ano,
a Prefeitura disponibilizou um ônibus do transporte escolar que passava no meu bairro. O
coletivo era muito velho e havia um enorme buraco no assoalho, mas, graças a Deus,
nunca aconteceu nenhum acidente. Nesse mesmo ano, minha rotina ficou bem corrida.
Pela manhã Escola Normal; à tarde estágio; e, à noite, freqüentava aulas em um cursinho
particular de uma escola cooperativa.
O fim do ano chegou e com ele o vestibular. Fiz a inscrição nas duas universidades,
UFPI (federal) e UESPI (estadual), e no final a bomba estourou. Não passei em nenhuma, e
aí veio uma grande frustração. No ano seguinte, decidi não freqüentar nenhum cursinho, e
passei a estudar em casa. Novamente tentei as duas universidades e fui aprovada na UFPI
onde estou atualmente, cursando o sexto período.
Minha vida acadêmica tem sido muito proveitosa. Em 2005, tentei uma monitoria,
mas não consegui; contudo, recebi um convite para uma outra monitoria em uma amostra
fotográfica do SESC. Em seguida, uma ONG, em parceria com o Banco do Brasil e SENAC
estavam procurando universitários para ministrar aulas de reforço aos sábados para jovens
do Programa Adolescente Trabalhador-PAT. Ministrei aulas de Língua Portuguesa e tive a
primeira experiência com adolescentes. Achei ótimo!
Em 2006, tive meu primeiro emprego em uma escola cooperativa, próxima de minha
casa. Lecionei apenas no primeiro semestre para a 3ª série do Ensino Fundamental. Também
participei da II Jornada Pedagógica. Não estive na I Jornada por falta de dinheiro.
Em março de 2006, a UFPI deu início ao projeto Movimento de Articulação Norte
Piauiense para o Desenvolvimento Sustentável-MANDU, cujo objetivo era criar um
observatório da juventude nas cidades e microrregiões. Não fiz a inscrição, pois a bolsa era
de R$ 150,00, o mesmo valor que eu ganhava lecionando no colégio.
Em abril, surgiu uma nova bolsa através do Programa Conexões de Saberes. Fiz a
inscrição, fui chamada e hoje atuo junto ao MANDU. Para mim é uma nova experiência,
Universidade Federal do Piauí
21
pois nunca havia participado de um projeto tão grande. Através do Conexões, conheci os
municípios vizinhos e sua juventude, pois embora estivessem tão perto, ao mesmo tempo
estavam longe pela falta de contato. A maior parte dos alunos do programa reside em
Teresina. Daqui de Parnaíba havia apenas eu e um rapaz. Tem sido muito bom conhecer a
realidade dos outros colegas.
O Conexões me proporcionou uma incrível experiência, que foi participar do II
Seminário Nacional no Rio de Janeiro. Foi um sonho realizado que nunca vou esquecer,
pois sempre tive vontade de conhecer a cidade. Adorei tudo e espero viver outras experiências
enquanto estiver no programa.
Em relação a minha caminhada até chegar à universidade, agradeço a Deus e a minha
mãe, que, além de mãe, foi pai, irmã e guia, pois soube me conduzir nesta estrada, sempre
segurando minha mão.
“Aqueles que são incapazes de compreender o que há de grande
nas pequenas coisas, terminarão sem enxergar o que há de pequeno
nas grandes coisas e serão confundidos pelo resto da vida.”
Paulo Coelho
22
Caminhadas de universitários de origem popular
Retratos da minha história
Ana Karoline de Sousa Carvalho *
O casamento de meus pais, por si só, já daria um livro. Suas irmãs não queriam que ele
se casasse com minha mãe, por julgar que ela era de uma família muito pobre. Apenas tia
Eliane (minha madrinha) apoiou sua decisão, e o presenteou com o fogão. Minha avó
materna, mesmo sendo dona de uma loja de tecidos, mandou apenas um metro de pano, e
ainda perguntou qual seria a cor. Isso magoou muito minha mãe, pois ela sempre pregou a
castidade, por ter sido educada pelos meus avós, Adelino e Das Dores, duas pessoas
maravilhosas que eu amo de paixão. Contra tudo e contra todos, eles se casaram. Parece
mentira, mas, no dia, o padre esqueceu a data do casamento e estava tranqüilamente bebendo
na sacristia, e o noivo chegou depois da noiva. Os dois acabaram se casando. Mamãe disse
que se casou porque foi forçada pelo longo tempo de namoro, mas eu sei que, no fundo, ela
gosta dele, embora não queira admitir por tudo o que ele lhe fez passar.
Quando eu nasci, minha mãe, Jaqueline, disse que foi a maior alegria da vida dela.
Meu pai bebia muito e ela estava sempre sozinha. Ela costumava dizer que eu era sua
melhor amiguinha; conversava tudo comigo, e eu, embora não entendesse o que estava se
passando, a ouvia e isso ajudava muito.
Meu pai, Evandro, tem problema com o alcoolismo. Às vezes ele passava três dias sem
aparecer em nossa casa e ficávamos tristes. Eu, por ver minha mãe sempre chorando, e ela
por levar aquela vida sempre sofrida, principalmente nos fins de semana.
Minha mãe era muito nova quando se casou (19 anos), e estava concluindo o
pedagógico. Quando eu nasci, meu pai tomava conta de mim para que mamãe pudesse ir
estudar. Deus é muito bom! Ficávamos, os dois, de 14:00 até às 23:00 e, nesse período, ele
não bebia sequer uma gota de álcool.
Quando completei três anos, nos mudamos do Bairro Bela Vista para o apartamento de
tia Marilene, irmã de meu pai, situado no Bairro Buenos Aires, em Teresina. Foi aí que teve
início minha vida escolar, mais precisamente no Educandário Tia Mara, escolinha que
ficava em frente à nossa casa e onde estudei até a Alfabetização. Como era muito pequena,
não tenho muitas recordações desse tempo.
Meu pai trabalha na Assembléia Legislativa do Piauí, e os funcionários resolveram
formar uma cooperativa; em seguida, fundaram a Escola Cidadão Cidadã, entidade sem fins
lucrativos para o ensino dos filhos dos funcionários. Foi nessa época que nasceu minha
irmã, Luana, e, um ano depois, a caçula, Jéssica. O nascimento de minhas irmãs promoveu
*
Graduanda em Nutrição pela UFPI.
Universidade Federal do Piauí
23
uma grande mudança no comportamento de meu pai. Ele decidiu que não podia mais
continuar bebendo nem causando sofrimento à sua família. Imediatamente minha mãe e
uma irmã dele, tia Margareth, lhe deram todo apoio, e ele começou a freqüentar as reuniões
do AA - Alcoólicos Anônimos. Para nossa alegria, nunca mais ele bebeu.
No Colégio - Cidadão, Cidadã - fiz muitas amizades e conheci pessoas com as quais
me relaciono até hoje. Participei de passeios, gincanas e, principalmente, estudei com bons
professores por um custo reduzido.
A vida em casa seguia calma até começarem as brigas. À época eu não entendia muito,
mas hoje sei que as seqüelas causadas pela bebida eram a causa principal. Hoje tudo está
superado.
Quando completei 11 anos, novas rusgas entre meus pais causaram um grande rebuliço
na família. Meus pais quase se separaram. Minha mãe viajou e ficou um mês em Brasília, na
casa de uma tia, junto com minha avó. Eu e minhas irmãs fomos espalhadas nas casas das
irmãs de meu pai. Foi um tempo muito ruim para todas nós. Nenhuma casa é igual a nossa.
Mais uma vez tudo acabou bem. Os dois se reconciliaram e a paz voltou a reinar.
A parte financeira começou a apertar quando minhas outras irmãs começaram a estudar.
Recordo-me que, após as aulas, voltávamos para casa no ônibus circular, o amarelão, cujo
ponto final ficava dentro da Universidade Federal-UFPI, bem perto da nossa casa; meu pai
nos comprava dindim e me dizia que um dia eu iria estudar ali.
Estes problemas levaram as irmãs de meu pai a se cotizarem para nos ajudar. Foi assim
que, ao completar 13 anos, nos mudamos para o Condomínio Santa Marta. Tia Carminha
arca com a prestação do apartamento e tia Margareth paga o condomínio.
Minha mãe continua costurando para fora e, graças a seu talento, tem uma clientela
fiel e pode ajudar nas despesas da casa.
Em 2002, eu cursava o segundo ano do Ensino Médio, e, na festa de aniversário de
uma amiga, conheci o Vinicius, que é meu namorado até hoje.
Um momento muito triste em minha vida foi o falecimento de minha tia e madrinha
Eliane. Confesso que não tenho palavras para descrever essa perda. Ela era a maior amiga de
minha mãe, de meu pai e sua irmã mais querida. Ela sempre esteve ao lado deles.
No terceiro ano do Ensino Médio, passei por grandes dificuldades, como por exemplo,
falta de livros, cansaço... eu estava desestimulada. Por outro lado, meus pais diziam que eu
ia ser uma doutora e não passaria pelos problemas que eles viveram. Então eu buscava
forças e continuava a estudar.
Terminado o Ensino Médio, inscrevi-me no vestibular da UFPI para cursar Nutrição.
Dias depois, em 28 de dezembro de 2004, Vinicius, meu namorado, sofreu um acidente de
moto e quebrou a clavícula. Fiz as provas, mas estava muito insegura quanto ao resultado.
Passei a visitá-lo em casa todos os dias. Em uma dessas visitas, ouvimos o rádio transmitindo
a lista dos aprovados no vestibular. Quando ouvi meu nome, não acreditei. Fiquei muito
emocionada e Vinicius me disse que nunca duvidou de minha aprovação. Sei que ele foi
muito importante nessa minha conquista. Com muita ansiedade, corri para casa, louca para
contar a meus pais. Quando cheguei, meu pai me disse, olhando nos meus olhos, que estava
orgulhoso de mim. Amo demais a minha família e, no fundo, tinha medo de decepcioná-los,
pois eles sempre acreditaram em mim e me deram força.
Com relação à UFPI, pude contar com a ajuda de minha tia Margareth, que me dava os
passes de ônibus para as aulas do centro; ajudava-me com o xerox e em muitas outras coisas,
24
Caminhadas de universitários de origem popular
tais como: impressão de meus trabalhos, acesso à Internet, visto que ainda não tenho estes
benefícios. Ela também me incentiva muito a estudar, a fazer mestrado, doutorado e me
passa muitas dicas! Por tudo isso, sou-lhe muito grata, sei que quando precisar posso contar
com ela.
Atualmente estou na Universidade e, com fé em Deus, no segundo período de 2008,
me formo nutricionista. Também participo de um Programa de ideologia admirável,
"Conexões de Saberes", que me tem dado meios de ajudar pessoas que precisam assim como
eu precisei e preciso. Estou muito feliz por me sentir útil, como também agradecida pelas
oportunidades que tive na vida. Apesar das dificuldades, sou muito feliz.
Universidade Federal do Piauí
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Minha história, minha luta
André Vieira dos Santos *
A razão da existência dos obstáculos em nossa vida é a certeza de que temos a
capacidade de ultrapassá-los e a consciência da satisfação de conseguirmos uma vitória
com sabor especial; porém é necessário que acreditemos nisso. Deste modo, não tenho a
vergonha, mas sim o orgulho de admitir que minha trajetória, até ingressar na UFPI, foi
marcada por muitas dificuldades que me fizeram aprender e compreender que a vida não é
feita somente para rir, mas também para chorar.
Meus pais
Minhas dificuldades são provenientes da infância de meus pais; eles são naturais de
um pequeno povoado chamado Barreira, situado próximo ao município de Araiozes (MA),
onde o meio de sobrevivência era a pesca e o trabalho na roça. Meu pai, Raimundo Nonato
Gomes dos Santos, perdeu o afeto paterno aos seis anos por motivo de separação de meus
avós. A partir de então, ele foi morar com sua mãe e começou a ajudá-la na roça e nos
afazeres domésticos. Mesmo assim, com muita força de vontade, conseguiu concluir o
Ensino Médio, dividindo seu tempo entre a escola e o trabalho. Por outro lado, minha mãe,
Rosinete Maria Vieira dos Santos, dividia a casa com nove irmãos, sendo quatro homens e
cinco mulheres, com ela seis, totalizando dez filhos. Somando meus avós daria um time de
futebol com um jogador na reserva. Mais tarde o time, infelizmente, se desfalcou com o
falecimento de uma das filhas.
Seguindo a lógica, os homens acompanhavam meu avô na roça e nos trabalhos pesados,
enquanto as mulheres dividiam as tarefas de casa com minha avó. Detalhe: todos estudavam.
Diferentemente de meu pai, minha mãe não foi longe nos estudos, tendo concluído
apenas o Ensino Fundamental.
Em 1979, meu pai mudou-se do Maranhão para a cidade de Parnaíba-PI, onde
moramos até hoje.
Em 1982, meus pais começaram a namorar e, exatamente, um ano depois,
casaram-se no civil.
Em 1984, minha mãe engravidou pela primeira vez e, no dia 31 de março, deu a luz a
minha única irmã, Andréia Cristina Vieira dos Santos.
Aos dois dias do mês de dezembro de 1985, eu nasci. A vida seguiu com muitas
dificuldades, até que, após oito anos de aluguel, adquirimos nossa casa própria.
*
Graduando em Ciências Econômicas pela UFPI.
26
Caminhadas de universitários de origem popular
Vida escolar
Excetuando-se o Jardim I, II, e III, devido à ausência de recursos, estudei sempre em
colégios públicos. Como nunca fui de mudar muito de colégio, fiz minha caminhada estudantil
em apenas quatro escolas, sendo a UFPI meu quinto estabelecimento de ensino e progresso.
Comecei a estudar na idade adequada. Aos três anos meus pais me matricularam no
Jardim I. Diferentemente de minha irmã e da maioria das crianças, eu não chorava querendo
voltar para casa, pois rapidamente me familiarizei com o ambiente escolar. Eu gostava de
cobrir as figuras tracejadas, para, em seguida, cobri-las, brincar com os colegas na hora do
recreio e, o que era melhor, cantar para lanchar. Aos cinco anos eu já sabia ler.
Terminada esta fase, mudei-me para outra escola onde permaneci até a 4ª série da
Alfabetização. O maior problema era a grande distância entre minha casa e o colégio, o que
me obrigava a tomar uma condução. Isto me levou a mudar para uma escola mais próxima
de casa, então completei o meu Ginásio (Fundamental Maior).
O Ensino Médio chegou e com ele um caminho cheio de desafios e novos obstáculos.
Era um novo significado que eu deveria compreender e saber superar. A educação pública nos
cria barreiras difíceis de serem superadas: fraco conteúdo, pouco incentivo e falta de
compromisso de muitos professores. Mesmo assim nunca perdi a esperança de um dia ingressar
na tão esperada universidade. Através do Programa Seriado de Ingresso a Universidade-PSIU,
fiz uma prova, que é chamada Etapa, ao fim de cada ano, sendo que, ao final do 3º ano, era feita
uma avaliação específica do curso escolhido, além da prova de Redação.
Eu dei tudo de mim, mas não tinha certeza de aprovação. Sabia ser uma tarefa difícil,
pois ia me encaixar na pequena percentagem de aprovados provenientes do ensino público.
A sorte estava lançada e a esperança não me abandonava. No dia do resultado eu precisei
sair. Minha irmã ouviu meu nome no noticiário de uma Rádio local. Ao chegar em casa, ela
me deu a boa nova. Fiquei feliz e atônito. Corri então para a Universidade Federal do PiauíUFPI, a fim de conferir meu nome na lista de aprovados para o curso de Ciências Econômicas.
O sorriso estampado em meu rosto era o resultado da grande alegria pela aprovação e
também pela emoção que meus pais deviam estar sentindo. Ali nascia um futuro economista.
A matrícula na UFPI
Passada a euforia daqueles belos dias, chegou a hora de juntar todos os documentos
necessários à matrícula. Aí começou uma série de complicações. Eu pensei comigo: "Se
para chegar aqui eu tive que superar muitos obstáculos, esse então será mais um". Mas não
foi nada fácil. Minha mãe estava sempre me acompanhando. Quando chegamos ao colégio
para pegar meu histórico escolar, apenas o último estava pronto. Então bateu o desespero,
pois a data da matrícula se aproximava. Mais uma vez a ineficiente burocracia aprontava
das suas. Os documentos deveriam ir para a Regional de Educação de Parnaíba, depois
seguiriam para a capital Teresina e, após serem autenticados, retornariam para Parnaíba.
Passei dias de angústia e medo.
O dia da matrícula finalmente chegou. Eu tinha em mãos todos os documentos exigidos
pela Universidade, menos o certificado de conclusão do Ensino Médio. Tive então que
assinar um termo de compromisso com prazo limite estipulado. Caso não entregasse o
documento até aquela data eu corria o risco de perder a vaga. Sete outros colegas se
encontravam em igual situação. A data limite se aproximava e nada de documento. Nós
Universidade Federal do Piauí
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íamos ao colégio todos os dias. Estudar anos a fio, passar no vestibular e não poder estudar
por falta de um simples documento. Eis aí uma provação que não desejo a ninguém, por
mais que mereça. A diretora da escola, vendo nossa situação, tomou uma sábia e santa
atitude. Viajou para Teresina e resolveu o problema. Para alívio de todos, os papéis foram
entregues antes do prazo final.
A vida acadêmica
Meu primeiro dia de aula como acadêmico estava muito próximo, e a ansiedade não
parava de crescer. Eu tinha consciência que minha vida ia mudar. A convivência, a partir de
agora, seria feita em nível superior. Sabia também que ia conviver com pessoas de todas as
classes sociais, desde o aluno vindo das camadas populares, como eu, ao acadêmico de
classe média alta. Isso mexia um pouco comigo, mas não a ponto de me desviar do foco de
meus objetivos.
O dia 22 de março de 2004 finalmente chegou, e nunca mais saiu de minha memória.
Eu estava me sentindo um estranho no meio daquelas pessoas que nunca havia visto.
Aliviei-me ao encontrar uma conhecida que, por sinal, fora aprovada no meu curso. Os
calouros foram recepcionados com a exposição da programação e da grade curricular.
O primeiro semestre foi muito conturbado, pois a UFPI estava em processo eleitoral
para a escolha do reitor, e, senti-me importante por estar participando de uma ação democrática
dentro da universidade. O tempo foi passando e eu comecei a descobrir que nem tudo era
maravilhoso. A Biblioteca era deficiente, pois a demanda era maior que a oferta de livros.
Como não havia dinheiro para adquirir os livros, que eram muito caros, apelei para a xerox
e para a cópia fiel das transparências exibidas em sala de aula. Às vezes eu fraquejava, mas
logo me reanimava e continuava minha trajetória.
Contudo, jamais pensei em desistir, pois aprendi com meus pais que a vitória não tem
graça se não ultrapassarmos os obstáculos; e que as coisas difíceis são feitas para os corajosos,
para aqueles que têm vontade de vencer na vida, sem medo de errar. As coisas fáceis ficam para
os preguiçosos, os acomodados, para aqueles que têm medo de dar o primeiro passo e caminhar.
Atualmente estou cursando o 6º período de Ciências Econômicas e sou bolsista do
Programa "Conexões de Saberes". Além da valiosa contribuição econômica, o programa me
oferece uma imensurável aprendizagem que, futuramente, tenho certeza, irá contribuir para
me tornar um cidadão mais humano e consciente de minhas responsabilidades para com a
nossa sociedade, mediante minha colaboração com as políticas públicas que o programa
propõem. Sei também que já começo a pensar sobre minhas ações e tenho a convicção de
que meus sonhos se tornarão reais se, a cada obstáculo, eu tiver a consciência de que sou
suficientemente forte para superá-lo.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Caminhos do aprendizado
Cícero José Pereira *
Os reflexos em família
Antes de discorrer minha vida nestas linhas, tão inéditas para mim quanto as pretensões
deste Programa no Piauí, espero conseguir traduzir grandes momentos de uma vida de
muita luta, simplicidade, compromisso e correlação humana. Os que me conhecem sabem
que sou um tanto reservado, por isso, quando soube da anunciada publicação, fiquei receoso
com essa idéia de contar minha vida. Neste caso, vamos aos fatos.
Minha vida sempre foi direcionada para o estudo, para a educação. As frases do tipo: "Na
vida nada se consegue sem educação" ou "Estude para ser alguém na vida" sempre foram
minhas diretrizes. Meus pais, logicamente pensando em um futuro melhor para os filhos,
sempre estiveram presentes na minha educação, e sua sábia influência foi decisiva para meu
momento atual. Eles vieram do campo, são pessoas batalhadoras, mas de pouca instrução.
Mesmo assim, ao chegarem à cidade grande, procuraram nos mostrar o caminho certo diante
das dificuldades da vida. Sou-lhes grato por serem meus professores da vida, presentes em
todos os momentos, e cujos esforços quero corresponder sempre com meus sentimentos.
Sou o mais novo de três irmãos. Suas vidas foram bem mais difíceis que a minha. Ainda
assim eles me deram todo o apoio que precisei. Atualmente eles estão casados, mas continuo
achando que a vida de solteiro é boa.
Vivi boa parte de minha infância estudando. A diversão de sair à rua e brincar como todo
moleque deixou muito a desejar. Quando aprendi a ler, minha rotina mudou. Eu catava todos
os tipos de publicação, tais como livros, jornais, revistas, e lia sem parar e com muito prazer.
Outras reflexões em linhas
Minha fase na escola teve início em uma sala improvisada de ensino particular, com
apenas uma única turma de Alfabetização, cujas regras infringidas por comportamento
valiam como castigo. Com sua mente rudimentar, quase "neanderthal", a professora lançava
mão da "palmatória" (régua de madeira), que, à época, ainda era o método utilizado para
acalmar os ânimos. Mas de tão acostumados com aquela bagunça, a molecada não tava nem
aí para ela. Nos anos posteriores do Ensino Fundamental, tive bom desempenho, apesar da
baderna. No segundo ano, aconteceu um fato que até hoje nunca esqueci. A professora
estava à lousa escrevendo e explicando ao mesmo tempo, a matéria do dia. Nas carteiras ao
*
Graduando em Pedagogia pela UFPI.
Universidade Federal do Piauí
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fundo da sala, alguns alunos faziam um barulho ensurdecedor; certamente ninguém
conseguia ouvir nada. Foi então que ela, olhos vermelhos de raiva, tomada por uma fúria
insana, pegou o apagador; seus olhos buscaram sofregamente aquele que era o mais
bagunceiro e que ela conhecia muito bem; com precisão e certeza ela mirou o alvo e
arremessou o apagador. Quando dei por mim, vi, assustado, aquele objeto viajando célere
em minha direção. Ele parecia mais um tijolo, à medida que voava sobre minha cabeça. O
tiro tinha a direção certa, mas o moleque foi mais rápido e se esquivou. A professora Lourdes,
Deus levou, quanto àquele menino, nunca mais o vi.
Após concluir o Ensino Fundamental, consegui uma vaga para cursar o Ensino Médio
em uma escola pública na minha cidade, Timon-MA, situada à margem esquerda do rio
Parnaíba; do lado direito, Teresina, capital do Piauí. Os problemas de infra-estrutura nas
escolas públicas são comuns tanto no Ensino Médio quanto no Ensino Fundamental, e
sobejamente conhecidos. Entretanto, tive bons professores, e, durante o ano em que lá
permaneci, pude aproveitar para colocar em prática o meu aprendizado, quando fiz um teste
seletivo para Eletrotécnica do CEFET de Teresina. No ato da inscrição, eu não tinha a
menor idéia do que me esperava futuramente. Eu havia sido aconselhado por terceiros que
diziam tratar-se de um curso rentável financeiramente. Fui aprovado e passei a freqüentar as
aulas em meio a protestos de estudantes e professores. Os primeiros clamavam por melhorias
na infra-estrutura física, tais como a substituição de equipamentos sucatados; e os segundos,
aumento salarial. Hoje, posso afirmar, com segurança, que as condições de ensinoaprendizagem também eram deficientes. Cito como exemplo a valorização excessiva de
teorias em detrimento do ensino prático que a própria atividade requer. O estágio que nos
foi oferecido, em uma companhia de energia elétrica local, foi uma decepção. Nossa
mão-de-obra foi explorada e subutilizada em tarefas burocráticas não condizentes com
nossos objetivos de aprendizado. A decepção foi tamanha que não consegui me firmar na
profissão. Foi então que resolvi tentar meu primeiro vestibular na Universidade Estadual.
