Jornal Porantim 358 Setembro 2013

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Jornal Porantim 358 Setembro 2013
ISSN 0102-0625
Em defesa da causa indígena
Terra Indígena Xukuru Kariri: Horta agroecológica em mandala, Dona Marlene Santana da Silva, Gecinaldo Soares de Queiroz cultivando, criança pensativa, convivendo na ciranda, “Seu” Antônio Selestino da Silva – Fotos: Patrícia Bonilha
Ano XXXV • N0 358 • Brasília-DF • Setembro 2013 – R$ 5,00
O BEM VIVER COMO RESPOSTA
Diante de todas as históricas adversidades, povo Xukuru Kariri busca inspiração nos saberes ancestrais
e se reorganiza para conseguir de volta o seu território tradicional. A produção de alimentos saudáveis
combinada com a preservação da natureza e os rituais sagrados trilham um caminho de vanguarda,
expresso na fala de uma experiente liderança: “Queremos viver o que somos”.
Páginas 8 e 9
Conjuntura: Ruralistas
insistem em rasgar a
Constituição
Mato Grosso do Sul:
um lugar sem direitos
humanos
Morosidade do
governo estimula
retomadas de terras
Páginas 2 a 5
Página 6
Páginas 10 e 11
Artigo
Porantinadas
Constituição ameaçada
pelos ruralistas
Dom Erwin Kräutler
Dom Enemésio Lazzaris*
A
ISSN 0102-0625
Aos ruralistas, seja na tribuna
do Congresso Nacional ou pelos
jornais, não há o que os leve
mais ao descontrole do que a
causa indígena. Descontrole expresso
em uma escalada de recursos contra os
direitos destes povos e de comunidades tradicionais garantidos pela Constituição, prestes a completar 25 anos.
Um destes recursos é a Proposta
de Emenda à Constituição 215/00, que
transfere a competência da demarcação de terras indígenas do poder
Executivo para o Congresso. Proposta
que, segundo Nota Técnica do Ministério Público Federal (MPF), afronta
“cláusulas pétreas da Constituição da
República” e viola o núcleo essencial
de direitos fundamentais. Fere a divisão dos poderes e anula o direito
originário à terra, sendo a demarcação
ato administrativo, segundo os juristas
Carlos Frederico Marés e Dalmo de
Abreu Dallari.
À PEC 215, se somam dezenas de
outros projetos de lei, que tentam
impedir o reconhecimento de terras
indígenas e favorecer o uso delas pelo
agronegócio. Nada parece deter os
ruralistas, que ostentam uma bancada
de 214 deputados e 14 senadores,
com campanhas eleitorais financiadas
pelo capital estrangeiro da Monsanto,
Cargill e Syngenta, além da indústria
de armas e frigoríficos (cf. dados da
Transparência Brasil).
O que esperar dos povos indígenas, quilombolas e comunidades
tradicionais a não ser a resistência, tal
Davi contra Golias, em defesa de seus
direitos? Assim foi em abril, quando
indígenas ocuparam a Câmara Federal,
e tem sido assim na retomada de terras
tradicionais, com procedimentos demarcatórios paralisados pelo Executi-
vo, como a Terra Indígena Tupinambá
de Olivença (BA), com procedimento
administrativo encerrado desde 2009.
O ministro da Justiça, José Eduardo
Cardozo, porém, se nega a assinar
a Portaria Declaratória. País afora a
situação é dramática.
No Mato Grosso do Sul, a terra
Kadiwéu, demarcada há 100 anos e
homologada há quase 40, segue invadida. Relatório do Cimi registra que, de
2003 a 2012, ocorreram no estado 317
assassinatos de indígenas, dos 563 no
país. No caso da morte de Nísio Gomes
Guarani Kaiowá, o MPF apontou como
mandantes ao menos seis “produtores
rurais”. O confinamento às margens de
rodovias ou em minúsculas reservas
levou ao suicídio, entre 2000 e 2012,
611 indígenas, jovens entre 14 e 25
anos (Dados do DSEI).
A Articulação dos Povos Indígenas
do Brasil (Apib) convocou, entre 30 de
setembro e 05 de outubro, Mobilização
Nacional contra a ofensiva à Constituição e aos direitos indígenas. Cimi e
CPT apoiaram, fundados nos valores do
Evangelho e por dever de justiça e solidariedade a quem tem sido espoliado
de seus territórios e de seus direitos.
APOIADORES
Dom Erwin Kräutler
Presidente do Cimi
Emília Altini
Vice-Presidente do Cimi
Cleber César Buzatto
2
* Dom Erwin Kräutler é bispo da Prelazia do Xingu (PA) e presidente do Conselho Indigenista
Missionário (Cimi) e Dom Enemésio Lazzaris é
bispo da Diocese de Balsas (MA) e presidente
da Comissão Pastoral pela Terra (CPT). Publicado na edição de 17 de setembro, página 3,
do jornal Folha de S. Paulo.
A senadora ruralista Kátia Abreu
(PMDB/TO), também presidente da
Confederação Nacional da Agropecuária
(CNA), escreve aos sábados no jornal
Folha de S. Paulo com ares de colunista
importante. Não bastasse o desserviço
existencial da ruralista, agora o ar de sua
graça toma forma em linhas e parágrafos, sempre pontuados por dados e no
que ela acha bom aos povos indígenas.
O jornal, todavia, decidiu se atrelar a tal
escambo de informações. A questão
indígena, portanto, é tratada por uma
fazendeira no caderno de economia. A
coluna da ruralista se adequaria melhor
ao jogo dos sete erros da Folha.
Grande feirão Liquida
Tudo!
Nas grandes cidades é bastante
comum ruas ou centros tornarem-se
pontos de feiras populares e de comércios. Em Brasília tais concentrações
estão na Esplanada dos Ministérios.
Porém, ao invés de produtos diversos
o que se vende lá é o próprio país.
Estamos em verdadeira liquidação. Os
ruralistas querem terras, as construtoras
querem obras, multinacionais querem
o petróleo, empresas aeroportos e
estradas, as mineradoras triplicar a
produção. O setor elétrico quer agora
um “balcão único” no licenciamento
ambiental de projetos de energia. Tem
“muita burocracia” para gastar bilhões
em hidrelétricas a fio d’água, destruir o
meio ambiente e expulsar comunidades
de seus territórios. A Eletrobrás assina
embaixo.
(De)Serviço Florestal
Brasileiro
Este ano já foram três editais do
Serviço Florestal Brasileiro (SFB) para
permitir, a partir de 2014, a exploração
de 1 milhão de hectares de floresta por
madeireiras. Um desserviço medonho.
A justificativa apresentada pela direção do SFB é de que a medida evita
grilagens, extração madeireira ilegal
e o consequente desmatamento. A
ideia começa quando Marina Silva era
ministra de Meio Ambiente. O perverso,
porém, é que quando o Estado decide
agir a emenda sai pior do que o soneto:
ao invés de combater o desmatamento
pode madeireiras, a prática é legalizada
via mercado. Se é para derrubar árvores,
que o Estado ganhe alguns milhões.
Secretário Executivo do Cimi
Setembro–2013
Kátia Abreu, em coluna nesta Folha
(Caderno Mercado 2, 7/9, pg.7) tenta
desqualificar a ação destas pastorais
taxando-as de “ideológicas”. O assentamento de famílias sobre terras
indígenas, inclusive com emissão de
títulos de propriedade do Estado, não
nega o esbulho dos territórios. Isso
não ocorre somente no caso de terras
tradicionalmente indígenas. A senadora
e familiares foram beneficiados pelo
governo do Tocantins com terras ocupadas por posseiros. Além de atentar
contra o direito à terra dos povos e de
posseiros, Kátia Abreu milita contra o
direito à identidade coletiva. A senadora protocolou na Casa Civil pedido
para que a FUNAI paralise o processo
de identificação étnica do povo Kanela
do Tocantins.
Os indígenas não estão solitários
em suas mobilizações, pois a sociedade
está atenta ao escândalo do latifúndio
ruralista brasileiro.
MARIOSAN
Na língua da nação indígena
Sateré-Mawé, PORANTIM
significa remo, arma,
memória.
Publicação do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi), organismo vinculado à Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
Jogo dos sete erros
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Conjuntura
JURISTAS PEDEM A PARLAMENTARES REJEIÇÃO À PEC 215:
“Absolutamente inconstitucional”, dizem
Renato Santana,
de Brasília (DF)
O
s juristas Dalmo de Abreu Dallari e Carlos Frederico Marés
pediram aos deputados e deputadas federais que rejeitem
a Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) 215/2000. “Espero que tenham
lucidez para rejeitar a PEC. Estaremos
atentos. Se forem adiante vamos ao Supremo (Tribunal Federal - STF) e à Corte
Interamericana contra esse escândalo”,
enfatizou Dallari.
Apresentada pela bancada ruralista,
a PEC 215, à espera de criação de comissão especial, pretende que o Congresso
Nacional autorize ou não demarcações
e homologações de terras indígenas,
quilombolas e áreas de preservação
ambiental. Toma por base a tese da
temporalidade, ou seja, as comunidades
que estavam até a Constituição de 1988
na terra têm direito a ela; nos demais
casos não.
Ambos definiram a PEC 215 como
“absolutamente inconstitucional” durante
audiência pública na Comissão de Participação Legislativa, Câmara Federal, no dia
13 de setembro. Participaram do debate a
liderança indígena Sônia Bone Guajajara,
o autor da proposta, o ex-deputado Amir
Sá, de Roraima, o relator, deputado Osmar
Serraglio (PMDB/PR) e Marivaldo Pereira,
assessor do Ministério da Justiça.
Diante de um auditório tomado por
cerca de 150 indígenas de mais de uma
dezena de povos, e sob a mediação do
deputado federal Lincoln Portela (PR/
MG), Dalmo Dallari, atuante no processo
constituinte, apontou que a PEC 215 é
multiplamente inconstitucional, mas se
ateve a três pontos, os quais o jurista
considerou os mais graves e fundamentais. Opinião compartilhada por Marés.
“A proposta afeta uma regra jurídica
fundamental: a separação dos poderes.
A PEC propõe que o Congresso passe a
aprovar ou ratificar a demarcação. Isso
é um ato administrativo, do Poder Executivo (...) é o típico caso de se usar a
aparência de legalidade para se avançar
sobre o direito dos outros. A separação
dos poderes é justamente para não se
permitir isso”, explica Dallari, professor
da Universidade de São Paulo (USP).
Ex-procurador estadual do Paraná e
ex-presidente da Funai, Marés frisou que
ato administrativo é um conceito jurídico
e ato único. “O legislativo não tem que
dizer qual é a terra dos povos indígenas,
mas que os povos têm direito a ela”,
disse. Conforme o jurista, a Constituição
de 1988 garantiu o direito originário dos
povos indígenas sobre suas culturas,
sociedades e terras.
“A proposta afeta uma regra jurídica fundamental: a separação
dos poderes. A PEC propõe que o Congresso passe a aprovar ou
ratificar a demarcação. Isso é um ato administrativo, do Poder
Executivo (...) é o típico caso de se usar a aparência de legalidade
para se avançar sobre o direito dos outros. A separação dos
poderes é justamente para não se permitir isso”.
Dalmo Dallari
“Direito originário é um direito de
sempre e no caso das terras independe
de demarcação, que é o simples ato de
dizer que a terra vai daqui até ali. O
direito é a terra. A maldição da PEC é
retirar esse direito. Os deputados são
eleitos não para fazer atos técnicos,
mas políticas e as políticas estão na
Constituição”, destacou Marés de forma
enfática. O jurista lembrou que enquanto
os parlamentares querem legislar atos
administrativos, o Estatuto dos Povos
Indígenas, que é uma política pública,
segue nas “gavetas do Congresso” há
pelo menos duas décadas.
Terras inalienáveis
Dalmo Dallari apresentou a segunda questão que avalia ser de extrema
gravidade na PEC 215. De acordo com a
proposta, as terras indígenas ficam inalienáveis apenas depois que o Congresso
confirmar a demarcação. “A Constituição
Federal não deixa dúvida de que as terras
indígenas são inalienáveis. O direito não
depende da demarcação. É inconstitucional. As terras são inalienáveis e isso
não depende do Congresso”, afirmou
o jurista. Para Dallari, o desrespeito
nesse ponto é “escandaloso”. Ao que
Marés complementou dizendo que a
PEC 215 representa um retrocesso não
apara 1987, antes da Constituição, mas
para o século XIX, quando não se tinha
direito algum.
“A Constituição não oferece como
direito a demarcação, mas a terra! Quando a proposta diz que as terras ficam
inalienáveis apenas depois do Congresso
dizer, não há mais direitos originários.
Não é verdade que essa PEC reconhece
os direitos do artigo 231 (Dos Índios),
como dizem seus defensores, porque a
proposta acaba com ele”, atacou Marés.
O jurista que pior que inconstitucional
é o fato da proposta ferir a dignidade do
povo brasileiro de que se é um direito
deve ser garantido.
