Untitled - Portada - Heinrich Böll Foundation

Transcrição

Untitled - Portada - Heinrich Böll Foundation
Sumário
Apresentação
Pág. 3
O Brasil está nu!
O avanço da monocultura da soja,
o grão que cresceu demais
Pág. 10
De perto, a história é outra
A expansão da cultura da soja
na visão da gente do campo
Pág. 18
Tecnologia gera mais exclusão,
mais destruição
Modernos equipamentos e insumos
permitem aumento da produtividade,
mas, além de caros, podem
provocar danos ambientais
irreversíveis
Pág. 21
Por um Brasil com menos soja
A discussão passa pelo modelo de
criação dos animais que serão
consumidos pelo ser humano
O Brasil é hoje o segundo maior produtor e
exportador mundial de soja. Seu cultivo espalhouse por todas as regiões do país. As maiores
áreas de expansão localizam-se atualmente no
Cerrado e na Floresta Amazônica, dois dos
biomas mais ricos em biodiversidade do planeta.
A opinião pública é levada a crer que a soja traz
grandes benefícios para o país e seus
agricultores. Freqüentemente, a mídia produz
matérias que buscam ressaltar a riqueza gerada
pelo agronegócio: grandes fazendeiros, suas
mansões, carros e aviões. A devastação social
e ambiental é camuflada sob imagens dos verdes
e vastos campos de soja, com suas gigantescas
máquinas de semeadura e colheita.
No entanto, os movimentos sociais do campo, os
trabalhadores rurais e diversas organizações que,
como a FASE, trabalham diretamente com estas
populações, têm conhecimento de constantes
violações aos direitos humanos associados
à expansão do cultivo da soja: assassinatos,
expulsões violentas da terra, mortes por
contaminação, trabalho escravo, invasão de
áreas indígenas, inviabilização das atividades
tradicionais, desemprego, destruição e perda de
acesso aos recursos naturais são alguns exemplos.
Neste Caderno, sintetizamos as informações por
nós produzidas através de um estudo de caráter
geral e quatro estudos de campo, realizados no
Mato Grosso, Tocantins e Pará. Nosso objetivo
é justamente o de trazer à luz, para o debate
público, os “custos invisíveis” do atual modelo
agrícola, particularmente nas regiões Centro-Oeste
e Norte do Brasil.
Os depoimentos das próprias vítimas desta
expansão, complementados com dados aqui
apresentados, põem a nu as conseqüências do
modelo agrícola adotado pelo Brasil, baseado na
latifúndio e na monocultura de exportação. Nosso
trabalho é dedicado aos movimentos sociais do
campo, aos trabalhadores rurais, às diversas
organizações nacionais e internacionais e a todos
que, percebendo-se como parte desta natureza
que está sendo destruída, buscam informações
e estratégias de ação para mudar esta realidade.
Sergio Schlesinger
Rio de Janeiro, novembro de 2006
O Brasil está nu!
O avanço da monocultura da soja,
o grão que cresceu demais
2006, FASE (Federação de Órgãos para
Assistência Social e Educacional)
COORDENAÇÃO GERAL E EDITORIAL
Sergio Schlesinger
TEXTO
Sergio Schlesinger e Silvia Noronha
PUBLICAÇÃO
FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
Tel.: +(21) 2536-7350 – Fax: +(21) 2536-7379
www.fase.org.br
APOIO
ActionAid Brasil
Charles Stwear t Mott Foundation
Fundação Heinrich Böll
Solidaridad
AS ATIVIDADES DA FASE EM TORNO
DA TEMÁTICA DA SOJA SÃO APOIADAS TAMBÉM
PELAS SEGUINTES INSTITUIÇÕES:
ActionAid Americas
Comitê Católico contra a Fome e pelo Desenvolvimento – CCFD
Fundação Ford
IDRC – International Development Research Center (através do projeto Red ComAgri)
Oxfam
PROJETO GRÁFICO
Mais Programação Visual
www.maisprogramacao.com.br
FOTO DA CAPA (GRÃOS DE SOJA)
Vanor Correia
FOTOLITO E IMPRESSÃO
XXXXXXXXXXX
TIRAGEM
3.000 exemplares
O Brasil está nu! O avanço da monocultura da soja, o grão que
cresceu demais / Sergio Schlesinger e Silvia Noronha —
Rio de Janeiro : FASE, 2006. 24 p.
ISBN XX-XXXXX-XX-X
1. Brasil - agronegócio 2. Meio ambiente 3. Impacto ambiental
4. Desenvolvimento Sustentável I. Sergio Schlesinger
II. Silvia Noronha III. Projeto Brasil Sustentável e
Democrático IV. Federação de Órgãos para Assistência
Social e Educacional V. Título
As opiniões expressas neste estudo são dos autores e não necessariamente
refletem as das organizações que apoiaram sua realização.
O Brasil está nu!
O avanço da monocultura da soja,
o grão que cresceu demais
A cultura da soja no Brasil tem sido apresentada à população como um negócio
promissor que leva desenvolvimento e progresso ao interior do país e traz
divisas para o governo. Mas, por trás dos números e estatísticas impressionantes a respeito da expansão da sojicultura, há uma série de impactos negativos que contribuem para ampliar a desigualdade socioeconômica brasileira.
O problema a ser debatido nesta cartilha não é a soja em si, mas o modelo e
a dimensão da monocultura, que se alastra ao mesmo tempo em que destrói a
biodiversidade, expulsa produtores familiares, gera desemprego no campo,
enquanto beneficia apenas um reduzido grupo de grandes proprietários de terra
e empresas nacionais e multinacionais do setor.
Biodiversidade
Conjunto de todas as
espécies de seres
vivos existentes numa
determinada região.
Agronegócio
Anos atrás, a
denominação era
agropecuária, um
termo atualmente
em desuso, que unia
agricultura e pecuária.
Fala-se agora no
agronegócio com
significado mais
amplo, pois inclui
setores relacionados,
como transpor tes,
insumos, indústria e
distribuição.
Como veremos adiante, muitos brasileiros se tornaram latifundiários a par tir
da doação de terras públicas (caso de Campos Lindos, no Tocantins); outros,
após expulsarem agricultores familiares, às vezes com o uso da violência (caso
do Pará). É o direito de propriedade que, no Brasil, nem sempre vale para os mais
pobres. Tudo isso ocorre, muitas vezes, com o incentivo dos governos, atingindo
toda a população do país, porque o que acontece no meio rural afeta toda a nação.
Os estudos sobre quatro regiões de expansão do agronegócio – Sorriso e Baixo Araguaia,
no Mato Grosso; Campos Lindos, no Tocantins; e Santarém/Belterra, no Pará – permitem
conhecer melhor uma parte da história do Brasil. Os acontecimentos obser vados nessas
localidades têm relação com os motivos que fizeram – e ainda fazem – esta nação apresentar um dos piores índices de desigualdade do mundo.
Distribuição da área plantada com grãos no Brasil
Fonte: Conab (boletim de julho de 2006).
3
O BRASIL ESTÁ NU! O AVANÇO DA MONOCULTURA DA SOJA, O GRÃO QUE CRESCEU DEMAIS
A expansão da soja no Brasil atinge níveis alarmantes sob qualquer ponto de vista:
Aspecto social – A soja não cria emprego no campo1 e ainda afasta os agricultores
familiares de suas terras. Neste sentido a soja tem provocado mais exclusão social e
mais pobreza, afetando também as cidades, pois muitos trabalhadores rurais se vêem
obrigados a sair do campo em busca de emprego e renda. Nas cidades eles moram
geralmente nas periferias e têm dificuldade de encontrar trabalho. Se permanecem no
meio rural também passam por dificuldades, entre elas: têm suas plantações atingidas
pelo agrotóxico, enfrentam conflitos agrários ou conseguem apenas trabalhos temporários, porque as grandes propriedades são intensivas em capital e não em
Intensivas em
mão-de-obra.
capital
Necessitam de muito
dinheiro para
acompanhar o avanço
tecnológico das
máquinas e
equipamentos, como
colheitadeiras, e
muitas vezes também
para comprar
sementes
melhoradas,
adaptadas às
condições do clima e
solo locais.
Desenvolvimento
econômico
sustentável
Crescimento
econômico que se
mantém a longo
prazo, beneficiando a
população como um
todo, a par tir do uso
equilibrado dos
recursos naturais e
da melhoria da
qualidade de vida
humana.
Commodity
Toda mercadoria em
estado bruto ou com
grau muito pequeno
de industrialização,
negociada através de
transações
comerciais
internacionais. Inclui
bens agrícolas como
a soja; minerais como
o aço; e florestais
como o eucalipto.