Escolhi um curso muito concorrido e, como não estava bem preparado, não fui aprovado.
No ano seguinte, tentei novamente, desta vez na Universidade Federal do Piauí, e escolhi
uma área de conhecimento que admirava tanto pela importância que representa para a
sociedade quanto pelo rico conteúdo de leituras voltadas para a educação. Desta vez, com
grande êxito, consegui a aprovação. E que festa veio depois!
Os primeiros contatos com a Universidade deram-me informações de grande valia sobre
o espaço acadêmico e sobre o Curso de Pedagogia. A partir daí, comecei a me inteirar da vida
de estudante universitário. Contratempos, convivências, sonhos e realizações cotidianas.
A forma como desenvolvo este escrito é para expressar a minha insatisfação quanto
aos problemas de ensino que enfrentei em minha vida escolar. É notória a absurda injustiça
social que diferencia os ricos dos pobres, inclusos e excluídos dos mesmos direitos. Isto
aliado à falta de compromisso dos dirigentes públicos deste país, que não assumem, de fato,
suas obrigações para com os interesses da maioria da população desprovida de políticas
públicas sérias e eficientes.
Atualmente sou estudante de Pedagogia da UFPI, e vejo perspectivas de vida promissora
neste novo empreendimento. Quando tomei conhecimento do Programa "Conexões de
Saberes", de seu diálogo entre a Universidade e as Comunidades Populares, de seus objetivos
tendo em vista a causa social, não perdi tempo, e abracei esta idéia, pensando nas
possibilidades enriquecedoras que o Programa pode proporcionar à carreira de um estudante
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Caminhadas de universitários de origem popular
universitário juntamente com a oportunidade de poder contribuir para a melhoria da
qualidade de comunidades populares marcadas pela hipocrisia elitista. Em Teresina, estamos
atendendo a comunidade da "Vila Parque Ininga", proporcionando atividades educacionais,
de lazer, saúde, entre outras tais que podem inserir a participação daquela gente no meio
acadêmico. Neste primeiro ano do "Conexões", tivemos a grande chance de poder, juntamente
com as delegações de outros Estados, participar do Encontro Nacional ocorrido na
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao apresentarmos nossos trabalhos e nossas
propostas, reafirmamos politicamente o "Conexões de Saberes" para todo o País.
Universidade Federal do Piauí
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Passos de resistência
Cleane Maria Alves *
Neste texto, tentarei fazer uma retrospectiva de minha vida. Falar de si mesmo é sempre
algo muito complicado. É impossível fazê-lo sem que nos envolvamos e sem carregar o texto
de subjetividades. Deste modo, ressalto que é este o meu objetivo, ou seja, envolver-me e fazer
com que conheçam um pouco da minha caminhada até o momento atual.
Nasci na pequena cidade de Guadalupe, localizada no interior do Piauí. Sou de uma
família de oito filhos, liderada por meu pai, Luiz Alves, um agricultor, e minha mãe, Maria
Cleide, assalariada do município. Fui a penúltima a nascer. Minha trajetória de vida iniciase com um parto prematuro que resultou em uma criança debilitada e de saúde frágil. Eu
ficava durante semanas no hospital, e meus pais, desesperados, não sabiam como agir, já
que os poucos médicos da cidade diziam que a única coisa a fazer era me levar para casa e
aguardar o momento de minha morte. Felizmente, "mãe de verdade nunca desiste", e meus
pais continuaram procurando assistência para manter vivo aquele pequeno e frágil ser.
Como drible na fatalidade, eles conseguiram vencer essa primeira batalha, e tornei-me uma
criança alegre e cheia de energia.
Desfrutava de todas as delícias de viver em uma cidade pequena, com total liberdade
e segurança para brincar. Lembro-me bem que adorava ficar mexendo nos cadernos velhos
de meus irmãos, pois havia em mim uma enorme curiosidade sobre como seria a escola; e
imaginava como um universo mágico e misterioso.
Aos cinco anos de idade, fui matriculada em uma escolinha municipal, próxima a
minha casa, e onde minha mãe trabalha como zeladora. Eu era uma criança muito tímida na
escola; tinha poucos amigos, mas eram amizades sinceras, sendo que minha melhor amiga
era minha prima Edite. Estávamos sempre juntas.
Depois dessa primeira fase, fui transferida para uma outra escola a fim de iniciar a 5ª
série. A escola também era pública, mas era mais exigente, e comecei a perceber a fragilidade
do meu ensino básico. Nós não éramos preparados para a compreensão dos assuntos
abordados, mas sim para sua memorização.
Ao terminar o Ensino Fundamental, na 8ª série, eu me perguntava como ia fazer para
continuar estudando, pois em Guadalupe o Ensino Médio municipal ainda não estava
regulamentado, e faltavam opções de uma educação de melhor qualidade. Foi então que percebi
o quanto era importante conseguir passar em um teste seletivo para a Escola Agrícola de
Floriano-PI, cidade vizinha, que era considerada pólo educacional no Sul do Estado.
*
Graduando em História na UFPI.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Ao enfrentar o teste, tinha em mente várias dúvidas: - e se eu passar? Como e onde morar? Por outro
lado, se não fosse aprovada, seria uma grande decepção. Essas dúvidas não cessaram, mesmo
quando eu soube que havia sido selecionada, tendo vencido aquele primeiro desafio. Na verdade,
até no momento de alegria, da comemoração, aquela angústia não me saía do pensamento.
Felizmente meu pai tinha uns parentes em Floriano. Eu não os conhecia, não havia
muita aproximação, mas meu pai conseguiu entrar em contato e ficou acertado que eu iria
morar, temporariamente, com a família de uma prima.
Dona Luzia me recebeu muito bem. Ela é uma pessoa que admiro muito e que sempre
me tratou com muito carinho. Passado o primeiro ano do Ensino Médio, ela me chamou
para conversar, e disse que eu não mais poderia ficar com ela, pois estava para receber uma
sobrinha que morava em Teresina, e que havia passado em um concurso público para Floriano.
Eu tinha apenas 15 anos de idade e já estava, novamente, sem possibilidade de dar
continuidade à minha caminhada como estudante. De sorte, encontrei duas pessoas maravilhosas:
o Sr. Miguel e sua esposa Dª Carmelita. Eles me deram muita força e permitiram que eu fosse
morar com seus filhos que já estudavam em Floriano, dividindo apenas algumas despesas. Esta
foi mais uma família que me acolheu, em um momento de resistência à minha realidade.
Eu me preocupava como minha mãe iria fazer para retirar parte do salário mínimo que
recebia para custear meus estudos. Sentia um peso na consciência, pois, além de mim, havia
mais três irmãos e um sobrinho que viviam com meus pais.
Resistir até onde pudesse foi sempre o meu objetivo, e, apesar dessa dura realidade,
considero que consegui vencê-la. Não apenas por mim, mas principalmente pelas e através
das pessoas que, de alguma forma, me deram apoio. Não fossem as oportunidades que
surgiram e que pude aproveitá-las, eu jamais teria conseguido chegar até aqui. Reconheço
o mérito, mas penso que somente acreditar e traçar objetivos não leva à vitória, pois, se
assim fosse, estaríamos atribuindo a cada excluído socialmente a culpa por seu fracasso. Ao
contrário, acredito que só conseguimos vencer se, de alguma forma, tivermos oportunidade
para tanto, caso contrário, assim como acontece com a grande maioria, não conseguiríamos
"remar contra a maré".
Diante de tal realidade, ultrapassei cada etapa do Programa Seriado de Ingresso a
Universidade-PSIU, e, na 3ª etapa, optei pelo Curso de Licenciatura em História. Só recebi
o resultado dias depois de sua divulgação, pois não havia jornal na minha cidade e o acesso
à Internet era muito difícil. Eu estava sozinha com um amigo que conferiu o resultado pela
Internet, em sua casa. Conferimos várias vezes a lista, e meu nome não estava ali. Olhamos
mais uma vez, então vimos: Cleane Maria Alves, aprovada. Comecei a chorar, em um misto
de alegria e tristeza. Mais uma vez a incerteza veio à minha mente. De que adianta passar se
não vou poder morar em Teresina, estudar e realizar meu sonho de ter um curso superior?
Naquele primeiro momento, fiquei mais triste que alegre. Cheguei em casa e não disse nada
a ninguém. Minha irmã, Celma Alves, me perguntou por que eu estava tão calada, e eu disse
que havia passado no vestibular. Ela, muito feliz, perguntou-me: - então, por que você não
está feliz? Expliquei os motivos e ela me deu a maior força. Disse que ia conversar com meu
pai e tudo ia dar certo.
Passei um longo tempo deprimida, até meus pais perceberem o quanto aquilo era
importante para mim. Como sempre, meu pai esforçou-se ao máximo, e entrou em contato
com um sobrinho, residente em Teresina. Mais uma vez, consegui um lugar temporário para
ficar. Eu já tinha ouvido falar na Casa do Estudante do Campus da UFPI, e parti com a
Universidade Federal do Piauí
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esperança de conseguir uma vaga, pois era minha única chance. Agarrei-me a esta esperança
e recuperei a vontade de lutar. Foram muitas idas e vindas ao Centro de Assistência Social
da UFPI, até que, finalmente, consegui minha vaga. Agradeço muito ao Dr. José Alves, por
ter me acolhido durante os dias decisivos de espera.
Atualmente estou me realizando em um curso que é minha paixão. Sinto meus
horizontes se alargarem a cada dia, e me delicio com as maravilhas do saber em cada
momento de construção de conhecimento.
Faço parte do Programa "Conexões de Saberes", que visa promover oportunidades
àqueles que desejam lutar pelo sucesso estudantil e se deslumbrar nos labirintos do saber.
Além disso, promove o debate sobre diversos temas de grande relevância social. Para mim
é um grande prazer estar com pessoas que, de alguma forma, têm ou tiveram as mesmas
aflições que eu. Afinal, não ficar de braços cruzados diante das desigualdades que se alastram
por nossa sociedade é o primeiro passo para construirmos uma realidade social menos
segregadora, preconceituosa, racista, discriminatória e elitista.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Cleylce, botão de rosa que desabrochou
Cleylce Santana da Silva *
Mesmo com os empecilhos que dificultam atingir os objetivos, comparo a vida a uma
longa viagem de trem. Isso mesmo, "a vida não passa de uma viagem de trem, cheia de
embarques e desembarques, alguns acidentes, surpresas agradáveis em alguns embarques e
desagradáveis em outros".* Deste modo, menina/mulher, relato alguns momentos marcantes
de minha viagem. Nasci de uma família que, até eu completar dez anos, era constituída de
seis pessoas. Posteriormente, em 1992, foi reduzida para cinco com o falecimento de meu
pai e chefe de família, Antônio de Pádua. A partir daí, todos, e em especial minha mãe,
Gleuce Santana, tivemos que lutar pela sobrevivência.
"Às vezes, sem você perceber, fico lhe observando e vejo que aquele bebezinho, mais
que os outros, foi enviado por Deus. Explico o 'mais que os outros'. Eu esperava um menino
e veio uma menina. Como tudo o que tenho me foi dado por Deus, você é o bem mais
precioso que recebi" (palavras de minha mãe).
Nasci em 30 de janeiro de 1982, sou a caçula da família. Mesmo com todas as
dificuldades, minha infância foi muito feliz. Minha educação infantil foi concluída em uma
pequena, mas aconchegante, escola de bairro chamada Monteiro Lobato. Jamais quero
esquecer minha infância, pois desejo ter sempre dentro de mim a inocência de uma criança.
Foi também em uma escola de bairro que comecei a descobrir os segredos da vida, e concluí
o Ensino Fundamental. Esta parte de minha vida também foi feliz, mas com alguns solavancos.
Quando nascemos e entramos nesse trem nos deparamos com
algumas pessoas que julgamos estarão conosco durante todo o
trajeto: nossos pais. Infelizmente não é bem assim. Em alguma
estação eles descerão e nos deixarão órfãos de seu carinho,
amizade e de sua insubstituível companhia. Por outro lado,
pessoas interessantes e que se tornarão muito especiais vão
embarcando. Chegam os irmãos, aparecem os amigos e surgem
amores maravilhosos.**
*
Graduanda em Pedagogia pela UFPI.
Os trechos do presente texto, aspeados ou com asteriscos, são de uma mensagem, de autor anônimo,
intitulada "A Viagem", apresentada em slides do microsoft Power Point.
**
Universidade Federal do Piauí
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Sentindo-me uma mulher, mas sempre com a inocência de uma criança, munida de
muita força de vontade para vencer na vida, comecei a cursar o Ensino Médio na Escola
Corujão, e, posteriormente, no Instituto de Educação Antonino Freire, onde concluí o
Magistério em nível médio. Desde então, senti-me estimulada a conhecer mais profundamente
o processo educacional e tornar-me uma agente transformadora da realidade social. Para
tanto, iniciei os estudos para o vestibular. Este foi um dos períodos mais duros. Os problemas
econômicos e emocionais pareciam intransponíveis, mas jamais pensei em desistir.
Muitas pessoas tomam o trem apenas para passear. A viagem de
outras é cheia de tristezas. Algumas circularão pelos vagões,
prontas a ajudar a quem precisa. Muitas descem e deixam
saudades eternas. Outras tantas entram e saem despercebidas.**
Estamos em 2003. É hora de enfrentar, pela primeira vez, o vestibular na Universidade
Federal do Piauí. Agora sou uma rosa e uma grande mulher. Quem luta sempre consegue, e
eu consegui. A alegria foi ainda maior porque minha irmã, Cláudia Santana, também foi
aprovada. Mais uma etapa de minha vida foi vencida, graças ao esforço e superação.
É curioso constatar que alguns passageiros, que nos são tão
caros, acomodam-se em vagões diferentes do nosso. Isto nos
obriga a fazer a viagem longe daqueles que amamos. Muitas vezes
deixamos nosso vagão e vamos até o deles, porém quando
chegamos não podemos dividir o mesmo banco, pois já tem gente
ocupando o lugar.**
O tempo não pára. Em 2006, uma nova conquista veio me trazer mais evolução pessoal
e crescimento profissional. Integrei-me ao Programa "Conexões de Saberes". O aprendizado
e a troca de saberes são feitos em grupo e este se torna uma grande família.
E o trem segue viagem. Cheia de atropelos, sonhos e fantasias,
esperas e partidas. Retorno, jamais! Façamos o trajeto da melhor
maneira possível, procurando ter um bom relacionamento com os
outros passageiros, buscando, em cada um deles, o que tiverem de
melhor, lembrando sempre que, em algum momento, alguém
poderá fraquejar e, provavelmente, precisaremos entender porque
nós também, várias vezes, fraquejamos. Nesta hora sempre haverá
alguém que nos entenderá e estenderá sua mão amiga. O grande
mistério, afinal, é que jamais saberemos em qual parada vamos
descer. Muito menos os nossos companheiros, nem mesmo aquele
que está sentado ao nosso lado. Eu fico pensando... Será que
sentirei saudades quando descer? Acredito que sim. Separar-me
de alguns amigos será, no mínimo, doloroso. Deixar meus filhos
viajarem sozinhos será, com certeza, muito triste. Contudo me
agarro à esperança de reencontrá-los na estação principal e aí
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Caminhadas de universitários de origem popular
sentirei a enorme emoção de vê-los chegar trazendo uma bagagem
que não tinham quando nos separamos. O que vai me deixar mais
feliz é a certeza de ter colaborado para o crescimento deles.**
Façamos, meus amigos, com que nossa estadia nesse trem seja tranqüila. Que possamos
deixar saudades e boas recordações para aqueles que seguirão viagem.
Mas a viagem ainda não acabou...
Universidade Federal do Piauí
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Minhas memórias
Elizabeth Pereira Cabral *
Decidi começar minhas memórias com o significado da palavra vitória,1 pois é assim
que minha vida tem sido. Grandes lutas, mas no final grandes vitórias.
Aos quatro anos de idade, minha querida mãe, Dona Graça, me ensinou meu nome. As
vogais, ou seja, o básico, já que ela não tinha condições de me colocar em um Jardim de
Infância, pois, além de mim, havia mais três boquinhas: Orlando, Verônica e Júnior, meus
irmãos, para ela sustentar.
Aos sete anos, fui fazer a primeira série no Colégio Estadual Gayoso de Almendra, de onde
só saí porque lá não havia a 4ª série. Não tínhamos casa própria e, por isso, vivíamos como
nômades; nessas mudanças, acabei morando muito longe do meu colégio. Oh! Tempinho doloroso
para as minhas perninhas. Como não havia dinheiro para o ônibus, o jeito era ir a pé, em pleno
sol do meio dia. Detalhe: “não era um Sol qualquer, mas o Sol do meu querido Piauí”.
Ao iniciar a 5ª série, meu maior sonho era ter um caderno de 10 matérias e um estojo
com tudo dentro, porém, como eu disse, era apenas um sonho, já que minha mãe só conseguia
comprar o suficiente para podermos escrever e estudar. Apesar das poucas condições
financeiras, não lhe faltavam ânimo e palavras encorajadoras para cada um de nós, seus
filhos. Eu sempre estudei sozinha. Quando não entendia o assunto, estudava mais ainda,
pois sabia que não tinha ninguém para me auxiliar.
Da 5ª a 7ª séries, vivi o período mais difícil de minha vida, porque agora entra em cena
uma figura há muito esquecida, não por vontade minha, mas sim por sua ausência voluntária:
meu pai, Divanildo Pereira Cabral. Mamãe o trouxe de volta para nossas vidas por ele estar
doente e sozinho. Foi aí que tivemos que apertar ainda mais o cinto devido aos gastos com
remédios e internações. Foi triste ver nosso pai definhando a cada dia.
No dia 2 de abril de 1989, da mesma forma repentina que entrou, meu pai saiu de
minha vida. Tempos depois de seu falecimento mamãe ganhou uma casa própria e fomos
morar na zona sul de Teresina. Fui matriculada no Escolão do Parque Piauí, em regime de
semi-internato. Foi durante a 8ª série que tive que fazer uma escolha: ou fazia o Ensino
Médio em uma escola do Estado, sujeita a inúmeras greves, ou estudava muito para fazer o
teste do Centro Federal de Educação Tecnológica do Piauí-CEFET-PI. Fiquei com a segunda
opção, e logo começaram as dificuldades. Mamãe não tinha dinheiro para pagar a inscrição
e o prazo estava acabando. Fui salva na última hora, pois mamãe conseguiu uma faxina
*
Graduanda em Ciências Econômicas pela UFPI.
Vitória: sf. Ato ou efeito de vencer o inimigo ou competidor; triunfo (FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. O novo dicionário Aurélio século XXI. São Paulo: Nova Fronteira, 2001).
1
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Caminhadas de universitários de origem popular
(trabalho doméstico temporário) salvadora. Paguei a taxa, fiz o teste e fui aprovada. Então
iniciei meu curso profissionalizante na área de Saneamento Básico. Começava assim mais
um período de batalhas que enfrentei com todo ânimo e coragem. Eu passava muito tempo
estudando na biblioteca, e, quando mamãe me dava algum dinheiro para o lanche, era bom;
do contrário...
Quando estava próximo o fim do Ensino Médio, deparei-me com outro dilema: fazer
ou não o vestibular? Resolvi fazer, mesmo sabendo que meu conhecimento, em relação a
outros estudantes, era muito restrito. Como não tínhamos condições de pagar um cursinho
pré-vestibular, passei a estudar em casa, tentando me preparar da melhor maneira possível.
Não foi difícil escolher o curso. Eu queria ser médica e realizar um sonho de infância. A
escolha também pesou, em razão da doença e morte de meu pai. Minha mãe conseguiu o
dinheiro da inscrição. Fiz as provas, e, em seguida, a decepção. Não desanimei e insisti. Fiz
mais dois exames sem sucesso.
Foi então que aconteceu um fato que, de uma forma inesperada e brutal, abriu meus
olhos para a realidade. Era a festa de aniversário de meu primo e a família estava reunida na
maior alegria. De repente, meu tio, irmão de minha mãe, homem bem sucedido, aproximouse de mim e conversamos muito até chegar ao assunto vestibular. Ouvi dele um sermão que
até hoje ecoa em minha mente e no mais profundo do meu ser. Calmamente ele me disse: "Minha filha, eu acho melhor você escolher outro curso, porque a Medicina está destinada
aos filhos de gente rica. Os livros são caríssimos, e muitos não são encontrados na biblioteca,
sem falar que, quando têm, estão escritos em inglês. Não vai dar para você terminar o curso.
Isto é, não vai dar nem para você passar no vestibular que é muito concorrido. Você não tem
capacidade para enfrentar os ricos que estão bem preparados". Quase morri de desânimo,
mas aquilo ficou na minha cabeça, martelando, martelando. Pensei bem nas palavras de
meu tio e tomei uma atitude: inscrevi-me para Ciências Contábeis; e, mesmo assim, não
passei. Quase joguei tudo para o alto. Eu estava revoltada, não queria saber mais de estudar.
Minha mãe me deu carinho e apoio.
No entanto, a mão de Deus colocou um anjo da guarda no meu caminho: Irmã Cícera
Filomena, uma senhora que é da minha igreja. Ela me disse para confiar em Deus e deixá-lo
agir em minha vida, perguntar a Ele qual curso eu deveria seguir. E assim eu fiz. Na hora da
inscrição, para prestar o quinto vestibular em 2004, escolhi Ciências Econômicas. Mantive
segredo e esperei o resultado. Desta vez foi só alegria. Fui aprovada para o segundo período.
Mais uma etapa vencida e mais uma por vencer. Todos sabem das dificuldades que
temos em permanecer na Universidade, principalmente para os estudantes de origem popular;
mas estou consciente e preparada para travar minhas batalhas; certamente as vencerei, pois
minha trajetória de vida tem como sinônimo a palavra VITÓRIA.
Universidade Federal do Piauí
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Lionheart: forte, perseverante,
astuto e determinado
Eric Willian do Nascimento Carvalho*
“Eu sabia, desde a primeira vez que trilhei
este caminho, que haveria momentos de
desespero total, quando se busca arrancar
o véu do santuário, e quando se grita por
ela, sabendo que não responderá porque
não está ali, porque nunca esteve ali, não
há Deusa, mas apenas nós mesmos, e
estamos sós na zombaria dos ecos refletidos
por um santuário vazio... Não há ninguém
ali, nunca houve alguém ali, E toda a Visão
não passa de sonhos e alucinações...”
Marion Zimmer Bradley
Acredito que, assim como muitos vêm de famílias de baixa renda, comigo não poderia
ser diferente. Meus pais nunca tiveram grandes oportunidades de emprego para nos sustentar,
mas sempre nos ensinaram, a mim e minha irmã, que para tudo se dá um jeito.
Minha mãe veio do interior do Piauí, Alto Longá, e conheceu meu pai na capital,
Teresina. Ele completou o Ensino Médio e tentou duas vezes o vestibular para Ciências
Econômicas, mas não conseguiu sucesso. Assim que começou a namorar minha mãe, ele
propôs que ela estudasse em alguma escola perto de sua casa, porém ela teve medo de os
professores maltratarem-na porque assim acontecia no interior, já que, por ser ela franzina
e fraca, era motivo de chacota durante as aulas. Os castigos que ela recebia eram variados:
ficar ajoelhada no milho e apanhar com ramos de mangueira na brincadeira de gato e rato.
Casaram-se. E eu vim ao mundo com apenas duas coisas: pecado original, segundo a
Bíblia, e um cérebro enorme, que quase não saía das entranhas de minha mãe.
Tive uma infância sem muitos regalos, só o básico. Um carrinho de plástico, clássico
brinquedo para meninos, e uma latinha de doce de goiaba onde fazia minhas refeições.
Apanhava muito de meu pai, quando criança. O cinto era lei e ficava sempre no mesmo
lugar, onde pudesse ser visto e temido. Nos intervalos entre uma chicotada e outra,
descobriram que eu não rabiscava no piso da sala por traquinagem, e sim porque, aos três
anos, eu já estava me interessando pelos estudos.