“A lógica dessa PEC é dificultar as
demarcações. Atribuir esses atos ao Congresso é negar o direito de se reconhecer
o direito. A proposta é uma maldição
que continua para as próximas gerações,
porque só pode existir terra indígena
depois que o Congresso aprovar. A PEC
quer refazer o direito e acabar com o
direito anterior”, declarou Marés.
Por fim, para os juristas, a demarcação é um ato administrativo e, tal como
a PEC 215 propõe, é inconstitucional
que o procedimento possa ser ratificado
ou não pelo Congresso: “É um absurdo
porque significa tirar um direito que já
é do índio. O processo todo que envolve
a demarcação é um ato jurídico perfeito,
não tem razão de o Congresso rever ou
ratificar”, defendeu Dallari.
Na opinião do jurista, “por mais que
os deputados queiram, ou melhor, ouso
dizer, por mais que o agronegócio queira
não é possível de fazer. Vivemos um momento de grande pressão do agronegócio. Mais terras é que o desejam, e a PEC
215 atende a isso, pois é mais dinheiro
para o setor, mas e o povo? Será de fato
bom para o povo?”.
Juristas
reconhecidos,
Dallari e
Marés,
rechaçaram
a PEC 215:
rejeição é uma
questão de
lucidez
“A lógica dessa PEC é dificultar
as demarcações. Atribuir esses
atos ao Congresso é negar
o direito de se reconhecer
o direito. A proposta é uma
maldição que continua para
as próximas gerações, porque
só pode existir terra indígena
depois que o Congresso
aprovar. A PEC quer refazer o
direito e acabar com o direito
anterior”.
Carlos Frederico Marés
3 Setembro–2013
Conjuntura
GT paritário pede arquivamento da PEC 215
U
A comissão paritária composta por lideranças indígenas
e deputados federais votou o
relatório final dos trabalhos
do grupo criado após manifestações
ocorridas em abril deste ano. A principal conclusão é de que a Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) 215, de
interesse da Frente Parlamentar Agropecuária, é inconstitucional e deve ser
arquivada.
A PEC 215 visa levar ao Congresso
Nacional as demarcações de terras
indígenas, quilombolas e a criação de
áreas de preservação ambiental para
serem aprovadas ou não. Por conta
dela, entre outras medidas nocivas às
comunidades originárias e tradicionais,
os povos indígenas ocuparam em abril
o plenário da Câmara Federal.
Na ocasião, o presidente da casa,
deputado Henrique Alves (PMDB/RN),
criou a comissão paritária - composta
por dez parlamentares e dez lideranças
indígenas. O grupo de trabalho deveria
ser um espaço de discussão sobre todas
as proposituras legislativas envolvendo
os povos indígenas. São quase 100
matérias, no total.
Porém, apenas as lideranças indígenas e parlamentares fora do escopo
do agronegócio compareceram. O
mesmo ocorreu na sessão que votou
o relatório final do grupo. Para Lincoln
Portela (PR/MG), mediador da comis-
Contra PEC
215, cerca de
1.500 Terena
trancaram
duas rodovias
federais que
cortam a
região central
do Mato
Grosso do Sul.
Na rodovia
MS 156,
os Guarani
Kaiowá
também
fizeram
protesto
são, a ausência durante os meses de
trabalho se deu por conta da intensa
agenda legislativa.
O encerramento da comissão, entretanto, ocorre nos dias prometidos
pelo presidente da Câmara Federal para
a criação da Comissão Especial da PEC
215, medida rechaçada por indígenas,
indigenistas e juristas. A comissão é
a ante-sala da votação em plenário,
tomado por deputados ruralistas interessados na PEC.
Justamente por essa razão, 1.500
Terena bloquearam as BR-262 e BR-060,
na região central do Mato Grosso do
Sul, contra a criação da Comissão Especial da PEC 215. Em Dourados (MS), os
Guarani Kaiowá trancaram parcialmente
a MS-156, deixando apenas uma faixa
de rolamento livre.
“Agora foram os parentes Terena e
Guarani Kaiowá que pararam três rodovias, mas se essa Comissão Especial
for criada, todos os povos indígenas do
país vão se movimentar e vamos parar
o país. A gente não aceita essa PEC e os
interessados nela não quiseram conversa”, declarou o cacique Neguinho Truká,
de Pernambuco.
Tabuleiro
Com a votação do relatório final e o
fim do grupo de trabalho, que migrará
para uma subcomissão da Comissão
de Legislação Participativa da Câmara
Federal, o presidente Henrique Alves
teve o que precisava para criar a Comissão Especial da PEC 215. Mesmo
com parecer pela inconstitucionalidade, nada impedia Alves de criar a
comissão.
O presidente da Câmara declarou
que caso não fosse estabelecido um
consenso no grupo de trabalho, a Comissão Especial da PEC 215 seria criada.
“Se não vingar, se não corresponder à
nossa expectativa do entendimento,
eu vou sim pautar, vou criar a comissão
especial”. A tática dos ruralistas foi de
não comparecer às reuniões do grupo
de trabalho, garantindo o dissenso necessário à criação da comissão.
Por outro lado, o ministro Luís
Roberto Barroso, do Supremo Tribunal
Federal (STF), solicitou informações
à Comissão de Constituição e Justiça
(CCJ) da Câmara Federal sobre a PEC
215. Barroso analisou mandado de
segurança, com pedido de liminar, do
deputado Padre Ton (PT/RO) contra a
tramitação da PEC 215. O ministro não
atendeu ao pedido do deputado de interrupção da tramitação. Porém, em seu
pronunciamento, Barroso manifestou
discordância com o teor da PEC 215. n
ARTIGO: Direitos indígenas: basta cumprir a lei
“Ninguém pode tornar-se
dono de uma terra ocupada
por índios. Quem tiver
adquirido, na realidade não
adquiriu coisa alguma.”
Dalmo Dallari, Jurista
Padre Ton
U
Setembro–2013
4
ma onda conservadora comandada pelos agentes do
agronegócio e da mineração
no Congresso Nacional se eleva contra os povos indígenas a fim de
abolir os direitos por eles conquistados
e reconhecidos na Constituição Federal
de 1988.
Historicamente, a postura do Estado brasileiro em relação aos povos
originários evoluiu da política do extermínio, no início da colonização, ao reconhecimento dos direitos originários,
passando pelas tentativas de integração
forçada, renegando suas identidades
em nome da inserção à nação brasileira,
de forma acentuada no período militar.
A poucos dias de completar 25 anos
da promulgação da Constituição cidadã,
sem dúvida a mais avançada de nossa
história, os direitos originários sobre
as terras que tradicionalmente ocupam
continuam a ser negados aos povos
indígenas. Pior que isso, as mesmas
forças que tentaram impedir o reconhecimento dos primeiros ocupantes desta
terra como sujeitos de direito durante
a constituinte, atuam cinicamente para
retirá-los da Carta Magna.
Em uma primeira linha de ação, a
tropa de choque do agronegócio e do
setor mineral pretende transferir para
o Congresso Nacional, onde não há
representação indígena, a competência
para dar a última palavra sobre a demarcação das terras indígenas e, em outra
frente, desfigurar o texto constitucional
de forma a impedir a sua aplicação. Se
as propostas de emenda à Constituição
215, 038, 237 e o projeto de lei 227
forem aprovados como querem essas
bancadas, nunca mais teremos uma
terra indígena demarcada, um território
quilombola titulado ou uma unidade de
conservação criada no Brasil.
A manobra política empreendida
pela bancada ruralista no Congresso
contra as minorias indígenas representa
grave violação dos direitos coletivos
dessas populações e, consequentemente, uma afronta ao estado de direito
por se tratar de tendência a abolição
de cláusula pétrea de nosso Estatuto
Básico. Um país que se pretende democrático e respeitado internacionalmente
não pode permitir o aniquilamento dos
direitos das minorias. Ainda mais sem
ouvi-las, ao arrepio da Convenção 169,
da OIT, da qual o Brasil é signatário.
Não há mais o que legislar em
relação aos direitos indígenas; o que
precisa é cumprir a Constituição. A es-
perança é que o STF acolha o mandado
de segurança impetrado pela Frente
Parlamentar em Defesa dos Direitos
Indígenas, vede a criação de comissão
especial anunciada pelo Presidente da
Câmara, deputado Henrique Alves, para
o próximo dia 4 e, em caráter definitivo, exclua da deliberação da Câmara
dos Deputados a proposta de emenda
constitucional 215.
Somente o Supremo, como legítimo
guardião da Constituição da República,
pode impedir esse recuo ilegal do arcabouço jurídico do país. Os direitos
fundamentais não podem ficar ao sabor
da vontade de uma maioria parlamentar
circunstancial, que se coloca a serviços
de grupos econômicos interessados em
avançar sobre as terras indígenas.
Padre Ton é presidente da Frente
Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas, é deputado federal pelo PT de
Rondônia e ex-prefeito de Alto Alegre
dos Parecis (RO). n
PLP 227: o novo projeto anti-indígena
dos ruralistas no Congresso
Renato Santana,
de Brasília (DF)
A
s ações parlamentares da bancada ruralista no Congresso Nacional contra os direitos dos povos
indígenas ocorrem não apenas
pela PEC 215. São quase uma centena
de proposições em tramitação. Entre
elas está o Projeto de Lei Complementar
(PLP) 227/2012. O presidente da Câmara
Federal, Henrique Eduardo Alves (PMDB/
RN), em ato oficial, instituiu comissão
especial para o PLP 227 e apensou o
projeto à matéria de mesmo teor, o PLP
260/1991, já votado no Senado. O PLP 227 pretende criar lei complementar ao artigo 231 da Constituição
Federal – “Dos Índios” – apontando
exceções ao direito de uso exclusivo
dos indígenas das terras tradicionais,
em caso de relevante interesse público da União. Dentre as tais exceções,
conforme o PLP 227, está a exploração
dos territórios indígenas pela rede do
agronegócio, empresas de mineração,
além da construção de empreendimentos ligados aos interesses das esferas de
governo – federal, estadual e municipal.
“Não queremos apenas que evitem a
PEC 215, mas todas as propostas que os
ruralistas usam para entrar nas nossas
terras. O PLP 227 é ainda mais preocupante porque envolve a mineração e
interesses do governo. Essa proposta
nada mais faz do que transformar o relevante interesse da União em interesse
privado”, afirma Sônia Bone Guajajara,
da Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil (Apib), organização que convocou
a Mobilização Nacional. Para ela, a PEC
215 passou a ser usada como barganha,
depois de desidratada em vista de sua
inconstitucionalidade, para a tramitação de outras propostas anti-indígenas,
caso do PLP 227. Após o início da tramitação do PLP
227, proposta similar foi apresentada
com o objetivo de criar lei complementar ao artigo 231. O relator é o senador
Romero Jucá (PMDB/RR), conhecido por
sua intrínseca relação com a mineração
– inclusive em terras indígenas. O parlamentar propôs a medida à Comissão
Mista (Câmara e Senado) que trata
de regulamentações à Constituição
Federal.
“As mobilizações precisam continuar: não á apenas a PEC 215 que busca
acabar com seus direitos. A estratégia é
pesada. O PLP 227 e o PL 1610, da mineração em terras indígenas, são ameaças
sérias. Por isso digo: não parem de se
mobilizar! Aqui no Congresso somos
minoria, precisamos de mobilização”,
disse aos indígenas o presidente da
Frente Parlamentar de Defesa dos Povos
Indígenas, deputado federal Padre Ton
(PT/RO). n
Kátia Abreu: manipulação de dados,
mentiras e preconceito em novo projeto de lei
Laudovina Pereira*
O
projeto de lei protocolado pela
senadora Kátia Abreu (PSD/TO),
que propõe proibição à demarcação de terras que tenham sido
retomadas por índios, é obscurantista e
revela o ódio do agronegócio contra os
direitos indígenas. Quem poderia, sim,
exigir uma lei para conter a invasão
nestes últimos cinco séculos são, certamente, os povos indígenas.
Para completar, a senadora protocolou nesta quinta, 5, na Casa Civil da
Presidência da República, pedido para
a imediata interrupção de qualquer
processo de reconhecimento de grupo
étnico ou demarcação de terras indígenas em curso no Tocantins.
Estes ataques preconceituosos e
racistas pronunciados pela senadora
Kátia Abreu, só mostram a prepotência
do agronegócio, dos grandes produtores rurais, latifundiários e empresários
rurais, chamados pela representante da
CNA de “pequenos produtores”.
A senadora não se envergonha em
manifestar a cobiça destes setores
pelos territórios indígenas. Os povos
indígenas são os que estão sofrendo a
insegurança jurídica com todas essas
propostas como a PEC 215, 038, 237; a
Portaria 303 da AGU, do PL 1610 da mineração, do PLP 227 entre tantos outros
que tramitam no Congresso Nacional.
Estes ataques aos direitos dos povos
indígenas, recorrentes pela senadora,
são os responsáveis e geradores de
conflitos com os povos indígenas.
A Constituição manda demarcar
todas as terras em cinco anos e a legislação internacional garante esses
direitos. E, diga-se de passagem, as
terras não foram demarcadas em grande
parte por interferência do agronegócio
e políticos inescrupulosos com a omis-
são e conivência do Estado brasileiro.
