Revista Rede edição 17 - Ministério Público do Estado de Minas
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Revista Rede edição 17 - Ministério Público do Estado de Minas
Mala Direta Postal 9912234147/2009-DR/MG PGJ CORREIOS IMPRESSO FECHADO PODE SER ABERTO PELA ECT Revista Institucional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Ano V- Edição 17- Julho de 2009 Cidade para todos Revista Institucional do Ministério Público do Estado de Minas Gerais Editada pela Assessoria de Comunicação Social – Núcleo de Imprensa Coordenação Procurador de Justiça Fernando Antônio Fagundes Reis Coordenação Assessoria de Comunicação Social Miriângelli Rovena Borges Editora Executiva Neuza Martins da Cunha Jornalistas Eduardo Curi, Fernanda Magalhães, Flávio Pena, Giselle Borges, Meire Ana Terra e Neuza Martins da Cunha Repórter fotográfico Alex Lanza Projeto gráfico, arte e diagramação Rúbia Oliveira Guimarães Revisão Ana Paula Rocha, Ivone Ribeiro da Silva, Josane Fátima Barbosa, Maria das Graças de Souza Luz, , Nirley Aparecida de Oliveira Administração Superior Procurador-Geral de Justiça Alceu Torres Marques Corregedor-Geral do Ministério Público de Minas Gerais Márcio Heli de Andrade Ouvidor do Ministério Público de Minas Gerais Mauro Flávio Ferreira Brandão Procurador-Geral de Justiça Adjunto Jurídico Geraldo Vasques Procurador-Geral de Justiça Adjunto Administrativo Paulo Roberto Moreira Cançado Procurador-Geral de Justiça Adjunto Institucional Fernando Antônio Fagundes Reis Chefe-de-Gabinete Paulo de Tarso Morais Filho Secretário-Geral Jairo Cruz Moreira Diretor-Geral Fernando Antônio Faria de Abreu Nossa capa: redesenhando a cidade Viaduto Santa Teresa, em Belo Horizonte Foto de Alex Lanza e arte de Rúbia Guimarães Tiragem: 2.000 exemplares Impresso por Triunfal - Gráfica e Editora Editorial Nesta edição, a revista institucional do Ministério Público de Minas Gerais, além de abordar o assunto habitação e urbanismo – tema que suscita muitas discussões e que está diretamente ligado à inclusão social –, traz aos seus leitores uma reformulação de sua identidade e ganha um novo nome: Rede. Essa nova marca expressa a modernidade e cria a personalidade gráfica e conceitual que a Assessoria de Comunicação pretende conferir à revista, além de simbolizar a amplitude dos temas que vêm sendo tratados. E é na busca por interligar e ampliar a abordagem sobre o cenário urbanístico e habitacional de Minas e do Brasil que os nossos jornalistas entrevistaram especialistas renomados, os quais apontaram problemas, analisaram a situação atual e projetaram soluções para que o país consiga resolver as divergências jurídicas, sociais e estruturais que emperram o processo de regularização fundiária. Nessas entrevistas foram discutidos temas ligados à legislação urbanística, políticas públicas de habitação, acessibilidade, direito à moradia, assentamentos informais, meio ambiente, mobilidade urbana, exemplos de gestão eficiente e sustentável, plano de atuação do Ministério Público e ampliação do trabalho dos promotores de Justiça na área de habitação e urbanismo. Algumas das análises feitas pelos entrevistados convergem para um ponto comum: a necessidade de implementação de ações conjuntas e coordenadas, em que problemas relacionados ao meio ambiente, à legislação urbanística e a investimentos sociais devam ser observados pelos agentes públicos e privados para que a transformação social possa ser realizada de forma eficiente e ambientalmente sustentável. Com isso, procura-se garantir o direito a uma moradia digna, Exemplos de edições anteriores dando à população a segurança jurídica de seu imóvel e a possibilidade de usufruir de serviços essenciais como água tratada, saneamento básico, luz elétrica, transporte público, escola e posto de saúde. A revista Rede ainda aborda uma pesquisa feita sobre poluição luminosa nas cidades e os reflexos dessa “luz intrusa” no dia a dia da população, no trânsito e na saúde da fauna e da flora. Revelações como a de que “dois terços da humanidade vivem sob céus poluídos pela luz, sendo que um quinto não consegue mais ver a Via Láctea” são tratadas nesse artigo e enriquecem o conteúdo da revista. Finalmente, todas as informações contidas nesta edição da revista Rede foram colhidas não apenas com o objetivo de ampliar o campo de conhecimento sobre o tema habitação e urbanismo, mas também para buscar uma reflexão sobre como o Ministério Público vem atuando nessa área, especialmente na defesa e na tutela do parcelamento do solo. E a pergunta que a revista deixa é: Como promover a inclusão social por intermédio do Direito? Boa leitura! Sumário 11 Entrevista Jaime Lerner fala da importância do “fazer acontecer” para uma boa gestão urbana 14 Marta Larcher mostra atuação do MP para interromper círculo vicioso do crescimento urbano desordenado e sem planejamento 27 Profissionais revelam caminhos para ampliar direito à moradia e combater desigualdades sociais 4 Edésio Fernandes interpreta as graves questões Entrevista urbanas e ambientais e os desafios de promover a inclusão social pelo Direito 23 Promotores de Justiça buscam soluções para 36 Especialistas apontam o papel do planejamento regulamentar loteamentos e preservar áreas verdes urbano 42 Governança: equilíbrio entre estados e municípios 44 Transporte e acessibilidade como indutores do crescimento 50 Grafite: arte ou vandalismo? 52 Boa Prática Exemplos de ações judiciais e extrajudiciais realizadas 56 Opinião pelas Promotorias de Justiça Leonardo Castro Maia discorre sobre os males da poluição luminosa nas cidades Entrevista Edésio Fernandes Para o jurista, o Estatuto da Cidade consolidou a ordem constitucional quanto ao controle jurídico do desenvolvimento urbano Por Flávio Pena Foto: Alex Lanza “Promover a inclusão social pelo Direito. Eis o desafio colocado para os juristas brasileiros. Não é mais possível interpretar as graves questões urbanas e ambientais exclusivamente com a ótica individualista do Direito Civil, nem buscar tão somente no Direito Administrativo tradicional os fundamentos para as novas estratégias de gestão municipal”. Essas palavras traduzem um pouco do pensamento urbanístico do professor Edésio Fernandes, jurista e especialista em Direito Urbanístico. Numa entrevista esclarecedora, com exclusividade para a Revista Rede, ele fala sobre assentamentos informais, regularização fundiária, atuação do Ministério Público e legislação urbanística brasileira. No livro A lei e a ilegalidade na produção do espaço urbano, o senhor cita pesquisa que aponta parcela entre 40% e 70% da população urbana das grandes cidades residindo em espaços urbanos ilegais. O que o senhor tem a dizer sobre isso? Não é um fenômeno novo. Em cidades como o Rio de Janeiro, há favelas com mais de cem anos que ainda não são plenamente reconhecidas pela ordem jurídica. Mas é inegável que a escalada do processo e a diversidade de manifestações – favelas antigas, cada vez mais densas, novas favelas formadas nas periferias, velhos e novos loteamentos irregulares e clandestinos, proliferação de casas de frente-e-fundo, aumento dos cortiços, etc. – tem crescido enormemente nos últimos trinta anos. As taxas de crescimento da informalidade têm sido mais altas do que as taxas de crescimento urbano e de crescimento da pobreza, o que indica que há outros fatores a serem considerados. Por exemplo, os governos, sobretudo, na esfera municipal, têm organizado os territórios e formulado as políticas habitacionais e urbanas sempre de forma dissociada da estrutura fundiária. 4 Há muitos problemas nas políticas de ordenamento territorial no Brasil? Outro problema seria o da especulação imobiliária? De modo geral, não há nas cidades brasileiras políticas de ordenamento territorial que criem condições adequadas de acesso regular ao solo urbano, com serviços e equipamentos para grande parte da população. O mercado formal não tem oferecido opções para os grupos mais pobres. Ao longo de décadas do processo de urbanização, políticas habitacionais não têm sido implementadas de forma suficiente, adequada e acessível. Leis urbanísticas são, na sua maioria, elitistas e tecnocráticas e não reservam espaço para os pobres nas áreas centrais. A cultura jurídica dominante ainda não reconhece plenamente o princípio constitucional da função social da propriedade. Nesse contexto, a informalidade passou a ser a única opção de moradia para grande parcela da população. Diferentemente do que muitos pensam, a informalidade não é uma opção barata. Moradores de assentamentos informais pagam preços cada vez maiores para viverem em condições precárias. O metro quadrado em favelas centrais chega a tetos absurdos, e recentemente o processo de especulação tem se reproduzido com força também em muitos assentamentos informais, especialmente com o aumento das práticas de aluguel. Cidades produzidas informalmente são profundamente fragmentadas, irracionais, ineficientes e caríssimas. Programas de regularização de assentamentos consolidados são caríssimos, lentos e complexos. Seria muito mais fácil e barato prevenir o problema com a ampliação das condições de acesso regular ao solo. A informalidade gera que tipo de problema para a população dessas áreas? Nesse jogo, quem perde? E como resolver essa situação? Além de viver em condições de grande precariedade, a enorme população dos assentamentos informais não tem segurança jurídica da posse, ficando à mercê de despejos e remoções, de pressões de proprietários, políticos, bandidos, traficantes e especuladores. Sem endereço, essas pessoas, em muitos casos, ficam sem acesso aos benefícios da urbanização, ao crédito formal e às condições básicas de cidadania. Ao longo de décadas, o clientelismo político tem se renovado ao manter tantas pessoas na condição de vulnerabilidade, reproduzindo ambiguidades e contradições, e sem que se reconheçam os direitos individuais, coletivos, civis e políticos dessa enorme parte da população brasileira. Todos perdemos. E, para resolver essa situação, devemos enfrentar o problema de duas maneiras combinadas. Primeiro, com ações preventivas que articulem políticas fundiárias, urbanas, habitacionais, ambientais e fiscais, sobretudo na esfera local, envolvendo terras privadas e públicas, imóveis vazios e subutilizados privados e públicos, bem como envolvendo as administrações públicas, o setor privado, as comunidades organizadas (cooperativas, ONGs, movimentos, etc.) e outros setores, como universidades, que possam ajudar dando assistência técnica e jurídica. Em segundo lugar, com políticas curativas de regularização das situações de assentamentos informais já consolidados. Vista noturna de Belo Horizonte 5 O que os governos municipais devem fazer para solucionar o problema dos assentamentos informais? Precisam interferir com urgência na estrutura de ordenamento territorial, e o meio mais adequado de fazerem isso é através de seus planos diretores e leis de uso e ocupação do solo, para assim criarem as condições de um novo pacto socioespacial que seja socialmente inclusivo e ambientalmente sustentável. É necessário também que os municípios promovam o controle do processo de desenvolvimento urbano, por meio de políticas de ordenamento territorial em que os interesses individuais de proprietários de terras e de construções urbanas possam coexistir com interesses sociais, culturais e ambientais de outros grupos e da cidade. Para tanto, o poder público pode, com leis e com diversos instrumentos urbanísticos, determinar um equilíbrio possível entre interesses individuais e coletivos quanto à utilização do solo urbano. E também promover a materialização do novo paradigma de função social e ambiental da propriedade e da cidade por meio da reforma da ordem jurídica, urbanística e ambiental municipal. E assim interferir e reverter o padrão e a dinâmica dos mercados imobiliários produtivos formais, informais e, sobretudo, especulativos que hoje têm determinado o processo crescente de exclusão social e segregação espacial nas cidades brasileiras. Qual a importância do Estatuto da Cidade para o desenvolvimento urbano? O Estatuto da Cidade se propôs a dar um suporte jurídico mais consistente e inequívoco à ação daqueles governos municipais que têm se empenhado em enfrentar as graves questões urbanas, sociais e ambientais que afetam a vida da enorme parcela (83% da população total) de brasileiros que vivem em cidades. Essa lei consolidou a ordem constitucional quanto ao controle jurídico do desenvolvimento urbano, visando a reorientar a ação do poder público, a do mercado imobiliário e a da sociedade de acordo com novos critérios econômicos, sociais e ambientais. Quais inovações jurídicas o Estatuto da Cidade trouxe para o ordenamento jurídico? Além de regulamentar os institutos já existentes do usucapião especial urbano e da concessão de direito real de uso, que são utilizados, respectivamente, para a regularização das ocupações em áreas privadas e em áreas públicas, a nova lei avançou no sentido de admitir a aplicação desses institutos de forma coletiva. Dispositivos importantes também foram aprovados para garantir o registro de tais áreas nos cartórios imobiliários, que em muitos casos têm colocado sérios obstáculos às políticas de regularização. Devem-se ressaltar também as repetidas menções feitas à necessidade de que tais programas de regularização fundiária se pautem por critérios ambientais. 6 O governo tem a obrigação constitucional de reconhecer o direito à moradia adequada para os pobres, mas as classes média e alta que burlaram a lei precisam ser responsabilizadas” Como o Estatuto trata os temas ambientais? Como município e cidadãos podem, em conjunto, ajudar numa gestão democrática das cidades? O Estatuto da Cidade encampou de maneira exemplar a proposta de integração entre o Direito Urbanístico e o Direito Ambiental no contexto da ação municipal, compatibilizando a “agenda verde” com a “agenda marrom” das cidades, e, por isso, tem sido aclamado internacionalmente por refletir as bases centrais do debate sobre as condições de materialização do paradigma do desenvolvimento sustentável. Mas sua efetivação em estratégias e programas de ação urbano-ambiental vão depender da ação dos municípios e da sociedade brasileira dentro e fora do aparato estatal. Por meio de mecanismos como audiências públicas, consultas, conselhos, estudos de impactos de vizinhança, estudos de impacto ambiental, iniciativa popular na propositura de leis e, sobretudo, a prática do orçamento participativo são tidos pelo Estatuto da Cidade como essenciais para a promoção da gestão democrática das cidades. Também é necessário estabelecer novas relações entre os setores estatal, privado e comunitário, especialmente com parcerias, consórcios e operações urbanas consorciadas, além da criação de mecanismos transparentes de controle fiscal e social. Os municípios estão preparados para utilizar os instrumentos jurídicos previstos no Estatuto? A utilização de tais instrumentos e as novas possibilidades de atuação dependem da definição de uma estratégia e de um planejamento de ação que expressem um projeto de cidade. É fundamental que os municípios promovam uma reforma de suas ordens jurídicas de acordo com os novos princípios constitucionais e legais, de forma a aprovar um quadro de leis urbanísticas e ambientais condizentes com o novo paradigma da função social e ambiental da propriedade e da cidade. Hoje, aproximadamente 1.500 municípios, dos cerca de 1.650 que têm a obrigação legal de implantar um plano diretor, já o aprovaram ou estão em fase de discussão das leis. Como os planos diretores abordam as políticas habitacionais e urbanas? De modo geral, os planos diretores não propõem utilização adequada de terras públicas e de edifícios vazios, e as políticas habitacionais e urbanas não são articuladas com políticas fundiárias, fiscais e ambientais. A regularização acaba sendo a política de habitação social por excelência, o que é uma aberração, agravada por políticas de subsídios habitacionais e propostas de desregulação e flexibilização urbanística para atrair o mercado. Há vários estudos mostrando que prevenir a informalidade é mais rápido, fácil e barato do que regularizar. Mas não há grande capital político na adoção de políticas preventivas. O que tem sido feito em matéria de legislação para regularizar os assentamentos informais? Além do Estatuto da Cidade, a Lei Federal no 11.48 facilitou a transferência de terras públicas da União para que municípios possam fazer a regularização fundiária de interesse social. A Lei Federal no 11.888 reconheceu o direito das comunidades de baixa renda à assistência técnica pública gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social. Essas ações romperam a tradição histórica que inicialmente invisibilizava as favelas e os assentamentos, que nem constavam das plantas e dos mapas das administrações municipais até recentemente. O princípio jurídico subjacente básico é garantir que as comunidades fiquem onde estão, naturalmente em condições melhores, e que tenham seus direitos reconhecidos. Como programas de regularização devem atuar? Os programas devem promover a segurança jurídica da posse e da integração socioespacial das áreas e das comunidades. As duas dimensões têm que ser articuladas e seu sucesso requer também políticas de geração de emprego e de renda. Para ser sustentável, legalização e urbanização têm de caminhar juntas. Os governos e a população brasileira têm que reconhecer que a informalidade não é mais a exceção, é a regra. Não bastam políticas isoladas, setoriais, erráticas e sem recursos. A legalização dos assentamentos informais de interesse social tem avançado? Com mais dificuldade, devido aos muitos problemas jurídicos ainda existentes, especialmente os decorrentes das legislações urbanística, ambiental, cartorária e processual em vigor. Por isso, no âmbito da revisão da Lei Federal de Parcelamento do Solo Urbano (Lei no 6.766/79), encontra-se no Congresso Nacional o Projeto de Lei no 3.057/00, e desde 2003 uma ampla discussão tem buscado encontrar as melhores maneiras de superar os problemas jurídicos para facilitar a regularização dos assentamentos informais de interesse social. Já há diversos acordos e pactos entre vários setores para que isso aconteça. 7 Qual a opinião do senhor sobre a matéria da regularização fundiária prevista na Medida Provisória no 459, convertida na Lei no 11.977, que institui o Programa Minha Casa, Minha Vida? Na formulação do programa, possivelmente devido às críticas, que diziam que as propostas iniciais somente consideravam novas construções e não tocavam na questão da regularização dos assentamentos irregulares existentes, os formuladores da Lei no 11.977 buscaram no PL no 3.057/00 a seção da regularização fundiária de interesse social e a inseriram na Medida Provisória. Espera-se que seja possível avançar na legalização dos assentamentos informais com mais rapidez e eficiência a partir das mudanças que foram feitas pela MP na legislação urbanística, ambiental, cartorária e processual. Um ponto menos feliz da Lei no 11.977 foi ter tratado, e de maneira inadequada, de regularização fudiária de interesse específico, que não cabe no objetivo dessa Medida Provisória, o de abordar a questão da moradia de interesse social. Além das situações de assentamentos informais envolvendo grupos socioeconômicos desfavorecidos, há no Brasil inúmeros casos de informalidade urbana envolvendo grupos privilegiados. Por exemplo, loteamentos fechados e condomínios urbanísticos, que não têm base jurídica plena na ordem jurídica em vigor, além de casos de ocupações e parcelamentos de terras públicas, como os falsos condomínios do Distrito Federal. E como devem ser tratadas as infrações fundiárias provocadas por esses “grupos privilegiados” ? O governo tem a obrigação constitucional de reconhecer o direito à moradia adequada para os pobres, mas as classes média e alta que burlaram a lei precisam ser responsabilizadas. Se a legislação em vigor permite a transferência de terras públicas para os ocupantes, quando se trata de interesse social, o mesmo princípio não deve ser estendido a grupos sociais privilegiados que ocuparam terras públicas. A discussão sobre essa forma de regularização, no contexto do PL no 3.057, está longe de ter chegado a um pacto adequado, e a inserção desses dispositivos na MP no 459 criou uma aberração. A Lei no 11.977 deveria se concentrar no seu objetivo – o de moradia de interesse social – e deixar que a discussão sobre a regularização de interesse específico continue acontecendo no Congresso Nacional. 