*
Graduando em Letras-Inglês pela UFPI.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Antes que eu me esqueça, gostaria de agradecer ao meu tio Antônio de Pádua Carvalho
e à Maria José (ela era minha vizinha), a quem chamo até hoje de tia Zezé. A ele porque no
momento em que meus pais não puderam arcar com as despesas de material durante a minha
segunda fase escolar, ele nos ajudou, e à tia Zezé, que hoje está sentada à direita do Pai, por
ter ajudado minha mãe a me educar. Por muitas vezes era ela quem me socorria, no momento
de necessidade aguda, como falta de comida e até mesmo de roupas para vestir.
Até nos momentos de lazer familiar, tia Zezé me levava, para clubes, sítios e festas de
aniversário. Ensinava-me quando podia, por causa do seu trabalho. Também cuidou de
mim, tanto na terrível cirurgia que fiz, quanto na recuperação quando tinha oito anos. Ainda
hoje tenho a vela caseira feita de papelão na comemoração do meu oitavo aniversário.
Amo-te, tia Zezé, muito obrigado.
Quem me descobriu e me deu uma oportunidade foi Elza Freire, que eu chamo Tia
Elza. Ela me levou para sua escola particular, de bairro, inicialmente com tudo pago, material
e fardamento. O trato seria o seguinte: meus pais pagariam os três anos que eu lá estudasse
em parcelas, após o último ano. Funcionava, como é atualmente, o crédito universitário,
mas sem burocracia. Do que me lembro, daquela época, posso dizer que foi muito bom,
brincar e estudar. Eu pensava que tinha tudo, quando passei a ser motivo de piadas por usar
o mesmo uniforme desde que entrei, já que meus pais não podiam comprar um novo. Foi aí
que comecei a sentir o desprezo das outras pessoas, a sua mesquinhez florescendo nos
primeiros anos de minha vida.
Em seguida, fui para o Colégio das Irmãs; ou seja, Unidade Escolar Irmã Maria
Catarina Levrini. Muita gente confunde quando digo onde estudei, porque em Teresina
existe uma escola privada, muito famosa e direcionada para a elite, chamada Colégio
Sagrado Coração de Jesus. Como muitos que estão lendo já pagaram ou ouviram falar
sobre legislação do ensino, sabem que escolas confessionais têm que explicar para
onde vai o dinheiro dos impostos que deveriam ser pagos como qualquer outra empresa.
Então eles criam instituições filantrópicas, como uma das escolas em que estudei o
primeiro ciclo do Ensino Fundamental.
O ensino era muito rígido. Acho que esse meu jeito certinho de lidar com as coisas
deve-se à educação que recebi lá. Todos os dias, enfrentávamos uma rotina em que não
podíamos sair da linha. Chegávamos as sete e rezávamos o Pai-Nosso, a Ave Maria e a
oração do anjo protetor. Tínhamos a primeira aula de religião e, em seguida, as outras
matérias. Vinha o intervalo, mas não podíamos ficar suados, senão ficávamos de castigo na
frente dos colegas. Quando retornávamos do recreio, tínhamos que cantar o hino do Piauí
inteirinho. Imagine-se oito meses de sua vida, durante quatro anos, seguindo essa ditadura.
Só mudávamos o hino, ou melhor, adicionávamos mais um por causa da Independência do
Brasil. Que independência nós temos mesmo? Alguém pode me dizer?
Lembro até hoje do meu baile de formatura. Tenho as fotos que não me deixam esquecer.
Os três melhores alunos das turmas de 4ª séries de 1996 receberiam medalhas. Eu fiquei com
a de ouro. A de prata foi para Luana da Cunha (a primeira mulher por quem me apaixonei e
de quem recebi um NÃO por ser gordo e ter a dentição amarela), e Janiele ficou com a de
bronze (esta era minha grande amiga, até brincávamos de ser namorados, mas tudo não
passava de fantasia). Depois voltarei a falar nelas.
Para dar continuidade ao Ensino Fundamental, fui para a Escola Santa Angélica, uma
escola particular de bairro e a melhor da redondeza, onde cursei da 5ª a 8ª séries.
Universidade Federal do Piauí
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Como todos sabem, nessas escolas de bairro, a clientela não é tão religiosa como
deveria ser ou como eu pensava que fosse, já que eu provinha de uma rígida educação
religiosa. Eu evitava coisas como ir à diretoria, ser chamado a atenção pelos professores;
mas fui me rebelando aos poucos. No primeiro dia, não fui bem recebido, pois todos os
alunos já haviam estudado juntos desde as primeiras séries, mas fui me adaptando. Certo
dia, fui chamado à Diretoria. Eu nunca tinha entrado antes em um lugar tão temido. Eu
estava gelado e nervoso, prestes a urinar nas calças e quiçá vomitar. Isto aconteceu porque
a pessoa que me dava carona, pois tinha um filho que estudava na mesma escola e só entrava
mais tarde, sempre relaxava, conseqüentemente eu me atrasava. Felizmente só fui chamado
a atenção, e avisado que o fato não deveria se repetir. Então meu pai resolveu montar uma
bicicleta para mim. Comecei com uma pequena, toda vermelha e acabei com uma grande
também vermelha, mas com garupa.
Eu gostei de todas as minhas escolas. A Santa Angélica tinha tudo, inclusive um
Laboratório de Ciências com seus microscópios onde fazíamos experiências. Eu achava
aquilo tudo fascinante. Os outros nem ligavam, mas eu adorava. Outra coisa que me
encantou foi o estudo do Inglês, o que realmente sempre gostei, mas sem pensar que
aí estava o meu futuro. Tudo para mim era interessante, ou como dizem aqui em
Teresina, muito massa. Participei de gincanas, festas e de todos os eventos escolares.
Percebam que até agora não mencionei nenhum tipo de esporte ou educação física.
Não sei o porquê de nunca ter gostado de esportes. Os únicos exercícios que eu fazia
era estudar, escrever, e correr com meus colegas nas noturnas brincadeiras de rua.
Além do mais, eu era muito gordo. Nas escolas onde estudei, as aulas de educação
física se restringiam aos jogos de Futsal, que eu odiava. Perguntava-me se aqueles
professores não eram profissionais ou se o dinheiro de nossa mensalidade só dava
para comprar bolas de couro.
No último ano, 2000, tínhamos algumas provas simuladas para o teste do Centro
Federal de Educação Tecnológica do Piauí-CEFET-PI. A única escola pública bem
equipada da região e onde todos queriam estudar. Fiz o teste, passei e virei gente lá. Por
quê? Porque lá as máscaras caíram, e posso afirmar que nunca havia aprendido tanto em
minha vida. Lá nos ensinaram a enfrentar a realidade, deixando para trás o mundo da
fantasia. Entrei em um mundo mesquinho, preconceituoso, hipócrita, porém esperançoso.
Sim, acredito, até hoje, que há jeito para tudo, menos para a morte. Daí minha esperança
em dias melhores.
Passei três anos estudando à tarde. Isso foi terrível. Onze anos estudando pela
manhã e, de repente, essa mudança mexeu com meus miolos. Os dois primeiros meses
foram insuportáveis.
O CEFET fica no centro de Teresina, e sempre ouvi coisas horríveis vindas de lá.
Então, durante o ano de 2001, eu ia para a escola e voltava direto para casa. As aulas de
Educação Física eram cheias de teorias e mais teorias para aprender e estudar. Além do
mais, fazíamos provas ao final de cada mês. Futsal? Claro que tinha! E eu me dava
sempre mal. As turmas que primeiro iniciavam as atividades esportivas tinham o
privilégio de escolher o esporte a ser praticado. Também existiam turmas específicas,
como seleção para vôlei, basquete, handbol, futsal e judô. Como nunca fui bom esportista,
resolvi entrar para o teatro, e fiquei durante os três anos. Assim obtinha nota com o
trabalho que desenvolvia como ator na "Companhia Entre Rios de Dança e Teatro",
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Caminhadas de universitários de origem popular
onde vivi momentos maravilhosos ao representar as lendas de minha terra e também
homenagear o poeta Carlos Drummond de Andrade em seu centenário. Foi durante esse
período que, com a ajuda financeira de meu pai, fiz dois cursos: Inglês Técnico e Curso
Básico de Informática.
No CEFET conheci pessoas de diferentes cores, credos, níveis sociais e orientações
sexuais. Tornei-me amigo de muitas delas, já que tenho facilidade em me relacionar. Creio
ser este um ponto positivo de minha personalidade. A partir daí, comecei a freqüentar
muitos lugares, entre eles o "Boca da Noite", no Clube dos Diários, evento cultural de
música que promove e divulga os artistas piauienses. Muitos nomes que hoje estão na
mídia surgiram lá. Teófilo Lima, Acesso, Madame Baterfly, Brigite Bardot são alguns deles.
Durante os três anos do Ensino Médio, deixei de ser aquele menino gordo, ingênuo,
bobo e CDF. Em casa, passei a ser acusado de rebelde e outros nomes que prefiro não revelar.
Meus pais sempre foram muito rígidos em relação à minha educação, além de superprotetores.
Eu estava passando por grandes transformações, em todos os sentidos, e isto acontecia ao
mesmo tempo em que eu me tornava um homem maduro e responsável com meus estudos,
pois eu tinha que me definir em relação ao ano de 2004. Minha mãe, que adora um hospital
e seus profissionais, queria que eu fosse médico, mas eu sempre tive uma queda pelas
Ciências Humanas, excluindo História que eu sempre achei uma matéria muito chata. Por
outro lado, eu amava Português, Inglês e Geografia.
Em 2003, decidi que ia ficar com a área de Humanas. Curso? E agora? O que mais
gosto? Inglês, é claro. Pronto! Está decidido, vai ser Inglês.
No CEFET, eu recebia uma bolsa-auxílio de R$ 40,00. Com este dinheiro paguei três
meses de aulas de Redação e Inglês. Isto me deu uma incrível sensação de independência.
Eu pagava, com meu suor, por aquilo que almejava.
Prestei o vestibular e passei. No dia da matrícula, quase morri de tanta felicidade, pois
era meu aniversário e eu estava recebendo um grande presente: um cartão confirmando
minha matrícula como universitário da UFPI. Foi lindo! Foi perfeito!
No início de 2004, eu estava cheio de expectativas, mas depois de dois anos de curso,
elas começaram a desaparecer. Isto aconteceu quando percebi que alguns professores não
eram tão educados e éticos como deveriam ser. Além das greves que aconteciam todos os
anos, tive dificuldades nas aulas, pois eu sabia ler em Inglês, mas não sabia falar a língua. Os
professores nos tratavam como se fôssemos membros veteranos de um clube de línguas, mas
nós estávamos lá para desenvolver o conhecimento da matéria até seu ponto culminante, na
conclusão do curso.
Quando comecei a cursar o quarto período, percebi que tinha enrolado os três últimos
semestres. Decidi então fazer o teste de nivelamento do English Resource and Information
Center-ERIC. O ERIC corresponde à Cultura Inglesa da UFPI. O teste era muito simples e
consistia em uma conversa, totalmente em Inglês, com um dos professores. O resultado me
surpreendeu e me alegrou. Eu fui direto para o módulo quatro.
Atualmente estou cursando o módulo cinco e, se não houver greve, devo concluir o
curso de Inglês no final de 2007. Paralelamente estou iniciando o módulo um de Espanhol no
Complexo Noé Fortes, da UFPI. O Inglês já me serve financeiramente, pois ministro aulas
particulares e sou professor de Inglês Instrumental no Self Access Project, um curso de extensão.
Com relação à Luana e à Janielle, citadas anteriormente, a primeira estuda Pedagogia
na UFPI; a segunda trabalha como Agente na Rio Poty Turismo.
Universidade Federal do Piauí
43
Apesar das dificuldades, eu nunca desisti daquilo que pretendia ser. Para algumas
pessoas eu sou um cara determinado. Prefiro ser chamado de "sortudo", pois, mesmo
enfrentando as adversidades, sempre consegui tudo na hora certa. Acredito que a perseverança,
a força de vontade e o trabalho duro são as melhores ferramentas para se construir uma
pessoa, uma carreira e uma vida digna. Desta forma, as coisas se tornam agradáveis para
você mesmo, para as pessoas que você ama e também para aqueles que lhe rodeiam e
participam do seu desenvolvimento humano.
44
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha vida, minha luta
Francisco das Chagas de Sousa Silva *
Nasci em Campo Maior, no meu querido Piauí, e ali morei até os dois anos de idade. De
lá nos mudamos para uma fazenda, nos arredores do município de Aroazes, mas que hoje é
parte da cidade de Santa Cruz dos Milagres, a Meca do Piauí. Lá, durante seis meses,
moramos com meus avós maternos até que meu finado avô disse a meu pai que melhor seria
viver em São Félix do Piauí. Sugestão aceita. Mudamo-nos novamente. Em São Félix,
passei parte de minha infância, me entendi por gente e comecei meus estudos. De lá tenho
boas e más lembranças. Joguei futebol, triângulo e peteca. Brinquei de pega e, às vezes,
ficava só, com meus carrinhos, pois sou filho único e nem sempre tinha amigos para brincar.
Lembrando que, muitas vezes, mamãe não me deixava sair para a rua. De todas as
brincadeiras, o futebol era a minha preferida. Meu sonho era ser jogador profissional e atuar
no Flamengo do Rio de Janeiro, meu time do coração.
Interiormente, sou um homem, simples, humilde e verdadeiro. Com estranhos sou
tímido, mas à medida que vou me relacionando me torno brincalhão e pacato.
Neste mundo, algumas coisas me causam revolta, como, por exemplo, o investimento
maciço que os EUA fazem em armamentos, que vão alimentar os conflitos e as guerras. O
certo seria usar o dinheiro para saciar a fome do mundo e também combater a AIDS,
principalmente em países da mãe África. Também não aceito o baixo investimento em
educação que é feito no Brasil. É preciso valorizar a figura do professor. Nenhum país
chegou ao primeiro mundo sem investir pesado em educação.
Em São Félix, iniciei minha vida de estudante no Jardim de Infância Menino Jesus,
onde hoje funciona o Fórum. Depois, estudei na Unidade Escolar Maria José, onde fiz a 1ª
série do Ensino Fundamental. No ano de 1988, eu e minha família nos mudamos para a
capital, Teresina, e fomos morar no Bairro Monte Castelo. Fui matriculado na Unidade
Escolar Estelina Dantas, onde cursei da 2ª a 4ª série do Ensino Fundamental. Infelizmente
uma greve me impediu de concluir a 4ª série, e tive que repetir na Unidade Escolar
Desembargador Henrique Couto. Quando estava cursando a 6ª série, em 1993, os meus
estudos foram interrompidos devido à separação de meus pais. Um acontecimento que
marcou e dividiu a minha história. Depois da separação, eu e minha mãe voltamos para
Santa Cruz dos Milagres, onde residia minha avó materna.
O retorno foi chocante. Eu já estava acostumado à vida urbana e nunca havia
trabalhado, apenas estudava. Agora residia na zona rural e trabalhava na roça. Foi um ano
*
Graduando em Geografia pela UFPI.
Universidade Federal do Piauí
45
duro, mas também me trouxe ensinamentos e muito amadurecimento. Minha estada na roça
durou apenas um ano, pois voltei novamente a morar em Teresina, juntamente com minha
companheira de todas as horas, ou seja, minha mãe. Na capital, fomos trabalhar em uma casa
de família, a residência de Dona Vânia Guerra, esposa do Dr. José Wilson, ortopedista. Lá eu
exercia a função de jardineiro e minha mãe era cozinheira. Voltei a estudar, o que me deixou
muito feliz, pois o tempo em que fiquei no interior eu não freqüentava a escola. Como
estava atrasado, fiz o supletivo, 6ª e 7ª séries na Unidade Escolar Lucídio Portela, que ficava
próxima ao meu local de trabalho. Então passei a trabalhar de dia e a estudar à noite.
Concluí o Ensino Fundamental na Escola Municipal Simões Filho. No ano seguinte,
ingressei na Unidade Escolar Álvaro Ferreira; ali fiz todo o Ensino Médio. Não foram fáceis,
tantas mudanças de escola.
Minhas provas de vestibular foram um sucesso. Passei da primeira vez, e escolhi fazer
Química, pois o curso era noturno e eu podia conciliar com o trabalho. Foram dois anos e meio
de grande frustração. Eu não gostava da matéria e, logicamente, não estava indo bem. Resolvi
então fazer novo vestibular. Desta vez escolhi a matéria em que sempre me saí bem: Geografia
(Queres entender o mundo? Estude Geografia). Estudei bastante, me preparei e, faltando
apenas um dia para a prova, começaram a aparecer em meu corpo umas bolhinhas. No dia da
prova eu estava com muita febre e me dei conta que estava com catapora (varicela). Não
desisti e, com apoio de Deus, suportei os quatro dias de provas e venci. Estou muito feliz com
a escolha. A geografia me caiu como uma luva. Posso dizer que já antevejo minha formatura.
Atualmente não mais trabalho em casa de família, só minha mãe continua. Lá entrei
adolescente e saí adulto. Foram 10 anos seguidos.
Apesar da separação de meus pais e de morar com minha mãe, que é uma pessoa
maravilhosa, dona de um grande coração e caráter, meu apoio e porto seguro, eu não me
afastei muito de meu pai. Sempre mantivemos contato, pelo menos duas vezes por semana,
quando então conversamos bastante e nos inteiramos da vida um do outro. Meu pai é um
modesto pedreiro, mas também um bom homem, um homem de caráter.
Hoje sou bolsista do Programa "Conexões de Saberes". Um programa de grande valor
social que tenta propiciar aos jovens de origem popular (assim como eu) uma permanência
com qualidade na universidade pública, tentando também integrar o saber popular
com o conhecimento científico. Para mim o Programa tem sido muito proveitoso, pois
também estou tendo a oportunidade de crescer como ser humano, além da convivência com
pessoas maravilhosas.
46
Caminhadas de universitários de origem popular
Vencendo desafios
Francivaldo Pinheiro Fernandes *
Nasci em Barão de Grajaú, interior do Maranhão, e tenho uma família muito legal, a
qual amo muito. Meu pai, Manoel Francisco Fernandes, é um homem honesto, humilde e
trabalhador. Desde cedo, ele teve que trabalhar na roça, ajudando meu avô. Por ser o filho
mais velho, teve que assumir responsabilidades e pouco tempo sobrou para estudar. Mesmo
assim, com muito esforço, conseguiu estudar até a 4ª série do Ensino Fundamental. Minha
Mãe, Luiza do Carmo Pinheiro Fernandes, só atingiu a 1ª série. Seus pais eram trabalhadores
rurais e ela os ajudava na lavoura, e também cuidava dos irmãos menores. Ela é uma mulher
guerreira, carinhosa e amável. Eu sou o filho caçula de nove irmãos, sempre vivi em um
ambiente agradável, onde faltava dinheiro, mas sobravam amor e carinho de nossos pais.
Recordo minha infância com alegria. Os jogos de futebol, peteca, soltar pipa e jogar pião.
Eu era feliz e gostava de assistir televisão e andar de bicicleta.
Comecei a estudar no Colégio Imparcial, e ali cursei da Alfabetização até a 8ª série do
Ensino Fundamental. A escola distava de casa e, muitas vezes, minha irmã mais velha ia me
levar. Depois, mais crescido, ia sozinho e voltava para casa com os colegas. Meu
primeiro dia de aula tornou-se inesquecível. A excitação era tamanha que acordei por volta
das 5 horas da madrugada. Chamei minha mãe e ela disse que eu podia dormir mais um
pouco, pois ainda era cedo. Voltei a dormir e, na hora certa, estava no colégio, acompanhado
de minha mãe.
Fiquei admirando as paredes, cheias de cartazes coloridos, as mesinhas e suas cadeiras.
Ali era minha sala de aula. A professora recebeu-me muito bem e, aos poucos, fui fazendo
muitas amizades. Ao fim do curso, o colégio promoveu a festa de colação de grau. Aquele
dia também ficou em minha memória. Minha família estava bastante emocionada,
principalmente meus pais que tinham baixa escolaridade. Aquele pequeno passo significava
uma grande vitória. O próximo desafio era passar no teste seletivo da Escola Técnica Federal
do Piauí-CEFET, situada em Floriano ou então na seleção do Colégio Agrícola de FlorianoCAFS. Estas duas instituições sempre foram muito conceituadas e suas provas difíceis.
Apesar do nervosismo, fiz uma boa prova e fui aprovado no CEFET. Quinze dias
depois, agora mais calmo, me saí bem também no CAFS. Optei pelo CEFET. Durante os três
anos do Ensino Médio, fui superando os obstáculos e as dificuldades que surgiam. Fiz boas
amizades e recebi integral apoio dos professores e funcionários. Assim foi dado outro passo.
O próximo desafio seria mais difícil: passar no vestibular. Por falta de condições financeiras,
*
Graduando em Física pela UFPI.
Universidade Federal do Piauí
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não freqüentei nenhum cursinho preparatório, ao contrário da maioria dos colegas. Estudei
em casa, sozinho. Passava o dia com os livros até altas horas da noite. Lendo, resolvendo
questões e fazendo textos para treinar redação.
Durante esse período, meus pais foram importantíssimos, pois me davam forças e me
mostravam, através do seu próprio exemplo, que só o estudo poderia mudar o meu destino,
evitando que eu tivesse que passar dificuldades como eles. Meu pai dizia que o estudo seria
a grande herança que ele estava me deixando. Eu me apoiava naquelas palavras e me
motivava para vencer o cansaço e partir em busca da realização de meus objetivos.
Ao final de 2003, prestei vestibular para o Curso de Bacharelado em Física na UFPI. As
imagens voltam claras à minha mente. Lembro-me muito bem que os portões fechavam,
impreterivelmente, às 8 horas da manhã. Temendo me atrasar, saí de casa bem cedo, pedalando
minha bicicleta. Atravessei o rio Parnaíba em um barco, e continuei pedalando, agora no Estado
do Piauí. De repente caiu uma tempestade. Não dava mais para continuar. Tive que parar e
procurar abrigo. A chuva não diminuía de intensidade. Pensei em desistir, mas fui em frente.
Cheguei ao local da prova completamente encharcado. A sala estava fria e minhas roupas
molhadas aumentavam meu desconforto. E foi assim que, graças a Deus, fiz minha prova.
Não fiquei de folga. Voltei imediatamente aos livros, pois dentro de quinze dias tinha o
vestibular da UESPI, para o Curso de Ciências Contábeis. Prova feita, resultado positivo. Eu,
minha família e meus amigos vivenciamos, então, momentos de extrema felicidade. Passada
a euforia da vitória, era hora de planejar minha mudança para Teresina. Surge um novo
desafio, pois eu não tinha onde ficar. Meu pai lembrou de uma amiga que morava na capital.
Entramos em contato, e ela, juntamente com sua filha Katyuscia, me deram grande apoio.
Meus primeiros dias em Teresina foram de difícil adaptação. Tudo era diferente. A
cada momento, uma experiência nova, começando por dividir um aluguel com mais três
amigos. Mesmo assim, os custos eram altos para meu padrão. Foi aí que resolvi pedir o
benefício da Residência Universitária da UFPI. Hoje estou vivendo lá, em um ambiente
agradável, cercado de vários amigos que formam minha segunda família.
Tenho percebido que minha entrada na Universidade transformou minha vida. Conheci
gente de todo tipo, costume e pensamento. Isso tem mudado e ampliado minha visão do mundo.
Em março de 2006, tomei conhecimento do Programa "Conexões de Saberes" e fiz
minha inscrição. Após passar por uma seleção muito rigorosa, tive meu nome aceito. A
documentação exigia, entre os pré-requisitos, que o aluno fosse de origem popular, possuísse
baixa renda, e tivesse estudado em escola pública. Depois fui entrevistado pelas coordenadoras.
No Conexões, ministro aulas de Física, no cursinho pré-vestibular que criamos para ajudar
estudantes de baixa-renda, como eu, que sonham em ingressar na Universidade.
Ao fazer este relato sobre minha história de vida, espero que sirva de estímulo para os
estudantes de origem popular. Eles precisam saber que nada se consegue sem luta; e quanto
mais pobre mais difícil é o caminho e muito mais saborosa a vitória.