O que Kátia Abreu omite ou mascara
é de que o agronegócio não tem o mínimo interesse em produzir alimentos
para o nosso país. O que produz são as
commodities que dão mais lucro. E usam
o máximo de veneno para obter o máximo de lucros. Quem produz comida para
a mesa do povo brasileiro é a agricultura
familiar, mais do que o agronegócio.
Neste ano, a soja no Tocantins teve
alta na produção, mas mesmo com esse
avanço na economia, as famílias que
vivem nos municípios produtores de
soja no Tocantins, como Pedro Afonso,
Campos Lindos, Barra do Ouro, entre
outros, vivem sofrendo os impactos dos
agrotóxicos e padecendo a mais extrema
pobreza.
Em sua inflamada oratória, faz
afirmações que pairam às raias do absurdo. Por exemplo, diz: “Somente no
Mato Grosso do Sul, existem hoje 67
fazendas invadidas por indígenas que
representam 3 milhões de hectares”. Ora,
senhora senadora, se isso revelasse um
mínimo de verdade, estaríamos diante
abismal número de, em média, 44.766,11
hectares por fazenda. E sabe a senhora
Senadora quantos mil hectares ocupam
hoje, aproximadamente 45 mil Kaiowá
no cone sul do Mato Grosso do Sul? Um
pouco mais de 20 mil hectares.
O seu papel de parlamentar, senhora
senadora, não é o de instigar o preconceito e a violência contra os povos indígenas, mas apoiar os direitos destes povos garantidos na Constituição de 1988.
E também a solução a estes conflitos é
a DEMARCAÇÃO DE TODAS AS TERRAS
INDÍGENAS DO BRASIL. E o seu papel
como membro do Parlamento brasileiro
é garantir os direitos das minorias. n
*Coordenadora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Goiás e Tocantins
A Constituição
Federal está
sob risco
devido aos
interesses
de setores
privados,
especialmente
dos
latifundiários
5 Setembro–2013
Ruy Sposati,
de Dourados (MS)
U
ma comitiva da Anistia Internacional visitou, no dia 7
de setembro, comunidades indígenas Guarani Kaiowá
da região de Dourados (MS). Durante o encontro,
lideranças Kaiowá, Guarani, Terena, Kinikinau e Ofayé
se encontraram com o secretário geral da entidade, o indiano
Salil Shetty, para denunciar a demora na demarcação de terras
e as violências sofridas por estarem fora de seus territórios
tradicionais ou confinados em pequenas reservas.
Pela manhã, Salil visitou um dos tekoha mais vulneráveis
do estado, o acampamento Apika’y. Às margens da rodovia
BR-163, no trecho que liga os municípios de Dourados e Ponta
Porã, dezesseis famílias Kaiowá permanecem em barracos, há
mais de dez anos, ladeados pelo tráfego de caminhões e pelas
plantações de soja e cana. Cinco indígenas foram mortos em
casos de atropelamento, e uma foi envenenada pelos agrotóxicos usados na plantação.
“Em pleno 2013 não se pode simplesmente fazer o que
se quer nas terras indígenas, como se não houvessem direitos a serem respeitados”, afirmou Salil aos indígenas. “Aqui,
conheci mães que perderam seus filhos pequenos, velhos que
perderam seus filhos. Essas coisas acontecem aqui à luz do
dia, e não há investigação. As pessoas que cometem esses
crimes simplesmente continuam livres. isso é uma verdadeira
vergonha para o Brasil”, disse.
Na sequência, Shetty se reuniu com uma centena de
lideranças de todo o Mato Grosso do Sul, onde colheu depoimentos sobre a vida dos indígenas que estão na luta pela
terra. “Visitando essa região, me sinto em um lugar onde
direitos humanos não existem”, enfatizou Salil. “O Brasil tem
se tornado cada vez mais poderoso, mas não consegue garantir
o direito de seus cidadãos mais antigos”.
“Milhares de indígenas ainda não tiveram suas terras demarcadas. Isso gera violência e intimidação. Eles estão sendo
expulsos da terra, e também estão perdendo suas vidas”
A questão chave para entender o emaranhado de conflitos
da região, para Salil, é a demora na demarcação dos territórios indígenas. “Uma justiça que demora é uma justiça que é
negada”, afirmou às lideranças. “Vocês colocam suas vidas em risco para garantir os seus
direitos, a sua terra”, pontuou Salil. “Mas essa é uma luta
desigual. Um lado tem armas e governo por trás. O outro não
tem nada. Mas vocês têm a verdade. Vocês têm história”. Para
o indiano, os relatos correspondem a uma realidade comum
às demais populações indígenas brasileiras. “É muito doloroso ouvir sobre tantas dificuldades que as comunidades locais
estão passando, sabendo que essa não é só a história daqui,
mas das comunidades indígenas de todo o país”.
A comitiva se reuniu em Brasília, na sequência, com o
Ministério da Justiça, Secretaria Especial de Direitos Humanos
e Secretaria Geral da Presidência da República. “A presidente
do Brasil se recusou a nos receber. Talvez ela não queira ouvir
sobre a realidade que encontramos aqui hoje”, concluiu. n
Campeão de
homicídios
e suicídios
indígenas, o
Mato Grosso
do Sul é o
estado mais
violento do
Brasil com
estes povos
Foto: Ruy Sposati
Salil Shetty: “Me sinto em um lugar
onde direitos humanos não existem”
País
Afora
MPF apura denúncia de
indígenas de Carauari (AM)
J.Rosha,
de Manaus (AM)
A
demissão de quatro
professores do povo
Kanamari da aldeia Taquara, no município de
Carauari (AM), sem consulta à comunidade por parte da Secretaria Municipal de Educação, está
sendo apurada pelo Ministério
Público Federal. De acordo com
a assessoria de comunicação do
MPF, os procuradores instauraram um Inquérito Civil Público.
O prazo é de um ano para conclusão, podendo ser prorrogado.
A denúncia foi encaminhada por
lideranças indígenas da aldeia
Taquara, depois de reuniões
com a Secretaria de Educação,
no último mês de abril.
O MPF recebeu a solicitação
de apuração formulada pelos
indígenas em maio. O órgão
solicitou à Secretaria de Estadual
de Educação e ao Ministério da
Educação informações a respeito
do número de escolas indígenas
no município de Carauari, bem
como os nomes e currículos dos
professores indígenas atuantes
naquele o município – que fica
a 780 quilômetros de Manaus,
em linha reta, ou a 1.676,0 quilômetros por via fluvial.
O município de Carauari
está sob a área de atuação da
Procuradoria da República no
Município de Tefé (PRM/Tefé),
que atualmente funciona provisoriamente na Capital.
A secretária de Educação de
Carauari, Leinice Barroso, informou que não houve demissão. “O
contrato com os dois professores
se encerrou em dezembro e eles
não foram aprovados na seletiva
feita em março. Outros dois
professores assumiram, tanto
que não faltam na aldeia os tradutores para que as aulas sejam
bilíngues”, disse Leinice Barroso,
acrescentando que a comuni-
dade não está sem professores.
Para os indígenas, a secretária desrespeitou a legislação
que lhes garante participar da
escolha dos professores. No
documento protocolado no MPF,
eles reclamam que os professores
foram demitidos sem aviso e que
a secretaria ao menos “consultou
as comunidades sobre essas
demissões passando por cima
da organização interna, que tem
direito de participar da escolha
dos professores”.
Os indígenas se amparam
no Parecer 14∕99 - CNE, Resolução n.º 3, de 10/11/1999, do
Conselho Nacional de Educação
e na Constituição Federal de
1988, onde lhes é assegurado o
direito a educação escolar indígena específica e diferenciada,
formação inicial e continuada
aos professores indígenas, que
deve ocorrer em serviço e concomitantemente à sua própria
escolarização. n
Recém nascido Awa Guajá morre sem atendimento médico
Cimi Maranhão
N
Setembro–2013
6
o dia 2 de setembro, morreu
um recém nascido Awa-Guajá,
na Aldeia Tiracambu, localizada na Terra Indígena Caru, no
Maranhão. Não havia atendente de
saúde na aldeia e, segundo informações
do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi), às 15h30 foi solicitado ao Polo
de Santa Inês o envio de um veículo de
transporte urgente, que chegou somente mais de 3 horas depois, quando a
criança já havia falecido. Nos meses de
junho e julho, o movimento indígena do
Maranhão realizou um grande protesto
em defesa da saúde e denunciando as
violações e as mortes na saúde indígena em todo o estado. Cerca de 500
indígenas ocuparam o Distrito Sanitário
Especial Indígena (Dsei), em São Luís, no
dia 24 de junho. Eles denunciaram que
há poucos médicos e não há médicos
indígenas, além de não haver trans-
porte para deslocar os doentes, nem
para fazer o abastecimento dos medicamentos. O Cimi reitera a urgência do
Polo em dialogar com a comunidade
e reforça a demanda dos indígenas
de que as autoridades investiguem a
responsabilidade da Sesai na morte
desta criança. n
Fotos: J. Rosha/Cimi
Ano letivo ainda
sem início nas
escolas indígenas
do Maranhão
País
Afora
Gilderlan Rodrigues da Silva,
Cimi Regional Maranhão
V
iagem em um mar de areia no crepúsculo,
clima nublado, vento soprando frio, pássaros saudando o dia que vem chegando. É
assim que as crianças indígenas dos povos
Ramkokamekar-Canela e Apãniekra-Canela, das
terras indígenas Kanela e Porquinhos, ambas no
município de Fernando Falcão, Maranhão, acordam
para irem à escola.
No entanto, ao chegarem à sala de aula elas se
deparam com uma escola em condições precárias:
faltam banheiros para condições de uso, iluminação, ventiladores, lousa, carteira. A infraestrutura
necessária para que se possa dizer que os indígenas
têm uma escola de qualidade é inexistente.
Os professores e lideranças relatam que as condições de trabalho dos professores não atendem
às necessidades da comunidade e o cargo ainda
serve de moeda para negociação dos direitos com
a Secretaria Estadual de Educação do Maranhão.
Já é final do mês de agosto, início de setembro,
e o ano letivo ainda não começou, porque os professores indígenas somente assinaram os contratos
com a Seduc/MA no mês de maio, ou seja, há dois
meses. Nossa equipe encontrou nas comunidades
alunos que desejam estudar, mas infelizmente estão
impossibilitados.
Os professores denunciam ainda que a falta
de alimentação escolar proporciona evasão escolar: quando os alunos saem para o intervalo, não
volta mais porque têm de providenciar a própria
alimentação.
Quando os alunos terminam o ensino fundamental, e necessitam de documentação para matricularem-se nas escolas dos não indígenas, precisam
recorrer à outra escola. Isso porque as escolas
indígenas desses povos ainda não são reconhecidas. Até o momento não há nenhuma iniciativa da
Secretaria de Educação para reconhecê-las.
A formação de professores não tem acontecido.
Eles relatam que o curso de magistério indígena,
iniciado em 2008, teve apenas quatro etapas e não
tem perspectiva de continuidade. Essa realidade
faz com que os professores indígenas busquem
formação em outros espaços, como é o caso dos
que estão fazendo o curso intercultural na Universidade Federal de Goiás.
Os povos Ramkokamekra-Canela e Apãniekra-Canela têm em suas comunidades setores de roças, que
ficam cerca de 20 quilômetros do centro das aldeias.
Os indígenas denunciam que a falta de transporte
escolar tem prejudicado os alunos, que necessitam
acompanhar seus pais para os setores de roças.
A Secretaria de Educação do Maranhão assinou
em 2011, junto com o Ministério Público Federal,
um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a
finalidade de melhorar a caótica situação da Educação Escolar Indígena no estado. No entanto, muitas
das ações prevista pelo TAC não saíram do papel. n
Povos indígenas ocupam
sede do Dsei de Lábrea (AM)
J.Rosha,
de Manaus (AM)
D
esde as primeiras horas
da manhã de sexta-feira,
13, mais de 80 lideranças indígenas dos povos
Apurinã, Palmari, Jarawara, Madija-Deni e Karipuna ocupam a
sede do Distrito Sanitário Especial
Indígena (Dsei) do Médio Purus,
localizado no centro da cidade de
Lábrea, no sudeste do Amazonas,
distante da capital, Manaus, cerca
de 700 quilômetros. A precariedade no atendimento às aldeias,
a imediata nomeação de Nancy
Filgueiras da Costa para a coordenação do DSEI e a não interferência de políticos na indicação
para aquele órgão, são os principais motivos que à ocupação do
prédio.
Dez funcionários foram orientados pelos indígenas a desocupar
as dependências. Ficaram no local
apenas três funcionários para
liberar combustível utilizado na
remoção de pacientes. O Polo Base
“Chico Camilo”, localizado nos
arredores da cidade, permanece
funcionando para atendimento em
regime de plantão. A manifestação foi decidida
em reunião com a participação
de lideranças da Federação das
Organizações Indígenas do Médio Purus (Focimp), Associação
de Mulheres Indígenas do Médio
Purus (Amimp) e membros do Conselho Distrital de Saúde Indígena
(Condisi).
