Aspectos da História Trágico-Marítima. O reverso da medalha ou
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Aspectos da História Trágico-Marítima. O reverso da medalha ou
Aspectos da História Trágico-Marítima. O reverso da medalha ou... “A Face Oxidada do Doirado Medalhão da Descoberta e Conquista”. Por Carlos Jaca A opção por este tema explico-a por duas motivações: uma que poderei chamar remota e outra, próxima. Num dos primeiros anos do liceu (4º ano) a disciplina de Português incluía com carácter obrigatório a leitura e comentário das passagens mais significativas de resumos da História Trágico-Marítima, cujos episódios nos causavam grande impressão e admiração, despertando desde aí e dessa época o meu interesse. Outra razão, prende-se com a circunstância de muito recentemente, no “Diário do Minho”, ter sido recordada a face dourada da Descoberta e Conquista. Assim, por isso, e também pelo facto de uma obra singular da Literatura Portuguesa, e até Universal, ser desconhecida da grande maioria das pessoas resolvi aqui dar-lhe alguma divulgação. De certo modo, a História Trágico-Marítima corresponde à face escura da glória dos descobrimentos, a tragédia que fez dizer a Fernando Pessoa: “Ó mar salgado, quanto do teu sal / são lágrimas de Portugal!”. Pode considerar-se a História Trágico-Marítima como obra “sui generis”. De facto, em nenhuma literatura haverá talvez uma soma tão impressionante de relações de naufrágios como na nossa. Tão grande foi a voga desses escritos e tantos foram eles, que chegaram a constituir uma espécie de género literário. A História Trágico-Marítima não é original, mas sim constituída por várias descrições (conhecidas vulgarmente por “relações”) de naufrágios ocorridos ao longo de meio século (de 1552 a 1602). Carlos Jaca 1 Na Biblioteca Nacional de Lisboa e na Ajuda, na Torre do Tombo, nas bibliotecas de Évora, Vila Viçosa, Coimbra e em algumas colecções privadas encontram-se, manuscritos ou impressos, vários exemplares de uns vinte relatos de naufrágios que foram escritos entre a segunda metade do século XVI e o fim do século XVII por diversos autores desconhecidos e outros ainda anónimos. Os relatos de naufrágios viriam a tornar-se, na verdade, quase um (sub)género literário, de algum sucesso em Portugal no período entre meados dos séculos XVI e XVII, atraindo periodicamente as atenções de editores, compiladores e leitores, em especial a partir da cristalização nos dois volumes da “História Trágico-Marítima” de Bernardo Gomes de Brito, publicada em 1735-1736 e mais tarde apocrifamente acrescentada por um terceiro. Produto do labor de sobreviventes ou testemunhas próximas dos desastres ocorridos com embarcações da “Carreira da Índia”, este tipo de relatos revela-se fundamental não apenas para o conhecimento das circunstâncias da perda de uma a duas dezenas de naus, mas também para o das próprias armadas em que se integravam. Desde já convém dizer que se trata de uma breve abordagem à História Trágico-Marítima, uma obra de alto valor da nossa literatura, focando-a, essencialmente, em três aspectos: sob o ponto de vista literário, como documento histórico e como documento humano. O estilo Sob o ponto de vista literário o seu valor é muito desigual, o que perfeitamente se compreende, pois tais “relações” foram escritas por diversos autores. Quase todas elas saíram do punho de sobreviventes, muitos dos quais não possuíam capacidades para dar brilho à sua prosa, que se apresenta, frequentemente, bastante confusa, originando problemas de interpretação o que de certa maneira tenha sido, talvez um bem: algumas dessas “relações” apesar de escritas apressadamente e sem cuidados de estilo (porventura ainda sob a emoção causada Carlos Jaca 2 pela proximidade da catástrofe, dado terem sido publicadas na maioria, pouco tempo depois), adquirem, talvez por isso mesmo, um tom de verdade e de sinceridade que transmitem ao relato uma forte carga dramática, que é possível viesse a ser atenuada se fossem mais trabalhadas... A narração atinge o seu maior vigor na hora patética do naufrágio e no subsequente caminhar dos desditosos náufragos, meses sem fim, por terras desconhecidas e cheias de perigos, tantas vezes habitadas por gente estranha que os hostilizava. Daí que talvez não seja exagero o que nos diz P. Blanco Suarez, tradutor espanhol de algumas “relações”. “Sólo quiero decir que, más de una vez, al hacer mi trabajo de tradutor, he tenido que interrumpirlo, porque la emocion honda y angustiosa producida por la tragedia me impedia continuar, estaba ante la tragedia historica, la más real de todas por haber sido vivida; talvez, por este mismo, la única tragedia verdadera”. De facto, literariamente, ninguém poderia apontar estes relatos como primores da nossa língua, pois, como alguns dos seus autores salientam, interessava aqui preservar a verdade e conhecimento dos factos, sendo secundária a perfeição literária, tanto mais que muitos dos que os escreveram eram marinheiros e outras pessoas sem pretensões intelectuais. Sob o ponto de vista do estilo podemos considerar duas espécies de “relações”: as que foram escritas pelos próprios que escaparam à tragédia, e as escritas por estranhos, que tomaram conhecimento dos factos através do testemunho oral dos