Aspecto ambiental – O modelo que mais cresce é a monocultura da soja, que
provoca desmatamento, contaminação do solo e dos recursos hídricos (rios,
igarapés e lençóis freáticos). Também afeta a qualidade do ar, pois a
monocultura exige a aplicação de grandes quantidades de agrotóxicos e fer tilizantes. Conseqüentemente atinge também a saúde dos trabalhadores e das
pessoas que moram per to das lavouras.
Aspecto econômico – Pelas razões acima, a monocultura não é um modelo de
desenvolvimento econômico sustentável. Além disso, diversas políticas de
governo estimulam a exportação do grão da soja, ou seja, de uma commodity.
Entretanto, a competitividade no mundo de hoje está baseada na criação de
produtos que trazem algo de novo, embutem tecnologia – exatamente o oposto
das commodities que trazem retorno financeiro cada vez menor. Mesmo assim,
o governo federal comemora a entrada de moeda estrangeira no país, proveniente da expor tação da soja. Este dinheiro tem contribuído para o Brasil equilibrar suas contas (receitas menos despesas) e pagar os compromissos da
dívida externa. Só que esse caminho não tem futuro, porque a cada ano precisamos plantar e colher mais e mais soja (e outras commodities) para receber
o mesmo dinheiro.
Produção mundial de soja (milhões ton.)
País
Estados Unidos
Brasil
Argentina
China
Outros
Total
1995
Part. %
2005
Part. %
59,2
25,7
12,1
13,5
16,5
46,7
20,2
9,5
10,6
13,0
85,0
51,1
39,0
17,4
22,8
39,5
23,7
18,1
8,1
10,6
127,0
100,0
215,3
100,0
Fonte: USDA.
1
4
Levantamento da Fundação Seade/Sensor Rural indica que a soja gera somente 5,5% dos empregos do setor
agropecuário, embora represente 47,1% da área plantada com grãos no país (boletim da Conab de julho/06).
O BRASIL ESTÁ NU! O AVANÇO DA MONOCULTURA DA SOJA, O GRÃO QUE CRESCEU DEMAIS
Brasil – Produção e número de empregos na agricultura da soja: 1985, 1996 e 2004
Fonte: “O grão que cresceu demais”, de Sergio Schlesinger, a partir de dados da FIBGE (1985) e Gelder et al (2005).
Para que tanta soja?
A expansão da soja está diretamente ligada ao maior consumo de carne animal
no mundo. Atualmente, 90% da colheita mundial desta oleaginosa são destinados
às indústrias de esmagamento, que transformam o grão em farelo que, por
sua vez, servirá de ração para bois, frangos, porcos, camarões, entre outros,
sempre que criados em confinamento.
A acelerada expansão da produção ocorre principalmente para servir à demanda de apenas três regiões do planeta: Estados Unidos, União Européia e China,
que consomem dois de cada três quilos de soja produzidos no mundo2.
Consumo mundial de farelo de soja (milhões ton.)
Crescimento anual
de 1994 a 2004 (%)
País ou região
2004
Ásia
União Européia
Estados Unidos
China
América Latina
Outros
42,1
32,1
28,4
21,5
18,5
17,0
9,5
3,3
2,17
15,47
6,67
7,17
138,1
5,52
Total
Indústria de
esmagamento
O esmagamento do
grão transforma cerca
de 80% do volume da
soja em farelo e 20%
em óleo bruto.
O farelo é quase todo
usado como ração.
Mas a par tir do óleo
bruto são gerados
diversos produtos,
como óleo refinado,
gordura hidrogenada,
margarina, lecitina de
soja, tintas,
cosméticos, produtos
farmacêuticos e
medicinais.
Fonte: Pereira, 2004.
2
Entre 1995 e 2005, a produção de soja no mundo aumentou 60%.
5
O BRASIL ESTÁ NU! O AVANÇO DA MONOCULTURA DA SOJA, O GRÃO QUE CRESCEU DEMAIS
A soja vem se tornando o principal item do cardápio dos animais criados em cativeiro por
conter alto teor de proteína vegetal. Segundo a empresa norte-americana ADM, uma das
multinacionais do setor, os aminoácidos presentes no farelo de soja são altamente
digestíveis. O farelo de soja é usado como fonte de aminoácidos para estes animais em
todas as suas fases de vida. Já o milho, também usado largamente como ração, é utilizado
como fonte de energia.
Segundo projeções do Fundo das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO),
o consumo de carne de frango e de laticínios tende a crescer acima da média dos
demais alimentos. Várias pesquisas, como da FAO e também do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), indicam que as pessoas comem mais carne quando passam
a ganhar melhor: quanto maior a renda, menor o consumo de cereais e tubérculos, e
maior o de carnes.
Além disso, de acordo com o antropólogo Sidney Mintz, há uma tendência à globalização
dos hábitos alimentares, e este fenômeno atribui status social ao consumidor de carne.
No Japão, por exemplo, o consumo de arroz por pessoa caiu quase pela metade entre
1961 e 2000 (de 107 kg para 65 kg), mas o de carne foi multiplicado por oito no mesmo
período (de 5 kg para 40 kg). Por sua vez, em 1990 o povo chinês já comia três vezes
mais carne do que em 1961.
Por essa razão, prevê-se uma ampliação da área plantada com soja, basicamente na
América do Sul, em especial no Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia, onde estaria
localizada a maior par te das “terras disponíveis”3 apropriadas para o plantio da soja.
Já os países desenvolvidos tendem a plantar proporcionalmente menos do que hoje em
dia. Por tanto, caberá a alguns países em desenvolvimento suprir a demanda e arcar com
os prejuízos sociais, ambientais e econômicos.
Agroecológica
Baseada na
diversidade de
lavouras numa
mesma área de
plantio, com uso
exclusivo de
componentes naturais
(no lugar de produtos
químicos): plantas,
animais,
microorganismos,
água, minerais etc.
O modelo favorece
a agricultura familiar
e a segurança
alimentar.
Biodiesel
Combustível
produzido a par tir de
fontes renováveis
para ser usado em
substituição ao diesel
proveniente do
petróleo.
3
6
Assim, para frear os impactos da cultura da soja no Brasil é necessário mudar
os hábitos alimentares e também o modo de se criar os animais. Nesse sentido,
organizações não governamentais européias discutem o lançamento de campanhas a favor da redução do consumo de proteína animal, enquanto outras
estimulam a produção de soja agroecológica. O Greenpeace ataca o mal pela
raiz: suas campanhas recentes alertam que o consumidor de carne européia
está “devorando” a Amazônia, por causa do desmatamento provocado pela
expansão das lavouras nas áreas de floresta.
Apenas uma pequena parcela da produção desta oleaginosa é consumida
diretamente pelo ser humano. Os brasileiros costumam cozinhar com o óleo de
soja. Já os chineses – habitantes da região de onde se origina a soja – possuem
a tradição milenar de fazer shoyo (molho), misso (sopa) e tofu (queijo). Atualmente, diferentes indústrias também usam o óleo de soja como um dos ingredientes de produtos como chocolates, biscoitos, margarinas, pães e sor vetes.
Recentemente, os grandes empresários da soja passaram a defender o uso do
seu óleo bruto para produzir biodiesel. Mas, para isso, eles querem que o
governo lhes conceda mais incentivos.
Pelas contas do Ministério da Agricultura, ainda existiriam 70 milhões de hectares supostamente disponíveis para
novos plantios no Cerrado – número superior à área já tomada atualmente pela agropecuária neste bioma (57 milhões
de hectares, de acordo com os dados oficiais). Esse número manteria intacta apenas a área obrigatória de reser va
legal definida pelo Código Florestal (35% do total para a área de cerrado na Amazônia Legal e 20% nas demais).
Ainda haveria áreas de floresta amazônica.
O BRASIL ESTÁ NU! O AVANÇO DA MONOCULTURA DA SOJA, O GRÃO QUE CRESCEU DEMAIS
Números que impressionam a nação
Governos, meios de comunicação e entidades ligadas ao agronegócio não poupam esforços
para difundir os “benefícios” da expansão da soja, em geral usando números que tentam
impressionar e provocar o orgulho da nação. Nesta linha, as estatísticas econômicas do
setor ganham mais peso do que os dados da destruição social e ambiental gerada pela
ampliação da monocultura.
Desde a chegada dos por tugueses, as riquezas naturais do Brasil têm sido exploradas
ao máximo e destinadas principalmente ao mercado externo. Primeiro foi o pau-brasil;
depois vieram os ciclos do ouro, do diamante, do café, da cana-de-açúcar e da borracha.