Os indígenas dizem que desde
julho passado a coordenadora
Fátima Aparecida Silva deixou a
cidade, mas continua oficialmente respondendo pelo órgão. Há
vários meses os indígenas manifestaram descontentamento com
a atuação de Fátima.
O descaso
com a saúde
indígena viola
um direito
fundamental
garantido
a todos os
povos
As comunidades denunciam
que a coordenadora não participou em algumas das conferências
locais de saúde e, naquelas em que
compareceu, não permitiu que os
povos apresentassem propostas
ou se pronunciassem, além de
não acompanhar a situação dos
polos base. Sem coordenação, “o
atendimento à saúde está muito
precário e um exemplo disso é a
falta de condições da Casa de Saúde Indígena – Casai de Lábrea”, diz
João Neri Karipuna, coordenador
do Condisi.
O DSEI do Médio Purus tem
a responsabilidade de atender
aldeias dos municípios de Lábrea,
Tapauá e Canutama, abrangendo
uma população de 8.310 indígenas dos povos Apurinã, Palmari,
Jarawara, Jamamadi, Deni, Suruaha,
HI-merimã, Kokama, Karuipuna, Miranha, Mamori, Manoá e Juma, de
acordo com dados do Condisi. n
Madeireiros invadem aldeia indígena Ka’apor
C
erca de 50 madeireiros
invadiram a aldeia Gurupiuna, Terra Indígena Alto
Turiaçu, do povo Ka’apor,
município de Centro do Guilherme, norte do Maranhão. Na
aldeia Gurupiuna vivem sete famílias, num total de 48 pessoas. A
aldeia foi invadida na última
segunda-feira, dia 26.
Na invasão, os madeireiros agrediram o indígena Gonito
Ka’apor, que somente nesta terça,
27, conseguiu sair da aldeia para
fazer exame de corpo delito. O
Ka’apor tentou registrar ocorrência
na cidade de Governador Nunes
Freire, mas não conseguiu porque
o delegado responsável não estava.
A ação dos madeireiros é em
represália a fiscalização e apreensão de caminhões madeireiros
empreendidas pelos indígenas no
próprio território tradicional. No
ato da invasão da aldeia Gurupiuna, os invasores amarraram e
bateram em indígenas, saquearam plantações e levaram animais. Sem os órgãos públicos responsáveis pelas fiscalizações
atuando, os Ka’apor não vêem
alternativa a não ser a própria
comunidade impedir a ação depredatória. Segundo as informações
dos indígenas, os madeireiros
queimaram duas casas e agrediram indígenas. O povo denuncia
também o desaparecimento de
uma indígena Awá, próximo ao rio
Turi, perto da aldeia Cocal.
O clima é tenso na região. Os Ka’apor temem novas invasões. As famílias buscam refúgio
no mato como esconderijo. Com
medo de novas invasões, indígenas estão sem sair de suas aldeias.
Segundo informações, a Polícia
Federal, IBAMA e Exército se deslocaram para a região.
Desde julho os indígenas
Ka’apor, da aldeia Zé Gurupi,
comunicavam a ação dos madeireiros, que se organizavam para
atacar a terra indígena por conta
da Operação Hiléia, que fechou várias madeireiras e apreendeu vários
caminhões na região (G.R). n
7 Setembro–2013
Em busca do
Bem Viver
Fotos: Cimi Regional Leste/Equipe Itabuna
Resistência
Após séculos enfrentando diversas formas de
esbulho, o povo Xukuru Kariri vive hoje em
oito “ilhas” de resistência dentro do seu próprio
território, que ainda não foi demarcado. Mesmo
sem as condições necessárias para exercer o modo
de vida tradicional, eles estão na contramão do
atual modelo de desenvolvimento predatório.
Patrícia Bonilha,
P
Setembro–2013
8
de Palmeira dos Índios (AL)
ara todo lado que se olha,
mesmo no quintal compartilhado entre uma casa e outra,
o que se vê são pés de banana,
macaxeira, berinjela, maracujá,
tomate, quiabo, abóbora. Um
pouco mais adiante, na horta
em forma de mandala, dá gosto ver a enorme quantidade de hortaliças visivelmente
saudáveis: alface, cenoura, beterraba,
couve, brócolis, couve-flor, dentre outras,
e uma grande variedade de ervas utilizadas
na culinária, como tempero, e outras pelas
suas propriedades medicinais. Descendo
um pouco a serra, as plantações bem
cuidadas de milho, feijão, batata, fava, e
outras mais, oferecem um delicioso espetáculo aos olhos de quem se preocupa com
a preservação da terra, do solo e da água.
Sim, porque, ali, na retomada feita junto à
Fazenda Canto, o povo Xukuru Kariri cultiva
os alimentos, de modo tradicional, sem a
utilização de agrotóxicos, fertilizantes e
outras técnicas agrícolas que contaminam
o meio ambiente, os animais e, como consequência, os próprios indígenas.
Além disso, sabidos do cada vez mais
agressivo monopólio das empresas produtoras de sementes, os indígenas estão
fazendo um banco de sementes, através
do qual poderão garantir a continuidade
das sementes crioulas. Só de feijão, eles
têm várias “qualidades”: guandu, preto, de
vargem roxa, de corda, carioca, mulatinho,
chita fina, rajadinho e o fogo na serra. Alguns deles já sendo produzidos há 15 anos
a partir das mesmas sementes.
Localizadas no município de Palmeira
dos Índios, no agreste do estado de Alagoas, as terras do povo Xukuru Kariri foram
confirmadas como sendo tradicionalmente
indígenas pelo relatório antropológico da
Fundação Nacional do Índio (Funai) em
2008, sendo que a Portaria Declaratória
do Ministério da Justiça foi assinada em
dezembro de 2010. No entanto, elas ainda
não foram demarcadas e a população de
3.217 indígenas se divide em oito “ilhas”
de resistência: as aldeias Fazenda Canto,
Mata da Cafurna, Coité, Serra do Capela,
Cafurna de Baixo, Boqueirão, Serra do
Amaro e Riacho Fundo de Baixo. Estas localidades ocupam uma área não contínua de
1.125 hectares, cercadas por 463 imóveis
incidentes – muitos improdutivos - no território indígena. Como prevê a legislação,
as propriedades avaliadas como sendo de
boa fé deverão ser indenizadas e os seus
ocupantes reassentados.
Apesar dos severos e cotidianos desafios, os Xukuru Kariri conseguem manter
a relação com a terra herdada de seus ancestrais. “A terra, para nós, não é objeto de
negócio, de trocas. É um lugar sagrado que
alimenta nosso sonho, nossa cultura para a
construção do Bem Viver do nosso povo”,
afirmam em uma carta coletiva.
Nesse sentido, metade da área ocupada
por eles é de preservação da Mata Atlântica
(cerca de 200 hectares) e da Caatinga (por
volta de 300 hectares), o que inclui, claro,
seus rios e nascentes. Essencialmente
vinculados à mata, é nela que realizam o
ouricuri, seus rituais espirituais e transcedentais. “É na mata que entramos em
contato com Deus, com a natureza, com os
nossos antepassados. O que vivenciamos
nesses momentos de celebração, mas às vezes também de pesar e dor, trazemos para
o nosso dia a dia como ensinamento e nos
fortalece como povo”, afirma Raquel Santana da Silva, uma das lideranças do povo.
Paradigma de vanguarda
De modo intrigante, o que se vê evidenciado naquelas verdes serras do agreste
alagoano é um interessante paradigma: os
valores e saberes dos antepassados dos
indígenas – o cuidado com a natureza, a
compreensão da integralidade e comunhão
de todos os seres, a fartura, a partilha -
“
A terra, para
nós, não é objeto de
negócio, de trocas.
É um lugar sagrado
que alimenta nosso
sonho, nossa cultura
para a construção
do Bem Viver do
nosso povo
”
estão profundamente sintonizados com
as demandas e necessidades da sociedade
atual que, marcada por um modelo de
desenvolvimento fundamentado na exploração exaustiva dos recursos naturais,
carece de um outro jeito de viver, um outro
projeto político
Nesse sentido, Saulo Feitosa, do secretariado nacional do Cimi, afirma que
nenhum dos modelos econômicos, nem o
capitalismo, centrado no capital, nem o socialismo, centrado no ser humano, aportou
para a sociedade a concepção da natureza
como própria centralidade e como sujeito
de direitos. “A proposta comum do Bem
Viver é a de que o ser humano sai da perspectiva de dominação das outras espécies
e de supervalorização de si mesmo e parte
para uma relação de coexistência e respeito
com os outros seres, incluindo a terra”,
filosofa Feitosa.
O enfrentamento ao modelo hegemônico feito pelo povo Xukuru Kariri, tanto em
relação ao modo de cultivar os alimentos
como ao de preservar a terra, as águas,
o ar e os seres, está sendo feito mesmo
em condições bastante adversas. Por
exemplo, apesar de abastecerem Palmeira
dos Índios com mais de 70% da banana
que é consumida na cidade e fornecerem
alimentos agroecológicos para o Programa
de Aquisição de Alimentos, com Doação
Simultânea, (PAA) e do Programa Nacional
de Alimentação Escolar (Pnae), ambos do
governo federal, devido às disputas pela
terra, os indígenas são alvo de campanhas
difamatórias. Além disso, a comunidade
precisa de mais terra para plantar e precisa
assegurar, com urgência, atendimento de
qualidade na educação e saúde.
Diante das intempéries da vida, dois
experientes líderes dos Xukuru Kariri dão
sinais do espírito que move o povo nesta
luta que, espera-se, seja logo vitoriosa.
Morador de Coité, Francisco Januário dos
Santos, “seu” Chico, de 67 anos, afirma:
“A gente não dá esta importância toda pro
dinheiro e poder. Se a gente se organizar, a
gente vive sem dinheiro. Pra mim, dinheiro
não é o mais importante, nem pra remédio.
Eu sei fazer os remédios que meu pai me
ensinou. O mais importante, pra gente, é
o Bem Viver. É você ter uma vida digna, do
jeito que Deus criou. Por isso, precisamos
nos organizar e ocupar. Ninguém vem em
nosso socorro, não”.
Antônio Selestino da Silva, “seu Tonho”, de 74 anos reforça: “Somos um
povo que sofreu barbáries desumanas. Pra
gente não morrer, tinha que aceitar ser
chamado de caboclo. Eu não sou caboclo,
sou índio. Mas é justamente nas mortes e
desaparecimentos dos nossos filhos e nos
sacrifícios que nos foram impostos que nos
inspiramos. A ambição e o egoísmo não
fazem parte da gente. Nós já somos muito
ricos. Só queremos viver como somos e vamos lutar até conseguir a nossa dignidade”,
conclui emocionado. Lideranças jovens organizadas em uma Comissão Permanente,
que reúne dois representantes por aldeia,
parecem compreender e absorver com
clareza os ensinamentos de vanguarda de
“seu” Tonho e “seu” Chico.
Um longo histórico de resistência
A
primeira retomada das terras tradicionais do
povo Xukuru Kariri foi feita em 1979. Trinta
e um anos depois – período em que muita
luta foi vivida e algumas lideranças assassinadas,
no dia 15 de dezembro de 2010, a área de 7.073
hectares foi reconhecida pelo Ministério da Justiça
como Terra Indígena Xukuru Kariri. Passados três
anos, e mesmo sem nenhuma ação que pedisse
a anulação do processo de homologação, ainda
não foram concluídas a demarcação física, a desintrusão e a entrega definitiva da terra aos seus
ocupantes originários.
A história de luta e resistência dos Xukuru
Kariri por suas terras é secular e repleta de duras
investidas contra a sua própria existência. Em
1700, a Coroa Portuguesa, através de Alvará
Régio, afirmou que uma área de uma légua em
quadra era de ocupação tradicional indígena. Uma
Carta Régia enviada ao Governador da Capitania
de Pernambuco, em 1703, confirmou esta ocupação. A partir da criação do Diretório dos Índios,
em 1757, foram abolidos o uso da língua nativa,
a nudez, rituais espirituais e passou a ser exigido
que os indígenas adotassem sobrenomes tirados
das famílias de Portugal, além de ter iniciado um
severo controle sobre os índios que desertavam
ou fugiam para a mata.
Uma sentença judicial autorizou a demarcação
de 12.320 hectares em 1822. No entanto, em
1872, o Presidente da Província de Alagoas extinguiu os aldeamentos indígenas, transformando
suas terras em domínio público. No centro da área
que os Xukuru Kariri ocupavam, ergueu-se a cidade de Palmeira dos Índios, hoje a terceira maior
em população e extensão territorial do estado.
Em 1952, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI)
adquiriu a Fazenda Canto, com 287 hectares, para
as quase 50 famílias que haviam sido contabilizadas pelo censo. Por ser insuficiente para abrigar a
população indígena, em 1979, foi feita a retomada
da área da Mata da Cafurna, regularizada em 1981,
após um turbulento processo social e jurídico.
M
“Teve épocas que a gente tinha medo de ser índio.
A gente corria porque se não corresse, morria.
