Revista Desenbahia - Governo do Estado da Bahia
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Revista Desenbahia - Governo do Estado da Bahia
REVISTA DESENBAHIA Revista semestral editada pela Agência de Fomento do Estado da Bahia S.A. DESENBAHIA PAULO GANEM SOUTO Governador da Bahia WALTER CAIRO DE OLIVEIRA FILHO Secretário da Fazenda do Estado da Bahia DESENBAHIA Conselho de Administração Walter Cairo de Oliveira Filho (Presidente) Augusto de Oliveira Monteiro Armando Avena Filho Eduardo Oliveira Santos Fátima Freire de Oliveira Santos Vladson Bahia Menezes Conselho Fiscal Julival Manoel da Silva (Presidente) Ana Elisa Ribeiro Novis Eudaldo Almeida de Jesus Francisco A. M. de S. Miranda Waldemar Santos Filho Diretoria Vladson Bahia Menezes (Presidente) Luiz Fernando Chaves da Motta (Dir. de Administração e Finanças) Caio Márcio Ferreira Greve (Dir. de Desenvolvimento de Negócios) Paulo Antônio Neto Ribeiro (Dir. de Operações) Comissão Editorial Adelaide Motta Lima Carmen Lúcia Castro Lima Edgard Porto Ramos Vera Spinola Vitor César Ribeiro Lopes Coordenação Editorial Ana Georgina Peixoto Rocha Revisão de Texto Dina Beck Tradução Mariana Santana Assessoria Téc. de Comunicação (AST-COM) Assessora Maria José Quadros Assistentes João Paulo Fonseca de Carvalho Marcelo Gentil Espinheira Secretária Lilia Oliveira da Silva Apoio Leonardo Daniel Filho Projeto Gráfico e Editoração Solisluna Design e Editora Os conceitos e opiniões emitidos nos artigos publicados são de exclusiva responsabilidade de seus autores. É permitida a reprodução total ou parcial dos artigos desta publicação, desde que citada a fonte. Av. Tancredo Neves, nº 776, Pituba, Salvador, BA CEP 41.820-904 Tel. 55 71 3103.1000 Fax 55 71 3341.9331 R327 Revista Desenbahia, v. 2, n. 4, mar., 2006.Salvador: Desenbahia, Solisluna, 2006. ISSN 1807-2062 1.Economia-Bahia-Periódicos. I. Desenbahia. CDD-330 Ficha Catalográfica elaborada pela bibliotecária Genilda de Oliveira Santana – CRB 5/482 SUMÁRIO 5 Apresentação 7 Taxa de juros em operações de microcrédito: taxas subsidiadas versus taxas de mercado MARCELO C. MESQUITA DE SOUZA 27 Reformas microeconômicas, ajustes institucionais e oferta de crédito: uma análise da nova Lei de Falências no Brasil LUIZ MARQUES DE ANDRADE FILHO E VÍTOR SANTOS 47 Intermediação financeira e desenvolvimento econômico: as visões keynesianas LUIZ RICARDO CAVALCANTE 65 A evolução da política industrial da Bahia: uma abordagem institucionalista ANTÔNIO GLAUTER TEÓFILO ROCHA 83 O novo enigma baiano, a questão urbano-regional e a alternativa de uma nova capital MARCUS ALBAN 101 Reflexos da globalização na distribuição espacial dos investimentos industriais privados no estado da Bahia EDSON A. SILVA SOBRINHO 113 Municípios baianos em destaque: três vias de desenvolvimento local no estado da Bahia ADELAIDE MOTTA DE LIMA E VÍTOR LOPES 137 Estudo da indústria do gás natural e seu inter-relacionamento com o setor elétrico na Bahia: perspectivas e potencialidades DANIEL PRATES E GEORGES ROCHA 157 Desafios ao fortalecimento da cadeia do algodão: o caso da Região Oeste VERA SPÍNOLA E MARCELO XAVIER Apresentação A questão do desenvolvimento baiano, considerada sob variados aspectos e abordagens, constitui o cerne deste quarto número da Revista Desenbahia. De fato, seis dentre os nove artigos que ora publicamos tratam de assuntos ligados diretamente à economia do estado, seja na tentativa de lançar alguma luz sobre um ou outro tema ainda obscuro ou para apontar alternativas merecedoras de análises mais aprofundadas. Esses artigos versam sobre a evolução da política industrial da Bahia no contexto político e institucional do estado nas últimas décadas; os reflexos da globalização na distribuição espacial dos investimentos industriais privados no estado; as vias de desenvolvimento local adotadas por municípios baianos de porte médio – Ilhéus, Juazeiro e Vitória da Conquista; a disparidade entre o dinamismo econômico e o desenvolvimento social e humano na Bahia; os desafios ao fortalecimento da cadeia do algodão, com enfoque no oeste baiano, e sobre as estruturas da indústria de gás natural e do setor elétrico no estado e a relação entre esses segmentos. Dentre os outros trabalhos, dois estimulam o debate sobre o crédito e um terceiro faz uma reflexão acerca da relação entre as atividades de intermediação financeira e o desenvolvimento econômico, a partir das visões keynesianas. Na área do crédito, um dos artigos defende a utilização de taxas de juros de mercado nos programas de microcrédito, como forma de alcançar maior eqüidade no acesso ao capital e assegurar a sustentabilidade das instituições financiadoras. Há ainda uma análise dos possíveis impactos da nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas em relação à oferta de crédito na economia brasileira. Uma pauta tão diversificada nos leva à feliz constatação de que o pensamento econômico continua vivo nos meios técnicos e acadêmicos, com os quais a Desenbahia procura estreitar cada vez mais os laços no cumprimento de sua missão como agente de fomento. Do mesmo modo, nos é especialmente gratificante registrar que boa parte dos trabalhos publicados nesse número provém de técnicos e pesquisadores da própria Desenbahia ou que tiveram passagens pela instituição, e que, desse modo, procuram contribuir com sua experiência para subsidiar políticas de desenvolvimento do estado. Vladson Menezes Presidente da Desenbahia 6 | Taxa de juros em operações de microcrédito: taxas subsidiadas versus taxas de mercado 1 TAXA DE JUROS EM OPERAÇÕES DE MICROCRÉDITO: TAXAS SUBSIDIADAS VERSUS TAXAS DE MERCADO Marcelo C. Mesquita de Souza* Resumo O microcrédito tem estado em evidência, nos últimos anos, como instrumento capaz de contribuir para a redução da pobreza, através da manutenção ou geração de ocupação e renda, na medida em que permite a pequenos empreendedores, não assistidos pelo sistema financeiro tradicional, o acesso ao crédito, fator importante para a manutenção e desenvolvimento do seu negócio. Este artigo questiona a utilidade de taxas subsidiadas, incompatíveis com a estrutura de custos da operação, em programas de microcrédito. Procura demonstrar que a eficácia em atingir o objetivo de uma maior equidade, no acesso ao capital, é menor do que a que se alcançaria utilizando taxas de juros de mercado. Palavras-chave: Microcrédito. Taxa de Juros. Subsídio. Sustentabilidade. Equidade. Abstract Microcredit has been in evidence over the last years as an instrument useful to contribute to poverty reduction by preserving or generating jobs and income, as it enables small entrepreneurs, not benefited by the traditional financial system, in getting access to credit, which is an important factor for the maintenance and development of their business. In this article the authors question the utility of subsidized rates, non-compatible with the cost structure operations in micro credit programs. It also intends to demonstrate that the efficacy in reaching higher equity in the access to capital is lower than the one that could be reached using the market interest rates. Key-words: Microcredit. Interest Rate. Subsidized. Sustainability. Equity. * Mestre em Engenharia da Produção, Administrador, Professor Universitário e Gerente de Microfinanças da Desenbahia. E-mail: [email protected] Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 7 Introdução O microcrédito pode ser definido como um empréstimo de pequeno valor, dado a empreendedores de baixa renda. É uma maneira de potencializar o desenvolvimento de pequenos negócios, através de crédito para indivíduos que, pelo baixo nível de formalização de seus negócios, ou pela inexistência de garantias, não conseguem acessar crédito junto às instituições tradicionais do sistema financeiro. Ou seja, além de pequeno valor, o crédito é direcionado especificamente para a camada da população de mais baixa renda, em geral excluída do sistema financeiro convencional, e em especial os microempreendedores do segmento informal da economia (MARTINS et al, 2002; PARENTE, 2002). O público-alvo do microcrédito é, predominantemente, composto por donos de empresas que realizam uma atividade econômica autônoma, muitas vezes informal e, geralmente, autofinanciada através de poupanças próprias ou de parentes e amigos. São pessoas que conhecem bem seu ramo de atividade e cuja orientação é voltada primordialmente para o sustento de sua família, sem grandes expectativas de crescimento. Por isso a maior parte da demanda por microcrédito destina-se a capital de giro para cobrir dificuldades momentâneas de liquidez ou utilizar chances de eventuais negócios favoráveis (NITSCH; SANTOS, 2001). As definições de microcrédito, de forma geral, convergem a um ponto comum, que é o fato desse tipo de operação de crédito ser direcionado para um público que ainda não tem acesso ao sistema financeiro tradicional. É importante ressaltar isso, para deixar claro qual é o público-alvo, já que este é, muitas vezes, confundido com os empresários de micro e pequenos negócios, já formalizados e com acesso ao crédito, que operam valores superiores aos que são característicos das operações de microcrédito1, e para os quais outras metodologias creditícias são mais adequadas. O grande benefício, portanto, como instrumento de política pública, que o microcrédito pode proporcionar é a inclusão econômica de milhões2 de pessoas, que se encontram à margem do sistema financeiro tradicional, e quanto maior 1 Valores médios das operações de microcrédito, em 2001, para o Brasil: de R$ 1.443,39 para giro e R$ 1.500,77 para ativos fixos. Fonte: IBAM – Instituto Brasileiro de Administração Municipal – Sistema de Informações de Microfinanças no Brasil – Indicadores. Disponível em: <http://www.ibam.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm>. Acesso em: 01 nov. 2005. 2 Estudo da Organização Internacional do Trabalho – OIT estima a existência de 14 milhões de clientes potenciais e 6 milhões de clientes prováveis (MEZZERA; GUIMARÃES, 2003). 8 | Taxa de juros em operações de microcrédito: taxas subsidiadas versus taxas de mercado for o número que passa a ter acesso a um crédito formal maior terá sido sua eficácia. No que diz respeito à influência do nível da taxa de juros no número de inclusões alcançado, não obstante predominar, na literatura especializada, o entendimento de que a prática de taxas de juros de mercado é a mais eficaz,3 há, também, aqueles que propoem o subsídio à taxa de juros aos tomadores finais como única forma de ampliar o acesso dos pequenos negócios ao crédito. A visão predominante é a de que o principal gargalo para o acesso ao crédito para os microempreendimentos está na falta de uma oferta adequada em termos de volumes, prazos, custos e facilidade de contratação e, não, na taxa de juros. Esta representa apenas parte dos custos com empréstimos e, em operações de pequeno valor, os custos de transação e oportunidade acabam sendo mais relevantes. Por outro lado, há os que acreditam que a barreira de acesso ao crédito, pelos microempreendedores, é, sim, o nível das taxas de juros cobradas pelos bancos (SANTOS et al, 2004). Ao se falar de pequenos empreendedores, da população de mais baixa renda, de excluídos do sistema convencional, parece contra intuitivo – e o público, em geral, tem dificuldade de entender – por que, nesses pequenos empréstimos, feitos a empreendedores de micronegócios, geralmente são cobradas taxas mais elevadas que em operações de maior valor, realizadas pelos bancos comerciais. Esclarecer a população a respeito do por que da necessidade de taxas de juros relativamente mais elevadas em microcrédito é importante; compartilhar essa compreensão com aqueles que fazem política pública, é essencial. No relatório The Profile of Microfinance in Latin America in 10 years: Vision & Characteristics da ACCION International, publicado em abril de 2005, essa questão é colocada como fundamental ao desenvolvimento do microcrédito e como uma questão que ainda não é tratada de modo efetivo em alguns países (MARULANDA; OTERO, 2005). Este artigo revisa a literatura especializada atual, expondo alguns pontos fundamentais sobre o impacto do nível da taxa de juros no microcrédito, em um maior ou menor alcance, na inclusão econômica. Inicia revisando alguns pontos relativos aos custos de uma operação de crédito, que fazem com que as taxas de juros praticadas no microcrédito devam ser superiores às de outras operações creditícias. A segunda seção analisa a capacidade de pagamento dos microempreendimentos para suportarem essas taxas. A seguir, a terceira 3 Ver Marulanda; Otero, 2005; Duval, 2004; Helms; Reille, 2004; BACEN, 2003; GoodwinGroen, 2003; ICCAPE, 2002; Rosemberg, 2002; Nichter et al, 2002; Bruett et al, 2002; Hollis; Sweetman, 1998. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 9 seção analisa as conseqüências dessa intervenção no mercado, especificamente sobre duas formas: o estabelecimento de limites máximos para as taxas praticadas e a utilização de taxas subsidiadas. Finalmente, na quarta seção, apresentam-se as conclusões, que levam a ratificar a prática de taxas livres de mercado como mais eficaz ao desenvolvimento do microcrédito. Por que as taxas de juros das operações de microcrédito são mais altas que as taxas de algumas operações praticadas por bancos comerciais? Nesta seção procura-se rever alguns pontos da formação do custo em uma operação de crédito. Particularmente a influência de custos fixos, não proporcionais ao montante do crédito nas operações de baixo valor, do alto custo operacional da metodologia do microcrédito e da influência da perda, por inadimplência, no custo final da operação. No custo total de uma operação de crédito existem fatores que são proporcionais ao montante emprestado, tais como o custo de captação dos recursos, provisão para perdas por inadimplência e impostos. Porém outros são componentes fixos e, portanto, independem do montante emprestado, fazendo com que quanto menor seja o valor do empréstimo, maior seja o seu custo (SANTOS, 2005; SANTOS et al, 2004). Nas operações de microcrédito, o custo se torna ainda mais alto pelo fato de que os clientes geralmente não possuem histórico creditício, nem garantias, e freqüentemente moram em áreas remotas, às vezes de difícil acesso, onerando as visitas de avaliação e manutenção realizadas in loco pelo agente de crédito, peça fundamental na metodologia do microcrédito. O contato direto do agente de crédito é o grande diferencial dos programas de microcrédito produtivo orientado; entretanto essa é uma estratégia de custo elevado, que vai em sentido contrário às estratégias dos bancos, que estão reduzindo custos através do aumento da informatização e automação de serviços e redução de pessoal (VILELA; AGUIAR, 2004; GOODWIN-GROEN, 2003). O CGAP (Consultive Group to Assist the Poorest) apresenta uma forma simples de cálculo da taxa de juros efetiva para ser utilizada pelas instituições de microcrédito (ROSEMBERG, 2002). A taxa efetiva de juros anualizada (R) a ser cobrada nas operações de microcrédito é função de cinco elementos, representados como percentuais da carteira média de empréstimos: 1. Despesas Administrativas (DA) 2. Perdas por Inadimplência (PI) 10 | Taxa de juros em operações de microcrédito: taxas subsidiadas versus taxas de mercado 3. Custo de Fundos de Empréstimos (CF) 4. Taxa de capitalização desejada (K) 5. Renda do Investimento (RI) Despesas Administrativas: Incluem todos os custos anuais recorrentes, a exemplo de salários, benefícios, alugueres, depreciação e manutenção. Devem ser inclusos, também, todas as mercadorias e serviços que a operadora disponha atualmente de forma gratuita (doações) – treinamento, assistência técnica, gestão – que, apesar de não serem pagos agora, no futuro terão de ser pagos para que a operadora possa crescer e manter-se independente de subsídios e donativos. Perda por Inadimplência: Taxa anual das perdas decorrentes de empréstimos incobráveis. Custo de Fundos de Empréstimo: Esta taxa não se refere ao custo atual dos fundos e, sim, à projeção para mercado futuro dos custos dos fundos para a operadora, que está crescendo, além da dependência de doações ou subsídios. Deve-se considerar não só o custo da captação, mas também o custo do capital próprio. Custo de Captação: Deve ser calculado através da média ponderada dos diversos recursos disponíveis para empréstimos no futuro. Isso é, projetando uma situação de crescimento futura, através de um custo médio de captação para tomadores com mesmo nível de risco. Pressupõe a diminuição de aportes, a baixas taxas, por parte de agentes doadores de recursos, à medida que a operadora cresce. Custo de Capital Próprio: Para o propósito de cálculo do Custo de Fundos de Empréstimo, é a diferença entre a Carteira de Crédito e as obrigações. Em outras palavras, é a parte da carteira de crédito bancada com recursos próprios. Rosemberg (2002) sugere o uso da taxa de inflação projetada, desde que a inflação represente a perda real do poder aquisitivo do capital da operadora. Taxa de Capitalização: Representa a margem de lucro real (acima da inflação), que a operadora tem como meta, expressa como porcentagem da carteira de crédito média. O reinvestimento do lucro é fundamental para o crescimento da instituição, na medida em que o montante de recursos externos que a operadora pode levantar (emprestar) com segurança é função (depende) do volume de recursos próprios que ela dispõe. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 11 Receita de Investimentos: A receita esperada de aplicações financeiras, feitas com recursos temporariamente em caixa. Em artigo intitulado “Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado”, divulgado no site da agência de informação Mastercred, Idalvo Toscano estima as despesas administrativas das operadoras (formatadas como ONG – Organização Não-Governamental ou OSCIP – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) em torno de 35% da carteira ativa anual média (TOSCANO, 2005). Supondo-se uma perda em torno de 5% ao ano e um custo de captação de 9,75%4 e admitindo-se, ainda, a não existência de taxa de capitalização (o que pressupõe o não-crescimento) e uma receita de investimento de 3%. A instituição necessitaria praticar uma taxa de 49,21% ao ano, ou 3,39% ao mês. Observa-se que o exercício anterior supõe o não-crescimento (sem taxa de capitalização) da instituição, o que, por conseqüência, impedira um aumento de escala e otimização de custos. Pressupõe, ainda, acesso a funding, considerado barato para os padrões de mercado. O que talvez venha a corroborar o fato de que missões de rating realizadas com algumas instituições brasileiras tenham revelado que a maioria delas cobra taxas de juros insuficientes para garantir sua sustentabilidade (NICHTER et al, 2002). Em função do elevado custo operacional relacionado à concessão do microcrédito, no contexto internacional, de forma geral as instituições operadoras de microcrédito praticam taxas mais elevadas que as dos bancos tradicionais em suas operações comerciais, como forma de garantir sua sustentabilidade (NICHTER et al, 2002). E somente assim podem prover, de forma permanente, acesso ao crédito a milhões de pessoas que, hoje, estão excluídas do sistema financeiro tradicional. Portanto, praticar uma taxa de juros adequada, que garanta essa sustentabilidade, favorece a manutenção da equidade na oferta de capital. Contrariamente, praticar taxas que não permitam a autosustentação da instituição operadora, fatalmente levará esta ao encerramento prematuro de suas atividades, reduzindo, dessa forma, a oferta de capital àqueles que não estão no target das instituições financeiras convencionais. Os microempreendedores suportam pagar altas taxas de juros? Colocada, então, a questão do custo e da sustentabilidade, que justificam as taxas de juros serem superiores nas operações de microcrédito em relação a 4 Taxa de Juros de Longo Prazo – TJLP, em novembro/2005. 12 | Taxa de juros em operações de microcrédito: taxas subsidiadas versus taxas de mercado outras de maior valor, é pertinente saber se, para os microempreendedores, as taxas praticadas são viáveis e, mais, se permitem, a estes, se beneficiarem da alavancagem financeira, já que, se isso não for verdade, perde o sentido a atividade exercida pelas operadoras de microcrédito. Para analisar o impacto das taxas de juros nesses pequenos empreendimentos é preciso fazê-lo no contexto dos custos totais envolvidos no acesso ao crédito. Além dos custos financeiros, explícitos sobre a forma da taxa de juros, de taxas administrativas e de comissões, deve-se considerar, ainda, os custos de transação e de oportunidade. Por custos de transação entende-se todos os gastos decorrentes do processo de obtenção de crédito, tais como despesas com obtenção de certidões, cópias de documentos, despesas com transportes relacionadas à obtenção do crédito, saque do dinheiro e pagamentos etc. E o custo de oportunidade refere-se à geração de renda perdida em função da obtenção do crédito por motivos de ausência no negócio para tratar do crédito, tempo gasto para levantar os documentos necessários à formulação do pedido e a não-obtenção da receita decorrente da falta de crédito. A taxa de juros, portanto, é apenas um dos diversos elementos no custo de acesso ao crédito e, nem sempre, é o mais significativo para o tomador. Normalmente os empreendedores de baixa renda consideram o acesso ao crédito mais importante que o custo financeiro real decorrente desse crédito (GOODWIN-GROEN, 2003). De fato, “os preços costumam ser a primeira consideração da instituição de crédito e possivelmente a última consideração dos clientes de microfinanças” (BRUETT et al, 2002, p. 80). Como exemplo5 comparativo desses custos, imagine um feirante que vende, em média, R$ 200,00 por dia e cujo custo da mercadoria é de R$ 120,00; portanto, seu lucro bruto é de R$ 80,00 por dia. Agora, imagine que este feirante recorra a um banco para conseguir um empréstimo de R$ 800,00 para ser utilizado como capital de giro. Para conseguir esse empréstimo, teve que ir ao banco duas vezes e, para tanto, gastou oito passagens de ônibus. Foi solicitado, do feirante, cópias de documentos e preenchimento de fichas cadastrais e dados do negócio. O crédito então foi concedido, desde que o feirante mantivesse uma conta corrente, movimentada por cartão, o que gera tarifas de cartão e manutenção da conta. Esses custos são chamados de custos de transação e estão discriminados na Tabela 1. 