Roderick Usher: o Dândi das Origens

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Roderick Usher: o Dândi das Origens
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RODERICK USHER: O DÂNDI DAS ORIGENS
Luciana Moura Colucci de Camargo
Resumo: Este artigo discute o talento avant-la-lettre de Poe e sua expressiva contribuição aos estudos literários ocidentais. Assim, este estudo concentra-se em uma leitura crítica da personagem Roderick Usher, do conto intitulado “A queda da casa de Usher” (1839). Baseada na estética decadentista, esta leitura procura reconhecer Usher como o dândi das origens e o grande precursor de personagens decadentes mesmo antes da consolidação do decadentismo em 1881, pelo crítico francês
Paul Bourget, e da publicação do romance Às avessas (1884), de Huysmans, que traz Floressas des
Esseintes como um modelo perfeito para uma personagem dândi.
Palavras-chave: Usher · des Esseintes · dândi
Abstract: This paper discusses Poe’s avant-la-lettre talent and his expressive contribution to Western literary studies. For that, this study focuses on a critical reading of the character Roderick Usher
from the short story “The fall of the house of Usher” (1839). This reading is based on the decadentist
aesthetics and tends to recognize Usher as the original dandy and as the great precursor of decadent
characters even before the consolidation of decadentism in 1881 by the French critic Paul Bourget
and the publication of the novel À Rebours (1884), by Huysmans, that brings Floressas des Esseintes
as a model for a perfect dandy character.
Keywords: Usher · des Esseintes · dandy
Wanderers in that happy valley,
Through two luminous windows, saw
Spirits moving musically,
To a lute’s well-tuned law,
Round about a throne where, sitting
Porphyrogene
In state his glory well befitting,
The ruler of the realm was seen.
“The Haunted Palace” 1
Em seu livro A literatura e o homem ocidental, J. B. Priestley escreve que Poe tem recebido “mais atenção e louvor do que merece”. 2 Considerando que desde a publicação da
obra Tamerlane and other poems, de 1827, Poe não deixa de fazer parte do circuito literário
ocidental, acredita-se que felizmente as palavras de Priestley parecem estar equivocadas.
Equívoco que se confirma em 2009 quando inúmeros eventos literários e culturais, em
muitos países, celebram o bicentenário de nascimento e o talento de Edgar Allan Poe, um
dos escritores mais polêmicos de todos os tempos.
Até sua morte em 1849, Poe, em seu país natal, foi tratado como um autor marginal,
tendo sua literatura interpretada apenas como produto de uma mente desequilibrada por
uma série de fatores atribuídos a desentendimentos familiares, ao casamento com sua prima Virginia de treze anos e a vícios como o álcool, o láudano e o carteado. Somados a essa
1
2
POE. The complete tales and poems, p. 62.
PRIESTLEY. A literatura e o homem ocidental, p. 147-148.
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biografia considerada constrangedora aos olhos da sociedade puritana e moralista estadunidense da época, temos a temática escolhida pelo autor alicerçada em elementos grotescos,
mórbidos, perversos, estranhos e na província máxima da beleza: dupla, noturna, medúsea,
vampiresca, além-túmulo e decadente que tanto apraz aos românticos soturnos, como escreve Mario Praz ao longo de seu livro A carne, a morte e o diabo na literatura romântica.
Na verdade acreditamos que esse incômodo ocorreu por que Poe traz à tona a outra face do
homem: a do mal. Ou seja, como clarifica Victor Hugo, na obra Do grotesco e do sublime, (...)
“tudo na criação humana não é humanamente belo, que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a
luz”.3 Com isso, Poe, definindo a natureza dupla do ser humano, desnuda as “exceções da vida
humana, o homem absurdo e descontrolado”, como tão bem coloca Baudelaire.4
Mesmo com os percalços inicias, não foi possível ignorar a escritura vigorosa de Poe por
muito tempo e tudo se transforma com a recepção de seus textos pelos simbolistas franceses, notadamente por Baudelaire. Desde então, autores como Dostoyevsky (1821-1881), Julio
Cortázar (1914-1984), Fritz-James O’Brien (1828-1862), Ambrose Bierce (1842-1913), Alfred
Hitchcock (1899-1980), Fernando Pessoa (1888-1935), Machado de Assis (1839-1908), H. P.