A gente vivia com medo de viver”, relata dona
Marlene Santana da Silva, 72, mãe de Maninha,
uma das principais lideranças dos Xukuru Kariri,
já falecida. Dona Marlene participou de cinco
retomadas realizadas por seu povo. Em relação ao
longo processo de demarcação, ela declara com
ar de desesperança “as coisas são tão demoradas
que perdem o sentido”. Cinco Grupos de Trabalho
(GT) foram criados pela Fundação Nacional do
Índio (Funai) a partir de 1988. Várias retomadas,
algumas bastante conflituosas, foram realizadas
nos últimos 30 anos com o objetivo de garantir
as condições de sobrevivência ao grupo. Após 22
anos, a Portaria Declaratória de reconhecimento
da TI Xukuru Kariri foi publicada. No entanto,
desde então (2010), quase nada avançou.
Tamanha demora traz severos prejuízos a toda
a população. Sem poderem viver em suas terras, a
organização social, a segurança alimentar e a preservação dos valores culturais, crenças e tradições
ficam ameaçadas. As políticas públicas garantidas
por lei, como educação e saúde, são praticamente
ausentes ou deixam muitíssimo a desejar. No
entanto, o aumento da violência e dos conflitos
com os não índios parece ser o pior legado que a
não conclusão do processo de demarcação deixa
marcada na história dos Xukuru Kariri.
“Se a Constituição tivesse sido cumprida,
nossas terras tradicionais teriam sido devolvidas e
demarcadas de forma pacífica e não teríamos que
viver em meio a tantas ameaças e correr o risco
de perder nossas próprias vidas para garantir a
efetivação de direitos”, declara José Carlos Araújo
Ferreira, morador de Cafurna de Baixo. Juntamente com Gecinaldo Soares de Queiroz, por terem
sido ameaçados por posseiros da região, eles
foram incluídos, em abril deste ano, no Programa
Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos
Humanos (PNPDDH). Além deles, várias outras
lideranças Xukuru Kariri já foram ameaçadas.
Motivados
pela sabedoria
ancestral e
determinação
dos mais
velhos,
lideranças
jovens Xukuru
Kariri se
reorganizam
em busca da
terra que lhes
pertence: um
outro jeito de
viver
Intromissão de coronéis
esmo de modo letárgico, o levantamento
fundiário - etapa em que se analisam as
posses e benfeitorias dentro da terra indígena, a cadeia dominial, os registros em cartório,
se os títulos são de boa ou má-fé – estava sendo
realizado. No entanto, no dia 16 de agosto a Funai
suspendeu o trabalho que a equipe desenvolvia
em campo. A alegação de falta de recursos do
órgão indigenista não convenceu a comunidade
indígena, já que o empenho de R$ 250.000 havia
sido feito pelo governo federal para garantir a
locação de veículos, combustível, estadia e diária
dos servidores, e apresentado aos indígenas em
reunião com a Funai entre os dias 18 e 20 de julho, em Maceió. Também cabe ressaltar que dos
R$ 23,9 milhões liberados pelo Orçamento da
União para as ações relacionadas à “Delimitação,
Demarcação e Regularização de Terras” no ano
de 2013, apenas R$ 1,9 milhão foi executado,
segundo dados do Ministério do Planejamento.
Os indígenas afirmam que o verdadeiro motivo da suspensão foi a ingerência e pressão política
dos senadores Fernando Collor e Renan Calheiros,
presidente do Senado, do deputado federal Renan Filho, do estadual Edval Gaia e do prefeito
James Ribeiro, sendo que estes dois últimos são
posseiros e invasores da terra indígena. Poucos
dias após uma reunião entre Calheiros e James
Ribeiro com o ministro da Justiça, José Eduardo
Cardozo, e com a ministra-chefe da Casa Civil,
Gleisi Hoffmann, em Brasília, a Funai enviou o
memorando no 876, do Departamento de Proteção
Territorial, para a regional de Alagoas determinando a paralisação do processo de demarcação
que, até a edição desta publicação, não havia sido
retomado. A alegação dos políticos era de que
muitos conflitos estavam acontecendo na área,
o que é negado pelos indígenas.
Esta atitude dos políticos alagoanos reflete
uma ação que vem sendo engendrada nos quatro
cantos do país. Orquestrados pelos interesses
da classe ruralista, os parlamentares brasileiros,
juntamente com os representantes do Executivo e
do Judiciário, vem traçando uma inédita ofensiva
aos direitos indígenas garantidos pela Constituição Federal de 1988. Exemplos disso são as
famigeradas Proposta de Emenda à Constituição
(PEC) 215 e o Projeto de Lei Complementar (PLP)
227, além da proposta defendida pelo governo
federal de mudar o processo de demarcação das
terras indígenas – o que, na prática, os indígenas
sabem, significa tornar ainda mais difícil o reconhecimento dos direitos dos povos originários às
terras que lhes pertencem. n
9 Setembro–2013
Luta pela terra
RETOMANDO O QUE É NOSSO!
Cansados de esperar que o governo federal cumpra as determinações da Constituição
Federal em relação às demarcações de seus territórios tradicionais, os povos Tupinambá de
Olivença, na Bahia, Xakriabá, em Minas, e Kadiwéu, no Mato Grosso do Sul, retomam
áreas cujos processos estão paralisados nas gavetas de gabinete, geralmente devido a
pressões políticas. Como consequência dessa morosidade ocorre o aumento de ameaças e
da violência contra os povos indígenas.
Povo Kadiwéu
retoma fazenda em
área demarcada há
113 anos
Por Renato Santana,
de Brasília (DF)
C
erca de 300 indígenas do povo Kadiwéu retomaram no final de agosA morosidade
to uma das 24 fazendas incidentes
do governo
em 160 mil hectares da terra indígena
para demarcar
demarcada em 1900 e homologada em
terras
indígenas
1984, no município de Porto Murtinho,
causa
na região do Pantanal do Mato Grosso do
desinformação
Sul. Apesar da demarcação ter acontecido
e aumento do
há mais de um século e a homologação
preconceito e
da violência
há quase três décadas, a desintrusão da
contra os
área nunca ocorreu.
povos
A terra tradicional Kadiwéu possui um
total de 538,5 mil hectares. Ao contrário
do noticiado por alguns veículos de imprensa, de acordo com os indígenas, a
fazenda retomada estava sem nenhuma
cabeça de gado. “O fazendeiro que é
invasor, não a gente. A terra já é demarcada, e há muito tempo”, disse uma das
lideranças que preferiu não se identificar
por falar em nome de toda comunidade.
Em outubro do ano passado, os Kadiwéu,
depois de retomarem quase toda a totalidade do território invadido, tiveram
que sair de suas terras por força de uma
reintegração de posse.
Conforme a liderança, os indígenas
foram recebidos a tiros pelos seguranças
de uma empresa privada, contratada pelo
fazendeiro. Como eram muitos, os Kadiwéu conseguiram desarmar os indivíduos.
Pistolas, revólveres calibre 38 e armas de
grosso calibre, além de farta munição e
duas motos, foram apreendidos e entregues aos servidores da Fundação Nacional
do Índio (Funai).
“Achamos até algemas com jagunços
para prender o índio. Como isso acontece
com a terra sendo nossa há tanto tempo?
Governo tem de tirar esses invasores
daqui. Não queremos o gado deles e
nem nada deles, mas apenas nossa terra.
Kadiwéu lutou por Brasil em guerra,
agora Brasil responde assim?”, desabafa
a liderança indígena.
Ao menos 30% do território indígena
está invadido. Do total de hectares da
Setembro–2013 10 terra homologada, ou seja, de proprie-
dade da União, quase 160 mil são usados
na pecuária. As invasões dos fazendeiros
ocorrem pelo menos desde a década de
1950. Relatos dão conta de que tanto o
Serviço de Proteção ao Índio (SPI) quanto
a Funai oficializavam a ocupação territorial, arrendando a terra aos pecuaristas.
Histórico da terra
Documentos históricos comprovam
que o território dos Kadiwéu foi doado
a eles ainda no Segundo Império, por
Dom Pedro II, como recompensa pela
participação dos indígenas, ao lado do
Brasil, na Guerra do Paraguai, em 1864.
No início do século 20 a terra foi demarcada, com outros decretos ratificando
os limites. Contudo, as pressões sempre
cercaram a vida dos Kadiwéu. Centenas de
posseiros ocupavam as terras; invasores
registravam, de forma irregular, títulos de
propriedade em cima de áreas indígenas,
no nome de terceiros, em cartórios de
municípios vizinhos; órgãos governamentais de proteção arrendavam terras
a grandes fazendeiros. Por fim, inúmeras
incursões jurídicas e pressões políticas
dos fazendeiros arrendatários para a expulsão dos Kadiwéu do próprio território.
O processo de demarcação, homologação e registro do território dos Kadiwéu
foi finalizado pelo governo federal em
1984. Naquele ano, os pecuaristas, que
se encontravam dentro dos limites da TI,
ajuizaram ação para discutir a nulidade
da demarcação. De um total de 585 mil
hectares, entaram em litígio 155 mil - registrados em nome da União, de usufruto
exclusivo dos indígenas, mas ocupados
por cerca de 120 fazendas de gado. Desde
1987, tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação que nunca foi julgada.
Casas Tupinambá são incendiadas;
Portaria Declaratória está atrasada
Por Renato Santana,
de Brasília (DF)
E
nquanto a Portaria Declaratória da
Terra Indígena Tupinambá de Olivença, extremo sul da Bahia, segue
sobre a mesa do ministro da Justiça, José
Eduardo Cardozo, sem publicação há mais
de um ano, o município de Buerarema,
contíguo ao território tradicional, foi alvo
de atos violentos promovidos por grupos
ligados aos invasores da terra indígena.
No início de setembro, indígenas foram
roubados enquanto se dirigiam à feira
e oito casas foram queimadas. O atendimento à saúde indígena foi suspenso.
Em contraste ao que aconteceu em
Buerarema, a Serra do Padeiro, parte da
terra indígena, não registrou distúrbios
ou violências no mesmo período, apesar
do estado de atenção. Sobretudo nas
áreas das 40 fazendas retomadas pelos
indígenas, sem nenhum conflito – razão
pela qual as elites política e latifundiária
incitaram os atos violentos contra os
indígenas. “Dizem que virão para cá
esbagaçar tudo. Estamos em alerta, mas
tranquilos”, declarou uma liderança indígena, que terá a identidade preservada
por segurança.
As oito casas identificadas como moradias de Tupinambá foram incendiadas,
em Buerarema, sob o olhar passivo da
polícia. Os imóveis estavam desocupados
no momento dos ataques. Móveis foram
lançados à rua e queimados, eletrodomésticos saqueados e a orientação era para
nenhum Tupinambá circular pela cidade.
Comerciantes também não podiam vender aos indígenas. Quem desrespeitou
teve o estabelecimento destruído. Moradores ligados aos Tupinambá foram
agredidos.
As informações foram obtidas por
fontes indígenas e textos publicados por
blogs ligados aos fazendeiros. A imprensa
foi praticamente proibida pelos vândalos
de trabalhar na região, como atestou em
nota o Sindicato dos Jornalistas da Bahia,
depois que dois profissionais da TV Santa
Cruz foram ameaçados. A onda de violência começou depois de 40 retomadas
terem sido realizadas pelos Tupinambá
na Serra do Padeiro, parte da terra identificada como tradicional.
Trechos da BR-101, na altura dos municípios de Buerarema e de São José da
Vitória, foram barrados por manifestantes
e ao menos três veículos do Poder Público
foram incendiados, entres eles do Incra e
da Secretaria Especial de Saúde Indígena
(Sesai). A destruição seguiu para Buerarema, onde a sede do Banco do Brasil e
patrimônios públicos foram vandalizados.
Lá um acampamento foi erguido às portas
da prefeitura. Conivente, a polícia assistiu
aos atos de violência e afirmou não poder
intervir dada a quantidade de pessoas
envolvidas, conforme relatos.
Portaria Declaratória
Para lideranças indígenas, o Ministério da Justiça precisa publicar a
Portaria Declaratória e dar continuidade
Povo Xakriabá retoma território
já reconhecido e sofre ameaças
Patrícia Bonilha e Renato Santana
de Brasília (DF)
N
ao procedimento de demarcação para
a violência arrefecer. “Porque aí todos
teriam informações. O que acontece é a
desinformação. Tem gente para ser reassentada, outros para serem indenizados.
Tem produtor que já solicitou indenização. O ministro tem de parar de ouvir
político, se pautar por eleições”, ressalta.
A Terra Indígena Tupinambá Serra do
Padeiro é uma das sete, espalhadas pelo
país, engavetadas pelo ministro Cardozo,
que poderiam ter a Portaria Declaratória
publicada.
As recentes retomadas na Serra do
Padeiro se intensificaram depois que o
ministro da Justiça declarou à delegação
Pataxó e Tupinambá, em Brasília, durante
o mês de agosto, que não assinaria a
Portaria Declaratória porque o governo
federal seria processado – violando assim
a norma de encaminhar a portaria 30 dias
depois de recebida. Cansados de esperar,
os Tupinambá foram às retomadas. Por
sua vez, o governo
Jacques Wagner autorizou, de forma inconstitucional, a ação
das polícias estaduais
nas reintegrações de
posse. Tudo conspirava pela explosão da
violência.