5 Adaptado de Vilela e Aguiar, 2004. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 13 TABELA 1 EXEMPLO DE CUSTOS DE TRANSAÇÃO Custos de transação Custo Unitário Unidades Custo Total R$ R$ R$ R$ 8 6 1 6 meses R$ 13,60 R$ 0,90 R$ 8,00 R$ 30,00 R$ 52,50 Transporte Cópias de documentos Tarifa do cartão Tarifa de manutenção da conta corrente Custo Total 1,70 0,15 8,00 5,00 O custo de oportunidade é decorrente de dois meio-períodos que o feirante se ausentou do seu local de trabalho para tratar da operação, deixando, portanto, de vender e, conseqüentemente, tendo uma redução de renda da ordem de R$ 80,00 (um dia = dois meio-períodos). Se o banco cobra do cliente uma taxa de 3% ao mês, o valor presente do custo financeiro seria R$ 75,956. O custo total da operação seria de R$ 208,45, dos quais quase 64% são custos de transação e oportunidade, conforme descrito na Tabela 2. TABELA 2 EXEMPLO COMPARATIVO DOS CUSTOS DE ACESSO AO CRÉDITO Custos de acesso ao crédito Custo de Oportunidade Custo de Transação Custo Financeiro Custo Total R$ % R$ 80,00 R$ 52,50 R$ 75,95 R$ 208,45 38,4% 25,2% 36,4% 100% A metodologia do microcrédito permite a redução dos custos de transação e de oportunidade do tomador de crédito, diminuindo ao máximo a burocracia e fazendo com que o agente de crédito vá até ao cliente evitando seu deslocamento e conseqüente ausência do trabalho, havendo, portanto, uma compensação entre o custo financeiro e os de transação e oportunidade. Os empreendedores populares reconhecem, claramente, a redução dos custos de transação e oportunidade no acesso ao crédito, pela estratégia de operação do microcrédito produtivo orientado (VILELA; AGUIAR, 2004). 6 O custo financeiro foi calculado como o valor presente dos juros pagos em seis parcelas mensais pelo sistema Price, a fim de trazer todos os custos para a mesma data, permitindo a comparação. 14 | Taxa de juros em operações de microcrédito: taxas subsidiadas versus taxas de mercado Uma boa perspectiva para analisar a capacidade de pagamento dos microempreendimentos, é observar os custos financeiros, decorrentes das operações de microcrédito, no contexto da totalidade dos seus custos e receitas. Para um microempreendedor o custo de uma operação de microcrédito representa uma pequena proporção dos custos totais do negócio. Castello, Stearns e Christen (apud ROSEMBERG, 2002) relatam uma análise amostral realizada no Chile, Colômbia e República Dominicana, em que microempreendedores pagavam em média 6,3% ao mês pelo crédito, mas que as despesas com juros representavam, de seus custos totais, entre 0,4% e 3,4%. Os pequenos negócios, normalmente, possuem altas taxas de rentabilidade e giro rápido, resultando em um investimento de alto retorno, capaz de ser alavancado financeiramente, mesmo com o custo elevado de capital de terceiros. A Tabela 3 apresenta alguns exemplos de margens e períodos de giro de pequenos empreendimentos, apresentado por Vilela e Aguiar no II Congresso Latino-Americano de Microcrédito, em agosto de 2004, em Blumenau, Santa Catarina (VILELA; AGUIAR, 2004). TABELA 3 TAXA DE RENTABILIDADE E PERÍODO DE GIRO DE EMPREENDIMENTOS POPULARES Atividade Cerveja e refrigerantes Bebidas quentes Roupas Cosméticos Material de limpeza Doces e Salgados Feira: banana Feira: alho Feira: cebola Taxa de rentabilidade bruta do investimento 60% 150% 100% 30% 100% 50% 70% 60% 50% Período do giro do capital Semanal Semanal Semanal Semanal Semanal Semanal 2 vezes por semana Semanal Semanal Fonte: Vilela e Aguiar (2004). A teoria econômica, através da lei dos rendimentos decrescentes, dá uma explanação mais genérica do por que pequenos negócios podem pagar taxas de juros que, muitas vezes, sufocariam grandes negócios. Os agentes econômicos dispõem de uma variedade de alternativas para aplicar unidades adicionais de capital. Algumas dessas possuem expectativa de altos retornos, enquanto outras, expectativas de retorno mais baixas. Os agentes, então, hierarquizam essas opções, existindo, portanto, uma tendência dos retornos diminuírem a cada unidade adicional de capital empregada. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 15 Para o público-alvo das microfinanças, o acesso oportuno e ágil ao crédito é mais relevante que o preço do dinheiro – isto é, as taxas de juros cobradas pelos empréstimos. A razão para isso é que a produtividade marginal do capital é extremamente alta nos microemprendimentos (PARENTE, 2002, p. 35). Empreendedores de baixa renda, especialmente os comerciantes, podem gerar grandes benefícios com unidades adicionais de capital, diferentemente dos negócios altamente capitalizados, porque seu investimento inicial é muito pequeno. Estudos na Índia, Quênia e Filipinas apontam para uma faixa de retorno médio anual, nos micronegócios, entre 117% e 847% (GOODWIN-GROEN, 2003). Uma observação que ratifica a existência de capacidade de pagamento pelos microempreendedores é que, mesmo cobrando taxas relativamente altas, as operadoras de microcrédito quase sempre encontram demanda superior à sua capacidade de atendimento. O índice de renovação dessas instituições é bastante alto: no Brasil, o índice de renovação global é de 62,77%, chegando a 90% na região Nordeste (MEZZERA, 2003), demonstrando que boa parte desses clientes usam o crédito, pagam e retornam para novos empréstimos. Esse padrão de comportamento demonstra convicção dos clientes de que os empréstimos lhes permitem ganhar mais do que os juros que têm de pagar. Deve-se lembrar, ainda, que o objetivo dos programas de microcrédito é dar acesso ao crédito àqueles que não são assistidos pelo sistema financeiro tradicional. Tal público, em sua maioria, já utiliza mercados informais de crédito, nos quais empreendedores de baixa renda tomam e pagam recorrentemente empréstimos informais, a taxas de juros muito mais altas que qualquer instituição de microcrédito formal cobraria. Goodwin-Groen (2003) cita uma forma de empréstimo comum nas Filipinas, feita por agiotas, conhecida como “5/6 loan” – para cada cinco pesos emprestados pela manhã, seis pesos devem ser pagos à tarde. O que significa uma taxa diária de juros de 20%. Brusky e Fortuna (2002) citam taxas de 20% ao mês, como habitualmente utilizadas por agiotas na cidade de São Paulo, no ano de 20017. É como alternativa a esse mercado informal de crédito que surge o microcrédito. Portanto, não só existem motivos para que as operações de microcrédito tenham um custo mais alto, mas, também, seu público-alvo pode suportar essas taxas e encontrar utilidade nessas operações. 7 Em 2001, a Taxa CDI média anual foi de 17,29%. Fonte: CETIP – Câmara de Liquidação e Custódia. Disponível em: <http://www.cetip.com.br>. Acesso em: 01 nov. 2005. 16 | Taxa de juros em operações de microcrédito: taxas subsidiadas versus taxas de mercado Limites e subsídios às taxas de juros Compreendida a necessidade de se praticar uma taxa que garanta a sustentabilidade da instituição operadora, e considerando que os pequenos empreendimentos, o público-alvo do microcrédito produtivo, de forma geral, possuem capacidade de pagamento e conseguem obter utilidade nesse crédito, as taxas de juros, então, deveriam ser definidas pelo mercado. Entretanto, poderia se argumentar que a redução, mesmo que artificial da taxa, poderia provocar uma maior taxa de penetração8 ou forçar a competitividade das operadoras. Analisam-se, a seguir, os efeitos mais contundentes de duas intervenções nesse sentido: o limite e o subsídio à taxa de juros. Efeitos da imposição de limites máximos às taxas de juros no microcrédito Com o argumento de ser uma forma de proteção ao pequeno tomador, limites máximos para as taxas de juros aplicadas ao microcrédito têm surgido nos últimos anos, criando grande pressão sobre as instituições, em um crescente número de países. A experiência, porém, tem mostrado que é a eliminação de controles sobre as taxas de juros que tem permitido a essas instituições se desenvolverem de forma sustentável. O estabelecimento de limites máximos (teto) para taxas de juros aplicadas ao microcrédito tem se demonstrado uma política ineficaz: ao invés de proteger o pequeno e o microempreendedor, essa medida, em geral, tem prejudicado a população de baixa renda, já que dificulta o surgimento de novas instituições operadoras e o crescimento ou até a sobrevivência das existentes. O modelo de estabelecimento de teto para as taxas de juros demonstra uma absoluta falta de entendimento de como esses tetos reduzem o acesso do pobre ao crédito e perpetuam os níveis de pobreza existentes (MARULANDA; OTERO, 2005). Nos países onde existe limitação legal para as taxas de juros, o crescimento da indústria microfinanceira é mais lento, as instituições operadoras de microcrédito freqüentemente deixam o mercado. Tornam-se menos transparentes sobre os custos totais e/ou reduzem os trabalhos na área rural e outros mercados mais onerosos. Os limites às taxas de juros forçam as instituições a ficarem fora do negócio, direcionando os clientes de volta para o oneroso mercado informal, onde não existe a mínima proteção (DUVAL, 2004). 8 Razão entre demanda potencial e demanda atendida. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 17 O relatório do CGAP, “Donor Brief”, n° 18, de maio de 2004, apresenta dados de experiências de implantação de limites de taxas de juros na Nicarágua, Oeste da África e África do Sul. Na Nicarágua, segundo informa o relatório, o presidente da Associação das Instituições de Microfinanças, Alfredo Alañiz, apontou uma queda, no crescimento da carteira global das instituições associadas, de 30%, para menos de 2% no ano de 2001, quando foi introduzida a taxa limite. No Oeste da África, quando o Banco Central e o Ministério das Finanças instituíram uma taxa limite, algumas dessas instituições deixaram de operar com as populações de baixa renda das regiões mais remotas e mudaram seus focos de atuação para áreas urbanas de menor custo operacional. Outras, elevaram também o valor médio das operações (presumivelmente diminuindo o atendimento aos clientes de mais baixa renda). Finalmente, na África do Sul, as adoções de taxas limites não protegeram efetivamente aqueles de mais baixa renda. A alocação do crédito foi alterada, prejudicando esses clientes. Além disso, reduziu a transparência no custo efetivo das operações, fazendo com que algumas instituições tenham iniciado outras cobranças, como seguros e outras “reciprocidades bancárias” (DUVAL, 2004). Marulanda e Otero (2005) citam, ainda, a Colômbia, como mais um dos países em que os limites às taxas de juros dificultaram os esforços das instituições de microcrédito em alcançar os menores clientes e cobrir seus custos. No Brasil, a experiência de limitar a taxa de juros praticada no microcrédito, operado com recursos do governo federal, a 2% ao mês para o tomador final, também se mostrou inviável, tendo o governo flexibilizado essa posição, permitindo aplicação de taxas, na ponta final, de até 4% ao mês9. Hoje, há um consenso, entre os representantes de governo de diversos países da África, Ásia e América Latina, além de importantes agentes disseminadores do microcrédito, fundos internacionais e entidades multilaterais, de que o melhor modelo de política para microfinanças pressupõe a prática de taxa de juros livres, com o uso da competição, ao invés de tetos máximos de juros, estimulando-se a eficiência como forma de baixar esses juros (BACEN, 2003). Efeitos do subsídio às taxas de juros Outra forma de intervenção do governo no mercado é, ao invés de estabelecer limites máximos para as taxas de juros, ofertar crédito a taxas subsidiadas. Não há relatos de evidências de que taxas subsidiadas aumentem a taxa de 9 Resolução 3.310 do BACEN de 31 de agosto de 2005. 18 | Taxa de juros em operações de microcrédito: taxas subsidiadas versus taxas de mercado penetração. Estudos internacionais demonstram que não existe um vínculo entre os níveis de taxa de juros e a profundidade da clientela alcançada (NICHTER et al, 2002). De fato, o relatório “Brasil: Acesso a Serviços Financeiros – 2003”, do Banco Mundial, entre suas principais conclusões aponta, como um dos fatores responsáveis pela baixa penetração das instituições de microcrédito, a presença de algumas delas, dirigidas principalmente por governos municipais para atingir objetivos sociais, que fornecem crédito altamente subsidiado. The presence of institutions (mostly those established by municipalities), which charge highly subsidized interest rates, creates a distortion in the market likely to be a barrier to entry for a new private players. Banco do Povo of Sao Paulo is an example of such an institution, which although apparently successful, is extremely costly to the government and where financial self-reliance is clearly a subsidiary objective (WORLD BANK, 2004, p. 83)10. As taxas de juros subsidiadas geralmente beneficiam somente a um pequeno número de tomadores e por um curto período de tempo, devido à rápida descapitalização dos programas. Bettina Wittlinger, consultora da Accion International, em sua palestra no Segundo Seminário sobre Microfinanças, do Banco Central, em novembro de 2003, em Fortaleza, colocou enfaticamente: “Não podemos continuar com programas de microcrédito dependentes de subsídio e ajuda externa, que desaparecem quando se suspende o apoio” (WITTLINGER, 2003). Também Luis Corrales, diretor do Banco Nacional de Costa Rica, coloca como fator de êxito, ao relatar a experiência do BNCR, a prática de taxas de mercado sem subsídios e, assim como Bettina Wittlinger, também enfoca a questão da permanência do crédito: Creemos firmemente que las generaciones futuras también tienen derecho al acceso al crédito. Si usted da subsidio ahora es muy probable que las generaciones futuras vayan a enfrentarse a una oferta de crédito restringida (ALIDE, 2005, p. 11)11. 10 A presença de instituições (na sua maioria estabelecida pelas prefeituras), que cobram taxas de juros altamente subsidiadas, cria uma distorção no mercado configurando uma barreira à entrada de novos agentes privados. O Banco do Povo de São Paulo é um exemplo de tal instituição, que embora seja aparentemente bem sucedida, é extremamente custosa para o governo, sendo a auto sustentabilidade financeira um objetivo claramente secundário (tradução do autor). 11 Acreditamos firmemente que as gerações futuras também têm direito ao acesso ao crédito. Se você subsidia hoje é muito provável que as gerações futuras enfrentem uma restrição na oferta de crédito (tradução do autor). Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 19 A curta sobrevivência dos programas é agravada pelas altas perdas por falta de pagamento dos créditos. Programas com público-alvo específico, que utilizam taxas subsidiadas, geralmente apresentam alta inadimplência, dependência institucional e crescimento limitado. Os clientes, freqüentemente, vêem esses programas como assistencialistas, onde não há a necessidade de repagamento (MARULANDA; OTERO, 2005; GOODWIN-GROEN, 2003). Nitsch e Santos (2001) acrescentam que, esse tipo de programa, pode gerar, ainda, o inflamento de um aparelho burocrático e ineficiente e o incentivo ao clientelismo político, resultando, portanto, em uso ineficiente dos recursos públicos. Subsidiar as taxas de juros é um uso inapropriado dos recursos, tanto os provenientes de doadores não-governamentais como os provenientes de fundos públicos, porque corrompem o mercado e podem estimular a atração de uma demanda não originária do público-alvo. Segundo a maioria dos autores, o crédito subsidiado é rapidamente capturado por setores econômicos e sociais que não pertencem ao grupo alvo. Para Santos et al (2004), o incentivo ao rent seeking, por meio dos juros subsidiados, explica, por exemplo, por que a clientela do Proger, no estado de São Paulo, é composta, em sua ampla maioria, por clientes das chamadas classes A e B. E, apesar das instituições procurarem tomar medidas para impedir esse fato, isso somente acarreta um enorme aumento dos custos operacionais, o que contribui ainda mais para a perda do foco nesses programas (SANTOS et al, 2004). Além do Proger, também no Pronaf – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (e em algumas linhas de crédito e microcrédito oferecidas pelo BNDES, Banco do Nordeste e Banco da Amazônia, com custos financeiros baixos, uma vez que a maioria dessas linhas de crédito é subsidiada pelo Estado), verificase um acesso restrito, devido, sobretudo, aos altos custos de transação para que os potenciais usuários tenham acesso a esses serviços (MAGALHÃES, 2004). Um trabalho desenvolvido em parceria pelo Ministério do Trabalho e Emprego, a Fundação Banco do Brasil e o Instituto Centro Cape, intitulado “Guia de Montagem: caminhos para montagem de uma instituição de microfinanças”, aponta ainda mais um fator contrário ao subsídio. Desta vez, relativo à manutenção da auto-estima do tomador: A noção de que os pobres têm que necessariamente receber dinheiro subsidiado é repudiada pelo microcrédito pelo simples fato de que isso os coloca numa situação de inferioridade. Ao subsidiar taxas de juros, por exemplo, estamos implicitamente dizendo que os pobres são incapazes de pagar um empréstimo normal, que precisam ser ajudados. O microcrédito pratica juros de mercado e parte do princípio de que todos apresentam essa condição de criar renda própria, através de auto-emprego, em níveis satisfatórios para quem recebe o financiamento (ICCAPE, 2002, p. 25-26). 20 | Taxa de juros em operações de microcrédito: taxas subsidiadas versus taxas de mercado Hollis e Sweetman (1998) estudaram seis organizações de microcrédito do século XIX, na Europa, numa tentativa de identificar os modelos institucionais que levariam ao sucesso e à sustentabilidade12. O exame histórico teve como vantagem oferecer a oportunidade de explorar as características de organizações que sobreviveram por muitas e muitas décadas, perspectiva que não é fácil de encontrar nas instituições contemporâneas, cuja maioria tem menos de 15 anos de idade. Uma das conclusões mais contundentes do trabalho é a de que organizações que dependem de fundos (de custeio ou de empréstimo) subsidiados são mais frágeis e tendem a perder seu foco mais rapidamente que aquelas que captam seus recursos no mercado. Nas conclusões do referido trabalho eles dizem: The most striking conclusion emerging from this review is that depositor-based MOs13 tend to last longer and serve many more borrowers than MOs financed by donations or governmental loans (HOLLIS; SWEETMAN, 1998, p. 29)14. Mais recentemente, uma pesquisa realizada pela Accion International, visando a determinar o perfil das instituições de microfinanças da América Latina, envolvendo especialistas em microfinanças e 47 instituições operadoras de 14 países das Américas Latina e Central, apresentou a necessidade de condições sistêmicas que permitam o crescimento da indústria microfinanceira. Segundo as conclusões do estudo, isso pressupõe um ambiente sem restrições legais às taxas de juros praticadas e onde a estrutura competitiva do mercado não seja distorcida pela presença de entidades operando com taxas de juros subsidiadas (MARULANDA; OTERO, 2005). Portanto, existem evidências empíricas, em diversos países, que reforçam a tese que programas de microcrédito com taxas de juros altamente subsidiadas têm um impacto socioeconômico bastante restrito. Porém os subsídios podem ser necessários, sim, durante a implantação e a fase inicial de operação da instituição de microcrédito. Mas a sua melhor utilização se dará através da cobertura de custos operacionais, do desenvolvimento dos sistemas e da capacitação do pessoal. Durante o período inicial, doadores de recursos podem desempenhar um importante papel, capitalizando essas instituições e proporcionando, assim, um crescimento mais rápido, incrementando 12 Microcredit: what can we learn from the past? 13 Microcredit Organization (Organizações operadoras de microcrédito). 14 A conclusão mais instigante levantada nesta pesquisa é que as organizações operadoras de microcrédito que realizam captação de recursos no mercado tendem a durar mais e servir a muito mais mutuários que as organizações operadoras de microcrédito financiadas por doações ou empréstimos do governo (tradução do autor). Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 21 seu desenvolvimento e permitindo atingir um número maior de clientes de forma sustentável (GOODWIN-GROEN, 2003). Considerações finais Este artigo apresentou argumentos que demonstram que o custo de uma operação de microcrédito é elevado e que as instituições operadoras precisam cobrar taxas que lhes permita a auto-sustentabilidade, fator esse, evidenciado na literatura especializada atual, imprescindível para garantir, de forma ampla e permanente, o acesso ao crédito àqueles que atualmente não o possuem, seja por falta de formalização, garantia ou, simplesmente, por não serem atrativos, comercialmente, ao sistema financeiro tradicional. Demonstrou também que, de forma geral, os micronegócios têm capacidade de pagamento e encontram utilidade para esse crédito. Três pontos importantes foram destacados, de como a intervenção do Estado, no nível da taxa de juros, seja através do estabelecimento de limites máximos de operação, seja pela oferta de crédito subsidiados, impactam na extensão da oferta do microcrédito. Primeiro, existem evidências de que a imposição de limites máximos, às taxas praticadas junto ao tomador final, tem, em última instância, reduzido a oferta do crédito ao público-alvo do microcrédito, através da saída de operadoras do mercado e da mudança do foco em busca de operações mais rentáveis. Tem, ainda, reduzido a transparência nas operações através do aparecimento de cobranças indiretas, tais como taxas de abertura de crédito e de análise, além da exigência de “reciprocidades bancárias”. Em segundo lugar, também os programas que utilizam taxas subsidiadas acabam por ter menor penetração e a atuar por menor tempo, devido à falta de sustentabilidade, afastando-se, conseqüentemente, do objetivo de conceder acesso ao crédito ao maior número possível de desassistidos. Tais programas, durante seu período de existência, podem, ainda, representar uma concorrência tal, utilizando-se de taxas muito abaixo das de mercado, que iniba o desenvolvimento da indústria de microcrédito na região. Como terceira observação, as taxas subsidiadas tendem a atrair um públicoalvo diferente do objetivado pelos programas de microcrédito, saindo do foco e desviando recursos para um segmento que não necessita de subvenções. Acrescente-se a essas observações, o fato de que a utilização de taxas subsidiadas não promove a educação financeira do pequeno empreendedor, mantendo-o em uma situação não-real, na qual esse empreendedor talvez não sobreviva, quando deixar de contar com a subvenção e necessitar pagar os preços reais de mercado. 