Lovecraft (1890-1937), James Joyce (1882-1941), Stephen King (1947), Tennessee Williams
(1911-1983), Tim Burton e Neil Gaiman apresentam traços da escritura de Poe. Williams, por
meio de Blanche Du Bois, consagrada personagem de Um bonde chamado desejo, pede “respeito pelos nossos grandes escritores e poetas Hawthorne, Whitman e Poe”. 5
Do pragmático e utilitarista século 19 ao superficial e tecnológico século 21, as marcas
de Poe estão latentes. Suas obras ficcionais, ensaios e críticas são contribuições significativas para os estudos literários tanto que, desde a época de seus lançamentos, não cessaram
de ser estudadas, revisadas, traduzidas e referidas em inúmeros trabalhos literários ou não,
como é o caso do filme Panic room (2002), de David Fincher. Neste filme, a personagem
principal Meg, interpretada por Jodie Foster, ao visitar um casarão que pretende alugar,
lembra-se e cita imediatamente Poe, pois a atmosfera soturna e opressiva da habitação a
remete aos textos do autor em estudo.
Assim, para quem tem recebido mais atenção do que merece, Poe, aos 200 anos, ainda
oferece muitos desafios aos seus leitores e críticos, pois seus textos trazem a marca de um
talento sempre à frente de seu tempo, oferecendo novas possibilidades de leitura. Além de
ser considerado o pai do conto moderno, do conto de detetive, de criar a técnica do suspense e do efeito de sentido, Poe ainda traz para os Estados Unidos da América a tradição
do gótico inglês sob novas vertentes, notadamente, em nossa visão, nas categorias de espaço e personagens.
Partindo da obra O castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole, Poe não lança mão de
temáticas simplórias como um príncipe assassinado por um elmo gigante que despenca do
céu ou de jovens donzelas correndo de um lado para o outro com choros histéricos que
mais provocam efeito de comicidade do que horror. Ao contrário, articulando espaço e personagens, o autor cria, sem perder o fio narrativo e a verossimilhança, uma atmosfera lúgu3
HUGO. O grotesco e o sublime, p. 25.
BAUDELAIRE. Poesia e prosa, p. 50.
5
WILLIAMS. Um bonde chamado desejo, p. 97.
4
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bre, tensa e horripilante que visa instaurar o medo absoluto, o “medo cósmico, perseguidor
e indefinido, que extrapola nossa capacidade de mantê-lo sob controle e desvendá-lo”, conforme elucida Lovecraft. 6 Poe tem a consciência e o saber para utilizar essa ferramenta tanto
que em “The fall of the house of Usher”, o narrador e o protagonista dizem respectivamente:
Vi que (Usher) era escravo forçado de uma espécie anômala de terror (...) Não receio (Usher),
efetivamente, o perigo, exceto em seu efeito absoluto: o terror. Neste estado de excitação... nesta lamentável condição... sinto que chegará logo o momento em que deverei abandonar, ao
mesmo tempo, a vida e a razão, em alguma luta com o horrendo fantasma o MEDO. 7
Cabe ainda ressaltar que, ao final desse conto, o narrador revela que, mediante todas
aquelas circunstâncias de extremo horror e espanto, fugiu aterrorizado da mansão, deixando Usher e Madeleine em sua final agonia. E para que essa situação ocorra, o espaço e as
personagens ocupam, a nosso ver, posição central nos textos de Poe.
Referindo-nos ao espaço, é importante mencionar o texto “The philosophy of furniture”,
publicado primeiramente na Burton’s Gentleman’s Magazine, em 1840 e, posteriormente,
após breve revisão, no Broadway Journal, em 1845. Nesse texto, Poe descreve, de maneira
aparentemente descompromissada e despretensiosa, um boudoir inglês, um aposento magnificamente decorado mo qual há um “amigo adormecido sobre um sofá, o tempo está frio,
é quase meia-noite”. 8 Enquanto o “amigo” dorme, Poe inicia a descrição detalhada do que
ele considera um aposento ideal.