E ela não tardou.
Na noite do dia 14,
um caminhão transportava crianças e
adolescentes da escola para as aldeias,
quando um homem
não identificado desferiu vários disparos
contra o veículo. Nin-
guém foi atingido, mas dois jovens acabaram feridos pelos estilhaços de vidro.
Os indígenas especulam que o alvo era o
irmão do cacique Babau, proprietário do
caminhão. Ameaças de morte voltaram à
tona contra os Tupinambá e o direito de
ir e vir passou a ser limitado nas cidades
do entorno da terra indígena.
A agenda eleitoral, no entanto, parece
ser mais um elemento na conturbada conjuntura no extremo sul baiano e no país.
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, passou a suspender os procedimentos
de demarcação em busca de mesas de
diálogo, sempre atendendo aos pedidos de políticos da região sob conflito
fundiário. “Essas mesas são verdadeiros
balcões eleitorais, negociação de apoios
regionais”, analisa o secretário adjunto do
Conselho Indigenista Missionário, Saulo
Feitosa. Para o indigenista, o governo
trata o direito dos povos indígenas como
barganha eleitoral.
o dia 1º de setembro, cerca de 300
indígenas Xakriabá retomaram
mais uma parte do seu território
tradicional. A área retomada é a Fazenda
São Judas, que possui 6.000 hectares e
está localizada na comunidade denominada Vargem Grande, na região do Vale
do Peruaçu no município de Itacarambí,
no norte de Minas Gerais. A Fundação
Nacional do Índio (Funai) iniciou os estudos de identificação dessas áreas no
ano de 2007. O estudo antropológico de
identificação e o levantamento fundiário
das áreas reivindicadas já foram concluídos e constataram que a área é indígena.
No entanto, os procedimentos de publicação e demarcação ainda não foram
efetuados. Esta não publicação tem sido
motivo de um acirramento dos conflitos
na região. Com o objetivo de garantirem
os seus direitos, os indígenas reivindicam
a publicação imediata do Relatório de
Identificação da TI Xakriabá e a efetiva
regularização do território tradicional
do seu povo.
No dia seguinte à ocupação, o fazendeiro Pedro Luiz Cezarine, juntamente
com seus dois filhos, chegaram de avião
particular nas proximidades da fazenda.
O clima ficou bastante tenso pois, mesmo
na presença de policiais militares, os ditos
proprietários da fazenda fizeram sérias
ameaças aos índios, dizendo que se eles
não se retirassem de forma pacífica “a
coisa poderia ficar feia”.
Segundo o coordenador do Conselho
Indigenista Missionário (Cimi) Leste,
Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira,
a Confederação Nacional da Agricultura
(CNA), que tem um escritório em Itacarambí, tem incitado os fazendeiros a
reagir com violência contra os indígenas.
“O processo de estudo da área e o levantamento de benfeitorias vinha caminhando
com celeridade até o início de 2012 mas, a
partir da investida da CNA, o processo parou”, afirma ele. Oliveira conta ainda que
a CNA contratou uma antropóloga para
fazer um laudo contestando o relatório da
própria Funai. “Este laudo foi enviado à
Funai em abril deste ano. Ele foi feito pela
mesma antropóloga fazendeira do Mato
Grosso do Sul que fez estudos contra os
Guarani Kaiowá, afirmando que as áreas
que eles ocupam não é terra indígena”,
acrescenta.
No dia 9 de setembro, uma liminar
que concedia reintegração de posse à
família Cezarine foi suspensa pela Justiça
Federal a pedido de procuradores gerais
da República. Eles demonstraram ao juiz
da 2ª Vara Federal, que em menos de três
horas havia deferido o pedido de reintegração favorável ao fazendeiro Pedro
Luiz Cerize, a complexidade do conflito
fundiário deflagrado. O juiz, então, revisou sua decisão.
Apesar de novas ameaças terem
sido feitas aos indígenas pelos membros
da família Cerize após a suspensão da
liminar, o fazendeiro enviou cerca de 20
caminhões para Itacarambí com o intuito
de retirar o gado. Na cidade, de acordo
com apoiadores dos Xakriabá, o ambiente
é hostil aos indígenas.
Em ato simbólico, os Xakriabá apagaram o nome da fazenda de uma das placas
da antiga propriedade e escreveram no
lugar Terra Indígena Xakriabá. No final
da última semana, teve início a retirada
das 3 mil cabeças de gado do território
tradicional.
Chacina Xakriabá
As retomadas
passam a
ser a única
alternativa
dos povos no
sentido de
recuperarem
as terras que
são suas por
direito
Há 26 anos, em 11 de fevereiro de
1987, três lideranças Xakriabá foram
brutalmente assassinadas por grileiros
invasores da terra indígena. O massacre
ocorreu na aldeia Sapé, município de São
João das Missões, e vitimou o vice-cacique
Rosalino Gomes de Oliveira, de 42 anos,
e outros dois indígenas, Manuel Fiúza da
Silva e José Pereira Santana.
“O sangue de Rosalino fecundou a
terra e alimentou a luta do povo. A área
Xakriabá foi totalmente liberada de posseiros e grileiros. Os assassinos de Rosalino
foram condenados e cumpriram pena na
prisão”, escreveu, em 2006, Fábio Alves
dos Santos, o Fabião, ex-missionário do
Cimi, advogado e professor da PUC-MG.
A terra foi homologada, com 46.414
hectares, em 1989. Porém, a demarcação
ocorreu antes da Constituição de 1988 e
não abarcou a totalidade do território,
perto de 100 mil hectares, conforme
estudos antropológicos. Como metade
da área ficou fora, os Xakriabá passaram
a reivindicar os territórios exclusos. Em
2000, conseguiram mais uma área, chamada de Rancharia. Agora os indígenas
estão mobilizados para fechar o total da
terra indígena e exigem que o Ministério
da Justiça complete o procedimento.
Para as lideranças Xakriabá, o sangue
de Rosalino germinou as lutas recentes. À
margem de ameaças e da morosidade do
governo federal sobre as novas retomadas
e demandas, os Xakriabá repetem o que
a liderança assassinada em 1987 dizia:
“Eu prefiro ser adubo, mas sair daqui
não vou”. n
11 Setembro–2013
Relato
Garimpos ilegais em terras Yanomami
Egydio Schwade
Casa da Cultura do Urubuí
A
companhando uma equipe de
TV alemã, tive a oportunidade
de presenciar uma incrível e
heróica ação de um grupo de
Yanomami na retirada e destruição de
garimpos ilegais em suas terras. Cansados de esperar que o Estado brasileiro
cumpra seu dever de proteger as suas
terras, essa gente se arrisca em defesa
de seu povo, território e da natureza,
que é a garantia de suas e nossas vidas
e culturas.
Doze índios Yanomami, metade
armada de arco e flecha e metade com
velhas espingardas, espólio de garimpos já destruídos, com o apoio de três
funcionários da Fundação Nacional do
Índio (Funai), mais Floriano, cineasta de
São Paulo, Daniel, da TV alemã, Erick de
Manacapuru e eu como convidados. O
objetivo da expedição era a destruição
de mais dois garimpos nos confins de
suas terras, próximo à Venezuela. Um
pouco mais de uma hora de voo num
velho Cesna, mais dois dias de viagem
em três pequenas embarcações e uma
hora e meia de caminhada pela floresta
e estávamos todos diante do primeiro
garimpo em plena atividade com o “tu,
tu, tu” de seus dois possantes motores
em pleno funcionamento, puxando
lama e água por sobre um jirau. E lá
no fundo do buraco seis garimpeiros
mourejando no barro.
Era aproximadamente uma hora da
tarde quando oito índios cercaram os
garimpeiros e deram o grito de guerra,
enquanto os quatro restantes ficaram
escondidos no entorno para surpreender
algum fugitivo. Apenas um reincidente
tentou a fuga, mas foi imediatamente
cercado e capturado. Os prisioneiros foram conduzidos até um rancho coberto
de lona plástica. Ali ficaram guardados
por quatro Yanomami e seus pertences
examinados por um funcionário da
Funai, enquanto os demais se dirigiram
imediatamente em direção a outro
garimpo não muito distante dali, pois
se ouvia nitidamente a batida de mais
motores. Ali se repetiu a cena e mais
cinco garimpeiros foram presos.
Propostas
legislativas,
como o PL
1610 e o
PLP 227,
pretendem
abrir as terras
indígenas para
a mineração:
retrocesso
histórico
Seguiu-se a destruição dos equipamentos, iniciando pelos motores. Para
isto serviram picaretas e machados
encontrados ali mesmo. Depois os jirais
de lavagem, mangueiras e os tapetes de
coleta do ouro. E finalmente, a queima
dos barracos. O mercúrio encontrado
com os garimpeiros foi entregue para
os agentes da Funai para ser levado às
autoridades como prova de mais um
crime ambiental.
Com todos os demais pertences dos
garimpeiros ensacados como espólio,
os índios iniciaram um verdadeiro processo pedagógico de reeducação dos
garimpeiros para que ninguém deles
mais ousasse repetir a ação ilegal na
qual estiveram envolvidos.
Sempre de armas na mão, agora
com mais duas espingardas apreendidas, reuniram os prisioneiros.
Apesar do avançado da hora e a
grande distância a ser ainda vencida até
a aldeia, dois tuxauas fizeram um longo
discurso, no qual lhes descreveram o
mal que estavam praticando a seu povo,
poluindo as suas águas e depredando a
sua floresta, seus rios e caça. Finalizaram com advertências e ameaças caso
voltassem de novo. Mas esta primeira
etapa do processo de reeducação terminou com um ato de humanidade: a
soltura de um dos garimpeiros para que
procurasse a sua mulher, a única mulher
no meio do grupo, que apavorada com
os gritos dos índios na hora do ataque
se embrenhara na floresta. Exigiram, entretanto, que o mesmo se apresentasse
ao tuxaua de determinada aldeia e no
Posto da Funai. Na caminhada de volta
até as embarcações, coube a eu carregar
uma cartela de ovos do espólio.
Desanimados com a lentidão ou
omissão das autoridades policiais,
os índios estão tomando a arriscada
iniciativa da expulsão dos garimpeiros
de suas terras. Aos 78 anos de idade,
acompanhando apenas como elemento
de apoio, sem arma nas mãos, pude
testemunhar como seria fácil para o
Ministério da Justiça cumprir seu dever de acabar com os garimpos ilegais
Ouça o Potyrõ
Todos os sábados e domingos, às 12h35,
dentro do Programa Caminhos da Fé, na rádio Aparecida.
Setembro–2013
12
A transmissão é para todo o Brasil.
820 kHz
nas terras indígenas, este angustiante
problema de tantos povos nesta região
amazônica.
Mas ao contrário, está aí o flagrante
de dezenas de deputados federais da
base aliada, integrados na bancada
ruralista, tramando com o tal PLP de número 227/2012, como os portugueses e
espanhóis o fizeram durante todo o período colonial, contra as leis do Estado
e contra a consciência da humanidade,
saqueando as riquezas minerais dos
povos indígenas e transferindo-as aos
países ricos como commodities.
De Roraima me dirigi à outra reserva
indígena. Desta vez ao Leste do Pará, a
reserva do Alto Guamá dos índios Tenetehara. Acompanhando o Tuxaua Valdeci, aquele que em dezembro último foi
notícia nacional, quando sobreviveu a
um ataque e tentativa de sequestro de
invasores e cultivadores de maconha no
município de Nova Esperança do Piriá.
Escapou embrenhando-se pela floresta,
onde permaneceu escondido durante
três dias. A floresta da reserva já está
em 50% destruída por madeireiros que
também já detonaram toda a mata ao
redor da Terra Indígena, inclusive ao
longo dos rios e igarapés. Agora ameaçam o que restou das áreas indígenas
do Alto Guamá e Rio Capim. Para o
governo flagrar os invasores não é necessário grande esforço. Basta alguns
funcionários trafegarem pela estrada
de terra de Paragominas até a aldeia do
Cajueiro dos índios Tenetehara ou, de
dia mesmo, sair de Paragominas rumo
ao Rio Capim, atravessar a balsa e já se
defronta com a destruição instalada em
enormes serrarias ou, ambulante, sobre
carretas carregadas com montanhas
de toras.
A covardia do Governo na defesa
dos povos e populações necessitados
de um mínimo de auxílio raia a inutilidade desse poder de Estado, quando se
trata dos direitos dessa gente. Deixem
suas modernas armas em mãos dos índios que eles mesmos farão o que é dever primeiro do Exército e da Polícia: a
defesa dos mais fracos e da Constituição
do país. Que desenvolvimento é esse
que destrói o ambiente, o bem viver
dos povos e o futuro da humanidade? n
Também estamos on line pelo portal www.a12.com
Tapajós
Renato Santana,
de Brasília (DF)
D
epois de intervenção protagonizada pelo Poder Público
de Jacareacanga, município ao
sul do estado do Pará, durante
reunião do povo Munduruku, em agosto, caciques e lideranças afirmam, em
nota pública, que o povo Munduruku
seguirá contrário à construção de usinas hidrelétricas no rio Tapajós, cujas
águas cortam o território indígena e
se barradas inundarão aldeias, áreas de
subsistência e locais sagrados do povo.