22 | Taxa de juros em operações de microcrédito: taxas subsidiadas versus taxas de mercado Esses pontos diminuem o acesso do pequeno empreendedor ao crédito, reduzindo suas oportunidades. Tudo indica que o melhor caminho para a rápida expansão do microcrédito, reduzindo o imenso gap hoje existente entre a demanda e a oferta, seja a prática de taxas de juros livres, de mercado, sem a imposição de limites nem a utilização de taxas subsidiadas. No entanto, subsídios na implantação, montagem e desenvolvimento institucional, financiamento de estudos e pesquisas na redução do custo operacional, através da melhoria de processos e do uso intensivo de tecnologia da informação podem, por sua vez, ser importantes para estimular o crescimento da indústria financeira. O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial – 2006, do Banco Mundial, afirma que a equidade deve ser parte integral de uma estratégia bem sucedida de combate à pobreza. E a equidade é definida, fundamentalmente, como igualdade de oportunidades entre as pessoas. A função do microcrédito é, justamente, dar essa oportunidade. A questão principal do microcrédito é como fazê-lo chegar a quem precisa. Não interessa dinheiro barato, se quem o precisa não consegue tê-lo. Referências ALIDE – Asociación Latinoamericana de Instituciones Financieras para el Desarrollo. Banca de Desarrollo y Microfinanzas – La Experiencia del Banco Nacional de Costa Rica. Programa ALIDE-BID/FOMIN: Perú, 2005. (Publicaciones Técnicas). BACEN – BANCO CENTRAL DO BRASIL. Democratização do crédito no Brasil – Principais Desafios - Atuação do Banco Central. Nota Técnica, Dinor – fev. 2003. BRUETT, Tilman et al. Manual de Técnicas de Gestão Microfinanceira: Programa de Desenvolvimento Institucional. Rio de Janeiro: BNDES, 2002. BRUSKY, Bonnie; FORTUNA, João Paulo. Entendendo a demanda para microfinanças no Brasil – um estudo qualitativo em duas cidades. Rio de Janeiro: BNDES – PDI, 2002. DUVAL, Ann. The impact of interest rate ceilings on microfinance. Donor Brief - CGAP, Washington DC, n. 18, May, 2004. Disponível em: <http:// www.cgap.org>. Acesso em: 13 dez. 2004. GOODWIN-GROEN, Ruth P. 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Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 25 2 REFORMAS MICROECONÔMICAS, AJUSTES INSTITUCIONAIS E OFERTA DE CRÉDITO: UMA ANÁLISE DA NOVA LEI DE FALÊNCIAS NO BRASIL Luiz Marques de Andrade Filho* Vítor Santos** Resumo Este trabalho parte do referencial teórico da economia institucional e dos custos de transação para estimar possíveis impactos advindos da nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, reconhecida como uma ferramenta necessária para reduzir os custos de transação no ambiente bancário em relação à oferta de crédito na economia brasileira. Palavras-chave: Economia Institucional. Custos de Transação. Lei de Falências. Oferta de Crédito; Risco Bancário. Abstract This article starts from the theoretical framework of the institutional economy and transaction costs to estimate the possible impacts originated from the New Law of Bankruptcies and Enterprise Recovery, recognized as a necessary tool to reduce transaction costs in the banking environment in relation to the credit supply in the Brazilian economy. Key-words: Institutional Economy. Transaction Costs. Bankruptcies Law. Credit Supply. Banking Risk. * Economista, Mestre em Administração pela UFBA, Doutorando em Economia pelo Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa e Coordenador de Soluções em Gestão Pública da Fundação Luis Eduardo Magalhães. E-mail: [email protected] ** Economista, Doutor em Economia pelo ISEG, Professor Catedrático do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade Técnica de Lisboa e Professor convidado da Universidade de Stanford. E-mail: [email protected] Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 27 Introdução A teoria econômica já possui em sua base de entendimento teórico a concepção de que, de fato, as instituições são importantes para o desempenho econômico. Essa afirmação decorre da leitura de autores que podem ser identificados como mais “à esquerda” do espectro ideológico relativo ao pensamento econômico tradicional em economia, como Chang (2001; 2003a; 2003b; 2003c), Chang e Evans (2000) e Harris-White (2003), bem como autores mais identificados como “à direita”, ou mais ortodoxos, podendo ser citados neste caso, Coase (1990), Williamson (1987; 2000) e os textos do Banco Mundial (2002); e, ainda, pensadores mais relacionados ao centro do espectro ideológico, como North (1993), Dixit (2000), Rodrik (2000), Acemoglu e Johnson (2003), e Acemoglu et al (2004). De alguma maneira, todos esses autores reconhecem a importância das instituições e seus impactos na economia: há uma distinção clara, porém, entre aqueles que apenas aceitam o impacto das instituições ditas formais (leis, contratos, mercados e estruturas burocráticas), como os autores mais à direita entendem, e aqueles que acreditam, também, na relevância econômica das instituições informais (história, cultura e valores sociais), como os autores mais à esquerda1. Tendo como base essa breve taxionomia, tem sido argumentado, pelas agências multilaterais e por estudiosos identificados com o pensamento mainstream, que os países em desenvolvimento necessitariam realizar ajustes microeconômicos – como no ambiente institucional – após a efetivação e alcance da estabilidade macroeconômica durante a década de noventa, como forma de atingirem taxas de crescimento econômico mais sólidas e sustentadas no longo prazo. Nesse sentido, Kuczynski e Williamson (2004), por exemplo, indicam a necessidade da implementação do que denominam reformas de segunda geração para a complementação dos ajustes estruturais demandados pelas economias da América Latina. O principal ponto da economia do desenvolvimento nos anos 1990 foi o reconhecimento do papel crucial das instituições, permitindo que a economia funcionasse eficazmente. A importância de reformas institucionais complementando as reformas de primeira geração na América Latina foi enfatizada primeiro por Naím (1994), o qual denominou “reformas de segunda geração”. Um trabalho recente de Levine e Easterly (2001) conclui que o estado de 1 Quanto à relevância das instituições, observe-se que o Fundo Monetário Internacional, através do World Economic Outlook, de setembro de 2005, reserva um dos seus quatro capítulos para o tema Construção das instituições. Os três outros aspectos abordados se referem às Perspectivas econômicas para 2006; Desequilíbrios globais entre poupança e investimento e a Eficácia do modelo de metas de inflação para os países em desenvolvimento. 28 | Reformas microeconômicas, ajustes institucionais e oferta de crédito: uma análise da nova Lei de Falências no Brasil desenvolvimento institucional fornece a única variável que possibilita apontar com certeza o grau de desenvolvimento de um país (KUCZYNSKI; WILLIAMSON, 2004, p. 10). Dessa forma, este artigo objetiva mapear as ações do Governo Federal brasileiro com vistas à reduzir os custos de transação da economia, em particular com enfoque no mercado de crédito bancário. O texto analisará o possível impacto da nova Lei de Falências, aprovada pelo Congresso Nacional no início de 2005, em um ambiente em que as reformas microeconômicas surgem, pelo menos em retórica, como um ajuste seqüencial e necessário para fortalecer o equilíbrio macroeconômico alcançado durante a década de noventa. Na primeira parte deste trabalho será analisada a agenda de reformas microeconômicas proposta pelo governo federal, para reduzir os custos de transação no ambiente empresarial; na segunda parte, será avaliada a nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, mediante a realização de inferências, a fim de estimar possíveis impactos na economia como forma de redução do risco dos bancos no processo de crédito e, em conseqüência, na taxa de juros. Como hipótese orientadora do trabalho, admite-se que as instituições formais, como (no caso) a legislação sobre falências, possuem impacto relevante sobre o comportamento dos agentes, em particular na demanda de crédito bancário, devido ao fato de uma legislação mais inóspita aos bancos tender a fazer com que estes aumentem suas taxas ativas como forma de se protegerem contra o risco de falência das empresas devedoras, reduzindo, dessa forma, a captação de crédito na economia. A agenda de reformas microeconômicas a partir da década de noventa Já é conhecido, e bastante discutido, o processo brasileiro de evolução econômica que, durante cinco décadas, de 1930 até o início da década de oitenta, criou uma base industrial diversificada, através do processo de substituição de importações, com a presença marcante do Estado, pelo incremento dos gastos públicos, proteção tarifária, direcionamento estratégico do investimento em formação bruta de capital e intensa atuação das empresas estatais. Esse modelo básico foi idêntico ao padrão adotado pela grande maioria das economias da América Latina, fechado à competição estrangeira e com forte participação estatal, em confronto com o modelo asiático, que adotou um padrão voltado para a competição externa, mantendo, porém, em paralelo com os latinoamericanos, a característica da intervenção e dirigismo estatal; uma divergência entre os modelos foi o intenso gasto em educação e pesquisa tecnológica efetuado pelos asiáticos (CANUTO, 1994; CHANG, 1994). Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 29 Esse modelo de desenvolvimento se esgota a partir da grande crise da dívida externa no início da década de oitenta, propiciada pelo excesso de endividamento externo, com taxas pós-fixadas durante o período anterior (os anos setenta), marcado por alta liquidez e taxas de juros muito baixas, seguido da dura política monetária do governo Reagan, que implicou incremento nas taxas de juros internacionais. Isso levou as economias latino-americanas às fortes restrições em seus balanços de pagamentos, devido ao aumento do pagamento dos juros da dívida externa. Essa quebra, ao lado de um ambiente estagflacionário e, em alguns casos, como na Argentina e no Brasil, hiperinflacionário, implicou a mudança do padrão de desenvolvimento que, desde a década de noventa, está voltado à abertura comercial e financeira, com absorção de poupança externa e redução da participação estatal. De fato, a década de noventa marca o absoluto esforço dos governos latinoamericanos no controle da inflação, com base em um novo padrão na busca de crescimento econômico. O Brasil alcançou esse objetivo apenas com o Plano Real, que controlou as taxas elevadas de inflação através de abertura externa e políticas internas contracionistas. Assim, a partir de meados do segundo governo Cardoso, a agenda econômica discutida em Brasília passou a utilizar, como retórica de governo (intensificada pelo atual governo de Lula), o pressuposto de que a macroeconomia já estava “ajustada”, pois os fundamentos macroeconômicos (saldo comercial, transações correntes, risco soberano e taxa de inflação) estavam a caminho da normalidade (como em Cardoso) ou, mesmo, já controlados (como em Lula). Dessa forma, estando os fundamentos macroeconômicos ajustados, seria necessário um forte trabalho governamental, inclusive através de articulação junto ao Congresso, para implementar ajustes microeconômicos, chamados de ajustes institucionais, a fim de reduzir os custos de transação da economia brasileira, em particular em relação às altas taxas de juros cobradas pelos bancos e às facilidades para abertura de novos negócios. O diagnóstico, portanto, se referia ao entendimento de que as altas taxas de juros seriam em função não apenas da rigidez da política monetária, mas, também, da incerteza enfrentada pelos credores em relação à realização das garantias dos empréstimos e pelo aumento da inadimplência. Portanto, o ajuste institucional – a ser criado mediante a adoção de reformas microeconômicas – teria o objetivo de interferir positivamente sobre a atividade econômica dos agentes, pela forma de incentivos2. 2 No documento Juros e Spread no Brasil, de 1999, o Banco Central enumera fatores de aumento dos custos de transação na economia e como eles afetariam o diferencial entre as taxas de captação e o empréstimo do sistema bancário. Assim, são propostos meios para a eliminação desses atritos. 30 | Reformas microeconômicas, ajustes institucionais e oferta de crédito: uma análise da nova Lei de Falências no Brasil Nesse sentido, alguns estudos vêm tentando fazer o mapeamento do impacto dos custos de transação na economia, em função do respectivo ambiente institucional. Uma dessas formas de análise é inferir a respeito do tempo médio para abrir e fechar um negócio. Zylbersztajn e Graça (2003) realizaram um estudo a respeito do tempo e do custo para abertura de novas empresas no Brasil: para tanto, os autores delimitaram um universo que considerava micro e pequenas empresas do setor de confecções, na cidade de São Paulo, entre janeiro de 1999 até julho de 2001. E concluíram que os procedimentos para abertura de uma empresa variam do tipo de atividade desenvolvida e da região geográfica do estabelecimento. Segundo os autores, para a formalização de um novo negócio, é necessário, em média: a adoção de nove procedimentos e a visita a quatro agências governamentais, dentro de um período de 2,14 meses (64 dias), e com um custo da ordem de 11,3% do PIB per capita. Os altos custos para a abertura de empresas, e o tempo necessário para a sua formalização, implicariam, sobre os empresários, um comportamento inicial de permanência no setor informal da economia. Em um estudo anterior, a respeito do custo e do tempo para abertura de novos negócios, feito por Djankov et al (2000), foram realizados testes cross-section, em uma base de 75 países, e estimado o tempo e o custo demandado para abertura de novos empreendimentos, bem como a correlação entre variáveis que mensuravam o intervencionismo governamental e o grau de democracia da sociedade com os custos de transação para abertura de novos negócios. An analysis of the regulation of entry in 75 countries shows that, even aside from the costs associated with corruption and bureaucracy delay, legal entry is extremely expensive, especially in the countries outside the top quartile of the income distribution. We find that heavier regulation of entry is generally associated with greater corruption and a larger unofficial economy, but not with measures of better quality of private and public goods. We also find that countries with less limited, less democratic and more interventionist governments regulate entry more heavily, even controlling for the level of the economic development (DJANKOV et al, 2000, p. 25). Ainda a respeito de quais variáveis seriam determinantes para o aumento da relação crédito privado/PIB, Djankov et al (2005) utilizaram algumas para testar seus respectivos impactos sobre o comportamento do volume de crédito privado, entre elas: (i) índice de direitos dos credores; (ii) a variável dummy existência de registro público, que foi igual a 1 – se havia alguma forma de base de dados gerenciada pelo setor público relativa a informações sobre demandantes de crédito – ou igual a 0 se não existisse essa base de informações; (iii) a variável dummy existência de organização privada de registro, que foi igual a 1 – se havia alguma organização não estatal responsável pela base de dados relativa a informações sobre demandantes de crédito – ou igual a 0 se não existisse Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 31 esta organização; (iv) número de dias médios para resolver uma disputa judicial referente ao pagamento de dívida; e (v) origem do sistema legal da sociedade (inglês, francês, alemão, nórdico ou socialista). Partindo do raciocínio de que haveria duas linhas básicas de pensamento para explicar o comportamento do volume de crédito em uma economia, a primeira relativa à força e poder dos credores e, a segunda, baseada na informação dos credores a respeito dos devedores, Djankov et al (2005) modelaram séries seccionais e, também, uma inferência temporal, esta última para testar o impacto de mudanças ocorridas nas variáveis e, dessas, sobre o crédito privado/PIB, no decorrer do tempo. Para os autores (em média), economias menos desenvolvidas teriam dificuldades em construir sua estrutura de concessão de crédito em função do poder dos credores: nesse caso, a informação a respeito dos devedores passaria a ser primordial; no entanto, com o avanço natural das economias o poder dos credores passaria a superar a necessidade da informação3. Creditor power and information theories are not mutually exclusive. Both ex ante (and interim) better information and ex post stronger creditor rights can contribute to credit market development. Indeed, these institutions may be substitutes: some countries may specialize in information institutions, others in legal system giving power to the creditors. Furthermore, there may be a natural progression. Less developed countries, with poorly functioning legal systems, might be unable to sustain an effective lending channel based on the ex post creditor rights, and may depend on information sharing for their credit markets to function (DJANKOV et al, 2005, p. 3). Foi, assim, confirmada a hipótese relativa ao impacto positivo do índice de direitos dos credores em relação ao crédito privado/PIB; já a análise temporal se baseou em modificações ocorridas nas variáveis e seus impactos sobre o crédito privado/PIB no decorrer do tempo; em geral, foi comprovada a significância oriunda de alterações no modelo institucional sobre a variável endógena, ao longo do tempo. An increase of 1 in the creditor rights index is associated with 14,0 percentage point increase in the average annual growth rate in the private credit to GDP ratio in the five years after the reform relative to the five years before, and 16,5 percentage point increase in that rate in the 3 years after the reform relative to 3 years before (DJANKOV et al, 2005, p. 19). Em estudo de Carvalho e Abramovay (2004) há a descrição de uma pesquisa realizada com os principais bancos brasileiros sobre os motivos pelos quais os 3 Stiglitz e Greenwald (2004) defendem a tese de que a principal variável que definiria o mercado de crédito é a informação, colhida pelos credores em relação aos tomadores de fundos. Desta forma, a assimetria de informações deveria ser reduzida mediante mecanismos de abertura de informações e de controle pelo mercado. 32 | Reformas microeconômicas, ajustes institucionais e oferta de crédito: uma análise da nova Lei de Falências no Brasil mesmos não ofertavam crédito às micro e pequenas empresas (Figura 1): o item ‘falta de garantias reais’ foi apurado como o fator principal para essa objeção, em 40% das respostas dadas. Figura 1 Razões para a negativa de crédito às micro e pequenas empresas – Brasil, 2004 45% 40% 40% 35% 30% 24% 25% 20% 15% 12% 10% 12% 8% 4% 5% 0% Falta de garantias Inadimplência Insuficiência Linhas de crédito Projeto inviável de documentos fechadas Outros Fonte: Carvalho e Abramovay (2004, p.30). Isso indica que, ao tempo que ações governamentais objetivavam incrementar o volume de crédito às micro e pequenas empresas, a falta de garantias reais ainda funcionava como um entrave ao processo de crédito (observe-se que essa pesquisa foi realizada antes da vigência da nova Lei de Falências, aprovada em fevereiro de 2005, que busca dar maior segurança aos bancos para a realização das garantias em processos de falência)4. Ressalte-se que, apesar 4 As discussões a respeito da manutenção de altos valores da taxa Selic, como forma de atingir a meta de inflação do governo federal, tem sido acompanhada, nos últimos anos, do debate a respeito da independência do Banco Central (BC), como um dos chamados ajustes microeconômicos a serem efetuados pelo governo para melhorar o ambiente de negócios. Os defensores da independência do BC acreditam que o modelo atual propiciaria uma maior pressão por parte de agentes políticos e econômicos sobre a política monetária contracionista. O documento Reformas microeconômicas e crescimento de longo prazo (BRASIL, 2004, p. 51) afirma que a necessidade de adoção de um modelo, em que o Banco Central passasse a operar como uma agência regulatória, com seus cargos de presidência e direção preenchidos através de mandatos por tempo determinado, e com a devida supervisão pelo Congresso Nacional, reduziria o viés de pressão recebido pela direção do BC. Observe-se que Mendonça (2003) analisa a temática a respeito da independência do BC contextualizando-a em uma perspectiva histórica. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 33 da nova Lei de Falências implicar uma mudança no ambiente geral das empresas junto ao sistema bancário, são as micro e pequenas empresas que tradicionalmente possuem maior dificuldade para acesso ao crédito. O governo federal acredita que o conjunto de ações voltadas não apenas à melhoria do ambiente institucional para a oferta de crédito, bem como para a implantação de maiores garantias para os bancos (através da aprovação da nova Lei de Falências que dá maior poder aos bancos para recuperação de seus créditos), aliada a uma política monetária que reduza o spread bancário, tenderá a incrementar o volume de crédito privado em relação ao PIB. Deve-se observar que a dificuldade vivenciada pelos agentes econômicos brasileiros, em termos de atritos para a execução de negócios, pode ser ainda verificada em recente trabalho do Banco Mundial, o relatório Doing Business (2005), uma pesquisa relativa a 155 economias e seus respectivos ambientes para a geração de negócios, feita através de dez índices de avaliação. A apuração da média final entre esses índices, indicou uma má posição do Brasil em relação à maioria dos itens analisados. De fato, esse relatório demonstrou a economia brasileira estando apenas no 119º lugar, em termos de custos de transação no ambiente econômico. Ressaltese que os melhores desempenhos entre os países latino-americanos foram alcançados por Porto Rico, no 22º lugar, e pelo Chile, no 25º lugar da pesquisa. Abaixo da posição do Brasil, apenas restaram, na América Latina, a Venezuela e o Haiti (WORLD BANK, 2005). Esse quadro demonstra o tom observado a respeito do tema em discussão entre o governo e as elites brasileiras, que passam, agora, após os ajustes da macroeconomia na década de noventa, a tentar complementar as reformas estruturais da economia brasileira, dada a argumentação de que os ajustes macroeconômicos já teriam sido exitosos, havendo espaço, no entanto, para a adoção de reformas microeconômicas. Na mesma pesquisa do Banco Mundial, em relação ao item ‘acesso ao crédito’, o Brasil foi definido apenas como a 80a posição, entre as 155 economias, demonstrando a dificuldade do empresário brasileiro no processo de capitalização através de fundos bancários. Seguindo essa linha de raciocínio, e com o objetivo de criar um ambiente para negócios mais propício, mediante incentivos e redução dos custos de transação na economia, o Governo Federal brasileiro publicou, em 2004, através da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, o trabalho denominado Reformas Microeconômicas e crescimento de longo prazo (BRASIL, 2004, p. 12-15), em que aponta uma série de medidas de ajuste microeconômico a serem adotadas sobre áreas específicas da economia, como forma de 34 | Reformas microeconômicas, ajustes institucionais e oferta de crédito: uma análise da nova Lei de Falências no Brasil modificação institucional. Seriam as áreas relativas: (i) ao mercado de capitais, seguros, poupança de longo prazo e sistema financeiro nacional, que considera ajustes institucionais a fim de aperfeiçoar os instrumentos para concessão de crédito; (ii) à melhoria da qualidade da tributação, baseada na desoneração da poupança de longo prazo, novos regimes de tributação para aplicações financeiras e redução da carga de impostos sobre novos investimentos; (iii) às medidas econômicas para inclusão social, mediante estímulo às microfinanças na área de microcrédito, medidas para fortalecimento da agricultura familiar, medidas que visam à redução da regressividade do sistema tributário e medidas para estimular a formalização de pequenos negócios; (iv) à redução do custo para resolução de conflitos, mediante aperfeiçoamento de processos administrativos do Poder Judiciário e proposta de reforma do trâmite de processos judiciais, extrajudiciais, trabalhistas, de execução fiscal, do Código de Processo Civil, bem como através de mecanismos de mediação e arbitragem; e (v) à melhoria no ambiente de negócios, através de mecanismos de defesa da concorrência, aumento da competição do setor bancário, medidas para redução do tempo para abertura de novos negócios, medidas de investimento em infraestrutura, desburocratização das exportações e, por fim, medidas de política industrial, tecnológica e de pesquisa e inovação. O governo afirma que os ajustes institucionais gerariam impactos significativos no volume de crédito destinado ao setor privado e, assim, passou a adotar medidas para aumentar o volume de negócios relativos à capitalização, mediante crédito bancário. Medidas estas que atingem o lado da demanda e o lado da oferta, dadas as características do setor bancário no Brasil, resumidas a uma alta eficiência operacional, alta lucratividade e baixa elasticidade da oferta, dado um histórico direcionamento do crédito bancário ao setor público, em função das altas taxas de juros cobradas na remuneração dos títulos da dívida pública5. Ações horizontais: a Lei de Falências e de Recuperação de Empresas A tese de que a legislação sobre falências possuiria capacidade de influenciar a ação dos agentes econômicos através da criação de incentivos nos mercados 5 Segundo Carvalho e Abramovay, “o sistema financeiro brasileiro sustenta há muito tempo desempenho paradoxal: não atende à demanda por crédito e financiamento da maioria dos setores produtivos e, ao mesmo tempo, preserva margens de lucro excepcionais, ano após ano. Esse fenômeno singular pode ser caracterizado pela análise de alguns paradoxos que o acompanham. Os bancos mantêm lucros altos, apesar de flutuações acentuadas do quadro econômico, enquanto a oferta de crédito permanece baixa e é condicionada pelo comportamento da economia” (CARVALHO; ABRAMOVAY, 2004, p. 20). Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 35 – devido ao aumento de garantias aos credores, o que reduziria a assimetria no processo de concessão de crédito –, vem sendo discutida nos últimos anos, inclusive através da adoção de experiências efetivas pelos governos. Aghion et al (1992) estudaram procedimentos relativos à falência de empresas e sua conseqüência sobre a economia, em especial em relação aos países da Europa do Leste (Hungria e Polônia). Para estes autores, a legislação sobre falências produziria impactos sobre o nível de atividade da economia, principalmente em momentos de transição, a partir de um modelo menos competitivo, para um outro mais concorrencial, como foi o caso dos países analisados. Nesse sentido, um estudo de Lim e Hahn (2003) analisa as modificações adotadas pelo governo da Coréia do Sul, ao alterar a sua legislação sobre falências como forma de aumento da competitividade da economia, aumento esse demandado após a crise financeira vivenciada por aquele país em 1996-1997. O argumento dos autores se refere ao fato de que o ordenamento jurídico a respeito de falências na Coréia do Sul, antes da crise, funcionava como uma espécie de barreira à saída. Assim, a antiga legislação, durante a fase desenvolvimentista daquele país, teria sido eficiente devido ao mercado interno facilmente realocar recursos produtivos em novos setores; porém, essa eficiência da legislação se baseava no fato de se encobrir a baixa produtividade de empresas em vias de insolvência, empresas essas que recebiam abrigo por parte da antiga legislação, distorcendo a otimização da alocação de recursos. No entanto, em função da mudança da forma de atuação do Estado a partir da eclosão da crise citada, a alteração na legislação sobre falências passou a ser importante, como forma de aumentar a competitividade sistêmica da economia. Em uma linha similar, o Brasil aprovou, em fevereiro de 2005, a Lei no 11.101, que regula a recuperação judicial e extrajudicial de empresas, denominada Lei de Falências, e que tramitava no Congresso Nacional desde o início da década de noventa. Essa medida tinha o objetivo de favorecer a criação de incentivos no mercado de crédito, a fim de aumentar o volume de recursos concedidos e reduzir as taxas de juros cobradas pelos bancos. O diagnóstico prevalecente era que as altas taxas cobradas seriam resultado não apenas da contração da política monetária, mas, também, do aumento do risco do emprestador. Isso criaria um ambiente com baixa participação do crédito sobre o PIB e altas taxas de juros finais. O risco do emprestador ocorreria pelo fato de – pela lei anterior, datada de 1945 – haver a preferência à recuperação de créditos tributários, previdenciários e trabalhistas, permanecendo os créditos com garantias reais (créditos bancários) apenas na quarta ordem de preferência. Isso contribuiria para que os bancos aumentassem seus spreads como forma de cobrir seus riscos, inclusive em relação à realização de garantias. 36 | Reformas microeconômicas, ajustes institucionais e oferta de crédito: uma análise da nova Lei de Falências no Brasil A lei anterior previa dois tipos de processos: a concordata e a falência. A falência referia-se ao processo de liquidação judicial de empresas insolventes, enquanto que a concordata previa dois tipos de processos: a concordata suspensiva e a preventiva. A primeira ocorria quando, durante o processo de falência (ex-post o início da falência), se verificasse uma possibilidade de retorno à solvência e liquidez por parte da empresa em dificuldade, enquanto que, a segunda, se referia à solicitação oriunda da própria empresa em dificuldade (ex-ante o início da falência). A concordata, no entanto, previa uma moratória de apenas dois anos sobre dívidas sem garantia real (passivo junto a fornecedores e bens e serviços): dessa forma, os créditos com garantia real (os créditos bancários) não estavam abrangidos pelo instituto da moratória, o que aumentava o risco de emprestar enfrentado pelo sistema bancário. A nova lei extinguiu a figura da concordata e criou os processos de recuperação judicial e extrajudicial. A recuperação judicial passou a abranger todos os créditos e não apenas aqueles sem garantia real. Já a liquidação extrajudicial se refere à possibilidade de realização de acordos informais das empresas em dificuldade junto aos seus credores, em particular, os bancos, excluindo os créditos trabalhistas e fiscais desse processo. Além disso, a lei aumentou a participação dos credores durante o processo de falência e recuperação, através da criação da Assembléia Geral dos Credores (instância maior de deliberação) e o Comitê dos Credores, responsável pela fiscalização e legitimização do processo. Mais duas novidades trazidas pela nova lei referem-se à: (i) possibilidade de concessão de novos empréstimos às empresas em dificuldade, tratando-os como extraconcursais (com preferência de recuperação), baseada na concepção da empresa como um agente econômico que tende a demandar mais crédito para a sua própria reabilitação e solvência; e (ii) um tratamento especial dado às micro e pequenas empresas em dificuldade, que poderão apresentar plano especial de recuperação judicial, diferente das demais empresas. A Figura 2 demonstra a ordem de preferência de recuperação de créditos, por ordem decrescente, em comparação entre a lei anterior e a nova lei aprovada pelo Congresso, demonstrando o aumento de prioridade dada aos créditos com garantia real. Deve-se observar que foi necessária, também, a efetivação de uma alteração no Código Tributário Nacional, a fim de adequá-lo à nova legislação sobre falências, pois a lei tributária brasileira dava, anteriormente, aos créditos de origem tributária, a preferência para a recuperação em casos de falência. Ainda a respeito do tema, em estudo de Araújo e Lundberg (2003), realizado com uma amostra de 35 países, foram classificados os créditos por nível de preferência à sua recuperação durante os processos de falência, em quatro Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 37 grupos: (i) créditos com garantia real, (ii) créditos extraconcursais, (iii) créditos fiscais e trabalhistas e (iv) créditos previdenciários. Para essa amostra, 40,3% dos países analisados dava preferência de primeira ou segunda ordem para os créditos com garantia real; apenas 5,5% davam preferência de primeira ou segunda ordem para créditos fiscais; e também 5,5% para créditos trabalhistas. O Brasil era um dos seis países que não dava como preferência de primeira ou segunda ordem a recuperação de créditos com garantia real, ao lado da Espanha, França, Itália, Polônia e Rússia. Figura 2 Ordem de prioridade da recuperação de créditos entre as leis de falência no Brasil – Decreto-Lei no 7.661, de 1945, e Lei no 11.101, de 2005 Decreto-Lei no 7.661, de 1945 1. Créditos tributários 2. Créditos previdenciários 3. Créditos trabalhistas 4. Créditos com garantia real 5. Créditos com privilégio especial, privilégio geral e sem garantia real (quirográficos) 6. Demais créditos Lei no 11.101, de 2005 1. Créditos trabalhistas (até o limite de 150 salários mínimos) e previdenciários 2. Créditos com garantia real 3. Créditos tributários 4. Créditos com privilégio especial 5. Créditos com privilégio especial e sem garantia real (quirográficos) 6. Demais créditos Fonte: Decreto-Lei no 7.661, de 1945, e Lei no 11.101, de 2005. Dessa forma, considerando as informações disponíveis por Araújo e Lundberg (2003), realizou-se uma regressão para testar a influência de duas variáveis exógenas sobre o comportamento da variável endógena, conforme o modelo Nesse modelo busca-se entender o comportamento da variável CPS (crédito captado pelo setor privado da economia, média entre os anos de 1990 e 2002, medido como percentual do PIB) como sendo explicada pelas variáveis SPR (spread médio, diferencial entre taxas ativas e passivas bancárias) e NGR (uma variável binária que foi igual a 0 quando relacionada a países que tinham os créditos com garantia real como a primeira ordem de preferências para recuperação em processos de falência, e foi igual a 1 para países que não tinham os créditos com garantia real na primeira ordem de preferências). Ambas as variáveis exógenas foram estimadas para explicar a variável endógena “crédito captado” pelo setor privado da economia. As variáveis foram transformadas para os seus respectivos logaritmos neperianos (a variável dummy foi tratada como número absoluto em níveis). Com exceção 38 | Reformas microeconômicas, ajustes institucionais e oferta de crédito: uma análise da nova Lei de Falências no Brasil da variável NGR (extraída do citado estudo de Araújo e Lundberg), todos os dados foram coletados na base de dados do Banco Mundial, World Development Indicators. Por hipótese, acredita-se que a variável spread e a variável dummy NGR possuiriam impacto negativo sobre o volume de crédito captado pela economia, gerando, portanto, parâmetros negativos6. O fato de a dummy ser imaginada com parâmetro negativo pressupõe que, quando igual a 1 (país que não possuía os créditos com garantia real na primeira ordem de preferências na recuperação em processo de falências), mais negativo o seu impacto sobre o crédito captado em relação ao PIB. A Figura 3 demonstra os resultados da regressão, indicando que a variável spread possuía significância estatística para a explicação do comportamento da variável endógena, devido à estatística t ser superior à estatística t crítica. Não obstante, apesar da variável dummy não ter sido apontada como significativa (estatística t inferior ao seu valor crítico), o sinal do seu parâmetro calculado como negativo indica que, quanto mais próximo de 1 (países que não tinham os créditos com garantia real na primeira ordem de preferências), mais negativo o impacto sobre o volume de crédito captado pela economia. Já o spread, também negativo, indica o impacto inverso que essa variável implica sobre o volume de crédito. Ambos os sinais confirmaram a hipótese levantada. Figura 3 Resultados da regressão com as variáveis explicativas: lnSPR e NGR – Variável dependente lnCPS, n = 32 Itens Estatísticas Constante LnSPR NGR Soma dos quadrados dos resíduos 10,574 R2 Estatística F 0,347 7,702 Parâmetros Estatística T 5,130 -0,540 -0,355 18,902 -3,008 -1,543 Obs.: Valor crítico da estatística t igual a | 2,042 | e da estatística F igual a 3,30. Em seguida foram realizados os testes de heteroscedasticidade, a fim de confirmar a validade das inferências realizadas, e o modelo foi apurado com tendência à heteroscedasticidade, tanto pelo teste White simplificado, quanto 6 Os países com dummy igual a 0 foram Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Bulgária, Canadá, China, Coréia do Sul, Finlândia, Holanda, Irlanda, Israel, Japão, Malásia, Portugal, Reino Unido, República da Eslováquia, República Tcheca, Singapura e Suíça. Os países com dummy igual a 1 foram Brasil, Espanha, Estônia, França, Hong Kong, Hungria, Itália, Polônia, Rússia, Suécia, Tailândia e Vietnã. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 39 pelo teste Breusch-Godfrey. Dessa forma, para criar uma maior parcimônia nos resultados da inferência, foi calculado o valor da estatística t robusta à heteroscedasticidade7 (apesar do pequeno tamanho da amostra) como forma de prover alguma segurança à inferência sobre os parâmetros, se protegendo do impacto da variância não constante dos resíduos da equação de regressão. As estatísticas t robustas foram reduzidas devido ao incremento dos erros padrões dos estimadores, como se pressupunha inicialmente. No entanto, o fato a ser ressaltado se refere ao sinal dos parâmetros, principalmente em relação à variável dummy NGR: sendo o sinal negativo (como estimado inicialmente na hipótese), isso implica que, a partir da possibilidade de uma economia não possuir, em seu ordenamento jurídico, a recuperação de créditos com garantia real como recuperação prioritária (de primeira ordem), haverá uma tendência à redução do volume do crédito captado como percentual do PIB. Essa conclusão também é apurada mediante o cálculo da matriz de correlações (Figura 4) entre as variáveis, que aponta: (i) uma correlação negativa entre spread e crédito captado pelo setor privado (-0,542); (ii) também uma correlação negativa entre o fato de uma economia não possuir a recuperação de créditos com garantia real como prioridade de primeira ordem em processos de falência e crédito captado pelo setor privado (-0,378); e (iii) uma correlação positiva entre o fato de uma economia não possuir a recuperação de créditos com garantia real como prioridade de primeira ordem e o spread cobrado pelos bancos (0,289). A Figura 5 demonstra a comparação entre as estatísticas t apuradas originalmente pelo método dos mínimos quadrados, e as estatísticas t resultantes da estimação robusta à heteroscedasticidade. Deve-se observar que, tanto para o método dos mínimos quadrados quanto para o método robusto, a variável NGR foi apurada como não-significativa, por cair na área da hipótese nula (que rejeita a significância da variável). Já a variável spread foi apurada como significativa, para a explicação do comportamento do crédito bancário privado, mesmo quando apurada de forma robusta à heteroscedasticidade. 7 O estimador robusto à heteroscedasticidade é apurado através das seguintes relações (WOOLDRIDGE, 2003, p. 259-260): Onde: SSTx = Soma dos quadrados totais de X, e EPRH = Erro padrão robusto à heteroscedasticidade. 40 | Reformas microeconômicas, ajustes institucionais e oferta de crédito: uma análise da nova Lei de Falências no Brasil Figura 4 Matriz de correlações das variáveis Correlations LNCPS LNSPR NRG Pearson Correlation Sig. (2-tailed) N Pearson Correlation Sig. (2-tailed) N Pearson Correlation Sig. (2-tailed) N LNCPS 1.000 . 32 -542** .001 32 -378* .033 32 LNCPS .542* .001 32 1.000 . 32 .289 .108 32 NRG -.378* .033 32 .289 .108 32 1.000 . 