8 Qual sua análise sobre o sistema de registro de imóveis e sobre o usucapião coletivo ? Houve um esforço de simplificar e baratear os procedimentos de registro imobiliário, já que o registro é constitutivo da propriedade e se propõe a garantir a segurança jurídica das transações imobiliárias. É preciso transformar os cartórios em parceiros dos programas de regularização, para buscar soluções jurídicas criativas que sejam viáveis, distribuir o ônus e as responsabilidades dos envolvidos. De mais difícil equacionamento é a questão das ações de usucapião coletivo. As dificuldades são inúmeras e os custos gigantescos – e o que se tem chamado de ações coletivas na sua maioria são ações plúrimas. Por exemplo, no caso do Rio de Janeiro, tem transcorrido uma média de sete anos para que ocorra a citação inicial. Não tem sentido o reconhecimento de direitos coletivos, se os canais processuais para seu reconhecimento também não forem coletivizados. Não basta o rito sumário, é preciso criar procedimentos judiciais coletivos ágeis que levem em conta a natureza da demanda. Um tema antigo é o da função social da propriedade. O que o senhor pensa sobre isso? Historicamente, a noção da função social da propriedade foi em grande medida uma figura de retórica por muitas décadas, já que, de modo geral, a ação efetiva dos setores privados ligados ao processo de desenvolvimento urbano se pautou pelo direito de propriedade individual, considerado por muitos como irrestrito. A base jurídica dessa noção, ao longo do século XX, foi dada pelo Código Civil de 1916 – aprovado quando apenas cerca de 10% de brasileiros viviam em cidades e num contexto de um país ainda fundamentalmente agrário, mas que vigorou até 2002. O Código Civil defendia a noção da propriedade individual de maneira quase que absoluta. E a ação do poder público no controle do desenvolvimento urbano encontrou obstáculos nessa interpretação distorcida dos princípios civilistas, que ainda orientam grande parte da doutrina jurídica e da jurisprudência dos tribunais. O que os moradores de áreas informais devem fazer para conseguir a legalização de suas moradias? O avanço vai depender da mobilização da população, que precisa propor um número maior de ações judiciais que demandem reconhecimento dos direitos de usucapião e de concessão de direito real de uso, já reconhecidos pela ordem jurídica. Mesmo reconhecendo as dificuldades envolvidas nos processos judiciais, as comunidades não podem mais ficar à mercê das pressões de todo tipo e das mudanças políticas constantes. Como o poder público deve equacionar pressão imobiliária e interesse público? Mudar esse quadro significa promover uma intervenção direta nas dinâmicas do mercado, não apenas através das limitações administrativas de que fala o Direito Administrativo, mas pela combinação de índices urbanísticos regulatórios com obrigações impostas a proprietários e promotores imobiliários, que vão da reserva de terras para habitação de interesse social e outros fins públicos até a captura da valorização imobiliária. Não se trata de regular mais ou de desregular, trata-se de regular aquilo que precisa ser regulado, sobretudo aquilo que as forças de mercado não consideram. Qual sua opinião sobre o impasse entre ocupação de áreas de preservação permanente e direito à moradia? Trata-se de um falso conflito. Os dois valores são constitucionalmente protegidos e têm como raiz a função socioambiental da propriedade e da cidade. De imediato, é preciso separar situações atuais consolidadas de situações futuras. Todo o esforço deve ser feito para minimizar futuras ocupações em áreas ambientais. Para isso, é necessário não apenas fiscalizar, mas, sobretudo, ofertar adequadas opções de acesso ao solo e à moradia para os pobres, seja pelas políticas públicas, ou pelas forças de mercado. É necessária, ainda, a formulação de uma política de preservação e de conservação, devidamente territorializada, com estratégias de manejo e monitoramento. A tarefa requer o máximo de mitigação e compensação de danos ambientais, mas com remoção da população apenas em casos extremos e com alternativas aceitáveis. Como enfrentar os problemas relacionados com as moradias em área de risco? Novas ocupações nessas áreas não devem ser ignoradas ou toleradas. Opções aceitáveis de relocalização devem ser concebidas e discutidas com as comunidades antes que os assentamentos se consolidem. Sobre os já consolidados, há que se enfatizar que, tecnicamente, são poucas as áreas de risco que não podem de forma alguma ser objeto de ocupação humana. Com maior frequência, o problema não diz respeito a um risco intrínseco, mas à falta de manejo dele. Há vários estudos e experiências (Medellin, por exemplo) que indicam que o manejo do risco é mais viável – inclusive em termos financeiros – do que qualquer outra opção de relocalização da população. Estratégias de permeabilização do solo, limpeza de bueiros, educação ambiental, plantio de árvores etc, são algumas das muitas possibilidades existentes. Quais agentes devem participar dessa mudança? Destaque especial deve ser dado para os operadores do Direito: advogados, juízes, promotores de Justiça, defensores públicos, registradores de imóveis. Eles precisam superar os obstáculos jurídicos à legalização das áreas informais e fazer valer a MP no 459. O sucesso ou não da nova lei vai depender da ação dos juristas brasileiros. O Estatuto da Cidade, a Medida Provisória no 2.220/01 e a própria Lei no 11.977 têm seus problemas jurídicos – que vão da má técnica legislativa em alguns casos à imprecisão de certos conceitos – e com certeza vão gerar interpretações doutrinárias e judiciais contraditórias. O grande desafio é conseguir colocar o Direito no mundo da vida, é construir um discurso jurídico sólido que faça uma leitura teleológica dos princípios constitucionais e legais, integrando os novos direitos sociais e coletivos à luz do marco conceitual consolidado pelo Estatuto, de forma a dar suporte jurídico adequado às estratégias político-institucionais de gestão urbano-ambiental. Promover a inclusão social pelo Direito é uma tarefa fácil? Esse é o desafio colocado para os juristas brasileiros. Não é mais possível interpretar as graves questões urbanas e ambientais exclusivamente com a ótica individualista do Direito Civil, nem buscar tão somente no Direito Administrativo tradicional – que com freqüência reduz a ordem pública à ordem estatal – os fundamentos para as novas estratégias de gestão municipal e de parcerias entre os setores estatal, comunitário, voluntário e privado. O papel dos juristas construindo as bases sociais e coletivas do Direito Urbanístico é de fundamental importância nesse processo de reforma jurídica e urbana, que passa necessariamente pela regularização dos assentamentos informais, para que sejam revertidas as bases dos processos de espoliação urbana e destruição socioambiental que têm caracterizado o crescimento urbano no Brasil e para que conceitos de práticas de desenvolvimento sustentável sejam efetivamente materializados. 9 Como o senhor vê a atuação do Ministério Público na defesa da habitação e do urbanismo? Vou ser franco e provocativo. Sem me referir a este ou àquele promotor de Justiça, ou a este ou aquele Estado, confesso que, ao longo dos anos, fui ficando menos impressionado com a ação do Ministério Público nessa área de políticas públicas de regularização fundiária e de políticas habitacionais de interesse social. No começo, parecia que o MP iria ocupar esse espaço. Em alguns Estados, até houve uma mobilização importante, o que certamente exigiu dos promotores um esforço de superação, já que nem mesmo o Direito Administrativo dá conta desse assunto complexo. Pouco a pouco, parece que o Ministério Público de Habitação e Urbanismo foi perdendo espaço para o MP Ambiental. Um discurso ambientalista, excessivamente naturalista, na minha visão, foi sendo cada vez mais usado para colocar obstáculos ao avanço dos programas de regularização. Um falso conflito foi acirrado entre preservação ambiental e direito social à moradia. Minha impressão é de que o Ministério Público, pouco a pouco, deixou de ser parceiro das comunidades pobres, expressando com maior facilidade valores mais próximos das classes média e alta. O vazio deixado pelo MP tem sido progressivamente ocupado por uma categoria menos valorizada e que possui poucos recursos: a Defensoria Pública. Hoje, são os Defensores Públicos que estão levando, com mais força, a bandeira da regularização fundiária. Seria importante promover um debate dentro do MP para superar falsos conflitos e articular uma postura de apoio aos programas de regularização fundiária. Isso é importante para uma enorme parcela da população e crucial para o aprofundamento da democracia no País. Quais mecanismos jurídicos o promotor de Justiça pode usar em sua atuação? Cite algum caso específico. Cito, sempre como referência fundamental das possibilidades de avanço na construção do que chamo de cenários possíveis, um TAC proposto e coordenado em São Bernardo do Campo pela promotora de Justiça Rosangela Staurenghi. Foi um documento impressionante, que resultou de um processo abrangente envolvendo mais de dez participantes, com uma distribuição justa de ônus e responsabilidades entre eles. Além do papel na condução do litígio, acho que o MP pode ter um papel crucial na busca de resolução extrajudicial de conflitos. Edésio Fernandes Divulgação Mineiro, natural de Belo Horizonte, é bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); especialista em Urbanismo pela UFMG; mestre ( LL.M. in Law in Development,Warwick University, UK) e doutor em Direito (Ph.D., Warwick University). Atualmente, é professor do Development Planning Unit/DPU da University College London (Inglaterra) e da Teaching Faculty do Lincoln Institute of Land Policy em Cambridge MA (EUA); membro do Grupo Consultivo sobre Despejos Forçados da ONU-Habitat; professor visitante em duas universidades brasileiras, entre outras funções. 10 Entrevista A cidade no olhar de Jaime Lerner O arquiteto e urbanista Jaime Lerner foi duas vezes prefeito de Curitiba e duas vezes governador do Paraná. Referência mundial em planejamento urbano, já presidiu a União Internacional de Arquitetos (UIA). Atualmente é consultor de urbanismo da ONU. Em entrevista à revista Rede, Lerner mostra a importância do “fazer acontecer” para uma boa gestão urbana. Por Meire Ana Terra Divulgação Inovar é começar! Não podemos ser tão arrogantes e querermos ter todas as respostas antes de iniciar algo” 11 O senhor foi responsável por uma revolução urbanística que projetou a cidade de Curitiba internacionalmente. Como o senhor iniciou esse processo? Curitiba logrou se estabelecer como referência em boas práticas urbanas adotando como premissa fundamental a concepção da cidade como uma estrutura de vida e trabalho, juntos. A compreensão desse binômio é de suma importância. A adoção de diretrizes articuladas de usos do solo, transporte e sistema viário, o investimento em um sistema de transporte público de qualidade, a busca de soluções criativas, simples e econômicas para os desafios ambientais, a valorização das referências da história e da memória urbana merecem destaque como formas de se concretizar essa concepção. Qual o reflexo dessa mudança na população? A população é um agente fundamental de transformação da cidade. A cidade que é boa para se viver é aquela que é boa para as pessoas, onde o ser humano é a medida de todas as coisas. A partir do momento em que a população se sente parte valorizada do processo de construção do sonho coletivo que é a cidade, há ganhos de eficiência das políticas públicas e em qualidade de vida. Os espaços públicos, como os parques por exemplo, quando entendidos não como uma “terra de ninguém”, mas como um espaço de todos, passam a ser um patrimônio coletivo prezado e usufruído. Divulgação A população é um agente fundamental de transformação da cidade. A cidade que é boa para se viver é aquela que é boa para as pessoas, onde o ser humano é a medida de todas as coisas” Parque Birigui e embarque de passageiros no sistema de transporte coletivo, em Curitiba: exemplos do trabalho desenvolvido por Lerner na cidade 12 O senhor fez mudanças polêmicas em Curitiba, como a transformação de uma área para pedestres em apenas 72 horas. Essas mudanças devem ser rápidas? Por quê? “Fazer acontecer” é essencial para a boa gestão urbana. É necessário estabelecer o efeito demonstração que torna possível consolidar diretrizes estratégicas de planejamento a longo prazo. Ademais, inovar é começar! Não podemos ser tão arrogantes e querermos ter todas as respostas antes de iniciar algo. Da “origem” ao “destino”, a trajetória sempre pode ser ajustada... Hoje prefeitos de outros países o procuram para ajudar na criação de projetos de urbanismo. Como está sendo esse viés do seu trabalho? Hoje me dedico a aplicar “acupunturas urbanas”, pensar junto com as cidades quais são aquelas intervenções que, tal como a acupuntura na medicina, podem ajudar o organismo urbano como um todo a funcionar melhor, de forma mais consistente e saudável. Definir quais intervenções estratégicas podem fomentar a sinergia necessária para alimentar processos de planejamento, de construção do projeto de cidade e da definição/consolidação de um desenho é fundamental para que a cidade se desenvolva não como uma metástase desordenada, mas como uma estrutura integrada de vida e trabalho. Quais as mudanças necessárias no que se refere à habitação e ao urbanismo no Brasil? Como falei acima, temos que fazer acontecer. Temos que evitar de nos perdermos no discurso dos “vendedores de complexidade” e atuarmos com os instrumentos que já estão disponíveis – Estatuto da Cidade, linhas de financiamento, boas práticas, entre outros. O que não podemos é ficar paralisados, inoperantes, porque não conseguimos resolver um déficit habitacional de décadas todo de uma vez. Há que se começar! O senhor, como consultor em urbanismo da ONU, pode dar um exemplo de país que desenvolve um modelo ideal de urbanismo? Não acredito em receitas; acredito, contudo, na possibilidade de qualquer cidade melhorar significativamente sua qualidade de vida em três anos, a partir de ações focadas nas questões fundamentais para a qualidade da vida urbana que são a mobilidade, a sustentabilidade e a identidade/coexistência. Qual seria o modelo ideal de desenvolvimento urbanístico sustentável para uma metrópole como Belo Horizonte? Não há um modelo ideal. O que há é a possibilidade concreta de se estabelecer uma visão estratégica, um sonho concebido e construído de forma compartilhada, e um desenho, uma estrutura de crescimento que oriente as ações presentes e futuras. Além das questões básicas de saúde, educação, atenção à criança, as metrópoles precisam construir boas equações de corresponsabilidade para enfrentar os desafios de mobilidade, sustentabilidade e coexistência. O Brasil vai sediar a Copa do Mundo em 2014 e enfrenta um problema que é o transporte urbano. O senhor é a favor ou não da ampliação de linhas de metrôs, a exemplo da proposta feita para Belo Horizonte? Enquanto a superfície não for bem operada, não se poderá pensar em ampliação do metrô. São Paulo por exemplo, tem 4 linhas de metrô, mas 84% dos deslocamentos são em superfície. Em termos de mobilidade, primeiramente, há que haver um compromisso inequívoco com a oferta de transporte público de qualidade, que permita aos usuários utilizá-lo com dignidade, conforto, segurança e eficiência. Como balancear essa equação é um dos principais desafios das cidades contemporâneas. Conquanto todos os modos de transporte – ônibus, trens, metrô, transporte individual – devam ser utilizados de forma inteligente naquilo que podem oferecer de melhor dentro das possibilidades de cada cidade, acredito que o futuro do transporte urbano está na superfície, pela imensa economia de custos, facilidade e rapidez de implantação e flexibilidade que permite. As características que distinguem o metrô podem ser incorporadas ao sistema de transporte em superfície. É a isso que me refiro no conceito de ‘metronizar’ o ônibus: rapidez, embarque e desembarque pré-pago e em nível, e, sempre que possível, prioridade na circulação. 13 Habitação e 14 urbanismo Ministério Público quer interromper círculo vicioso do crescimento urbano desordenado e sem planejamento Por Neuza Cunha Foto: Alex Lanza 15 A crescente violação da ordem urbanística, não só na região metropolitana de Belo Horizonte, como na maioria dos municípios mineiros, é resultado da prática, pelos Poderes Públicos e particulares, de atos comissivos e omissivos semelhantes e prejudiciais ao direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte público. É o que explica a coordenadora da Promotoria de Justiça Metropolitana de Habitação e Urbanismo (PJMHU), promotora de Justiça Marta Alves Larcher. E, portanto, afirma Marta Larcher, que a atuação do Ministério Público deve caminhar no sentido de compelir os municípios a se estruturar administrativamente e a capacitar seus agentes para o cumprimento de todos os instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, entre eles o plano diretor, a regularização fundiária, o planejamento do desenvolvimento e da expansão urbana, a gestão democrática das cidades, a ordenação e o controle do uso do solo. Essa é uma das metas estabelecidas pela PJMHU para este ano, mas que também servirá de norte para as demais Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo em todo o Estado. Isso porque, desde 1º de maio deste ano, a Promotoria de Justiça Metropolitana de Habitação e Urbanismo adquiriu mais uma atribuição: a de orientar e dar apoio técnico-jurídico às demais Promotorias de Justiça nessa área de atuação no Estado. A Promotoria Metropolitana, segundo informou a coordenadora Marta Larcher, já vem identificando as prioridades específicas da ação institucional na proteção da ordem urbanística, por meio da integração e do intercâmbio com organizações não governamentais e comunidade, bem como buscando o apoio de órgãos públicos cujas funções estejam relacionadas com a defesa do direito coletivo à ordem urbanística. “O nosso maior desafio consiste em conscientizar os gestores públicos e a sociedade da necessidade urgente de obediência às normas de uso e ocupação do solo urbano, para evitar o prosseguimento da degradação ambiental nas cidades e para garantir a qualidade de vida da população”, assevera a promotora de Justiça. Mudança de postura No último dia 14 de fevereiro, comemoraramse os dezesseis anos da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, cuja sanção se deu em solo mineiro, pelo então presidente da República Itamar Franco. A Lei Orgânica Nacional veio para consolidar as garantias previstas na Constituição Federal de 1988, que deram ao Ministério Público um novo perfil, passando os membros da Instituição a ser os verdadeiros defensores dos direitos dos cidadãos. Se a Lei Orgânica está na sua fase adolescente – dezesseis anos –, o Ministério Público encontra-se maduro. E, entre os instrumentos postos à disposição do Ministério Público para o exercício de suas atribuições legais, há a recomendação, o termo de ajustamento de conduta e a ação civil pública, normalmente usados frente a uma violação de disposição legal, em uma atuação que se caracteriza pela ação repressiva – ou seja, diante de um dano concretizado, o promotor de Justiça procura atuar em busca da punição do infrator e da reparação do dano. Entretanto, segundo ressalta a promotora de Justiça Marta Larcher, mesmo com os êxitos e avanços obtidos em prol da sociedade brasileira nos últimos vinte anos, há que se defender a tese de que já é hora de novos avanços e de mudança de postura dos membros do Ministério Público. Pró - ativa A sugestão da promotora de Justiça Marta Larcher é passar da simples atuação reativa, quando provocada, para a atuação pró-ativa, buscando atuar antes do surgimento dos conflitos e danos, precisamente influenciando na formação das políticas públicas. “Não queremos, com essa postura, assumir a posição do administrador público, definindo políticas públicas. Diante de tantos problemas a enfrentar e da escassez de recursos, devemos, sim, participar da 16 definição de prioridades, procurando garantir recursos orçamentários necessários para atender às necessidades mais prementes da sociedade”, defende. Essa nova postura, segundo Marta Larcher, é especialmente importante quando se tem por escopo a implementação de políticas públicas referentes aos direitos à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana e ao transporte coletivo. Alex Lanza Direito social à moradia São metas prioritárias do Ministério Público de Minas para 2009, através da PJMHU e demais Promotorias de Justiça de Urbanismo e Habitação, os seguintes temas: ajustar com pelo menos 50% dos municípios da região metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) a implantação de Planos de Redução de Risco e do Sistema Municipal de Defesa Civil; promover a regularização fundiária de, pelo menos, três assentamentos precários existentes na RMBH, implantados em áreas públicas, em atenção ao disposto no Estatuto da Cidade e da MP no 2.220/2001, que criou a concessão de uso especial de imóveis públicos urbanos para fins de moradia; promover, com auxílio das entidades parceiras, a estruturação administrativa de 50% dos municípios da RMBH nos setores de análise e aprovação dos projetos de parcelamento do solo urbano e de fiscalização durante sua implementação, bem como a capacitação dos agentes públicos responsáveis por essas atividades. “A implementação dos princípios, regras e instrumentos do Estatuto da Cidade é imprescindível para a concretização do direito às cidades sustentáveis”, realça a coordenadora Marta Larcher, pois sabidamente o processo de urbanização brasileira, a partir da década de 1950, deu-se de forma totalmente improvisada e sem critérios legais. “À ausência inicial de um regramento legal, somou-se posteriormente a contumaz omissão dos poderes públicos no exercício de seu poder-dever de polícia. O resultado é um enorme passivo ambiental e social”, revela. Além disso, comenta Marta Larcher, são inúmeras as áreas de risco ocupadas por população de baixa renda, os chamados assentamentos urbanos precários e informais, o que coloca essas pessoas em situação de extrema vulnerabilidade. Para a promotora de Justiça, a solução do problema habitacional não se resolverá num passe de mágica. “Infelizmente, não podemos ficar alheios a esse estoque de moradias precárias, que de uma forma ou de outra garantem a significativa parcela da população urbana o direito social à moradia”, diz. Para Marta Larcher, esse contexto torna necessária a implantação de um sistema, ainda que transitório, de convivência com o risco controlável, mediante monitoramento permanente. Daí a importância da implantação dos Planos Municipais de Redução de Risco (PMRR), que consistem basicamente no diagnóstico das áreas de risco e na definição das intervenções prioritárias, com posterior previsão anual das verbas orçamentárias necessárias para execução das prioridades eleitas. 