Observando esse texto com mais atenção e, fazendo uma reflexão sobre o tratamento ao
espaço que Poe dispensa de forma tão elaborada em seus contos e poemas, é possível dizer
que “The philosophy of furniture”, pode ser entendido e utilizado como uma poética do
espaço gótico. Tanto é o mérito de Poe nessa questão que na edição crítica The fall of the
house of Usher and other writings, o editor define Poe como “the arch-priest of Gothic Horror”. 9 Entretanto, e como não poderia deixar de se observar, esses espaços, casarões antigos
por excelência, são geralmente habitados por aristocratas atormentados e entre eles está
Roderick Usher: o dândi das origens.
Usher é apresentada ao leitor por meio de um narrador homodiegético que se refere a
ele como um de seus joviais companheiros de infância e, após o transcorrer de “muitos
anos desde o último encontro”, 10 esse narrador constata que Usher passou por uma horrível
transformação. No passado, era jovial e, desde esse último encontro, havia se transformado
em um homem abatido, com compleição cadavérica, palidez espectral e olhos que se assemelhavam a janelas vazias. Na verdade, segundo o amigo, ele não “podia, mesmo com esforço, ligar a aparência estranha de Usher com a simples idéia de humanidade”. 11 Mais
ainda, deixa claro que ao recebê-lo na Mansão, Usher o saudou “com calorosa vivacidade,
na qual havia – conforme pensei a princípio – exagerada cordialidade, o obrigado esforço
de um homem de sociedade ennuyée”. 12
6
LOVECRAFT. O horror sobrenatural na literatura, p. 1.
POE. Histórias extraordinárias, p. 13.
8
POE. Ficção completa, poesia e ensaios, p. 1007.
9
GALLOWAY, ed. The fall of the house of Usher and other writings, contracapa.
10
POE. Histórias extraordinárias, p. 8.
11
POE. Histórias extraordinárias, p. 12.
12
POE. Histórias extraordinárias, p. 11.
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Em nossa leitura, justamente por encontrar-se nessa situação de tédio, Usher resolve
enclausurar-se, juntamente com sua irmã Madeline, na fantasmagórica mansão: a casa de
Usher. Deste modo, os irmãos encontram-se isolados totalmente do espaço externo e social
da turba em ruína, como tão bem retrata o conto “The man of the crowd” (1840). Passando,
então, a uma vida encarcerada na mansão cujo alicerce concentra-se na decadência tanto
da casa enquanto espaço físico – pois tudo está se deteriorando: do prédio ao mobiliário quanto da casa, símbolo da Estirpe dos Ushers – já que Madeleine e o irmão sofrem de várias doenças, perpetuando assim o estigma da família que, “por mais antiga e gloriosa que
fosse, não surgira nunca, em tempo algum, qualquer ramo duradouro”. 13
No caso de Usher, observa-se a composição racional de uma personagem ciclotímica,
densa, excêntrica, circundada por hábitos estranhos, problemas nervosos e extrema sensibilidade a certos alimentos, perfumes, sons e tecidos, como lemos na seguinte na citação:
Sofria muito de uma agudez mórbida dos sentidos: suportava somente os alimentos mais triviais; não podia usar senão roupas de determinados tecidos; o aroma de todas as flores o oprimia; a luz, por mais fraca que fosse, torturava-lhe os olhos – e apenas alguns sons peculiares, os dos instrumentos de corda, não lhe causavam horror. 14
Mediante todas essas peculiaridades, o narrador explica novamente que “[...] seu rosto era,
como sempre, de uma palidez cadavérica; mas havia em seus olhos e, em toda a sua pessoa, uma histeria evidentemente contida”. 15 Aqui temos mais uma situação que merece ser
destacada: a presença da histeria.
Mais uma vez estamos diante de Poe, um homem do seu tempo e adiante dele, pois ao
usar o adjetivo histérico para caracterizar Usher, demonstra estar ciente das questões tratadas pela psicanálise já que, na citação referida, não emprega simplesmente o termo louco
como em outras circunstâncias. Note-se que no contexto histórico em que Poe vivia, a histeria, desde as concepções de Hipócrates, no século 377 a.C., estava associada ao corpo
feminino. É somente com a publicação, em 1893, do estudo O mecanismo físico da histeria,
de Sigmund Freud e Joseph Breuer, que a histeria é tratada como uma condição psíquica
que pode atingir mulheres e homens.