32 ** Correlation is significant at the 0.01 level (2-tailed). * Correlation is significant at the 0.05 level (2-tailed). Figura 5 Resultados das estatísticas para as duas variáveis exógenas – Variável dependente lnCPS, OLS e estimador robusto à Heteroscedasticidade, n = 32 Modelos LnSPR NGR Parâmetro estimado b Erro padrão do estimador pelo OLS Estatística t -0,540 -0,355 0,1795 0,2300 -3,008 -1,543 Erro padrão robusto à Heteroscedasticidade 0,2599 0,2394 Estatística t da variável lnCPS robusta à Heteroscedasticidade -2,077 -1,482 Obs.: Valor crítico da estatística t = -2,042. Esses resultados demonstram que, apesar de estatisticamente não significativos, o sinal negativo no parâmetro da variável dummy NGR indica que a não prioridade de recuperação de créditos com garantia real, como primeira ordem na recuperação em processos falimentares, tende a aumentar o spread cobrado pelos bancos e, conseqüentemente, reduzir o volume de crédito na economia. Deve-se ainda lembrar, nesta análise, o coeficiente de correlação linear entre essas duas variáveis (a variável binária que liga o fato de uma economia não possuir a recuperação de créditos com garantia real como prioridade de primeira ordem e o spread cobrado pelos bancos), apurada como positiva, na ordem de 0,289. Dessa forma, pelos resultados apresentados, confirma-se a hipótese defendida a respeito do impacto positivo – em termos de criação de incentivo à fluidez do crédito e redução do risco do emprestador – oriundo da implantação de uma legislação sobre falências e recuperação de empresas, que contempla a Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 41 recuperação de créditos com garantia real em um maior grau de prioridade em relação aos demais créditos, em função de seus impactos sobre o spread bancário e o volume de crédito captado. Considerações finais As medidas adotadas pelo governo brasileiro, com o intuito de alterar as estruturas microeconômicas, buscam uma redução dos custos de transação da economia, considerados demasiadamente elevados conforme os números do Banco Mundial, por exemplo. Nesse sentido, apurou-se que as ações do governo seguem a linha teórica baseada na redução dos custos de transação da economia através do ajuste das instituições formais, com o objetivo de favorecer as transações e as ações entre os agentes econômicos. Isso fica explícito, inclusive, a partir do entendimento da nova Lei de Falências, que objetiva aumentar a segurança dos bancos na realização das garantias durante os processos de falência, situação considerada como um dos entraves enfrentados pelos bancos no processo de recuperação de seus créditos, com base na legislação anterior. Entende-se que, para a realidade brasileira, as variáveis microeconômicas (que estão sendo objeto de ajustes) são importantes, devido ao alto custo gerado pelo ambiente legal e regulatório sobre as empresas. Porém, não se deve colocar toda a responsabilidade na formatação de um ambiente para negócios mais equilibrado e menos custoso sobre o impacto das reformas microeconômicas, dado que, em termos macroeconômicos, o Brasil continua a adotar uma rígida política monetária, mediante a utilização de elevadas taxas de juros, como forma de contenção da demanda e atração de capitais externos. Assim, diferentemente da retórica oficial do governo brasileiro, entende-se que a macroeconomia brasileira precisa de ajustes, pelo fato de ainda se trabalhar com uma elevada taxa de juros básica, o que reduz a atividade econômica, em conjunto com o câmbio valorizado, que tem sido adotado como estratégia pelo Banco Central para reduzir os preços internos. Acredita-se que não se deve colocar toda a responsabilidade dos ajustes estruturais da economia brasileira sobre os custos de transação microeconômicos, pois eles, ainda que importantes, não representam o único âmbito de intervenção que pode ser adotado pelo governo. A macroeconomia ainda é relevante, porém está sendo considerada pelo atual governo brasileiro (e também pelo anterior) como uma situação já em equilíbrio, o que não é fato. Essa é a tese do ajuste macroeconômico já devidamente efetivado, ou o “dever de casa” efetivamente cumprido, como afirma o pensamento oficial. O raciocínio, a respeito do qual a macroeconomia brasileira já estaria ajustada, através da abertura externa e rígidas políticas fiscal e monetária, advém da lógica relativa às políticas liberalizantes adotadas pela 42 | Reformas microeconômicas, ajustes institucionais e oferta de crédito: uma análise da nova Lei de Falências no Brasil América Latina a partir da década de noventa8. Por essa lógica, estando a macroeconomia arrumada – no caso latino-americano (Brasil inclusive) significaria o mesmo que afirmar estando a inflação controlada – restaria a realização de ajustes microeconômicos, com o objetivo de reduzir os custos de transação criados por um ambiente legal, jurídico e regulador de alto custo para os agentes econômicos. Assim, acredita-se que os ajustes microeconômicos são importantes, mas não seria a única face da medalha: não devem ser entendidos de maneira desamparada da realidade, mas, sim, no âmbito da ideologia econômica dominante nos últimos anos na América Latina, ligada à liberalização da economia (após anos de processo de substituição de importações e intensa intervenção estatal) e às políticas contracionistas para controle dos índices de preços. Não obstante estas últimas considerações, o reconhecimento da necessidade dos ajustes institucionais, de cunho microeconômico, e o respectivo esforço para essas implementações devem ser reconhecidos, permanecendo ainda um vasto campo para pesquisas empíricas posteriores. Referências ACEMOGLU, D. et al. Institutions as the fundamental cause of long-run growth. National Bureau of Economic Research, Working paper, n. 10.481, 2004. ACEMOGLU, D; JOHNSON, S. Unbundling institutions. National Bureau of Economic Research, Working paper, n. 9.934, 2003. AGHION, P. et al. The economics of bankruptcy reform. National Bureau of Economic Research, Working paper, n. 4.097, 1992. ARAÚJO, A. Moeda e prosperidade, o impasse do crescimento na política de estabilização. São Paulo: Top Books, 2005. ARAÚJO, A.; LUNDBERG, E. A Nova Lei de Falências: uma avaliação. Seminário de Economia Bancária e Crédito. Brasília: Banco Central do Brasil, 2003. 8 Sobre a crítica às políticas liberalizantes na América Latina e como a modificação institucional exógena vem sendo tratada pelos governos da região, Araújo (2005) argumenta; “os economistas da linha neoliberal monetarista têm uma tendência acadêmica a considerar possível transportar modelos econômicos, de país a país, sem prestar muita atenção ao papel crucial das instituições políticas e culturais em cada caso. Os modelos por sua vez só funcionam dentro de determinadas instituições legais, administrativas e políticas. Ora, as instituições são o produto final da história secular de cada sociedade. Elas permanecem como resultado dessa evolução social, cultural e política e condensam nelas, para o bem ou para o mal, a essência da alma coletiva de determinada população, pois elas são, ao lado da herança cultural, a referência dessa população na confirmação de sua identidade nacional. Se a instituição está no lugar, é porque toda a somatória de eventos que compõem a formação de uma nacionalidade contribuiu para que ela funcione dessa maneira e não de outra. Não existem instituições erradas, mas sim instituições que podem evoluir em uma ou outra direção” (ARAÚJO, 2005, p. 709). Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 43 BRASIL, Ministério da Fazenda, Banco Central do Brasil. Juros e spread bancário no Brasil. Brasília: Banco Central, 1999. BRASIL, Ministério da Fazenda, Secretaria de Política Econômica. Reformas microeconômicas e crescimento de longo prazo. Brasília: Secretaria de Política Econômica, 2004. BRASIL. Decreto-Lei no 7.661, de 21 de junho 1945. Brasília, 1945. Disponível em: <http://www.soleis.adv.br>. Acesso em: nov. 2005. BRASIL. Lei no 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Brasília, 2005. Disponível em: <http://www.soleis.adv.br>. Acesso em: nov. 2005. CANUTO, O. Brasil e Coréia do Sul, os (des)caminhos da industrialização tardia. São Paulo: Nobel. 1994. 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Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 45 3 INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO: AS VISÕES KEYNESIANAS Luiz Ricardo Cavalcante* Resumo Duas grandes visões keynesianas sobre a associação entre intermediação financeira e desenvolvimento econômico podem ser identificadas: a visão novokeynesiana, que se apóia fundamentalmente nos conceitos de assimetria de informações e racionamento de crédito, e a visão pós-keynesiana, que se apóia nas idéias originais de Keynes e que contesta a precedência da poupança sobre o investimento. O objetivo deste trabalho é discutir essas duas visões, buscando comparar seus pressupostos e metodologias. Argumenta-se que, do ponto de vista metodológico, a visão novo-keynesiana parece estar tão distante da visão pós-keynesiana quanto a visão neoclássica. Contudo, em que pesem as diferenças que as separam, as prescrições de política que derivam dessas escolas são claramente mais afins uma com a outra do que com aquelas da escola neoclássica. Com efeito, enquanto esta última preconiza a liberalização financeira, as escolas novo- e pós-keynesiana, embora apoiadas em diferentes conceitos e paradigmas, contrapõem-se ao laissez-faire e admitem maiores níveis de regulação e intervenção do Estado no sistema financeiro. Palavras-chave: Intermediação Financeira. Desenvolvimento Econômico. Póskeynesianos. Novo-keynesianos. Liberalização Financeira. Abstract Two main Keynesian views about the association between financial intermediation and economic development can be identified: the New-Keynesian approach that relies on the concepts of information asymmetries and credit rationing; and the Post-Keynesian view, supported by the original Keynesian concepts that denies the precedence of savings over investments. The aim of * Doutor em Administração (Universidade Federal da Bahia / University of Illinois at UrbanaChampaign), Assessor Especial da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação (SECTI) e professor do Curso de Mestrado Profissional em Administração (UFBA) e de cursos de PósGraduação (Unifacs). E-mail: [email protected] Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 47 this work is to discuss these views and compare their assumptions and methods. It is argued that, from a methodological point of view, the New-Keynesian approach appears to be as distant from the Post-Keynesian view as the neoclassical approach. However, in spite of distinctions, sometimes irreconcilable, that set them apart, the policy implications that derive from the New- and Post-Keynesian views are clearly closer to each other than to the neoclassical prescriptions. In fact, while the last one points to financial liberalization, both the New- and Post-Keynesian views, regardless their different concepts and paradigms, disagree with the laissez-faire and suggest higher levels of State regulation and intervention in the financial system. Key-words: Financial Intermediation. Economic Development. Post-Keynesians. New-Keynesians. Financial Liberalization. 48 | Intermediação financeira e desenvolvimento econômico: as visões keynesianas Introdução Embora seja difícil negar a existência de uma associação entre intermediação financeira e desenvolvimento econômico no capitalismo moderno, persistem ainda grandes discordâncias quanto à interpretação da natureza dos vínculos que se estabeleceriam entre essas duas dimensões. Longe de traduzir apenas um debate acadêmico, essas divergências, especialmente no que diz respeito ao papel do Estado e aos níveis de regulação do sistema financeiro, costumam levar a prescrições de políticas públicas distintas e, não raro, antagônicas. Embora o debate não seja novo no âmbito da história do pensamento econômico, modernamente é possível identificar três grandes visões sobre o tema: a visão predominantemente alinhada com a produção teórica neoclássica sobre crescimento econômico, a visão keynesiana (aqui segmentada em novokeynesiana e pós-keynesiana) e a visão histórica. Em linhas gerais, a visão neoclássica apóia-se em evidências empíricas da associação entre o desenvolvimento do sistema financeiro e as taxas de crescimento do PIB per capita e aponta o aumento das taxas de poupança e o papel dos bancos na definição da alocação dos recursos financeiros como os principais mecanismos de transmissão entre o desenvolvimento financeiro e o crescimento econômico. A visão que se apóia na produção original de Keynes contrapõe-se à liberalização financeira e preconiza a intervenção do Estado como agente regulador. Em ambos os casos, a produção teórica está longe de poder ser considerada monolítica. No âmbito da perspectiva neoclássica, segmentam-se claramente uma visão prescritiva associada à liberalização financeira e uma visão mais afim com a produção teórica em crescimento econômico e crescimento endógeno1. No âmbito do pensamento keynesiano, à parte a escola neo-keynesiana, cujos pressupostos são, essencialmente, aqueles da escola neoclássica, pode-se identificar duas correntes que discutem a associação entre o sistema financeiro e o desenvolvimento econômico: a visão novo-keynesiana, que se apóia fundamentalmente nos conceitos de assimetria de informações e racionamento de crédito, e a visão pós-keynesiana, que se apóia nas idéias originais de Keynes e que contesta a precedência da poupança sobre o investimento. Já a visão histórica analisa a associação entre a intermediação financeira e o desenvolvimento econômico tendo em vista as especificidades das trajetórias seguidas pelos diferentes países e regiões. É claro que a proposição de uma taxonomia dessa natureza implica a exposição 1 Cavalcante (2004) apresenta uma discussão crítica da visão neoclássica sobre a associação entre intermediação financeira e desenvolvimento econômico. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 49 ao risco de segmentar a produção teórica de uma forma por vezes reducionista. Esse é o caso, por exemplo, de algumas análises que aqui são classificadas como pós-keynesianas, mas que se debruçam sobre casos empíricos e que poderiam facilmente ser enquadradas naquilo que aqui se chamou de “visão histórica”, na medida em que se apóiam na trajetória de países específicos2. Acredita-se, porém, que a segmentação proposta ajuda a explicitar os termos do debate que se coloca sobre a associação entre a intermediação financeira e o desenvolvimento econômico. O objetivo deste trabalho é discutir especificamente as visões keynesianas sobre a associação entre intermediação financeira e desenvolvimento econômico, buscando comparar os pressupostos e as metodologias adotados por cada uma dessas escolas nas suas análises sobre o tema. O trabalho está estruturado em mais três seções além desta introdução: na segunda seção, comparam-se as bases metodológicas das duas escolas; na terceira, discutem-se as diferentes visões sobre a associação entre o sistema financeiro e o desenvolvimento econômico; e, por fim, na quarta seção, são apresentadas as principais conclusões do trabalho. Novo- e pós-keynesianismo: bases metodológicas As idéias fundamentais de Keynes, expressas nos seus “A treatise on money” (KEYNES, 1930) e “A teoria geral do emprego, do juro e da moeda” (KEYNES, 1936), têm um enorme impacto nas análises que se pode fazer sobre o papel do sistema financeiro no desenvolvimento econômico. Com efeito, ao introduzir o conceito de preferência pela liquidez, dando à formação da taxa de juros um tratamento distinto daquele que simplesmente a vê como o ponto de equilíbrio entre a oferta e a demanda de recursos, e ao apoiar sua análise na ausência de coordenação entre poupadores e investidores, Keynes (1930; 1936) fornece as bases para uma produção teórica extensa sobre o papel da intermediação financeira no desenvolvimento econômico que se coloca claramente como um contraponto à produção neoclássica. Ademais, ao demonstrar que a posição de equilíbrio do sistema capitalista não é necessariamente o pleno emprego, Keynes defende a intervenção do Estado na economia para elevar o nível de atividade através do estímulo aos investimentos privados. Após a publicação da Teoria Geral, alguns autores (Hicks e Samuelson, por exemplo) buscaram conciliar as críticas e observações de Keynes com os pressupostos da teoria clássica, configurando a chamada “Síntese Neoclássica”. 2 Studart (1995a; 1995b; 1995c) e Amado (1997) são exemplos para o caso brasileiro. 50 | Intermediação financeira e desenvolvimento econômico: as visões keynesianas O “keynesianismo ortodoxo” – ou, nos termos de Joan Robinson, o “keynesianismo bastardo” (CROTTY, 1980, p. 20) – resultante foi extensamente aplicado na formulação de políticas de manejo da demanda agregada até a década de 1970, quando a crise das economias centrais e as críticas dos monetaristas (Friedman, por exemplo) e dos novo-clássicos (como Lucas e Sargent) restringiram a aplicação de políticas daquela natureza. Do ponto de vista teórico, ainda na década de 1960, parece ter havido uma espécie de bifurcação da escola keynesiana. Os pós-keynesianos (Minsky e Davidson, por exemplo) defendiam o retorno ao pensamento original de Keynes, privilegiando conceitos como incerteza fundamental – isto é, a impossibilidade de prever o futuro usando distribuições de probabilidade (DAVIDSON, 1994; 2003) – e instabilidade financeira – tendência de crescimento dos níveis de endividamento que investidores e especuladores apresentam nos momentos de otimismo, levando os intermediários financeiros a reduzir suas margens de segurança para atender a demanda por mais empréstimos e, portanto, tornando o sistema mais vulnerável a rupturas (MINSKY, 1982; 1986). De outra parte, a escola neo-keynesiana terminaria abandonando definitivamente as idéias originais de Keynes, tendo se convertido na chamada escola novo-clássica3. Além de desprezar os fenômenos monetários, ocupando-se apenas dos chamados fenômenos reais, a escola novo-clássica busca construir modelos econômicos apoiados em padrões universais de comportamento consistentes com os modelos de maximização de utilidade empregados pela escola neoclássica. Na década de 1980, alguns autores vinculados à escola novo-clássica buscam desenvolver modelos formais relaxando algumas hipóteses que levariam ao equilíbrio walrasiano, ainda que mantendo a premissa de que os agentes econômicos individuais buscariam a maximização de suas funções utilidade, configurando aquilo que ficou conhecido como “novo-keynesianismo”. Na prática, esses autores admitem a existência de falhas de mercado, que decorreriam da assimetria de informações entre os agentes envolvidos em transações econômicas, incorporando um conceito originalmente proposto por Akerlof (1970) em um trabalho intitulado “The market for ‘lemons’: quality uncertainty and the market mechanism”. A idéia básica por trás do trabalho de Akerlof (1970), que utiliza inicialmente o mercado de automóveis usados como um exemplo, é bastante intuitiva: compradores de carros usados, por disporem de informações limitadas sobre o produto que pretendem adquirir, 3 Adotou-se aqui a terminologia proposta por Fazzari (1989) e Fazzari e Variato (1994; 1996), que consideram neo-keynesianos os economistas que seguiram a síntese neoclássica. Crotty (1980), por outro lado, considera neo-keynesianos os economistas da escola de Cambridge (Robinson e Kaldor, por exemplo). Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 51 não conseguem discernir claramente a sua qualidade, obrigando aqueles que têm um bom automóvel a vendê-lo com deságio para levar em conta o risco que o comprador estaria assumido. Pouco mais de dez anos depois, Stiglitz e Weiss (1981) incorporariam o conceito de assimetrias de informações entre os agentes econômicos nas suas análises sobre operações de crédito4. Para estes autores, a incerteza é um conceito ergódico e estocástico que pode ser medido por meio de distribuições de probabilidades, contrapondo-se ao conceito de incerteza fundamental não-mensurável típico das análises pós-keynesianas. Além disso, a escola novo-keynesiana não parece preocupar-se com a irreversibilidade do investimento, um conceito fundamental na formulação keynesiana. Se, por um lado, a adoção de métodos tipicamente neoclássicos levou diversos autores a questionarem o próprio enquadramento destes autores como “keynesianos” (CROTTY, 1996; CANUTO; FERREIRA JÚNIOR, 1999), por outro lado facultou-lhes um diálogo com a produção teórica ortodoxa e lhes permitiu aparecer nas páginas de publicações consideradas mais ortodoxas. Em oposição aos métodos formais e ergódicos das escolas neoclássica e novokeynesiana, a escola pós-keynesiana mantém a sua fidelidade aos conceitos fundamentais propostos por Keynes. Conforme assinala Crotty (1980, p. 20), “the label Post-Keynesian has been applied to a large number of economists who have little in common beyond an acknowledged intellectual debt to Keynes [...] and a dissatisfaction with orthodox theory”. Nesse sentido, a escola póskeynesiana deve ser entendida, antes de qualquer coisa, como um método de análise econômica que se contrapõe àquele adotado pelos economistas ortodoxos. Não surpreende que, pela sua preocupação em formar um paradigma alternativo de análise econômica, a visão pós-keynesiana manifeste ainda grande preocupação com questões epistemológicas e metodológicas 5. Consistente com as proposições originais de Keynes (1930; 1936), o método pós-keynesiano apóia-se nos conceitos de incerteza fundamental e instabilidade financeira. Na prática, a análise pós-keynesiana é claramente mais qualitativa e não-ergódica, embora alguns trabalhos não deixem de empregar modelos formais. Contudo, tanto a modelagem matemática como a econometria são usadas com reservas pelos autores pós-keynesianos, que evitam subordinar sua produção teórica a esses instrumentos6. Além disso, a escola pós-keynesiana 4 Vale notar, contudo, que o trabalho de Akerlof (1970) não é explicitamente citado por Stiglitz e Weiss (1981). 5 Em vários artigos, percebe-se a preocupação em discutir o enquadramento ou não de idéias na produção original de Keynes (CROTTY, 1980; FAZZARI, 1989; FAZZARI; VARIATO, 1994; 1996; ARESTIS, 1997; CANUTO; FERREIRA JÚNIOR, 1999). 6 Uma crítica pós-keynesiana ao uso indiscriminado da matemática e dos modelos formais em economia pode ser encontrada em Davidson (2003). 52 | Intermediação financeira e desenvolvimento econômico: as visões keynesianas busca reconhecer que as preferências têm uma origem social e, como tais, não podem ser modeladas apenas quantitativamente, e que os agentes detêm uma “racionalidade limitada” (em oposição às expectativas racionais da escola neoclássica) pela disponibilidade de informações e pela capacidade de processálas. Pela própria natureza do método de análise pós-keynesiano, que reconhece o caráter cumulativo do processo de desenvolvimento econômico, os autores associados a essa corrente teórica não propõem “modelos imaginários” aplicáveis a qualquer região, mas “abstrações realísticas” obtidas a partir da observação (ARESTIS, 1997, p. 38). Isso quer dizer que não se pode esperar da perspectiva pós-keynesiana uma teoria geral que determine, a priori, os mecanismos através dos quais as variáveis econômicas associam-se sem levar em conta a trajetória seguida pelo objeto em estudo. Intermediação financeira e desenvolvimento econômico Uma vez discutidas as bases metodológicas sobre as quais são construídas as análises novo- e pós-keynesiana, pode-se agora avançar para a discussão de suas visões acerca da associação entre as atividades de intermediação financeira e o desenvolvimento econômico. Assim, apresentam-se, a seguir, as visões novo- e pós-keynesiana sobre o tema tal como concebidas pelos autores vinculados a cada uma essas duas correntes teóricas. A visão novo-keynesiana A visão novo-keynesiana apóia-se, fundamentalmente, no conceito de assimetrias de informações entre os agentes econômicos envolvidos em operações de crédito. Stiglitz e Weiss (1981), no trabalho intitulado “Credit rationing in markets with imperfect information”, argumentam que as informações são assimetricamente distribuídas entre os agentes econômicos7 e, portanto, os retornos esperados pelos bancos nas operações de crédito não são uma função monotonicamente crescente das taxas de juros, em função do fenômeno conhecido como seleção adversa. Stiglitz e Weiss (1981) demonstram que a seleção adversa ocorre porque, quando as taxas de juros (r) são muito altas, as operações de crédito tendem a concentrar-se em projetos de maior risco, o que aumenta a probabilidade de inadimplência, reduzindo o retorno esperado pelo banco (p), conforme evidenciado no gráfico à esquerda na Figura 1. 7 Conforme assinalam Canuto e Ferreira Júnior (1999, p. 6), “assimetrias de informações entre duas partes que transacionam ocorrem quando uma parte detém mais informações do que a outra, seja ex ante em relação às características do que está sendo comprado ou vendido, seja ex post em relação ao comportamento dos indivíduos depois de firmado o contrato”. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 53 Figura 1 Retorno Esperado, Taxa de Juros e Racionamento de Crédito Fonte: Elaboração própria com base em Stigliz e Weiss (1981) e Braga (2000). Evidencia-se assim que, a partir de uma taxa de juros igual a r*, o retorno esperado pelo banco ( ) passa a apresentar um comportamento decrescente com o incremento da taxa de juros. Para uma curva de demanda de crédito D1, conforme indicado no gráfico à direita na Figura 1, isso não significaria um problema de racionamento de crédito, uma vez que haveria uma taxa de juros rA que equilibraria a oferta e a demanda de recursos. Já para uma curva de demanda de crédito D2, percebe-se a inexistência de oferta suficiente, o que configura, conforme indica Braga (2000, p. 7), uma situação de “equilíbrio com racionamento” representado pelo segmento CB. Dessa forma, em certas circunstâncias, ainda que haja tomadores dispostos a arcar com taxas de juros mais altas, as instituições financeiras podem optar simplesmente por não conceder o crédito. Portanto, o mercado de crédito é incompleto pela própria natureza do processo de intermediação. O sistema financeiro seria marcado, então, pela competição imperfeita em decorrência daquilo que os autores novo-keynesianos chamam de “falhas de mercado”. Nos termos de Stiglitz (1994, p. 23): The fundamental theorems of welfare economics, which assert that every competitive equilibrium is Pareto efficient, provide no guidance with respect to the question of whether financial markets, which are essentially concerned with the production, processing dissemination and utilization of information, are efficient. On the contrary, economies with incomplete information or incomplete markets are, in general, not constrained Pareto efficient. É com base nessa visão que Stiglitz (1994), após enumerar suas principais falhas, aponta o mercado financeiro como objeto de intervenção direta do 54 | Intermediação financeira e desenvolvimento econômico: as visões keynesianas governo. As intervenções propostas por Stiglitz (1994) não se limitam à chamada “regulação prudencial”8, estendendo-se também ao crédito direto, à repressão financeira e à regulação da competição interbancária. Nesse trabalho, portanto, Stiglitz (1994, p. 42) sanciona a existência de instituições públicas voltadas para a concessão de crédito, com base no argumento de que projetos cujo retorno social seja superior ao retorno privado teriam dificuldade de obter crédito junto aos bancos privados. Apoiando-se na experiência do Leste Asiático no período anterior à crise de 1997 (o trabalho foi publicado em 1994), o autor argumenta que o crédito direto pode ser alocado em setores que contribuam para o desenvolvimento tecnológico e para as exportações. Com relação à repressão financeira, Stiglitz (1994, p. 40) assinala que, ao contrário do que seria esperado pelos teóricos da liberalização (MCKINNON, 1973; SHAW, 1973), haveria evidências empíricas de que a correlação entre taxas de juros e taxas de poupança seria reduzida (o autor, contudo, não indica as fontes a que se refere). Além disso, Stiglitz (1994, p. 40) é cético quanto às evidências de que a liberalização financeira tivesse garantido uma alocação mais eficiente do capital9. Por fim, Stiglitz (1994, p. 46) indica que o “excesso de competição” interbancária, ao reduzir os spreads e margens de lucro, pode aumentar a fragilidade do sistema financeiro e ter resultados sociais negativos. A visão pós-keynesiana No âmbito da escola pós-keynesiana, até como conseqüência da sua fidelidade ao pensamento original de Keynes, o processo que determina o investimento, a poupança e as decisões de financiamento é uma questão central de análise. Nos termos de Crotty (1980, p. 21): [...], the Post-Keynesians are primarily interested in understanding the process through which investment, savings, and financing decisions are determined in a monetary economy in which the future is uncertain, production takes time, the capital stock is not malleable, and an efficient spot market for durable goods does not exist. 8 Imposição de regras de disclosure mais severas com o propósito de evitar a ocorrência de crises sistêmicas no sistema financeiro. Normalmente incluem a fixação de limites para a relação entre o passivo e o patrimônio líquido de instituições financeiras. De uma forma geral, esses argumentos são convergentes com o propósito do Bank for International Settlements (BIS), cujas diretrizes gerais são fixadas nas reuniões periódicas em Basiléia. 9 Na prática, trata-se de uma contestação ao argumento de Goldsmith (1969), adotado por diversos autores (KING; LEVINE, 1993a; 1993b), de acordo com o qual a eliminação da repressão financeira garantiria maiores níveis de eficiência da alocação do capital em diferentes ativos, setores e regiões. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 55 A principal característica da análise pós-keynesiana sobre a relação entre as atividades de intermediação financeira e o desenvolvimento econômico é a reafirmação da visão keynesiana da precedência do investimento sobre a poupança. Na verdade, os autores pós-keynesianos admitem que apenas nos estágios primitivos do capitalismo a poupança efetivamente precedia o investimento. Esse o ponto de vista de Chick (1986), que segmenta a evolução do sistema bancário em cinco estágios distintos10. A idéia básica é que, à medida que o sistema bancário evoluiu, a poupança foi deixando de ser um requisito para o investimento, uma vez que certificados de depósito passaram a ser aceitos também como moeda. É esse argumento que a leva a afirmar que “a inversão da causalidade entre poupança e investimento, proposta por Keynes, não devia ser vista como a teoria correta triunfando sobre o erro, mas como uma mudança no que constituía a teoria correta, devido ao desenvolvimento do sistema bancário” (CHICK, 1986, p. 10). Naturalmente, ao contestar a precedência da poupança sobre o investimento (argumento conhecido como “prior-saving”), a produção teórica pós-keynesiana sobre intermediação financeira e desenvolvimento econômico coloca-se como um contraponto à liberalização financeira preconizada por uma parte representativa dos autores vinculados à corrente neoclássica. Conforme destacam Studart (1993, p. 102-104) e Arestis (1997, p. 141), o pressuposto que se encontra por trás do argumento do prior-saving é a Teoria dos Fundos de Empréstimos, que se apóia em uma hipótese de competição perfeita no sistema financeiro, de tal forma que a taxa de juros real estabeleceria um equilíbrio entre poupança e investimento. Esse equilíbrio tipicamente walrasiano somente seria possível, entretanto, se houvesse perfeita competição e distribuição de informações entre os agentes envolvidos em transações de crédito. Arestis (1997, p. 140) argumenta ainda que, em virtude da natureza oligopolística do setor financeiro, dificilmente a liberalização garantiria taxas de juros que refletissem elevados níveis de competição interbancária. De outra parte, os autores pós-keynesianos assinalam que, em função da natureza volátil e instável das expectativas dos 10 No primeiro estágio descrito por Chick (1986), o sistema bancário atua apenas como um intermediário entre poupadores e investidores. Os empréstimos são limitados pela poupança captada pelo sistema, atuando, assim, como um requisito para o investimento. No segundo estágio, certificados de depósito passam a ser aceitos como moeda, e não mais a poupança, mas as reservas, passam a ser o requisito básico para o volume de empréstimos que o sistema bancário é capaz de fazer. O terceiro e quarto estágios caracterizam-se, respectivamente, pelo aparecimento de empréstimos interbancários e de uma autoridade monetária que assume a condição de emprestador em última instância. Esses dois mecanismos adicionais possibilitam um volume ainda maior de empréstimos a partir de uma base limitada de depósitos. No quinto estágio, a competição interbancária e a integração dos sistemas financeiros levam a um ambiente progressivamente especulativo e a margens de manobra reduzidas para as autoridades monetárias. 56 | Intermediação financeira e desenvolvimento econômico: as visões keynesianas empresários quanto aos fluxos de caixa futuros a serem gerados por um projeto de investimento, também a demanda por recursos de empréstimos não pode ser considerada uma função estável da taxa de juros (CROTTY, 1980, p. 22). Na prática, os autores pós-keynesianos preconizam a intervenção do governo no sistema financeiro como forma de garantir baixas taxas de juros, requeridas particularmente no caso dos países em processo de industrialização (ARESTIS, 1997, p. 152). Studart (1992; 1993; 1995a; 1995b) argumenta que caberia ao Estado não apenas estabelecer padrões de regulação que minimizassem o racionamento de crédito, mas também as tarefas de prover crédito para setores racionados (especialmente nas operações de longo prazo) e de apontar os setores com boas perspectivas para os demais intermediários financeiros e poupadores. Esse é, também, o ponto de vista de Santos (1991, p. 67), que destaca, ainda, que a dimensão financeira do Estado e sua atuação como intermediário não só contribuiria para assegurar as funções tradicionais do sistema bancário como também “para a alocação orientada e lucrativa dos recursos privados, mediante os incentivos e subsídios contidos no sistema tributário e nas agências especializadas no financiamento de longo prazo”. Mas o debate com os autores da escola neoclássica não se restringe às críticas à liberalização financeira. Com os autores neoclássicos ligados à teoria do crescimento endógeno, os pós-keynesianos discutem a questão da relação de causalidade entre o desenvolvimento financeiro e as taxas de crescimento econômico. Enquanto os primeiros argumentam que “the predetermined components of these financial development indicators significantly predict subsequent values of the growth indicators” (KING; LEVINE, 1993a, p. 730735), a escola pós-keynesiana tende a alinhar-se com os argumentos de Robinson (1952, p. 86), para quem “where enterprise leads finance follows”. O debate consubstanciou-se em uma série de artigos que buscam evidências econométricas em uma direção e na outra (KING; LEVINE, 1993a; 1993b; ARESTIS; DEMETRIADES, 199511; 1998). Considerações finais No presente trabalho, discutiram-se as visões novo- e pós-keynesiana sobre a associação entre as atividades de intermediação financeira e o desenvolvimento econômico. Partindo das bases metodológicas sobre as quais essas escolas se 11 ARESTIS, Philip; DEMETRIADES, Panicos. “Finance and growth: Schumpeter might be right”: a comment on King and Levine. U. of East London, 1995 (não publicado). Embora não se tenha tido acesso a este trabalho durante a elaboração da presente análise, acredita-se que seu conteúdo seja bastante similar ao contido no artigo de Arestis e Demetriades (1999) intitulado “Finance and growth: is Schumpeter right?“. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 57 apóiam, buscou-se identificar as duas visões sobre o tema e suas prescrições. Indiscutivelmente, as duas visões representam um avanço significativo em relação à produção teórica neoclássica, na medida em que reconhecem que os nexos que se estabelecem entre as atividades de intermediação financeira e o desenvolvimento econômico são bem mais complexos do que aqueles assumidos nos modelos marginalistas. Contudo, as duas escolas mantêm entre si grandes diferenças. Do ponto de vista metodológico, a visão novo-keynesiana parece estar tão distante da póskeynesiana quanto a visão neoclássica. Essa é a opinião de Fazzari e Variato (1994, p. 354), que afirmam que os fundamentos da visão novo-keynesiana são “formal optimization models derived from Neoclassical first principles” (embora estes autores julguem que as semelhanças dizem muito mais respeito à forma do que à substância) e de Crotty (1996, p. 334), que afirma haver “few significant methodological differences between New Keynesian and Neoclassical theories”. De uma forma geral, os autores pós-keynesianos (CROTTY, 1996; WOLFSON, 1996) vêem a produção teórica novo-keynesiana com ceticismo, porque se apóia em métodos ergódicos e estocásticos incompatíveis com o conceito de incerteza fundamental tão caro aos póskeynesianos (CROTTY, 1996, p. 335)12. Os autores pós-keynesianos argumentam ainda que a escola novo-keynesiana, embora capaz de explicar o racionamento de crédito com base no conceito de assimetrias de informação, não consegue elucidar o excesso de crédito, explicado, na teoria pós-keynesiana, pelas expectativas otimistas que causam a fragilidade financeira (CROTTY, 1996, p. 347). Studart (1995a, p. 14-15) argumenta que o trabalho de Stiglitz e Weiss (1981) “does not seem to advance much from the neoclassical perspective: the role of the financial system is still to be an intermediary between saving and investment”. Além disso, o emprego do conceito de “falha de mercado” é estranho ao pensamento pós-keynesiano, na medida em que esta escola não se propõe a aferir desvios de um hipotético estado ideal de funcionamento do sistema econômico. Não por acaso, autores como Arestis (1997, p. 136) vêem o conceito de assimetria de informações como um braço da teoria neoclássica que procura explicar as razões para o mal-funcionamento dos sistemas bancários liberalizados. Já Studart e Sobreira (1997, p. 2) criticam a análise dos autores novo-keynesianos, argumentando que, “se o problema informacional é o único que impede a alocação ótima de poupança, uma política voltada para o pleno 12 Vale notar, contudo, que, embora a produção teórica novo-keynesiana empregue modelos formais mais universais, o próprio Stiglitz, ao debater o artigo em que defende a intervenção do Estado no sistema financeiro (THE WORLD BANK, 1994, p. 60), assinala que “the exact design of regulations will differ“ de país para país. Essa visão é claramente convergente com o método pós-keynesiano de análise, que evita propor soluções gerais independentes do contexto. 58 | Intermediação financeira e desenvolvimento econômico: as visões keynesianas desenvolvimento do mercado financeiro, inclusive com a introdução de regras de disclosure mais apropriadas, deveria por si só resolver”. Apenas nos trabalhos de Fazzari e Variato (1994; 1996) as críticas pós-keynesianas aos métodos novokeynesianos são arrefecidas. Estes autores sugerem que a visão novo-keynesiana forneceria a base formal para explicar a instabilidade do investimento na teoria pós-keynesiana menos formal (CROTTY, 1996, p. 333). Para Fazzari e Variato (1994; 1996), as visões novo- e pós-keynesiana seriam, portanto, complementares, e não substitutas. De outra parte, não foram encontrados trabalhos nos quais os autores novo-keynesianos demonstrem estar preocupados em estabelecer algum tipo de debate metodológico com os autores pós-keynesianos. Em que pesem as diferenças por vezes irreconciliáveis que as separam, as prescrições de política que derivam das escolas novo- e pós-keynesiana são claramente mais afins uma com a outra do que com aquelas provenientes da escola neoclássica. Com efeito, enquanto esta última preconiza a liberalização financeira, as escolas novo- e pós-keynesiana, embora apoiadas em diferentes conceitos e paradigmas, contrapõem-se ao laissez-faire e admitem maiores níveis de regulação e intervenção do Estado no sistema financeiro. Na perspectiva novo-keynesiana, assimetrias de informação causariam falhas no mercado de crédito, em particular o racionamento de crédito. Nesse contexto, autores vinculados a esta corrente sugerem que o Estado teria um importante papel a desempenhar nos mercados financeiros, não apenas garantindo a sua adequada regulação (reduzindo, assim, as assimetrias de informações e suas conseqüências), mas, também, a provisão de crédito em circunstâncias nas quais o seu racionamento seria um obstáculo ao desenvolvimento econômico. Assim, a questão da estrutura financeira – sobre a qual a produção teórica neoclássica tem pouco a dizer – seria mais claramente tratada na visão novokeynesiana. Já no caso da visão pós-keynesiana, a prescrição de maiores níveis de regulação e intervenção do governo no sistema financeiro surge praticamente como um corolário da sua fidelidade às idéias originais de Keynes e da contestação de que a poupança precederia o investimento nas sociedades capitalistas avançadas. Embora a escola pós-keynesiana evite prescrições de caráter geral, como conseqüência da própria natureza do método empregado pelos autores filiados a esta escola, a prescrição de maiores níveis de regulação e intervenção no sistema financeiro é um instrumento freqüentemente citado para elevar aquilo que Studart (1995a, p. 64-65; 1995-96) chamou de eficiência macroeconômica do sistema financeiro13. É claro que, ao proporem a intervenção 13 Para Studart (1995b, p. 64-65; 1995-96), a eficiência do sistema financeiro está associada não apenas a indicadores microeconômicos (volume e custos dos recursos transacionados), mas, sobretudo, à sua funcionalidade no plano macroeconômico, de forma a constituir um instrumento efetivo de suporte ao processo de desenvolvimento econômico. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 59 do governo no sistema financeiro, ambas as escolas expõem-se à crítica neoclássica, que questiona a existência de evidências de que a intervenção do governo não produziria distorções na alocação dos recursos e corrupção. Esta crítica é claramente dirigida à escola novo-keynesiana por autores como Jaramillo-Vallejo (1994, p. 54), que argumenta que o tipo de intervenção proposta por Stiglitz (1994) “has led everywhere to a burst of corruption and other undesirable effects”, concluindo que as falhas de governo são maiores do que as falhas de mercado que motivariam algum tipo de intervenção. Embora a visão pós-keynesiana não trabalhe com o conceito de falha de mercado, a crítica quanto à qualidade da intervenção proposta pode, claramente, ser estendida às soluções preconizadas por esta escola. Essas críticas deixam clara a necessidade – de resto não contestada pelos autores novo- e pós-keynesianos – de regulação da própria intervenção do Estado no sistema financeiro. Referências AKERLOF, George. The market for “lemons”: quality uncertainty and the market mechanism. The Quarterly Journal of Economics, v. 84, n. 3, 1970, p. 488-500. AMADO, Adriana M. A. Questão regional e o sistema financeiro no Brasil: uma interpretação pós keynesiana. Estudos Econômicos, v. 27, n. 3, 1997. ARESTIS, Philip. Money, pricing, distribution and economic integration. New York: St. Martin’s Press, Inc., 1997. ARESTIS, Philip; DEMETRIADES, Panicos. Financial development and economic growth: assessing the evidence. Economic Journal, v. 107, p. 783-799, 1997. ARESTIS, Philip; DEMETRIADES, Panicos. Finance and growth: is Schumpeter “right”? Revista Análise Econômica, n. 30, ano 16, p. 1-19, set. 1998. BRAGA, Márcio Bobik. 