Para as lideranças Munduruku,
o governo federal e demais grupos
interessados, que usam a prefeitura
e os vereadores para dividir o povo e
facilitar a entrada do projeto de usina
hidrelétrica no Tapajós. “Querem colocar pessoas que são a favor (da usina)
para ter o controle. Fizeram reunião
para enviar relatório ao governo”, denuncia Jairo Saw, porta-voz do cacique
geral Munduruku. No último dia 3 de setembro, foi
convocada uma reunião para avaliar o
movimento de resistência aos projetos
da usina. Cerca de 83 caciques desceram das aldeias para Jacareacanga.
“A pauta dizia que era para avaliar os
últimos acontecimentos do movimento. Era para fortalecer a luta contra
os grandes projetos e a organização
dos Munduruku de uma forma geral”,
explica Saw. Porém, o prefeito da cidade, Raulien Queiroz, filiado ao PT, policiais
fortemente armados, vereadores e assessores políticos garantiram a inversão
da pauta: o encontro passou a ser para
mudar a direção da Associação Pusuru.
Capangas proibiam registros fotográficos, quem chegasse era revistado e
faixas contra o projeto hidrelétrico
foram proibidas de serem abertas.
A Associação Pusuru se tornou um
dos principais instrumentos do povo
Munduruku de mobilização contra
empreendimentos hidrelétricos nos
rios da Amazônia. Entre abril e maio, os
Munduruku ocuparam por duas vezes o
principal canteiro da UHE Belo Monte,
no rio Xingu, e em junho realizaram
manifestações em Brasília e detiveram
a ação de técnicos que trabalhavam
no interior do território indígena para
preparar relatório ambiental em prol
da construção da usina. Protestaram
também na Câmara dos Vereadores de
Jacareacanga, reivindicando um posicionamento contrário dos edis ante o
Fotos: Antonio Cruz/ABr
Caciques e lideranças Munduruku denunciam intervenção
do governo federal para forçar construção de usina
projeto hidrelétrico do governo federal. Todas as ações foram criticadas
pelo prefeito durante a reunião, sem
possibilidade de defesa por parte dos
Munduruku. “Os caciques e lideranças
não foram permitidos de falar e o tempo estava restrito em poucos minutos.
Não existe isso em nossas reuniões.
A maioria não entendeu o que estava
sendo discutido, porque era para se discutir outra coisa”, destaca Jairo Saw. Na
nota, o movimento aponta que o golpe
foi dado por políticos da cidade que visam acabar com a resistência ao projeto
hidrelétrico, mas que “não conseguiram
acabar porque somos maioria”.
Maria Leusa Munduruku acabou
retirada da Associação Pusuru, da qual
era vice-presidente. Passou cerca de
dois meses fora da aldeia, entre as
ocupações ao canteiro de Belo Monte e
as mobilizações de Brasília. Sempre foi
contra a usina e presenciou o secretário
de Assuntos Indígenas de Jacareacanga
ameaçando de que não garantiria o
combustível dos barcos para a volta
das lideranças às comunidades se as
faixas contra a usina não fossem retiradas. “O cacique com quem ele falava
se intimidou. Eram muitos policiais,
capangas. Fomos todos pegos de surpresa”, afirma.
Estratégia que vem de cima
Não é a primeira vez que o Poder
Público de Jacareacanga é usado como
via de acesso para a imposição de projetos nas terras Munduruku, aquém às
vontades e opiniões do povo. Em agosto de 2011, representantes da empresa
Celestial Green, ligada ao mercado de
carbono e REDD, se reuniram com vereadores para assinar um contrato que
concedia direitos de uso absoluto das
terras indígenas à empresa durante 30
anos. Os Munduruku não aceitaram,
denunciaram às autoridades e negaram
qualquer trato. Para Jairo Saw, a situação presente
não é diferente: o governo federal age
pelo Poder Público local para impor o
projeto de usina nas terras do povo. “A
ideia do governo é acabar com a nossa
cultura, dividir o povo e fazer a integração social do índio na sociedade que o
governo controla. Se o Munduruku está
reagindo é para manter a cultura; se o
povo se aquietar é porque desapareceram as tradições e a língua”, explica o
assessor do cacique geral. Em junho, os
Outro ponto destacado por Saw é o
Munduruku
local da reunião. Para ele, a armação covieram a
meça quando foi decidida a cidade para
Brasília
afirmar sua
o encontro. “Eles (prefeito e vereadores)
posição
tinham medo de que acontecesse nas
contrária à
construção da
aldeias e as lideranças se revoltassem
hidrelétrica no
com a atitude dos vereadores. Em JacaRio Tapajós.
reacanga eles podiam chamar a polícia
Ministro
Gilberto
a qualquer momento, intimidando os
Carvalho
caciques e lideranças”, analisa Saw. O
afirmou que
encontro foi arcado, segundo a lideranesta posição
é ruim para
ça, pelos próprios gestores municipais.
o governo e
Dos 83 caciques presentes, apenas seis
para eles
tiveram direito a fala.
Num outro sentido, as lideranças
Munduruku apontam a ingerência dos
vereadores indígenas. Saw explica que
mesmo que eleitos com votos Munduruku, os parlamentares indígenas
não representam o povo e tampouco
podem falar e decidir pelo povo, tal
como aconteceu na questão do contrato com a Celestial Green e agora no caso
da construção da usina. A decisão dos
Munduruku é uma só: contra qualquer
usina nos rios da Amazônia, sobretudo
no Tapajós.
“Então eles precisam respeitar isso.
Governo federal tem que discutir com a
gente, nossa opinião é que vale. Da outra vez foi a mesma coisa: Paulo Maldos
(da Secretaria Geral da Presidência da
República) se reuniu com os vereadores,
enquanto os caciques ficaram esperando
por ele na aldeia Sai Cinza”, frisa Saw.
Os vereadores indígenas alegaram
que o movimento Munduruku, em suas
ações, sobretudo na retirada dos técnicos do interior da terra indígena, “passa
por cima” do cacique geral. Saw rechaça
a acusação: “Assessoro o cacique geral
e ele acompanha o movimento de resistência, assim como os outros caciques.
Inclusive ele esteve presente aqui em
Jacareacanga para que os guerreiros
mantivessem o controle e ele ter como
orientar”. n
13 Setembro–2013
Resistentes
Elaine Tavares Jornalista
E
Durante o
processo de
colonização
que quase
os dizimou,
membros do
povo Charrua
foram levados
para a França
e expostos
como “bichos
de circo”
m 1626 é a vez da chegada dos
jesuítas que começam a criar
missões para aldear os Charrua.
O objetivo era domesticar e converter. Os guarani foram mais suscetíveis
ao discurso e a ação dos jesuítas, mas os
charrua não quiseram nem saber. Eram
homens e mulheres livres, acostumados
aos caminhos da pampa e não houve
quem pudesse prendê-los, ainda que com
discursos de salvação. Diz a história que
chegou a existir uma pequena redução
charrua, em torno de 500 almas, mas não
durou mais que quatro anos. Os charrua
prezavam a liberdade e, acossados pela
invasão branca, acabavam por realizar operações de saque nos povoados, em busca
do fumo e da erva-mate. Por conta disso
a relação com os colonizadores se acirrava
cada vez mais. Naqueles dias começavam a
surgir as estâncias, e o gado deixava de ser
solto nas pradarias, sendo recolhido em
grandes currais. Assim, os animais livres
escasseavam e os indígenas perdiam sua
fonte de sobrevivência, passando a viver
em estado de miséria. Sem terra, sem gado
e sem comida, só restava o roubo.
Para os espanhóis e criollos que
começaram a ocupar as terras da Banda
Oriental, aquela “indiarada” começou
a ser um problema e tanto. Era preciso
exterminá-los. Foi nesse contexto que
aconteceu a famosa “batalha de Yi” em
1702, quando os espanhóis decidiram
encerrar a aliança que mantinham com
os charrua e os minuano, e resolveram
matar todo mundo. Para isso, de forma
perversa, contaram com a ajuda dos guarani, os quais já mantinham aldeados há
anos. E o resultado foi que mais de 200
charrua pereceram sob o exército de dois
mil guarani. Outros quinhentos, levados
como prisioneiros para as missões, foram
assassinados pelos tapes, também orientados pelos jesuítas e chefes espanhóis.
Era o que os espanhóis chamavam de
“limpeza dos campos”. Na metade do
século muitos tinham sido passado pela
faca e as mulheres e crianças mandadas
a Buenos Aires e Montevidéu servindo
como domésticas. Ainda assim, vários
grupos resistiram e seguiram vagueando
pelos campos, vivendo de contrabando
de gado e roubo.
Artigas, os charrua e a
independência
São esses valentes que o jovem
José Artigas vai encontrar nas cercanias
das terras onde vivia com os pais, na
imensidão da campanha gaúcha. Desde
bem guri ele fugia para as tolderias e
aprendia com os charrua o valor da vida
em liberdade. Aprendeu suas táticas de
guerra, sua cultura, sua forma comunitária de viver. Quando então, finalmente,
Setembro–2013 14 saiu de casa para não mais voltar, foi
viver de aventuras como contrabandista
de gado. Abdicando de ser um “filho de
fazendeiro” era com os irmãos charrua
que ele vagueava pelos campos na única
rebelião possível naqueles dias: pegar os
espanhóis pelo bolso. Em 1897, quando
decide entrar para o batalhão de Blandengles, Artigas já tem muito claro os seus
objetivos. Inspirado por tantas lutas que
assomaram contra o domínio espanhol,
Artigas decide que, junto com os negros
e índios – os mais explorados entre os
explorados – vai comandar a luta pela
independência da Banda Oriental.
E é assim que as coisas acontecem.
O soldado Artigas não é um soldado
qualquer. Ele pensa e propõe. Tem do
seu lado uma leva de homens livres que
o seguem de livre vontade. Não como um
líder, mas como a um irmão. Acreditam
nele e nos seus desejos de vida digna,
de terra repartida, de vida comunitária.
Esse legado, aprendido com os charrua,
é o que vai comandar toda a proposta
artiguista de libertação. E é na valentia
indígena que acontece a primeira grande
batalha de Artigas, na comunidade de Las
Piedras, em 1810. Armados apenas de
facas, os comandados de Artigas colocam
para correr os soldados bem armados da
coroa. Depois disso, são inúmeras as páginas da guerra, com Artigas e seu grupo
de índios e negros, aos quais chamava de
“povo de heróis”. Com eles, praticava a
política da soberania popular e da autodeterminação, gestando uma consciência de
classe, de pertencimento, que se manteve
firme até o massacre final. Nos acampamentos comandados por Artigas todas
as coisas eram discutidas abertamente,
cada soldado, cada mulher, cada ser, tinha
direito a voz e voto. Era essa gente que
deliberava, Artigas apenas cumpria. No
primeiro grande êxodo, quando o povo
seguiu com ele pelo lado norte do rio Uruguai, Artigas chegou a criar uma entidade
sociológica, a qual dizia obedecer. Era o
“povo oriental em armas”. Nunca traiu
os seus companheiros e com eles levou
a Banda Oriental à liberdade.
Mas, a história da libertação desta
parte do sul do mundo tem também os
seus traidores, que acabaram sendo os
carrascos de Artigas e dos charrua. Logo
depois da independência, os interesses
da elite criolla foram se consolidando e
“aquela gente suja” que andava com Artigas acabou virando uma pedra no sapato.
Ninguém queria que as ideias de reforma
agrária, democracia e autodeterminação
vingassem por ali. A revolução artigista
representava uma transformação radical
nos métodos e práticas de governo. A
prioridade era a ação direta do povo. As
comunidades elegiam seus representantes de forma livre e era nas assembleias
que se discutiam os temas relevantes da
nação. Este sistema foi cunhado como o
“sistema dos povos livres”. Pela primeira
vez, depois da conquista europeia, o
– PARTE II
Fotos: Arquivo/UFSC
Levanta o povo Charrua
território voltava a ser das gentes. E a
proposta defendida por Artigas era tão
avançada que ele conseguia manter
unidos os povos originários e os descendentes espanhóis sob o mesmo desejo:
criar uma pátria nova, livre, soberana,
onde cada um tivesse o mesmo poder. Era
coisa demais para as elites locais e para
os que sonhavam em dominar a região,
rica em carne e couro.
Foi aí que começou a se gestar o processo de destruição de Artigas e de seu
povo. Através de intrigas e difamações, o
comandante é escorraçado do Uruguai,
partindo para o exílio no Paraguai. Com
ele seguem dezenas de famílias charrua,
decididas a compartilhar sua derrota.
Mas, outros tantos permanecem no
território uruguaio e passam a ser vistos
como um perigo em potencial. Eram
homens livres e não haveriam de aceitar
a perda das terras e de todo o ideário
construído com Artigas. O presidente
da nação recém-criada, Fructuoso Rivera
decide então chamar os charrua para uma
armadilha.