Termino agradecendo a Deus por me ter dado forças para seguir em busca da realização
dos meus sonhos. Agradeço a minha família que sempre esteve presente, apoiando-me em
todos os momentos; à professora Verônica e as coordenadoras do Conexões, professoras
Cecília e Edileusa; e finalmente meus sinceros agradecimentos a todos aqueles que, de
alguma forma, me ajudaram durante minha trajetória.
48
Caminhadas de universitários de origem popular
A caminhada de um vencedor
Hélio Costa Vieira *
Minha família
Oriundo de família humilde, nasci no bairro Buenos Aires, um dos mais pobres de
Teresina. Quando eu tinha apenas um ano de idade, meu pai comprou uma casa em um
terreno de invasão. Assim tivemos que nos mudar para a Vila Risoleta Neves, local onde
vivemos há mais de dezenove anos.
Minha família segue padrões mundiais quanto ao número de pessoas por família. São
cinco membros: minha mãe, meu pai, eu e meus dois irmãos, Érica e Ellisson.
Minha irmã, assim como eu, sempre estudou em escola pública. Formou-se para ministrar
aulas para crianças de até seis anos de idade, e atualmente estuda para o vestibular. Meu
irmão também estudou em escolas públicas, porém decidiu abandonar os estudos e apenas
trabalhar com mecânica.
Meus pais são elementos decisivos em minha vida, com influências positivas,
no caso de minha mãe, e negativas, por parte de meu pai, que serviram a mim como
estímulo, que será tratado mais à frente. Minha mãe nasceu em um pequeno povoado
da zona rural de Teresina, chamado Taboca. Filha de uma família pobre, sua mãe
quebrava coco babaçu e seu pai fazia carvão vegetal, para vender no centro da capital,
distante 26 km do povoado. Toda semana, de bicicleta, ele fazia esse trajeto, e, assim,
sustentar os filhos. Meu pai nasceu em José de Freitas, município do Piauí. Nunca
quis saber dos livros, pois perdeu seus pais quando criança e não teve apoio para
estudar, passando toda a infância trabalhando na roça. Ele, com sua "inconsciência da
realidade", devido à falta de instrução, apresenta uma visão simplificada do mundo;
por isso age de forma negativa em relação a mim, mas eu encaro como desafio a ser
superado. Sem estudo, mas com muita vontade, meu pai trabalhou para sustentar a
família, sempre ganhando apenas um salário. Ressalte-se, ainda, a importância de
minha “segunda mãe”, minha tia Lúcia de Fátima, que sempre nos ajudou.
Minha infância não foi boa, porque meus pais me prendiam muito em casa, em
virtude do alto índice de violência e o fácil acesso às drogas no local em que moramos.
Porém tive alguns momentos de alegria com meus colegas, ao brincarmos na rua, jogando
futebol, bola de gude, empinando pipas. Na verdade, passei minha infância estudando
bem mais do que brincando.
*
Graduando em Geografia pela UFPI.
Universidade Federal do Piauí
49
Trajetória escolar
Iniciei minha vida escolar aos seis anos, pois não passei pelos níveis elementares
como o Jardim I e II. Minha primeira escola foi a Creche Tia Anita, na qual não tive
muito êxito no aprendizado. Após um ano, saí da creche para ingressar na primeira série
do Ensino Fundamental; era necessário fazer um teste, para qualificar aqueles que
poderiam estudar na escola. Fiz o teste na Escola Municipal José Carlos, bem próxima
de casa. Sofri minha primeira decepção. Fui reprovado. Descobri que não sabia de nada,
pois o teste era muito simples, bastando apenas circular as palavras iniciadas com
vogais e identificar as consoantes.
Passado o fracasso, eu precisava ingressar na primeira série. Foi aí que apareceu o
primeiro anjo em minha vida. Uma mulher chamada Demetiude, colega de minha tia-mãe.
Ela me conseguiu uma vaga na Escola Ambiental 15 de Outubro. Comecei a freqüentar as
aulas, mas senti-me ignorado, desprezado, pois a maioria de meus colegas já sabia ler,
escrever, contar os números, e eu nada sabia. O segundo anjo foi minha professora Ana. Ela
era formada em Educação Física, mas, mesmo assim, com muita paciência, ensinou-me a ler,
escrever, contar e muitas outras coisas básicas, que tiveram grande influência em minha
vida. Os resultados logo aparecerem.
Na segunda série, fui o melhor aluno da classe e ganhei um certificado, que,
infelizmente, se extraviou. Cursei todo o Ensino Fundamental nesta escola. Ao terminar o
curso, preparei-me para o teste que me faria ingressar no Ensino Médio. Desta vez, não tive
dificuldades e me matriculei na Escola Estadual Helvídio Nunes. Foi quando percebi, assim
como a maioria dos jovens de baixo poder aquisitivo, que precisava trabalhar para ajudar a
família. Meu pai defendia apenas o lado do trabalho. Ele dizia que era melhor trabalhar,
mesmo ganhando apenas um salário. Eu não pensava assim. Os estudos faziam parte dos
meus planos, pois eu queria viver e não apenas sobreviver.
Diante de tal realidade, minha mãe ficou sabendo de um curso gratuito oferecido
pelo SENAI, que formava profissionais eletricistas de alta tensão. Infelizmente não
fui aprovado no teste seletivo. Meses depois, sabendo da necessidade de uma
qualificação, fui informado que a Ação Social Arquidiocesana-ASA, ligada à Igreja
Católica, estava realizando cursos gratuitos. Depois de muito insistir, eu consegui
uma vaga no Curso de Datilografia.
Tempos depois, o professor Gerson me indicou para um teste no cargo de aprendiz na
Empresa Brasileira dos Correios e Telégrafos, que mantinha convênio com a ASA. Meu pai,
com seu negativismo, foi logo tentando me derrotar, afirmando que eu não seria aprovado.
Cinco meses depois, fui chamado para assumir o posto. A alegria foi muito grande. Meu
primeiro trabalho, meu primeiro salário, tudo conseguido com meus próprios méritos.
Aqueles tempos foram duros e cansativos. Eu acordava geralmente por volta das
05:30h e, muitas vezes, não dava tempo de tomar o café da manhã. Eu pegava minha
bicicleta e pedalava até o colégio, cujas aulas começavam às 07:00 e terminavam ao
meio-dia e meia. Então, eu pegava a bicicleta e, debaixo de um Sol escaldante, voltava para
casa, almoçava às pressas, e às 13:30 partia para o emprego, de onde retornava ás 19:00,
para trabalhar e assistir às aulas. Era só o que eu fazia. Não havia tempo para estudar para as
provas nem mesmo para a primeira etapa do Programa Seriado de Ingresso à UniversidadePSIU. O resultado logo apareceu. Tirei uma nota mediana e fiquei preocupado com meu
futuro universitário.
50
Caminhadas de universitários de origem popular
Após completar seis meses de trabalho, eu e meus colegas fomos demitidos dos
Correios. A explicação dada foi apenas "contenção de despesas". A partir de então, comecei
a estudar, visando o vestibular; e tirei uma nota melhor na segunda etapa do PSIU.
Estava no terceiro ano do Ensino Médio. Ano de vestibular, ano de decisões. A escolha
da profissão foi muito difícil. Eu contava apenas com o apoio de minha mãe. Inicialmente
pensei em fazer Economia, mas desisti, pois eu não queria ficar sentado diante de um
computador fazendo previsões sobre a economia nacional. Eu desejava uma carreira que
me possibilitasse um contato humano. Decidi então ser professor (Mas de quê?).
Primeiramente pensei em Biologia, influenciado pelas aulas mágicas do professor Lauro
Miguel. Depois pensei em História, mas acabei optando por Geografia, pois ela envolve
todas as outras: Matemática, Biologia, História, Química, Economia etc. Em meio a este
festival de dúvidas, surge, novamente, a incrédula figura pessimista de meu pai, dizendo
que eu não iria passar no vestibular porque não sabia de nada, não tinha estudado em escola
particular e não era filho de rico.
Embora estivesse desempregado, minha rotina não mudou. Tendo em vista que não
mais estava nos Correios, eu agora fazia um cursinho pré-vestibular, localizado na principal
avenida da cidade, e custeado por minha mãe, com o dinheiro ganho na lavagem de roupas
e venda de produtos anunciados em uma revista. As aulas do Cursinho eram de segunda a
quinta-feira, de 14:00 às 18:00. Como o dinheiro não dava, eu ia de ônibus e voltava a pé,
a uma distância de 10 km.
Em razão de perceber o grande esforço de minha mãe e o desafio que me lançavam, meu
pai e alguns familiares, comecei a estudar até às três horas da madrugada. Eu não tinha sossego,
pois meu pai se levantava e me xingava, mandando eu apagar a luz para não gastar energia. Na
escola, eu era chamado de louco, pois não desgrudava dos livros. Esse período caracterizou-se
como tempo de sacrifícios. Eu abri mão de vários encontros familiares, tais como: festas de
aniversários, Natal, Ano Novo. Meu objetivo era um só e eu precisava alcançá-lo.
Fiz as provas do vestibular e fiquei certo que tinha passado na Universidade EstadualUESPI, mas tinha dúvidas quanto à aprovação na Universidade Federal-UFPI. Em janeiro de
2005, recebi, com grande alegria, o primeiro resultado. Fui aprovado na Universidade Federal
do Piauí, no curso de Geografia. Agora eu era o segundo membro da família de meus pais a
ingressar na Universidade. Para completar minha alegria, fui aprovado também na UESPI.
- E meu pai?... Não me deu parabéns, nem um abraço, sequer um aperto de mão. Fui o
único, em uma sala de 42 alunos, a ser aprovado.
A vida universitária me trouxe algumas decepções. Encontrei pessoas arrogantes e
muita disputa. Novamente senti necessidade de uma qualificação. Consegui uma vaga no
Curso de Inglês do CEFET, a um custo abaixo dos outros. As dificuldades financeiras
continuaram. Muitas vezes não havia dinheiro para o ônibus ou para tirar uma cópia xerox.
Atualmente estou no quinto período de Geografia, no quarto bloco do Curso de Inglês
e pretendo, após a graduação, fazer mestrado e também doutorado. Também sou bolsista
deste grande Programa denominado "Conexões de Saberes", projeto muito importante no
resgate de nossas origens, na conscientização de nossa importância dentro da sociedade,
como também na busca de transformar novos jovens que, assim como nós, têm dificuldades
em ingressar na universidade.
Universidade Federal do Piauí
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Um principiante e sua estrela guia
Herbert César de Moura *
Nasci na pequena e acolhedora cidade de Campinas do Piauí, no Centro-Sul do estado,
no dia 9 de setembro de 1985, em uma segunda-feira, às seis horas da manhã. Costumo dizer
que nasci junto com o Sol. Em Campinas, fiz todo o Ensino Fundamental. Meus pais são:
Maria Ana de Moura e Francisco de Assis César. Tenho um irmão, Paulo César. Logo, em
minha casa éramos quatro, mas caminhávamos para três, pois a separação de meus pais era
algo previsível.
Minha vida de estudante começou na Escolinha Chapeuzinho Vermelho. A fase do
pré-escolar foi muito legal. Na verdade eu só brincava, pintava e merendava. A escola
parecia um eterno recreio. As aulas só ficaram mais sérias a partir da primeira série. Aí já
tínhamos que ler e escrever. Dona Toinha, uma professora muito aplicada e gentil, mandava
tarefas para casa e eu as trazia devidamente respondidas, pois era um aluno muito dedicado.
Minha mãe sempre me ajudava. Fazíamos os deveres sentados no chão da cozinha, perto da
porta que ficava aberta para entrar um ventinho. Assim fui passando por todo o primário,
como era chamado, naquele tempo, o curso que ia da primeira à quarta série. Durante esse
período, eu não tinha grandes preocupações. Era muito criança e vivia minha infância com
muita alegria. Minha maior expectativa era o fim-de-semana que eu passava na casa da
vovó Ana. Foi lá que aprendi muito sobre a vida, com os ensinamentos passados pelos meus
avós; estava sempre em contato com a terra e os animais. Ali vivi momentos muito felizes,
tenho saudades daquela época.
Mas, voltando à vida escolar, vejo-me agora na quinta série do Colégio Dr. José de
Moura Fé. Lá estudei até a oitava série. Nesse tempo, eu era um adolescente com todos os
problemas, medos e incertezas da idade. Tudo era novo para mim. Aquelas matérias eram
difíceis, mas era aquilo que eu havia sonhado. Estar na quinta série era o máximo. Eu me
sentia como gente grande, e, apesar das dificuldades, esforçava-me para ser um dos melhores
da classe junto com minhas amigas Gabiana, Ludmila e Roberta. Nosso sonho era fazer o
Ensino Médio, mas este não havia em nossa cidade. A Universidade ainda era uma coisa
muito distante. Foi nessa época que passei por dois momentos muito difíceis: A separação
de meus pais e alguns problemas de saúde. Estes problemas atrapalharam-me um pouco no
estudo, mas não me desestimularam, pois eu era um garoto muito persistente, sabia o que
queria. Nesse período, contava na escola com o apoio de uma pessoa muito especial, a
professora Alzira Alves, minha madrinha "Zirinha".
*
Graduando em Ciências Sociais pela UFPI.
52
Caminhadas de universitários de origem popular
Finda a oitava série, eu estava pronto para continuar. Mas onde? Teresina, a capital,
era um sonho há muito desejado, mas difícil de concretizar. Eu não tinha onde morar. A
saída foi viajar todos os dias para a vizinha cidade de Simplício Mendes que distava 28 km.
A estrada de terra era péssima. Enfrentávamos chuva, buracos, mas com o tempo fui me
acostumando. Os colegas eram muito divertidos. Ríamos e conversávamos durante todo o
percurso feito na camionete amarela do Sr. Neto Félix. Eu saía de casa às cinco da tarde,
assistia às aulas e retornava por volta de meia-noite. Assim cursei o primeiro e segundo ano
do Ensino Médio. Paralelamente ao estudo, eu trabalhava diariamente das oito ao meio-dia
em um programa do Governo Federal Portal da Alvorada. Foi um tempo muito especial. Eu
tinha apenas quinze anos e uma vida cheia. Era bom ter responsabilidades. Esta rotina foi
interrompida com a implantação em nossa cidade do Ensino Médio Módulo Tele-aulas. Por
esse motivo, não tinha mais o transporte para Simplício Mendes. O problema é que eu teria
que esperar seis meses, pois o ano letivo na tele-sala só começava no meio do ano, o que
atrasaria minha vida escolar. Foi então que surgiu uma oportunidade fantástica. Minha tia
Sônia mudou-se para Teresina com a família e eu vim morar com eles.
Cursei o terceiro ano na Fundação Nossa Senhora da Paz. O vestibular se aproximava
e eu tinha que escolher um curso. Eu estava cheio, de dúvidas, mas finalmente fiz minhas
opções: Ciências Sociais na UFPI e Geografia na UESPI.
No dia do resultado, liguei para uma amiga e ela me disse que eu não havia passado.
Meu nome não estava na lista. Realmente não é fácil passar na UFPI. Eu tinha que estudar
muito e tentar no ano seguinte. Passei duas horas sentindo uma grande frustração até que de
repente a vizinha entrou correndo com o telefone na mão. Era minha tia dizendo que meu
nome estava na lista, sim. Passei! Eu, um simples aluno de escola pública, fui aprovado no
meu primeiro vestibular.
Ali era o começo de uma vida nova. Tornei-me universitário. No início, tive
dificuldades de adaptação. Eram muitas disciplinas em horário integral. Na Universidade, o
aluno tem que se destacar para conseguir monitorias e bolsas de pesquisas, que são muito
importantes para a nossa formação. Graças a minha dedicação, consegui ingressar no
Programa "Conexões de Saberes". Este Programa veio para me proporcionar muitas alegrias,
pois, nele, posso trabalhar, pesquisar e melhorar meus conhecimentos, e, principalmente
ajudar pessoas simples e humildes como eu. Isso me dá mais forças para desenvolver nosso
trabalho comum, para que, juntos, possamos ajudar as comunidades envolvidas.
Essa pequena história de um principiante no mundo de lutas e desafios deve-se à
ajuda recebida de muitas pessoas, mas certamente há alguém muito especial para mim,
responsável por todo o meu aprendizado e vitórias, uma estrela que me guia e protege com
toda sua força, coragem e fé em Deus: MINHA AMADA MÃE. É a ela que dedico essa
História e todas as minhas vitórias, mesmo as que ainda estão por vir.
Universidade Federal do Piauí
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Os passos de um homem bom são confirmados pelo
senhor e ele deleita no seu caminho (salmo 37.23)
Jeane Maria da Silva *
Para falar de minha vida é necessário viajar no tempo, até 1982, no Povoado Gameleira,
município de Timon-MA. Ali começa minha família, minha história. Meus pais, Carlos
Alberto e Maria Francisca, casaram-se e, quando ainda estavam curtindo a vida a dois,
surgiu uma gravidez não planejada. Para meu pai, só importava se fosse menino. Passaramse os dias, e, quando enfim chegou a primavera, no dia 30 de setembro, na Maternidade São
José, nasceu uma flor. Claro que sou eu. Jeane Maria da Silva. Fui recebida com muito amor
e logo cativei meu pai. Minha mãe diz que eu era um chamego com ele. Meu reinado,
porém, durou apenas quatro anos, período de minha amamentação. Mamãe comenta que eu
expulsava as pessoas que estavam na nossa sala para que ela pudesse sentar-se e me aleitar.
Minha família começou a crescer. Primeiro veio meu irmão Francisco Carlos, e, em
seguida, Carlos Júnior. Francisco nasceu com problemas cardíacos. Minha mãe tinha que se
deslocar sempre para a cidade para tratá-lo. Enquanto isso, meu pai trabalhava na roça.
Infelizmente tanto cuidado não possibilitou a continuação de sua vida. Com apenas um
ano e dez meses, Francisco foi morar com Deus.
Oito meses se passaram. Eu completei cinco anos. Em uma triste madrugada, meu pai
nos deixou. Aquela noite ficou gravada na minha memória. Vi meu pai se debatendo e corri
para ajudá-lo. Minha mãe pediu que eu segurasse uma vela na mão dele. Foi aí que percebi
que ele estava morrendo em meus braços, deixando saudades e um vazio em nossos corações.
Por mais que eu soubesse o que estava acontecendo, não conseguia entender. Tentamos nos
levantar e nos acostumar com a ausência e a dor da perda de dois membros da família.
Minha mãe matriculou-me em uma escolinha do povoado, e assim teve início a
minha vida escolar. Tempos depois, ela me tirou de lá e começou a me ensinar em casa,
juntamente com dois primos. Minha mãe passou a ser mãe, pai, professora, e a trabalhar
na roça para nos manter.
Certo dia meu tio a convidou para morar em São Paulo, arranjar um trabalho e melhorar
de vida. Para tanto, ela teria que deixar os filhos. Só faltava essa. A morte nos tirou nosso pai
e agora queriam nos separar de mamãe. Ela não aceitou e resolveu mudar-se para Timon. Ali,
ela lavava roupas nas casas de outras pessoas para ajudar no orçamento, pois não tinha
ajuda de ninguém para pagar o aluguel da casa. Como havia sido ensinada por minha mãe
e já tinha oito anos, não freqüentei o Ensino Infantil, e fui matriculada na 1ª série do
Colégio Maria do Carmo Viana Neiva. Comecei bem e tirei boas notas.
*
Graduanda em Artes Plásticas pela UFPI.
54
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha mãe sempre me deixava e pegava na escola. Certo dia, saí com minha prima
para conhecer sua casa e não avisei. Minha mãe chegou ao colégio e eu não estava. Perguntou
a todos até descobrir meu paradeiro. Quando ela, furiosa, chegou à casa de minha tia, eu não
mais estava. Minha tia pediu que ela não me batesse. Em casa ela me olhou bem nos olhos
e disse para eu não fazer mais aquilo.
Os quatro anos em que estudei no Colégio Maria do Carmo foram anos mágicos.
Minha mãe acertou mais uma vez. Eu me sentia muito feliz. Lá, fiz amizades que até hoje
permanecem. Com os professores tive uma boa relação. Entre eles cito a professora Antina,
que muito me incentivou e que ficará para sempre em meu coração.
Meu tio pediu para minha mãe ir morar em sua casa enquanto ele se organizava para
retornar. Ficamos lá um tempo, até quando ele chegou. À época, graças a minha mãe que
dormiu na porta da escola, consegui ingressar na Unidade Integrada Higino Cunha e cursei
o Ensino Fundamental da 5ª a 8ª séries. Comecei a tirar notas baixas. Fiquei surpresa comigo
mesma, pois estava acostumada a tirar sempre nove ou dez. A Matemática, que antes eu
dominava, estava ficando complicada. Cheguei a 6ª série muito desmotivada, mas fui
despertando para as disciplinas de História, Geografia e Português.
Naquele tempo, em Timon, só havia uma escola de Ensino Médio. Conseguir vaga foi
outro sacrifício. No primeiro ano, enfrentei dificuldades ao me deparar com a Física, Química,
Matemática e Biologia. Quando cheguei ao 3º ano, eu não sabia o que era vestibular. Fui
aprender com meus primos que tinham sido aprovados. A cada dia, eu tinha novidades
sobre a vida universitária.
Fiz minha inscrição para garantir a inserção na UFPI. Não foi nada fácil. Só consegui
depois de três tentativas. Fui em um dia e, na minha vez, a senha acabou. Fui em outro e a
senha acabou novamente, na minha vez. Passei a estudar pela manhã na escola, e à tarde no
cursinho popular da Prefeitura de Timon, em seu primeiro ano de funcionamento. E assim
fui levando a vida.
Não fui feliz em meu primeiro vestibular para Ciências Sociais, mas não desisti.
Continuei freqüentando o Cursinho à noite e estudando em casa, já que tinha terminado a
escola. Para ajudar a família, eu trabalhava como camelô no Calçadão da rua Simplício
Mendes, em Teresina, e dava aulas de reforço escolar. Foi aí que surgiu uma nova oportunidade
de entrar para a Universidade. Eles estavam fazendo inscrições para isenção da taxa do
vestibular. Desta vez fui uma das primeiras e optei por Educação Artística.
O resultado do vestibular foi adiado duas vezes. Senti um certo alívio, pois estava
muito insegura. Fui trabalhar normalmente e, por volta do meio-dia, minha prima e uma
amiga apareceram no meu trabalho e começaram a gritar bem alto: - PASSOU! PASSOU! Eu
fiquei assustada, e elas continuaram a gritar. Eu não estava acreditando. Minha prima então
abriu o jornal e lá estava meu nome. Comecei a chorar sem parar. Apesar dos obstáculos eu
tinha conseguido entrar na Universidade. Imediatamente liguei para minha mãe. Ela já
sabia. Foi uma grande festa.
Estamos em 2006 e eu sigo fazendo meu Curso de Educação Artística na Universidade
Federal do Piauí-UFPI. Muitos pensam que é um curso fácil de concluir. Estão redondamente
enganados. Falam por preconceito, ignorância ou ingenuidade. A arte está em tudo o que
fazemos. Por ser um curso caro, inscrevi-me no Programa "Bolsa Trabalho", que ajuda
estudantes de origem popular a manterem-se na Universidade. Trabalhei por dois anos na
Biblioteca Central da UFPI onde muito aprendi e me fortaleci.
Universidade Federal do Piauí
55
Logo que o Programa "Bolsa Trabalho" acabou, fiquei aguardando o resultado da
entrevista que havia feito para ser bolsista do Programa "Conexões de Saberes". Fui até lá,
mas meu nome não constava da lista. Fiquei esperando. Eu sabia que Deus não ia me faltar.
Informaram-me que a Professora Edileusa, uma das coordenadoras, estava a minha procura.
Liguei para ela, que me perguntou se eu ainda tinha interesse em participar do Programa.
Não pensei duas vezes e disse: SIM.
Hoje sou apaixonada pelo Programa. Aprendi a ter mais amor por todos e estou
muito feliz em poder ajudar outras pessoas. Conscientizá-las de que elas também podem
entrar em uma Universidade. Minha vontade é permanecer aqui para sempre, pois este
maravilhoso projeto, além do seu lado solidário, tem me ajudado a refletir sobre a minha
vida e a dos meus semelhantes.
