a fascinação pelo abismo em uma descida ao maelström

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a fascinação pelo abismo em uma descida ao maelström
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A FASCINAÇÃO PELO ABISMO EM “UMA DESCIDA AO MAELSTRÖM”
Éris Antônio Oliveira
Resumo: Analiza-se, neste trabalho, o efeito que as metáforas e os símbolos exercem na composição
da narrativa “Uma descida ao Maelström”. O autor, nessa obra, nos põe em contato com uma mobilidade contínua, que oscila entre o real e o imaginário. Seu processo criador torna as fronteiras, entre essas duas esferas profundamente indistintas, fazendo com que as funções desejantes tanto da
personagem quanto do leitor sejam, continuamente, recompostas pela função transformadora da
escrita.
Palavras-chave: narrativa · crítica literária · hermenêutica
Abstract: This paper analyses the effects of metaphors and symbols on the composition of Poe’s “A
Descent into the Maelström.” In this literary work, the author puts us in touch with a continuous
mobility that ranges from the real to the imaginary aspects. His creative process makes the limits
between these two aspects profoundly indistinct, causing the desiring functions of both the character and the reader to be continuously recomposed by the transforming function of writing.
Keywords: narration · literary criticism · hermeneutics
A contemplação da grandeza determina uma
atitude tão especial, um estado de alma tão
particular, que o devaneio põe o sonhador fora
do mundo mais próximo, para elevá-lo a um
mundo que traz a marca do infinito. 1
A ação de ler pressupõe a mobilidade mental do leitor que transita de um valor a outro,
de um princípio a outro, de um significado a outro apenas inferido. Assim, o exercício da
leitura promove uma dupla mobilidade. Primeiro, o leitor se rende à sedução mágica do
texto; depois, sucumbe ao seu desvelamento. Antes de ser um resultado, a leitura é um
processo de criação.
É nessa perspectiva que intentamos ler a narrativa em exame. Nela o narrador estabelece uma forma particular de compor os elementos constituintes do enredo, como espaço e
tempo, que ultrapassam a dimensão cotidiana para se tornar o tempo e o lugar do imaginário, que se materializa no discurso, irrepetivelmente metaforizado.
Inicialmente, ele tomou por base um espaço extremamente perigoso, e detentor de inúmeros segredos, muito apropriado para acolher uma narrativa de horror. Essa espacialidade
metamorfizada é constituída pelo Maelström. Esse pedaço de mar tenebroso foi metaforizado como uma fera que engolia quem ultrapassasse seus umbrais.
O tempo usado para a realização da aventura é razoavelmente curto, de aproximadamente sete horas. A essa altura o relógio parou e o relato entrou numa temporalidade puramente ficcional, quando o protagonista retirou o relógio do bolso, e viu que “[e]stava parado. Examinei o seu mostrador à luz da lua e então rebentei em lágrimas enquanto atirava o
relógio para longe sobre o mar. Ele havia parado às sete horas!”
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BACHELARD. A poética do espaço, p. 316.
CONGRESSO INTERNACIONAL PARA SEMPRE POE · 2009 · Belo Horizonte
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Esse autor seleciona, em várias de suas obras, uma realidade incomum, de modo a permitir que seus heróis vivam experiências inabituais. No presente texto, o protagonista opera numa linha tênue que se pauta entre o natural e o sobrenatural. Além de ser seguido de
perto pelo horror da morte em quase todas as páginas.
Ele nos oferece um discurso em que as palavras escapam de seus significados cotidianos e passam a nos oferecer traços que nos permitem reconstituir um conjunto de sentidos
complementares. Isto ocorre, por exemplo, quando o autor nos fala do “espantoso funil que
assumiu distinta e definida existência.” É como se ele estivesse imbuído de uma configuração quase sobrenatural e adquirido uma pavorosa monstruosidade.
Nesse contexto, as metáforas, “as pedras das montanhas gigantescas são as muralhas do
mundo” e “o espantoso funil assumiu existência, tornando-se uma parede de água”, nos
remetem a um discurso dotado de sentidos complementares, no qual a experiência e a fantasia aparecem compostas pela mesma matéria verbal, que na arte se torna uma forma viva
de consciência.
Uma das características desse funil abismal, denominado de Maelström, é sua enormidade, detentora de uma tenebrosa fúria. Diz-nos o autor que ele girava, “e girando numa
entontecedora velocidade, em oscilante e opressivo movimento, lançava aos ventos uma
voz aterradora, meio grito, meio mugido, tal que nem mesmo a poderosa catarata de Niágara, nos seus tormentos, alguma vez lançou aos céus. A montanha estremeceu na própria
base e o rochedo parecia abalar-se.”