17 Desigualdade histórica De acordo com a promotora de Justiça, ao lado da elaboração e implantação do PMRR, está a efetivação das Coordenadorias Municipais de Defesa Civil, de modo a integrar o município ao Sistema Nacional de Defesa Civil. “A realidade de nossas cidades nos mostra também que nossos espaços urbanos dividem-se em dois: de um lado, a cidade legal, composta pelos loteamentos regulares aprovados pelo Poder Público, na forma da lei e dotados da infraestrutura urbana básica e serviços públicos, a exemplo de água, luz, saneamento básico, transporte coletivo, segurança pública, entre outros; de outro lado, a cidade ilegal ou informal, composta pelos loteamentos clandestinos, pelas ocupações irregulares, pelas vilas e favelas, entre outras modalidades de ocupações precárias cuja população é totalmente alijada dos benefícios decorrentes do processo de urbanização”, explica. Raquel Bandeira Acampamento bairro Céu Azul, em BH 18 Para eliminar essa desigualdade histórica, o Estatuto da Cidade (Lei Federal no 10.257/2001) estabeleceu diversas diretrizes para a política urbana de desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, entre elas a regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda, mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, considerada a situação socioeconômica da população e as normas ambientais. A regularização fundiária é um direito das populações residentes em ocupações precárias, cabendo ao Poder Público realizar um planejamento concreto nessa direção. “Não devemos nos esquecer de que a falta da regularização fundiária nas ocupações precárias é consequência direta da ausência de planejamento urbanístico ao longo de décadas e também do despreparo do Poder Público municipal para exercer o seu papel legal de gestor do solo urbano, e, ainda, para realizar a devida fiscalização durante a implantação dos empreendimentos e atividades desenvolvidos no espaço urbano”, afirma Marta Larcher. Segundo ela, esse despreparo se origina da ausência de uma estrutura administrativa adequada, baseada numa legislação (lei de uso e ocupação do solo, plano diretor, entre outros) e apoiada em um corpo técnico formado por servidores com habilitação legal para análise e aprovação dos projetos, considerados os aspectos urbanísticos e ambientais. Para Marta Larcher, além de buscar garantir o mínimo existencial às populações de baixa renda ocupantes de assentamentos urbanos precários, através da regularização fundiária, a atuação do Ministério Público deve caminhar no sentido de fazer com que os municípios se estruturem para a adequada gestão do solo urbano, visando interromper o círculo vicioso do crescimento urbano desordenado e sem planejamento. Regularização Alex Lanza fundiária Não é novidade que grande parte das cidades brasileiras cresceram e se desenvolveram sem nenhum planejamento, possibilitando o surgimento de inúmeros assentamentos precários, a exemplo de vilas, favelas, loteamentos clandestinos e irregulares, carentes da mínima infraestrutura urbana. Segundo informações do Censo 2000, do IBGE, um quarto dos domicílios brasileiros está em situação de irregularidade. A regularização fundiária dos assentamentos urbanos precários tem por objetivo melhorar as condições de habitação, por meio de implantação de ações de urbanização e recuperação ambiental, promovendo a regularização da posse e da propriedade mediante titulação respectiva, bem como promovendo a integração plena dos moradores dessas ocupações à cidade formal, começando por lhes garantir um endereço. Grande parte dos assentamentos precários se estabeleceu a partir da ocupação gradativa de imóveis públicos ociosos ou subutilizados nas cidades, às margens de rodovias, às margens de linhas férreas, entre outros locais. “Além da afronta aos padrões urbanísticos do município, esses assentamentos são causa de enormes danos ao meio ambiente, seja pela retirada de vegetação natural, seja pela disposição inadequada do lixo e do esgoto”, lembra Marta Larcher. “Além do mais, a impossibilidade de essas populações adquirirem a propriedade dos imóveis ocupados pelo usucapião, aliada à absoluta precariedade de infraestrutura urbana nesses assentamentos, sempre gerou uma situação de instabilidade e exclusão social para seus moradores”, conclui. Marta Larcher A implementação dos princípios, regras e instrumentos do Estatuto da Cidade é imprescindível para a concretização do direito às cidades sustentáveis” 19 Gestão do solo urbano Conforme descrito no artigo 30, capítulo VIII, da Constituição, cabe aos municípios promover o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Em resumo, é dever legal do município exercer a gestão do solo urbano, disciplinando as atividades que ali ocorrem. “A competência municipal para gestão do solo urbano começa pela obrigatoriedade de editar seus planos diretores, leis de uso e ocupação do solo, código de posturas, entre outros diplomas, que estabelecem os parâmetros legais para a disciplina das atividades exercidas na cidade”, ressalta Marta Larcher. Segundo a promotora de Justiça, entre as diversas atividades que se verificam no espaço urbano, o parcelamento do solo para implantação de loteamentos, dando origem a novos bairros, é sem dúvida a que maior impacto causa na vida da população da cidade e no meio ambiente, por implicar o adensamento populacional e a necessidade de implantação da infraestrutura urbana pertinente, tais como equipamentos urbanos e comunitários, além de gerar demanda pela prestação de serviços públicos, como transporte coletivo, saúde, educação, segurança pública, iluminação pública, saneamento básico. “Por aí, já se constata a necessidade de que a expansão urbana se dê de forma planejada, sob pena do surgimento de novos núcleos habitacionais precários, informais e marginalizados do restante da cidade”, argumenta Marta Larcher. A Lei Federal no 6.766/1979, norma geral em matéria urbanística, que disciplina o parcelamento do solo para fins urbanos, em consonância com os ditames constitucionais, confere ao município papel importantíssimo na análise e aprovação de projetos de parcelamento do solo urbano. Portanto, cabe ao município estabelecer as diretrizes para elaboração dos projetos de parcelamento, aprová-los, ouvindo previamente o estado, nas hipóteses definidas no artigo 13 da Lei no 6.766/1979. Essa lei prevê duas modalidades de parcelamento: o loteamento – quando há a subdivisão da gleba em lotes destinados à edificação, com abertura de novas ruas ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes; e o desmembramento – quando ocorre a subdivisão da gleba em lotes destinados à edificação, com aproveitamento do sistema viário existente. “A etapa de análise e aprovação de projetos de parcelamento do solo é uma atividade complexa e demanda a atuação simultânea de profissionais habilitados em diversas áreas. O município deve contar com equipe multidisciplinar composta, no mínimo, por engenheiro florestal, para verificação de eventuais restrições ambientais à ocupação da área parcelanda; advogado, para confronto do projeto do empreendimento com as leis federais, estaduais e municipais (plano diretor, lei de uso e ocupação do solo, entre outros); e arquiteto, para análise dos aspectos urbanísticos”, explica Marta Larcher. Por ser considerada uma atividade potencialmente degradadora do meio ambiente, o parcelamento do solo está obrigado ao prévio licenciamento ambiental, nos termos da Resolução Conama no 237/1997. No Estado de Minas Gerais, o parcelamento do solo é regrado pela deliberação normativa Copam no 58/2002. “O trabalho do município não acaba com a aprovação do projeto, cabendo-lhe acompanhar a sua implantação para, assim, evitar discrepâncias entre as obras e o que foi aprovado”, lembra Marta Larcher. A promotora de Justiça destaca ainda que, se ao final do prazo estipulado nos cronogramas as obras de infraestrutura urbana estiverem concluídas, o município expedirá termo de recebimento do loteamento, que passará a integrar formalmente a cidade como um novo bairro, ficando o Poder Público, a partir daí, responsável pela manutenção dos espaços públicos e prestação dos serviços públicos diretamente ou por seus concessionários. 20 Aglomerado em Belo Horizonte Foto: Alex Lanza 21 Plano de redução de riscos O objetivo do Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR) é diagnosticar e dimensionar as áreas de risco existentes no território municipal, bem como servir de guia para o planejamento de ações preventivas e estruturais necessárias para, aos poucos, controlar e eliminar esses riscos. De acordo com Marta Larcher, o surgimento de áreas de risco no Brasil está relacionado com a remoção da vegetação natural para ocupação desordenada de encostas e margens de rios, comprometendo a estabilidade do solo, especialmente nos períodos de chuvas intensas e prolongadas. “Além dos enormes prejuízos materiais, os deslizamentos e inundações costumam acarretar a morte de centenas de pessoas, fatos que poderiam ser evitados se houvesse, por parte dos municípios, um conhecimento prévio das áreas de risco”, destaca. Prevenção e autodefesa Para Marta Larcher, o gerenciamento dos riscos se dá através de quatro estratégias: identificação e análise de riscos (diagnóstico); adoção de medidas estruturais (obras) para a prevenção de acidentes e a redução dos riscos; adoção de medidas não estruturais (por exemplo, limpeza de bueiros), com implantação de planos preventivos de defesa civil para os períodos das chuvas mais intensas, monitoramento e atendimento das situações de emergência (plano de contingência) e divulgação das informações e capacitação da população moradora da área de risco para prevenção e autodefesa. 22 A promotora de Justiça acredita que a repetição desses desastres a cada período anual de chuvas, como se fossem inesperados e inevitáveis, exige que os municípios se preparem adotando uma política preventiva, permanente e eficaz de controle e gestão dos riscos, baseada na mobilização ativa das comunidades envolvidas, em intervenções estruturais, somadas a políticas municipais de habitação, saneamento e planejamento urbano. Para se analisar uma “situação de risco”, deve-se primeiro identificar que processos naturais ou da ação humana estão produzindo o perigo, em que condições a sua evolução poderá ocasionar um acidente e qual a probabilidade de esse fenômeno físico ocorrer. O perigo pode ser causado pela atuação de vários fatores no meio físico: por exemplo, o escorregamento de taludes, o deslizamento de blocos e de lixo, o solapamento de margens de córregos, entre outros. “Entender exatamente qual tipo de processo pode ocorrer num determinado local é fundamental para avaliar o perigo, ou seja, o que pode ocorrer, em que condições e com que probabilidade”, ressalta Marta Larcher. As consequências do perigo não afetam de forma igual todo o território do município; as áreas urbanizadas, por exemplo, dotadas de toda a infraestrutura de escoamento das águas pluviais, sofrem menos com as chuvas do que vilas e favelas. A promotora de Justiça ressalta que os assentamentos precários são mais suscetíveis aos riscos de deslizamentos e desabamentos, porque normalmente estão localizados em áreas mais frágeis do ponto de vista geológico, e suas construções foram erguidas sem observação das técnicas construtivas adequadas. Além disso, a infraestrutura urbana é incompleta e os serviços públicos inexistentes, como coleta de lixo e saneamento básico. “É muito importante a participação da sociedade civil no monitoramento dos riscos”, destaca Marta Larcher, que complementa ainda ser fundamental que o Poder Público esteja preparado para atuar em casos de emergência, definindo antecipadamente algumas ações, como as atribuições e procedimentos a serem executados pelos funcionários e órgãos da administração pública envolvidos (Defesa Civil, técnicos das áreas de Engenharia, Geologia, Serviço Social, Saúde, Gerenciamento de Abrigos, Segurança Física e Guarda de Bens em caso de necessidade de remoção, eventual controle de trânsito, equipes para reabilitação dos locais públicos e coletivos afetados); os equipamentos necessários; as estruturas de apoio (Corpo de Bombeiros, Polícia Militar, Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, etc.); as redes de comunicação; as formas de registro de ocorrência e de notificação; as equipes de socorro e resgate; as formas de contato com a imprensa; a avaliação de impactos e danos; as providências para reabilitação, isolamento ou interdição do local acidentado; os recursos materiais necessários para as equipes operacionais; refúgios ou abrigos para os casos de necessidade de remoção temporária ou definitiva e suporte para seu funcionamento (atenção social, suprimentos, alimentação); o suporte legal para a operação (notificação, definição legal das atribuições e procedimentos e apoio jurídico, se necessário). Desenvolvimento sustentável Promotores de Justiça buscam soluções para regulamentar loteamento e preservar áreas verdes O Ministério Público Estadual (MPE) ajuizou inúmeras ações buscando fazer cumprir a legislação de parcelamento do solo urbano, bem como garantir nas áreas de empreendimentos estrutura urbana, funções urbanísticas que auxiliem no desenvolvimento sustentável das cidades e que formem espaços públicos destinados à recreação, à composição paisagística e ao equilíbrio ambiental. Seguindo esse conceito, a Promotoria de Justiça de Pará de Minas propôs Ação Civil Pública (ACP) para regularizar um loteamento implantado em 1979 naquela cidade. O loteamento encontra-se no local conhecido como Retiro e Audiência, no bairro Esplanada, e faz divisa com propriedades particulares e um terreno municipal. Em Ipatinga, por sua vez, a Promotoria de Justiça obteve decisão judicial garantindo a proteção de cerca de dois milhões e quinhentos mil metros quadrados de áreas verdes e de especial interesse ambiental e paisagístico, e que estavam ameaçadas pelo Plano Diretor do Município. Loteamento em Pará de Minas Segundo dados levantados pelo autor da ACP, promotor de Justiça Charles Daniel França Salomão, o empreendedor, mesmo não sendo o proprietário do imóvel, dividiu e vendeu inúmeros lotes no local, sem a prévia regularização do empreendimento, agindo, desse modo, em desacordo com a Lei 6.766/79. Por isso, mesmo recebendo pagamento das pessoas que adquiriram os lotes, não pode lavrar a escritura definitiva. Pedidos A Promotoria de Justiça de Pará de Minas, requer na ACP, em caráter liminar, que seja determinado ao loteador que se abstenha de vender lotes e de realizar ou de permitir que outros realizem qualquer tipo de edificação na área do loteamento, bem como de praticar atos de parcelamento material enquanto o empreendimento não estiver regularizado. Solicita também que seja determinado aos requeridos providenciarem, no prazo de dez dias, a colocação de aviso ostensivo na entrada do imóvel parcelado, informando a clandestinidade do loteamento, sob pena de multa diária a ser fixada pela Justiça. Requer, além disso, que, ao final, seja julgado procedente o pedido para condenar os requeridos a regularizar e adequar o loteamento às exigências da legislação obtendo as licenças e aprovações necessárias e também o registro do parcelamento no Ofício de Registro de Imóveis bem como a realizar as obras de infraestrutura indispensáveis à urbanização dos lotes, corrigindo as irregularidades apontadas na ação. O empreendedor também deverá, segundo pedido na ação do Ministério Publico, executar as obras de pavimentação de todas as ruas do loteamento e implantar a infraestrutura necessá- 23 ria, prevista nos projetos aprovados pelos órgãos competentes, a fim de adequar o empreendimento à legislação. Além disso, deverá apresentar a respectiva licença fornecida pelos órgãos ambientais competentes; adotar as medidas indenizatórias e compensatórias indicadas pelo órgão ambiental; fornecer aos compradores dos terrenos do loteamento as escrituras definitivas de compra, com registro imobiliário e apresentar certidão de registro imobiliário do loteamento fornecida pelo Cartório de Registro de Imóveis, sob pena de multa diária a ser fixada pela Justiça. Entenda o caso Alguns moradores buscaram a Justiça para compelir o empreendedor a lhes outorgar a escritura definitiva de compra dos lotes adquiridos, obtendo sentença judicial que homologou um acordo entre as partes, porém inexequível. Por outro lado, o real proprietário do imóvel onde se realizou o loteamento já faleceu, e os herdeiros não demonstraram interesse em resolver a situação, impedindo os moradores de registrar seus imóveis. Quando foi requerida a aprovação desse loteamento por meio de processo administrativo, que nunca foi finalizado, o Município recebeu diversos lotes como doação do empreendedor. Em 2004, foi sancionada a Lei Municipal n.º 4.417, autorizando o Município de Pará de Minas a aprovar, nas condições em que se encontra, o loteamento. Entretanto, constatou-se que a divisão de áreas do bairro, constantes da Lei Municipal n.º 4.417/2004, não coincide com a situação real e atual do empreendimento. Analisando as áreas do bairro Esplanada, constantes da Lei n.º 4.417/2004, em comparação com o projeto urbanístico apresentado no Inquérito Civil Público que precedeu a ACP, pelo empreendedor, verificam-se divergências relativas ao dimensionamento de áreas. Foram loteados 4.545,79 m2 a mais do que a área aprovada pela referida lei. Essas áreas, somadas a 8.025,61 m2 de área ver- de, transformaram-se em ruas e 35 lotes com área média de 330 m2. Logo, não há como o Município aprovar o loteamento do bairro Esplanada nos moldes da Lei Municipal 4.417/04, tendo-se em vista a divergência relativa ao dimensionamento das áreas constantes na referida lei com o projeto urbanístico do empreendimento. Soma-se a isso o evidente descaso por parte dos requeridos, que não procuram empreender medidas necessárias à regularização efetiva do loteamento. Os herdeiros firmaram Termo de Ajustamento de Conduta e concordaram em proceder ao desmembramento da área do loteamento a fim de constituir o título de propriedade em nome do loteador, não o fazendo até o presente momento. Por esses motivos, afirma o promotor de Justiça Charles Daniel França Salomão, não restou outra alternativa senão a propositura da ACP, com o objetivo de compelir os requeridos a regularizar definitivamente o loteamento, garantindo aos munícipes o direito de registrar os imóveis adquiridos de boa-fé. Função social Após vistoria realizada pelo Ministério Público, constataram-se algumas irregularidades que dizem respeito ao não cumprimento da legislação de parcelamento do solo urbano. O promotor de Justiça Charles Daniel França Salomão lembra que o artigo 4º da Lei Federal 6.766/79 prevê os requisitos urbanísticos mínimos a serem observados na elaboração do projeto de loteamento, que deverá atender também as diretrizes estabelecidas pelo município para o uso do solo, traçados dos lotes, do sistema viário, dos espaços livres e das áreas reservadas para o equipamento urbano e comunitário. De acordo com essa lei, são requisitos urbanísticos para um loteamento a indicação das áreas destinadas a sistemas de circulação e a implantação de equipamento urbano e comunitário, bem como de espaços livres de uso público, proporcionais à densidade de ocupação prevista pelo plano diretor ou aprovada por lei municipal para a zona em que se situe. 24 O Plano Diretor do Município de Pará de Minas determina, conforme relata o promotor de Justiça na ACP, que partes dos loteamentos devem ser transferidas para o patrimônio público – 10% para praças, jardins e áreas verdes; 20% para vias de circulação e 5% para equipamentos públicos e comunitários. Áreas verdes são aquelas reservadas ao uso público, para atividades cívicas, esportivas e de lazer da população, tais como praças, bosques, parques e jardins. Essas áreas apresentam, na estrutura urbana, funções urbanísticas que auxiliam no desenvolvimento sustentável das cidades, formando espaços públicos destinados à recreação, à composição paisagística e ao equilíbrio ambiental. Áreas verdes O Ministério Público constatou que no loteamento do bairro Esplanada apenas 1,52% de sua área está destinado a áreas verdes. Além disso, as áreas verdes existentes não possuem projeto paisagístico implantado e algumas se encontram ocupadas. O loteamento também não possui área destinada a equipamento comunitário, infringindo assim o disposto na Lei Federal 6.766/79. Infraestruturas básicas também precisam ser disponibilizadas, como equipamentos urbanos de escoamento das águas pluviais, iluminação pública, redes de esgoto sanitário, abastecimento de água potável e energia elétrica pública e domiciliar e as vias de circulação pavimentadas ou não. Para Charles Daniel, em regra, os loteamentos clandestinos geram influência direta sobre o meio ambiente, uma vez que não são observadas as normas urbanísticas, o que acarreta também consequências para a segurança e a salubridade da população. Ipatinga: proteção de 2,5 milhões de m2 de área verde O Ministério Público obteve, na Justiça, decisão judicial garantindo a proteção de cerca de 2,5 milhões de m2 de áreas verdes e de especial interesse ambiental e paisagístico do município de Ipatinga, e que estavam ameaçadas pelo Plano Diretor da cidade. A decisão já transitou em julgado e não cabe mais recurso. Foi imposta obrigação de não fazer ao Município, impedindo-o de expedir atos administrativos com o objetivo de implantar expansões urbanas e de efetuar alterações Divulgação que comprometam o caráter paisagístico do Parque das Mangueiras e, ainda, a imposição de obrigação de não fazer à Usiminas, vedando intervenções em determinadas áreas de sua propriedade sem os respectivos licenciamentos ambientais. Caso a decisão seja descumprida, os infratores serão multados em R$ 100 mil a cada ato realizado. O trânsito em julgado da decisão judicial foi determinado por Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado pelo Ministério Público com a Usiminas e com o Município de Ipatinga, em que os réus reconheceram a procedência da sentença, desistiram das apelações interpostas e renunciaram ao direito de impetrar novos recursos. “Tal decisão implica consequências altamente relevantes para o futuro do município de Ipatinga, pois a destinação, para fins de proteção ambiental e urbanística, das áreas protegidas pela sentença transitada em julgado não poderá mais ser alterada por qualquer tipo de ato do Poder Legislativo ou do Executivo, estando a execução da sentença garantida por pesadas multas”, declarou o promotor de Justiça Walter Freitas de Moraes Júnior. Walter Freitas de Moraes Júnior 25 Interesse ambiental e paisagístico O Plano Diretor do Município, elaborado na administração passada, determinava que áreas incluindo o cinturão verde da Usiminas, o Parque Zoobotânico da Usipa, áreas de preservação nas margens do Rio Piracicaba, áreas do Parque Estadual do Rio Doce, e o Parque das Mangueiras deveriam ser destinadas à expansão urbana e comercial. Estudo realizado pela Universidade Federal de Ouro Preto indicou que a urbanização de tais áreas iria implicar grave dano à vida, saúde e qualidade de vida da população do Município, uma vez que tais áreas possuem importante função ecológica, funcionando como instrumento de controle de poluição. Algumas áreas também foram consideradas como de especial interesse ambiental e paisagístico, inclusive áreas de preservação permanente nas margens do Rio Doce e Piracicaba. Conforme destacado na decisão, “a urbanização das áreas verdes não é benéfica nem mesmo aos cidadãos que se dispuserem a adquirir os lotes próximos à fonte emissora de poluição atmosférica, sonora e visual. Ao determinar a urbanização de tais áreas, o município satisfará o direito à habitação dos munícipes em detrimento de outro mais importante no caso em tela: o direito à saúde. Todas as áreas citadas devem ter o interesse ambiental declarado, pois houve omissão do poder estatal em fazê-lo, eis que não as incluiu no Plano Diretor como áreas cuja necessidade de proteção ambiental é patente. Frente a tal omissão cabe ao Ministério Público, instituição responsável pela defesa da sociedade, pleitear o reconhecimento de tal interesse”. Com a decisão transitada em julgado, segundo o promotor de Justiça, foi, de fato, instituída pelo Poder Judiciário uma Área de Proteção Ambiental englobando as áreas ameaçadas pelo Plano Diretor, que foram declaradas como de especial interesse ambiental e paisagístico, estabelecendo-se um regime jurídico para a sua proteção. Fotos: divulgação Relembrando O promotor de Justiça Walter Freitas de Moraes Júnior propôs, em 29 de janeiro de 2007, uma Ação Civil Pública, com pedido de tutela antecipada, a qual foi deferida pela Vara de Fazenda Pública de Ipatinga, garantindo a proteção das referidas áreas verdes, impedindo-se assim, a pretensão da Prefeitura de derrubar 2,5 milhões m2 quadrados de área verde, para implantar no lugar residências, comércio e equipamentos públicos. A Prefeitura pretendia devastar 21 regiões de área verde, que abrangem quase todos os bairros da cidade. Dessas, 13 áreas compõem o cinturão verde da Usiminas, principal adversária da implementação do projeto do prefeito. A própria Usiminas fez a representação ao Ministério Público visando barrar o desmatamento. Na ocasião, os representantes da Usiminas anunciaram que a supressão vegetal seria nociva para a sociedade e para a imagem da empresa, 26 uma vez que a atividade siderúrgica é poluidora e a Usiminas sempre foi conhecida por propagar o verde. Cerca de 29 entidades de proteção ambiental da região, além de ongs, associações esportivas e culturais se uniram para defender a preservação das áreas verdes. Na ACP do Ministério Público ficou comprovado também que somente os 926 mil metros quadrados de área verde do Centro de Biodiversidade da Usipa (Cebus), braço ecológico da Usiminas que a prefeitura pretendia extinguir, abrigam 598 animais, a maioria deles de fauna nacional e ameaçados de extinção. (Eduardo Curi) Alex Lanza Sonho da casa própria Especialistas tentam explicar por que é tão complicado resolver o déficit habitacional no Brasil, que ultrapassa seis milhões de moradias Por Giselle Borges Lançado em 25 de março deste ano, o programa do governo federal Minha Casa Minha Vida, que prevê investimentos de R$ 34 bilhões e a construção de um milhão de moradias para famílias com renda de até 10 salários mínimos, colocou na ordem do dia o tema habitação, já há tempos sem merecer prestígio dos governos. Destaque deve ser dado para o impressionante número de 6,273 milhões de moradias que compõem o déficit habitacional no país. Problemas nessa área não são recentes, visto que uma das primeiras políticas habitacionais do país, a Fundação da Casa Popular, é de 1946. Desde então, vários modelos, órgãos e programas entraram na história sem, contudo, conseguirem equacionar dificuldade da moradia para a população de baixa renda. Banco Nacio- nal de Habitação (BNH), Caixa Econômica Federal, Ministério da Habitação e do Bem-Estar Social (MBES), Habitar Brasil, Morar Município, Secretaria Especial de Habitação e Ação Comunitária (Seac), Plano Nacional de Habitação (PlanHab) são alguns dos nomes que refletem as mudanças na concepção e no modelo de intervenção do poder público no setor. Análise publicada no portal do Ministério das Cidades (www.cidades.gov.br), órgão criado em 2003 pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva com o propósito de combater as desigualdades sociais, a partir da transformação das cidades em espaços mais humanizados, é direta ao dizer o que havia ocorrido no setor habitacional “foi mais fruto de uma descentralização por ausência, sem uma repartição clara e institucionalizada de competências e responsabilidades, sem que o governo federal definisse incentivos e alocasse recursos significativos para que os governos dos estados e municípios pudessem oferecer programas habitacionais de fôlego para enfrentar o problema”. 