Em novembro de 2006, fui, juntamente com os conexistas do Piauí, participar do II
Seminário de Estudantes de Origem Popular, no Rio de Janeiro. O encontro serviu para discutir
sobre as ações que precisam ser implantadas dentro da Universidade, a fim de ajudar jovens,
como eu, a manterem-se com qualidade na Universidade. Conhecer o Rio de Janeiro foi
inesquecível. Acho que cresci material e espiritualmente, pois é uma cidade mágica.
Finalizo agradecendo a Deus, a meu saudoso pai, a minha querida mãe, a meus irmãos,
meus avós que tanto torcem por mim, aos coordenadores do Conexões, aos colegas conexistas
e a todos que fazem parte da minha vida.
56
Caminhadas de universitários de origem popular
Fragmentos de uma cartografia sentimental
João Santos Andrade *
Nasci na cidade de Floriano (PI) mais conhecida como "Princesinha do Sul". Quando
completei dois meses, meus pais, Nivaldo de Sousa Andrade e Francisca dos Santos Oliveira,
se separaram. Eu e minha mãe fomos morar na casa de meus avós maternos, em um povoado
chamado Recreio, que faz parte da pequena cidade de Angical, próxima de Amarante, terra
do famoso poeta piauiense Da Costa e Silva. Ali, juntamente com meu irmão Franklin, vivi
a minha infância. Tratava meus avós de pai e mãe. Pela manhã, ia para a escola e à tarde
trabalhava na roça com meu avô Raimundo. A vida no interior é muito difícil. Temos que
dar duro para conseguir o pão de cada dia. A primeira vez em que fui para a roça, por
inexperiência, cortei a mão do meu irmão; mas aos cinco anos trabalhava como um adulto.
A rotina do trabalho no campo é sempre a mesma, quer chova quer faça Sol. Porém, ao fim
do dia, havia sempre um gostoso joguinho de futebol; embora estivéssemos cansados,
funcionava como uma terapia anti-estresse.
Às vezes não tínhamos nada para comer, a não ser arroz branco. O jeito era pescar.
Eu, Franklin e alguns amigos, que estavam na mesma situação, íamos para o riacho das
Mangueiras. Lá escolhíamos um poço, que é a parte mais funda, mas que tem pouca
água, e fazíamos uma parede em volta dele, isolando a passagem da água. Em seguida
com umas latas tirávamos a água até encontrar os peixes que ficavam no fundo. Depois
dividíamos, igualitariamente.
Foi durante a minha infância que perdi minha querida avó. Ela sofria de câncer no
útero. À época, minha mãe conheceu um homem com quem vive até hoje, e com ele teve
duas filhas, minhas queridas irmãs: Vânia e Walquíria. Como eu e meu irmão estávamos
vivendo com mamãe e meu avô ficou viúvo, ele decidiu construir uma casa perto da nossa.
A faina diária continuava a mesma, mas com um agravante: eu tinha que acordar todos os
dias às quatro horas da manhã para ir buscar água no chafariz para as necessidades da casa.
Em seguida, por volta das seis horas, rumava para a roça e retornava às onze e meia, pois
tinha que ir à escola à tarde. Morar com minha mãe não mudou minha qualidade de vida.
Certa noite, quando estava dormindo, quando acordei e ouvi um choro. Era minha mãe. Ela
chorava porque naquele dia não havia comida em casa. Comecei a chorar também, mas de
raiva. Naquele momento, eu prometi a mim mesmo que aquela seria a última vez que
iríamos passar fome. Portanto este é o momento em que a emoção me leva ao passado e me
motiva para conseguir meus objetivos.
*
Graduando em Matemática pela UFPI.
Universidade Federal do Piauí
57
Todo mês de julho minha mãe levava a mim e a meu irmão Franklin para Floriano,
para visitar nosso pai, irmãs e avós paternos. Eu tinha um padrinho, que era como um pai,
e eu o estimava muito. Era o Padre João. Aí está a origem do meu nome. Infelizmente ele
faleceu prematuramente. Em uma dessas viagens, em 1995, Franklin e eu decidimos morar
com nosso pai. A mudança acarretou minha reprovação na terceira série do Ensino
Fundamental. Eu estava com 11 anos e bastante atrasado. O trabalho na roça tomava
muito do meu tempo. Às vezes eu perdia até uma semana de aula. Fiquei triste e sem
estímulo, mas logo lembrei de minha mãe e da promessa que eu havia feito. Em 1996, meu
pai me matriculou na Escola Santa Teresinha, onde cursei a terceira e quarta séries. Neste
mesmo ano, ele decidiu candidatar-se a vereador na cidade maranhense de Barão do
Grajaú, que fica separada de Floriano pelo rio Parnaíba. Eu logo fui contra. Resultado: ele
perdeu a eleição e ainda contraiu uma dívida de mais ou menos vinte mil reais. A saída foi
vender a casa. Tudo parecia uma loucura, mas era a única opção. A casa foi vendida, mas
o valor só deu para cobrir uma parte da dívida. Para completar, meu pai vendeu um terreno
no interior do Maranhão. Sem casa, tivemos que procurar uma para alugar. Mudamo-nos
de Floriano para Barão do Grajaú, no início de 1998. Passei a estudar no Colégio Imparcial,
onde conheci grandes amigos e completei o Ensino Fundamental. Eu estudava à tarde e,
pela manhã, ajudava meu pai. Ele vendia mandioca, que servia para alimentar o gado. O
transporte era feito em um velho caminhão que ele tinha. Era esse o nosso ganha pão. Em
2001, eu estava finalizando o Ensino Fundamental e me preparando para o teste
classificatório do Ensino Médio no CEFET de Floriano. Fui aprovado em sexto lugar e
também na oitava série.
Iniciei o Ensino Médio em 2002, e, apesar das dificuldades, falta de dinheiro para o
transporte (muitas vezes fui a pé) entre outras, consegui passar. Matemática e Física foram as
matérias nas quais me sobressaí. Sempre fui bom nos cálculos. Neste mesmo ano, fiz a
primeira etapa do Programa Seriado de Ingresso na Universidade (PSIU - UFPI). Obtive um
total de 41 pontos e fiquei feliz. Em 2003, iniciei o segundo ano do ensino Médio e
consegui uma bolsa para trabalhar na cantina da escola. Foi uma experiência muito positiva,
além de conhecer muitas pessoas. Também passei a ministrar aulas de Matemática para 18
alunos da turma de reforço no Colégio Imparcial e tive um aluno particular. Assim fui me
mantendo e custeando meus estudos. Eu tinha que pagar minha passagem de ônibus para o
colégio, pois meu pai havia vendido seu velho caminhão, sua única fonte de renda, e estava
passando dificuldades. Meu pai tinha apenas o Ensino Básico, o que lhe dificultava conseguir
um emprego. Concluí o segundo ano e fiz a segunda etapa do PSIU. Desta vez não me saí
bem e obtive apenas 24 pontos. Mesmo assim não desanimei. Eu sabia que seria aprovado
no vestibular para Engenharia Civil.
Em 2004, continuei com a bolsa na cantina e as aulas de Matemática. Concluí o
Ensino Médio e realizei a terceira etapa do PSIU. É o momento de escolher sua área. Como
minha pontuação estava baixa para Engenharia Civil, optei por Matemática.
Concomitantemente fiz minha inscrição na Universidade Estadual do Piauí-UESPI para
Ciências Contábeis. Na UESPI, o vestibular é, teoricamente, mais fácil, pois é específico.
Fiz uma boa prova e saí muito contente. Já na Universidade Federal do Piauí-UFPI, quando
terminei a prova, estava triste. Eu havia feito uma boa redação, uma ótima prova específica,
mas, mais uma vez, minhas notas no PSIU não foram boas. A saída foi fazer o teste do CEFET
para Técnico em Eletromecânica.
58
Caminhadas de universitários de origem popular
No início de 2005, terminada minha "Bolsa Trabalho", fui passar minhas férias lá no
Recreio. Fazia tempo não via minha querida mãe. Certo dia, voltando do futebol, minha
mãe me disse que meu pai havia ligado várias vezes. Lembrei que era tempo do resultado do
vestibular da UFPI. Liguei para ele, mas quem atendeu foi dona Laise, sua esposa atual. Ela
me informou que ele tinha uma notícia para mim, mas só ele poderia dar. Isto me deixou
muito ansioso. Liguei para meu amigo Hudson que me deu a boa notícia. Eu havia sido
aprovado para Matemática em 15º lugar. Aí explodi de emoção. Liguei "para o velho" que
estava mais feliz que eu.
Na manhã seguinte, voltei para Floriano e, dias depois, recebi o resultado positivo do
vestibular da UESPI. Para completar a alegria, fui aprovado também no CEFET. Logicamente
fiquei com a Matemática na UFPI.
Meu destino agora era Teresina. Passei quinze dias na companhia de minha irmã
Liana, que estava fazendo pré-vestibular, custeada por uma tia, já que papai não tinha
condições de pagar. Inscrevi-me na Residência Universitária e, enquanto aguardava o
resultado, morei no Bairro Renascença, na casa de um amigo do cunhado de meu pai.
Fiquei lá cerca de um mês até que no dia 18 de maio de 2005, mudei-me para a Residência
Universitária. Ali conheci gente como eu. Todos de origem popular. Entre eles a minha
princesa Elcilene, de quem gosto muito. Ela é muito especial para mim e está sempre
pronta a me ajudar.
Atualmente faço parte do Programa "Conexões de Saberes" e estou ajudando pessoas
que têm a mesma origem que eu.
Minha história vai seguindo e pretendo vivenciar a experiência de fazer Pós-Graduação
em Álgebra, parte da Matemática que mais me atrai.
Universidade Federal do Piauí
59
A saga do filho de um vaqueiro e de uma
Quebradeira de coco
João Silvestre da Silva Neto *
Meus pais
Vou começar a minha história contando um pouco sobre meus pais. Meu pai,
José Geraldo da Silva, é pernambucano, e foi para o Maranhão com 18 anos, juntamente
com meus avós e tios, no dia 25 de novembro de 1975. Eles foram trabalhar na fazenda
de um primo, na cidade de Paraibano. Meu pai conta que meu avô vendeu tudo o que
tinha em Pernambuco e embarcou com a família em um caminhão pau-de-arara. Ao
chegar à Fazenda Pé-de-Serra, habitada por umas setenta famílias, eles se tornaram a
atração do lugar. Ele conta que à noite, famintos e sedentos, acharam um saco com
mangas-rosas, e aquela foi a primeira refeição naquele lugar onde meu pai ia viver
grandes histórias e encontrar seu grande amor, minha mãe, Eliene Alencar da Silva,
que morava no interior, em um povoado chamado Esfregador, perto da fazenda. Ela
vivia com meus avós maternos e seus irmãos, e trabalhava quebrando coco babaçu
com seu machado. Como fazia todos os dias, ela foi vender coco babaçu e viu meu tio
Gilson brincando de pular corda. Ela não resistiu e foi brincar também. Na hora em
que ela estava rodando a corda, botou tanta força que a corda bateu nos lábios dele,
que começaram a sangrar. Ela chorou e saiu correndo, com medo que meu avô, João,
brigasse com ela.
Tempos depois, meus pais começaram a namorar e minha mãe foi morar com seus
padrinhos em Paraibano. Ela conta que um dia recebeu uma carta de meu pai cujo conteúdo
é um segredo guardado a sete chaves. O fato é que no ano de 1981 eles se casaram. Meu pai
com 24 e minha mãe com 17 anos. Foi uma grande festa, cheia de parentes vindos de todos
os lugares. Mamãe conta que no outro dia, depois da lua-de-mel, ao acordar ela foi pentear
o cabelo e, como tinha esquecido de levar o pente, usou um garfo. Nove meses depois,
nasceu o primeiro filho do casal, no dia 8 de novembro de 1981, José Geraldo da Silva
Filho, o Zezim. Ele nasceu com um problema de saúde e, por isso, minha mãe esperou
quatro anos para ter outro filho, por temer que o próximo nascesse com o mesmo problema.
No dia 14 de junho de 1985, eu, João Silvestre da Silva Neto, o herói da história, nasci,
mas só fui registrado no dia 14 de julho. Meu nome foi uma homenagem ao meu avô, João,
que foi me visitar no hospital e disse que eu me parecia demais com ele. Eu, logicamente,
fico muito feliz com isso.
*
Graduando em Engenharia Agronômica pela UFPI.
60
Caminhadas de universitários de origem popular
No ano seguinte, no dia 29 de dezembro de 1986, nasceu minha irmã, Eliane Amélia
da Silva, completando os filhos legítimos do casal. Anos depois, eles adotaram outros
filhos. Estava formada a minha família.
Infância
Fui criado, até os cinco anos, na Fazenda Pé-de-Serra, onde meu pai era vaqueiro. Fui
criado com todo o carinho que uma criança merece. Meu quarto era cheio de brinquedos,
mas minha mãe não me deixava brincar, pois tinha medo que os quebrasse.
Eu era o oposto do meu irmão. Enquanto ele gostava de jogar bola, andar a cavalo,
ficar no curral, no meio dos animais, eu preferia ficar em casa assistindo à televisão. Eu
também gostava de ir para a casa de minha avó, Teresinha. Isto não quer dizer que eu não
gostasse da vida na fazenda, eu apenas tinha outras preferências.
No ano de 1990 ou 1991, não lembro bem, meus pais foram morar em Graça Aranha,
pois o dono da fazenda onde meu pai trabalhava havia comprado outra propriedade e
convidou meu pai para trabalhar lá. Na época da mudança, já vivíamos em Paraibano, e meu
pai trabalhava como vendedor e comprador de animais, profissão muito comum na cidade.
Papai passava vários dias viajando, vendendo e comprando gado, enquanto eu ficava em
casa com minha mãe e minha irmã. Meu irmão morava com nossa avó, na fazenda. Foram
anos muito felizes. Lembro-me de ter passado momentos maravilhosos. Meu tio, irmão de
minha mãe, morava conosco e vendia salada de frutas na rua. Na hora de preparar a salada,
era uma farra. Também havia a Helena, nossa vizinha de frente. Ela sempre nos convidava
para brincar na casa dela. Às vezes passávamos o dia inteiro brincando, lá, juntamente com
umas primas. Um dia minha mãe fez um doce de leite e deixou a panela para eu raspar o
fundo. Minhas primas não me deixaram comer, e eu, com raiva delas, quebrei a torneira da
casa alheia. Minha mãe me deu uma surra.
Em Graça-Aranha, tudo era novidade. Eu não conhecia ninguém. Fomos morar em
uma fazenda que ficava a três quilômetros da cidade. Lembro-me que chegamos ao final de
tarde, quase escurecendo. Minha primeira impressão foi positiva. Havia uma casa enorme,
outras duas menores, um galpão e um curral na frente. No dia seguinte, fui conhecer a
fazenda onde passaria longos anos da minha vida.
Começamos a estudar na cidade e, como éramos pequenos, íamos para a escola
com o Adão, que trabalhava na fazenda ajudando meu pai. Todos os dias ele nos deixava
e buscava em sua bicicleta. Quando fomos crescendo, passamos a viajar no carro do Seu
Ciço, um transporte de linha que passava pela manhã para pegar as pessoas do interior,
e voltava ao meio-dia. À época, tínhamos a companhia de uma tia pequena, que foi
morar conosco e estudava na mesma escola. Muitas vezes, quando saíamos da aula, o
carro já tinha ido embora e a gente voltava a pé ou na moto do Seu Fracalino, o homem
da SUCAM, morador da vizinhança. Imaginem quatro pessoas em uma motocicleta.
Uma vez saímos mais cedo da aula e resolvemos voltar a pé. Eu, minha tia e minha irmã.
Como já estávamos cansados, resolvemos pegar um jumento que estava pastando. Foi
uma luta pegar o animal, mas acabamos conseguindo. No momento em que montei no
jumento, ele saiu em disparada e eu levei uma queda. Enquanto eu chorava de dor,
minha tia e minha irmã riam de mim. Por sorte, passou uma camionete D20, cabine
dupla, e nos deu carona. Mal andamos alguns quilômetros, o motorista nos avisou para
não ter medo, pois ele estava transportando um defunto na carroceria. Minha tia morria
Universidade Federal do Piauí
61
de medo de gente morta e começou a chorar junto comigo. Ela de medo e eu de dor na
perna. Para completar o quadro, à medida que o carro andava as pessoas perguntavam se
o morto era nosso parente.
Lembro-me, como se fosse hoje, do meu primeiro dia na escola. Cheguei todo tímido.
Os meus futuros colegas brincavam, conversavam e eu, ali, quieto, sentado no meu canto.
A minha primeira professora foi a tia Maria, na Pré-Escola Saci Pererê. Ela me ensinou
a ler e escrever. No princípio, eu era como manteiga derretida. Ninguém podia tocar em mim
que eu chorava, mas com o passar do tempo fui-me enturmando e, até hoje, sou amigo de
Maria Luiza, Nareline, Willane, Ezilda, Kelliane, Fabio e muitos outros. Duas pessoas
marcaram meus primeiros anos em Graça Aranha. A primeira foi uma menina pela qual me
apaixonei. Nós estudamos juntos da pré-escola até a quarta série, mas eu nunca tive coragem
de me declarar. Com o término da quarta série, ela foi embora e perdermos contato. Anos
depois eu a vi algumas vezes, mas a coragem não veio. A outra pessoa foi minha professora
da primeira série. Ela era muito boa, me ensinou muita coisa e muito compreensiva.
Meu ensino na cidade de Graça Aranha foi muito proveitoso. Vivi momentos
maravilhosos e convivi com uma turma muito unida que adorava fazer peças de teatro, eu
escrevia o texto e ensaiava o pessoal e sempre tirava dez nas apresentações.
Quando fui fazer a quinta série, tive que estudar à tarde. Eu ia de bicicleta, juntamente
com minha irmã e a Ritinha, irmã de um tratorista da fazenda. Saíamos de casa ao meio-dia
e voltávamos às cinco ou seis da tarde. Uma vez eu fui sozinho e dois meninos me jogaram
uma manga podre. Eu fiquei todo sujo, mas fui para a escola assim mesmo, pois tinha prova.
A sétima série foi feita à noite. O trajeto era feito em uma camionete D20 que levava os
alunos do interior para a cidade. Era um monte de gente, uma folia e tanto. Nesse tempo,
conheci minhas amigas Vandeca e Mauricéia. Eu pegava o carro às cinco horas da tarde e
chegava em casa onze ou doze horas da noite, às vezes, até uma da manhã, pois o motorista
ia namorar e esquecia a gente na praça. Várias vezes fomos ao cabaré, chamá-lo, e ele estava
lá, bebendo com as mulheres. Também não sei dizer quantas vezes ele nos transportou
completamente embriagado. Às sextas-feiras era comum matarmos aulas para ir à boate. Certa
noite, eu esqueci da hora e o carro foi embora com os outros alunos. Tive que ir debaixo de
chuva, pedalando uma bicicleta emprestada que furou o pneu no meio do caminho.
Em Graça Aranha, duas pessoas marcaram minha vida: Sueli e Juce, duas irmãs
professoras com histórias de vida exemplares e que sempre me disseram que eu jamais seria
alguém se não estudasse.
Terminei a oitava série e, com muita alegria, fui morar na casa de minha avó, na cidade
de Paraibano, minha paixão.
Minhas férias quando criança
Uma coisa era sagrada para mim. Passar as férias em Paraibano. A casa de vovó ficava
cheia de netos. Nós acordávamos cedo e íamos para o curral ver meu avô tirar o leite das
vacas. Depois tomávamos um café caprichado e saíamos a brincar. Eu adorava brincar de
cavalo-de-pau. Nós passávamos o dia nos divertindo, e muitas vezes nem lembrávamos de
comer. No final da tarde, nos juntávamos com os filhos dos moradores da região, e jogávamos
bola até a noitinha. Depois íamos tomar banho no olho d'água que ficava perto da casa de
minha avó. No sábado, vovô nos levava para ver a feira na cidade. Saíamos pela manhã e
voltávamos à tarde.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Família
A minha família é a melhor do mundo. Não tenho nem palavras para expressar meus
sentimentos e fico sempre emocionado quando falo sobre ela. Agradeço a Deus por ter me
dado uma família tão maravilhosa. Amo a todos eles, sem distinção.
Graça-Aranha
Mudei-me para essa cidade quando tinha seis anos e morei lá até 2000, lá vivi
momentos felizes e tristes. Na verdade, eu não gostava de morar lá, mas sim de passar
férias e passear. Eu gostava mesmo era da fazenda de meus avós. Quando fomos morar
em Graça Aranha, toda Semana Santa nós hospedávamos o dono da fazenda, sua mulher
e um monte de gente. A mulher era uma cobra em forma de gente. Minha mãe trabalhava
como uma louca, fazendo comida, lavando louça; e eu e minha irmã não podíamos
sequer ir a cozinha beber água. Comer? Só quando eles terminavam. No final ela ainda
saía falando mal da gente.
Paraibano
Em 2001 fui morar em Paraibano para cursar o Ensino Médio, inexistente em Graça
Aranha. Fiz a inscrição e passei a freqüentar as Tele-aulas. Conheci grandes amigos e me
recordo que todos os domingos havia banho na barragem. Foi também em Paraibano que
comecei a trabalhar com minha tia, matando e vendendo frango. Eu acordava às cinco horas
da manhã e começava a matar frangos. Às seis horas eu ia ao interior buscar leite em uma
moto velha. Essa minha labuta durou um ano e meio.
Em 2001, aconteceu uma tragédia que abalou toda a família. A morte do meu tio
Antonio, encontrado morto em Floriano. Foi um desespero, pois uma semana antes ele veio
visitar os pais, as irmãs e os sobrinhos. Foi uma despedida. Este fato me marcou muito, pois
eu era muito ligado a ele.
Em Paraibano conheci pessoas que guardo até hoje no meu coração: Valéria, Aquinélia,
Liliane, Paulo. Quando viajo para lá tenho que encontrá-los.
No ano de 2002, mais precisamente em junho, terminei o Ensino Médio pela Telesala. Eu sempre sonhei em me formar, ser médico. Para tanto, eu tinha que estudar fora.
Comecei a fazer planos e pedi ajuda às minhas tias a fim de convencer meus pais. Neste ano
também vivi um momento inesquecível. No dia do meu aniversário, minhas tias e meus
amigos me fizeram uma festa de surpresa. Este era um sonho acalentado há muito tempo,
pois eu nunca tive festa de aniversário. Aí também foi uma despedida, já que dias depois
viajei para Teresina.
Em Paraibano tem um evento que sempre marcou a minha vida, a Vaquejada, um
rodeio em que meu avô João foi pioneiro na região. Ele promoveu a primeira vaquejada
de Paraibano, que hoje está na vigésima primeira edição e é uma das atrações turísticas
da cidade.
Teresina
Cheguei a Teresina no dia 4 de agosto de 2002, e fui morar com uma amiga de minha
mãe e seu filho. Passei a estudar à tarde no CPE. Nos primeiros dias eu andava com medo,
pois tudo era novo e eu tinha medo de me perder nas ruas. Saía de casa ao meio-dia, ia para
a escola e retornava às oito horas da noite. Depois do banho ia conversar com os vizinhos.
Universidade Federal do Piauí
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Tudo estava indo bem, na casa onde eu morava, até que um dia a dona da casa viajou
e me deixou, sozinho, com seu filho. Em uma noite em que cheguei mais tarde o menino não
quis abrir a porta, e eu tive que dormir na casa do vizinho. Nunca contei esta história a
ninguém, nem mesmo a minha mãe, mas eu agradeço àquela senhora por ter me aceito em
sua casa, caso contrário eu nunca teria vindo para a capital.
Minhas tias sempre ligavam e me incentivavam. Uma vez elas mandaram uma caixa
com biscoitos, doces e uma quantia em dinheiro.
Prestei o vestibular para Nutrição na UFPI e História na UESPI. Levei bomba em
ambas. Fiquei muito triste, mas é preciso entender que há uma grande diferença
entre o ensino praticado no Interior e o da Capital, além do mais eu só estudei durante
seis meses.
Em 2003, fui morar em outra casa com minha irmã e um casal de irmãos, Jorge e
Josélia, filhos de uns amigos de meus pais que tinham uma casa aqui em Teresina. A casa
ficava no Parque Piauí, e eu comecei a fazer um cursinho pré-vestibular em uma escola do
bairro. Foram tempos difíceis. Muitas vezes só tínhamos arroz branco para comer. Nossa
mãe não podia nos ajudar e minha irmã se punha a chorar. Nessas horas meu vizinho, seu
Valmir, nos trazia um ovo para misturar ao arroz. Fomos levando, aos trancos e barrancos.