Nesse texto assinalado pela hipérbole, a morte assombra em quase todas as páginas. Os
barulhos ajudam a compreender os perigos que rondam o cenário, pois eles “emprestam
colorido à extensão e lhe dão uma espécie de corpo sonoro, fazendo com que uma espécie
de angústia cósmica funcione como prelúdio da tempestade.” 2
A literatura desse autor nos põe em contato com uma mobilidade contínua, que oscila
entre o real e o imaginário, fazendo com que as fronteiras entre essas duas dimensões se
tornem cada vez mais indistintas, à medida que a realidade se transfigura como resultado
da criação ficcional.
A transfiguração imaginária é um poderoso elemento na composição da arte narrativa.
Entrar num espaço e num tempo ficcional é transpor um limiar, que supõe deixar algo para
trás – um tipo de ordem – e apreender uma realidade diferente que transpõe as regras estabelecidas pelo pensamento cotidiano.
Na ficção os significados são instaurados pela participação no interior de um espaço
partilhado e estruturado, habitualmente, demarcado como diferente daquele da ordinariedade da vida cotidiana. Um relato em que as regras do primeiro plano da experiência são
abandonadas para que as personagens se envolvam em atividades significativas, marcadas
por desejos e ideais de transposição das regras que limitam a vida comum, como neste caso:
Em menos de um minuto a tempestade desabava sobre nós – em menos de dois, o céu se achava inteiramente toldado – além dessas coisas e mais o borrifar das espumas pelo vento,
tudo ficou subitamente tão escuro que não podíamos ver um ao outro na sumaca.
Como se vê, a ficção não é vida comum nem experiência primeira. É, diversamente, um
ultrapassamento do real com o intuito de ingressar-se no imaginário. Por gozar de estatuto
2
BACHELARD. A poética do espaço, p. 226.
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 91-95.
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diferente daquele da vida ordinária, no que se refere à localidade e à duração, ela nos permite uma satisfação superior, matizada de encanto.
O enredo, nessa narrativa, nos dá a imagem do protagonista avançando para o centro da
tempestade, onde irá enfrentar o horror demoníaco do funil do Maelström.
Nosso barco era uma pluma mais leve que qualquer outra coisa que alguma vez já balançou
sobre o mar.
Ninguém saberá de meus sentimentos naquele momento.
“Com certeza”, pensei, “chegaremos ali no exato momento do repouso – há ainda uma diminuta esperança nisso” – no momento seguinte, porém, amaldiçoei a mim mesmo pelo fato de
pensar semelhante tolice e sonhar com uma esperança impossível. Sabia muito bem que estávamos condenados, mesmo que estivéssemos em um navio de novecentos canhões.
A personagem enfrenta, portanto, o mais aterrorizante perigo. Em âmbito ficcional há a
suspensão das ações familiares para que possamos ter acesso ao jogo, “os sujeitos do jogo
não são os jogadores, mas por meio deles o jogo simplesmente acede à sua manifestação.
Isso é o que se observa no uso específico dessa linguagem, profundamente redimensionada,
em que a multiplicidade de suas metáforas nos sugere um conjunto complementar de significados.” 3 Essa segunda significação vem acompanhada da consciência especial de uma
segunda realidade, mais livre em relação à vida real.
Estando no centro da tempestade, o protagonista experimenta o mistério, provocado por
uma transformação paradoxal, na qual a escuridão e a luz passam a obedecer uma mesma
lei, que cria para os jogadores (protagonista e leitor) uma espécie de similaridade, que lhes
é negada na vida real.
Singular transformação afetava os céus. Em todas as direções, ao redor, estava ainda escuro
como breu, mas aproximadamente acima de nossas cabeças, de repente, abriu-se uma fenda
circular de claro céu. Tão claro como nunca o vi assim – de um fundo azul brilhante – e através dele resplandecia uma lua cheia com um fulgor tal que nunca antes eu imaginara que
aquele astro pudesse ter.
O narrador se coloca numa espacialidade e numa temporalidade especiais, em que vigoram
novas regras, porque, aqui, a primeira experiência com o real foi substituída por uma experiência de segunda ordem. Há, nesse caso, uma perfeita construção em abismo, na qual o
primeiro relato serve apenas como alicerce inicial para a construção do segundo, que nos
chega por meio da construção tropológica.
O protagonista continua em meio a um profundo processo aterrorizador, pois estava no
centro do funil do Maelström, no meio da mais poderosa tempestade: “Nunca teria acreditado que qualquer onda pudesse erguer-se tão alto. Em seguida começamos a descer numa
varredura curva, deslizando e mergulhando, o que me fez sentir nauseado e tonto, como se
estivesse despencando, num sonho, do cume de uma montanha.” Em tais momentos e em
tais espaços, expressos e marcados física e simbolicamente por limiares dentro da experiência, narrador e leitores suspendem as regularidades do tempo, do espaço e da racionalidade, para gozar em profundidade o prazer da ficção. O valor e as conseqüências de um
texto dessa natureza ensejam uma leitura aberta, uma vez que resulta de um processo
complementar de significação.