27 Pela análise “o governo federal manteve um sistema centralizado, com linhas de crédito sob seu controle, sem uma política definida para incentivar e articular as ações dos estados e municípios no setor de habitação. O que se observa nesse período é a desarticulação institucional ou até mesmo a extinção de várias Companhias de Habitação (COHAB) estaduais e a dependência quase completa dos recursos federais pelos governos para o enfrentamento dos problemas habitacionais, verificando-se, inclusive, quase ou nenhuma priorização por parte de muitos estados à questão habitacional”. Apuração do déficit O Déficit Habitacional no Brasil é uma publicação da Fundação João Pinheiro, elaborada em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades. Ele aborda as necessidades habitacionais a partir de metodologia que distingue a necessidade de construção de novas moradias (o déficit habitacional) do segmento dos domicílios inadequados. O número estimado em 2006 foi de 7,935 milhões de domicílios, a maioria – 6,543 milhões – localizada nas áreas urbanas. Já a Pnad 2007 apontou um total de 7,288 milhões de moradias. Essa ineficácia de políticas não é suficiente para entender o atual déficit habitacional quando confrontado com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2007 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que apontam a existência de 7,351 milhões de domicílios vagos no país, sendo 5,396 milhões nas áreas urbanas. Números da Pnad, juntamente com os do estudo sobre o déficit habitacional 2007 da Fundação João Pinheiro, que apontam que chegam a 6,273 milhões, têm sido usados pelo governo, por meio do Ministério das Cidades, para todas as ações voltadas à área, inclusive para a elaboração do Plano Nacional de Habitação (PlanHab). O mais recente estudo da Fundação João Pinheiro, publicado em junho de 2009, calcula em 6,273 milhões de moradias o novo déficit habitacional. A diferença entre os dados reflete o uso de nova metodologia, pois a antiga, segundo a secretária nacional de Habitação do Ministério das Cidades Inês da Silva Magalhães, vinha sendo alvo de críticas por incluir toda coabitação como déficit. A coabitação familiar compreende a soma das famílias conviventes secundárias que vivem com outra família em um mesmo domicílio e das que vivem em cômodos, com exceção dos cedidos por empregador. As famílias conviventes secundárias são constituídas por, no mínimo, duas pessoas ligadas por laço de parentesco, dependência doméstica ou normas de convivência e que residem no mesmo domicílio com outra família denominada principal. O responsável pela família principal é também o responsável pelo domicílio. Fonte: Fundação João Pinheiro Por que é tão complicado resolver essa equação? A secretária nacional de Habitação do Ministério das Cidades, Inês da Silva Magalhães, diz que, antes de tudo, é importante entender como esse déficit surgiu. “Ele é produto de um crescimento, principalmente nas grandes metrópoles, sem o planejamento adequado com a infraestrutura necessária para dar conta da produção habitacional. Esse é um componente. Outro é a questão dos mecanismos de financiamentos para a baixa renda. Os recursos têm que ser adequados ao perfil do déficit. Esse é um dos atributos com o qual acreditamos que o Minha Casa Minha Vida vai contribuir. O enfrentamento do problema só pode ser feito a longo prazo. O Plano Nacional de Habitação prevê a necessidade de 27 milhões de novas moradias até 2023. O Minha Casa Minha Vida é o pontapé disso. Ele traz instrumentos estruturais como o fundo garantidor para as famílias de até 10 salários mínimos”. 28 O principal problema das cidades, entretanto, pode não ser a cidade propriamente dita. É o que pensa Teodoro Alves Lamounier, que era presidente da Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais (Cohab/MG), quando concedeu a entrevista. Segundo ele, o principal problema do país é o fato de haver uma vasta camada da população em situação de pobreza e miséria absoluta. “Por isso mesmo, os municípios são pobres. Essa população, em sua maioria, não tem empregos adequados nem renda para arcar com os custos de tarifa de abastecimento de água, coleta de lixo. O grande problema da cidade é, na verdade, do país, o fato de se ter essa grande proporção de pobres e miseráveis vivendo na nossa cidade, em condições subumanas e em casas improvisadas”. Sociólogo, administrador e com a experiência de quem já foi secretário de Estado de Desenvolvimento Regional e Política Urbana de Minas Gerais, Teodoro Lamounier ressalta que a falta de moradia adequada influencia outros problemas como falta de saneamento básico, drenagem e coleta e destinação do lixo, de forma correta. Nessa linha, é possível ampliar a discussão e analisar a habitação como o grande empecilho da falta de planejamento urbano, uma vez que 70% do espaço das cidades é constituído pela área residencial. “A maneira como a moradia é resolvida, em todos os níveis de renda, é muito importante para dizer como é a cidade. Exatamente porque nós temos no Brasil uma maioria de população de baixa renda e a moradia desse grupo, historicamente, ocorreu com a autoprodução em situações marcadas pela informalidade, pela irregularidade, pela ilegalidade. Isso tem um impacto tremendo sobre a forma de urbanização das cidades e é por isso que intervir sobre esse tema é tão fundamental”, defende a relatora internacional do direito à moradia adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU, professora Raquel Rolnik. Rodrigo Nunes/MCidades Direito à cidade Para Rolnik, o tema gera efeitos sobre a mobilidade, criando contratempos na circulação, entre outros. “Por exemplo: exportamos todos os pobres para a periferia e todos os dias temos que trazê-los para o centro. Isso gera um problema no sistema de circulação. Aí se fala que há um problema enorme de transporte. O problema não é o transporte, é de moradia. Há também muitas áreas de preservação que hoje são ocupadas irregularmente. Não é problema ambiental, é de moradia”. Inês Magalhães une à mobilidade à questão da moradia, para listá-las como os maiores desafios do planejamento urbano. Ela diz que a grande dificuldade hoje é garantir o direito à cidade, pois moradia adequada não se limita a casa com paredes e teto, mas pressupõe, em termos urbanos, um lugar na cidade a partir do qual o indivíduo possa acessar as oportunidades de desenvolvimento humano econômico que as cidades oferecem como educação, lazer e emprego. Esse acesso é o que caracteriza o direito à cidade, entendimento que ganhou destaque com a criação e a implementação do Estatuto da Cidade. Como isso seria possível? Segundo a secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, Maria Teresa Jucá, “inicialmente é fundamental construir um amplo programa de urbanização e regularização fundiária dos assentamentos precários, estendendo a eles as redes de infra-estrutura urbana, equacionando as situações de risco, promovendo o acesso aos equipamentos públicos, implementando a regularização fundiária. Mas não basta adotar políticas curativas se continuarmos a produzir cidades excludentes. O direito à cidade requer novas formas de produção e transformação do espaço urbano para que neste processo a população de baixa renda não fique excluída e usufrua dos serviços urbanos básicos.” Inês Magalhães Mudança cultural Há quase 10 anos entrou em vigor a Lei Federal nº 10.257, conhecida como o Estatuto da Cidade. Ele regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, que tratam especificamente da Política Urbana. Coube ao Estatuto definir o que significa cumprir a função social da cidade e da propriedade urbana. Esse papel foi delegado, principalmente, aos municípios que passaram a contar com vários instrumentos de intervenção sobre seus territórios. Os instrumentos propostos estão condensados em três áreas: regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda; melhora na distribuição dos benefícios e dos ônus do processo de urbanização; combate à retenção especulativa de terras na cidade, para melhorar a oferta de lotes e reduzir o preço dos imóveis. Entretanto, o que o Estatuto trouxe de mais interessante foi a possibilidade de se pensar de forma inovadora sobre planejamento e gestão urbanos. Além dos instrumentos voltados para as formas de ocupação do solo e as possibilidades de regularização das posses urbanas, a “nova” lei propôs uma estratégia de gestão com a participação direta do cidadão. Da lei para a prática, sabe-se que há um longo percurso que, nesse caso, começou com um pequeno entrave: o Estatuto da Cidade ficou vinculado à elaboração dos planos diretores, o que deu um certo encaminhamento para a sua implementação, pois os planos diretores já eram conhecidos, mas restringiu a aplicação do Estatuto, pois levou as discussões sobre a função social da cidade e da propriedade para um âmbito muito técnico. 29 A Secretaria Nacional de Programas Urbanos está coordenando o projeto Rede Nacional Planos Diretores Participativos realizado em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro e com o Conselho Nacional das Cidades para analisar os planos diretores elaborados no Brasil após o Estatuto da Cidade, principalmente no que se refere à capacidade de aplicação dos instrumentos do Estatuto nos municípios. O estudo ainda não foi concluído, mas, segundo a professora Raquel Rolnik, já se constatou que a maioria dos municípios incluiu os instrumentos do Estatuto no plano, mas eles não estão sendo implementados. “É como se esses instrumentos do Estatuto fossem um adendo. Eles não transformaram radicalmente a estratégia de pensar a cidade a partir do Estatuto. Então é quase como uma formalidade. E não aconteceu uma transformação radical da natureza do plano e da sua maneira, da sua forma de apresentação. Mas nem poderia acontecer, porque de onde ele surgiria? Temos uma cultura, uma história, temos uma prática”, diz Rolnik. Lamentável, pois a ideia era de que, com o Estatuto, o plano diretor deixaria de ser um documento puramente técnico para se transformar, por meio de um processo participativo, em um pacto socioterritorial na cidade. “Mas também não dá para desqualificar todos os processos. Não foi tudo assim. No Brasil inteiro há casos de cidades onde houve ações importantes de discussão pública. Temos que entender isso como processo. Você não rompe toda essa cultura de uma hora para outra”, ressalta. Controle Luiz Alonso Raquel Rolnik Rodrigo Nunes/MCidades social Justamente para promover essa mudança cultural voltou-se o foco para a atuação dos municípios. É necessário esse nível de proximidade com o cidadão para promover a participação e o controle social. O local onde esse controle tem melhores condições para ocorrer é nos municípios, dada a proximidade com os moradores e com os agentes promotores da transformação do espaço urbano. A opção pelos municípios pode ser a mais acertada, mas resta saber se eles estão conseguindo colocar a proposta em prática. Para Raquel Rolnik, essa situação não poderia ter sido diferente, mas ela enfatiza que os municípios do país, especialmente na área de desenvolvimento urbano, não são autônomos. “Eles dependem 100% de transferências voluntárias, não obrigatórias e não constitucionais de outros entes da federação para poder investir na área de desenvolvimento urbano. E, o que é mais importante: o acesso hoje a esses recursos não tem absolutamente nada a ver e nem leva em consideração esses processos de planejamento local que os municípios fazem. Portanto esses planos diretores com os instrumentos do Estatuto acabam virando exercícios retóricos pura e simplesmente porque não é através deles que de fato o investimento 30 Teresa Jucá no desenvolvimento urbano se dá”. Segundo a relatora da ONU, nem os processos decisórios, nem os recursos financeiros passam pelos planos. Ela pensa que, hoje, as transferências na área de desenvolvimento urbano são 100% mediadas politicamente. “O que está por trás disso é a ideia de uma reforma urbana, uma reforma de estado que só se completará quando nós desenvolvermos o nosso modelo de federação e nosso sistema político para que a esfera local passe a ser verdadeiramente autônoma inclusive do ponto de vista da sua autossustentação financeira e no momento também em que esses instrumentos de controle do desenvolvimento urbano, de exercício do controle da cidade e da propriedade forem considerados regra básica e mínima para se poder intervir no desenvolvimento urbano. Porque são instrumentos que têm a oposição daqueles que usufruem da cidade não em sua função social, mas em sua função de geração de renda, de constituição de patrimônio, de enriquecimento, então essas pessoas evidentemente sempre reagiram à aplicação de instrumentos para garantir a função social.” Vagner Luiz Políticas públicas Para o ex-presidente da Cohab/MG, Teodoro Lamounier, tem havido uma boa vontade por parte dos governos nas questões relativas à moradia. Ele diz que, depois da extinção do BNH, que se deu em 1985, não houve política habitacional no país e só nos últimos anos é que começaram a surgir programas específicos para o provimento de habitação digna à população. “Isso ainda é muito incipiente. Ainda está numa fase em que o déficit habitacional não foi reduzido de maneira significativa, mas temos que registrar avanços importantes nessa área como a criação de fundos próprios para habitação, para a destinação de recursos que propiciem subsídios à população de baixa renda, para acesso a uma habitação digna. Durante os últimos 20 anos, nós vivemos com a premissa de que o mercado podia resolver e que iria resolver inclusive o problema da habitação. Não é verdade. Assistimos, durante esse período, à ausência de políticas voltadas para a habitação e uma compreensão equivocada. Custou a surgir uma consciência de que a população de baixa renda e a miserável só podem ter acesso a uma moradia digna se ela for subsidiada”. É justamente essa demora que tem desanimado aqueles que sonham com a casa própria. Vera Cristina de Sousa, 43 anos, cadastrou-se no programa do governo federal Minha Casa Minha Vida (MCMV), mas conta que, há seis anos, participa de um grupo de sem casa que se reúne periodicamente. “O governo vai lá, os prefeitos, todo mundo, mas ninguém resolve nada. Eu acho muita humilhação a gente passar por isso. Moro de favor no bairro Betânia, com cinco filhos. O mais novo tem um mês. Minha mãe cedeu a casa pra mim, mas na hora que ela quiser, ela me tira de lá” (sic). Teodoro Lamounier Giselle Borges Vera Cristina de Sousa 31 Durante uma das reuniões, ficou sabendo do MCMV e decidiu se cadastrar. Ela diz que está cansada do lugar onde mora por ser muito perigoso e inadequado para os filhos. Vera Cristina é ambulante e a renda da família gira em torno de R$ 600,00, contando com o Bolsa Escola. Ela está esperançosa com o novo programa, embora não saiba nenhum detalhe. “Até o momento não entendi bem, mas eu tenho esperança de que ele beneficie a gente muito rápido porque tem muita terra por aí. E, quando fizerem as casas, espero umas casinhas boas pra gente morar, e não essas casas aí, pra entrar quatro, têm que sair três” (sic). O Brasil tem uma Política Nacional de Habitação elaborada em 2004 cujo objetivo é retomar o processo de planejamento do setor e garantir condições institucionais para promover o acesso à moradia digna a toda a população. Essa política conta com um conjunto de instrumentos para sua efetivação, entre eles o Plano Nacional de Habitação (PlanHab), que deve estabelecer as metas de médio e longo prazo, as linhas de financiamento e os programas que serão implementados. O PlanHab começou a ser elaborado em agosto de 2007 e tem como horizonte de planejamento o ano de 2023, com suas revisões correspondentes aos anos de elaboração dos Planos Plurianuais: 2011, 2015 e 2019. A secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, Maria Teresa Jucá, afirma que, nos últimos anos, houve aumento dos recursos habitacionais do governo federal destinados a famílias com renda familiar mensal menor do que seis salários mínimos e que isso permitiu conter a expansão do déficit habitacional. “Com a efetiva implantação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, que prevê que os estados e municípios constituam seus fundos estaduais e municipais de habitação de interesse social articulados com o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social já em funcionamento, teremos um aumento considerável nos investimentos públicos nesta área”, destaca. O programa Minha Casa Minha Vida é, de acordo com Tereza Jucá, o projeto de maior destaque atualmente. “Além de viabilizar recursos federais para a construção de um milhão de moradias para faixas de renda de até 10 salários mínimos, institui o subsídio de mais de 95% para as famílias com renda mensal de até três salários mínimos, cria um fundo federal de seguro para garantir os financiamentos, evitando as análises de risco que excluem os mais pobres dos financiamentos e diminuindo sensivelmente o valor das prestações, garante descontos significativos de mais de 80% nos custos do registro imobiliário, entre outras medidas que vão efetivar a destinação dos imóveis produzidos para camadas da população de menor renda”. Minha Casa Minha Vida Giselle Borges Aposentada, 69 anos, Joana Gonçalves Silva nunca morou em uma casa própria. Ela conta que também nunca participou de programas habitacionais, mas, quando assistiu a uma notícia pela televisão sobre o programa Minha Casa Minha Vida, decidiu se inscrever. Atualmente, ela vive com um filho, a nora e dois netos: um de sete e outro de 13 anos. A moradia, no bairro Minas Brasil, é emprestada ao filho. Dona Joana pretende conseguir uma casa para morar sozinha, mas com a renda mensal de um salário mínimo, reza para ser beneficiada pelo programa. “Eu vim porque não tenho casa. Hoje ganhei um jornalzinho e lá vi que era o último dia para inscrever. To garrada com Deus que vou conseguir” (sic). A aposentada se inscreveu no programa e deixou o posto da Prefeitura de Belo Horizonte sem nenhuma informação sobre o processo de escolha dos beneficiados, valores subsidiados pelo governo ou o tipo de moradia a que se candidatou. Como a aposentada, milhares de brasileiros se inscreveram no programa. Só em Belo Horizonte foram aproximadamente186 mil pessoas, até o final de junho. A maior parte, sem dúvida, não deverá ser atendida. 32 Joana Gonçalves Silva Veridiene Patrícia de Sousa Cirilo de Freitas, 21 anos Giselle Borges “Fiquei sabendo, pela televisão, que o Lula estava falando que ia dar um milhão de casas e quem quisesse participar tinha que preencher o formulário. Eu pago aluguel e tenho vontade de ter uma casa própria. Moro com meu marido e meu filho de três anos, no bairro Betânia. Sempre morei de aluguel e pago R$ 180,00 por mês. A renda da minha família é mais ou menos R$ 700,00. Estou com esperança de conseguir e, se Deus me proporcionou essa oportunidade, quem sabe eu posso ganhar”. Wagner Gouveia Passos, 25 anos Giselle Borges “O programa é uma boa oportunidade para conseguir minha casa própria, sair do aluguel. Moro com minha esposa e um filho de um ano e dez meses. Pago R$ 200,00. Juntando minha renda de técnico em controle de pragas e a da minha esposa, que é salgadeira, a renda é R$ 1.150,00. Vi a propaganda na televisão e estou fazendo no escuro, ainda não sei certinho os detalhes do programa. Não estava com tempo de olhar certinho e nem sabia que o último dia era hoje. Fiz meio na correria, depois vou olhar com calma”.