O atual “ciclo da soja” reproduz práticas semelhantes no que diz respeito à exploração
dos recursos naturais. Mais uma vez é a monocultura que cresce; mais uma vez é o
trabalhador que sai perdendo.
Brasil: crescimento da produção por estado (em mil ton.)
REGIÃO/UF
1995/96
2005/06
NORTE
Roraima
Rondônia
Amazônia
Pará
Tocantins
NORDESTE
Maranhão
Piauí
Bahia
CENTRO-OESTE
Mato Grosso
Mato Grosso do Sul
Goiás
Distrito Federal
SUDESTE
Minas Gerais
São Paulo
SUL
Paraná
Santa Catarina
Rio Grande do Sul
14,2
4,9
–
–
–
9,3
921,9
199,6
23,0
699,3
8.846,4
4.686,8
2.045,9
2.046,2
67,5
2.274,5
1.040,2
1.234,3
11.132,7
6.241,1
489,3
4.402,3
1.338,3
56,0
260,1
8,4
228,6
785,2
3.574,3
972,4
618,3
1.983,6
27.787,4
16.768,5
4.460,5
6.396,7
161,7
4.488,5
2.840,4
1.648,1
18.524,8
9.682,9
831,8
8.010,1
NORTE/NORDESTE
936,1
4.912,6
CENTRO-SUL
22.253,6
50.800,7
BRASIL
23.189,7
55.713,3
FONTE: CONAB – Levantamento: Abr/2006.
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O BRASIL ESTÁ NU! O AVANÇO DA MONOCULTURA DA SOJA, O GRÃO QUE CRESCEU DEMAIS
Entre os números da soja propalados pela mídia, destacamos:
•
•
•
•
•
•
O Brasil é o segundo maior produtor e exportador de soja do mundo, atrás apenas
dos Estados Unidos. Em 2003 e 2004, o país chegou a ser o maior exportador
mundial de soja, posição que deve voltar a ocupar nos próximos anos.
Um terço de toda a soja comercializada no mercado internacional é brasileira.
Em 2005, a soja respondeu por oito por cento das exportações do país. Em divisas
totalizou cerca de US$ 9,5 bilhões.
Quase a metade dos grãos plantados no Brasil é de soja, uma cultura que ocupa
uma área4 equivalente a cinco vezes e meia o território da Holanda.
A produção de soja saltou de 12,1 milhões de toneladas em 1976/1977 para
mais de 50 milhões de toneladas desde a safra 2004/2005, segundo a Companhia
Nacional de Abastecimento (Conab).
A produtividade passou de 1.748 kg/ha em 1976/1977, para 2.329 kg/ha em
2003/2004, último dado confirmado pela Conab que, para 2005/2006, estimava
um rendimento ainda maior: 2.511 kg/ha.
O que há por trás dos números
Isenções fiscais
Quando o governo
abre mão de receber
impostos de
determinado setor. A
medida afeta toda a
sociedade pois a
isenção faz cair a
arrecadação de
recursos do Estado e,
conseqüentemente,
diminui sua
capacidade de
investir em outras
áreas, como saúde e
educação.
Perdão de dívidas
Quando o governo
abre mão de receber
o dinheiro que
emprestou aos
agricultores, o que
também afeta toda a
sociedade, pois
compromete o
orçamento público.
Para alcançar tais resultados, o agronegócio – incentivado pelos governos
federal, estaduais e municipais através de isenções fiscais, perdão de dívidas
e outros estímulos – ignorou e ainda ignora tudo aquilo que se apresenta no
seu caminho. Assim, boa parte do Cerrado – “onde não havia nada”, dizia-se –
já foi “desbravada”. A estrela do momento é a Floresta Amazônica, onde a
expansão de algumas áreas plantadas com soja chegou a mais de 300%, entre
1995 e 2003.
A Amazônia e o Cerrado são dois dos biomas mais ricos em biodiversidade do
planeta. Suas florestas, suas águas, seus animais, seus povos tradicionais e
sua cultura estão sendo impactados pela soja, assim como já o foram décadas
atrás com a chegada do gado na região. Tais acontecimentos mostram que
a lógica econômica brasileira está longe de incorporar o conceito de desenvolvimento sustentável.
Ritmo da expansão da soja no Brasil, por estado
Biomas
Diz-se de cada
comunidade da
natureza composta
por fauna e flora
específicas,
geralmente com uma
espécie de vegetação
predominante. O
Brasil tem seis
biomas: Amazônia,
Cerrado, Caatinga,
Mata Atlântica,
Pantanal e Pampa.
Fonte: CONAB
4
8
Totaliza cerca de 22,2 milhões de hectares, segundo a Conab (safra 2005/2006).
O BRASIL ESTÁ NU! O AVANÇO DA MONOCULTURA DA SOJA, O GRÃO QUE CRESCEU DEMAIS
Exportação de água “virtual”
Um dos fatores de “eleição” da América do Sul como principal região de expansão do
agronegócio é a “disponibilidade” de água doce no continente. As monoculturas em geral
necessitam de grande quantidade de água, um produto caro e em extinção nos países
desenvolvidos e também na China, onde os rios e lençóis freáticos estão hoje tão contaminados que não permitem mais o crescimento da agricultura naquele país. É por isso
que a China, um país de grandes dimensões, compra tanta soja do Brasil e de outras
nações, em vez de produzir em seu próprio território.
Assim, indiretamente, a China comprou 45 km3 de água doce5 ao impor tar 18 milhões de
toneladas de soja em 2004. Ou seja, esta foi a quantidade média de água usada nas
lavouras para produzir as 18 milhões de toneladas de soja. Se quisesse produzir em seu
território, a China teria de gastar seus recursos hídricos, hoje escassos.
Portanto, o mau uso dos recursos hídricos nas lavouras de soja – e também nas plantações de eucalipto, nas áreas de pastagem etc. – põe em risco o abastecimento futuro de
água também no Brasil.
Total de soja comprada pela China
Fonte: Água vir tual: a água que consumimos sem ver. Vânia Rodrigues, www.aesabesp.com.br/ar tigos_agua_virtual.htm.
Quem perde com o avanço da monocultura
•
•
•
•
•
A agricultura familiar tradicional e ambientalmente mais sustentável, responsável
pela produção de alimentos consumidos pela população brasileira e pela criação
de postos de trabalho no campo.
A silvicultura, o agroextrativismo, a pesca ar tesanal e outras atividades agrícolas
tradicionais dos habitantes das regiões de expansão do cultivo da soja.
A segurança alimentar da população brasileira, pois quase três quartos Segurança
da produção de soja no Brasil se destinam a alimentar frangos, porcos e alimentar
Quando as pessoas
bois criados em cativeiro nos países impor tadores de soja.
têm garantias de
A soberania econômica. Da produção de sementes à comercialização do acesso físico e
econômico a uma
produto final é crescente a presença das multinacionais de alimentos.
alimentação nutritiva
A biodiversidade brasileira, incluindo a disponibilidade de recursos natu- o suficiente para lhes
propiciar uma vida
rais, como água, em benefício da população.
ativa e saudável
(definição da FAO).
5
Esta quantidade é igual a quase dois terços de toda a água usada para consumo humano no mundo inteiro.
9
De perto, a história é outra
A expansão da cultura da soja
na visão da gente do campo
Um outro Sorriso é possível
Até meados do século passado, o Cerrado “onde não havia nada” era terra de tribos que
foram removidas – a maior parte para o Parque Indígena do Xingu (MT) – para dar lugar à
colonização da região. A história de Sorriso, no Mato Grosso, antiga terra do Povo Kaiabi,
é um exemplo desta dinâmica. Situado entre áreas de Cerrado e de Floresta Amazônica, o
município hoje abriga a maior área plantada com soja do planeta, correspondendo a 4% do
total colhido no Brasil. Dois terços6 de Sorriso estão ocupados pela monocultura da soja!
Voltando um pouco no tempo, durante as décadas de 1950 e 1960, o governo do Mato
Grosso promoveu uma grande venda de terras nas regiões nor te e noroeste do estado,
onde se localiza Sorriso, para que fossem colonizadas por par ticulares. Esta tentativa
não viria a ter sucesso, pelo menos naquele período: ao invés do surgimento de novos
núcleos urbanos e rurais, houve uma concentração de grandes extensões de terras nas
mãos de proprietários individuais.
Na maioria dos casos, a propriedade tinha caráter meramente especulativo, tanto que,
anos depois, essas áreas começaram a ser vendidas principalmente para agricultores da
região Sul do país, que negociavam suas próprias terras para adquirir outras maiores no
Centro-Oeste.