3
GADAMER. Verdad y método, p. 145.
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Compreendendo a leitura como um campo de saber que possui redes e vasos comunicantes que nos transmitem idéias, novas perspectivas e sonhos, podemos interpretar a descida do protagonista a esse túnel infernal como a realização de um desejo. Como a história
do audacioso desejo de devassar um espaço misterioso e proibido, cujo enfrentamento tinha a faculdade de torná-lo o sujeito de seu viver. Foi assim que
[a]pós alguns momentos apossou-se de mim a mais aguda curiosidade relacionada com o
próprio vórtice. Sentia explicitamente um desejo de explorar suas profundezas, mesmo tendo
certeza do custo desse sacrifício; e o pesar que mais me atribulava era o de nunca poder contar aos velhos companheiros em terra sobre os mistérios que iria ver.
Ao adentrar esse círculo sagrado, pleno de mistérios, o protagonista desvencilhou-se das
amarras do cotidiano, atingindo os liames da expansão e da claridade, fatores que, como
ele nos diz, não podem ser contados aos outros, porque carregam consigo fatias da estranheza e da invisibilidade que não se manifestam senão dissimulando-se nos estratos subliminares do texto. Como diria Gadamer, 4 concebida como um conjunto de energias expressivas da existência encarnada, que inspira o artista, a arte revela nossa secreta e corpórea dependência com as coisas do mundo, e essa revelação consiste num jogo de presença e
ausência, de visível e invisível, que se manifesta amplamente tanto naquilo que é visto como naquele que vê.
O texto nos diz que o protagonista entrou nas profundezas de um túnel enorme, assinalado por inúmeros segredos e que despertava o imaginário dos habitantes daquela região,
por isso, esse assombroso funil causava-lhe pavor:
Não vou esquecer nunca as sensações de medo, horror, e admiração pelo que pude olhar a
minha volta. O barco parecia estar suspenso, como por mágica, a meio caminho para baixo,
na superfície interior de um funil de enorme circunferência, prodigioso em profundidade, e
cujos lados perfeitamente brunidos poderiam dar a ilusão de ébano, não fosse a estonteante
rapidez de seu giro, e o vislumbre e pálida radiância que, como os raios da lua cheia, eram
emitidos daquela fenda circular entre nuvens...
O túnel é, em muitas culturas, o símbolo da transformação, em seus subterrâneos são
operadas várias metamorfoses, por isso ele era usado nos rituais iniciáticos. Em suas entranhas há energias insuspeitas que permitem, a quem ali entra, passar de uma cognição a
outra, de uma vida a outra. Entretanto, a ultrapassagem de um certo limiar não permite retorno, a pessoa é levada de vez para outro reino, que se vislumbra “Como aquela estreita e
vacilante ponte que os mulçumanos dizem ser a única senda entre o Tempo e a Eternidade.”
No texto em exame, o protagonista teve acesso apenas a um limiar, não entrou nos últimos umbrais dos mistérios, mas mesmo assim, voltou de lá completamente transformado:
O senhor deve imaginar que eu seja... muito velho – mas não sou. Menos de um dia foi suficiente para que os meus cabelos mudassem do negro para o branco, as pernas e os braços enfraquecessem e meus nervos se afrouxassem, a tal ponto que fico trêmulo ao menor esforço e
assustado só em ver uma sombra.
Nos mitos antigos, o mundo das entranhas abismais ou das alturas indefinidas, engolia
os seres para vomitá-los transformados. Isto é que aconteceu com o protagonista, que nos
relata seu ingresso em um espaço privilegiado ao qual só ele tivera acesso. Por isso, sentese agora tocado por uma primitiva e arquetípica força que lhe acalenta os sonhos existenci4
GADAMER. Verdad y método, p. 147.
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ais. A redução de suas energias físicas, talvez, advenha do sopro da outra vida que lhe inundara o ser.
O autor colocou sob o signo da representação, nesse texto, certas convenções de gênero
procedentes do contrato que se estabelecia entre narrador e leitor, que tornam funcionais
certas expectativas relevantes de leitura, especialmente, de uma leitura emanada de um
saber cultural compartilhado, como este, aceito naquela sociedade. Os leitores habituados
com a literatura de língua inglesa não viam neste conto uma ruptura do processo ficcional
vigente, mas, pelo contrário, graças à sua potência de transformação, esse texto os conduzia
a participar de um jogo interminável de busca e de tentativa de apreensão do real.
REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Joaquim José M. Ramos et al. São Paulo:
Abril Cultural, 1984. (Os pensadores).
CHEVALIER, Jean; GHERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: J. Olímpio,
1989.
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1997.
POE, Edgar Allan. Wikipedia.org/wiki.
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