(sic) Luiz Carlos Horsth Fonseca, 36 anos Giselle Borges “Não tenho casa própria. Atualmente estou morando com meus pais. Tinha um casamento que não deu certo. Voltei para a casa dos meus pais. Querendo admitir ou não, infelizmente, moro de favor. Então estou lutando aí para ter meu espaço, minha casa própria. Esse é um dos motivos, até pelo fato de eu ter essa esperança. Trabalho com vendas e a renda mensal é mais ou menos R$ 600,00. Um amigo meu passou essa informação, para participar desse programa do governo para as pessoas mais carentes, que têm mais necessidade, que moram de aluguel. Aproveitando o espaço, eu vim correndo”. (sic) 33 Teodoro Lamounier explica que o MCMV foi motivado por uma compreensão do governo de que era preciso reativar rapidamente a economia. Ele diz que o setor mais adequado para produzir esse efeito é o da construção civil, que gera muitos empregos e tem efeitos ao longo da cadeia produtiva. “Ao lado disso acoplou-se a idéia de reduzir o déficit habitacional. Essa compreensão é importante, mas tem um lado inconveniente dessa medida: ela reforça a concentração nos grandes centros”. Falhas e descompassos Raquel Rolnik, que ocupou o cargo de secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades entre 2003 e 2007, reforça o coro defendendo como única possibilidade o subsídio direto para a população de baixa renda, mas questiona outros pontos do programa como o fato de não permitir a reforma ou a reabilitação de imóvel vazio e subutilizado. “Quem disse que tem que ser casa própria e na planta? Esse modelinho é muito perverso. Existe um descompasso mesmo de uma população que não tem renda para comer ser proprietária de um bem que vale R$ 60 ou R$ 70 mil. Eu venderia no dia seguinte para comer. Existem várias opções para atender uma moradia adequada além da casa própria individual, como o subsídio ao aluguel”. A relatora da ONU defende que os recursos do MCMV também poderiam apoiar a produção social de moradia, melhorando a assistência técnica e a infraestrutura em processos de autoconstrução. Ela é taxativa ao dizer que a origem do programa foi salvar as construtoras que abriram capital em bolsa e se prepararam para entrar no mercado de classe média, mas, em razão da crise econômica, estavam quebrando, além de uma aposta no investimento público para gerar emprego rapidamente e como medida anticrise. “Casa não é geladeira. Não basta produzir um monte e cada um comprar e levar. Fazer casa é fazer cidade. É por isso que tenho insistido em medidas necessárias para complementar o programa. A condicionalidade do uso dos recursos por municípios que implementem seus planos diretores com instrumentos do Estatuto da Cidade, coibindo a especulação imobiliária, é uma dessas medidas. O simples anúncio da existência de R$ 34 bilhões para investimento em produção de moradia, imediatamente aumenta os preços dos terrenos. Com isso, boa parte do subsídio vai para o dono do terreno”. No MCMV, as próprias construtoras encaminham à Caixa Econômica Federal as propostas de empreendimentos. Assim, o que se viu inicialmente foi um certo desinteresse das construtoras para a faixa de renda de zero a três salários mínimos. As Cohabs podem ser parceiras apropriadas, uma vez que já trabalham com esse mercado. Segundo o presidente da Cohab/MG, o órgão já está em negociação com a Caixa para isso. Outro destaque foi a falta de terrenos nas grandes cidades que, segundo a secretária nacional de Habitação do Ministério das Cidades, Inês Magalhães, não é um problema do programa MCMV. “É um problema da cidade, urbano. Na verdade o que está sendo negociado é que os recursos possam ser complementados ou que sejam usados imóveis públicos”. Moradia e preservação ambiental Na busca de garantir a todo cidadão o direito de usufruir a cidade com acesso aos recursos oferecidos, inclusive a moradia adequada, o Ministério Público tem avançado em suas ações na área de habitação e urbanismo. De acordo com a professora e relatora internacional do direito à moradia adequada da ONU, Raquel Rolnik, o Ministério Público foi parceiro importante no processo da campanha dos planos diretores, assegurando processos públicos de discussão, e tem sido ativo na implementação do Estatuto da Cidade. “Agora, fazendo um balanço 34 mais geral do Ministério Público no Brasil, e, se estamos falando de interesses coletivos e difusos, eu sinto que ele é muito mais ativo na questão ambiental do que no direito à moradia e à cidade”, lamenta. Ela diz que espera ver o Ministério Público mais presente na situação do despejo, por exemplo. “Todos os dias ocorre despejo no Brasil e despejos que vão desde situações de urbanização em que se retiram todos e são mandados embora ou situações de demoliçã de áreas inteiras da cidade para se construírem outras e mandarem as pessoas embora. Eu gostaria de ver o Ministério Público implementando o que já está assegurado não só na nossa Constituição, mas em uma série de resoluções e tratados internacionais sobre a moradia adequada, dos quais o Brasil é signatário”. Usucapião coletivo O Ministério Público de Minas Gerais tem ampliado sua atuação nessa área promovendo, inclusive, a interlocução entre as várias entidades e órgãos envolvidos com o tema. Em agosto deste ano, deve ser proposta a primeira ação, no Estado, de usucapião coletivo, instrumento inovador criado com o Estatuto da Cidade. O objeto é um grupo de pessoas na cidade de Campo Florido, a cerca de 60 km de Uberlândia, no Triângulo Mineiro. São mais de 100 famílias que moram em uma área sem proprietário conhecido. Como não há documentação, o poder público não reconhece a área como loteamento, nem como um bairro e, consequentemente, não há infraestrutura urbana no local. O promotor de Justiça Carlos Alberto Valera iniciou procedimento que está em fase de investigação. “Nós vamos ouvir assistentes sociais do município, funcionários da prefeitura que vão atestar há quanto tempo essas pessoas estão nesses terrenos. Se elas estiverem lá, há mais de cinco anos, de forma mansa e pacífica e se esses terrenos localizados na área urbana forem inferiores a 250m², é possível a propositura de ação de usucapião urbano-constitucional de forma coletiva. Ou seja, através de uma ação civil pública, nós vamos pleitear junto ao Poder Judiciário que, de uma única vez, reconheça em favor dessas famílias, que são famílias hiposuficientes, a escritura desses imóveis através de usucapião”. Com a ação, o Ministério Público de Minas pretende resolver um grave problema social, pois, além de regularizar a documentação no cartório de registro de imóveis vai propor ao município um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para que o local passe a existir juridicamente e que seja urbanizado com a ligação de água e energia elétrica, rede coletora, asfalto, entre outros benefícios. O usucapião coletivo é um tipo raro de ação porque, normalmente, as pessoas optam por ações individuais. Alex Lanza Carlos Alberto Valera Assentamento Na mesma cidade, Campo Florido, fica também o assentamento denominado Santo Inácio Ranchinho. Ele existe há cerca de oito anos e envolve 115 famílias. A Promotoria de Justiça recebeu a informação de que eles estavam ocupando indevidamente as áreas de reserva legal e as áreas de preservação permanente. Isso foi comprovado e as medidas cabíveis começaram a ser aplicadas quando a associação do assentamento entrou em contato com o Ministério Público. Eles se dispuseram a resolver a situação e, dessa forma, foram celebrados TACs com todos os assentados. O Instituto Estadual de Florestas (IEF) está vistoriando lote por lote e fazendo a demarcação das áreas de preservação permanente e das áreas de reserva legal. Assim, os assentados mantêm a exploração em seus respectivos lotes, mas cumprem integralmente a legislação ambiental. O promotor de Justiça Carlos Valera explica que as áreas estão sendo isoladas para evitar que o gado as pisoteie. O processo de licenciamento está sendo agilizado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). “Com o licenciamento e essas medidas, o assentamento passará a ser o único no território nacional com todas as questões resolvidas de uma única vez. O movimento é criticado, mas é possível um assentado viver, com dignidade, do seu lote, mas preservando o meio ambiente”, alega o promotor de Justiça. 35 Vida urbana: planejar para incluir Por Fernanda Magalhães De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 82% da população brasileira vive nas cidades. Um outro dado, ainda mais impressionante, dá conta de que 40% dos brasileiros estão concentrados nas regiões metropolitanas do país. Esse cenário é o resultado de um processo de urbanização altamente concentrador, que tem suas raízes no final do século XIX e se intensifica a partir da segunda metade do século XX. Durante quatro séculos, a rede urbana brasileira foi sendo construída lentamente à medida que se expandia a exploração do território. No final do século XIX, o fim da escravidão e a entrada de grandes contingentes de imigrantes aceleram o ritmo de urbanização. Para se ter uma ideia, a cidade de São Paulo, que, em 1870, tinha cerca de 30 mil habitantes, salta, em 1900, para uma população de 265 mil. Nessa época, São Paulo havia se tornado a capital do café, o que permitiu que se iniciasse um processo de industrialização, ainda que incipiente. De acordo com a professora do Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Jupira Gomes de Mendonça, “no Brasil, a industrialização veio primeiro nas regiões que produziram capital excedente suficiente para alavancar esse processo de crescimento econômico e, portanto, de urbanização”. Nas primeiras décadas do século XX, consolida-se no país uma indústria de bens de consumo mais simples e, entre os anos 1940 e 1970, são instalados setores tecnologicamente mais avançados, que exigem investimentos de grande porte e levam a um segundo surto de crescimento urbano. Mas, de acordo com Jupira, na América Latina como um todo, não houve acumulação suficiente para o desenvolvimento capitalista industrial nos moldes dos países de economia avançada. Por aqui, a industrialização se deu com uma participação muito forte do Estado como criador de condições e investidor no setor de bens básicos para a produção (siderurgia, combustível, eletricidade). Em razão disso, segundo a professora, tivemos que conviver com uma informalidade 36 econômica e urbana, importante para permitir a concentração do investimento na produção industrial. “Isso explica, em parte, a enorme concentração geográfica da produção industrial e, portanto, da urbanização nas metrópoles latino-americanas. De certa maneira, faz parte da nossa história de economia periférica”. Nas décadas de 60 e 70, a mecanização da produção agrícola gera um grande êxodo rural, e os fluxos migratórios mais intensos vão justamente em direção às cidades com maior grau de industrialização. Em três décadas, 1950, 1960 e 1970, 39 milhões de brasileiros migram para as cidades. “Esse foi o período de maior crescimento populacional urbano, quando, pela primeira vez, mais da metade da população brasileira aparece nas cidades”, afirma Jupira. São Paulo, a maior cidade do país, chega ao ano 2000 com 10 milhões de habitantes no município e, se considerarmos toda a região metropolitana, com 17 milhões. Como vimos, esse processo não decorreu somente do aumento da população, mas também da sua mobilidade. As regiões com maior concentração econômica atraem muitas pessoas que buscam oportunidades, e desses aglomerados populacionais decorrem problemas como a precariedade habitacional, o desemprego, a segregação social, a desigualdade. Alex Lanza 37 O entorno e o centro Um processo mais recente, posterior ao inchaço das metrópoles, é o espraiamento desses aglomerados populacionais, com o esvaziamento dos núcleos centrais. Nas duas últimas décadas, Belo Horizonte, por exemplo, cresceu 1,1% ao ano, o que, segundo Jupira, significa que o saldo migratório do município está se tornando negativo. “O crescimento vegetativo, que é a diferença entre quem nasce e quem morre, mantém-se positivo, mas a cidade está perdendo população para os municípios do entorno. Isto é uma constante nas regiões metropolitanas do Brasil: o núcleo central crescendo menos e os municípios mais periféricos crescendo mais”. Para a professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Minas Luciana Teixeira de Andrade, há um certo esgotamento das cidades-polo, que também se tornaram muito caras. “As cidades mais periféricas ainda têm lotes baratos e, por isso, ainda recebem migrantes mais pobres”. Modelo perverso Mas esse padrão de crescimento gera problemas. Luciana explica que “quando se constroem conjuntos habitacionais ou quando o mercado imobiliário começa a oferecer lotes baratos em locais distantes, logo depois, há uma demanda para que o Estado leve infraestrutura até esse local. Isso é caro para o Estado e para a população que precisa se deslocar até o centro”. Além disso, “geralmente, as áreas que ficam vagas entre a região mais central e essa periferia são valorizadas e depois ocupadas por uma população que não é de baixa renda”. Ou seja, o Estado investe para levar infraestrutura até a população mais pobre, a área intermediária se valoriza, o mercado imobiliário tira vantagem disso, e essas áreas mais próximas do centro são ocupadas por populações de renda mais alta. Por isso, segundo Luciana, hoje há uma crítica a esse modelo, que se revelou perverso e muito caro. A ideia é aproveitar áreas centrais. Ela cita São Paulo como exemplo de cidade que tem muitos projetos de transformar prédios vazios em habitação popular. De acordo com ela, isso é interessante, porque o centro tem uma infraestrutura muito boa, que é subutilizada. “No centro de Belo Horizonte, por exemplo, há prédios que estão abandonados e que poderiam ser revitalizados. Essa seria uma forma de se usufruir um espaço que tem uma ótima infraestrutura, em vez de insistir em um modelo de cidade dispersa e cara”. Mas não apenas os mais pobres estão se deslocando em direção ao entorno das grandes cidades. A partir dos anos 1990, os condomínios fechados surgem no mundo inteiro como uma alternativa de moradia e contribuem para a dispersão de uma população das classes média e alta para áreas periféricas. Mesmo assim, de acordo com dados de pesquisas de origem e destino realizadas pela professora Jupira de Mendonça, o movimento predominante é o seguinte: entre os que vêm para dentro de Belo Horizonte, principalmente nos espaços centrais e pericentrais, predominam as pessoas de renda mais alta; ao contrário, entre os que saem desses lugares para outros mais distantes, predominam as pessoas de renda mais baixa. Nesses movimentos a cidade vai se dividindo, o espaço vai sendo ocupado de acordo com a renda das pessoas e com o acesso permitido pelo mercado imobiliário. 38 Desigualdade e segregação social Alex Lanza Luciana Andrade Alex Lanza Jupira Gomes de Mendonça Luciana Andrade, que é doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), acredita que a mistura de pessoas de classes sociais diferentes é muito positiva, mas, geralmente, a interação se resume à prestação de serviço pouco especializado dos mais pobres para os mais ricos. Além da divisão dos espaços de moradia, há uma tendência de quem vive nas metrópoles de circular apenas em um espaço restrito. “Isso, por um lado, é importante, porque precisamos e procuramos uma certa familiaridade. Por outro lado, o encontro com o diferente, com a diversidade, possibilitado pela cidade, acaba não se realizando”, diz Luciana. As escolas e os espaços públicos poderiam ser lugares de interação, assim como, por exemplo, os eventos culturais, que poderiam acontecer em lugares diferentes, fora da região central, fazendo com que as pessoas interessadas se deslocassem pela cidade. Para Luciana, o ideal da vida urbana seria a possibilidade de “se viver o espaço do bairro, esse espaço de convivência diária, que você conhece, mas que também houvesse estímulo para ir a lugares diferentes, que tudo não acontecesse no mesmo lugar. O Poder Público tem a função de fazer com que os grupos se encontrem”. A segregação da população no espaço urbano fica ainda mais evidente quando se trata da favela. Hoje existem projetos para se levar infraestrutura para as favelas. Mas, de acordo com Luciana, apesar de esse ser um aspecto importante, não é suficiente. “O nome favela muitas vezes não é só uma descrição do espaço físico, é descrição de um grupo social e traz um estigma muito forte, o de ser favelado. Por isso é preciso haver um programa que vá além da urbanização e que integre os moradores na cidade”. Algumas favelas estão em áreas com vizinhança de alto poder aquisitivo, e as comunidades não conversam entre si. Luciana explica que, “para que se integrem socialmente, a urbanização é importante, torna o lugar mais acessível, mais agradável, mas também tem que haver programas de melhoria de renda, escola de boa qualidade, políticas para se tentar diminuir a desigualdade”. A criminalidade é outro fator de segregação, já que “o medo limita muito a exploração da cidade e, na medida em que não há convivência, os estereótipos são reforçados de ambos os lados”, salienta Luciana. Ela acredita que há como controlar a criminalidade, desde que haja políticas efetivas. “O homicídio, por exemplo, está muito concentrado entre homens jovens de bairros mais pobres, muitas vezes relacionado ao tráfico de drogas. São eles que estão morrendo e matando. A presença maior do Estado e a urbanização são formas de tornar o espaço mais público e menos privatizado pelo tráfico”, conclui. 39 Urbanização e o aspecto social O problema da exclusão social no espaço urbano não é novo. Já está presente na origem da cidade moderna, quando a industrialização cria oportunidades de trabalho, e um grande contingente migra do campo para a cidade. Desde então, a aglomeração de pessoas anônimas, o desemprego, a criminalidade fazem com que as elites dirigentes olhem a população das cidades como uma fonte de desordem social e política a ser controlada. No século XIX, o padrão de intervenção urbanística se dá através dos chamados planos de melhoramentos, embelezamento e expansão. A cidade era vista como expressão do atraso brasileiro diante das metrópoles internacionais, e o objetivo era criar uma nova imagem em conformidade com modelos estéticos europeus. Para tanto, a modernização devia ser material e simbólica com a exclusão de tudo aquilo que negasse a modernidade. Foi nessa época que muitas capitais brasileiras como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador e Porto Alegre foram remodeladas, e Belo Horizonte construída, de acordo com os princípios do urbanismo moderno. O Rio de Janeiro, que havia passado de corte a capital da República, é o exemplo mais significativo. Era preciso modernizar a cidade colonial e, para isso, empreendeu-se uma ampla reforma urbana e sanitária. Os antigos cortiços do centro da cidade foram postos abaixo, e seus moradores, expulsos dessa área. Uns tomaram o caminho dos subúrbios, ao longo da linha férrea. Outros subiram as encostas dos morros, onde construíram moradias precárias. O Morro da Favela, um dos mais populosos na época, acabou dando nome a todos os morros habitados pelos pobres. A cidade havia se tornado possível instrumento do progresso moral e material da sociedade, sendo necessário, para tanto, reorganizar o seu território e regular as práticas sociais. Belo Horizonte é criada para atender a esses propósitos. O projetista Araão Reis, adepto do positivismo, estruturou sua proposta em sintonia com os avanços da ciência e da técnica de seu tempo. No dia da inauguração, 12 de dezembro de 1897, uma nota do jornal Capital revela o desejo de alinhamento com os preceitos da modernidade: “Belo Horizonte surge no colo do quase deslumbramento de magia. É a chama que, enfim, se nos oferece. É a capital digna de Minas Republicana, escrevendo no seu escudo a palavra progredir.” O professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro Luiz César Queiroz Ribeiro, no texto “Transformação geofísica e explosão urbana”, capítulo do livro Brasil: um século de transformações, explica que, depois disso, nos anos 1930, o populismo do Estado Novo leva a uma política de tolerância da ilegalidade na ocupação do solo, e o acesso aos serviços urbanos é usado como moeda de troca no mercado político. Nos anos 1950, a formulação da questão urbana desloca-se para o eixo econômico do nacionaldesenvolvimentismo. De acordo com ele, somente nas últimas décadas do século XX, os problemas urbanos foram incorporados à questão social. Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (APCBH) Praça Raul Soares, em Belo Horizonte, na década de 40 40 O papel do planejamento urbano É comum ouvirmos dizer que as cidades brasileiras crescem de forma desordenada, mas, de acordo com Jupira, que é doutora em Planejamento Urbano pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a urbanização brasileira tem uma lógica, a da desigualdade, necessária ao modelo escolhido pelas elites. “O papel do planejamento é subverter essa lógica. Até agora, o crescimento das cidades aconteceu privatizando todos os ganhos e socializando todos os ônus desse processo de urbanização”. Esse quadro tem mudado, pelo menos no papel. De acordo com Jupira, o ideário da reforma urbana e princípio básico do Estatuto da Cidade é, por um lado, que o Estado capte a valorização que gera e invista na promoção de um outro tipo de cidade e, por outro, que tenha um papel mais decisivo na regulação da expansão urbana, na produção do espaço da cidade. Outra diretriz da reforma urbana é a implementação de uma gestão democrática, já que temos uma história de gestão realizada pelas elites. No entanto, para a professora, “isso é algo que estamos aprendendo. Há problemas que estão nas raízes da nossa própria cultura política. É muito comum vermos lideranças populares que reproduzem a cultura patrimonialista e clientelista. O caminho é inverter essa lógica, mas isso não se faz da noite para o dia. Há um conflito de interesses muito grande”. Jupira conta que, de 2006 em diante, houve uma corrida aos planos diretores em função da obrigatoriedade estabelecida pelo Estatuto da Cidade para alguns municípios. De acordo com ela, em muitos lugares, esses planos foram feitos por equipes de fora da cidade, com pouca participação das equipes locais. “O resultado são muitos planos semelhantes e sem análise da realidade local que imprima uma especificidade nos instrumentos. Um plano diretor que não é feito de forma participativa pode ser considerado nulo, sem efeito”. Um outro erro apontado pela professora é o de acreditar que, feito o plano diretor, o planejamento está pronto. “O planejamento é uma atividade meio, não é uma atividade fim. O plano diretor é um dos instrumentos do planejamento urbano, que é um processo permanente de compreensão da cidade e de discussão das transformações pelas quais a cidade passa. O plano em si é um objeto de luta permanente, na medida em que é o lugar da exposição dos conflitos de interesses dentro da cidade”. A cidade não é simples amontoado de pessoas, ruas e edificações, é o palco no qual se encena a vida social, tomam-se decisões políticas, elabora-se e se representa a cultura. Enfim, a cidade é o lugar que as pessoas escolhem voluntária ou compulsoriamente para habitar, trabalhar, viver. É preciso pensar a cidade tanto em termos de sua infraestrutura quanto das questões sociais. É preciso pensar o que se quer para o futuro: o agravamento da segregação social e a continuidade da precariedade para a maior parte da população ou a inclusão de todos nos benefícios da vida urbana. Alex Lanza Mesmo local, em 2007 41 Hora de repensar a questão metropolitana O processo de metropolização derruba barreiras territoriais e intensifica as trocas entre os municípios. Muitos dos cidadãos metropolitanos deslocam-se entre municípios para trabalhar, estudar, se divertir, buscar algum tipo de serviço ou produto. Por isso, a gestão dessas regiões precisa ser compartilhada, especialmente, no que diz respeito às funções públicas de interesse comum, ou seja, aquelas que não podem ser realizadas por um município isoladamente ou que causem impacto nos outros municípios da região metropolitana, como saúde, habitação, transporte e sistema viário intermunicipal, defesa civil, saneamento básico, limpeza urbana e meio ambiente. A