sobreviventes. Obviamente, entende-se que as primeiras tenham em geral maior vivacidade, mais poder comunicativo, por representarem a própria experiência, embora um autor ilustre como Diogo do Couto, pertencente ao segundo grupo, consiga, por via do seu talento, “representar-nos belissimamente um naufrágio que não padeceu”. Ainda incluída na primeira referência poder-se-á distinguir as “relações” escritas por padres, normalmente mais literárias, com um estilo mais erudito e entremeado de citações latinas. Exemplo significativo deste género é a “relação” da viagem da nau “S. Francisco”, em 1596, escrita pelo jesuíta Gaspar Afonso. Já as narrações de autores seculares, nomeadamente os do primeiro Carlos Jaca 3 período clássico, apresentam muito melhor estilo, salientando-se entre estes, Manuel de Mesquita Perestrelo, que descreveu o naufrágio da nau “S. Bento”, e o boticário Henrique Dias, autor da “relação” da perda da nau “S. Paulo”. Tanto um como outro manifestam o propósito de contar as coisas na sua generalidade e não se preocupar com o pormenor fastidioso. Cingiam-se assim aos cânones da arte clássica, que procura evitar o excesso das particularidades, a fim de privilegiar os aspectos gerais. Isto era o preceito, mas nem sempre foi a prática. As próprias exigências do tema se encarregavam de mostrar a cada passo o incumprimento desta determinação, pela incapacidade de relatar satisfatoriamente um naufrágio ou as aventuras por terra, sem descer a certas minúcias que mais possam impressionar os leitores. Estas narrações que hoje encaramos como documentos históricos fizeram na época, a paixão de quantos as liam, pois o público, então como agora, não conseguia fugir ao fascínio pelas emoções fortes. Compreende-se como o público de outros tempos na rotina da vida quotidiana, devia de apreciar essas impressionantes narrativas, o espectáculo das naus destroçadas pela tormenta, a confusão e o alarido das gentes, o engenho dos homens buscando meios de salvação, e a triste e aventurosa caminhada pelo sertão africano. Cerca de um quinto da população portuguesa da época (dois milhões e meio) andou em viagens marítimas, todas as famílias tinham pelo menos um ou dois elementos embarcados; a repercussão de tais relatos no imaginário nacional tornouse, assim, irrecusável apaixonando todos durante gerações sucessivas – os que iam e os que ficavam, os que sofriam e os que fantasiavam. Os episódios sucediam-se, um mais desgraçado do que o outro, numa série (precursora do “folhetim” e da “telenovela”) de horrores, suplícios e fatalismos intermináveis. Carlos Jaca 4 Como hoje se comenta o crime sensacional, descrito pelas gazetas diárias, assim outrora se falaria do último naufrágio, cujos episódios eram referidos pela “relação” acabada de sair. Autênticos “best-sellers”, desconhece-se, em geral, qual seria a tiragem dessas “relações”, mas sabe-se que muitas delas eram impressas várias vezes, havendo casos em que a primeira edição se esgotava em breve lapso de tempo, uma vez que há conhecimento da existência de uma segunda edição publicada no mesmo ano. Refere Giulia Lanciani e reportando-se ao naufrágio de Jorge de Albuquerque Coelho, depreender-se do texto que tanto da primeira como da segunda edição se tiraram mil exemplares de cada uma, enquanto os estudiosos consideraram que na segunda metade do século XVI a tiragem média de um livro na Europa dificilmente superava os trezentos exemplares. O Documento Histórico Como documento histórico é extremamente valioso o testemunho da História Trágico-Marítima. O tema dos naufrágios e outras perdas de naus da Índia foi, desde as últimas décadas do século XVI, em Portugal, uma das questões que mais análises suscitou, e que, em conjunto com as circunstâncias e consequências da perda da independência em 1580, mais estreitamente esteve ligada ao desenvolvimento das visões decadentistas da realidade nacional. Mesmo quando, séculos mais tarde, o tema da decadência nacional aflora através da análise de outros sintomas, as razões das suas origens e a fundamentação histórica de tal situação recua sempre até à segunda metade do séc. XVI, de quando se datam o declínio do trato das drogas e especiarias do Oriente e o início das tragédias marítimas que teriam então ensombrado a antes gloriosa “Carreira da Índia”. O fenómeno dos naufrágios na rota do Cabo não deixou de despertar, porém, sentimentos de carácter contraditório nos seus analistas, muitas vezes divididos e Carlos Jaca 5 hesitantes entre cederem ao ímpeto de uma exaltação nacionalista do heroísmo dos Portugueses de então, que bravamente lutaram contra as adversidades, ou enveredarem por um espírito fatalista de rendição perante os factos que indiciavam, claramente, quando Portugal começara a perder as pretensões a afirmar-se como uma potência internacional de primeira grandeza e passara a uma situação de dependência e sombra perante as novas potências em ascensão. Foi o discurso pessimista, contudo, que predominou, desde finais da Centúria de Quinhentos, nas leituras da evolução da “Carreira da Índia” e do impacto das suas perdas. A História Trágico-Marítima passaria, a breve prazo, a ilustrar e simbolizar a própria História nacional, tomando um lugar central na mentalidade colectiva de um povo que, quando se sentiu