Vale ressaltar que os primeiros proprietários requereram os títulos das áreas diretamente do Estado, beneficiando-se das facilidades de acesso às terras públicas. Estas foram
posteriormente renegociadas com agricultores do Sul, com a intermediação de uma
empresa “colonizadora” ou adquiridas diretamente do proprietário.
Atualmente Sorriso exibe os traços históricos da monocultura no Brasil, dentre os quais
destaca-se o amplo fosso entre os poucos ricos fazendeiros e as populações pobres,
subempregadas ou sem terra.
“Ao longo desses 17 anos que a gente vive no município de Sorriso, a gente
vivenciou muitas fases, inclusive quando chegando [referindo-se aos anos de 1990
e 1991] havia uma certa facilidade no mercado de trabalho porque era um momento que o grande capital estava adentrando no município e por conta disso
tinha uma oferta de trabalho grande, somente nesse momento que teve essa
facilidade, a partir disso, de acordo com que as grandes propriedades conseguiram abrir suas áreas, pronto, meio que já veio fechando essa questão do mercado
de trabalho (...). O trabalho é muito escasso, inclusive esse ano [2006], nesses
três, quatro anos últimos a gente vem sentido essa questão de escassez de vagas
no mercado de trabalho. Até por conta disso, porque Sorriso é dos municípios
mais velhos nessa questão da agricultura empresarial; aqui, as áreas são todas
6
10
Segundo o Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica por Satélite (Prodes), 56% da cober tura vegetal original
do município eram de floresta e 44% de Cerrado, a maior par te já desmatada.
praticamente abertas já, aí que ocorre a questão da exclusão, da grande exclusão,
porque a grande propriedade tem normalmente quatro a cinco funcionários e o
restante é através de implementos, de maquinários.”
Agricultor familiar, hoje coordenador do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Sorriso
Entretanto, o que costuma sair nos meios de comunicação é o enriquecimento do município com o cultivo da soja. Mansões, carros de luxo e máquinas modernas nas plantações
atraem mais a atenção do que o crescimento da pobreza na região, ou seja, é a repetição
do modelo de “desenvolvimento” adotado pelo Brasil desde a chegada dos portugueses.
Essa dinâmica não convence a todos, conforme pode ser lido no Portal do Governo do Mato
Grosso (www.mt.gov.br). O texto é de autoria de Marcel Mayozer, do Instituto Nacional de
Agronomia da França.
“Mais globalmente, para a economia mundial a cur to prazo, a baixa dos preços
das matérias-primas agrícolas (caso da soja) beneficia as indústrias de transformação e a distribuição, e pode beneficiar os consumidores e favorecer a poupança.
Mas, a médio e a longo prazo, esta situação reduz a renda de 3 bilhões de agricultores (em todo o mundo), e progressivamente empobrece estas populações até
alcançarem uma situação de subnutrição e até mesmo a fome para uma grande
par te delas. Por fim, esta situação aumenta o êxodo rural e maximiza o desemprego,
que já atinge 25% da população ativa mundial, exercendo uma pressão negativa
sobre os salários já muito baixos obtidos pela mão-de-obra não qualificada.”
Dados também do governo do estado do Mato Grosso confirmam a queda da renda do
produtor de soja por três anos seguidos. O quadro mudou após anos de valorização do
produto, período de prosperidade que levou mais e mais pessoas a plantarem soja.
Entretanto, entre 2004 e 2006, o agricultor matogrossense passou a ganhar menos da
metade do que recebia.
Preço máximo pago ao produtor de soja no MT (R$/sacas de 60 kg)
Valores reais
Fonte: Seder / Governo do Mato Grosso (meses de referência: abril de 2004,
abril de 2005 e março de 2006, meses de colheita da safra anual).
Essa dinâmica de preços ocorre no setor agrícola há décadas; e já atingiu o
café, o açúcar, o arroz, o algodão e outras culturas. Em 50 anos, os valores reais
dos produtos agrícolas foram divididos por quatro ou cinco. Também por esse
fator a soja não beneficia a população e sim as indústrias de transformação
e distribuição.
Deduz-se a inflação
verificada neste
período para
encontrar o mesmo
poder de compra da
época.
Indústrias de
transformação
Que adquirem o grão
para transformá-lo em
farelo e óleo de soja
e outros produtos.
11
O BRASIL ESTÁ NU! O AVANÇO DA MONOCULTURA DA SOJA, O GRÃO QUE CRESCEU DEMAIS
Exclusão no Baixo Araguaia
A região do Baixo Araguaia7, no nordeste do Mato Grosso – uma das recentes frentes de
expansão do agronegócio brasileiro, tendo a sojicultura e a pecuária como atividades
principais –, também reflete a desigualdade socioeconômica do país, sempre associada
a ações governamentais e privadas que excluem as populações locais.
No passado, o Baixo Araguaia era habitat dos Povos Xavante, Tapirapé, Karajá, entre
outros que hoje habitam o Parque Nacional do Araguaia (TO) ou o Parque Indígena do
Xingu (MT). No início do século XX, a região passou a abrigar também grupos de camponeses que se deslocavam do Nor te e Nordeste, muitos a pé, em busca de terras para
desenvolver uma agricultura no modelo familiar.
Na década de 40, este panorama começa a mudar. O governo Getúlio Vargas (1930-1945)
patrocinou o Programa “A Marcha para o Oeste”, com o objetivo de criar núcleos populacionais em diversas áreas do Brasil central. O governo Vargas considerava o Mato Grosso
um grande “vazio demográfico”, com terras que poderiam ser aproveitadas para a produção
econômica. Neste período ocorre a expulsão de várias tribos indígenas de suas terras
ancestrais, que passam a ser loteadas pelo próprio poder público. Os governos seguintes mantiveram a política de ocupação, que atingiu também os agricultores familiares.
“Há cerca de 40 mil processos em andamento no Depar tamento de Terras do
Estado [MT], o que significa estar sendo o estado inteiro, por assim dizer, loteado
e vendido a prestações. Os preços contrastam violentamente com os que vigoram
entre nós [SP], e pode-se adquirir terras devolutas nas regiões das Dúvidas, na
7
12
Abrange 14 municípios: Alto Boa Vista, Bom Jesus do Araguaia, Canabrava do Nor te, Confresa, Luciára, Novo Santo
Antonio, Por to Alegre do Nor te, Ribeirão Cascalheira, São José do Xingu, Santa Cruz do Xingu, Santa Terezinha, São
Félix do Araguaia, Serra Nova Dourada e Vila Rica, que no conjunto ocupam 9,4 % do território do estado.
DE PERTO, A HISTÓRIA É OUTRA
Barra do Garças, do Bugre, em Diamantino, em Aripuanã, por mais ou menos
25 cruzeiros o alqueire paulista! Paga-se o corretor, o despachante, paga-se o
engenheiro que deve fazer a medição e fica-se latifundiário de um instante para o
outro com menos de dois contos de réis.”
Jornal O Estado de São Paulo, 1954 (citado por SIQUEIRA, E. M. História de
Mato Grosso: da ancestralidade aos dias atuais. Cuiabá: Entrelinhas, 2002)
A partir da segunda metade dos anos de 1960, o governo militar implanta um novo ciclo
de ocupação, estimulado também pelos programas de colonização e de incentivos à
criação de grandes projetos agropecuários. Foram atraídas famílias de diferentes estados
brasileiros, motivadas pela possibilidade de acesso à terra. Por outro lado, os programas
de incentivos fiscais, controlados pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia
(Sudam), foram responsáveis pela implantação de grandes agropecuárias, com o predomínio da criação extensiva de gado de corte.
Dentre os projetos financiados estava a Agropecuária Suiá-Missu, que ficou conhecida
como um dos maiores latifúndios do Brasil, com mais de um milhão de hectares8, instalada em áreas per tencentes ao Povo Xavante. À medida que a formação das pastagens
avançava, as antigas aldeias eram deslocadas, ficando para trás suas roças, casas,
cemitérios e outras referências. Houve tensão e conflito entre a agropecuária e os índios e
a solução encontrada pelos proprietários, em acordo com o extinto Serviço de Proteção ao
Índio, foi a transferência dos Xavantes, em 1967, para a Missão Salesiana de São Marcos
e outras áreas. Em 2004, por decisão judicial, a fazenda – hoje Reserva Marãiwatsede –
foi devolvida aos índios Xavantes, mas os conflitos continuam devido à permanência de
posseiros, madeireiros e fazendeiros na área.
De 1985 a 2005, com o objetivo de reduzir o número de conflitos envolvendo os antigos
posseiros que habitavam a região há décadas e os novos ocupantes, o governo federal
criou 56 projetos de assentamentos de reforma agrária em uma área de 1.147.501
hectares, com capacidade de assentar 13.903 famílias.