Comecei a estudar duro, sem hora para parar, dia e noite, sábados e domingos. Eu estava
determinado a passar no vestibular. No fim do ano prestei vestibular para Agronomia na
UFPI e Química na UESPI.
No dia do resultado eu estava no centro da cidade, quando as emissoras de rádio
começaram a divulgação dos aprovados. Peguei um ônibus para casa cujo motorista
era uma lesma e, impaciente, comecei a brigar com ele, e nada de ele acelerar. Desci do
coletivo e comecei a correr para casa, mas entrei na casa do vizinho. Quando chegou
a vez do resultado Agronomia eu só ouvia o nome dos outros. O meu nada. Comecei a
me desesperar, até que chegou a minha vez. Eu havia sido aprovado para o segundo
período de Agronomia na Universidade Federal do Piauí. Dei um pulo e um grito tão
grande que desmaiei. Quando acordei eu estava deitado na cama com a cabeça
completamente raspada. Corri para o telefone para avisar meus pais e minhas tias. Foi
uma alegria muito grande para todos nós. Houve festas em Graça Aranha e Paraibano.
Quando lá cheguei todos os meus amigos vieram me dar os parabéns, pois eu era o
único filho das duas cidades, um rapaz de origem popular que, com raça e
determinação, havia passado em uma universidade federal. Meus primos, tios e avós
passaram a me chamar de doutor.
Um dia antes do início das aulas fui à Universidade conhecer minha sala de aula.
Depois comprei um caderno de vinte matérias, quatro canetas de cores diferentes e
passei a noite em claro, sem conseguir dormir, cheio de ansiedade. No dia seguinte, a
frustração. A Universidade entrou em greve e as aulas só foram iniciadas no dia 22 de
setembro de 2004.
No ano passado, uma tragédia atingiu minha família. O dono da fazenda onde
meu pai trabalhava começou a ameaçá-lo dizendo que ia matá-lo. Ele não teve outra
saída senão ir embora. Para nosso desespero, ele ficou desaparecido durante seis meses,
sem dar nenhuma notícia. Minha mãe também recebeu ameaças e eu tive que viajar
para lhe dar proteção. Ainda bem que a UFPI estava em greve e eu não fui prejudicado
nos meus estudos.
64
Caminhadas de universitários de origem popular
No fim do ano, novo dissabor. A mãe de um dos meninos com os quais morávamos
colocou minha irmã para fora de casa. Ficamos sem lugar para morar até que um amigo, o
Júnior, a quem muito agradeço, convidou-me para morar com ele e lá estou até hoje.
Em abril, fiz minha inscrição no "Conexões de Saberes" e fui selecionado com uma
bolsa. Atualmente estou feliz por participar de um programa tão importante e espero que
minha história de vida sirva para incentivar pessoas a nunca desistir de seus sonhos.
Dedicatória
Dedico minha história primeiramente aos meus familiares, que sempre me deram força
para estudar e me formar. Eu sei que quando isto acontecer será o dia mais feliz de suas
vidas. Dedico também aos meus amigos de Paraibano e Graça Aranha, que, mais que amigos,
são meus irmãos. Aos amigos da Universidade Federal do Piauí com quem convivo a maior
parte do ano e com quem tenho vivido situações inesquecíveis.
Universidade Federal do Piauí
65
As reminiscências de Joselene
Joselene Oliveira *
Falar sobre minha história de vida é um pouco difícil. Sou uma pessoa muito reservada
e tímida. Foi uma surpresa quando fiquei sabendo que cada um de nós, integrantes do
Programa "Conexões de Saberes", tínhamos que escrever sobre nossas vidas, mas já me
acostumei com a idéia.
Não poderia falar sobre minha vida sem falar em meus pais. Minha mãe, Luiza Olindina,
nasceu nas proximidades da cidade de São João do Piauí, mais precisamente no interior.
Meu pai, Aderson Oliveira, em outro lugarejo vizinho. Minha mãe dizia que não queria
casar-se com ele, mas queria sair do interior e ir para a cidade, porque não gostava de
trabalhar na roça. Queria mudar o estilo de vida, por isso resolveu casar-se. Aqui entre nós,
acho que ela gostava dele sim, mas nunca quis dar o braço a torcer. Após o casamento eles
moraram um tempo em São João do Piauí e logo depois decidiram mudar para São Paulo. Lá
nasceram meus irmãos. Gilmar, o mais velho; Jaime, que infelizmente morreu com menos de
um mês de vida; minha irmã, Joselita; e depois meu irmão Nelson. Após alguns anos,
retornaram todos ao Piauí. A fim de evitar mais filhos, minha mãe queria fazer laqueadura.
Tudo ia muito bem até que um dia minha mãe descobriu que estava grávida mais uma vez.
Adivinhem quem era? Isso mesmo, eu, Joselene, nascida de uma gravidez não planejada.
Pois é, nasci e aqui estou na luta de sempre.
Minha infância foi em São João do Piauí. Bons tempos aqueles. Em frente à nossa casa
morava Dona Dejesus, a lavadeira. Eu ficava o tempo todo na casa dela, e adorava sair com
ela para entregar as roupas nas casas de seus fregueses. Onde ela ia, lá estava eu. Quem não
gostava disso era meu pai, pois sempre foi muito ciumento. Outra grande amiga chamavase Bebela. Infelizmente morreu muito cedo, coisa de criança. Imaginem que um dia ela me
convidou para brincar em uma casa abandonada. Minha irmã não deixou. Sorte a minha,
pois a casa desabou e Bebela faleceu.
Estudei o Jardim da Infância em São João Piauí, lá residi até completar sete anos. Ali
também cursei a primeira série do Primário. Nessa fase, sofri muito com a separação de meus
pais. Eles estavam brigando muito e resolveram se separar. Meu pai casou-se novamente
com outra mulher, e continua morando em São João do Piauí, antes de se casar foi para São
Paulo para trabalhar para pagar uma dívida que tinha no banco, ele passou a mandar um
pouco de dinheiro para nós, mas mal dava para as contas, pois éramos cinco pessoas. Minha
mãe também trabalhava para ajudar nas despesas, como empregada doméstica em várias
*
Graduanda em Enfermagem pela UFPI.
66
Caminhadas de universitários de origem popular
casas. Por sorte, meu avô materno morava em uma região próxima e mandava alguns
mantimentos. Era a nossa salvação. Não tínhamos televisão. Lembro-me que ia assistir na
casa de uma vizinha. Parece bobagem, mas qual criança não gosta de ver programas e
desenhos animados?
Eu e meus irmãos estudávamos todos em escolas públicas. Gilmar, o mais velho, era
muito estudioso. Meus pais conseguiram para ele uma bolsa de estudos em Teresina. Ele se
mudou e estudou durante um ano. Infelizmente meus pais não puderam mais sustentá-lo e
ele perdeu a bolsa. Desanimado, resolveu ir tentar a vida em São Paulo, no que foi seguido
por minha irmã, Joselita. Preocupada com os filhos, minha mãe acabou indo embora também
para São Paulo. Eu e meu irmão menor ficamos na casa de nossos avós. A vida em São Paulo
estava muito difícil. Minha mãe e meus irmãos ganhavam pouco e ainda tinham que pagar
aluguel. Mesmo com dificuldades, mamãe mandou nos buscar, pois sentia nossa falta e nós
não estávamos estudando.
Cheguei em São Paulo com nove anos de idade. Minha mãe alugou uma casa com um
quarto, uma sala e uma cozinha. Tudo muito pequeno. Dormíamos todos em beliche para
poder nos caber. O quintal da casa era comum para várias outras residências. O proprietário
morava na casa em frente à nossa. No corredor residia uma senhora e sua filha. Dona Hilda
tornou-se uma grande amiga. Nesse tempo minha mãe matriculou-me na primeira série.
Tive que começar tudo de novo, pois meus estudos no Piauí foram interrompidos com a
viagem de minha mãe. No começo eu tinha vergonha por ser a maior e a mais velha da
classe, mas, com o tempo, deixei essas bobagens de lado e esforcei-me com ajuda de minha
família para recuperar o atraso. Meu irmão mais novo também estudava na mesma escola.
Minha mãe e meu irmão juntaram suas economias e conseguiram comprar um terreno em um
bairro popular. Ali construímos uma casa de três cômodos e um banheiro. Tudo feito com
muito sacrifício e em várias parcelas. Minha irmã, que trabalhava em um supermercado,
gastava quase todo seu salário com as compras de alimentos, higiene pessoal e material de
limpeza. Enfim saímos do aluguel. Lembro até hoje o dia da mudança. Quando chegamos a
casa, havia faltado energia. Fizemos um lanche com pães e refrigerante. Em seguida,
colocamos os colchões no chão e dormimos. Nos dias que se seguiram, tratamos de arrumar
a casa. Ficamos vários meses sem vidros nas janelas e nas portas; e, no lugar do vidro,
papelão. Eu e minha irmã detestávamos aquele lugar. As coisas eram lavadas em um tanque
que havia no corredor. Na nossa rua não havia água encanada. Um motor puxava água de
um poço na vizinhança e abastecia uma caixa d'água que ficava perto de nossa casa. Dois
anos depois, finalmente tivemos água encanada.
Minha mãe me matriculou na segunda série do primário em uma outra escola estadual
que ficava perto da nova casa. Como toda escola pública, o ensino era muito fraco. Meu
irmão também estudava lá. Nesse bairro e na mesma escola concluí meu curso primário.
Mamãe então me matriculou em uma escola de datilografia. No início, detestei. Depois fui
vendo que era uma boa. Como me destaquei na digitação, consegui matricular-me em uma
ONG que estava oferecendo cursos de auxiliar de Administração e técnico em Informática.
O curso tinha uma carga horária pequena e duração de seis meses. Com quinze anos de
idade, comecei a trabalhar e a ajudar nas despesas da casa. Eu trabalhava na mesma empresa
onde minha mãe era faxineira e minha irmã costureira. Minha função era de ajudante de
costureira. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Até então não sabia que profissão
seguir. Foi quando arranjei um trabalho de recepcionista em uma clínica médica. O trabalho
Universidade Federal do Piauí
67
dos médicos despertou em mim o interesse pela área de Saúde. Eu estava dividida entre
Fisioterapia e Enfermagem. Minha mãe, percebendo minha dúvida, sugeriu que eu fizesse o
curso técnico em Enfermagem, mas o que eu queria mesmo era entrar em uma universidade,
fazer um curso superior. Continuei estudando, trabalhando para ajudar em casa e lendo
muito para que pudesse ampliar meus conhecimentos.
O segundo grau foi concluído em 2001. Meu objetivo agora era prestar vestibular para
uma universidade pública de São Paulo; porém os dois cursos que pensava fazer exigiriam
tempo integral. Determinada, resolvi trocar de emprego, no qual ganharia menos, mas teria
a possibilidade de seguir com meus planos. Conversei com minha mãe e expliquei minha
estratégia: fazer o vestibular em uma universidade particular. A mensalidade eu pagaria
com o salário e a venda dos tickets de alimentação. As refeições eu levaria de casa. A
condução seria feita mediante os vales-transportes que a empresa dava para os funcionários.
Minha mãe não concordou e até foi contra. Ela temia que eu perdesse o emprego e não
pudesse continuar os estudos. Estudei com afinco. Em qualquer folga, estava eu com um
livro na mão. Fiz as provas e passei. No início, não tive apoio da família. Sofri muitas
críticas, pois havia muita discriminação. Mergulhei no estudo e fui vencendo com esforço
e determinação. Não era nada fácil. Acordava bem cedo para ir trabalhar das oito da manhã
até às seis da tarde. Depois saía correndo para a Universidade cujas aulas começavam às
19:00 e terminavam às 22:45. Eu chegava em casa por volta de meia-noite; e muitas vezes
estudava durante a madrugada, fazendo trabalhos ou me preparando para as provas. Continuei
ajudando em casa com uma cesta básica que recebia da empresa, pois meu salário mal dava
para pagar a Faculdade. Para conseguir mais um dinheiro, eu fazia bombons, espetinhos de
frutas, e lanches que vendia na Faculdade. Foi uma fase muito difícil, mas eu tinha o
objetivo de me formar em Enfermagem, trabalhar e ajudar minha mãe.
No mesmo ano em que entrei na Faculdade, minha mãe sofreu uma tendinite e fortes
dores na coluna. Ela teve que se afastar do trabalho por um tempo e, quando voltou, foi
demitida. Minha mãe ficou muita revoltada com a falta de respeito e consideração da
empresa na qual deu seu suor por tantos anos. Eu já havia concluído o primeiro ano de
Enfermagem e continuei enfrentando grandes dificuldades, pois já não contava com a
ajuda de minha mãe. Nas minhas férias resolvi viajar para Teresina, conhecer a cidade e ver
as oportunidades de estudo, já que minha mãe ultimamente só falava em voltar ao Piauí.
Hospedei-me na casa da sogra de minha irmã, em Timon-MA, cidade separada de Teresina
pelo rio Parnaíba. Tive boa impressão de Teresina e resolvi preparar-me para ingressar na
Universidade Federal do Piauí-UFPI. Tive sucesso e iniciei meus estudos em 2004. No
começo foi difícil, pois senti muitas saudades de minha família que ficou em São Paulo,
minha mãe, minha sobrinha Mônica filha da minha irmã Joselita, meu irmão e amigos.
Também foi difícil dispensar os pré-requisitos, porque a grade curricular era diferente.
Inicialmente pedi dispensa das matérias cursadas em São Paulo e fui cursando as sem prérequisitos. Isso me atrasou um pouco, mas atualmente tudo está normalizado. Minha vinda
para cá causou muita tristeza em minha mãe, mas eu não tinha mais condições de permanecer
em São Paulo. As mensalidades foram aumentando e tornando-se impagáveis; minha mãe
continuava desempregada e eu tive que buscar uma alternativa. Residi durante um tempo
na casa da sogra de minha irmã, a Vó Raimunda, como eu a chamava. Todos me trataram
muito bem. Ela tem uma neta, Penha, pessoa que muito estimo. Em uma das idas e vindas de
Timon para Teresina, conheci, em um ônibus, o Márcio Ricardo, um homem maravilhoso.
68
Caminhadas de universitários de origem popular
Nos tornamos amigos e em seguida namorados. Ele tem sido muito importante para mim,
pois suas palavras sábias, seu apoio psicológico têm sido uma fortaleza que me abriga e me
protege nas horas difíceis. Estamos fazendo planos para casar, quando houver melhores
condições financeiras. Atualmente moro na residência da UFPI, onde formei um seleto
grupo de amigos. Participei da seleção do Programa "Conexões de Saberes", fui aprovada,
e aqui estou continuando minha luta em busca de oportunidades e da realização dos meus
sonhos. Paralelamente vou ajudando a quem quer fazer um curso superior, ampliar seus
conhecimentos e melhorar sua condição de vida.
Universidade Federal do Piauí
69
Sonhei, sonho e sonharei,
com um futuro mais justo
Juliana Rodrigues Cavalcante *
[...] Quando permitimos que a liberdade
soe de todos os municípios e de todas as
vilas, de todas as cidades, estaremos em
condições de apressar a chegada daquele
dia em que todos os filhos de Deus, homens
negros e homens judeus e cristãos,
protestantes e católicos, poderão unir suas
mãos e cantar as palavras do velho
espiritual negro: 'Enfim livres! Grande
Deus Todo Poderoso, somos finalmente
livres!'.
Luther King
A minha história tem início com meu pai e minha mãe conhecendo-se em TeresinaPI. Começaram a namorar e logo se casaram. Minha mãe engravidou e, tempos depois,
descobriu que se tratava de uma menina. Meu pai ficou muito feliz, e, meses depois, no
dia 16 de junho de 1985, para alegria de todos, eu nasci. Meu pai estava desempregado
e minha mãe havia deixado o emprego por conta da gravidez. Logicamente a situação
financeira da minha família era muito delicada. Meu pai chegou a concluir o Ensino
Médio, mas não conseguia arranjar emprego. Então resolveu montar seu próprio negócio.
Ele alugava geradores de energia para as festas nas periferias da cidade, lugares carentes
de energia elétrica. À época, ainda morávamos na casa de meus avós, na cidade de
Timon-MA. Minha mãe engravidou outra vez, e nasceu meu irmão. Tio Johnson,
irmão de meu pai, deu-lhe o nome de Thomas Jefferson, em homenagem ao presidente
norte-americano.
Quando eu tinha onze meses, nos mudamos para Campo Maior, distante duas horas de
Teresina. Ali passei minha infância e parte de minha adolescência. Foram tempos
inesquecíveis, pois lá também conheci o Senhor Jesus Cristo e convivi com minhas melhores
amigas do mundo: Luciana e Daniele, mas também foi lá que perdi uma das pessoas que
mais amei na vida: meu pai.
*
Graduanda em Ciências Sociais pela UFPI.
70
Caminhadas de universitários de origem popular
Trajetória do ensino de base
Quando completei cinco anos de idade, meus pais resolveram ir morar na casa de meus
tios Carlinhos, Wilsa e Gracinha, em Curitiba, Paraná. Lá ficamos um ano e oito meses e eu
tive meu primeiro contato com os estudos, pois tia Wilsa, preocupada com meu futuro,
cuidou logo de matricular-me na escola onde ela trabalhava. Curitiba é linda, e ali passei
momentos felizes. Não me recordo de muita coisa, pois era muito pequena.
Tudo ia bem até que meu avô materno adoeceu e nós tivemos que retornar ao Piauí.
Em Campo Maior, eu e meu irmão fomos matriculados na mesma escola. Eu na Alfabetização
e ele no Jardim I. Estudei a 1ª e 2ª séries na Unidade Escolar Monsenhor Mateus e a 3ª e 4ª
séries na Unidade Escolar Professor Altivo. Foi nesse momento que perdi meu pai. Passei
um longo tempo sem ir à escola, pois eu estava fiquei arrasada. Nós éramos muito apegados
um ao outro. Fiquei cheia de traumas e acho que ainda hoje tenho alguns. Quase perdi o ano
letivo, mas, graças a Deus, professores maravilhosos acudiram-me, apoiaram-me, e eu passei
de ano. Prometi a meu pai que um dia seria doutora, e continuo com esse propósito. Estudei
a 5ª e 6ª séries no GOT, que também é um colégio público; e terminei a 8ª série em Teresina,
na Escola Estadual Fontes Ibiapina.
Depois da morte de meu pai, passamos a viver da pensão que ele deixou. É escassa,
mas minha mãe faz milagres e temos sobrevivido até agora. Contamos também com a
preciosa ajuda de tia Gracinha. Eu e meu irmão temos total reconhecimento e gratidão por
tudo que ela tem feito. A minha família, tanto do lado materno quanto do lado paterno é
muito especial, mas tia Gracinha é um caso à parte. Minha existência não seria a mesma se
ela não existisse. Ela foi e é fator preponderante na minha trajetória escolar e de vida. Ela é
um presente de Deus.
Pré-Universidade
Estamos agora na fase do Ensino Médio. Cursei também o 1º ano na Escola Fontes
Ibiapina, que ficava perto de minha casa. Graças à persistência de minha vizinha Elizabeth,
entrei para o Colégio Zacarias de Góis, o famoso "Liceu Piauiense", onde estudei o 2º e 3º
anos. Este foi o melhor colégio de toda a minha vida. Lá vivi meus melhores anos e conheci
a galera mais bacana do Ensino Médio que pode existir na face da terra (sei que sou exagerada).
Terminei o Ensino Médio com 17 anos e sem saber muito o que queria fazer. Era hora de
decidir meu futuro profissional e dar um sentido à minha vida. Resolvi inscrever-me nos
vestibulares das duas universidades públicas: Universidade Federal do Piauí-UFPI, onde preferi
Licenciatura em História; e Comunicação Social na Universidade Estadual do Piauí-UESPI.
Vivi enorme frustração, pois, embora tendo estudado bastante, não fui aprovada em nenhuma
das duas. Decidi que ia passar em 2004. Comecei a estudar em casa, pois minha mãe não tinha
recursos para pagar um cursinho. No meio do ano de 2003, arranjei uma vaga em um cursinho
pré-vestibular popular que ficava no meu bairro. De segunda a sábado, das 18:00 às 22:00, ali
estava eu firme e forte. Fiz novamente minha inscrição nas duas Universidades mencionadas,
mas inverti as opções. Ciências Sociais na UFPI e História na UESPI. No dia do resultado, acordei
bem cedo e, bastante ansiosa, fui aguardar o resultado ao pé do rádio aqui de casa. Na sala, minha
mãe e meu irmão compartilhavam minha ansiedade, de repente toca o telefone. Era uma amiga
me dizendo que ouvira meu nome na lista de aprovados para o curso de Ciências Sociais da
UFPI. Pulei, gritei, abracei, e agradeci a Deus aquele momento. Não passei na UESPI, mas Deus
sabe o que faz. Hoje estou completamente apaixonada por Ciências Sociais.
Universidade Federal do Piauí
71
Ressalte-se que a Tia Gracinha, mencionada anteriormente, sempre me surpreende.
Desta vez, ela me deu de presente um computador, que tem sido de grande valor para meus
estudos: - Tia Gracinha, muito obrigada! Sempre.
A Universidade
No que se refere à Universidade, o primeiro semestre foi bastante complicado. Eu
tinha aula das 14:00 às 22:00; Era cansativo e eu não entendia nada do que lia. Devido à
minha renda familiar, fui considerada carente e ganhei uma bolsa de alimentação para o RU
(Restaurante Universitário). No segundo período, as coisas ficaram mais tranqüilas. Eu já
entendia o que lia. Ciências Sociais exige muita leitura e dedicação, e eu vivo
constantemente estudando, lendo, pesquisando e fichando textos. No terceiro período,
inseri-me no projeto de um professor através do PIBIC. Minha bolsa era voluntária, mas
meu orientador conseguiu uma outra pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do
Piauí-FAPEPI. Mergulhei então no mundo fantástico e real das pesquisas científicas e não
pretendo mais parar. Nos dias atuais, estou no sexto período e agora vinculada ao Programa
"Conexões de Saberes", onde pesquiso uma temática e trabalho no Cursinho Pré-Vestibular
de uma comunidade popular.
Com base neste relato, é perceptível que sou uma estudante de origem popular. Muitas
vezes faltei às aulas por falta de um passe de ônibus. Muitas vezes deixei de tirar uma cópia
xerox por falta de dinheiro. Comprar livros? Nem pensar. Mas aprendi a ser estratégica.
Escapar diante das dificuldades. Se eu cheguei à Universidade, vou sair dela com o que de
melhor ela tiver para me oferecer. Se não posso comprar livros, vou à Biblioteca. Foi assim
que descobri o ambiente que mais me fascina, onde gosto de passar meu tempo livre.
Sempre que vou a um lugar e não visito sua biblioteca é como se não houvesse ido. Os livros
são para mim a expressão de voz e vez de uma determinada época. A visão crítica do
passado e futuro de uma realidade social.
Agradeço a oportunidade de poder contar minha história acadêmica. Estou perto de
me formar, falta só um ano. Já estou rabiscando minha Pós-Graduação, pois pretendo fazer
mestrado em Sociologia. Quanto ao doutorado, ainda não decidi, mas certamente será em
alguma área de Ciências Sociais.
72
Caminhadas de universitários de origem popular
Sob a luz da fama
Kalinka Kelciane Teixeira de Brito *
Quem sou eu?
Tenho um nome um tanto incomum - Kalinka Kelciane - escolhido ao acaso, sem
nenhum significado especial. Minha mãe queria dar-me um nome diferente, com "ar de
exclusividade" e que, de certa forma, "chamasse a atenção". Acho que conseguiu!
De índole complicada, costumo dizer que sou uma incógnita até para mim mesma.
Também não é para menos. Desde cedo, vi-me confusa, envolvida em mundos distintos, ao
mesmo tempo em que convivia com uma família na qual não se economizam insultos, mas
que no final todos acabam sempre se entendendo.