afastado de um papel nuclear e activo nos negócios das nações, para isso necessitou prementemente de uma justificação e explicação histórica onde se refugiar. A rota do Cabo, aberta em 1497-1498 por Vasco da Gama e institucionalizada como “Carreira” no seu ritmo anual de armadas com a viagem de Pedro Álvares Cabral, foi a primeira grande rota interoceânica dos Tempos Modernos. Na própria época, houve mesmo quem chegasse a afirmar que uma viagem na Carreira da Índia era então “sem qualquer dúvida a maior e mais árdua de todas as que se conhecem no mundo” (Padre Alexandre Valignano, citado em Boxer). Empreendimento épico e desmesurado para a dimensão da nação que o sustentava, a rota do Cabo e a Carreira da Índia viveram as naturais dificuldades inerentes à escassez de recursos humanos, materiais e técnicos com que Portugal sempre se debateu. O resultado foi um misto de grandeza e declínio que sempre deixou testemunhas, suas contemporâneas, ou observadores distanciados algo indecisos quanto à posição a tomar, devido à atracção exercida pelas visões extremas do fenómeno em causa – optar pela exaltação da gesta heróica ou sublinhar os traços mais ou menos trágicos que traduziram o seu declínio ? Carlos Jaca 6 Em boa verdade, as características e a história da Carreira da Índia contiveram em si um pouco de tudo. À magnitude e ambição da vontade concretizada, juntou-se muitas vezes a mesquinhez dos actos humanos e das condições em que os mesmos decorreram. A Carreira da Índia exigia sobretudo acomodação perfeita ao condicionalismo físico dos oceanos, isto é, ao regime variável dos ventos e correntes no Atlântico e no Índico. As naus deviam largar ou regressar em meses certos e nunca fora do tempo, navegar de conserva, fugir à zona das calmas e das tempestades, bem como buscar atempadamente as aguadas. Atendendo às condições de navegação no Atlântico e Índico que era necessário conciliar, e certamente também por questões de natureza organizativa, foi necessário estabelecer um calendário minimamente rigoroso para as partidas e etapas das viagens das naus da Índia, interligado de forma muito íntima com o trajecto a seguir. De acordo com o modelo rapidamente estabelecido após as primeiras viagens, as naus da Índia saíam em conserva do Tejo nas últimas semanas do Inverno ou nos começos da Primavera, ou seja, entre o início de Março e a primeira quinzena de Abril. Desta forma, ser-lhes-ia possível aproveitar um regime favorável de ventos no Atlântico, na primeira fase da viagem, e atingir o Índico a tempo de beneficiarem da monção de sudoeste para rumarem à costa ocidental da península indostânica. A permanência no Índico para as naus que completassem a viagem de ida no calendário normal, e que estivessem destinadas a regressar com carregamento de especiaria, era de apenas três ou quatro meses, até ao início do ano seguinte. A partida do Índico realizava-se, por regra, em finais de Dezembro ou nos primeiros dias de Janeiro, de maneira a ser possível à armada aproveitar a monção do norte e dirigir-se rapidamente até ao Cabo pelo canal de Moçambique ou pelo Índico Central. Passado o Cabo em finais de Fevereiro, seria possível aproveitar ventos Carlos Jaca 7 favoráveis no Atlântico Sul e alcançar Lisboa em Julho ou Agosto, após a chamada “volta pelo largo” até à altura dos Açores. Desta maneira, uma “viagem redonda” da Carreira durava, em termos ideais, entre o início de Março de um ano e finais de Julho do ano seguinte, o que equivale a mais de dezasseis meses de viagem, dos quais doze eram de navegação efectiva. O recrutamento de pessoas necessário ao provimento das armadas da Índia foi um problema que cedo se levantou na história da Carreira. As questões colocaram-se quer no plano da quantidade quer no da qualificação dos tripulantes disponíveis, encontrando-se muitas vezes entrecruzadas ambas as circunstâncias. A situação a ultrapassar, em primeiro lugar, com frequência, era a da falta de homens qualificados para servirem de tripulação a todas as naus que anualmente saíam de Lisboa para o Oriente. Apesar da atracção exercida pelas hipóteses, mais ou menos reais, de lucros fáceis e imensos, os riscos envolvidos nas viagens eram muitos e cedo se foi descobrindo a alta mortalidade provocada por doenças e acidentes vários nas tripulações embarcadas. Mas o problema de recrutamento não se colocava apenas ao nível da “arraiamiúda”, da marinhagem responsável pelas tarefas mais duras da navegação. Também quanto aos capitães, pilotos, contramestres e outros cargos de maior responsabilidade a bordo existiam questões de difícil resolução, só que de natureza geralmente diversa. Ao capitão era indispensável a ciência da manobra, a visão de pormenor e de conjunto, a serenidade no perigo e a firmeza no comando. O cargo de capitão-mor das armadas, assim como a capitania de todas as embarcações, foi desde cedo um duradouro monopólio da nobreza, mesmo sem qualquer experiência náutica prévia, por nomeação da Coroa, funcionando como uma espécie de prebenda, quase um título honorífico ou recompensa por serviços prestados. Ambicionado por muitos, o cargo de capitão de uma nau da Índia Carlos Jaca 8 chegava a ser arduamente disputado, mas isso em raras ocasiões significava uma melhoria dos conhecimentos náuticos dos