intensificação da urbanização e o crescimento das regiões periféricas das metrópoles trouxeram como consequências a fragmentação da malha urbana e o aumento da precariedade das periferias metropolitanas. Esse processo, segundo a professora da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Jupira Gomes de Mendonça, tem levado autoridades de todo o país a um esforço de repensar a questão metropolitana. Nesse sentido, ela diz que Minas Gerais saiu um pouco na frente quando, em 2004, aprovou a Emenda Constitucional nº 65, que redefiniu a estrutura de gestão metropolitana reequilibrando forças. A professora explica que, quando as regiões metropolitanas foram criadas institucionalmente no Brasil pela Lei Complementar nº 14 de 1973, a estrutura de governança era centralizada e monopolizada pelo governo do Estado. “No Brasil, a formação das regiões metropolitanas começa na década de 50 e se efetiva na década de 60, mas sua institucionalização vem no início da década de 70, com a criação de uma estrutura de gestão metropolitana que, naquele momento, refletia a própria estrutura institucional ditatorial do país”, esclarece Jupira. A abertura política e o processo de democratização do país no final da década de 1980 resultaram num movimento contrário: o da municipalização a todo custo ou o que alguns estudiosos chamaram de neolocalismo. A Constituição Federal de 1988 delegou aos Estados a instituição das regiões metropolitanas. A Constituição mineira, por sua vez, criou um modelo de gestão centrado nos municípios, o que não se mostrou muito eficaz. “O município foi alçado à condição de ente federativo, e a política urbana foi completamente municipalizada. A questão metropolitana praticamente desaparece da Constituição Federal. Durante toda a década de 90, as experiências de gestão metropolitana são absolutamente horizontalizadas”, relata Jupira. A professora explica que isso aconteceu no momento de um certo refluxo do papel do Estado, relacionado ao movimento neoliberal. “A estrutura horizontalizada de gestão metropolitana coincidia com estratégias de competição entre os municípios. No lugar de gestão compartilhada, via-se o contrário, a guerra fiscal. Se antes o planejamento metropolitano era autoritário, passamos a um momento de esgarçamento, de uma completa crise.” Equilíbrio entre Estados e municípios Nos últimos anos, a questão da governança metropolitana volta a ter um certo equilíbrio entre Estados e municípios. Para Jupira, é importante respeitar a autonomia dos municípios, mas os governos estaduais têm papel importante na articulação e no estabelecimento de um planejamento que seja referência para as políticas municipais, por se situar numa esfera hierárquica acima e por ter uma capacidade fi- 42 nanceira maior. “Têm sido feitos alguns esforços no sentido de se repensar essa estrutura. O Governo de Minas Gerais, por exemplo, acabou redefinindo a sua estrutura, criando uma Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional e Política Urbana (Sedru), que tem uma Subsecretaria de Desenvolvimento Metropolitano. A própria sociedade civil se rearticulou em torno dessa questão.” A Sedru é responsável pela gerência do Projeto Estruturador da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), cujo objetivo é a gestão integrada. Outras instituições como a Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte (Granbel), criada na década de 1970, também têm como finalidade a integração dos municípios e a interlocução destes com os governos estadual e federal, com o Legislativo, com órgãos como o Ministério Público e com a sociedade civil organizada. Rogério Avelar, prefeito de Lagoa Santa e atual presidente da Granbel, diz que “a missão da associação é apoiar as administrações municipais, qualificando gestores e servidores públicos, além de buscar soluções consensuais para os diversos problemas, contribuindo para diminuir a desigualdade social e para melhorar a qualidade de vida dos moradores desta importante região do nosso Estado”. Rogério, que assumiu a presidência da Granbel no início deste ano, explica que o foco desta gestão é o entendimento entre os municípios da RMBH para solucionar conflitos e problemas comuns. “Estamos priorizando a criação dos consórcios municipais para equacionar problemas relacionados ao meio ambiente, saúde pública, educação, mobilidade urbana, gestão de resíduos sólidos, entre outros.” Gestão integrada De acordo com informações do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia de Minas Gerais (Crea-MG), em 2006, as Leis Complementares Estaduais nº 88 e nº 89 regulamentam a Emenda Constitucional nº 65, de 2004, e estabelecem um novo marco legal para gestão metropolitana em Minas Gerais. Essa legislação prevê a seguinte estrutura: uma Assembleia Metropolitana, órgão de decisão superior e de representação do Estado e dos municípios; um Conselho Deliberativo de Desenvolvimento Metropolitano, que tem entre suas atribuições a aprovação do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado; e uma Agência de Desenvolvimento Metropolitano, que elabora, propõe e implementa estudos técnicos, projetos, normas e planos relativos à região metropolitana, bem como dá suporte aos municípios da região. A legislação também criou instrumentos de planejamento metropolitano: o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, que traça diretrizes relativas às funções públicas de interesse comum; e o Fundo de Desenvolvimento Metropolitano, cuja finalidade é financiar planos e projetos da região metropolitana. O presidente da Granbel considera adequado o atual modelo de governança metropolitana em Minas Gerais. “A criação da Assembleia e da Agência Metropolitana representam um marco para uma integração efetiva dos municípios, estabelecendo mecanismos de gestão integrada e de planejamento estratégico. Neste contexto, a Granbel contribui para levantar as demandas municipais dentro de uma visão microrregional e metropolitana, criando fóruns de discussão qualificada e buscando soluções conjuntas para os problemas comuns”, conclui Rogério. Regiões metropolitanas de Minas Gerais A Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) foi instituída pela Lei Complementar nº 14 de 1973, que também estabeleceu as regiões metropolitanas de São Paulo, Salvador, Porto Alegre, Recife, Curitiba, Fortaleza e Belém. A do Rio de Janeiro viria a ser criada pela Lei Complementar nº 20, de 1974, após a fusão dos Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara. Na época, 14 municípios compunham a RMBH: Belo Horizonte, Betim, Caeté, Contagem, Ibirité, Lagoa Santa, Nova Lima, Pedro Leopoldo, Raposos, Ribeirão das Neves, Rio Acima, Sabará, Santa Luzia e Vespasiano. Hoje, a RMBH tem uma população de aproximadamente 5 milhões de pessoas distribuídas em 34 municípios. Além dos já citados, formam a Grande BH: Baldim, Brumadinho, Capim Branco, Confins, Esmeraldas, Florestal, Igarapé, Itaguara, Itatiaiuçu, Jaboticatubas, Juatuba, Mário Campos, Mateus Leme, Matozinhos, Nova União, Rio Manso, São Joaquim de Bicas, São José da Lapa, Sarzedo e Taquaraçu de Minas. Outros municípios do entorno afetados pelo processo de metropolização formam o chamado colar metropolitano: Barão de Cocais, Belo Vale, Bonfim, Fortuna de Minas, Funilândia, Inhaúma, Itabirito, Itaúna, Moeda, Pará de Minas, Prudente de Morais, Santa Bárbara, São José da Varginha e Sete Lagoas. A Constituição do Estado determina que eles sejam incluídos no planejamento, na organização e na execução de funções públicas de interesse comum. A Região Metropolitana do Vale do Aço (RMVA), instituída pela Lei Complementar nº 90, de 2006, é composta por Coronel Fabriciano, Ipatinga, Santana do Paraíso e Timóteo. 43 ACM/BHTrans Paraciclo e bicicletário são opções para integrar a bicicleta a outro tipo de transporte A cidade para as pessoas Por Eduardo Curi Qual a cidade que queremos? Queremos caminhar nas calçadas, sem nos preocupar com buracos e degraus à nossa frente; pegar uma bicicleta e pedalar com segurança em uma ciclovia até a estação de ônibus ou metrô mais próxima, com um local seguro para guardá-la, e ir de transporte coletivo, que passará por uma via exclusiva, sem concorrência com o resto do trânsito, até ao trabalho; ou queremos nos locomover em carros e motos, entupindo as vias com veículos que mal conseguem andar por falta de espaço, poluindo o ar, aumentando a poluição sonora e degradando o meio ambiente? São dois cenários possíveis. O primeiro requer uma mudança de cultura. O segundo é real e está nas ruas das grandes cidades brasileiras e de várias outras ao redor do mundo. É comum surgirem manchetes nos noticiários sobre cidades com mais de 200 km de engarrafamentos nas ruas. Para especialistas na área, são várias as causas desse cenário, entre elas a qualidade do transporte coletivo, o desrespeito às leis de trânsito, o estado de conservação das calçadas, a acessibilidade e as alternativas de transporte que a cidade oferece. 44 “Existe um conceito chamado mobilidade urbana sustentável, que está sendo adotado para se pensar os deslocamentos na cidade”, ressalta o gerente de Coordenação da Mobilidade Urbana da Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte, BHTrans, Rogério Carvalho. Esse conceito tem como objetivo tirar o foco dos carros no planejamento urbano, como era feito anteriormente, e passá-lo para as pessoas. “O deslocamento primordial das pessoas é o a pé”, afirma Rogério Carvalho, responsável pela gestão do trânsito na capital. Ele explica que, tendo-se isso em mente, é necessário que se desenvolvam alternativas de transporte que permitam às pessoas usarem meios não poluentes de transporte. A subsecretária de Desenvolvimento Metropolitano da Secretaria do Estado de Desenvolvimento Regional e Política Urbana, Maria Madalena Franco Garcia, reforça que mobilidade urbana sustentável é ter uma série de modos de transporte que sejam ambientalmente limpos, que possam conviver no mesmo espaço urbano e que sejam integrados de todas as formas. O ponto de partida para que isso ocorra é a priorização do transporte a pé. “O deslocamento a pé nunca foi considerado um modo de transporte, mas é o modo primordial da gente, a gente nasceu para andar”, afirma Rogério Carvalho. Maria Madalena complementa a fala de Rogério ao afirmar que “as nossas cidades são, cada dia, mais voltadas para o automóvel, para o privado, cada vez menos para o pedestre, cada vez menos para o coletivo”. Falta acessibilidade No entanto, caminhar pelas ruas com segurança ainda é uma tarefa árdua. Degraus nas calçadas, obstáculos à frente, veículos estacionados sobre o passeio, mesas de bares impedindo as passagens, motoristas ignorando pedestres são algumas das dificuldades que as pessoas encontram todos os dias ao caminhar pelas ruas. Além disso, a falta de acessibilidade impede que pessoas com deficiência ou dificuldade de locomoção usufruam da cidade como um todo. Não é por falta de leis que isso ocorre. “Existe uma legislação tão extensa sobre acessibilidade que já era para tudo ser acessível”, afirma a promotora de Justiça de Defesa das Pessoas com Deficiência e Idosos, Maria Inês Rodrigues de Souza. Segundo ela, práticas que visam à acessibilidade, mas que parecem ter a estética como principal preocupação podem causar vários problemas, como a padronização das calçadas que está sendo feita na área central de Belo Horizonte com pedras portuguesas. Laudo da Promotoria de Justiça de Defesa das Pessoas com Deficiência e Idosos aponta que as calçadas padronizadas na área central de Belo Horizonte estão em desacordo com as normas definidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas, pois as pedras portuguesas tornam a superfície irregular; podem se soltar, abrindo buracos nas calçadas; formam padrões visuais que causam sensação de profundidade, dificultando o caminhar de pessoas com baixa visão; são escorregadias e causam trepidações em cadeiras de rodas. A BHTrans, por meio de sua assessoria de imprensa, informou que a norma da ABNT que define parâmetros de acessibilidade urbana é aplicada aos projetos das calçadas padronizadas e que a implantação do mosaico português, desde que corretamente executada, pode ter durabilidade extrema. Segundo a empresa, deve-se considerar que a utilização das calçadas por veículos compromete qualquer revestimento, resultando no desgaste, deslocamento e desprendimento das pedras. Ressalta ainda que as próprias condições de execução envolvendo pessoal não qualificado, deficiente preparação do solo, pressão dos prazos e valores associados à execução das empreitadas contribuem para a ocorrência dos problemas. No que se refere aos eventuais contrastes que podem confundir quem tem baixa visão, a BHTrans ressalta que houve especial cuidado na definição de padrões que evitem a falsa sensação de profundidade, tendo sido realizados testes em calçadas já implantadas envolvendo usuários diversos, inclusive, pessoas com baixa visão, que possibilitaram a revisão dos padrões propostos. A empresa completa, afirmando que não existe nenhuma referência legal que contraindique a utilização do material. Para ela, o que ocorre é que o calçamento do tipo português envolve uma técnica apurada que, se utilizada adequadamente, garante condições de conforto e segurança nos deslocamentos, preservando, ainda, as características estéticas. 45 Preferência pelo coletivo Para o gerente de Coordenação da Mobilidade Urbana da Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte, BHTrans, Rogério Carvalho, a mobilidade urbana sustentável não significa demonizar o carro como a fonte de todos os problemas da cidade, mas usar, racionalmente, os meios de transporte disponíveis. Deslocamentos cotidianos, como da residência para o trabalho, devem ser feitos, preferencialmente, em meios coletivos de transporte. Com isso, há redução do número de veículos em circulação – muitas vezes, carros conduzindo apenas uma pessoa –, poluição e necessidade de espaço nas ruas. Mas, ao se sair à noite para ir ao cinema e depois jantar, por exemplo, por que não se usar o carro, já que há pouco trânsito e é mais fácil estacionar? O problema está no uso do carro para todos os deslocamentos, hábito adquirido, às vezes, por falta de opção, como também por desconhecimento do sistema de transporte disponível e, ainda, por comodismo. “Pouca gente deixa de usar o automóvel porque vai encontrar dificuldade de estacionar ou coisa que o valha”, afirma Rogério Carvalho. O transporte pode ser individual, mas o problema se torna coletivo, lembra Rogério Carvalho. Gera-se mais poluição, desgaste nas vias e reduz-se o espaço disponível, prejudicando o transporte público, usado pela maioria da população. Com esse desgaste causado por veículos privados, a administração pública acaba por subsidiar o uso do automóvel ao ter que recapear ruas, por exemplo, enquanto os passeios, destinados aos pedestres (leia-se a maioria da população), são de responsabilidade dos proprietários do imóvel, pelo menos em Belo Horizonte. Resolver essa questão não é uma tarefa simples. “As pessoas só vão deixar o veículo privado em casa quando elas se sentirem seguras no sistema de transporte”, constata Maria Madalena. E a segurança não se resume apenas ao veículo, mas também passa pela confiabilidade no sistema de segurança pública. A promotora de Justiça Maria Inês acentua que é preciso lembrar que um bom sistema de transporte deve ser acessível às pessoas com deficiência e mobilidade reduzida. A acessibilidade no transporte coletivo ainda não é total, mas já é melhor do que há alguns anos, com a adoção de ônibus adaptados e obrigação legal de realização de, no mínimo, 30% das viagens feitas com veículos acessíveis. Acessibilidade, no entanto, não se dá apenas com a implantação de elevadores nos veículos. Em Belo Horizonte, por exemplo, com o novo leiaute previsto, os ônibus terão os números identificadores das linhas reduzidos. “Depois da redução dos números, hoje não se enxerga mais o ônibus, você não precisa ter uma baixa de visão acentuada; com o mínimo de astigmatismo, você não está mais enxergando o número do ônibus, e até agora isso é uma novidade para a gente, as reclamações são imensas e nós não temos uma justificativa, se é que isso é justificável. O que a gente vê é que todos os ônibus reduziram os números e não se sabe por quê”, adverte a promotora de Justiça Maria Inês. A BHTrans justifica as alterações informando que a Prefeitura de Belo Horizonte definiu nova padronização visual da frota, que será implantada até 2010. Segundo a empresa, essa padronização atende na íntegra a legislação em vigor que trata de acessibilidade em veículos urbanos para o transporte coletivo de passageiros, além de dar mais flexibilidade ao permitir que o mesmo ônibus opere em diferentes linhas, nos vários horários do dia. Além disso, todos os ônibus passarão a ter dois quadrados coloridos na parte superior do parabrisa, indicando os corredores por onde a linha circula, o que pode auxiliar os usuários com baixa visão ou analfabetos na identificação de sua linha. A BHTrans informa ainda que está monitorando os resultados com os novos letreiros e, caso seja verificado que eles representam mais prejuízo do que benefício para os usuários, haverá nova especificação dos dispositivos atualmente previstos. 46 BRT em Uberlândia: ônibus com lógica de metrô Fotos: Alex Lanza Trânsito caótico, pedestres fora da faixa, calçadas quebradas são problemas comuns em BH Soluções de transporte O automóvel é considerado pela sociedade símbolo de status e ascensão social, além de estar ligado à independência pessoal. O gerente da BHTrans comenta que o Brasil adotou um modelo de transporte sobre rodas em detrimento de modos mais limpos e de maior capacidade, como trens e metrô. Ainda, ressalta Rogério, a exposição à publicidade do automóvel faz com que ele se torne o objeto de desejo de todas as pessoas. Um dos maiores ícones brasileiros da preferência pelo transporte por automóvel é Brasília, com suas vias largas, construções distantes umas das outras e poucos espaços adequados para o pedestre caminhar. O gerente da BHTrans relata que, hoje em dia, tenta-se resolver esses problemas, implantando-se projetos que priorizam meios mais limpos e coletivos de transporte, colocando os pedestres em primeiro plano. Bogotá, na Colômbia, é considerada exemplo na América do Sul na aplicação desses conceitos. “Lá, foi implantado o Transmilenium, que é a adoção de vias exclusivas para o transporte coletivo com pagamento da tarifa antes do embarque, feito no nível do ônibus, agilizando a operação do serviço e diminuindo o tempo das viagens”, diz. Esse sistema é conhecido como BRT, sigla para Bus Rapid Transit, algo como “trânsito rápido por ônibus”. No Brasil, também há ações nesse sentido. O exemplo mais conhecido está em Curitiba, no Paraná, cidade pioneira na implantação do sistema. Em Minas Gerais, Uberlândia adota sistema parecido, e também há a intenção de se implantar algo semelhante em Belo Horizonte. A segregação de espaço nas vias é uma das formas de restringir o uso do automóvel, mas não é a única. Para a BHTrans, pode-se adotar o rodízio de placas, que tem efeito imediato, mas que, se não for feito aliado a alguma outra ação, terá seus resultados anulados em alguns anos. Outra solução é o pedágio 47 urbano, ou taxa de congestionamento, adotado em Londres e Estocolmo, por exemplo. Essa taxa é o pagamento de uma tarifa para que se possa andar de carro em determinadas áreas da cidade. Em Londres, onde o sistema já é adotado desde o início desta década, a receita gerada é usada para melhorar o sistema de transporte. Mais uma alternativa é a restrição de circulação de veículos de carga nas zonas mais congestionadas da cidade, em determinados horários. Belo Horizonte já adota essa restrição na área central. Entre as alternativas de transporte coletivo que podem ser adotadas estão soluções das mais variadas. O metrô, apesar de alta capacidade para acomodar passageiros (cerca de 80 mil por hora) e confiabilidade, não é uma solução tão adequada quanto parece devido ao seu custo, cerca de R$ 300 milhões por quilômetro construído. Outra solução é o veículo leve sobre trilhos (VLT), uma espécie de bonde moderno, que transporta cerca de 20 mil passageiros por hora e custa cerca de R$ 30 milhões por quilômetro. Entretanto, segundo Rogério Carvalho, esse veículo está mais ligado a projetos de requalificação urbana do que ao transporte em si. Também cita como exemplo a implantação da última linha de VLT em Paris, que, do seu valor total, teve dois terços destinados a projetos de reurbanização. O BRT, implantado em Bogotá, é uma solução com tecnologia e concepções brasileiras e custa de R$ 5 a R$ 10 milhões por quilômetro construído, com capacidade de 40 mil passageiros por hora. Uso misto das cidades Segundo Rogério Carvalho, “o ideal seria o não transporte”. Ele explica que o transporte é consequência do planejamento urbano e que, portanto, as nossas necessidades de deslocamento variam de acordo com a localização dos serviços de que precisamos em vários pontos da cidade. Se as cidades têm um uso flexível do solo, é possível criar centros regionais, onde as pessoas trabalhem, façam compras e estudem mais perto de casa, reduzindo a necessidade de transporte. “Os primeiros planos diretores surgiram na década de 70, 80 e foram cidades construídas de forma bastante segmentada, onde você tem uma área hospitalar, uma área de serviços e comércio, uma área industrial e uma residencial, e isso gera necessariamente o deslocamento das pessoas”, diz Maria Madalena, da Secretaria de Desenvolvimento Urbano. Segundo a subsecretária, será elaborado o Plano Diretor Metropolitano, “que tem como diretriz a criação de novas centralidades na região metropolitana para evitar a grande concentração que a gente tem hoje na cidade-polo que é Belo Horizonte, principalmente na sua área central”, explica. “A partir do momento em que você oferece uma boa infraestrutura de transporte para outras regiões da cidade, certamente haverá o crescimento dessas áreas com instalação de universidades, serviços e comércio, e as pessoas passam a ocupar essas áreas de outra forma, tendo-se em vista a facilidade de deslocamento”, completa Maria Madalena. Transporte como indutor do crescimento “Mobilidade também induz o crescimento econômico”, observa a subsecretária. À medida que se facilita o deslocamento, as pessoas tendem a circular mais e, consequentemente, a movimentar a economia. Soma-se a isso o fato de que regiões com sistemas de transporte desenvolvidos são mais valorizadas. Um exemplo em prática é a Linha Verde. Com ela, está havendo um boom de crescimento no Vetor Norte de Belo Horizonte. Para a Secretaria de Desenvolvimento Urbano, a maior preocupação é a forma como se dá a ocupação do território. Segundo Maria Madalena, é preciso pensar em uma forma de ocupação que seja sustentável, que promova o desenvolvimento econômico e que preserve o meio ambiente. Devido às características da região, a ocupação tem que se dar de forma controlada e criteriosa para ser sustentável. 