Vale ressaltar que a Constituição de 1988, na verdade, concede o direito de propriedade aos
posseiros que ocupam áreas de até 50 hectares há pelo menos cinco anos. Trata-se do
chamado usucapião rural que, entretanto, não vale quando o dono da terra for o governo.
Art. 191/Constituição Federal. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural
ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de
terra, em zona rural, não superior a 50ha, tornando-a produtiva por seu trabalho
ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
A soja foi introduzida na região neste ambiente de relativa instabilidade das relações
sociais no campo; provocou a valorização das terras e gerou mais conflitos entre os
interessados em adquirir áreas e os posseiros, assentados e povos indígenas. O crescimento da sojicultura foi ver tiginoso; em apenas quatro anos a área plantada9 foi multiplicada por nove.
“Onde a gente está sentindo assim um impacto muito forte é no município de Bom
Jesus, que é uma fazenda muito grande de gado que transformou tudo aquilo em
soja. É um impacto muito grande. No próprio corgo da cidade houve contaminação,
e aí os agricultores ficam um pouco apreensivos porque as pragas, com o uso
8
Para efeito de comparação, o Parque Nacional da Amazônia possui um pouco menos: 994 mil hectares;
o Pantanal Matogrossense tem 138 mil hectares.
9
De 11.770 hectares, em 2002, as lavouras passaram a ocupar 104 mil ha, em 2005.
13
O BRASIL ESTÁ NU! O AVANÇO DA MONOCULTURA DA SOJA, O GRÃO QUE CRESCEU DEMAIS
intensivo dos venenos, as pragas correm tudo para as plantações do pequeno
produtor, porque lá não tem veneno. Então, se você propõe fazer uma agricultura
diferenciada sem o uso de agrotóxico, se o vizinho está usando, se ele não usar
também corre o risco de a praga vir comer as plantas dele tudo, porque ele produziu
um desequilíbrio muito forte aqui na região. Mas ainda há, na maioria da região,
um certo cinturão que separa essa monocultura (soja, algodão, arroz) de onde
está localizado o agricultor familiar. (...) você tem uma faixa intermediária de mata
ou uma fazenda de pecuária no intervalo, na maioria do caso não tem um contato
direto com as plantações de soja e se tiver também está enrolado.”
Tadeu Escamo, coordenador do Programa Nacional de Gestão
Ambiental Rural (Gestar), do Ministério do Meio Ambiente
“Porque eles falam assim, o grande vem e traz o progresso para a região. Eu sou
contra assim, depende do progresso, porque vim para a região, para o município e
fazer igual a eles aí, tirar do solo tudinho, arrancar as árvores, arrancar tudinho e
só deixar o agrotóxico, o deserto aí. Porque as famílias deles não vêm aqui não, ela
fica em São Paulo, fica em Cuiabá e aqui eles só mexem com peão aqui. Quem está
aqui que se lasca, eles jogam veneno e pronto. Os animais que estavam no mato,
os peixes que estavam no rio, as árvores que estavam de pé que sustenta o rio.
Porque o clima aqui, há 20 anos atrás, aqui chovia todos os dias e hoje você vê,
é minguando, de acordo que o desmatamento está andando está minguando a
chuva, e muito mesmo.”
Antonio Silvino, assentado do PA Liberdade, Canabrava do Norte
Soja em Santarém: um péssimo exemplo
Muito antes da introdução da soja, o estado do Pará já havia enfrentado momentos
difíceis após o declínio dos ciclos do cacau, na primeira metade do século XIX, e da
borracha, no início do século XX. A partir da década de 1960, o modelo de ocupação do
território do Pará deu início a um ciclo de disputas pela posse e uso da terra, que fizeram
do estado aquele que apresenta os maiores índices de violência no campo10 em todo o
Brasil até os dias de hoje.
Atualmente, é uma das áreas que registra os maiores índices11 de ampliação do cultivo
da soja, o que vem se verificando desde o ano 2000. Assim como no Centro-Oeste, na
Amazônia a forma de produção predominante é o latifúndio, que expulsa agricultores
familiares de seus lotes. Dois municípios têm se destacado: Santarém e Belterra, que já
eram pólos agrícolas importantes regionalmente, apresentando uma agricultura familiar
diversificada e consolidada há décadas, mas que hoje vê-se ameaçada pelo avanço da
monocultura da soja.
A maioria dos depoimentos de agricultores e lideranças sindicais é marcada pela preocupação com a venda de terras de produtores familiares aos sojicultores, dinâmica que
tem provocado o desaparecimento de diversas vilas.
“E tem comunidades que o maior problema é assim, porque você vende e o outro
vende e alguns agricultores ficam imprensados aqui, e chega o momento em que eles
são obrigados a vender. De certa forma é uma expulsão bem calma. Porque você
10 Segundo a Ouvidoria do Ministério do Desenvolvimento Agrário, em 2004, 37,5% das mor tes decorrentes de conflitos
agrários no Brasil aconteceram na região Nor te; e destas, 67% no Pará.
11 Santarém e Belterra concentraram 44% da produção de soja do Pará, em 2004. Somente na última safra (2005/2006),
a área plantada com soja no estado cresceu 15,5%, em relação à safra anterior, segundo a Conab.
14
DE PERTO, A HISTÓRIA É OUTRA
está acostumado com a agricultura familiar e lá ele cria galinha, porco, carneiro e
plantas. Onde se planta soja o veneno é muito alto. Como exemplo, na comunidade
[de Tracuá, em Belterra] ele tinha uma criação de porcos, acabou. Tinha uma criação
de galinha caipira, acabou, ele tinha um plano de criar abelhas, acabou. Por quê?
Vinte metros, do outro lado, tinha uma grande plantação de soja. Todo bichinho
que saía daqui com sintoma de envenenamento a galinha dele comia, o porco, e iam
morrendo. Ele se obrigou a vender a terra dele e vendeu barato e está em outro
local, porque não teve mais como supor tar. A área dele já era pequena. A abelha
que ele ia criar ia lá na flor da soja e ficava envenenada. As crianças que iam para
a sala de aula, no momento que jogavam veneno, era insuportável a contaminação
com crianças”.
Venilson José Ferreira da Silva, presidente do Centro de Estudos e Formação
de Trabalhadores Rurais do Baixo Amazonas (CEFTBAM)
Abaixo, publicamos depoimentos não-identificados a pedido dos entrevistados, que alegaram motivos de segurança:
“Eles compraram de um lado e outro da estrada, a pessoa ficou lá no fundo, aí eles
proibiam a pessoa de passar, porque a propriedade era deles de um lado e de
outro, e eles plantam até na estrada e as pessoas ficam sem estrada. Essa aí é uma
coisa que eles usam muito. Fizeram isso aqui no Jabuti, lá na Baixa D’água fizeram
assim também. Esse da chacina proibiu as pessoas que moravam no outro lado
de passar por dentro da propriedade. Tinham que dar uma volta muito grande.”
“Se eu tô plantando maracujá, laranja, tangerina e eles plantam do meu lado e por
trás do meu terreno, aí eles começam a passar veneno no arroz deles e na soja e
me prejudicam, eu digo que o veneno que eles usam diminui a produção de frutas,
porque um deles disse pra mim: ‘se ele não quer vender, eu compro dos 13 depois
uso um veneno lá que ele não vai colher nada lá e vende pra mim’, ele falou bem
aqui, igual nós estamos aqui sentados.”
“Quando eu tava lá, nosso medo era de ficar muito isolado, porque já estava, dava
uma tristeza, chegava na estrada olhava pro lado, nenhum vizinho, nenhuma pessoa
andando. O ônibus que era o que vinha pra cidade não ia mais lá porque era pouca
gente, não recompensava mais entrar, a gente brigava. Às vezes, quando a gente
ia daqui de Santarém e voltava ele entrava pra deixar a gente. Mas pra pegar...
Aí, lá no planalto, tem aquela lama, choveu é lama. Como é que a gente ia levar os
produtos, a farinha, a melancia, até pegar o ônibus? Aí nós conseguimos uma
carroça pra nós, outros também. Aí, essas dificuldades iam acontecendo. Aí, tudo
isso ia desanimando, e nem podia sair de casa porque era um fedor no dia de
pulverizar. Porque a gente quando pulveriza mesmo com inseticida caseiro é no
final da tarde. Eles não, é de dia porque é muita área.”