Minha mãe, Neusa Teixeira de Brito, é uma mulher batalhadora. Embora tenha que
enfrentar as restrições financeiras, como, por exemplo, a dificuldade de morar em um cômodo
emprestado, onde quarto, sala e cozinha se amontoam, o peso de ser pai e mãe. Contudo,
nunca mediu esforços quando o assunto é minha educação, meu futuro. Ela acredita que o
pouco pode render muito quando se trabalha com força de vontade e perseverança. Por isso
luta com garra para superar os obstáculos ao invés de acomodar-se no pessimismo em que se
encontra a maioria das famílias de baixa renda.
Pedras, flores e espinhos
Há mais de quinze anos, minha mãe é zeladora da Escola Santa Helena, um colégio
privado onde também concluí meus estudos e ao qual serei eternamente grata, por ter me
proporcionado uma boa educação como estudante e cidadã. Minha irmã mais nova, Denise,
não teve a mesma oportunidade, pois foi registrada e criada por meus tios. Eis aí mais uma
conseqüência da ausência da casa própria e das limitações econômicas.
Ter estudado em uma escola particular não significa que minha vida escolar tenha sido um
"mar de rosas". Muito pelo contrário. Ali passei os meus piores momentos. Todos os dias sentiame como um peixinho fora d'água, perdida em um "mundo de doces e flores", vivendo uma
realidade totalmente antagônica ao meu bairro, onde eu e minha turma, sujos de areia, suados e
descalços corríamos e gritávamos pelos quarteirões, apertando as campainhas e roubando mangas
nos quintais alheios. Não conhecíamos os shoppings, tampouco o cinema, sobre os quais o
pessoal do colégio estava sempre comentando, mas nos divertíamos muito com as brincadeiras
de rua: queimada, bandeira, taco etc. e também passeando de patins no aeroporto.
*
Graduanda em Serviço Social pela UFPI.
Universidade Federal do Piauí
73
A turma se revezava para que todos pudessem usar o único par de patins. Lembro
muito bem que invadimos uma casa abandonada na rua vizinha e ali fundamos nosso
clubinho, onde passávamos horas e horas planejando "loucuras de criança". As missões
foram inúmeras e, dentre elas, uma manhã de sol no rio Parnaíba que me custou uma bela
surra. Um dia, resolvemos fundar uma banda de música com instrumentos feitos de latas. Eu
era uma das bailarinas (desde criança já era fascinada pela dança). Tudo ia bem até que certo
dia os donos da casa nos descobriram e fomos expulsos. Ficamos sem sede e desintegrados.
Todo começo de ano era um sufoco. Graças ao "salvador dos pobres", o crediário,
minha mãe dava um jeito de comprar meu material escolar. O resto do ano ela pagava as
compras em eternas e suaves prestações mensais.
Quando falavam em festas, eventos ou viagens do colégio, eu nem me animava.
Eu já sabia que os gastos seriam exorbitantes. Serra da Capivara, Sete Cidades, São
Raimundo Nonato, Delta do Parnaíba eram lugares que o pessoal do colégio sempre
falava. O jeito era ver de longe, admirando as fotos e acreditando que um dia eu teria
condições de conhecer as belezas naturais do Piauí, do Brasil e, quem sabe, de outras
partes do mundo.
Outro grande fardo que tive que suportar foram os múltiplos, cruéis e incontáveis
apelidos que meus queridos colegas de sala me taxavam. Eu era motivo de risos para todos,
inclusive para as minhas "amigas". Os professores fingiam não ver e eu não tinha a quem
reclamar; afinal eu era bolsista e meu dever era agradecer.
Sonhei inúmeras vezes em estudar em uma escola pública. Apesar de conhecer as
dificuldades daquele ensino, eu queria conviver com pessoas de minha classe social, onde
não me sentisse feia, inferiorizada e não tivesse vergonha de mostrar quem sou e como vivo.
Concentrar-me para estudar era outro desafio. Além do calor insuportável, as pessoas
do meu conjunto habitacional não sabiam viver em coletividade. Ali é um dos lugares mais
barulhentos da cidade. Suportei, a duras penas e em volume ensurdecedor, o brega, a
suingueira, o forró e o reggae. A boa vizinhança não media esforços quando o assunto era
incomodar. A máxima já diz tudo: "Os incomodados que se retirem". As bibliotecas eram um
luxo que o custo do transporte impedia. Com o tempo, fui amadurecendo e me dando conta
de que não adianta ficar lamentando. Naquele momento, o mais importante era tirar o
máximo proveito daquela oportunidade. Eu também aprendi que, por mais que eu
reivindicasse ou derramasse lágrimas, aquelas pessoas jamais se importariam. Passei a encarálas como mais uma árdua etapa a ser superada.
Rumo à UFPI
Último ano do Ensino Médio. Era hora de fazer tudo ter valido a pena e decidir meu
futuro. Eu estava determinada a vencer.
Além dos estudos semanais, quatro horas por dia, o Cursinho Popular Pré-Vestibular
foi de suma importância para meu ingresso na Universidade Federal do Piauí. Ali revi e
aprendi melhor alguns assuntos que, apesar de terem sido ministrados por bons
professores no colégio, estavam mal compreendidos. Provavelmente porque tenham
sido dados no sétimo horário. Considero contraproducente esse tipo de carga horária,
na medida em que sobrecarrega o estudante e limita sua aprendizagem diante de tanta
pressão. Retornando ao cursinho, lembro, com carinho, de alguns professores que sempre
se mostraram bastante comprometidos conosco, mesmo diante das dificuldades de
74
Caminhadas de universitários de origem popular
trabalhar com poucos recursos, sem material didático, cadeiras insuficientes, e em uma
área improvisada coberta de palha que foi cedida pela Associação de Moradores. A
batalha foi árdua, mas é sempre muito gratificante a conquista de uma vitória após
longa e dolorosa luta.
Passei em primeiro lugar para o Curso de Serviço Social, no ano de 2005. Tudo foi
recompensado. Meu nome saiu até em notas de jornal. O segredo? Acreditar que não existem
metas inalcançáveis para quem luta com determinação e sabe onde quer chegar. E eu sou
assim. Uma pessoa que luta com tenacidade pelo que quer e que não desanima diante de
uma queda, pois as dificuldades da vida dão às virtudes condições para que se tornem mais
fortes e belas.
Meu sonho sempre foi ser artista
Depois que ingressei na Universidade, continuei em busca de outros objetivos. Dessa
vez investi naquele meu velho sonho de criança: a dança.
Há dois anos faço e amo o balé e a dança do ventre, graças a uma bolsa que ganhei na
prestigiada Academia de Ballet Helly Batista. Aprendi que nunca é tarde demais para se
realizar um sonho, pois o que realmente influi são o amor, o esforço e a dedicação que você
vai depositando ao longo do percurso. Aprendi também que a vida levada através da dança
é muito mais bonita de ser vivida. A dança não é só movimento, mas acima de tudo é
sentimento, que eleva o espírito e afugenta as tristezas, proporciona auto-estima,
autoconfiança, faz-me sentir o valor que tem a vida e o valor que eu tenho diante desta. São
esses os sentimentos que tento passar às crianças para as quais dou aulas de balé, assistidas
pelo Programa "Conexões de Saberes". Acredito que a arte, além de ser uma fonte de alegria
e prazer, pode ser um caminho para transformar a realidade e descobrir novos talentos.
Finalmente, a grande lição que o Conexões vem me oferecendo é a de que o combate
às diferentes formas de exclusão social passa por um significativo processo de mudanças de
visões de mundo, de atitudes e de comportamentos dos indivíduos entre si e entre as
instituições, em uma prática contínua de "reconstrução social".
Universidade Federal do Piauí
75
Vencendo as adversidades da vida
Maria da Conceição Pereira da Costa *
Ternas raízes
Guardo na retina / um fulgor da infância /
e me revejo / portanto archotes de
esperança / que, em sonho, ainda /
mantenho flamejantes.
Creuza C. França
Sou a quarta filha de sete irmãos, pai e mãe analfabetos. Nasci em uma cidadezinha no
interior do Maranhão e minha infância foi muito difícil, uma vez que vivia em um meio
social bastante precário, tanto cultural quanto financeiro. Lembro-me de acordar e tomar
banho retirando água de um reservatório. Depois eu vestia minha roupa e ia para a escola.
Esta é, certamente, a melhor de todas as lembranças, pois sempre fui muito dedicada aos
estudos. Eu sempre acreditei que somente o saber poderia me tirar daquela realidade difícil.
Minha querida mãe, em sua santa inocência, dizia sempre que eu tinha o espírito de gente
rica. Acho que ambição seria a palavra mais adequada.
Quando eu completei dez anos, meu pai teve uma atitude que lhe serei grata pelo
resta da vida: mandou-me para Teresina-PI, para morar com uma tia. Não foi fácil separarme de minha família. Só concordei porque vislumbrei a oportunidade de melhorar de
vida e, posteriormente, retornar para ajudá-los. Agarrei a chance como se fosse única. O
início em Teresina foi muito difícil. Longe de casa, da minha realidade interiorana, eu
tinha dificuldades até no modo de falar. Problemas com a documentação retardaram meus
estudos e eu, aos onze anos, tive que ser matriculada na primeira série do Ensino
Fundamental. Não reclamei, pois o importante era alcançar meus objetivos. Tudo ia bem
até deparar-me com duas greves que resultaram em mais dois anos de atraso. Finalmente
terminei o Ensino Fundamental. Achei que isso seria a solução de meus problemas; mas
só depois percebi que estava vivendo um dilema. Eu estava feliz por ter realizado uma
façanha. Mas... E então? O que ia fazer? Jovens pobres não podem se dar ao luxo de fazer
vestibular porque têm que trabalhar.
*
Graduanda em Pedagogia pela UFPI.
76
Caminhadas de universitários de origem popular
Deste modo, decidi fazer Magistério, pois seria uma possibilidade de conseguir um
emprego rápido. Aos 22 anos estava terminando o Ensino Médio e trabalhando como
professora de Educação Infantil. Passei dois anos só trabalhando; mas quanto mais se
conquista mais se quer conquistar; e eu, nesse sentido sou muito ambiciosa. Ambiciono um
bom emprego, uma boa casa e, principalmente, ajudar minha família. Voltei a estudar,
dedicando-me de corpo e alma para enfrentar o vestibular. Na primeira tentativa, inscrevime para analisar o nível e o modelo das questões.
No ano seguinte, eu já estava bem mais preparada, mas não obtive sucesso. Desistir,
jamais. No ano de 2002, estabeleci uma estratégia de estudo: trabalhar pela manhã e estudar
à tarde. Comecei freqüentando um Cursinho, mas não me adaptei. Achava uma perda de
tempo. Então resolvi estudar por conta própria. Comprei duas gramáticas e um livro de
História. O resto foi emprestado. Em seguida, planejei um horário de estudo com todas as
matérias exigidas no vestibular. Sentava à mesa por volta da meia-noite e só parava no dia
seguinte às 05:00. Entretanto, se agi certo ou errado, não sei. Mas sei que no início de 2004
eu não era mais uma aluna a ingressar no Curso de Pedagogia da UFPI, eu era A ALUNA, que
driblou a falta de material, o cansaço e as noites insones.
Quando me perguntavam se eu havia vencido, eu dizia que sim: - "Esta primeira
batalha, eu venci por mérito pessoal". A emoção de ser aprovada no vestibular não tem
preço. É algo indescritível, extraordinário! É a sensação do dever cumprido. Acredito que
todo jovem precisa vivenciar esta experiência. É o tipo de conquista que nos engrandece,
enobrece e nos faz sentir capazes, determinados, corajosos e fortalecidos para enfrentar a
vida. Vale lembrar que me reconheci ambiciosa. Contudo, isto era apenas o começo. A partir
de então eu iria enfrentar a Universidade e suas adversidades.
Na UFPI tenho tido muita sorte. Faço o curso que sempre sonhei fazer, e, logo que as
aulas começaram, conheci aquelas que são hoje minhas melhores amigas: Ruisenilde Gomes
da Cunha e Carla Andréa Santos Mazza Alencar. A elas devo algo que jamais poderei pagar:
"favores". Favor não tem preço. Amizades feitas, laços fortes, colegas de turma, professores,
pessoas que passaram por minha vida, umas deixaram pegadas outras rastros, outras cicatrizes,
mas todas contribuíram para o meu crescimento pessoal. Entre essas pessoas existe uma que
jamais esquecerei; ela foi o meu outro pilar de sustentação e apoio. Por dever de gratidão,
cito a Professora Doutora Maria Divina Ferreira Lima. A esta Senhora, cujo próprio nome já
faz referência "Divina", meu eterno agradecimento pelo apoio moral, intelectual e humano.
Ela me abriu as portas para o mundo de conhecimentos científicos, abrangentes e memoráveis.
Minha família é um caso à parte. Não tenho como pagar nem a terça parte do que
minha tia fez por mim. Ela me transformou em uma mulher capaz de levantar sempre que o
"meu mundo desabava". Com apoio e incentivo fui vencendo minhas batalhas, mas uma
coisa é certa: eu quis lutar, eu insisti até superar todos os obstáculos, para conquistar meu
objetivo. Não foi fácil, mas eu venci. Penso em outras batalhas que terei que enfrentar na
construção da minha profissionalidade, pois pretendo voar mais alto.
Atualmente faço parte do Programa "Conexões de Saberes", motivo pelo qual faço
este relato. O Programa deu-me condições de ajudar outras pessoas que necessitam de uma
oportunidade. Agora posso dizer-lhes que não são os ricos quem conseguem êxito, mas
aqueles que lutam por seus objetivos, aqueles que vislumbram metas a curto e longo prazo.
Basta acreditar em si próprio, valorizar-se. Não é o poder aquisitivo que dita a dimensão dos
nossos sonhos, mas sim nossa vontade de realizá-los.
Universidade Federal do Piauí
77
Estamos em dezembro de 2006 e meu curso está quase terminando. Estou planejando
fazer Mestrado. Para uns, algo inatingível devido à grande concorrência. Para mim é mais
um desafio, já que aprendi desde cedo a ignorar a concorrência e acreditar na minha
capacidade de trabalho tendo minhas vitórias como referencial. Costumo dizer para alguns
amigos que nascer já foi uma vitória, pois para quem nasceu em uma cidadezinha do interior
do Maranhão, sem nenhuma perspectiva de vida, chegar onde cheguei é mais que uma
vitória. É uma demonstração de que somos aquilo que queremos ser, não importa o sistema,
os obstáculos.
Ao fazer uma retrospectiva, posso assegurar que já não sou nem a sombra daquela
menina tímida e cheia de medos. Não parei de sonhar nem consegui tudo o que queria, mas
estou começando a colher os bons resultados de minhas suadas vitórias.
“Normalmente não se pode impedir o êxito de uma pessoa
realmente determinada, se colocaram objeções em suas trajetórias
de vida, ela transforma em degraus para a subida. Se houver
obstáculos a mais em seu caminho ainda assim ela prossegue de
cabeça erguida.”
MARCELO WILLIAM
78
Caminhadas de universitários de origem popular
Sonhos de uma vida
Maria da Penha da Silva Santos *
Tudo outra vez
Abra os olhos e sonhe, acorde para o
momento. Não desista de ser feliz. O mundo
é de quem quer conquistá-lo. Se cair,
levante-se. E tente tudo outra vez, pois você
é o que você sonha.
Emmy Julie
Vou começar minha história a partir dos meus seis anos de idade, quando meu pai me
levava para meu primeiro dia de aula na Escola Municipal Coronel Boa Vista, no Povoado
Fazenda Nova, Zona Rural de Teresina. Nesta escola estudei do Pré-escolar a 3ª série, do
Primário (à época). Depois nos mudamos para Teresina-PI, onde fomos morar no Bairro
Santa Luzia e passei a freqüentar a Escola Municipal Miriam Portella Nunes, no Conjunto
Sacy, periferia da capital.
Aos nove anos de idade, fui estudar na Escola Estadual Professor Edgar Nogueira,
onde cursei da 5ª a 7ª séries do Ginásio, hoje Ensino Fundamental. Quando estava na 7ª
série, tive o desprazer de ser aluna de um professor que era considerado o bicho-papão da
escola; como tinha muito medo dele, terminei o ano reprovada em Matemática, matéria
que ele ministrava. Foi a partir daí que decidi ser professora e jamais amedrontar meus
alunos, como ele fazia.
Em 1990, mudamos do Bairro Santa Luzia, onde morávamos, e fomos morar em uma
casa que meu irmão ganhou no Conjunto Renascença II, Zona Sudeste de Teresina. Neste
mesmo ano, meu irmão resolveu adotar um menino, que está com 16 anos e não quer nada
com os estudos. Foi um ano em que não consegui estudar, pois as escolas estavam em uma
greve que se estendeu até 1991. O dinheiro de minha mãe só dava para pagar uma escola,
e este foi destinado à minha irmã, que, em vez de estudar, queria apenas curtir a vida.
Voltei a estudar somente em 1992, na Unidade Escolar Professor Pires de Castro, onde
cursei, com muito sucesso, a 7ª e 8ª séries. Nesta escola, conheci dois maravilhosos
professores, Osvaldo, de Matemática; e Claudete, que ensinava Técnicas Comerciais. A
eles muito devo, pelo apoio e força. No final do ano, resolvemos fazer uma festa; meu
vestido foi um presente da minha falecida amiga Maria José. Ela costurou o vestido mais
lindo que eu já tive.
*
Graduanda em Letras-Português pela UFPI.
Universidade Federal do Piauí
79
Quando ainda cursava a 8ª série, preparei-me para fazer testes para cursar o 2º grau, já
que só estudavam nas boas escolas os alunos aprovados. Inscrevi-me em várias escolas
públicas, e em todas fui aprovada. Fiquei muito surpresa por ter sido a primeira colocada na
Escola Técnica Federal do Piauí, atual CEFET. Lamentavelmente lá não pude continuar a
estudar, minha mãe não tinha dinheiro para pagar a taxa da matrícula, comprar o fardamento
e pagar as passagens de ônibus. Meus irmãos também não puderam ajudar, pois estavam
ocupados demais cuidando de suas vidas. Resolvi então me matricular em uma boa escola
que ficava perto da minha casa. Como estudava à noite, eu ia a pé e voltava de ônibus, pois
era perigoso andar sozinha.
Em 1993, comecei a estudar em uma nova escola, chamada Fundação Bradesco,
mantida pelo Banco do mesmo nome. Ali fiz o curso Técnico em Administração de Empresas
e encontrei os melhores profissionais de ensino de minha vida, até entrar na UFPI. As
amizades foram muitas. Nesta escola, conheci pessoas maravilhosas, que me deram todo
o apoio, foram amizades que ultrapassaram os muros da escola e deixaram ensinamentos
que trago comigo até hoje. Foi com eles que solidifiquei meu desejo de ser professora e
cursar uma Universidade.
Em 1994, minha irmã teve uma menina linda, Beatriz, meu bebê, minha princesinha,
que, carinhosamente, chamamos de "rolinha". Hoje ela está com 12 anos e gosta muito de
estudar. Acho que, depois de mim, ela será a próxima da família a entrar na Universidade.
Terminei meu curso em 1995. Não prestei vestibular, pois, apesar de trabalhar em casa
de família, meu dinheiro não dava, porque a pensão que minha mãe recebia havia sido
cortada e eu precisava ajudar nas despesas de casa, e não havia ninguém para me ajudar ou
talvez não acreditasse em meu potencial. E então o sonho de me tornar uma universitária foi
adiado, mas não esquecido.
De 1996 a 2001, fiquei sem estudar. Fiz alguns cursos, continuei a trabalhar, e fui
perdendo o estímulo para os livros. No Natal de 1998, conheci uma pessoa que mais tarde
iriam me fazer voltar a estudar. Começamos a namorar e logo ficamos noivos, por dois anos;
terminamos em meados de 2000. Com a separação e a decepção, resolvi voltar a estudar. Eu
tinha que procurar alguma forma de esquecê-lo; e, para tanto, resolvi me dedicar aos estudos.
Hoje agradeço tudo de ruim que ele me fez, pois o considero um dos responsáveis por minha
aprovação no vestibular.
Em 1999, fui morar com minha irmã mais velha, que tinha acabado de se separar. Mas
logo comecei a trabalhar em uma loja de material de construção e aprendi o verdadeiro
significado da palavra trabalho. Eu trabalhava cerca de 10 horas por dia, em pé, já que não
tinha o direito de me sentar e vivia sob intensa pressão. Então eu não conseguia fazer outra
coisa a não ser trabalhar. Contudo, foi também nesta loja que ouvi do meu patrão uma frase
que me fez acordar: - "Filho de pobre nasceu para trabalhar. Vocês são tão burras que nunca
conseguirão nada na vida e agradeçam-me pelo bem que estou lhes fazendo". Percebi
então que, mesmo sendo filha de pobre, eu merecia uma vida melhor. E, depois de uma
discussão, pedi demissão. Pedi minhas contas e saí. Nunca mais andei por lá, apesar das
amizades que deixei.
Em 2001, começou minha batalha para conseguir vaga em uma escola perto de minha
casa. Sempre que eu me apresentava diziam que não havia mais lugar. Em uma dessas
escolas, fiquei sabendo que se conseguisse uma carta de recomendação de um vereador, que
ali havia sido professor, eu teria uma vaga garantida. Resolvi tirar a prova. Fui à Secretaria
80
Caminhadas de universitários de origem popular
da escola, perguntei se havia vaga e me disseram que as turmas estavam todas lotadas. Voltei
meia hora depois trazendo a carta do político, que consegui através de uma amiga, e
matricularam-me sem pedir qualquer documento. Assim comprovei que em muitos lugares
as "coisas" só funcionam se houver alguém influente para subsidiar.
A partir daí, teve início uma fase estafante em minha vida. Saía de casa às 06:30 e só
retornava às 23:00, quando terminava a última aula. Era muito cansativo e, muitas vezes,
pensei em desistir. Nessas horas, eu era sempre estimulada pelos amigos e, aos poucos, fui
superando os obstáculos e adaptando-me à nova rotina. No final do ano, fiz minha primeira
inscrição para o Programa Seriado de Ingresso na Universidade-PSIU, e não me saí bem. No
ano seguinte, graças ao incentivo do professor de Literatura, Josenildo Brussio, a quem
muito agradeço, fiz a segunda etapa e minha nota melhorou muito. Foi então que percebi
que a realização do meu sonho estava mais próxima.
No ano de 2003, tive que escolher em que área iria me inscrever para prestar o
vestibular. Minha carreira já estava determinada. Eu queria ser professora. Faltava agora
escolher uma área que me permitisse trabalhar de dia e estudar à noite. Joguei na sorte. Ao
chegar ao local de inscrição, fechei os olhos e apontei o dedo. Deu Licenciatura Plena em
Letras-Português Noturno. Pronto! A sorte estava lançada. O destino mostrou-me o
caminho. Pedi a Deus que me ajudasse a passar, pois não tinha muito tempo para estudar.
Após ter saído do meu emprego, transformei meu tempo de trabalho em tempo de estudo.
Por ser o último ano na escola, resolvemos fazer uma festa de despedida, que foi muito
legal. Nesta festa estavam as pessoas que mais me apoiaram nos últimos três anos: Nayla, que
me deu um afilhado lindo. Dona Toinha, Daniel, Mazé, minha afilhada, o Adriano, hoje meu
namorado, e todos os outros colegas de sala de aula. São meus amigos até hoje e sempre
acreditaram na minha aprovação. Todos diziam, com muita convicção, que eu logo seria uma
universitária. Nesta mesma noite, ouvi a diretora da escola me chamar de louca, apenas porque
eu disse que, dentro de alguns anos, voltaria à escola, desta vez como professora de Português.
Enfim chegou o dia do vestibular. Saí cedo de casa junto com meu amigo Daniel, que
estava inscrito para Geografia, e fizemos a prova na própria Universidade. Ao chegar, comentei
que, a partir do próximo ano, ali seria minha casa. Terminada a prova, eu e Daniel começamos
a conversar sobre as questões e fui percebendo que minhas respostas não coincidiam com as
dele e isto me fez sentir muito mal. Achei que não ia passar, até que, no dia seguinte, ao ler no
jornal o gabarito, verifiquei que tinha acertado todas as questões que Daniel havia dito que eu
tinha errado. Ele, infelizmente, não foi aprovado; e eu ganhei confiança e fiz a segunda prova.