escolhidos. O mais comum era que estes pouco mais água tivessem visto que a do Tejo, como afirma Boxer citando o Padre António Vieira, dado que a grande maioria não tinha qualquer experiência de navegação ou mesmo as mais vagas noções teóricas da manobra de uma nau em alto mar. Os “fidalgos-marinheiros” eram raros e uma excepção à regra longamente dominante. Só nas naus dos armadores particulares era mais frequente encontrar-se um capitão de origem vilã e, nesse caso, eventualmente, com maiores conhecimentos da arte de bem navegar. Perante esta situação, a figura central na tripulação de uma destas embarcações era o piloto, o verdadeiro responsável pelo (in)sucesso da viagem. Ao piloto exigia-se uma observação atenta ao voo das aves que anunciavam terra próxima, aos fundos do mar onde se escondiam baixios e recifes, e do curso das estrelas que lhe traçavam a “derrota”. Apesar dos cuidados postos na sua selecção e formação, são vários os testemunhos mais ou menos directos que indiciam a sua escassez, em particular à medida que as décadas iam passando. A transferência de muitas dezenas dos melhores pilotos, atraídos a países estrangeiros por avultados salários e vantagens, esvaziavam os quadros. Muitos, contagiados pela vida fácil e pouco escrupulosa do Oriente, por lá ficavam, desertavam do ofício perigoso e arriscado, aumentando o êxodo. A fim de substituir os mestres que haviam feito uma preparação atenta e científica na escola da experiência, improvisavam-se pilotos de gabinete que saíam directamente da aula de cosmografia para as naus. Diogo do Couto refere-se à “jactanciosa suficiência desses pilotos novos, munidos apenas de saber livresco, mas tão precário, quando comparado com as ciências dos antigos, adquirida no demorado transcurso das viagens e em contacto diuturno com o mar”. No Índico, tornou-se comum o recurso a pilotos árabes ou hindus como estratégia útil para ultrapassar o desconhecimento e as dificuldades de Carlos Jaca 9 navegação na região. Por outro lado, à partida de Lisboa não era também caso raro encontrarem-se pilotos castelhanos, maiorquinos ou de outras origens mediterrânicas nas naus portuguesas. As tentativas para fechar a profissão de piloto a uma estreita elite, limitando a difusão dos seus conhecimentos e ocultando os seus segredos com a concorrência estrangeira, tinha consequências difíceis de conciliar com a necessidade de dispor de um corpo de pilotos em quantidade suficiente para o provimento das armadas. Também a consciência da sua importância e do valor dos seus conhecimentos, para além das próprias recomendações régias no sentido do seu secretismo, nem sempre tornavam os pilotos figuras particularmente simpáticas ou afáveis para os mais curiosos. Apesar dos testemunhos que nos restam sobre as condições das viagens da Carreira existirem em quantidade e variedade suficientes para tornar possível traçar um quadro com a diversidade das experiências possíveis durante o seu longo trajecto, limitar-me-ei, apenas a breves referências. Em média , entre tripulantes, passageiros e militares, os navios da Carreira da Índia transportavam 400 a 500 pessoas (apesar de haver casos em que a barreira do milhar foi ultrapassada), pertencentes aos diversos estratos sociais: nobres que partiam para o Oriente para ocupar cargos administrativos e militares, membros do clero, em particular missionários, gente do terceiro Estado em busca de melhores condições de vida e bons negócios. Um dos maiores problemas que se colocava ao longo da viagem era o da alimentação de todas estas pessoas. O biscoito (feito com farinha de trigo) era o principal recurso alimentar, seguido de alimentos secos e fumados. Mantimentos frescos eram quase inexistentes: apenas podiam ser embarcados os que se iriam consumir nos primeiros dias de viagem, pois caso contrário, acabariam por se estragar. Por vezes optava-se pelo embarque de animais vivos (coelhos, galinhas...), que iriam sendo mortos no decurso da travessia oceânica. E, sempre que era possível, pescava-se. Tão ou mais importantes que os géneros Carlos Jaca 10 alimentícios era a água, embarcada em grandes quantidades. Também o vinho, o azeite e o vinagre faziam parte da carga das naus. Se os mantimentos eram embarcados tendo em atenção o número de viajantes e a duração previsível da viagem, vários eram os imprevistos que estragavam os cálculos. Em primeiro lugar, a existência de clandestinos, que aumentavam o número de bocas a alimentar; em segundo lugar, a falta de qualidade de muitos dos alimentos. Também o desvio de verbas, que leva ao embarque de poucos géneros alimentícios, põe em perigo a vida dos que partem: “encolhem os Provedores as mãos para encher as unhas, e dão provimento para três semanas: eis que na segunda semana já falta a água, e na terceira já não há pão”. As más condições de higiene e o mau acondicionamento dos mantimentos provoca a sua deterioração: o porão, onde iam armazenados, era frequentemente utilizado para urinar, e a água que aí se acumulava apodrecia muitos géneros, enquanto a existência de ratos e baratas, em número considerável, acelerava a degradação. Na região equatorial, o calor tornava a situação ainda mais dramática. O Padre Dionísio, em 1563, refere que, nos dez dias de calmaria a que a nau esteve