Os depoimentos de Santarém espelham a realidade que os agricultores familiares locais
estão enfrentando. Boa par te, inclusive alguns dos entrevistados, já deixou o campo e
hoje tenta a vida na cidade. São exemplos atuais de êxodo rural, provocado não pela
busca de uma vida melhor na cidade, mas pelo modelo excludente de desenvolvimento
econômico patrocinado pelo Brasil há 500 anos, com o apoio dos governantes.
15
O BRASIL ESTÁ NU! O AVANÇO DA MONOCULTURA DA SOJA, O GRÃO QUE CRESCEU DEMAIS
Campos (outrora) Lindos
Campos Lindos, que no passado foi terra dos índios Xavantes, lidera a produção de soja
no Tocantins, estado criado pela Constituição de 1988. O que mais chama a atenção
na história recente do município é que o avanço da soja decorre da doação de terras
feitas pelo governo do estado a pessoas de bom relacionamento com o poder público.
Através de decreto (nº 436/97), o governo desapropriou para fins de utilidade pública
uma extensão de 105 mil hectares no Loteamento Santa Catarina, localizado na chamada
Serra do Centro.
Os beneficiários não foram os agricultores que moravam nessas terras – muitos dos
quais havia mais de cinco décadas –, e sim empresários do Sul e Sudeste do país, que
receberam essas áreas de “presente”12. Quase todas as famílias que moravam de fato
na localidade foram expulsas e os lotes divididos entre políticos como o ex-presidente
da Infraero Adyr da Silva; o ex-ministro da agricultura Dejandir Dalpasquale; e a então
presidente da Federação da Agricultura no Estado do Tocantins (FAET), deputada federal
Kátia Abreu (PFL/TO), eleita senadora no pleito de 2006.
A Serra do Centro é hoje a área que concentra quase toda a produção13 de soja em
Campos Lindos. Avalia-se que existam atualmente na localidade aproximadamente 41 mil
hectares de soja, 3 mil hectares de arroz e 1.200 hectares de milho.
O sistema de produção desenvolvido pelas comunidades locais antes da chegada da
soja baseava-se no extrativismo de bacuri, buriti, buritirana, caju, pequi (produção de
sabão de coada), bacaba, mangaba, piaçava (produção de óleo) e mel; na ‘roça de toco’
produzindo arroz, milho, mandioca, feijão de corda, fava, abóbora, melancia, banana,
abacate, abacaxi, algodão; na criação de suínos e aves; na caça de animais silvestres
(veado, catitu, anta, ema, siriema, cutia, tatu, perdiz); e na pesca, quando os peixes
ainda existiam em abundância. Este sistema de produção garantia a segurança alimentar
das famílias, com uma dieta de alta diversificação, e ainda podia gerar renda proveniente
da comercialização do excedente na feira.
FOTO: MARIANA CASTILHO
Atualmente já não é possível manter esse sistema:
“A vida era de muita riqueza e far tura, todo mundo fazia roça e
plantava de um tudo: arroz, mandioca, milho. Criava as criação
porque naquela época não tinha impidemia. Tinha muita caça: tinha
muito veado do campo, o catingueiro, tinha o porcão [o queixada],
tinha muita anta, tinha muita ema.... tudo tinha neste tempo. Tinha o
caititu, muita paca, muito tatu. Meu pai criou nós na carne da caça.
Não tinha gado. Só a roça e as criação era galinha e pato, mas nós
não morria de fome (....) Tinha muita fruta, porque as ár vore tinha
muita... Tinha o pequi primeiramente, o bacuri. Tudo tinha com
far tura. Era pra donde saía. Pra donde saía topava. Tinha o coco
[babaçu]... Depois de casada, nos primeiros anos criava porco, tinha muita caça,
o marido criava gado solto. Depois que chegou essa impestiação aí, criamos num
cercadinho, tem poquinho. Quando era criado solto tinha muito. Nós tudo tinha gado,
mas depois quando passo pra trancá, quem é que dá conta? Não podia dá conta,
hoje nós não temos cabeça de nada.”
Maria Florência Ribeiro, da comunidade rural Vereda Bonita
12 Este ‘presente’ custou mais de R$ 1 milhão aos cofres públicos do estado, que pagou indenização a pretensos
proprietários do loteamento, a maioria jamais vista na região.
13 No período 1997-2004, a área plantada com soja em todo o município aumentou cem vezes: de 450 para 45 mil ha;
enquanto a produção passou de 1.491 para 121 mil toneladas.
16
DE PERTO, A HISTÓRIA É OUTRA
“Dizem que Campos Lindos é uma riqueza só, mas como é possível? Para onde vai
a riqueza da soja? Por aqui não fica. Se ela fica, está no bolso de alguém. O futuro
para nós está muito difícil”
Adão Macaxeira, ex-posseiro da Fazenda Sussuarana,
Campos Lindos
Trabalho escravo
Em todas essas localidades onde se verifica a expansão da soja existem registros de
trabalho escravo ou análogo à condição de escravo. O governo brasileiro e a Comissão
Pastoral da Terra (CPT) estimam que 25 mil pessoas estejam, hoje, em situação de
escravidão no país. Os registros14 se concentram especialmente nos estados da Amazônia
Legal, atual fronteira agrícola do país.
Os casos de trabalho escravo são mais comuns em fazendas de gado, mas também
ocorrem durante a abertura de novas áreas para o plantio de soja. No Tocantins, em
2005, foram cinco denúncias envolvendo fazendas de soja, três delas em Campos
Lindos (CPT, 2006).
“Entre 2000 e 2001 fui escravizado na fazenda do Sr. Dejandir Dalpasquale. Lá trabalhei na derrubada do pequi, bacuri, destruí todo o Cerrado e queimei. Na época
éramos uns 40. Vivíamos em barraco de plástico. Agüentamos uns três meses e
resolvemos denunciar no sindicato. A fiscalização chegou. Estou sabendo que lá
continua a mesma coisa. Muitos não têm coragem de denunciar.”
Pedro Piauí, posseiro da Fazenda Sussuarana,
Campos Lindos
14 Em 2005, foram 276 denúncias de trabalho escravo, 7.707 trabalhadores envolvidos e 4.585 trabalhadores liber tados
pelo Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. Os estados campeões em denúncias foram Pará
(123), Tocantins (41) e Maranhão (33).
17
Tecnologia gera mais exclusão,
mais destruição
Modernos equipamentos e insumos
permitem aumento da produtividade,
mas, além de caros, podem provocar
danos ambientais irreversíveis
Insumos
Inclui todas as
despesas e
investimentos
necessários à
produção, como
sementes, máquinas
e produtos químicos.
Transgênicas
Que contém um ou
mais genes
transferidos
ar tificialmente de
outra espécie (Fonte:
Dicionário Houaiss).
No mundo moderno quem tem tecnologia sai na frente. No campo, o produtor
precisa gastar cada vez mais com os insumos que, a cada ano, se sofisticam e
encarecem. As novas tecnologias encontradas hoje nas colheitadeiras, nas
semeadeiras e nos tipos de semente – como as transgênicas – exigem do
produtor muito dinheiro. O investimento necessário é viável apenas para grandes propriedades15, que têm ganho de escala, ou seja, em função da quantidade plantada, precisam investir proporcionalmente menos em relação aos futuros ganhos.
O pequeno produtor encontra dificuldade de acompanhar o mercado de inovações tecnológicas; e a conseqüência é a perda de competitividade, pois o custo
de sua produção será maior do que a do latifundiário. Muitas vezes ele não
consegue lucro algum.
Frente a esta situação, alguns agricultores encontram duas opções: a primeira é arrendar terras vizinhas e, desse modo, ampliar sua área de cultivo, solução comum em áreas
de assentamento, pois permite dividir o custo dos investimentos em tecnologia entre
várias famílias. A segunda é a venda do lote, que permite ao pequeno produtor adquirir
áreas maiores em regiões mais distantes, prática utilizada tanto por pequenos quanto
por médios e grandes produtores para ampliar a lavoura. Outra saída é a formação de
cooperativas e demais formas de se trabalhar em conjunto, por exemplo, comprando
uma colheitadeira a ser usada por todo um grupo de agricultores de menor porte da
mesma região.
Custos sócio-ambientais
Esse quadro poderia ser diferente se os preços embutissem os danos sociais e ambientais
decorrentes da monocultura, que exige quantidade bem maior de produtos químicos16,
atingindo o solo, rios, lagos e igarapés, as pequenas plantações e criações de animais
do entorno e as comunidades locais.
“Existe o desaparecimento de vários igarapés importantes, inclusive são cursos
d’água bastante impor tante pra pecuária e também para a sobrevivência das
famílias que habitavam às margens desses igarapés. Nós temos exemplos aqui
15 Nas grandes fazendas do Cerrado e da Floresta Amazônica a média de empregos seria de dez trabalhadores para cada
mil hectares, sendo quatro fixos e seis temporários (WHITE, C., 2004).