48 Uma experiência que está se iniciando é a construção do Centro Administrativo do governo estadual, que vai mudar a matriz de origem e destino na região metropolitana. Hoje ocorre um grande deslocamento da população do Vetor Norte para a área central no pico da manhã e, no sentido inverso, no pico da tarde. Maria Madalena explica que o novo centro vai mudar essa matriz, reequilibrando o uso do sistema de transporte, pois, ao invés de haver ônibus vazios de manhã voltando para aquela região, esses mesmos ônibus levarão pessoas para trabalhar no Centro Administrativo. Maria Madalena cita ainda o polo eletrônico e o aeroporto industrial, que estão sendo implantados, como fatores que desenvolverão o Vetor Norte de BH. “Está havendo um investimento muito grande naquela região e isso é uma forma de a gente descentralizar a cidade”, explica. Os carros dessas pessoas precisam de todo este espaço na via se estiverem transportando apenas o motorista... Fotos: divulgação BHTrans ... sendo necessário apenas um ônibus para transportar o mesmo número de pessoas confortavelmente 49 Arte ou vandalismo? Por Eduardo Curi Por Eduardo Curi Fotos: Alex Lanza Pichação e grafite caminham juntos em todos os sentidos. Grafite é o termo usado para definir as inscrições e os desenhos feitos em paredes e muros, desde a época do Império Romano. Pichação designa um jeito brasileiro de grafitar, em que os autores (também chamados de “pichadores”) assinam seus codinomes como uma forma de marcar território ou chamar atenção para si. A prática de conspurcar (nome técnico para o ato de sujar ou manchar algo) edifícios ou monumentos urbanos é crime definido pela Lei de Crimes Ambientais (9.605/98) e implica pena de detenção de três meses a um ano, além do pagamento de multa por parte do autor. O Ministério Público de Minas Gerais, no combate a essa prática, atua por meio da Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo, responsável pela transação penal dos autores – a maioria menor de 21 anos – desse tipo de prática, de forma a buscar a reparação do dano. Segundo o promotor de Justiça Cristovam Joaquim Fernandes Ramos Filho, eles podem ser denunciados até 50 mesmo por formação de quadrilha, já que se juntam para a prática de crime. Uma forma de coibir a ação dos pichadores, segundo o promotor de Justiça, é evitar dar publicidade aos atos praticados por eles. “Você pega uma foto e põe no jornal, eles são promovidos a ‘coronel’”, afirma. Outra forma de conseguirem notoriedade entre eles é a dificuldade do objeto pichado. Para Cristovam, as pichações sujam a cidade, tirando a beleza das formas urbanas e aumentando a poluição visual. Há outros posicionamentos considerando que nem toda pichação tem o objetivo de sujar a paisagem. O grafite, pintura artística de espaços públicos, é derivado das pichações, já que utiliza elementos destas em suas composições. Podem variar de uma simples assinatura a até mesmo uma obra complexa, com variadas texturas e nuanças. O grafite e sua história O DJ Roger Dee, codinome usado por Roger Cândido de Oliveira, explica as diferenças entre pichação e grafite e conta um pouco da história do grafite em Belo Horizonte. A pichação, segundo Roger foi a primeira forma de grafite, ou seja, traços conhecidos como tags (assinatura). Ele conta que inicialmente as pessoas escreviam os nomes e essa pichação foi evoluindo para uma forma artística. “A pichação seria a pintura rupestre do grafite artístico que existe hoje, mas eles são ligados”, diz. Para DJ Roger, a pichação se torna grafite quando o autor se volta para o contexto artístico, podendo coexistirem no universo do grafite trabalhos realizados legalmente e ilegalmente. Ele defende a forma legal, o grafite executado mediante autorizações. Roger Cândido comenta que desde criança começou a desenhar e a dançar break, para ele a primeira forma da cultura hip hop que veio para o Brasil. “A cultura hip hop são quatro elementos o BBoy / B-Girl, grafite, MC, que é o cantor e o DJ que faz as músicas”. Ele lembra que na época sempre via os desenhos nas jaquetas dos grupos que dançavam na rua e que só depois, lendo revistas, descobriu que era grafite e que, segundo ele, fazia parte da cultura. Depois, afirma Roger, surgiu um filme que se chama “Beat Street”. “Foi a primeira vez que vi um pessoal grafitando mesmo um trem, o vagão de metrô e pintando os muros. A partir dai entusiasmei em fazer grafite nos muros. Até então fazíamos grafite em capa de fita k7, pintava as jaquetas de roupa com nome dos grupos, mas não arriscávamos a fazer no muro”. Roger conta que o primeiro grafite da região de Belo Horizonte foi feito em 85, no bowl (pista de skate) do Anchieta, “que na verdade não era um grafite e sim um throw up (desenho feito rapidamente), que é uma das formas da evolução do grafite. Eu e um colega chamado Ulisses fomos nesse bowl e pin- tamos tudo, fizemos vários throw ups”. Roger ainda lembra que a partir daí conheceu outra pessoa que já fazia pichação. “Ele cresceu de uma forma espantosa e foi o primeiro realmente a fazer os murais aqui em BH que é o Ângelo, ele assinava AJ”. Na opinião de Roger, Ângelo, em Belo Horizonte, revolucionou o grafite, nos anos 80. Ele era o único que “fedia a tinta” realmente, afirma. Roger acredita que houve uma grande evolução, especialmente por causa da tecnologia e do uso do material. “A latinha de spray que usávamos antigamente era muito dura, a tinta era ruim, não era legal. Antigamente o dedo da gente ficava duro, cheio de calos, era difícil. Hoje as latas parecem até que têm um amortecedor, a tinta já sai mais leve”, diz. Para ele, o Estado de Minas tem o reconhecimento internacional por seus grafites. Cita, a propósito, o encontro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) realizado em Belo Horizonte, em 2006, durante o qual participantes de diversas partes do mundo reconheceram a capital mineira como celeiro de bons grafiteiros. Bienal de grafite A importância da bienal, ocorrida em Belo Horizonte em 2008, segundo Roger, foi possibilitar o diálogo não só entre os brasileiros mas também destes com estrangeiros. “ Não podemos nos iludir de que o grafite vai ficar só na galeria. O grafite não tem que sair da rua. A galeria é um outro suporte para se usar as técnicas de rua. “A bienal foi importante para ter essa comunicação, movimentar a cidade, as pessoas entenderem mais sobre o grafite. Mas os grafiteiros têm que se conscientizar de que não podem ficar entre quatro paredes. Têm que ficar na rua, porque senão vai perder o sentido. O sentido do grafite está na rua, é a arte do povo. O povo tem que ver,” conclui. Alex Lanza A fachada do Grupo Escolar D. Pedro II, em Belo Horizonte, hoje em processo de reforma e restauração, já foi alvo de pichadores 51 Boa prática O Ministério Público de Minas Gerais, por meio das Promotorias de Justiça que atuam na defesa da habitação e urbanismo em todo o estado, promoveu várias ações e obteve decisões judiciais com o objetivo de proporcionar um bom funcionamento das cidades para as pessoas. Destacamos nesta coluna alguns exemplos de atuação nessa área. Fiscalização de estabelecimentos comerciais A Promotoria de Justiça da Comarca de São João del-Rei, firmou, em fevereiro deste ano, Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Município, buscando regularizar a concessão de alvarás de funcionamento aos estabelecimentos comerciais e profissionais daquela cidade, levando-se em conta o cumprimento do Código de Posturas municipal, além da legislação sanitária e de prevenção a incêndio e pânico. O TAC – assinado pelo promotor de Justiça Rodrigo Ferreira de Barros, pelo prefeito, Nivaldo José de Andrade, e pelo procurador-geral do Município, Paulo Jorge Procópio – obriga a Prefeitura a conceder alvará de localização e funcionamento apenas aos estabelecimentos que apresentarem laudos de liberação pelo Corpo de Bombeiros, pelo Órgão de Vigilância Sanitária Municipal e pelo Setor de Engenharia do Município, e que tenham Certidão Negativa emitida pelo Procon da cidade. O município ficou obrigado ainda a fiscalizar, no prazo máximo de doze meses, todos os estabelecimentos comerciais e profissionais, exigindo deles a apresentação dos laudos e certidões citados, o atendimento às normas do Código de Posturas municipal e a regularidade no recolhimento dos tributos. Além disso, o Poder Executivo comprometeu-se a retirar dos locais públicos os vendedores ambulantes, apreendendo todos os produtos de origem ilícita. Vale do Sereno terá licenciamento As Promotorias de Justiça Metropolitana de Habitação e Urbanismo e de Nova Lima, por meio das promotoras de Justiça Marta Alves Larcher e Andressa de Oliveira Lanchotti, firmaram, em fevereiro de 2009, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com as empresas EPO Engenharia, Planejamento e Obras Ltda., EPO Empreendimentos, Participações e Obras Ltda. e Alberto Carlos de Freitas Ramos, responsáveis pelo loteamento Vale do Sereno, localizado em Nova Lima. Os principais objetivos do TAC são o licenciamento ambiental corretivo do empreendimento e a implantação de um Plano 52 de Gestão Ambiental (PGA), para garantir a preservação dos recursos naturais e o desenvolvimento sustentável daquele bairro. O TAC, que teve a participação da Associação dos Moradores e Condomínios do Vale do Sereno, prevê ainda a obrigação de os empreendedores apresentarem ao Instituto Estadual de Florestas (IEF) um estudo de formação de corredores ecológicos, bem como de incluírem cláusula referente ao cumprimento do Termo de Ajustamento de Conduta nos contratos de compra e venda que vierem a ser celebrados, tendo por objeto imóveis situados no bairro. Portal Sul: medidas compensatórias O Ministério Público firmou em abril deste ano um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com os empreendedores do Portal Sul, estabelecimento comercial que está sendo construído às margens da BR-356, na divisa de Belo Horizonte com Nova Lima, para que seja regularizado o licenciamento ambiental feito pela empresa responsável por sua implantação. Como o empreendimento está na divisa de dois municípios, ele deve ser obtido em nível estadual e não em nível municipal, como havia sido feito. Para isso, eles deverão executar as várias condicionantes e medidas compensatórias nos prazos determinados. O não cumprimento das obrigações assumidas implicará pagamento de multa diária no valor de R$ 20 mil. Entre as medidas que deverão ser tomadas estão a obtenção de licenciamento ambiental estadual e a execução de ligações rodoviárias. Durante a execução da obra, o empreendedor deverá adotar ações para minimizar o consumo de energia, de água, de materiais naturais e a produção de entulho assim como para maximizar a eficiência da construção. O projeto e a construção dos abrigos de resíduos sólidos deverão ser executados de acordo com as normas técnicas da Superintendência de Limpeza Urbana de Belo Horizonte (SLU). Pacto pela acessibilidade de Bom Despacho Com o objetivo de garantir acessibilidade nos espaços públicos ou de uso público da cidade de Bom Despacho, o Ministério Público Estadual (MPE) e a prefeitura do município assinaram no último dia 28 de maio um acordo denominado Pacto pela Acessibilidade de Bom Despacho. Até o final de 2012, conforme o acordo, todos os prédios públicos municipais deverão ser plenamente acessíveis. As obras devem começar pelo conjunto da praça da Matriz de Bom Despacho; em dois anos, todas as unidades públicas de saúde sob a responsabilidade do Município deverão se tornar acessíveis; em três anos, as instituições públicas de ensino municipais já deverão ter suas instalações adaptadas. Além disso, os espaços urbanos e as edificações que forem construídas a partir da data do Pacto e destinadas ao uso público deverão obedecer às normas legais em vigor que estabelecem os requisitos mínimos de acessibilidade. Assinaram também o acordo três instituições da sociedade civil: a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), a Associação dos Deficientes Físicos de Bom Despacho (Adefis) e a Paróquia Nossa Senhora do Bom Despacho. Para acompanhar as intervenções, “será organizada, uma comissão composta por servidores do município e por representantes da sociedade civil organizada com o objetivo de definir ações, prioridades e acompanhar a execução do projeto de acessibilidade no município”, declararam os representantes do MPE em Bom Despacho, promotores de Justiça Luciano Moreira de Oliveira e Ana Carolina Gomes. Ficou acordado ainda que o município encaminhará à Câmara Municipal proposta para o Plano Plurianual, com o intuito de assegurar recursos necessários às intervenções. Loteamento irregular I A Sorte Construções S.A., de Belo Horizonte, firmou Compromisso de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público Estadual (MPE), comprometendo-se a pagar R$ 232 mil, em doze meses, por ter iniciado as obras de implantação de um loteamento em Confins (RMBH), junto aos municípios de Lagoa Santa, Pedro Leopoldo e Matozinhos, em Área de Proteção Especial, destinando apenas 35% da área para fins institucionais, em vez de, pelo menos, 50%, conforme determina o Decreto Estadual n° 20.591/80. Como se trata de medida compensatória ambiental, o Compromisso de Ajustamento de Conduta estabelece que o valor deverá ser utilizado exclusivamente para financiar projeto ambiental de interesse do município de Confins, a critério do MPE. O Decreto Estadual n° 20.591/80 declara como área de preservação permanente as florestas e demais formas de vegetação natural existentes na região de Pedro Leopoldo, Lagoa Santa e Matozinhos, e estabelece que “em caso de parcelamento permitido, as porcentagens das áreas públicas não poderá ser inferior a 50% da área de gleba, de acordo com a Lei Federal n° 6.766/79”. O Compromisso de Ajustamento de Conduta foi assinado pelos promotores de Justiça Spencer dos Santos Ferreira Junior, da comarca de Pedro Leopoldo, Marcos Paulo de Souza Miranda, coordenador das Promotorias de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Cultural e Turístico de Minas Gerais (CPPC) e Luciana Imaculada de Paula, coordenadora das Promotorias das Sub-Bacias dos Rios das Velhas e Paraopeba (PJSF), tendo sido homologado pela Justiça de Pedro Leopoldo. O empreendimento já se encontra regularizado. 53 Loteamento irregular II Loteamento irregular III O Ministério Público do Estado de Minas Gerais, por meio da promotora de Justiça Andressa de Oliveira Lanchotti, propôs uma Ação Civil Pública (ACP), com pedido de liminar, para suspender a implantação do loteamento denominado Vila Castela, etapa II, em Nova Lima. A promotora de Justiça ressaltou a importância da liminar diante do perigo de grave e irreversível dano ao meio ambiente – direito indisponível e difuso, inclusive garantido às futuras gerações na Constituição Federal. A representação foi feita pela Associação Civil Condomínio Residencial Vila Castela, que argumentou que os responsáveis pela etapa II estão levando a cabo atividade de desmatamento de trecho da Mata Atlântica, sem possuírem autorização para tanto, gerando grande e irreversível dano ambiental. Além disso, o loteamento estaria sendo implantado em área de preservação ambiental O Ministério Público entendeu que o local em que se pretendia abrir logradouro iria atingir a cobertura vegetal de forma drástica. Observou-se a presença de curso d’água próximo à rua Grandolfo, o que seria prejudicial ao abastecimento não só de Nova Lima, mas de toda a Região Metropolitana de Belo Horizonte, por ser Nova Lima considerada o reservatório natural de água de Belo Horizonte e região. O Ministério Público Estadual propôs ação civil pública com pedido de tutela antecipada contra o Município de Itaúna e as empresas Florestal Santanense e Planear Empreendimentos, em setembro de 2008. De acordo com a ação, as empresas são responsáveis pelo loteamento Bairro Tropical. A Florestal Santanense era a proprietária do terreno loteado e assumiu as obrigações de infraestrutura e urbanização juntamente com a Planear Empreendimentos, que também ficou encarregada da comercialização dos lotes. O Município aprovou o loteamento, que fica no entorno de nascente e de curso d’água, sem exigir licença ambiental. Além disso, a existência de lotes em área de preservação permanente inviabiliza a construção de residências no local, prejudicando os compradores. Liminar - A Justiça concedeu liminar determinando a suspensão imediata dos efeitos do ato administrativo de aprovação e do registro do loteamento e proibindo que os cartórios de registro de imóveis procedam a qualquer registro ou averbação relativos ao empreendimento até o final do processo. Quanto às empresas, determinou que não recebam as prestações ou pratiquem nenhum ato referente à implantação do loteamento e, no prazo de 30 dias após a intimação, notifiquem os compradores para que não construam no local. As empresas terão 90 dias para apresentar projeto de recuperação da erosão existente na área e 120 dias para executá-lo. De acordo com a promotora de Justiça Fernanda Hönigmann Rodrigues, são 54 lotes em área de preservação permanente, parte deles já vendida, o que causa prejuízo aos compradores, que poderão ter suas obras embargadas, caso iniciem uma construção ilegal. Loteamentos clandestinos A busca por um desenvolvimento sustentável e uma vida digna aos moradores, como prevê a Constituição, levou o MPE a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta com o município de Ribeirão das Neves, a Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) e a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig). O objetivo foi conter os loteamentos clandestinos e irregulares que proliferam na cidade e assim garantir a infraestrutura básica aos seus moradores. Pelo TAC, o Município não poderá aprovar a implantação de loteamentos ou desmembramentos sem que haja um cronograma prévio para execução e conclusão de obras básicas de infraestrutura tais como: equipamentos urbanos de escoamento e drenagem das águas pluviais; rede de iluminação pública; rede coletora de es- 54 gotos sanitários; rede de abastecimento de água potável, incluindo subadutora de alimentação e rede de distribuição e pavimentação das vias públicas. O Município terá, ainda, de exigir dos empreendedores que pretendem implantar loteamentos a apresentação de projetos de implantação de rede de esgoto sanitário e abastecimento de água potável dos loteamentos devidamente aprovados pela Copasa; projetos de iluminação pública, devidamente aprovados pela Cemig e licença ambiental para implantação do empreendimento, devidamente emitida após o trâmite de processo administrativo de licenciamento ambiental perante a Superintendência Regional de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Supram), quando necessário e exigível pelo ordenamento jurídico. Poluição sonora I Poluição sonora II A poluição sonora causada pelas locomotivas da empresa MRS Logística – concessionária de transporte de carga na malha ferroviária Sudeste – levou a Promotoria de Justiça de Conselheiro Lafaiete a propor a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). O acordo foi firmado por representantes da empresa e pelo promotor de Justiça Glauco Peregrino. Os moradores do bairro Carijós eram prejudicados com o barulho causado pela sinalização da passagem de nível (cruzamento entre ferrovia e via pública), situada na Rua Marechal Floriano Peixoto. Diante de várias reclamações, a Promotoria de Justiça constatou, através de uma perícia técnica, que os ruídos das manobras eram superiores ao permitido pela legislação. Pelo TAC, ficou definido que a MRS Logística implantará um novo projeto de manobras de composições e de sinalização na passagem de nível, adequando o nível de ruídos no momento do trânsito de locomotivas e vagões pelo local aos parâmetros estabelecidos pela NBR 10.151 da ABNT. A empresa também se comprometeu a apresentar à Prefeitura Municipal um estudo que apresente soluções para a travessia de portadores de deficiência física. O acordo proposto pelo Ministério Público Estadual também prevê o pagamento de uma indenização por danos morais coletivos no valor de R$50 mil, que deverão ser repassados à Associação Regional de Proteção Ambiental do Alto do Paraopeba e Vale do Rio Piranga (Arpa). O Ministério Público Estadual (MPE), por meio do promotor de Justiça em Boa Esperança, Fernando Muniz Silva, firmou Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Município, alguns clubes e associações e uma igreja evangélica, com objetivo de amenizar a poluição sonora na cidade. Pelo acordo, as associações e os clubes que pretendem realizar eventos noturnos com frequência ficam obrigados a adotar, gradativamente, medidas que diminuam a produção de barulho. Em um prazo de até três anos, deverão contar com isolamento acústico. Os estabelecimentos precisam obter laudo de vistoria do Corpo de Bombeiros e da Vigilância Sanitária e implementar as medidas apontadas. Sem o documento, não poderão realizar eventos abertos ao público. Caso o Município proíba a comercialização de bebidas em recipientes de vidro, os próprios estabelecimentos serão responsáveis pela fiscalização e cumprimento da norma. O não cumprimento do TAC implicará multa de R$ 5 mil, acrescida de 50% se duas ou mais obrigações forem violadas. O Município de Boa Esperança deve cassar todas as autorizações para atividades de propaganda, publicidade e serviços de sonorização, que serão concedidas apenas em situações excepcionais. Essa mídia também não poderá ser usada para a publicidade dos atos, programas e serviços públicos. Tanto o horário final para o desligamento do som, quanto o limite máximo de barulho a ser produzido deverão ser fixados pelo Município, sendo permitidos 60 decibéis no horário diurno, 55 no vespertino e 50 no noturno. A igreja com a qual o Ministério Público Estadual (MPE) também firmou um TAC fica obrigada a respeitar a legislação sobre a produção de barulho e a implementar todas as medidas que se fizerem necessárias nesse sentido. Poluição sonora III O promotor de Justiça de Leopoldina, Sérgio Soares da Silveira, firmou compromisso de ajustamento de conduta com a Danceteria Evolution, localizada no centro da cidade, em decorrência de reclamações da população local quanto ao barulho proveniente da citada casa notura. No TAC foi fixado prazo para a elaboração de laudo de acústica, visando adequar o estabelecimento às normas ambientais de controle de poluição sonora, respeitando os limites máximos de ruído estipulados pela NBR 10.151 (“Avaliação do Ruído em Áreas Habitadas Visando o Conforto da Comunidade”, da Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT). Para o promotor de Justiça, com a exposição à poluição sonora, as pessoas podem desenvolver distúrbios do sono, estresse, perda da capacidade auditiva, surdez, dores de cabeça, alergias, distúrbios digestivos, falta de concentração e aumento dos batimentos cardíacos. 