sujeita “se danno la mayor parte de las cosas de comer, porque o aceyte, la manteca, la marmelada, y la miel herviam; el agua se corrompia; las pasas, los higos e outras muchas cosas, com grande calma, se deñaram”. Beber urina, água do mar, comer couro, ratos ou mesmo cartas náuticas, tornaram-se assim expedientes relativamente frequentes. Se as condições alimentares não eram, muitas vezes, as melhores, as condições de higiene mostravam-se também bastante deficientes: À acumulação de centenas de pessoas num espaço tão pequeno, convivendo muitas vezes com animais (lembremo-nos que, por vezes, na torna viagem, vinham embarcados elefantes e outros bichos exóticos), e sem água doce que pudesse ser usada para a lavagem de roupas ou do corpo provocava problemas. Em 1597, é encontrada a Carlos Jaca 11 meio da viagem uma criança morta na nau “São Martinho”. O seu corpo estava totalmente coberto de piolhos. Com este panorama, era habitual o desencadear de surtos epidémicos. Por vezes, o número de pessoas com problemas de saúde atingia tais proporções que se tornava difícil encontrar quem desempenhasse as tarefas ligadas à navegação. Na já referida nau “São Martinho”, o piloto queixa-se que, a determinada altura, apenas existiam oito marinheiros e quatro ou cinco grumetes em boas condições de saúde. Todos os outros, ou tinham falecido, ou estavam acamados. Uma das mais graves doenças que atingia muitos dos embarcados era o escorbuto, provocado pela alimentação carente em vitaminas. Camões, no canto V de “Os Lusíadas” afirma, referindo-se à doença e aos seus efeitos: “ [...] Quem haverá que sem o ver creia, Que tão disformemente ali lhe incharam As gengivas na boca, que crescia A carne e juntamente apodrecia?” Viajar nas naus da Carreira da Índia era assim aventura que implicava vários riscos. Chegar são e salvo ao local de destino, apresentava-se como um objectivo nem sempre fácil de cumprir. E mesmo que se escapasse a todas essas peripécias, era necessário lutar pela sobrevivência num espaço onde a acumulação de centenas de pessoas, durante vários meses, propiciava situações de conflitos. Como afirmou Belchior Barreto, em 1551, “quase todos se pelejam ora huns ora outros”. Os motivos não faltavam: conseguir aquecer os alimentos, roubar os bens de alguém mais afortunado, vingar insultos provocados pelo jogo, ou simplesmente extravasar as tensões provocadas por uma travessia tão difícil e desgastante. Carlos Jaca 12 E agora julgo ser oportuno pôr a questão: quais as causas de todos esses naufrágios? Por simples critério metodológico parece correcto proceder a uma classificação que englobasse as causas que, de uma forma mais activa, contribuíram em cada naufrágio registado para a perda da respectiva embarcação. Seguindo este princípio, a generalidade das perdas identificadas podem enquadrar-se no seguinte conjunto de categorias: 1º O naufrágio clássico, na acepção mais tradicional do termo, provocado por uma tempestade cujos efeitos conduziam à destruição, afundamento e/ou encalhe da embarcação, tornando esta irrecuperável para a navegação. 2º A perda causada por um erro de navegação que levava o navio a encalhar em baixios, desfazer-se contra rochedos ou ainda a falhar as manobras de entrada na barra de um determinado porto de escala ou de destino. 3º A perda provocada por uma acção inimiga de carácter militar (pirataria, corso ou acto declarado de guerra), com vários desfechos possíveis: afundamento na sequência da agressão, naufrágio na fuga ou afundamento voluntário pela tripulação, para não cair em mãos inimigas. Segundo autores britânicos, como o professor E. Taylor, foi nestas naus da Carreira da Índia então apresadas, que os Ingleses se apoderaram das cartas de marear, dos roteiros e relações comerciais, que lhes revelaram os segredos náuticos e mercantis dos Portugueses sobre as rotas e o tráfico do Oriente. 4º Os desastres ocorridos em determinado momento da viagem, cuja responsabilidade se pode atribuir a um excessivo carregamento da nau, o Carlos Jaca 13 que impedia a existência de boas condições de manobra e implicava uma maior vulnerabilidade aos efeitos de qualquer temporal ou outro imprevisto; De facto, a ambição e a cobiça dos mercadores (gente fidalga), carregando desmedidamente os navios, numa ânsia de lucro e de rápido enriquecimento de qualquer maneira, mesmo pondo em risco a sua vida e a dos demais passageiros e tripulantes, é apontada por todos os autores como causa suprema dos desastres marítimos. Carregar as naus, ajoujando-as ao peso das mercadorias e riquezas pessoais, quando do regresso à metrópole, foi uma das maiores e mais desastrosas preocupações de todos aqueles que eram dominados pela ânsia de se locupletarem a curto prazo; “os cofres flutuantes não resistiam à fúria dos elementos e abriam-se em pleno mar para os afundar nos abismos, com as riquezas, os possuidores, e com os culpados, os inocentes”. Um bom exemplo, significativo da sobrecarga dos navios, é bem patente na perda do galeão “Santiago”, apresado pelos Holandeses em 1602. Atente-se. Após terem alijado inúmeras mercadorias suficientes para carregarem uma grande nau, os corsários estavam espantados de o verem ainda tão cheio de fazenda, não deixando de exclamar increpando: “Dizei, gente portuguesa, que