16 As lavouras de soja, em sistema de plantio convencional, são altamente dependentes de agrotóxicos em todas as fases
da produção, desde o tratamento da semente até a colheita. O surgimento de novas doenças, como a ferrugem asiática
ou aparecimento de novos insetos, como a mosca branca, tem elevado a dependência de insumos químicos.
18
do Igarapé do Cedro, na Santarém-Cuiabá, no km 130, que era o maior igarapé de
nossa região, e que nesses últimos anos ele veio reduzindo o volume de água
quantitativamente e qualitativamente, porque toda a área de nascentes de mananciais está dentro de uma grande propriedade que foi usada para plantio de soja.
O igarapé secou completamente; nós temos hoje 10 km de leito seco de igarapé,
e nós estamos monitorando o que tem ainda de água, mas é ainda um volume de
água muito pequeno, apresenta não mais a cor original da água, que era uma água
clara, azulada. Hoje é uma água barrenta, com a presença de muito produto fermentado dentro dela, principalmente talhas, folhas, madeiras, pois quando os
tratoristas derrubam a mata ciliar, na maioria das vezes eles jogam toda a par te
da floresta fora, madeira, dentro do leito dos igarapés, aterrando completamente
a área onde eles nasciam.”
Edson Azevedo, do Instituto Manancial, Santarém (PA)
“O veneno chega até nós atingindo a nossa saúde quando vamos trabalhar nos
projetos [nas fazendas de soja]. O Arlindo, filho de D. Luzia e Sr. Antônio, na Serra
do Centro foi intoxicado em 2002. Ficou todo inchado. Fez exame em Riachão/MA,
mas o médico não deu o resultado do exame, foi preciso voltar e brigar com o
médico para poder receber. Ao receber, levou para Balsas/MA. O médico disse que
era intoxicação. Nós gastamos muito com remédio. Nesse mesmo período que o
Arlindo foi intoxicado, um jovem filho de seu Aleixo morreu todo inchado e também
um pai de família chamado Zé Boiote. Nesse período [2002] muitas pessoas que
trabalhavam ou moravam na Serra [do Centro] tinham sintomas de intoxicação
[inchaço] e o tratamento era feito fora de Campos Lindos.”
Posseiro da Comunidade São Francisco, Campos Lindos (TO)
Políticas públicas: toda a sociedade arca com os custos
Apesar dos impactos negativos, verifica-se um forte apoio público patrocinado de várias
formas, entre elas investimentos do governo em infra-estrutura, como a abertura de estradas, e oferta de isenções fiscais, tal como a Lei Kandir (LC nº 87/1996), que isenta as
empresas exportadoras de produtos primários e semi-elaborados do pagaProdutos
primários e semimento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI, um imposto federal) e do
elaborados
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS, imposto estadual).
Que apresentam
pouco grau de
industrialização, caso
Só que esta lei garante o repasse de dinheiro do governo federal para os
do grão, do farelo e
estados como maneira de compensá-los das perdas. Afinal, os estados deixam
do óleo da soja.
de arrecadar dinheiro. Assim, toda a sociedade brasileira arca duas vezes
com a Lei Kandir: primeiro, quando o governo deixa de arrecadar; segundo, quando a
União cobre o prejuízo dos estados. Isto sem falar das perdas decorrentes do não
processamento do produto, porque depois da entrada em vigor da lei, pela primeira vez em
1996, o país passou a exportar mais grão17 do que farelo, quadro que ainda se mantém.
Outra iniciativa do governo federal foi responsável pela introdução da soja no Cerrado.
O Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para Desenvolvimento Agrícola do Cerrado
(Prodecer), firmado entre o governo militar e o Japão e implementado na década de 1970
até 2001 (em suas várias fases), teve a soja como a principal cultura apoiada. O incentivo
veio na forma de financiamentos concedidos ao Brasil pela Agência de Cooperação
Internacional Japonesa (Jica), e também por bancos privados do Japão.
17 Em 2005, uma tonelada de grãos rendia US$ 238 no mercado internacional, contra US$ 462 do óleo bruto.
Apesar disso, o óleo representou menos de 7% das expor tações do complexo soja brasileiro.
19
O BRASIL ESTÁ NU! O AVANÇO DA MONOCULTURA DA SOJA, O GRÃO QUE CRESCEU DEMAIS
O Prodecer, na verdade, era uma estratégia japonesa de diminuir sua dependência de
alimentos provenientes dos Estados Unidos. Mas, em contrapartida, até 2014 o Brasil
estará pagando os empréstimos concedidos pelo Japão no âmbito do programa. Trata-se,
por tanto, de uma pequena parcela da dívida externa brasileira. O Japão, por sua vez,
atingiu o objetivo de diversificar suas fontes de abastecimento, o que contribuiu para a
estabilidade de preços naquele país e no mercado internacional.
Este programa serviu de base para que instituições como a Embrapa desenvolvessem
tecnologias para a expansão agrícola no Cerrado, um bioma hoje ameaçado35 de extinção
devido às sucessivas políticas de ocupação, entre elas a introdução do gado na virada
entre os séculos 19 e 20.
O domínio das multinacionais
Apenas quatro multinacionais dominam o mercado da comercialização de grãos no mundo:
as nor te-americanas ADM, Cargill e Bunge; e a francesa Dreyfus, que no Brasil adota o
nome de Coinbra. As quatro negociaram cerca de 60% das exportações de grão, óleo e
farelo de soja brasileiro em 2005 e ainda esmagaram 60% dos grãos destinados ao
mercado interno. Essas empresas também produzem ou fornecem sementes, máquinas
agrícolas, fertilizantes etc. Seus próprios bancos financiam a compra de muitos destes
produtos, e lucram uma vez mais.
Entre as companhias brasileiras que atuam no ramo da soja destacam-se a Ammagi,
de propriedade da família de Blairo Maggi, governador do Mato Grosso, e a Caramuru.
No aspecto geral, as empresas trabalham de forma semelhante: fornecem aos agricultores
sementes, maquinário, fertilizantes etc., em troca da garantia de comercialização da
futura colheita. No caso dos pequenos produtores essa relação comercial se transformou
num per verso ciclo de dependência, principalmente devido à dificuldade que estes agricultores têm de acompanhar o avanço das novas tecnologias.
As comercializadoras ainda levam outra vantagem: a de não sofrerem o impacto econômico da perda de uma safra por motivos climáticos ou devido ao ataque de uma nova
praga, por exemplo. O agricultor é que será prejudicado; vai ter que pagar à empresa
mesmo se enfrentar uma quebra de safra. Mas as empresas poderão adquirir o produto
em outras par tes do mundo, onde a colheita tiver sido boa.
18 Dos 204 milhões de hectares originais do Cerrado brasileiro, 57% já foram completamente destruídos e a metade das
áreas restantes está bastante alterada. Mesmo assim, o desmatamento prossegue a uma taxa de 1,5% ao ano,
segundo a ONG Conser vação Internacional Brasil.
20
Por um Brasil com menos soja
A discussão passa pelo modelo de
criação dos animais que serão
consumidos pelo ser humano
Os principais problemas trazidos pela soja no Brasil são os impactos sociais, ambientais
e econômicos de sua expansão acelerada em regime de monocultura. Mesmo na região
Sul do país, onde prevalece a agricultura familiar, as conseqüências são alarmantes.
Primeiro porque vários lotes vizinhos com apenas uma única cultura plantada, na prática,
reproduzem os danos de uma monocultura. Segundo porque, na região, houve uma grande
expansão da soja transgênica, espécie que, com o passar dos anos, exige cada vez mais
aplicação de produtos químicos36.
Isso significa que o Brasil ignora o chamado “princípio da precaução”, que sugere limitar as
práticas que trazem riscos ainda desconhecidos. É o caso dos transgênicos. Os principais
agroquímicos usados nessas lavouras são o glifosato e o ácido aminometil fosfônico
(AMPA), inseridos no Round-up, fabricado pela Monsanto, multinacional líder do mercado
de sementes transgênicas. O governo brasileiro aumentou em 50 vezes o índice permitido
de glifosato no grão de soja, mesmo sem ter certeza dos possíveis danos à saúde
humana e ao meio ambiente.
Agricultores do Sul que optaram pelos modelos orgânico e agroecológico têm
constantemente denunciado a contaminação de suas lavouras pelos transgênicos. A agroecologia, que não usa produtos químicos, é baseada na diversidade
de culturas numa mesma área. Seus benefícios podem ser vistos em experiências
realizadas por todo o Brasil, inclusive no semi-árido nordestino, onde muitas
famílias migraram para este modo de produção e hoje colhem os frutos da
melhoria de sua qualidade de vida.