55 Opinião Poluição luminosa nas cidades Um dos efeitos negativos do constante crescimento das cidades, relacionado com o desenvolvimento da civilização, da tecnologia e com a redistribuição das populações das zonas rurais para assentamentos urbanos, é a poluição luminosa, definida por José Roberto Marques, como a “causada pelo excesso de luz artificial ou pelo seu uso inadequado (luz para cima, paralela ao solo ou para além da área útil), que excede ao uso racional e atinge áreas que ultrapassam o limite da necessidade (luz intrusa)” 1. Embora tal modalidade de poluição não seja objeto de uma definição específica na legislação federal brasileira, a exemplo do que se dá na República Tcheca – que editou o chamado Decreto de Proteção da Atmosfera, em vigor desde 1o de junho de 2003, segundo o qual a poluição luminosa “é toda luz artificial que se propaga além das zonas onde ela é necessária e notadamente além da linha do horizonte” 2 – ou no Chile – cuja CONAMA (Comisión Nacional del Medio Ambiente) definiu “contaminación lumínica” como “el resplandor o brillo producido por la difusión de la luz artificial, que disminuye la oscuridad de la Divulgação noche haciendo que se reduzca y desparezca progresivamente la luz de las estrellas y demás astros”3 – a noção de poluição luminosa encontra amparo na nossa Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/81), verdadeira pedra de roseta para a solução das questões jurídico-ambientais. Em consonância com o inciso II e suas alíneas, do art. 3º, da Lei n. 6.938/81, a poluição luminosa pode ser definida como a degradação da qualidade ambiental resultante da emissão de luz, criada por humanos, capaz de, direta ou indiretamente: (a) prejudicar a saúde, a segurança e o bem-estar da população; (b) criar condições adversas às atividades sociais e econômicas; (c) afetar desfavoravelmente a biota; (d) afetar as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; ou, simplesmente, que se dê pelo (e) lançamento de energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos pelos órgãos competentes. A poluição luminosa está por toda parte e não é difícil constatarmos que, na maioria das cidades, parecem ter esvaziado o céu de suas estrelas, deixando no lugar uma névoa pálida que, como bem observado em artigo publicado na National Geographic de novembro de 2008, lembra a claridade urbana das distopias de ficção científica 4. De fato, como destaca Eduardo Turiel do Nascimento, “no ambiente urbano, são várias as fontes de luz. Estas fontes podem ser a iluminação externa dos prédios residenciais ou comerciais, as placas luminosas comerciais e a iluminação pública de praças, monumentos e vias, entre outras” 5. Diante dessa profusão de fontes de luz artificial, “dois terços da humanidade vivem sob céus poluídos pela luz, sendo que um quinto não consegue mais ver a Via Láctea” 6. Não por acaso, a astronomia destacase como uma atividade especialmente prejudicada pela poluição luminosa, sendo também Leonardo Castro Maia Promotor de Justiça em Governador Valadares 56 responsável pelos primeiros esforços cívicos para controlar essa forma de poluição, a exemplo do que se deu em Flagstaff - Arizona, nos Estados Unidos, que em 2001 foi declarada a primeira Cidade Internacional Sob Céu Escuro, após meio século de iniciativas empreendidas para a proteção do Observatório Lowell, situado nas proximidades da cidade 7. Em artigo dedicado ao tema “poluição luminosa”, publicado no número 30 da Revista de Direito Ambiental, Guilherme José Purvin de Figueiredo noticia a edição da Lei n. 10.850/01 do Município de Campinas, que criou Área de Proteção Ambiental (APA) naquela cidade, dispondo sobre o combate à poluição luminosa no entorno do Observatório Municipal de Campinas Jean Nicolini (Observatório de Capricórnio) 8. A par das condições adversas para as atividades dos astrônomos e, por que não dizer, da privação autoimposta pela sociedade ao livre exercício de um direito de ver as estrelas, o uso inadequado da luz também compromete a regularidade de nosso ritmo circadiano, influenciando negativamente o metabolismo humano, que, normalmente, aproveita a escuridão noturna para o repouso, alternando-o com o estado de vigília que se dá durante o dia. Vale lembrar, a propósito, o que ocorre quanto ao hormônio do crescimento ou GH - cuja liberação ocorre em picos durante a noite de sono -, sendo importante para o crescimento das crianças até o fechamento das cartilagens de crescimento dos ossos, assim como no aumento da síntese de proteínas, redução da deposição de gorduras, aumento das necessidades de insulina, retenção de sódio e eletrólitos, aumento de absorção intestinal e eliminação renal do cálcio 9. Assim, ao invadir as casas, a poluição luminosa acaba por dificultar, em muitos casos, o necessário desfrute de uma boa noite de sono, causando fadiga visual e até mesmo alterações no sistema nervoso central 10. Além disso, a coletividade ainda se vê prejudicada sob o aspecto econômico, já que a luz em excesso ou mal direcionada (leia-se: desperdiçada) significa ainda prejuízo para o responsável pelo seu custeio: em última análise, o contribuinte, quando se trata de iluminação pública; ou, nos casos de poluição causada a partir de atividades sem o caráter público, o particular. Obviamente, maior desperdício de energia também demanda maior geração, com conhecidos prejuízos para o meio ambiente decorrentes da instalação e operação de usinas hidrelétricas, termoelétricas, nucleares, entre outras, inclusive com o aumento das emissões e concentrações de carbono na atmosfera. Guilherme José Purvin de Figueiredo menciona a incrível estimativa, segundo a qual “aproximadamente 50% até 60% da energia elétrica gerada atualmente é desperdiçada para o céu em forma de energia luminosa” 11. Noutro passo, Watila Shirley Souza Campos cita a experiência da cidade de Tucson, nos Estados Unidos, que adotou uma política de iluminação planejada, por meio da edição de normas que regulamentaram o uso de qualquer luminária externa, inclusive as instaladas em propriedades privadas, o que se traduziu em uma economia de U$3 milhões por ano 12. Outro impacto econômico da poluição luminosa (ou social, conforme a análise que se faça do caso) diz respeito à segurança do trânsito, que pode ser prejudicada, já que luzes mal direcionadas podem dificultar a visualização do tráfego, das vias e da sinalização de trânsito. É bem de ver que nosso Código de Trânsito (Lei n. 9.503/97) já disciplinou a questão, ao preceituar que: Art. 81. Nas vias públicas e nos imóveis, é proibido colocar luzes, publicidade, inscrições, vegetação e mobiliário que possam gerar confusão, interferir na visibilidade da sinalização e comprometer a segurança do trânsito. Os patrimônios cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico, assim como os bens e espaços protegidos que materializam tais valores, também são especialmente sensíveis à poluição luminosa. Em emblemático caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, deu-se provimento à apelação manejada pelo Ministério Público nos autos de ação civil pública ambiental, impondo-se a retirada de letreiro luminoso instalado no Pico do Ibituruna, símbolo maior da cidade de Governador Valadares e sobre a qual se destaca de forma majestosa, a ponto de haver sido tombado como monumento natural do Estado de Minas Gerais (art. 84 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias do Constituição Estadual). O julgado em questão, publicado no n. 31 da Revista de Direito Ambiental, recebeu a seguinte ementa: “AÇÃO CIVIL PÚBLICA - PICO DO IBITURUNA - DANO AO MEIO AMBIENTE - RISCO DE INCÊNDIO E POLUIÇÃO VISUAL - PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. A Constituição do Estado de Minas Gerais, no art. 84 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias tombou e declarou monumento natural, dentre outros, o Pico do Ibituruna, situado em Governador Valadares. Deve ser julgado procedente pedido veiculado em a ação civil pública se os elementos de prova demonstram o risco de incêndio na área e a poluição visual decorrentes da presença de fios elétricos e equipamentos de letreiro luminoso, instalados em área de preservação 57 ambiental, sem o necessário estudo de impacto ambiental e conseqüente licença. O princípio da prevenção está associado, constitucionalmente, aos conceitos fundamentais de equilíbrio ecológico e desenvolvimento sustentável; o primeiro significa a interação do homem com a natureza, sem danificar-lhe os elementos essenciais. O segundo prende-se à preservação dos recursos naturais para as gerações futuras. A “”Declaração do Rio de Janeiro””, votada, à unanimidade, pela Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (1992), recomendou a sua observância no seu Princípio 15.” 13 Mas não é só. A natureza urbana, especialmente a fauna e a flora que elegeram as cidades como habitat (ou a elas se adaptaram) ou com elas interagem, assim como tantos outros espécimes que vivem ou transitam por seu entorno, também sofrem com os impactos causados pela poluição luminosa, sendo esta capaz de afetar aspectos da vida animal, tais como migração, reprodução, alimentação, assim como da vegetal, que, como se sabe, emprega a luz em processos fundamentais, como a fotossíntese. Dessarte, os efeitos da poluição em comento sobre a fauna e a flora, embora ainda pouco estudados, vêm sendo, gradativamente, observados e apontados por cientistas nas mais diversas partes do globo. No trabalho intitulado Análise Legal dos Efeitos da Poluição Luminosa do Ambiente, Gargaglioni destaca que: “A poluição luminosa causa vários impactos ambientais, podendo levar a alterações na biologia dos ecossistemas (MIRANDA, 2003). Os trópicos podem ser especialmente sensíveis às alterações dos padrões naturais de claro:escuro, devido à constância dos ciclos diários (GLIWICZ, 1999). A poluição luminosa pode ocasionar mudanças na orientação e atração dos organismos em locais com iluminação ambiental alterada, que podem afetar a reprodução, migração e comunicação das espécies. Em relação à orientação dos organismos, o aumento da iluminação pode estender comportamentos diurnos e crepusculares, para o período noturno por aumentar a habilidade do animal de se orientar (LONGCORE & RICH, 2004). Por exemplo, algumas aves e répteis que são usualmente diurnos caçam a noite na presença de luz artificial. Esse comportamento pode ser benéfico para estas espécies, mas não para suas presas (HILL, 1990); (SCHWARTZ & HENDERSON, 1991). “Os canhões de luz lançados diretamente ao céu (utilizados em discotecas) ocasionam problemas na migração das aves, sendo causa de grande mortalidade pela perda de orientação e batendo em obstáculos devido ao brilho. Outros pássaros atraídos pela luz dos prédios, torres de transmissão, monumentos e outras construções, voam sem cessar em torno da luz até caírem de cansaço ou pelo impacto em alguma superfície (CHARRO, 2001). “Para encontrar soluções para este problema com os pássaros, foi fundada em 1993 a FLAP (Fatal Lighting Awareness Programme). Os sócios da FLAP, entre outras atividades, patrulham o centro financeiro de Toronto recolhendo os pássaros vivos após acidentados e que depois são liberados quando curados. Além disso, controlam o número de pássaros que morrem devido a poluição luminosa. Em um fim de semana, em particular, foram encontrados 10.000 casos (CHARRO, 2001). “A iluminação constante pode causar também a desorientação de alguns organismos que dependem de um ambiente escuro para se locomoverem. Um dos exemplos mais conhecidos é os dos filhotes de tartarugas marinhas que saem dos ninhos nas praias. Normalmente, os filhotes movem-se em sentido contrário de ambientes escuros e baixos (por exemplo, as vegetações das dunas) e vão em direção ao oceano. Com a presença de luzes artificiais na praia, os filhotes não conseguem diferenciar os ambientes, resultando em desorientação. Adicionalmente, a poluição luminosa pode afetar o comportamento de postura de ovos das tartarugas (SALMON et al., 1995). “Alterações nos níveis de luz podem também prejudicar a orientação de animais noturnos. De acordo com PARK (1940), estes animais possuem adaptações anatômicas que possibilitam a visão noturna e rápidos aumentos de luz podem cegá-los. Algumas rãs têm a capacidade visual reduzida quando ocorre um repentino aumento da iluminação e podem levar minutos ou horas para se recuperar (BUCHANAN, 1993). “Invertebrados também podem sofrer os efeitos da poluição luminosa, particularmente insetos como mariposas, que são atraídas pela luz. As fêmeas dos vagalumes atraem os machos a 45 m de distância com flashes de bioluminescência, mas a presença de luz artificial reduz a visibilidade, prejudicando a comunicação (LONGCORE & RICH, 2004). “Os comportamentos reprodutivos também podem ser alterados pela iluminação artificial. As rãs da espécie Physalaemus pustulosus são menos seletivas na escolha dos machos quando o nível de iluminação está elevado, provavelmente preferindo acasalar-se rapidamente e evitando o risco de predação (RAND et al., 1997). A reprodução nas aves é controlada fotoperiodicamente, e o aumento artificial do dia podem induzir alterações hormonais, fisiológicas e comportamentais, iniciando a procriação (HOUSE OF COMMONS, 2003). Algumas evidências também sugerem que a luz artificial pode afetar a escolha do local do ninho de aves (LONGCORE & RICH, 2004). “Adicionalmente, luzes brilhantes como a das torres de telecomunicações, faróis e outras construções altas podem atrair e desorientar aves, especialmente em noites sem lua, resultando em mortalidade (HOUSE OF COMMONS, 2003). 58 “Outra situação no meio-ambiente é que a luz artificial provoca danos em locais não tão conhecidos e evidentes como ocasionado na alteração dos ciclos de subida e descida do plancton marinho, que afeta a alimentação das espécies marinhas que habitam próximo à costa. São encontradas também evidências desfavoráveis no equilíbrio das espécies, pois algumas enxergam em certos comprimentos de onda e outras não, e as predadoras podem até extinguir determinadas espécies por conta desta situação (CHARRO, 2001). “Em relação à flora os principais efeitos são que plantas não florescem se a duração da noite é mais curta do que o período normal, enquanto outras florescerão prematuramente como resultado da exposição ao fotoperíodo necessário para o florescimento (HOUSE OF COMMONS, 2003). A diminuição dos insetos que realizam a polinização de certas plantas pode afetar a produção de determinados cultivos. A fotossíntese induzida pela luz artificial produz um crescimento anormal e uma defasagem nos períodos de floração e descanso da planta (CHARRO, 2001).” 14 Na mesma linha, vários impactos da poluição luminosa sobre a vida animal são relacionados na excelente reportagem de capa da edição brasileira de novembro de 2008 da revista National Geographic, na qual se lê: “Nós acendemos a noite como se ela fosse um território desabitado, o que não poderia estar mais longe da verdade. Considerando apenas os mamíferos, o número de espécies noturnas é impressionante. A luz é uma força biológica atuando para muitos animais feito um imã, através de um processo que vem sendo estudado por pesquisadores, como Travis Longcore e Catherine Rich, co-fundadores do Urban Wildlands Group (Grupo dos Sertões Urbanos), baseado em Los Angeles. Esse efeito é tão poderoso que os cientistas mencionam aves canoras e marinhas sendo ‘capturadas’ por holofotes em terra ou pelas chamas de gás nas plataformas petrolíferas, circulando sem parar em torno da luz até cair. Ao migrar à noite, os pássaros se expõem à colisão com edifícios altos e iluminados. Os insetos, como se sabe, aglomeram-se em torno das luminárias públicas, e o hábito de devorá-los tornou-se inerente à vida de muitas espécies de morcego. Em alguns vales suíços, o morcego-de-ferradurapequeno começou a sumir depois de instaladas luminárias nas ruas, desalojados, talvez, pela invasão do morcego-pipistrela, que se alimenta dos insetos. Outros mamíferos noturnos, como gambá e texugo, saem à cata de alimentos de forma mais cautelosa sob a permanente lua cheia da poluição luminosa, pois se tornaram alvo fácil de predadores. Algumas aves, como pássaro-preto e rouxinol, cantam em horas incomuns na presença de luz elétrica. Os cientistas estabeleceram que os longos dias artificiais – bem como as correspondentes noites curtas – induzem ampla gama de pássaros à reprodução precoce. O dia mais longo leva a uma alimentação mais prolongada, e isso afeta cronogramas migratórios. Uma população de cisnes-de-bewick que costuma invernar na Inglaterra adquiriu peso mais rápido que o normal, levando os animais a empreenderem sua migração siberiana mais cedo. A migração, como na maioria dos outros aspectos da vida dos pássaros, é um comportamento biológico que obedece uma precisa demarcação temporal. Partir mais cedo pode significar uma chegada muito precoce ao destino, antes que as condições para a nidificação sejam ideais. As tartarugas marinhas, que fazem ninhos e demonstram predileção natural por praias escuras, têm cada vez mais dificuldade de encontrá-las. Seus filhotes, que gravitam em direção a um horizonte marinho mais refletivo e luminoso, confundem-se com as luzes artificiais das praias urbanas. Só na Flórida, as perdas de filhotes contam-se em centenas de milhares todos os anos. Rãs e sapos que vivem perto de rodovias enfrentam níveis de luminosidade noturna que chegam a ser 1 milhão de vezes mais intensos que o normal, desregulando todos os aspectos de seu comportamento, inclusive os coros noturnos de acasalamento das rãs.” 15 No Brasil, o problema das tartarugas com a poluição luminosa até ensejou a edição de uma norma ambiental infralegal sobre a matéria, a Portaria IBAMA n. 11, de 30 de janeiro de 1995, que proibiu fontes de iluminação de intensidade luminosa superior a zero LUX em determinadas áreas que especificou, especialmente diante das dificuldades das tartarugas fêmeas de realizarem postura na presença de iluminação direta e das interferências da poluição luminosa na orientação de filhotes recém- nascidos no seu trajeto praia/mar. Em outro caso digno de nota, em que a empresa USINAS SIDERÚRGICAS DE MINAS GERAIS S. A. - USIMINAS postulava licença prévia para instalação de aeroporto na zona de amortecimento do Parque Estadual do Rio Doce, a mais expressiva Unidade de Conservação do bioma Mata Atlântica do Estado de Minas Gerais, a ausência de estudos sobre a poluição luminosa gerada a partir do empreendimento constituiu fundamento de voto-vista 59 contrário à concessão da licença em questão, proferido pelo representante do Ministério Público junto ao Conselho de Política Ambiental do Estado de Minas Gerais (COPAM), que sustentou ser o caso típico exemplar de aplicação do princípio da precaução 16. Como se faz sentir, a poluição luminosa está em toda parte e não pode ser totalmente eliminada, manifestando-se nas formas conhecidas como sky glow (brilho no céu), glare (ofuscamento) e light trespass 17 (luz intrusa), com significativos impactos ambientais, podendo dificultar a pesquisa astronômica, atingir a saúde e a segurança do ser humano, resultar no comprometimento de recursos naturais e em fortes e desnecessárias pressões sobre a atmosfera terrestre, acarretar prejuízos de ordem social e econômica à coletividade difusamente considerada, danos aos patrimônios cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico, assim como à fauna e à flora. Paradoxalmente e não obstante a quase inexistente regulação normativa do tema, o direito am- biental vem se mostrando preparado para a pronta tutela ambiental das questões envolvendo poluição luminosa, seja de lege lata, pela utilização de seus princípios específicos, a exemplo da precaução, e de seus mecanismos de polícia administrativa, de tutela civil coletiva (ações civis públicas) e de persecução criminal (crime do art. 54 da Lei n. 9.605/98); seja de lege ferenda, pela possibilidade de rápida evolução, especialmente através da adoção/imposição, via normas infralegais, de padrões de iluminação eficiente e ambientalmente adequados, capazes de aproveitar ao máximo a luz e evitar o desperdício. Ainda ofuscada por uma onipresente bruma alaranjada noturna que remete aos chamados progressos da urbanização e à sensação de aparente segurança proporcionada pelas cidades e por sua iluminação artificial, a humanidade começa a despertar para a imensidão da natureza celestial e da percepção cósmica que o vislumbre de um céu estrelado parece trazer consigo. Referências 1 MARQUES, 2 HOLLAN, José Roberto. Poluição luminosa. Revista de Direito Ambiental, São Paulo n. 38, ano 10, p. 121 abr./jun. 2005. J. How should the light pollution be controlled – an experience from the Czech Republic. N. Copernicus Observatory and Plane- tarium in Brno lecture at Ecology of the Night, Brno, República Tcheca, 2003. Apud GARGAGLIONI, Saulo Roberly. Análise legal dos efeitos da poluição luminosa do ambiente. Itajubá, [s.n.], 2007, p. 22; Vide, ainda, KLINKENBORG, Verlyn. A noite esvai-se – Como a poluição luminosa nos afasta da escuridão. National Geographic, ano 9, n. 104, , p. 57, nov. 2008. 3 GOBIERNO DE CHILE. Contaminacíon lumínica. Santiago: Comisión Nacional del Medio Ambiente, CONAMA. Disponível em: WWW. URL: http://www.conama.cl/portal/1301/propertyvalue-15484.html. Acesso em 11 jun.2009. 4 KLINKENBORG, Verlyn. A noite esvai-se – Como a poluição luminosa nos afasta da escuridão. National Geographic, ano 9, n. 104, p. 56, nov. 2008. 5 NASCIMENTO, Eduardo Turiel do. Poluição luminosa e saúde pública. Belém: UNAMA – Universidade da Amazônia, ps. 3/4. Disponível em WWW. http://www.nead.unama.br/prof/admprofessor/file_producao.asp?codigo=122. Acesso em: 11 jun. 2009. 6 KLINKENBORG, 2008, p. 58. 7 KLINKENBORG, 2008, p. 56. 8 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Poluição Luminosa, . Revista de Direito Ambiental. São Paulo,n. 30, ano 8, p. 219, abr./jun. 2003. 9 NASCIMENTO, 10 CAMPOS, 2009, p. 8. Watila Shirley Souza. Poluição Visual no Direito Brasileiro. Santos: Universidade Católica de Santos, 2006, p. 36. Disponível n em WWW. URL: http://biblioteca.unisantos.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=6. Acesso em: 11 jun. 2009. 11 FIGUEIREDO, 2003, p. 221. 12 CAMPOS,2006, 13 MINAS p. 37. GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível no. 1.0000.00.295312-3/000(1) - 7ª Cam. Cível. Rela- tor Des. Wander Marota. Belo Horizonte, 10 de fevereiro de 2003. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n. 31, ano 8, p. 133, jul./set. 2003. 14 GARGAGLIONI, Saulo Roberly. Análise legal dos efeitos da poluição luminosa do ambiente. Itajubá: [s.n.], p. 13-15, 2007. 15 KLINKENBORG, 16 Sem 2008, p. 56. embargo, a questão não chegou a ser apreciada pelo plenário do COPAM, ante a desistência do pedido formalizada pela citada em- presa nos autos do Procedimento de Licença Prévia no. 14779/2008/001/2008. 17 HOUSE OF COMMONS. Light Pollution and Astronomy. Science and Technology Committee Publications – Volume 1, Londres, Inglaterra, 2003, p. 17. Disponível em: WWW. URL: http://www.parliament.the-stationery-office.co.uk/pa/cm200203/cmselect/cmsctech/747/747. pdf. Acesso em 11 jun. 2009. 60 Av. Álvares Cabral, 1740 - 4º andar - Santo Agostinho Belo Horizonte - MG - CEP: 30170-001 Fone: (31) 3330-8166 - (31) 3330-8016 e-mail: [email protected] www.mp.mg.gov.br Ministério Público-MG PGJ