Decidi não mais comentar, não discutir as questões nem conferir gabarito. Para me distrair,
resolvi viajar para casa de uma amiga e me desliguei do mundo.
Chegou o dia 9 de janeiro de 2004, o dia do resultado. Eu dizia que aquele seria o dia mais
triste ou mais feliz da minha vida. Pontualmente, às 12:30, a estação de rádio começou a
divulgar o resultado do Curso de Letras-Português. Fiquei nervosa e mal conseguia me controlar.
Ao ouvir meu nome (confesso que não ouvi todo) senti a maior emoção de minha vida. Eu não
sabia se ria ou se chorava; e, naquele momento, como se fosse um filme, minha vida inteira
passou diante dos meus olhos. Emoldurando minha vitória, estavam todos os meus sonhos e os
de uma mãe, que, apesar das dificuldades, sempre rezou e apostou em mim. Também estavam
presentes os meus amigos que não conseguiram aprovação, mas que, através de mim, estavam
representados na Universidade. Não uma universidade qualquer, mas a Universidade Federal do
Piauí. Aquele dia foi glorioso.
Universidade Federal do Piauí
81
As aulas só começaram em setembro de 2004, porque houve uma greve. Meu primeiro
dia de aula será sempre inesquecível. No percurso até à UFPI, fui relembrando fatos e
pessoas. Muitos me apoiaram e acreditaram em minha vitória. Outros diziam que eu jamais
conseguiria. E ali estava eu, a filha da lavadeira e do tocador de viola, universitária da UFPI.
Os primeiros períodos na Universidade não foram fáceis, como estava desempregada, tinha
dificuldade em conseguir as passagens de ônibus para chegar à UFPI; e, às vezes, precisava
alternar o dia para ir à aula; por isso quase fiquei reprovada por faltas, no primeiro período.
No início de 2006, soube, através de uma amiga, que estavam abertas as inscrições para
o Programa "Conexões de Saberes". Fiz a inscrição e fui selecionada. Nos dias atuais, devo ao
Programa parte da realização do meu sonho, pois comecei a lecionar no Cursinho Pré-Vestibular
que criamos para ajudar alunos como nós, oriundos de escolas públicas, que desejam entrar
em uma universidade. Aqui, no "Conexões", realizei também o sonho de conhecer a Cidade
Maravilhosa, ocasião em que realizou-se o II Seminário Nacional. Foi maravilhoso.
Hoje, se alguém me perguntar por que estou escrevendo este memorial, direi que o
faço para mostrá-lo a cinco pessoas especiais: Eletícia, minha sobrinha; Mazé, minha
afilhada; Daniel e Marcos, meus melhores amigos, e ao meu namorado, Adriano (amor da
minha vida). Apesar dos empecilhos e das dificuldades que passamos na vida, nunca devemos
desistir dos nossos sonhos. Podemos até adiá-los, mas desistir jamais. Depois que realizamos
um sonho, outros maiores vão surgindo. Agora, por exemplo, sonho com o Mestrado e o
Doutorado. Se alguém me chamar de louca, servir-me-á de incentivo; prefiro ser chamada
de louca e realizada a ser normal e frustrada.
Por fim, sou a filha caçula de sete irmãos. Meu pai, já falecido desde quando eu tinha
sete anos, chamava-se José Vieira dos Santos, e minha mãe, Joaquina Nunes da Silva Santos,
mulher a quem devo tudo o que tenho e sou. Espero que, no dia da minha formatura, ela
esteja lá, junto a mim, partilhando a realização do nosso sonho. Estou cursando LetrasPortuguês na UFPI, tenho treze sobrinhos e quero vê-los na Universidade. Na UFPI, fiz
amizades que jamais esquecerei; e, qualquer que seja o caminho a seguir, jamais nos
esqueceremos uns dos outros. Quanto aos meus sonhos, os sonhos de minha vida, vou
realizando-os, ano após ano.
82
Caminhadas de universitários de origem popular
"Esperei confiantemente pelo senhor. Ele se
inclinou para mim e me ouviu quando clamei
por socorro" (Salmo 40 : 1)
Maria dos Remédios Batista da Silva *
Nasci aos doze dias do mês de dezembro do ano de mil novecentos e setenta e dois na
cidade piauiense de Picos, a 300km da capital Teresina-PI. Quando pequena morei em uma
casa que foi construída no terreno da Igreja Católica. Aquele local era conhecido como
Chão dos Padres.
Da parte de minha mãe pouco sei de sua história, já que ela mesma pouco falava.
Apenas dizia que sua mãe havia morrido e apenas nos apresentou a um tio. Ela também
dizia que eu me parecia muito com um irmão dela, nas atitudes.
Meu pai, quando conheceu minha mãe, vinha de um casamento desfeito e uma prole de
oito filhos, desconhecidos para mim e minha irmã, Artenira. Eu também pouco sei sobre meu
pai, que faleceu quando eu tinha apenas um ano de idade. Dos irmãos dele, tenho o maior
carinho e admiração, principalmente pela Tia Missia e por Tio Marcelinho. Minha mãe conta
que meu pai, antes de morrer, pediu a ambos que cuidassem de mim. Como eles viviam em
Colônia, povoado próximo à cidade de Oeiras-PI, fui morar lá. Minha mãe e minha irmã
ficaram em Picos. Esse foi o período mais feliz de minha vida. O ensino das primeiras letras foi
cheio de aventuras. O colégio funcionava na casa da professora, Tia Francisca. Como a escola
era distante da casa de meu tio, ele comprou para mim uma jumentinha que era meu meio de
transporte. Hoje sinto certa tristeza, pois tenho poucas lembranças de minha professora que
muito estimava. As últimas notícias que tenho são de que ela se mudou para São Paulo.
Quando o ano findou, minha mãe me avisou que eu ia voltar para Picos, a fim de
continuar meus estudos. Aquilo me encheu de tristeza. Eu não queria ir. Meus tios tudo
fizeram para eu continuar com eles, mas minha mãe estava irredutível. Esta cena não sai de
minha memória, pois foi aí que começaram meus sofrimentos e torturas. Só de pensar, sinto
vontade de chorar.
Fui matriculada na primeira série aos nove anos de idade. Minha irmã também estudava
na mesma sala. Eu sempre fui muito travessa e gostava de uma briga, principalmente porque
os meninos me chamavam de "fundo de panela" e "cabelo de Bombril". Brigava no colégio
e apanhava de minha mãe em casa.
Hoje acho engraçado lembrar dos momentos em que tinha que fazer as tarefas de casa.
Às vezes eu tinha dúvidas e ficava impaciente dizendo que não sabia fazer a lição. Como
minha mãe não sabia ler, ralhava comigo dizendo que eu sabia sim, pois a professora havia
me ensinado. Depois ela me perguntava se eu tinha feito tudo certo. Este foi um bom
período em minha vida. Minha mãe trabalhava no mercado e na casa de uma senhora
*
Graduanda em Ciências Biológicas pela UFPI.
Universidade Federal do Piauí
83
que nos dava, diariamente, um litro de leite. O açougueiro nos presenteava com ossos
sem carne que, aos domingos, minha mãe cozinhava com arroz na panela de pressão.
Enquanto ela fazia a comida, eu e minha irmã tomávamos banho. Depois ela
penteava nossos cabelos com óleo de mamona e fazia um coque que eu odiava, mas
não desmanchava.
Enquanto minha mãe estava viva, minha vida era maravilhosa. Nós éramos pobres,
morávamos em casa de taipa, mas nossa vida era considerada boa. Pena que eu só fui
descobrir isto tarde demais. Eu era louca para trabalhar em casa de família e ganhar o meu
dinheiro, mas minha mãe não deixava. Tempos depois mamãe adoeceu. Ela tinha febre
todas as noites, e de manhã saía para trabalhar, mas não ia nunca ao médico. A doença foi
piorando até seu falecimento. Nesse triste dia, minha vida mudou totalmente. Ficamos
órfãs, Artenira com doze anos; eu com onze; e meu irmão caçula com apenas três anos de
idade. Não tínhamos dinheiro para fazer o sepultamento, mas nossa vizinha, Maria do
Carmo, conseguiu tudo com a Prefeitura Municipal. Após o enterro, ficamos com a Tia
Míssia e seu filho adotivo, chamado Pelé, e por nós considerado como um irmão. Ele
completou 18 anos e foi servir ao Exército. Como era muito inteligente e trabalhador, logo
começou a nos sustentar.
Eu vivia brigando na escola e ninguém se aproximava de mim. Certo dia minha irmã,
que estava na sétima série, resolveu parar de estudar. Eu fiquei revoltada e parti para a briga.
Brigamos feio e fomos entregues aos cuidados de uma assistente social. Comigo não
funcionou. À época, o Pelé conheceu uma prostituta, que eu odiava, e se casou com ela. Eu
vivia alertando que ela não prestava, mas só diziam que eu era a encrenqueira. Continuei
falando e acabei levando um tapa na cara. Esta foi a última vez que vi Pelé. Tempos depois
ele descobriu a traição da mulher e deu um tiro nela. Preso, foi transferido para Teresina
onde se matou.
Certo dia, conheci Dona Beta, com quem vivo até hoje. Ela tinha acabado de ter
um filho, João Ricardo, e me convidou para ajudá-la a tomar conta do bebê. Aceitei na
hora, pois assim eu ia me afastar daquela casa onde só eu era problema. Mais tarde,
levei meu irmão para morar comigo. Passei a viver um novo tempo e fui estimulada a
estudar. Todos queriam que eu me formasse como enfermeira técnica, mas eu queria
mesmo era ser doutora.
Quando a filha mais velha de Dona Beta teve que se mudar para uma cidade grande,
para continuar seus estudos, ela escolheu a cidade de Recife. E assim, todas as férias nós
passávamos na Ilha de Itamaracá, até que eu me mudei definitivamente para a capital
pernambucana, indo morar com a sogra de Dona Beta, a filha mais velha que estudava
Medicina e Manuela, a filha do meio. A vida estava bem complicada, pois eu cuidava da
casa pela manhã e estudava à tarde. O dinheiro que eu ganhava era empregado no pagamento
das aulas de Português, Matemática, Física e Química. Quando terminei o segundo grau, fiz
o primeiro vestibular. Como era esperado, não passei. Ocorre que sou evangélica e o dono
do Colégio 2001 freqüentava a minha igreja, não tive dúvidas em pedir uma bolsa para
cursar o pré-vestibular. Ninguém acreditou, mas o fato é que ganhei a bolsa.
No dia em que fui me inscrever para prestar o vestibular, pedi dispensa do pagamento
da taxa de inscrição. A resposta veio pelos Correios e foi positiva. A URPE me isentava
totalmente do pagamento da taxa de matrícula. Pronto! Agora vou prestar mais um vestibular.
Mais uma vez vou ter medo de não ser aprovada.
84
Caminhadas de universitários de origem popular
A vida ia seguindo até que um dia a bomba estourou: - "Vamos embora do Recife. A
minha sobrinha Maria vai estudar em Teresina e precisa de alguém para tomar conta dela".
Ao chegar aqui eu fazia as tarefas domésticas, mas nada de estudo, pois eu estava sendo
vítima de preconceito racial em todos os lugares onde andava.
Em 2004, conheci uma professora da Universidade Federal do Piauí-UFPI que me
convidou para fazer um estágio voluntário em seu departamento. Aceitei de imediato, pois
eu amo estudar Leishmaniose Visceral e gosto da pesquisa. Em seguida, a professora
conseguiu para mim uma bolsa de estudos e eu me reintegrei à UFPI no Curso de Licenciatura
em Ciências Biológicas. Atualmente faço parte do Programa "Conexões de Saberes".
Universidade Federal do Piauí
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Um novo jeito de olhar
Marlúcia Oliveira Lima *
É com muita alegria e, ao mesmo tempo, com uma leve tensão que hoje escrevo estas
linhas sobre minha história de vida. Alegria por ter sido convidada pelo Programa "Conexões de
Saberes" a olhar mais uma vez a minha história e tensão por ser eu uma pessoa muito reservada.
Isso torna essa tarefa um pouco difícil, mas essa tensão, no fundo, é emocionante. É como aquela
tensão que se sente no início das aulas, quando a professora nos pede para fazer uma redação
contando as nossas férias. Eu ficava horas, pensando no que escrever e nada de idéias. Eu não
conseguia externar nada do que tinha vivido. Era como se eu parasse no tempo. Hoje, com a
tarefa de escrever minha história, voltei a sentir a mesma sensação e isto está sendo maravilhoso.
Tudo começou na madrugada do dia 26 de julho de 1982, em Teresina-PI quando
cheguei a este mundo. Sou filha de Martinho Cardoso Lima (in memoriam) e de Maria
Lúcia Oliveira Lima; tenho três irmãos: Martogil, Maria Simone e Mariele. Esta é minha
família e o meu referencial. Certamente temos nossas diferenças, mas nada que desfaça os
laços de nossa união, de nosso respeito e de nosso amor. Sou muito grata a Deus por ter me
presenteado com uma família assim, hoje incompleta, mas muito unida. Meus pais são
pessoas politicamente corretas, meu pai principalmente. Eles nos ensinaram a prezar, de
modo absoluto, a família; isso para mim foi e é muito importante. Atualmente não tenho a
mesma alegria, devido à perda de meu querido e amado pai. Ele era um homem de garra,
autêntico, amigo, cuidadoso e muito exigente. Um superpai. Queria sempre que as coisas
fossem do seu jeito. Às vezes eu achava tudo muito chato e sempre questionava. Cheguei,
algumas vezes, a contrariá-lo. Hoje, porém, vejo tudo de forma diferente, pois tudo o que ele
sempre quis foi preservar e garantir o bem-estar de todos nós.
Embora meus pais fossem de Alto Longá-PI, sempre vivi em Teresina-PI. Quando
nasci, meus pais moravam no bairro Real Compagre, na Avenida Batalha. Era uma casa
pequena, mas tinha um quintal enorme onde brinquei muito. Tínhamos apenas dois vizinhos,
pois em frente à nossa casa ficava a fábrica da Coca-Cola, onde meu pai trabalhava como
pintor, e nos fundos havia uma garagem dos ônibus da Viação Teresinense. Ali vivi durante
dez anos, no meio de adultos, o que talvez tenha influenciado muito a minha personalidade.
Em relação aos estudos, meus pais sempre diziam: - "O estudo é a única herança que
podemos lhes deixar". Diante disso e com a graça de Deus, meus irmãos e eu sempre tivemos
a oportunidade de estudar, embora não fosse nada fácil educar quatro filhos e garantir
escola para todos. Certamente houve muita dificuldade, mas no final acabava dando certo.
*
Graduanda em Química pela UFPI.
86
Caminhadas de universitários de origem popular
Minha trajetória escolar começou na Creche Tia Anita, localizada pertinho de casa,
onde fiz todo o Jardim. Ela era pequenina e muito aconchegante. Hoje, quando passo em
frente, viajo na lembrança: as brincadeiras com massinhas de modelar, as aulas de pintura,
os passeios de trenzinho e as festinhas nos dias dos pais, das mães e juninas. Lembro
também de algumas professoras e amiguinhas. No meio do ano em que ia terminar o
Jardim e colar grau, a diretoria providenciou minha transferência para a Unidade Escolar
Wall Ferraz onde fui matriculada na 1ª série. Dessa forma, não tive festa de formatura.
Meu primeiro ano no novo colégio foi muito conturbado pelas greves. Meu pai então
conseguiu uma vaga na Escola Municipal Professor José Carlos, onde fiz os outros três
anos, completando assim o Ensino Primário. Tudo era muito legal, menos a tensão e o frio
na barriga, na hora de fazer a redação sobre as férias. Nesse período, meu pai perdeu o
emprego. Mesmo assim, ele e minha mãe, que ajudava costurando para fora, nunca deixaram
que os filhos sofressem qualquer conseqüência. Eles lidavam com o problema de uma
forma tão discreta que nós nada percebíamos. Acho que dessa forma eles sofriam muito
mais. Foi também nesse tempo que comecei a participar da catequese e fiz a Primeira
Comunhão - Sacramento da Eucaristia.
Meus pais compraram uma casa no bairro Água Mineral, e para lá nos mudamos e até
hoje vivemos. Como conseqüência, tive que mudar de escola e acabei voltando para a
Unidade Escolar Raimundo Wall Ferraz.
Meu pai, que estava trabalhando em uma panificadora, montou um pequeno comércio
e minha mãe continuou fazendo suas costuras, e as encomendas aumentaram, pois o bairro
era muito populoso. Eu e meus irmãos alternávamos nossos horários, pois todos ajudávamos
na quitanda, principalmente quando nosso pai se ausentava. No começo, quando tudo era
só novidade, nós achávamos muito bom, mas, com o passar do tempo, foi ficando chato.
Além de alguns prejuízos, estava ficando difícil conciliar os estudos e a quitanda, isto sem
falar que lidar com gente não é nada fácil.
Ao terminar o Ensino Fundamental, tive que fazer testes seletivos em algumas escolas,
pois na que eu estudava não havia Ensino Médio. Foi assim que me transferi para o Colégio
Estadual Zacarias de Góis, o Liceu Piauiense. Essa etapa escolar marcou muito a minha
vida. Foram três anos de muito esforço e pude aprender muitas coisas, conquistar novas
amizades. A partir daí, passei a sonhar com um curso superior e me tornar enfermeira. Para
tanto, eu e todos os alunos da rede pública tivemos que superar muitos obstáculos, em razão
do quadro da educação reinante. Baixo rendimento, pela qualidade do ensino ministrado,
falta de livros didáticos, e a péssima atuação dos professores que não assumiam sua real
profissão. À época, procurei conversar com alguns deles sobre o vestibular e sondei as
minhas chances de aprovação. Alguns diziam que eu não devia sonhar muito alto. Outros
davam a maior força e me estimulavam a estudar muito e não desistir, pois nada é impossível.
Durante todo o Ensino Médio, continuei ministrando aulas de reforço. Eu agora tinha
um bom número de alunos para dar atenção, o que era muito gratificante. Eu também passei
a fazer bombons de chocolate, juntamente com minha amiga Alessandra Menezes. Nossos
ovos de Páscoa fizeram o maior sucesso. Isto nos estimulou e começamos a organizar festinhas
de aniversário, a fazer pequenas lembranças e, em seguida, passamos a receber encomendas
de cestas de café da manhã. Embora fosse muito trabalhoso, eu e minha amiga achávamos
muito legal, pois era uma maneira gostosa de viver a vida. Ah! Que tempo bom! Minha
família sempre me deu muito apoio.
Universidade Federal do Piauí
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Quando terminei o Ensino Médio, encarei dois vestibulares: Enfermagem na
Universidade Federal do Piauí-UFPI e Psicologia na Universidade Estadual do Piauí-UESPI.
O resultado foi uma grande frustração. Não passei em nenhum. Aí tive vontade de desistir de
estudar. Eu não aceitava que depois de tanta luta, tanta expectativa, tantos sonhos ter que
passar por tamanha desilusão. Fiquei totalmente arrasada. O carinho e a presença de minha
família e dos amigos foram muito importantes e essenciais para que eu pudesse voltar a
erguer a cabeça e seguir em frente.
Precisando trabalhar e querendo continuar meus estudos, continuei dando aulas de
reforço. Meus pais conseguiram uma bolsa de estudos para eu fazer o Curso Técnico em
Enfermagem; desta forma, garantiram a continuação de meus estudos. Fazer este curso foi
de grande importância. Ele teve a duração de dois anos e foi feito no Centro Integrado de
Ensino Regular e Profissionalizante-CIERP. Decidi não fazer o vestibular, mas, ainda assim,
continuei estudando em casa. Na última etapa do curso, fiz o estágio, experiência grandiosa
e delicada, pois eu tinha que lidar com a vida, do nascer ao morrer. Ao terminar o curso eu
não sabia o que fazer. Comecei a procurar emprego, pois queria pagar um cursinho
preparatório para o vestibular.
Em janeiro de 2002, um mês depois da conclusão do curso técnico, surgiu uma
oportunidade para trabalhar como recepcionista em um consultório médico no Centro
da cidade. Preparei meu currículo e fui à luta. Passei por uma entrevista e um teste de
redação. Fui aprovada e comecei a trabalhar com um casal de médicos: Dr. Joaquim
Vilarinho e Dra. Maria da Cruz Vilarinho, duas pessoas a quem tenho muito que agradecer.
Meses depois, saio à procura de um cursinho pré-vestibular. Matriculei-me em um
Cursinho Popular que funcionava nas dependências da Biblioteca Comunitária
Cromwell de Carvalho, no Centro de Teresina. As aulas eram ministradas por alunos de
graduação da UFPI e UESPI. Ele caiu do Céu. Graças a Deus, pude conciliar estudo e
trabalho, mas não foi nada fácil. Era grande o cansaço físico ao chegar na sala de aula.
Eu rezava para não desistir.
O ano passou e o vestibular chegou. Eu decidi fazer somente as provas da UFPI.
Biologia e Química como segunda opção. Para todos, eu era candidata a uma vaga de
Biologia. Ocorre que na hora da inscrição eu cometi um engano e coloquei o código de
Química como minha primeira opção. Fiquei muito contrariada. A essa altura do
campeonato, decidi não contar o fato para ninguém. Como estava muito difícil guardar o
segredo só para mim, decidi falar com um amigo, mas ele estava muito ocupado e resolvi
não incomodá-lo. Abracei a mudança e segui sozinha com meu segredo. Passei dias de
grande ansiedade até que a hora do resultado chegou. Todos estavam aguardando meu
nome na relação de Biologia e como não fui citada eles passaram a me consolar. Eu,
quieta, não falei nada. A ansiedade aumentava cada vez mais até que anunciaram os
aprovados em Química. Como não ouvi meu nome comecei a chorar. Nesse momento, o
telefone começou a tocar. Eram amigos me dando os parabéns pela aprovação ao mesmo
tempo em que brigavam comigo por não lhes ter comunicado minha mudança de curso.
Eu não estava acreditando neles, pois não tinha ouvido meu nome. Eu perguntava por
que eles estavam fazendo aquilo comigo e chorava ainda mais. Eles insistiam e riam. Não
demorou muito e eles chegaram à minha casa trazendo uma folha do jornal com o nome
dos aprovados. Ali estava meu nome. Quanta alegria! Tive que explicar a mudança do
curso e, em seguida, corri para o abraço.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Fui aprovada para o segundo período de 2003. Ao iniciar o curso, um novo sentimento
apossou-se de mim. Passei a me sentir "um peixe fora d'água". Grande parte da turma interagia,
falando de assuntos que eu nem sabia do que se tratavam. Perguntei a Deus: - O que fazer?
Se eu continuar assim, não acompanharei o nível da turma. O primeiro mês passou e o
resultado das primeiras provas foi um fracasso. À época, minha família passava por um
problema muito delicado. Estudando e trabalhando, eu pouco ficava em casa. Isso me
deixava muito mal (lágrimas), pois sabia que algo de ruim podia acontecer a qualquer
momento. Todos os dias, ao chegar à Universidade e ao trabalho eu pedia a Deus que as
horas passassem rapidamente, pois eu queria estar com minha família. Essa angústia me
acompanhou por, mais ou menos, um mês e meio. Meu desempenho na Universidade não
melhorava e então decidi trancar algumas disciplinas e assim garantir um aprendizado de
melhor qualidade em outras.
Dias depois, perdi meu pai. Sua morte fez desabar o meu mundo. Fiquei totalmente
impotente para realizar qualquer coisa, para continuar vivendo (lágrimas). Tudo isso foi e
ainda está sendo muito difícil para mim, mas com a força de minha mãe, meus irmãos, amigos
e parentes, hoje estou aqui, lutando pela vida. Amo meu curso, apesar de todas as dificuldades.
Por fim, quero agradecer a Deus pela vida; à minha família pelo amor e apoio; ao
amigo Francisco Silva, pela dedicação; ao Programa "Conexões de Saberes", por esta
oportunidade magnífica de nos fazer olhar a nossa história; às professoras Cecília Carvalho,
Edileusa Figuerêdo e Verônica Cavalcanti, por sua atenção e orientação; e também ao meu
grupo de trabalho - bolsistas do "Conexões de Saberes" do Piauí, pela amizade. Enfim, a
todos os que me ensinaram um novo jeito de olhar. Muito obrigada.
Universidade Federal do Piauí
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