Corre o ano de 1831, num cálido abril,
quando Fructuoso envia convites a todas
as tolderias charrua para um encontro
em Salsipuedes. Pede a ajuda dos indígenas para defender as fronteiras contra
os portugueses. Os charrua acorrem,
solícitos, em defesa da pátria oriental, a
qual aprenderam a amar como sua. Eles
chegam, armam seus toldos e esperam
pelo presidente. Ele nunca chegaria.
Durante a noite, enquanto os indígenas
dormem, o exército ataca. A ordem é
matar todo mundo. Nenhum charrua
deve sair vivo. O que se vê na manhã
seguinte é um banho de sangue. O povo
charrua está exterminado. Os poucos que
restam vivos são vendidos como escravos.
A nova nação se vê livre do incômodo: o
valente povo charrua que, na verdade, foi
o protagonista da liberdade. Entre os “escravos” levados para
Montevidéu seguem Vaimaca, Senaqué,
Tacuabé e Guyunusa, que dois anos mais
tarde são levados como “bichos de circo”
para a França. Subsumidos como criados e
perdidos de sua liberdade o povo charrua
originário do Uruguai vai se apagando, até
deles não restar mais vestígios. Alguns
poucos homens que sobrevivem ao massacre de Salsipuedes, comandados pelo
cacique Sepé atravessam o rio Uruguai
pela cidade de Quaraí, e passam para
o lado português, indo, mais tarde, se
integrar às colunas do exército farrapo
que iniciou a luta pela independência na
região do Rio Grande do Sul. Misturados
aos minuanos e tapes, eles irão escrever
páginas gloriosas no chão brasileiro, mas,
igualmente derrotados, também desaparecem na poeira da história.
O fim?
Até o final do século XX era dado
como certo que o povo charrua era uma
gente extinta. Dela restava só a memória
daqueles anos longínquos da independência. Mas, pouco a pouco, pessoas foram se
deparando com suas raízes, descobrindo
seus ancestrais. Descendentes da gente
charrua que passou para o Paraguai com
Luto
Lucinda e Adelayde: missão,
simplicidade e testemunho
Carlos Alberto dos Santos Dutra,
Indigenista, professor e escritor
“Q
Artigas, do grupo que cruzou o rio Uruguai e veio para o Brasil, dos que sobreviveram como escravos ou empregados
domésticos. A história charrua voltou a
ser contada, palavras da língua original
começaram a ser lembradas e a vida
brotou. O povo charrua foi assomando
nos descendentes e hoje já são milhares
os que se autodenominam assim. Há uma
organização do povo charrua no Uruguai
e outra no Rio Grande do Sul. Não há um
território específico sendo reivindicado
ainda, mas já se sabe que no início de
1900 havia um pequeno grupo fixado na
região de Tacuarembó, no Uruguai, bem
como atualmente há um grupo vivendo
em comunidade próximo à Porto Alegre.
Para os descendentes o mais importante agora é recuperar a história. O povo
do Uruguai precisa saber que só é livre
porque um dia o povo charrua se levantou
em armas, junto com Artigas, e defendeu
as fronteiras ajudando a criar a nação. O
povo do sul precisa saber que os charrua
foram enganados, massacrados, mas ainda assim deixaram viva a sua marca. Não
é sem razão que na entrada de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a estátua que
representa a cidade é uma figura que é
ue tristeza uma notícia dessas
no dia dos religiosos” nos lembra o amigo Padre Lauri Vital
Bósio. A tragédia ocorrida na
tarde de sexta-feira, dia 16 de agosto
último, senti a mesma dor e aperto no
coração ao saber do fato. Duas religiosas, Lucinda Moretti e Adelayde Furlanetto, que pertenciam a Congregação
Irmãs de São José de Chambéry, foram
vítima de acidente de trânsito na BR163, a três quilômetros do perímetro
urbano do município de Juti, no sentido
Naviraí, em Mato Grosso do Sul.
As irmãs Lucinda, de 71 anos,
e Adelayde, de 77 anos, “deixaram
marcas na região Sul do Estado no
trabalho em favor dos indígenas e na
defesa dos pequenos proprietários
rurais. Desde a década de 70 em Mato
Grosso do Sul, Lucinda foi uma das
pioneiras da CPT (Comissão Pastoral
da Terra) e idealizadora da Feira da
Semente Crioula, em Juti”, nos lembra
Lidiane Cober. A perda dessas duas
batalhadoras missionárias do Reino de
Deus, que deixaram sua terra natal lá
no Rio Grande do Sul — Feliz e Garibaldi –, para dedicarem-se, pelo CIMI,
na luta em favor dos povos indígena
e campesinos, está sendo sentida
por toda a comunidade de Glória de
Dourados, Fátima do Sul, Caarapó, Juti
e Dourados, onde suas ações são por
demais conhecidas.
Sob a poeira da estrada e lá a
vemos, Irmã Adelayde, sempre ativa e
zombando da idade – o que dava inveja
a muito jovem –, atuando no distrito da
Nova Casa Verde, em Nova Andradina,
entre os deserdados da sorte. O amigo
Vanilton relata que, na ocasião do acidente, elas retornavam de uma aldeia
indígena: iam ao sitio de um amigo para
pegar fertilizante natural.
Quem conhece as estradas que
margeiam sítios e chácaras na região
um misto de paisano e charrua. O famoso
“laçador”, apesar de um semblante bem
paisano, aparece com o xiripá, a vincha
na testa e a boleadeira, elementos típicos
da cultura charrua.
E, hoje, já na metade da primeira
década do século vinte e um, os charrua
se levantam e se mostram. Tanto que no
dia 9 de novembro de 2007, após uma
luta que já durava 172 anos, a Câmara
Municipal de Porto Alegre reconheceu a
comunidade charrua como um povo indígena brasileiro. Considerado extinta pela
Fundação Nacional do Índio (Funai), essa
foi uma vitória fundamental. O evento
foi organizado em conjunto pelas comissões de Direitos Humanos da Câmara
Municipal, da Assembleia Legislativa e do
Senado Federal.
Há informações de que existem mais
de seis mil charrua nos países que compõem o Mercosul. Só no Rio Grande do
Sul, são mais de quatrocentos índios presentes nas localidades de Santo Ângelo,
São Miguel das Missões e Porto Alegre. A
terrível sentença de Fructuoso Rivera não
se cumpriu. O povo que dominava todo
o território da Banda Oriental não foi
exterminado. Ele vive e avança! n
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de Dourados e sul do Estado, pontilhada de pequenas propriedades de
agricultores familiares, acampamentos rurais e aldeias indígenas, sabe
que o progresso é veloz e pouco se
apercebe dos que estão à sua volta. Os
passos lentos e sadios da esperança,
que andava de Gol, e lançava amiúde
sementes do Reino para um justo
amanhã, entretanto não é páreo para
velozes caminhonetes Rangers XLS
e o frescor da juventude. Conforme
apurado pela reportagem do Caarapó
News, o veículo foi jogado a mais de
30 metros do local da colisão. As irmãs
eram muito queridas pelas famílias
assentadas da reforma agrária, noticia
a Imprensa. Elas moravam nesses assentamentos auxiliando as mulheres e
as crianças.
Viviam de modo humilde, levando
o carisma da ordem, espiritualidade
e lutando por melhores condições de
vida. Na Pastoral da Terra, cita Lilian
Donadelli, elas desenvolviam projetos
voltados à educação ambiental, de
forma participativa, incentivando a
conservação de espécies existentes na
área do assentamento, além de ensinar
a multimistura rica em vitaminas para
fortalecer a imunidade das crianças e
adultos. Perdem, assim, os povos indígenas e os sem-terra de Mato Grosso
do Sul, as irmãs Lucinda Moretti e Adelayde Furlanetto que foram sepultadas
no domingo (18.8.), em Garibaldi-RS,
dia em que se comemora o dia das
vocações religiosas.
Os municípios de Juti e Carapó,
hoje, estão de luto, em especial a
aldeia indígena Te’ yikue onde a
Irmã Lucinda prestava seu abnegado
trabalho pastoral. O Mosteiro de São
José de Garibaldi haverá de dobrar os
sinos de lamento e glória, pela partida
dessas duas missionárias que deixaram sua terra, e hoje, temos certeza,
se encontram na terra definitiva de
Ñhanderú, ao lado da Assunta Virgem
Maria. n
[email protected]
FORMA DE PAGAMENTO:
BANCO BRADESCO – Agência: 0606-8 – Conta Corrente: 144.473-5
CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO
Envie cópia do depósito por e-mail, fax (61-2106-1651) ou correio e especifique a finalidade do mesmo.
P
Ass. anual: R$ 60,00
Ass. dois anos: R$ 100,00
R
E
Ç
O
*Ass. de apoio: R$ 80,00
S
América Latina: US$ 50,00
Outros países: US$ 70,00
* COM A ASSINATURA DE APOIO VOCÊ CONTRIBUI PARA O ENVIO DO JORNAL A DIVERSAS COMUNIDADES INDÍGENAS DO PAÍS.
15 Setembro–2013
OS MANAO ENFRENTAM A CRUZ E O CANHÃO
Benedito Prezia
Historiador
E
mbora os Manao tenham ficado
conhecidos na História do Brasil
pela luta de Ajuricaba e, sobretudo,
pelo nome que legaram à capital
do Amazonas, muito pouco se sabe
sobre eles. Eram de língua aruak,
grandes guerreiros, tendo sido acusados de
antropofagia, embora tal prática nunca tenha
sido comprovada.
Em 1727 espalharam-se pelos afluentes
do médio rio Negro, embora muitos tenham
aceitado viver nas missões dos carmelitas, que
ocupavam a região Norte.
A chegada do governador Francisco Xavier
de Mendonça Furtado, irmão do Marquês
de Pombal, significou a implantação de uma
política mais independente, cujo objetivo era
ampliar as fronteiras da colônia e diminuir o
poder das missões.
O Diretório Pombalino, de 1757, concretizou esse projeto, acabando com os aldeamentos missionários, que se tornavam vilas
portuguesas. Os indígenas foram considerados
livres, portanto, cidadãos portugueses, mas
de 3ª. classe, pois a metade deles, dos 13
aos 60 anos, era obrigado a trabalhar para
os colonos, que nem sempre os remuneravam. Para suprir a mão de obra indígena,
o governador estimulou a aquisição de
escravos africanos, alegando que
eram mais aptos ao trabalho “sistemático”. Mas pouco resultado
deu, pois um escravo importado
APOIADORES
Setembro–2013
16
custava quatro ou cinco vezes mais do que um
escravo indígena.
Outra iniciativa desse governador foi criar a
capitania de São José do Rio Negro e a capital
ser implantada na vila de Barcelos, no médio
rio Negro, para garantir uma ocupação mais
efetiva dos rios Negro e Branco, que cortavam
regiões disputadas pelos holandeses. A nova
povoação só se manteve graças à aliança com
lideranças indígenas Baré, Kawaricenas, Karajá e Manao, como Kaboquena, cuja aldeia,
próxima a Barcelos, foi transformada na vila
de Moura.
Ainda era grande o controle dos missionários sobre os indígenas, o que provocava constantes reclamações, algumas vezes violentas.
Foi o que aconteceu com Domingos, liderança
Manao, morador de Lamalonga. Irritado com
a interferência de um missionário, que o obrigava a separar-se de uma concubina, decidiu
expulsar o religioso. Articulado com outros
indígenas cristãos, como João Damasceno,
Ambrósio e Manoel, no dia 1º de junho de
1757 invadiram Moura, entrando na casa paroquial. Não encontrando o frei, a residência foi
saqueada. Em seguida a igreja foi igualmente
invadida e os ornamentos e vasos do
culto foram levados. Por fim, a vila
foi incendiada.
Buscou articular-se com mais lideranças
não catequizadas e aldeadas, como Uanokasari
e Mabé. Quatro meses depois, a 24 de setembro, atacou a vila de Moreira. Apanhados de
surpresa, vários portugueses foram mortos,
inclusive duas lideranças emblemáticas: o
carmelita Fr. Raimundo de Santo Eliseu, líder
espiritual, e o cacique Kaboquena, o intermediário dos invasores.
Dois dias depois a aldeia de Bararoá, que
mantinha um destacamento militar de 20
homens, foi igualmente tomada. Houve uma
debandada geral, inclusive de seu comandante, João Teles de Menezes e Mello, que
se escondeu nas matas vizinhas. Como nos
ataques anteriores, a igreja foi saqueada e a
cabeça da imagem de Santa Rosa, quebrada,
sendo colocada como troféu na proa de uma
das canoas.
Animados com essas vitórias, buscaram
um projeto maior: a invasão de Barcelos. Por
causas desconhecidas, os preparativos e as
alianças para o ataque demoraram para acontecer, podendo o governador ser avisado. De
Belém mandou importante reforço, que salvou
da destruição a capital e todo projeto de ocupação do rio Negro,
levando os Manao a desaparecerem pela repressão e pela
mestiçagem*.
* Essas informações foram colhidas do Diário
da Viagem de Francisco Xavier Ribeiro de
Sampaio, ouvidor e intendente da Capitania
do Rio Negro, realizada em 1774-1775
(Lisboa, 1825).

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