nação haverá no mundo tão bárbara e cobiçosa, que cometa passar o Cabo da Boa Esperança na forma que todos passais, metidos no profundo do mar com carga, pondo as vidas a tão provável risco de as perder, só por cobiça; e por isso não é maravilha que percais tantas naus e tantas vidas”. Os estivadores carregavam conforme mais lhes convinha, ao sabor das espórtulas de cada interessado, “atulhando o galeão de fardaria em barda, que subia no convés até à altura dos castelos, que transpunha o costado,” autêntica feira flutuante. Carlos Jaca 14 5º As perdas na sequência do mau estado de conservação das embarcações que, em algumas situações, tornava necessário o seu abandono em alguma escala intermédia do percurso ou conduzia ao seu próprio naufrágio em pleno oceano; O mau estado de conservação das naus agravava-se, sobretudo, devido ao processo de reparação por empreitada. A fim de pouparem tempo, o trabalho fazia-se negligentemente e as naus ficavam com muitas deficiências. Expressivamente, refere João Batista Lavanha: “enfeitam o dano de maneira que pareça bem consertado, e debaixo dele fica a perdição escondida e certa. Cortam-se também as madeiras fora do seu tempo e sazão, pelo que são pesadas verdes e dessazonadas; e como tais encolhem, e fendem, e desencaixam-se do seu lugar; e com a humidade da água de fora e grande quentura da pimenta, e drogas de dentro, logo se apodrecem e corrompem na primeira viagem”. Tal deveria ser o caso do naufrágio da nau “Santo Alberto”: a madeira da quilha estava tão podre que, quando deu à costa, Nuno Velho Pereira a desfez em pedaços com uma cana. 6º Finalmente, temos ainda uma situação, que não corresponde propriamente a uma causa de naufrágio, mas antes ao desconhecimento sobre o seu destino, testemunhado pela globalidade das fontes documentais consultadas. Este é o caso das naus que desapareceram em determinada fase da viagem sem que tenham restado quaisquer testemunhas ou sobreviventes conhecidos para relatar o ocorrido, e das quais nem sequer foi encontrado qualquer tipo de vestígio material que ajude a elucidar--nos, ou aos contemporâneos, sobre o que então se passou. O maior número de naufrágios não deixou rasto que pudesse assinalar o lugar e a causa do desastre. O mar “comia as naus” na expressão do tempo. Não deve, contudo, esquecer-se que em várias situações os naufrágios podiam ser motivados, não por uma causa eficaz isolada, mas antes por uma Carlos Jaca 15 conjugação de vários factores articulados entre si. Era muito provável, por exemplo, que a sobrecarga ou o mau estado de conservação de uma nau diminuíssem substancialmente as suas possibilidades de sobrevivência perante um temporal ou um ataque pirata. Em algumas situações não é muito correcto apontarmos um único factor como responsável pela perda, sendo mais aconselhável considerar a combinação das condições desfavoráveis. Igualmente útil, revela-se também a articulação das informações sobre as diversas causas de perda das naus com a fase da viagem ou a área geográfica em que aquelas se verificam com maior intensidade. As razões que contribuíam para o desaparecimento de embarcações eram diferentes conforme isso acontecia no percurso de ida, de volta ou em trânsito no Índico, assim como se o facto ocorria no início ou no final da viagem. Resta, fundamentalmente, a confirmação da percepção empírica que nos leva a pensar que, seja na sequência de tempestades, em virtude do excesso de carga ou devido a acção inimiga, os navios são sempre mais vulneráveis a acidentes com consequências graves quando se encontram no final da sua viagem, com as tripulações cansadas e o material bem mais debilitado do que pouco depois da partida. O documento humano Referidas as causas das tragédias, vejamos seguidamente, qual o comportamento humano na aflição e na subsequente caminhada por terra. Com efeito na História Trágico-Marítima encontram-se os mais extraordinários relatos das horas dramáticas do naufrágio e da dolorosa peregrinação dos escapados à morte, percorrendo léguas e léguas através de terras do interior, atravessando serras altíssimas e de difícil acesso, utilizando jangadas para a Carlos Jaca 16 travessia dos rios mais caudalosos, transpondo pântanos e regiões lodosas, padecendo fomes e sedes, fazendo frente a traições e ataques dos indígenas, tragados pelas feras, roubados, escarnecidos, maltratados e sujeitos a mil vexames. Dolorosa é a descrição do comportamento destes desgraçados náufragos e das suas reacções à iminência da morte, numa luta feroz pela sobrevivência, em arrepiantes lances de barbaridade e egoísmo. É o homem no seu primitivismo, sem disfarces, extravasando quanto a alma tem de negativo. De facto, é quando o ser humano tomba no abismo da desgraça e da miséria, despojados de todos os seus bens e inexoravelmente posto frente a frente da morte, que ele se mostra a nu e se revela em plena grandeza e baixeza de alma. Cada um gritava a sua verdade mais profunda. E em quase todos o instinto elementar do apego à vida sobrepunha-se e obscurecia os demais sentimentos. Na hora alucinante de abandonar a nau, prestes a afundar-se, os homens acorriam em tumulto ao batel, esperança derradeira de salvamento; e aqueles mesmos, que de manhã se tratavam de amigos, à noite disputavam-se às