Retomando a análise de Usher, verifica-se que para amenizar essa situação de intenso
transtorno físico e psíquico, a personagem dedica-se à música, à prática de desenho e pintura e aos estudos cuidadosos de algumas obras literárias. Como o erudito Próspero, Usher
passa horas absorto em suas leituras, principalmente naquelas relacionadas com a temática
ocultista e que, segundo o narrador, estavam, “como se pode bem imaginar, em perfeito
acordo com aquele caráter fantasmal”. 16
O comportamento estranho, extravagante, histérico, hipocondríaco, perverso, cruel e
supersticioso, faz, a nosso ver, de Usher, o dândi das origens, pois corresponde à figura do
dândi que Baudelaire faz em seu célebre ensaio, “O pintor da vida moderna”:
Um homem rico, ocioso (…) o homem criado no luxo e acostumado a ser obedecido desde a
juventude; aquele, enfim, cuja única profissão é a elegância sempre exibirá, em todos os
13
POE. Histórias extraordinárias, p. 9.
POE. Histórias extraordinárias, p. 13.
15
POE. Histórias extraordinárias, p. 22.
16
POE. Histórias extraordinárias, p. 11.
14
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tempos, (...) o dandismo é um sol poente; como o astro que declina, é magnífico, sem calor e
cheio de melancolia. 17
Assim, por meio da criação dessa personagem, em 1839, mais uma vez o talento artístico avant la lettre de Edgar Allan Poe comprova-se. Sua perspicácia, a de um homem do seu
tempo, em relação às discussões científicas e intelectuais do século 19, deu-lhe a capacidade de vislumbrar uma personagem decadente que somente seria decodificada no pensamento posterior, quando a estética decadentista consolidou-se na França, em 1881, com
Paul Bourget. Logo depois, em 1884, o decadentismo atinge seu ápice com a publicação da
obra Às Avessas, de J-K. Huysmans, 18 em que temos, então, o modelo perfeito do decadente:
Floressas des Esseintes.
Ao analisarmos a estranha trajetória de Floressas des Esseintes, percebemos que ele é
uma personagem construída física e psicologicamente nos moldes de Roderick Usher. Ambos padecem de crises nervosas e histéricas, acompanhadas de diversas hipersensibilidades que permeiam os cinco sentidos. Vejamos citação:
(...) e os pesadelos se repetiram; ele receava adormecer. Permanecia horas a fio deitado no
leito, ora tomado de insônias persistentes e febris agitações, ora de sonhos abomináveis, [...]
a nevrose, adormentada durante alguns dias, voltava a triunfar, revelando-se mais veemente
e mais obstinada [...] As cobertas da cama agora o incomodavam [...] Suas inquietações aumentaram; infelizmente, faltavam os meios de domar a moléstia inexorável. 19
Já me referi à condição mórbida de seu nervo auditivo, que lhe tornava a música intolerável,
exceto a de certos instrumentos de corda (...) Não tardei em verificar que aquilo procedia de
pequenos e inúteis esforços no sentido de vencer uma perturbação habitual [...] uma excessiva agitação nervosa [...] morrerei – disse-me – devo morrer desta deplorável loucura. 20
Além disso, vivem em espaços construídos – casa - para abrigar suas excentricidades e
gosto pela solidão, pois como criaturas narcísicas, esfíngicas e revoltadas que são, apresentam uma profunda incapacidade para o outro e ficam lá, trancafiadas em seus sepulcros,
longe do mundo:
Eh! desaba, pois, sociedade! Morre, então, velho mundo! [...] Ah exclamou, dizer que tudo
isto não é um sonho! Dizer que vou reentrar na balbúrdia do século! [...] Des Esseintes deixou-se cair, prostrado, numa cadeira. – Dentro de dois dias, estarei em Paris; vamos, – disse
consigo – está tudo acabado mesmo; como um maremoto, as vagas da mediocridade humana
elevam-se até o céu e vão engolir o refúgio cujas barreiras eu mesmo abri, contra minha vontade. 21
Neste estado de excitação... nesta lamentável condição... sinto que chegará logo o momento
em que deverei abandonar, ao mesmo tempo, a vida e a razão, em alguma luta com o horrendo fantasma: o medo. Também tomei conhecimento, a intervalos, por insinuações interrompidas e ambíguas, de outra particularidade singular de sua condição mental. Estava acorrentado por certas impressões supersticiosas relativas à mansão em que vivia, de onde muitos anos não ousara sair. 22
Percebemos que em À rebours, a aversão de des Esseintes à vida na cidade e contato
com a burguesia é clara e repetida inúmeras vezes ao longo do romance. Tanto que na cita17
BAUDELAIRE. Poesia e prosa, p. 872.