Este modelo é o ideal por respeitar o meio ambiente; entretanto, não pode ser
defendido como solução para a soja. O volume de soja produzido hoje é ambientalmente insustentável. Não é possível, portanto, substituir todas as lavouras
atuais pelo modelo agroecológico.
Modelo orgânico
Também isento de
produtos químicos;
porém se diferencia
do modelo
agroecológico por
permitir o plantio de
uma única cultura,
desde que intercalada
com vegetação
natural.
Modelo
agroecológico
Requer a diversidade
de culturas numa
mesma propriedade
e a preser vação de
par te da vegetação
natural.
O foco da reflexão deve ser a demanda por soja no mundo, o que incluiria um
debate sobre o modelo de criação dos animais em regime de confinamento39.
Para serem abatidos no menor tempo possível, eles passaram por transformação
genética e precisam ingerir antibióticos como forma de prevenção de doenças. Isto porque
a superpopulação de animais em ambiente fechado torna fácil e rápida a disseminação
de qualquer doença. Esta é a qualidade da carne que a maior parte dos consumidores
tem à sua mesa.
36 Segundo o Greenpeace, avaliação feita ao longo dos nove primeiros anos de cultivos dos transgênicos nos Estados
Unidos mostra que nos três primeiros anos houve uma redução na quantidade de agrotóxicos usados na agricultura
daquele país. Entretanto, do sexto ano em diante a quantidade de agrotóxicos usada nas lavouras transgênicas
aumentou assustadoramente. Isso aconteceu principalmente devido ao surgimento de “superpragas”.
39 Na Europa, vivem 20 a 25 frangos por metro quadrado e no Brasil, de 15 a 17. Nova legislação da União Européia
sobre o bem-estar dos animais pretende reduzir essa superpopulação.
21
O BRASIL ESTÁ NU! O AVANÇO DA MONOCULTURA DA SOJA, O GRÃO QUE CRESCEU DEMAIS
Fora isso, um autêntico projeto de desenvolvimento para o Brasil não privilegiaria os
latifundiários e meia dúzia de empresas comercializadoras, a maioria multinacionais que
se apropriam dos recursos naturais brasileiros, enquanto milhares de pessoas passam
a habitar as periferias das cidades em busca de trabalho. Deve sim promover a inclusão
socioeconômica dos povos locais e o respeito ao meio ambiente.
Para isso, os incentivos públicos à monocultura da soja devem ser banidos, ao mesmo
tempo em que as políticas nacionais podem promover prioritariamente a agricultura
familiar e a agroecologia.
As políticas nacionais devem promover:
•
•
•
•
•
•
•
•
a viabilização da agricultura em pequenas e médias propriedades,
a transição de parte das lavouras convencionais para o modelo agroecológico,
a reforma agrária,
a diversificação das lavouras,
a preser vação da biodiversidade e dos recursos naturais do país,
pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias que viabilizem a mecanização
das pequenas propriedades,
o estímulo ao associativismo e às cooperativas rurais,
a permanência das famílias no campo.
Essas políticas são as bases de um modelo de desenvolvimento sustentável para o país.
São as sementes que podem, de fato, levar o Brasil a conquistar igualdade social e
econômica, e a preser vação do meio ambiente.
22
POR UM BRASIL COM MENOS SOJA
Cadeia produtiva da soja
A soja ocupa quase a metade da área plantada com grãos do país. Embora o latifúndio
seja a forma de produção que mais cresce, muitos agricultores familiares foram atraídos
para este mercado.
23
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Nossas publicações
O grão que cresceu demais – a soja e seus impactos
sobre a sociedade e o meio ambiente
Sergio Schlesinger
FASE, 76 p.
Petrobras: integración o explotación?
Jean-Pierre Leroy e Julianna Malerba
FASE, 129p.
O Brasil está nu! – o avanço da monocultura da soja,
o grão que cresceu demais
Silvia Noronha e Sergio Schlesinger
FASE, 148 p.
Coleção Cadernos de Debate
Cadernos de Debate nº 1
Novas Premissas da Sustentabilidade Democrática
Henri Acselrad
Jean-Pierre Leroy
BSD/FASE, 70 p.
Cadernos de Debate nº 2
Os Desafios das Políticas de Consumo Sustentável
Manus van Brakel
BSD/FASE, 48 p.
Cadernos de Debate nº 3
Critérios Integrados para a Elaboração do Conceito
de Sustentabilidade
Joachim H. Spangenberg
BSD/FASE, 48 p.
Cadernos de Debate nº 4
Sustentabilidade e Desenvolvimento: modelos,
processos e relações
Henri Acselrad
BSD/FASE, 68 p.
Cadernos de Debate nº 5
Exportar é Preciso, Viver...
Sérgio Schlesinger
Os Mitos do Bem-estar Alcançado com a Expor tação
de Matérias-primas
Maria Isabel Manzur
BSD/FASE, 48 p.
ESGOTADO
Cadernos de Debate nº 6
Produção, Consumo e Sustentabilidade: o Brasil
e o contexto planetário
José Augusto Pádua
A Dívida Ecológica Brasileira. Quem deve a quem?
Jean-Pierre Leroy
BSD/FASE, 69 p.
Coleção Cadernos Temáticos
Cadernos Temáticos nº1
Sustentabilidade Energética no Brasil - limites e
possibilidades para uma estratégia energética sustentável e
democrática
Célio Berman
Osvaldo Stella Martins
BSD/FASE, 152 p.
ESGOTADO
Cadernos Temáticos nº2
O Futuro do Cerrado: degradação versus sustentabilidade
e controle social
Shigeo Shiki
BSD/FASE, 64 p.
Cadernos Temáticos nº 5
O Desafio da Sustentabilidade Urbana
Grazia de Grazia
Leda Lúcia R. F. Queiroz
Alexandre Mello Santos
Athayde Motta
BSD/FASE/IBASE, 127 p.
Cadernos Temáticos nº 6
Desenvolvimento Sustentável do Setor Mineral. Pesquisas
Iniciais para Promover a Discussão
Zenon Schueler Reis
BSD/FASE/CEBRAC,105 p.
Cadernos Temáticos nº 7
Indústria no Brasil: produção sustentável, consumo
democrático
Sergio Schlesinger
BSD/FASE, 136 p.
Cadernos Temáticos nº 8
Sustentabilidade e Democracia para as Políticas Públicas
na Amazônia
Ana Cristina Barroso (org)
BSD/FASE/IPAM/AVINA, 128 p.
Cadernos Temáticos nº 9
Cer tificação Florestal do FSC - Forest Stewardship Council Inclusão do debate social e ambiental no manejo florestal
Sandra Tosta Faillace
BSD/FASE, 68 p.
Cadernos Temáticos nº 10
Eixos de Ar ticulação Territorial e Sustentabilidade do
Desenvolvimento no Brasil
Henri Acselrad
BSD/FASE, 100 p
Cadernos sobre Comércio e Meio Ambiente
Cadernos sobre Comércio e Meio Ambiente 1
Expor tando a Nossa Natureza – Produtos intensivos em
energia: implicações sociais e ambientais
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BSD/FASE, 70 p.
Cadernos sobre Comércio e Meio Ambiente 2
Comércio e Investimento Externo: aprofundando um
modelo insustentável
Reinaldo Gonçalves
BSD/FASE, 192 p.
Cadernos sobre Comércio e Meio Ambiente 3
Frango com camarão: receitas do agronegócio para um
Brasil insustentável
Lisa Gunn, Pedro Ivo de Souza Batista e Soraya Vanini
Tupinambá
BSD/FASE, 86 p.
Cadernos sobre Comércio e Meio Ambiente 4
Comércio, sociedade e meio ambiente na América Latina
Sergio Schlesinger
BSD/FASE, 64 p.
Como o Brasil expor ta natureza: os impactos dos produtos
eletrointensivos
Silvia Noronha e Célio Bermann
BSD /FASE 24p.
Que agronegócio é esse? – Por que a agricultura e a pecuária
crescem sem beneficiar a população brasileira
Silvia Noronha
BSD /FASE 24p.
Cadernos Temáticos nº3
A Insustentável Civilização do Automóvel. A indústria
automotiva brasileira em tempos de reestruturação produtiva.
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BSD/FASE, 108 p.
Cadernos Temáticos nº 4
Democracia e Sustentabilidade na Agricultura: subsídios para
a construção de um novo modelo de desenvolvimento rural.
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