cutiladas os lugares, ferindo e matando sem piedade. Declarada a perda fatal do navio, era um alarido angustioso por todo ele. Os navegantes precipitavam-se desordenadamente sobre os religiosos para serem ouvidos de confissão: ”toda a gente, não tratando já mais que da salvação das almas por quão desenganada se viu da dos corpos, pediam todos confissão aos religiosos, com muitas lágrimas e gemidos, com tão pouco tino e ordem que todos se queriam confessar juntamente e em voz tão alta que todos se ouviam uns aos outros. Um homem, não podendo esperar, começou a gritar a um dos religiosos e, sem mais aguardar, dizia suas culpas em voz alta, tão graves e enormes, que foi necessário irlhe o religioso com a mão à boca, gritando-lhe que se calasse”. Preparava-se afanosamente o batel de salvação, mas nele só iam grandes e a parentela e próximos dos graúdos escolhidos, arbitrariamente, dum modo revoltantemente pessoal. Na nau a afundar-se ficava a chusma dos escravos, a gente menor e uma ou outra pessoa de condição que não estivesse nas boas graças dos Carlos Jaca 17 chefes. Por isso se compreende aquele episódio da ama que não quis largar a filha de D. Joana de Mendonça, descrito por Diogo do Couto na perda da nau “S. Tomé”. No dizer de Rodrigues Lapa, tem toda a força essa imagem da pobre mulher que, não podendo ser salva, quer levar para o fundo do mar a menina que criara ao seu colo. Procedimento atroz era o frequente lançamento ao mar das pessoas excedentes no batel, após o naufrágio. Era a condenação à morte feita calculadamente a frio. Refiram-se algumas passagens que documentam tão desumano procedimento: “E tornando ao batel: tanto que cometeu sua viagem acharam-no os oficiais tão pejado, por ir muito carregado, com todo o grosso debaixo de água, que fizeram grandes requerimentos que se lançassem algumas pessoas ao mar para poderem salvar as outras, o que aqueles fidalgos consentiram, deixando a eleição delas aos oficiais, que logo lançaram ao mar seis pessoas que foram tomadas nos ares, lançadas nele, onde ficariam submergidas das cruéis ondas, sem mais aparecerem”. E, ainda, “aconteceu aqui que querendo botar ao mar o tanoeiro de sobressalente, o qual tinha trabalhado muito bem no conserto do batel, e vendo o pobre homem que não tinha nenhum remédio, pediu uma talhada de marmelada; deram-lha e sobre ela bebeu uma vez de vinho, e assim se deixou lançar ao mar, indo-se a pique ao fundo, sem mais aparecer”. Durante o naufrágio desta nau que, em 1585, se rompeu nos baixos da Judia, deu-se entre os sobreviventes o lance costumado. Como todos corriam risco com o peso excessivo começaram a lançar a carga humana, até que o batel desafogado pudesse tomar o rumo. Alguns, que sabiam nadar, vieram com o pavor da noite enclavinhar-se à borda do batel. De dentro, implacavelmente, decepavam-lhes as mãos à espada. Mas paralelamente, há lances que contrastando com tais crueldades, reconfortam e comovem pelo altruísmo e solidariedade manifestados, pela Carlos Jaca 18 generosidade e amor aos companheiros de sofrimento, desde o simples conforto e amparo à maior abnegação e sacrifício. Sucedia muitas vezes que a nau dava à costa. Então todos ou quase todos se salvavam. Carregando o mais que podiam dos destroços da nau, “a triste caravana seguia por terra em direcção a Sofala, com um crucifixo arvorado numa lança”. Nestas caminhadas com muita gente, onde se incluíam velhos, mulheres e crianças, o ritmo de andamento não era, naturalmente, muito forte, o que fazia desesperar os mais impacientes, geralmente membros da tripulação, que chegavam a planear abandonar os companheiros de caminhada para poderem avançar mais depressa. Durante a caminhada, os náufragos encontravam aldeias, onde procuravam comprar mantimentos e obter ajuda, como por exemplo, conseguir que algum indígena os acompanhasse e lhes pudesse servir de guia. Porém, grande parte dos guias disponíveis apenas os sabia conduzir nas redondezas da sua aldeia, pois, como nos diz o narrador da relação do naufrágio da nau “São Bento”, a propósito de um guia que acompanhou os caminhantes, “como a gente daquela terra não se afaste muito dos limites onde nasce [...], e ao redor daquelas choupanas se crie e morra, quando veio o terceiro dia tinha o cafre tanta necessidade de quem o guiasse como nós”. Por esse motivo, e vendo a insatisfação dos Portugueses face ao seu trabalho de orientação, muitos deles acabavam por fugir, o que contribuía para aumentar o desalento dos náufragos. Por vezes, eram encontrados, entre os cafres, sobreviventes de naufrágios anteriores. Tal situação era motivo de grande alegria para os caminhantes, pois reforçava a esperança da salvação de todos. O “língua” (designação que se dava ao homem que aprendeu a língua da terra) não só facilitava a comunicação e permitia melhorar o relacionamento com os autóctones, como também podia servir de guia na caminhada, já que a confiança posta nestes ex-náufragos era bem maior que a que suscitam qualquer cafre. Carlos Jaca 19 Mas os três grandes inimigos dos náufragos, segundo o autor da relação da perda da nau “Santiago”, eram a fome, a sede e o frio. Durante a caminhada, chegavam a passar-se vários dias em que não se encontrava nada para comer, levando a que muitos caíssem doentes ou morressem. A