Para este artigo será utilizada a tradução de José Paulo Paes.
19
HUYSMANS. Às avessas, p. 131.
20
POE. Histórias extraordinárias, p. 12 e 16.
21
HUYSMANS. Às avessas, p. 253-254.
22
POE. Histórias extraordinárias, p. 13.
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ção acima, des Esseintes, seguindo recomendação médica, é forçado a abandonar seu plácido refúgio em Fontenay-aux-Roses, para reentrar à sociedade medíocre de Paris, como diz
a própria personagem.
Já em “The fall of the house of Usher”, não há menção explícita ao repúdio à vida oferecida nas cidades. Entretanto, o fato de Usher isolar-se na mansão e lá morrer, sem sequer
tentar uma forma de preservar a própria vida, é forte indício da recusa em estar em contato
com o exterior. Com essa atitude, Usher sucumbe às forças de suas neuroses e apatia física
e morre vítima do desabamento da mansão que enterra de vez a edificação e a secular e
estranha estória dos proprietários.
De qualquer maneira, escancarado ou velado, as duas personagens decadentistas recusam-se a desfrutar daquela parvoíce e decidem construir um mundo particular, bem afastado da cidade utilitarista e que seja um abrigo seguro para suas almas pessimistas e repletas de manias e crueldades. Crueldades que vão desde revestir uma tartaruga de ouro e pedras preciosas para que ela combine com o tapete oriental e, no caso de Usher, a enterrar
viva a própria irmã mesmo sabendo que ela sofria de catalepsia.
Esse comportamento é muito bem elucidado por Latuf Isaías Mucci em seu livro, Ruína
& simulacro decadentista: uma leitura de Il piacere, de D’Annunzio, quando explica que
“assistindo à derrocada da aristocracia, com medo da burguesia vitoriosa e da turbamulta
de proletários emergente, o decadentista correu para dentro de si mesmo e construiu uma
nova e elevada torre de marfim, quase sem janelas para o exterior (...), mas com inúmeras
brechas para o seu interior”. 23 Aliás, as palavras de Mucci fazem-se extremamente pertinentes na análise em questão ao lermos, em À rebours, a colocação “Anywhere out of the
world”, remetendo à necessidade de solidão de des Esseintes, faz clara alusão a Baudelaire
no poema em prosa que recebe o mesmo título e trata justamente sobre uma alma que grita:
“Seja onde for! desde que fora deste mundo!” 24
Mesmo com as tentativas de ficarem em suas torres de marfim, Usher e des Esseintes,
ao final das narrativas, apresentam-se como personagens fracassadas, pois não conseguem
concretizar seu ideal de isolamento, de qualquer forma de convivência pública e contato
com outras pessoas.
Agora, com o intuito de reforçarmos nossa leitura sobre a lapidação de Floressas des Esseintes à luz de Roderick Usher, citamos, na íntegra, o parágrafo em que o próprio narrador
de À rebours aproxima essas duas personagens:
A clínica cerebral onde, praticando vivisecções numa atmosfera sufocante, esse cirurgião espiritual, tão logo se fatigava a sua atenção, se tornava presa de sua imaginação, que fazia elevarem-se, como deliciosos miasmas, aparições sonambulescas e angelicais, era para des Esseintes uma fonte de infatigáveis conjecturas; agora porém que a sua nevrose se exasperara,
havia dias em que tais leituras o quebrantavam, dias em que, de mãos trêmulas e ouvido atento, sentindo-se como o desolador Usher, ele era tomado de um transe desarrazoado, de
um surdo pavor. 25
Optamos pela citação na íntegra justamente para demonstrar como as personagens em
estudo dialogam em forma e conteúdo. Na verdade, esse diálogo constitui-se em um verda23
MUCCI. Ruína e simulacro decadentista: uma leitura de Il Piacere, de D’Annunzio, p. 48.
BAUDELAIRE. Poesia e prosa, p. 337.
25
HUYSMANS. Às avessas, p. 223-224.
24
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deiro culto à personagem masculina, pois, como ressalta Mucci, o “dandismo é um fenômeno exclusivamente masculino, na medida em que a história literária não apresenta (ainda) mulheres dândis”. 26
Não obstante, evidenciamos ainda que Poe, suas obras e personagens são citadas inúmeras vezes no romance de Huysmans que, em nenhum momento, esconde a viva admiração sentida por esse autor. E, mais uma vez, o narrador de À rebours, no capítulo XIV, é
incisivo ao dizer que “mais do que qualquer outro este [Poe], era talvez o escritor que correspondia, por afinidades íntimas, às postulações meditativas de des Esseintes”. 27 Não deixemos de mencionar que des Esseintes ainda tinha um volume de Aventuras de Arthur
Gordon Pym luxuosamente encadernado e impresso, única e exclusivamente para ele, em
papel raiado e pele de foca.
Outro fator interessante que achamos ser pertinente colocar é que, no capítulo acima referido, o narrador desenvolve uma série de considerações acerca do fazer literário, abrindo
perspectivas para reflexões metalinguísticas. Nota-se que ele explica que para des Esseintes, “(d)e todas as formas de literatura, a do poema em prosa era a preferida (...) devia (...)
encerrar em seu tamanho (...) o poderio do romance.” 28
Esta discussão é ampliada e temas como concentração e condensação do romance enquanto forma por meio da escolha de palavras, emprego “engenhoso” de adjetivos leva-nos
a pensar, mais uma vez, no modus operandi de Poe enquanto mestre na arte do conto e no
efeito de sentido. Sendo o conto entendido como uma narrativa breve e condensada, fica,
então, evidente a habilidade desse autor que precisou de poucas páginas para criar Usher,
um protagonista de tal complexidade psíquica e beleza - às avessas - que certamente foi
inspiração para Huysmans elaborar o dândi perfeito: Floressas des Esseintes. O dândi encastelado que lia Poe e bebia amontilhado.
Com esta breve exposição, Usher: o dândi das origens, esperamos ter apresentado uma
contribuição para os estudos literários sobre a produção de Edgar Allan Poe, um autor que,
devido ao seu talento artístico ancorado nas emoções mais profundas e hediondas do ser
humano, tem recebido a atenção merecida, pois, sua voz, de 1827 até o epicentro narcisista
da contemporaneidade, ainda tem muito o que a dizer à literatura.
REFERÊNCIAS
BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
GALLOWAY, David, ed. The fall of the house of Usher and other writings. London: Penguin,
1986.
HUGO, Victor. Do grotesco e do sublime: tradução do prefácio de Cromwell. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
26
MUCCI, Ruína e simulacro decadentista: uma leitura de Il Piacere, de D’Annunzio, p. 53.
HUYSMANS. Às avessas, p. 222.
28
HUYSMANS. Às avessas, p. 231.
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LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural na literatura. Trad. João Guilherme
Linke. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1987.
LATUF, Isaías Mucci. Ruína & simulacro decadentista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1990.
POE, Edgar Allan. Ficção completa, poesia e ensaios. Trad. Oscar Mendes. São Paulo: Globo, 1944.
POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. Trad. Brenno Silveira e outros. São Paulo:
Nova Cultural, 1993.
POE, Edgar Allan. The complete tales and poems. New York: Barnes & Noble, 2006.
PRAZ, Mário. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Trad. Philadelpho Menezes. Campinas: Ed. Unicamp, 1996.
PRIESTLEY, J. B. A literatura e o homem ocidental. Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica,
1968.
ROGERS, David. Tales and poetry of Edgar Allan Poe. New York: Monarch Press, 1965.
WILLIAMS, Tennessee. Um bonde chamado desejo. Trad. Brutus Pedreira. São Paulo:
Abril, 1980.
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 167-174.

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