fome chegava a ser tanta que não havia qualquer preconceito sobre o tipo de alimento a ingerir. Lado a lado com os côcos, a carne de elefante, a carne de macaco, que se dizia ser “nojenta e ruim carne”, comiam-se também sapatos, procuravam – se com sofreguidão ossos, espinhas, ervas, pequenos bichos, engoliam-se favas do mato, muitas vezes peçonhentas, provocando grande sofrimento, matavam-se e ingeriam-se ratos, cobras e lagartos. Menor não era, de modo algum, o drama da sede. Era frequente caminhar-se cinco e seis dias sem beber, o que provocava grande sofrimento e desespero. A situação chegou a ser de tal modo grave que “houve pessoas que bebiam mijo”, tendo quatro delas morrido por causa disso, e outras por ingerir água salgada. Para além da fome e da sede, o frio era outro dos grandes problemas que os caminhantes enfrentavam, principalmente durante a noite. Conta Manuel Godinho Cardoso que “por ser ainda Inverno nesta terra o frio era grande”, e que, apesar da muita lenha que nela havia, todos “se sentiam enregelados”, queixando-se de “quão errados vão os que dizem na Zona Tórrida não há frio”. A estes “inimigos” dos náufragos, poderíamos juntar outros, como o calor em demasia em muitos momentos do dia, os ataques dos animais ou as tempestades de areia. Também durante as caminhadas, os sobreviventes eram frequentemente perseguidos por indígenas, que os pretendiam roubar e, por vezes, mesmo, matar. Boa parte das vezes, não ousavam meter-se directamente com os portugueses por causa das armas de fogo que estes possuíam, esperando que alguns fossem ficando para trás, os quais imediatamente eram despidos e despojados de tudo o que transportavam. Carlos Jaca 20 Todas estas dificuldades causavam, obviamente, inúmeras mortes, algumas bem dramáticas, como a de D. Leonor Sepúlveda, que vendo-se despida por acção dos cafres, “lançou-se logo no chão, e cobriu-se toda com os seus cabelos, que eram muito compridos, fazendo uma cova na areia, onde se meteu até à cintura, sem mais se erguer dali”, vindo a falecer algum tempo depois. O marido, Manuel de Sousa Sepúlveda, depois de enterrar a mulher e um filho, que com ela morrera, meteu-se pelo mato, e nunca mais o viram. Muitos outros casos poderiam ser citados de mortes bem duras que ocorreram com tripulantes e passageiros de naus da Carreira da Índia que naufragaram em pontos da costa africana ou em ilhas algures no Índico. Após uma década de conquista e instalação do monopólio português da rota do Cabo, seguem-se 75 anos de relativa estabilidade na sua exploração, após o que se segue um longo e doloroso declínio que Camões, talvez de forma premonitória, prognosticaria: “Aqui espero tomar, se não me engano, De quem me descobriu suma vingança; E não se acabará só nisto o dano De vossa pertinace confiança, Antes em vossas naus vereis cada ano, Se é verdade o que meu juízo alcança, Naufrágios, perdições de toda a sorte, Que o menor mal de todos seja a morte”. Concluindo: Pode considerar-se a História Trágico-Marítima uma bela e importante obra que constitui como que o reverso do heroísmo cantado n’”Os Lusíadas”; o que em “Os Lusíadas” é “glória que guinda os heróis às alturas do Olimpo é aqui drama que os afunda nos abismos do sofrimento e da miséria humana. Carlos Jaca 21 São milhares os Portugueses, desde o grumete de Alfama ao fidalgo de avós godos, que morrem aos gritos nestas páginas; são milhares os escravos que igualmente morrem, mas em silêncio, porque deles não ficou nem o nome nem a voz”. A leitura desta obra permite-nos tomar consciência de que “os feitos gloriosos se pagam por um preço muito elevado em morte, sofrimento, dinheiro, desespero e dor”. Efectivamente, é a factura com que os Portugueses pagaram o esforço, a audácia, a coragem, o risco e o espírito de aventura na missão que assumiram no desbravar de mares “nunca dantes navegados”, e de descobrir para o mundo as terras até então desconhecidas. Bibliografia consultada ALBUQUERQUE, Luis de – “Escalas da Carreira da Índia”. Junta de Investigações Científicas do Ultramar. Lisboa, 1978. BOXER, C. R. – O Império Marítimo Português: 1415 - 1825 BRITO, Bernardo Gomes de – “História Trágico-Marítima” – 2 vols. Fixação do texto, introdução e notas de Neves Águas. Publicações Europa – América. BRITO, Bernardo Gomes de – “História Trágico – Marítima” – 2 vols. Fixação do texto, glossário e notas de Neves Águas. Comentários de Fernando Luso Soares, José Saramago e Maria Lúcia Lepecki. Edições Afrodite. Lisboa, 1971-1972. FERREIRA, João Palma – “Naufrágios, Viagens, Fantasias e Batalhas”. Imprensa Nacional- Casa da Moeda. Lisboa, 1980. Carlos Jaca 22 GUINOTE, Paulo, Eduardo Frutuoso e António Lopes – “Naufrágios e outras perdas da Carreira da Índia” – Séculos XVI e XVII. Grupo de Trabalho do Ministério da Educação para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa, 1988. LANCIANI, Giulia – “Uma História Trágico-Marítima”, in Lisboa e os Descobrimentos” (1415-1580). Terramar. Lisboa, 1992. LAPA, Manuel Rodrigues – “Prefácio”, in “Quadros da História Trágico-Marítima”. Lisboa, 1951. MENEZES, José de Vasconcelos e, - “Armadas Portuguesas de meados do séc. XIV. Alimentação e Abastecimentos”. Editorial Resistência. Lisboa, 1981. 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