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Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 63 64 | A evolução da política industrial da Bahia: uma abordagem institucionalista 4 A EVOLUÇÃO DA POLÍTICA INDUSTRIAL DA BAHIA: UMA ABORDAGEM INSTITUCIONALISTA Antônio Glauter Teófilo Rocha* Resumo O objetivo principal deste artigo é descrever e analisar o processo de evolução da política industrial da Bahia na última década e meia, buscando entender os interesses, as motivações e os conflitos entre os diversos agentes e os demais aspectos políticos e institucionais envolvidos. Para atingir esse objetivo, além de extensa revisão da literatura, foi realizado um estudo de caso acerca da implementação da política industrial da Bahia no referido período. O artigo está estruturado em cinco seções. Após uma breve introdução, aborda-se, de forma resumida, a evolução recente da economia baiana. Em seguida, apresentão-se, sucintamente, as peculiaridades do contexto político e institucional do Estado nas últimas décadas. E, por fim, descreve-se, analiticamente, a evolução da política industrial da Bahia, no período 1991-2003, e apresenta-se algumas considerações finais. Palavras-chave: Política Industrial. Incentivos Fiscais. Guerra Fiscal. Bahia. Localização Industrial. Abstract The main objective of this article is to describe and analyze the evolution of the State of Bahia’s industrial policy in the last 15 years. We will try to explain the interests, motivations and conflicts between the different actors as well as other political and institutional aspects involved. To accomplish this objective, along with an extensive literature review, we carried a case study on the implementation of Bahia’s industrial policy over the last two decades. The article is organized in five sessions. After a brief introduction, we approach the recent evolution of Bahia’s economy. Following that, we present the peculiarities of Bahia’s political and institutional scenario. And finally, we analytically describe Bahia’s industrial policy in the period of 1991-2003. Key-words: Industrial Policy. Tax Incentives. Fiscal Wars. Bahia. Industrial Location. * Doutor em Engenharia de Produção; Professor Adjunto da PUC/Rio. E-mail: [email protected] Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 65 Introdução Nas últimas décadas, os governos subnacionais brasileiros vêm utilizando programas estaduais de desenvolvimento baseados na atração de investimentos externos, via incentivos fiscais e outros incentivos. Essas interferências nas decisões de alocação dos investimentos privados no País têm sido motivo de disputas e conflitos entre seus entes federativos. Essas disputas foram intensificadas ao longo da década de 90 e ficaram conhecidas como ‘guerras fiscais’, dando margem ao surgimento de um polêmico e polarizado debate sobre o assunto no Brasil. Por um lado, essas políticas são vistas como “a pior alternativa possível para a intervenção do setor público no processo de inversão privada” (CAVALCANTI; PRADO, 1998, p. 42) ou como “políticas do desperdício” (ARBIX, 2002). Por outro, são defendidas como instrumentos para promover o catch up dos estados menos desenvolvidos, em relação aos mais desenvolvidos, e diminuir desigualdades regionais, quando os governos nacionais se ausentam dessas funções (AMARAL FILHO, 2003). Ambas as correntes procuram avaliar esse fenômeno por perspectivas que envolvem uma racionalidade exclusivamente econômica, quando não puramente tributarista. Entretanto, essa questão envolve aspectos políticos e institucionais que dificilmente poderiam ser satisfatoriamente capturados por esse tipo de análise. O desenvolvimento dessas políticas de atração de investimentos é um processo evolucionário e os processos de tomada de decisão envolvidos na definição de seus rumos não são norteados apenas por determinantes econômicos, nem mesmo puramente racionais. Além disso, eles têm negligenciado um aspecto fundamental do processo de implementação dessas políticas: os governos aprendem, as políticas evoluem. Nesse contexto, este artigo tem como objetivo principal descrever e analisar o processo de evolução da política industrial da Bahia na última década e meia, buscando entender os interesses, as motivações e os conflitos entre os diversos agentes e os demais aspectos políticos e institucionais envolvidos. Para atingir o objetivo proposto, além de extensa revisão da literatura, foi realizado também um estudo de caso acerca da implementação da política industrial da Bahia no referido período. O método de estudo de caso foi escolhido porque, normalmente, fornece evidências decisivas a favor ou contra teorias políticas ou institucionais. Além disso, acredita-se que esse método é o que melhor se adapta à natureza desorganizada e fluida das informações envolvidas nesta pesquisa, que são essencialmente qualitativas. Foi utilizado, nesse estudo de caso, o que Van Evera (1997) denomina de método de “process tracing”, ou seja: explorou-se a cadeia de eventos e os processos de tomada de decisão envolvidos na implementação da política industrial da Bahia, para entender 66 | A evolução da política industrial da Bahia: uma abordagem institucionalista seu processo de evolução nos últimos 15 anos, assimilando, inclusive, como os aspectos políticos e institucionais atuavam nesses processos. No desenvolvimento desse estudo de caso foram utilizados dois instrumentos principais de pesquisa: a pesquisa documental e a realização de entrevistas semi-estruturadas, com atores relevantes, envolvidos no processo de implementação das políticas estudadas. No que se refere à pesquisa documental, as principais fontes de informação foram, primeiro, a legislação sobre as políticas de incentivos fiscais dos estados e, em segundo lugar, seus planos de governo e seus relatórios de execução orçamentária. As entrevistas foram realizadas com executivos das principais agências governamentais envolvidas na implementação dessas políticas, tais como a Secretaria de Indústria e Comércio e Mineração – SICM; a Secretaria de Planejamento, Ciência e Tecnologia – SEPLANTEC; a Secretaria da Fazenda – SEFAZ; e a Agência de Fomento do Estado da Bahia – DESENBAHIA. Além disso, foram realizadas, também, com pesquisadores da Universidade Federal da Bahia – UFBA e vários consultores externos envolvidos no processo de implementação da política. Este artigo está estruturado em cinco seções. Além desta introdução, na segunda seção será abordada, de forma resumida, a evolução recente da economia baiana. Na terceira seção, será apresentada, de forma bastante sucinta, as peculiaridades do contexto político e institucional do Estado nas últimas décadas. Na quarta seção, será descrita analiticamente a evolução da política industrial da Bahia, no período 1991-2003. Por fim, na quinta seção, serão apresentadas algumas considerações finais. A evolução recente da economia baiana Segundo Teixeira e Guerra (2000), o desenvolvimento industrial da Bahia ocorreu entre os anos de 1950 e 1980 e foi resultado de uma dinâmica predominantemente “exógena e espasmódica”. A industrialização do Estado foi fortemente apoiada em intervenções federais planejadas1 e na vinda de capitais externos. Além disso, sua trajetória foi marcada por blocos de investimentos concentrados no tempo. Os mesmos autores mostram que três grandes blocos de investimentos marcaram essa trajetória. O primeiro, ainda nos anos 50, foi decorrente dos investimentos da Petrobras na instalação da refinaria Landulfo Alves – RLAM, após a descoberta de óleo e gás nos campos do recôncavo baiano. O segundo, no âmbito da política federal de desconcentração industrial da década de 60, derivou da criação 1 Por meio de incentivos fiscais e financeiros; pela realização de investimentos em infraestrutura e, também, pela participação acionária, sobretudo no setor petroquímico. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 67 do Centro Industrial de Aratu – CIA, implantando, no Estado, um parque metalmecânico composto por fornecedores de equipamentos e por alguns produtores de bens leves de consumo. O terceiro veio com a criação do Complexo Petroquímico de Camaçari – COPEC, no contexto do II Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND. No que se refere às últimas décadas, avaliando o comportamento do PIB, Menezes (2000) argumenta que a evolução recente da economia baiana apresenta três fases distintas. A primeira fase compreende a segunda metade da década de 80, em que houve uma clara perda de participação da economia do Estado na economia nacional. A Bahia que, em 1985, era responsável por 5,35% do PIB do País, fechou a década representando apenas 4,49% desse PIB. Segundo o autor, a desaceleração e a perda de participação da Bahia na economia brasileira, no período em questão, foram motivadas tanto pelo desmonte das políticas de desenvolvimento regional do Governo Federal como, também, pela estagnação do setor industrial do Estado, devido à maturação dos investimentos do pólo petroquímico de Camaçari e pelo início da crise nos segmentos tradicionais da agricultura baiana, especialmente cacau, sisal, fumo, mamona, algodão e café.2 Na segunda fase, que abrange a primeira metade dos anos 90, a economia do Estado também perdeu participação na economia brasileira, passando de 4,49% do PIB nacional, em 1990, para 4,14%, em 1995. É, portanto, um período de pequena queda relativa, ou quase estagnação, do PIB. Nesse período, segundo Menezes (2000), além dos problemas que o Estado já vinha enfrentando desde a década anterior, os movimentos da globalização, da abertura da economia brasileira e da constituição do Mercosul criaram dificuldades adicionais, no plano externo, mas também algumas oportunidades para a economia do Estado. Vale ainda ressaltar que, nos primeiros anos da década de 90, devido à elevada concentração de sua economia em commodities petroquímicas, a Bahia sentiu mais fortemente os efeitos das transformações estruturais da economia brasileira daquele período.3 2 Esses produtos passaram de 62% do VAB da agricultura baiana, em 1985, para apenas 25,3%, em 1996. 3 Cavalcante (2002) lembra que, com a abertura da economia brasileira, as alíquotas modais de importação de diversos produtos petroquímicos de segunda geração caíram abruptamente, de 60% para 2% no início da década de 90 (voltando a um patamar médio de 14% a partir da segunda metade da década), expondo, portanto, o principal segmento industrial do Estado a uma acirrada e repentina concorrência internacional. Portanto, nesse contexto, o setor petroquímico e os outros setores produtores de bens intermediários iniciaram um processo de intensa reestruturação,caracterizado pela busca de ganhos de produtividade por meio de automação, fusões, incorporações, terceirização e redução dos postos de trabalho. O setor petroquímico, por exemplo, reduziu o número de empregos diretos de 15 mil, em 1990, para 13 mil, em 1994. 68 | A evolução da política industrial da Bahia: uma abordagem institucionalista Entretanto, cabe destacar que, segundo Uderman e Menezes (1998), nos primeiros anos da década de 90, durante o terceiro governo de Antônio Carlos Magalhães (1991-1994), foram gestados alguns fatores que viriam a cumprir papel importante no início da recuperação da economia da Bahia, já na segunda metade dessa década. Por um lado, iniciou-se um processo de modernização do aparelho estatal e o saneamento das finanças públicas, deteriorados no governo anterior. Por outro, o governo do Estado retomou os investimentos em infra-estrutura e estabeleceu, ainda que em bases iniciais, uma postura mais pró-ativa na atração de investimentos e no estímulo à competitividade da indústria instalada. Por fim, com a estabilização da economia e o controle da inflação no País, a partir do Plano Real, e a conseqüente retomada dos investimentos privados na economia brasileira, configura-se a terceira fase mencionada por Menezes (2000). Essa fase inicia-se na segunda metade da década de 90, aparentemente continuando nos primeiros anos do século XXI, quando a economia baiana começa a inverter o movimento de declínio dos anos anteriores. Nessa fase, há uma leve recuperação da economia do Estado e a participação relativa do PIB da Bahia no PIB nacional passou de 4,14%, em 1995, para 4,4%, em 2000. Para muitos estudiosos contemporâneos da economia baiana, essa recuperação recente deve-se, em grande parte, à atuação agressiva do governo baiano na ‘guerra fiscal’ (UDERMAN; MENEZES, 1998; MENEZES, 2000; TEIXEIRA; GUERRA, 2000; CAVALCANTE, 2002; CAVALCANTE; UDERMAN, 2003). O Governo do Estado, motivado por esses condicionantes externos e internos,4 intensificou o uso da política de atração de investimentos via incentivos fiscais e financeiros, para tentar mudar o quadro de estagnação e declínio que a economia baiana vinha atravessando desde meados da década de 80. De fato, o governo iniciou sua política de incentivos fiscais no início dos anos 90, mas, devido à escassez de investimentos privados no País nos primeiros anos dessa década, o Estado não conseguiu atrair, naquele momento, um volume significativo de investimentos. Contudo, a partir do Plano Real, em 1994, ocorreu um novo ciclo de investimentos na economia brasileira e a Bahia entrou forte na disputa por esses investimentos. Segundo a Secretaria de Indústria, Comércio e Mineração do Estado da Bahia – SICM, somente entre agosto de 1996 e julho de 2004, foram assinados 599 4 Recapitulando, no fronte externo tinha-se a estabilidade da economia brasileira, a retomada dos investimentos privados no País, mas, também, a ausência de políticas de desenvolvimento regional do governo federal e, no interno, o equilíbrio das finanças públicas do Estado, continuidade administrativa, credibilidade do Governo etc. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 69 protocolos de intenções para instalação de novos empreendimentos industriais no Estado5, correspondendo a um investimento previsto de aproximadamente R$ 30 bilhões, prometendo criar mais de quase 190 mil empregos diretos na indústria. Obviamente nem todos esses investimentos foram realizados. O governo baiano ainda não tem um levantamento preciso de quanto desse total foi efetivado, mas estima que pouco mais da metade deles aconteceu de fato.6 A esse conjunto de investimentos some-se, ainda, a instalação da fábrica da montadora americana Ford no início da década atual que, segundo Cavalcante e Uderman (2003), além de ser um investimento de aproximadamente US$ 1,9 bilhão7 (cerca de 8,4% do PIB baiano em 1999) e de gerar por volta de 5.000 empregos diretos no Estado, abriu perspectivas para uma maior integração da indústria baiana em direção aos bens finais de consumo durável de alto valor agregado, diminuindo a forte concentração da indústria do Estado em commodities intermediárias. Portanto, os resultados da política de atração de indústria do Estado têm gerado um clima de otimismo entre os planejadores do governo baiano, criando a expectativa de que esses empreendimentos possam alavancar novamente a economia baiana no decorrer das próximas décadas. A implantação do projeto da Ford ajudou a consolidar a crença de que os resultados dessa política podem disparar um novo ciclo de crescimento econômico. Cavalcante e Uderman (2003), especulando sobre os impactos da implantação da Ford no território baiano, ressaltam que o principal benefício dessa instalação não está na criação de empregos diretos, mas na mudança estrutural que conecta a oferta local de bens intermediários à produção industrial de produtos finais, estabelecendo efeitos ‘para frente’ e ‘para trás’ na cadeia produtiva instalada no Estado. Além disso, os autores lembram ainda outros possíveis efeitos de spillover que podem derivar da instalação de um empreendimento desse porte no Estado. Eles citam, como exemplos, o potencial de atração de novos investimentos que o complexo industrial nascido em torno da Ford pode gerar e os possíveis spillovers tecnológicos da Ford e de suas sistemistas no sistema produtivo local. Assim, apesar das inúmeras críticas que os modelos de desenvolvimento baseados em atração de investimentos externos, via incentivos fiscais, têm 5 Os principais setores beneficiados com esses investimentos foram os de couro, calçados, têxtil, confecções, eletrônico, transformação plástica, químico e automobilístico. 6 O que ainda representaria um investimento de mais de um quarto do PIB do Estado que, em 2001, foi de R$ 52 bilhões. 7 3,515 bilhões de Reais, ao câmbio do momento em que o investimento foi realizado. 70 | A evolução da política industrial da Bahia: uma abordagem institucionalista sofrido nos últimos anos pelos críticos das ‘guerras fiscais’,8 os políticos e planejadores do Governo da Bahia, em geral, alimentam grandes expectativas quanto à retomada sustentada do crescimento econômico do Estado, acreditando que esses novos investimentos atraídos poderão criar as bases para o ‘quarto salto’ da economia baiana. De fato, a política de atração de indústrias do Estado evoluiu e se aprimorou com o aprendizado ocorrido ao longo de sua implementação, nos anos 90. São exatamente seus resultados recentes que têm despertado, até mesmo nos mais céticos em relação a essa política, uma expectativa positiva em relação a seus efeitos na economia baiana, principalmente no que se refere à superação da instabilidade devida à sua forte concentração na produção de commodities intermediárias. Para tentar compreender melhor a evolução da política industrial da Bahia do início da década de 90 até os dias de hoje, faz-se necessário que sejam consideradas também algumas peculiaridades do cenário político baiano das últimas décadas, bem como seu papel na formação das elites burocráticas da administração pública estadual. Nesse sentido, antes de se entrar na descrição da evolução dessa política industrial, serão abordadas, de forma bem resumida, algumas características desse contexto político e institucional. O ‘carlismo’ e a formação das elites burocráticas baianas Nos últimos 30 anos, o cenário político baiano tem sido dominado pelo grupo político de Antônio Carlos Magalhães.9 Desde 1971, o Estado da Bahia tem sido governado quase que exclusivamente por políticos ‘carlistas’, excetuandose o período 1987-1990, quando Valdir Pires, do PMDB, foi governador do Estado.10 Os governos ‘carlistas’, por um lado, adotavam um estilo centralizador e autoritário de administrar, mas, por outro lado, privilegiavam a busca da eficiência da administração pública e da qualidade dos serviços prestados à população. Segundo Coêlho (2003): [ ... ] No contexto político baiano, os governos ACM (1971-1975) e Roberto Santos (1975-1979) dão início a um processo de desenvolvimento de um 8 Principalmente de fora do estado, em especial de diversos membros dos governos e do setor acadêmico dos estados mais desenvolvidos, como São Paulo. 9 Hoje do PFL, mas, antes, do PDS e da ARENA. 10 Nesses últimos 30 anos, o próprio Antônio Carlos Magalhães foi três vezes governador do Estado. Duas vezes indicado por colégio eleitoral (1971-1975 e 1979-1982), pela ARENA, e uma vez eleito por voto popular (1991-1994), já no PFL. Além de ACM, nesse período, o Estado foi Governado também por Roberto Santos (1975-1979, ARENA); João Durval Carneiro (19831986, PFL); Paulo Souto (1995-1998 e 2003-2007, PFL) e César Borges (1999-2002, PFL), todos do grupo político de ACM. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 71 modelo de gestão pública baseado no profissionalismo, na tecnicalidade e na formação das ‘ilhas de eficiência’ [ ... ]. Em 1979, no segundo governo de ACM é lançado na Bahia um projeto de adequação institucional mais arrojado com o intuito de modernizar a gestão pública e de racionalizar o aparelho de Estado. Conforme posto por Dutra (1990), ACM nas duas oportunidades em que esteve à frente do governo do Estado conseguiu vincular-se à burocracia civil e militar e com isso obteve condições de viabilizar seus projetos de modernização da economia, crescimento industrial e melhoria da máquina pública. [ ... ] Antônio Carlos Magalhães, atento à sua plataforma de gestão de governo, concentra esforços para também dotar a administração pública do Estado da Bahia de instrumentos de racionalidade. Sua estratégia volta-se então para a adoção de instrumentos de gestão que possam dar condições para que as administrações possam desenvolver o Estado em termos de eficiência e eficácia administrativa (COÊLHO, 2003, p. 104-105). No entanto, nos governos que seguiram ao segundo mandato de ACM, ocorreu uma desvalorização das ‘ilhas de eficiência’: no governo de João Durval Carneiro (1983-1986), eleito com o apoio de ACM, essas ‘ilhas’ passam a ser utilizadas para fins políticos de diversas naturezas; no mandato de Valdir Pires (19871990), adotou-se uma política explícita de enfraquecimento das ‘ilhas de eficiência’ criadas por ACM, com tratamento igualitário de todos os órgãos públicos, resultando em um nivelamento por baixo do setor público do Estado (SOUZA, 1991). Somente com o retorno de ACM ao Governo do Estado, para seu terceiro mandato (1991-1994), é que se procura estabelecer um novo processo de modernização do aparelho estatal: ACM inicia um novo processo de qualificação dos recursos humanos da administração pública estadual e de revalorização das ‘ilhas de eficiência’. Um dos focos dessa reestruturação foi a Secretaria da Fazenda do Estado – SEFAZ. Esse órgão deveria se transformar numa das ‘ilhas de eficiência’ do Estado, com uma burocracia profissional, qualificada, com perfil técnicogerencial e cultura empresarial. Além da SEFAZ,11 o governo baiano privilegiou também agências como a Secretaria de Planejamento, Ciência e Tecnologia – SEPLANTEC, e a Secretaria de Administração – SEAD, entre outras. Por conseguinte, observa-se que a formação das elites burocráticas baianas foi fortemente influenciada pelo grupo político de ACM que, para realizar seu projeto político, necessitava de uma burocracia profissional e qualificada na administração pública do Estado. Portanto, na história recente da Bahia, assim como no passado, observa-se que o desenvolvimento econômico do Estado tem sido influenciado pelo planejamento governamental, cultivado pelos governos ‘carlistas’ e pelas elites burocráticas locais. 11 Incluindo também a DESENBAHIA – Agência de Fomento do Estado da Bahia, sua vinculada. 72 | A evolução da política industrial da Bahia: uma abordagem institucionalista Nesse contexto é que se inicia, desenvolve e implementa a política de atração de indústrias do governo baiano, na década de 90. Assim, tanto o perfil técnico e a cultura empresarial das elites burocráticas, formadas nos governos ‘carlistas’, como o modus operandi orientado para resultados do governo baiano na era ‘carlista’, configuram-se como elementos fundamentais do processo evolutivo de desenvolvimento e implementação dessa política, pois ela se adequava muito bem à imagem de ‘governo que faz’, que os ‘carlistas’ procuravam cunhar, pois seus resultados de curto prazo eram significativos e visíveis.12 A evolução da política industrial da Bahia (1991-2003): melhoria contínua e consolidação com a Ford Ao longo da década de 90, a política industrial da Bahia evoluiu para uma posição de destaque na configuração de uma nova tentativa de alavancar o desenvolvimento do Estado. De acordo com os executivos do governo baiano, distinguem-se três fases principais na evolução dessa política. Numa primeira fase, a partir do início da década de 90, o governo a inicia timidamente, com a criação do Programa de Promoção do Desenvolvimento da Bahia – PROBAHIA, que consistia na concessão de financiamentos, com juros subsidiados, de um percentual do ICMS, para os novos empreendimentos industriais que fossem atraídos para o território baiano.13 Esse programa, principalmente nos anos de 1994 e 1995, teve como principal resultado a expansão da base produtiva anterior, tanto com a implantação de novas plantas como pela ampliação das existentes, principalmente no setor petroquímico. Nessa fase, os investimentos foram bastante concentrados nos pólos já existentes, situados na Região Metropolitana de Salvador. Em um segundo momento, a partir de 1996, além de dar continuidade ao ProBahia, o Governo começa a desenvolver programas setoriais mais focados, 12 Como a atração de centenas de novos empreendimentos industriais para o Estado e a geração de dezenas de milhares de empregos diretos na indústria. 13 O PROBAHIA financia até 75% do ICMS gerado por empreendimentos novos ou que ampliem sua capacidade nos segmentos industriais, agroindustriais, turísticos e de geração de energia elétrica. Os prazos dos financiamentos vão de 6 a 10 anos, com carência de 3 a 5 anos e juros anuais de 3%, sem atualização monetária. Esse mecanismo de concessão de incentivos, por se tratar de um financiamento concedido por um fundo legalmente constituído, com previsão orçamentária, atende inclusive às exigências da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei Complementar 24/75. Contudo, com o controle da inflação no País, a partir do Plano Real, esse mecanismo de incentivo perdeu sua atratividade, pois a grande vantagem para as empresas era a não atualização monetária das parcelas do financiamento concedido numa época de inflação elevada. Além disso, ele acarreta significativo ônus para o tesouro estadual, pois provoca aumento dos repasses para os fundos constitucionais e outros fundos criados por leis ordinárias, devido a uma arrecadação de ICMS que ocorre apenas escrituralmente para o Estado, mas que tem que ser repassada para esses fundos. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 73 como o Programa Estadual de Desenvolvimento da Indústria de Transformação Plástica – BAHIAPLAST; o Programa Estadual de Desenvolvimento da Mineração, da Metalurgia e da Transformação do Cobre – PROCOBRE; o Programa de Incentivo à Produção Têxtil e de Confecções – PROFIBRA; e os programas de apoio ao Pólo de Informática, Eletrônica e Telecomunicações de Ilhéus; entre outros. Nesses programas, além de priorizar setores específicos e estratégicos para o Estado, o governo passou a utilizar um novo mecanismo de incentivos fiscais, o sistema de crédito presumido do ICMS.14 Esse novo sistema possibilitava ao governo ser mais agressivo no uso de incentivos fiscais, sem comprometer tanto a saúde financeira do Estado. Um dos principais resultados dessa fase foi a implantação da indústria de bens leves de consumo (calçados, têxtil, confecções, alimentos e bebidas). Ademais, ao contrário do que ocorreu na fase anterior, os investimentos dessa fase aconteceram de forma menos concentrada espacialmente, pois o governo baiano muitas vezes os induziu para que fossem implantados em municípios isolados do semi-árido baiano. Por fim, no final dos anos 90, devido ao significativo impacto do esforço de atração da Ford no orçamento do Estado, na tentativa de minimizar os custos e aumentar os benefícios de longo prazo de sua política de atração de indústrias, o governo baiano iniciou um período de intensa discussão e revisão dessa política, emergindo, a partir daí, uma terceira fase em sua implementação, na qual se mudou o enfoque para uma maior seletividade dos incentivos e para uma tentativa ainda mais explícita de verticalização e adensamento de cadeias produtivas. Esse processo de revisão resultou na criação do Programa de Desenvolvimento Industrial e de Integração Econômica do Estado da Bahia – DESENVOLVE, cujo objetivo principal é, expressamente, diversificar a matriz industrial e agroindustrial da Bahia, com a integração e verticalização das cadeias produtivas estratégicas do Estado.15 Observa-se, portanto, que a política de incentivos fiscais cresceu em importância dentro da estratégia de desenvolvimento do Estado, tornando-se seu carrochefe em meados da década de 90. Além disso, ela aos poucos foi sendo 14 A grande vantagem desse sistema, em relação ao utilizado no PROBAHIA, é que ele não acarreta aumento dos repasses para os fundos constitucionais e outros fundos criados por leis ordinárias, além de ser substancialmente mais atrativo para as empresas. Entretanto, a concessão de crédito presumido sempre foi contestada por outros estados da federação, por ir de encontro à Lei Complementar 24/75. Após a Lei de Responsabilidade Fiscal, esse mecanismo de incentivo ficou ainda mais comprometido do ponto de vista legal, praticamente inviabilizando sua utilização. Exemplo emblemático dos problemas legais enfrentados com esse mecanismo no Estado foi a suspensão do PROCOBRE, em razão da ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade) proposta pelo Governo do Estado de São Paulo, devido ao uso de crédito presumido no programa. 15 O Programa DESENVOLVE foi criado pela Lei no 7.980, de 12 de Dezembro de 2001, e regulamentado pelo Decreto no 8.205, de 03 de Abril de 2002, durante o governo de César Borges. 74 | A evolução da política industrial da Bahia: uma abordagem institucionalista aperfeiçoada e sofisticada, voltando-se, por exemplo, para a atração de produtores de bens de consumo final, buscando diversificar a economia do Estado e tentando preencher e adensar suas cadeias produtivas. Com isso, o governo baiano procurou reduzir a instabilidade provocada pela concentração da indústria na produção de commodities petroquímicas, herdada do processo de industrialização das décadas passadas. O coroamento dessa estratégia veio com a instalação da indústria automobilística, que após duas tentativas frustradas do governo baiano,16 se consolidou com a vinda da Ford, que abriu o caminho para uma maior integração da indústria em direção aos bens finais de consumo durável de alto valor agregado, diversificando as commodities intermediárias. O Quadro 1 ressalta alguns dos principais acontecimentos que marcaram a evolução da política industrial da Bahia nos anos 90 e início da década atual. QUADRO 1 MARCOS NA EVOLUÇÃO DA POLÍTICA INDUSTRIAL DA BAHIA Período 1991-1994 (3o Governo de Antônio Carlos Magalhães, do PFL) 1995-1998 (1o Governo de Paulo Souto, do PFL) Marcos 1. Criação do PROBAHIA (1991), iniciando a política estadual de incentivos fiscais à indústria 2. Criação do Plano Real (1994), possibilitando início da estabilização da economia brasileira e da retomada dos investimentos privados no País. 1. Criação dos programas setoriais de incentivo à indústria: a. Programa Estadual de Desenvolvimento da Indústria de Transformação Plástica – BAHIAPLAST b. Programa Estadual de Desenvolvimento da Mineração, da Metalurgia e da Transformação do Cobre – PROCOBRE c. Programa de Incentivo à Produção Têxtil e de Confecções – PROFIBRA d. Programas de apoio ao Pólo de Informática, Eletrônica e Telecomunicações de Ilhéus, entre outros. 1999-2002 (Governo de César Borges, do PFL) 1. Atração da FORD (2000) 2. Promulgação da Lei de Responsabilidade de Fiscal 3. Primeira revisão da política industrial do Estado (2001) 4. Tentativa frustrada de ‘unificação’ das políticas de incentivos fiscais dos estados do Nordeste (2001) 5. Criação do Programa de Desenvolvimento Industrial e de Integração Econômica do Estado da Bahia – DESENVOLVE (2001) 6. Adoção de medidas voltadas para aumentar a seletividade e diminuir os custos da política. 2003-atual (2o governo de Paulo Souto, do PFL) 1. Adoção de mais medidas voltadas para aumentar a seletividade e diminuir os custos da política. 16 Antes da Ford, o governo baiano chegou a negociar a vinda da Hyundai e da Asia Motors, que acabaram não concretizando os investimentos no Estado. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 75 Entretanto, esse processo de evolução não ocorreu de forma automática, nem resultou de esforços intelectuais puramente racionais e técnicos dos tecnocratas ou políticos baianos. Envolveu também fatores políticos e institucionais, como as disputas entre os diversos órgãos da estrutura administrativa do Estado, ligadas direta ou indiretamente à implementação da política, na defesa de seus interesses e crenças ao longo de todo o processo. Portanto, o balanço de forças entre essas unidades tem sido também fator crucial na definição dos rumos da política. Entre esses órgãos, novamente a disputa de interesses principal recaiu sobre a secretaria que executa a política, a Secretaria de Indústria, Comércio e Mineração – SICM, e a Secretaria da Fazenda do Estado. A primeira defendia sua autonomia no uso dos incentivos fiscais para atrair investimentos para o território baiano e, a segunda, tentava conciliar essa política com a administração financeira e tributária do Estado. No decorrer dos anos 90, o que se observa é, também, uma especialização da agência executora da política – a SICM – na estratégia de atrair empreendimentos industriais utilizando incentivos fiscais e financeiros. Assim, os resultados de curto prazo alcançados com essa política incentivaram a intensificação de seu uso e o aprendizado gerado pelo learning-by-doing aumentou a eficiência e eficácia dessa agência na atração de investimentos. Em poucos anos, essa política passou a concentrar a maior parte dos investimentos do Governo da Bahia na área de desenvolvimento, tornando todas as outras ações dessa área, no máximo, coadjuvantes no esforço do governo de retomada do crescimento econômico. Nesse período, a esmagadora maioria dos recursos humanos e financeiros17 do governo baiano, para a área de desenvolvimento, especialmente da SICM, passou a ser consumida por essa política. Contudo, apesar dessa especialização, em decorrência da densidade e complexidade do aparato burocrático baiano, não deixou de haver, ao longo de todo esse processo, um esforço interno significativo do Governo para reflexão, discussão e avaliação da política. A atuação de órgãos como a SEFAZ, a SEPLANTEC e a DESENBAHIA – por meio da realização de estudos e avaliações e, principalmente, na formação de grupos de trabalho junto com a SICM – contribuiu expressivamente para o controle e aperfeiçoamento da política industrial baiana. 17 Para se ter uma idéia do custo da política de atração de indústrias do Estado, observe-se, por exemplo, que o custo estimado dos incentivos totais dados para atrair a Ford para o Estado foi da ordem de R$ 3 bilhões. Cavalcante e Uderman (2003) estimaram que o valor presente dos incentivos oferecidos à montadora estaria entre R$ 2,72 bilhões e R$ 2,94 bilhões, que representaria, por exemplo, cerca de 5% do PIB do Estado em 2001. 76 | A evolução da política industrial da Bahia: uma abordagem institucionalista Desses órgãos, o mais atuante no acompanhamento, avaliação e controle da política, fazendo um contraponto à especialização da SICM em atrair empreendimentos industriais externos via incentivos fiscais e financeiros, foi a SEFAZ. Essa Secretaria, uma das chamadas “ilhas de eficiência” do Estado, era politicamente forte e possuía uma burocracia bastante qualificada. Sua missão principal era zelar pelo equilíbrio fiscal do Estado, recuperado no início da década de 90, no terceiro governo de ACM. Nesse sentido, dada a natureza, no mínimo, “duvidosa” dos impactos da política de atração de indústrias sobre as finanças do Estado18, essa secretaria assumiu uma postura crítica e bastante cautelosa em relação à ela, desde o início de sua implementação. Criou, inclusive, já no início dos anos 90, uma assessoria especializada em incentivos fiscais19. Essa assessoria tinha como funções principais: acompanhar a política de atração; avaliar seus impactos no orçamento do Estado; e ajudar a SICM a desenvolver e aperfeiçoar os mecanismos fiscal-financeiros de incentivo às indústrias; entre outras. O governo baiano foi bastante eficiente e ágil no desenvolvimento, adaptação e calibração dos mecanismos de incentivos fiscal-financeiros, amenizando os impactos da política nas finanças do Estado. Somente entre 1991 e 2000, o Governo do Estado experimentou três tipos distintos desses mecanismos: o sistema de financiamento do ICMS (‘operações triangulares’), o de crédito presumido e o de dilação de prazos. Já a Secretaria de Planejamento do Estado teve uma atuação limitada. Sua participação no processo de desenvolvimento e implementação da política de incentivos fiscais baiana ocorreu de forma bastante tímida, basicamente por meio da realização de estudos e por participações marginais em grupos de trabalhos específicos. Essa participação acanhada da SEPLANTEC20 deveu-se, provavelmente, em parte, ao fato de que ela acumulava, além da elaboração do plano plurianual e do orçamento do governo, diversas outras funções de natureza operacional, como a realização de obras importantes para o Estado.21 18 Os executores da política – a SICM – alegavam que a prática de redução ou isenção de ICMS não comprometeria a receita tributária do Estado, porquanto esses incentivos seriam dados a empreendimentos industriais que não se instalariam no Estado, caso eles não fossem concedidos. Entretanto, essa hipótese foi derrubada no decorrer da implementação da política ao longo da década de 90. 19 Em Pernambuco e no Ceará foram criadas, também, em suas secretarias da fazenda,‘células’ específicas para cuidar dos assuntos relacionados às políticas de incentivos fiscais desses estados. Contudo, em Pernambuco, isso ocorreu na segunda metade dos anos 90 e, no Ceará, apenas no início da década atual. 20 Secretaria de Planejamento, Ciência e Tecnologia do Estado da Bahia. 21 Sobretudo por meio da Companhia de Desenvolvimento Urbano do estado da Bahia – CONDER, atualmente subordinada à Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 77 Esse tipo de atividade, além de sobrecarregar os recursos humanos da instituição, também gerava importantes dividendos políticos para ela, tornando, talvez, o envolvimento com a política de atração de indústrias de importância secundária para a instituição. Um exemplo emblemático da contribuição dessas agências ocorreu no processo de revisão da política de incentivos fiscais, ocorrido no final dos anos 90 e início da atual década, que originou o Programa DESENVOLVE, atualmente condutor da política de atração de indústrias do Estado. Nessa época, esboçava-se um quadro de apreensão em alguns governos de estados nordestinos sobre a sustentabilidade de suas políticas de incentivos fiscais, inclusive na Bahia. Por um lado, havia a necessidade urgente dos governos repensarem seus mecanismos de atração de investimentos à luz das mudanças que vinham ocorrendo no marco regulatório fiscal brasileiro.22 Por outro, o acirramento da competição entre algumas unidades da federação pela atração de investimentos e o elevado custo dessas políticas para os Estados, apontavam para a necessidade de revisão dos mecanismos tradicionais de concessão de incentivos fiscais. Surgiu então, no âmbito das reuniões do Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ, uma proposta de formação de um grupo de trabalho que envolveria representantes das secretarias da Fazenda e de Planejamento dos estados do Nordeste – inicialmente Bahia, Ceará, Paraíba e Pernambuco – para tentar esboçar uma proposta de superação das distorções criadas pela disputa por investimentos da chamada ‘guerra fiscal’.23 Esse grupo de trabalho interestadual passou a discutir a criação de um modelo unificado de concessão de incentivos fiscais para os estados do Nordeste. Os pontos de partida dessa discussão foram o novo modelo de política de incentivos fiscais que vinha sendo desenvolvido pelo Governo do Estado do Ceará e o modelo de classificação de projetos que estava sendo trabalhado pelo Banco de Desenvolvimento do Estado da Bahia – DESENBANCO.24 22 Principalmente devido à Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n. 101, de 4 de maio de 2000) – que estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal, visando a prevenir riscos e corrigir os desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas – e a emergência da reforma tributária brasileira, que começaram a por em xeque o uso de incentivos fiscais pelos estados subnacionais brasileiros para atrair investimentos. 23 As secretarias de Desenvolvimento Econômico ou de Indústria e Comércio desses estados, diretamente responsáveis pela implementação dessas políticas, foram afastadas inicialmente desse grupo de trabalho, pois, naquele momento, mostravam-se bastante resistentes a qualquer proposta de avaliação ou de mudança nessas políticas. 24 No âmbito de seu processo de transformação em Agência de Fomento, o DESENBANCO vinha implementando um índice que tinha o objetivo de aferir o grau de aderência dos projetos de financiamento, apresentados à instituição, aos objetivos estratégicos de desenvolvimento do Estado, indicados no Plano Plurianual do Governo Baiano. 78 | A evolução da política industrial da Bahia: uma abordagem institucionalista Esse grupo interestadual, após várias rodadas de discussão e negociação, elaborou uma proposta inicial desse modelo unificado para ser discutida com os demais estados do Nordeste. O modelo, de certa forma, funcionaria como um mecanismo de coordenação das políticas de incentivos fiscais desses estados, estabelecendo faixas diferenciadas25 de incentivos, que balizariam essas políticas. Além disso, o modelo preconizava uma postura mais seletiva dos estados na atração de indústrias e, também, a adoção de um novo mecanismo de concessão de incentivos fiscais, baseado na dilação de prazos do pagamento do ICMS.26 Segundo a proposta, os governos passariam a adotar uma nova metodologia para a seleção de projetos e para a definição dos benefícios fiscais a serem concedidos a cada um deles. Dessa forma, o prazo e o percentual dos incentivos a serem concedidos passariam a ser definidos de acordo com um índice de aderência do projeto à ‘matriz de desenvolvimento industrial’ de cada Estado,27 estabelecendo critérios mais técnicos e seletivos para a concessão dos incentivos. Esses critérios levariam em conta fatores como a repercussão do projeto na geração de empregos diretos e indiretos; a capacidade de desconcentração espacial dos investimentos; a contribuição para integração e verticalização de cadeias produtivas do Estado; o grau de desenvolvimento tecnológico dos processos produtivos e de assimilação de novas tecnologias; e a capacidade de exportação do empreendimento, bem como os impactos ambientais do projeto. Ao final do processo de discussão dessa proposta, o modelo unificado de incentivos não chegou a ser aceito por todos os Estados do Nordeste pois, entre outras razões, nem os estados menos desenvolvidos da Região aceitavam reduzir a oferta de incentivos,28 nem as secretarias de desenvolvimento econômico do 25 Isso permitia, aos estados mais pobres da Região, utilizar percentuais de incentivos maiores do que os utilizados por Bahia, Ceará e Pernambuco. 26 Nesse sistema, a empresa incentivada é beneficiada com uma dilação do prazo de pagamento do saldo devedor mensal do ICMS normal. O incentivo é dado por meio de uma cláusula que garante, à empresa, percentuais significativos de desconto sobre o saldo devedor, caso ela pague a parcela devida antecipadamente. 27 Para mais informações sobre a ‘matriz de desenvolvimento industrial’ e o ‘índice de aderência’, ver Cavalcante e Argollo (2002). 28 Os governos desses estados argumentavam que Bahia, Ceará e Pernambuco já possuíam melhores condições de infra-estrutura, maior aglomeração industrial e outros fatores naturais de atração de investimentos de que os estados mais pobres da Região não dispunham e isso os colocaria em desvantagem em relação aos primeiros, que já haviam saído na frente na disputa pelos investimentos. Além disso, muitos desses estados ainda acreditavam que a utilização intensiva de incentivos fiscais não teria custos significativos para os cofres públicos, pois como argumentou o representante do Piauí, numa das reuniões de discussão da proposta, “100% de 0 é igual a 0% de 100, portanto a política de incentivos fiscais não tem custo para o Estado e seríamos bobos em não usá-la agressivamente”. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 79 Ceará, principalmente, e de Pernambuco, eram simpáticas à proposta, que foi, então totalmente abortada pela maioria dos Estados. Todavia, a burocracia baiana continuou o trabalho de aperfeiçoamento do modelo internamente. Naquele momento, já havia sido iniciado, no Governo da Bahia, um processo de grande interlocução entre a SICM, que executava a política, com a SEFAZ, a DESENBAHIA e a SEPLANTEC, procurando articular os distintos interesses e posturas em relação à política de incentivos do Estado,29 não obstante ter falhado a iniciativa de unificação das políticas dos estados nordestinos. Manteve-se o grupo de trabalho interinstitucional que havia participado das discussões com os outros estados, para repensar a política de incentivos baiana e rever seus mecanismos de atuação. Dos trabalhos desse grupo, originou-se o Programa DESENVOLVE, que adotou a maioria das mudanças previstas naquela proposta de modelo unificado. Esse exemplo demonstra a importância da interação dos órgãos governamentais baianos no processo de desenvolvimento e implementação da política de atração de indústrias do Estado. O aprendizado interativo entre essas agências ajudou, portanto, a moldar a política, contemplando tanto os aspectos racionais e cognitivos como, também, os políticos. Durante o desenvolvimento dos trabalhos do grupo montado para rever a política, a todo o momento seus membros concorriam pela supremacia dos interesses de suas agências nas disputas internas dentro do grupo. Por exemplo, a SICM contestava veementemente a proposta da SEFAZ e do DESENBANCO de utilização do modelo matemático da matriz de aderência para classificação dos projetos e definição dos percentuais e prazos de incentivos fiscais, pois isso diminuiria sua autonomia e discricionariedade para negociar os incentivos fiscais com as empresas a serem atraídas. Na verdade, essas disputas técnicas e políticas entre os órgãos do governo não se manifestaram apenas nos trabalhos desse grupo, mas ocorreram durante todo o processo de formulação e implementação da política de atração de indústrias do Estado, desde o início da década de 90, e foram decisivas em sua evolução ao longo dessa década, influenciando decisivamente em seus objetivos, conteúdo, forma, instrumentos e, conseqüentemente, em seus resultados de curto, médio e longo prazo. 29 Naquele momento, alguns executivos do governo baiano, principalmente da SEFAZ, DESENBAHIA e SEPLANTEC, passaram a argumentar que já se fazia necessário desenvolver e implementar um novo modelo de incentivos. Esse modelo deveria atender a três condições essenciais, quais sejam, atratividade para as empresas, sustentabilidade jurídica do mecanismo e viabilidade econômica para o Governo. 80 | A evolução da política industrial da Bahia: uma abordagem institucionalista Considerações finais As evidências apresentadas neste artigo mostram que, entre outras coisas, as análises tradicionais das ‘guerras fiscais’ têm negligenciado um aspecto fundamental no processo de implementação dessas políticas: os governos aprendem, as políticas evoluem. Ou seja, o desenvolvimento dessas políticas é um processo evolutivo e seus resultados, de curto, médio e longo prazo, não são predeterminados pelo seu desenho inicial, mas dependem fortemente do aprendizado ocorrido ao longo de sua implementação. Assim, o sucesso ou o fracasso das estratégias de desenvolvimento dos governos que implementam esse tipo de política estão muito mais relacionados à sua capacidade de aprender do que, propriamente, à sua eficiência atual na execução dessas políticas ou do atual formato delas. Além disso, o estudo de caso analisado neste trabalho sugere ainda que a evolução dessas políticas não ocorre de forma perfeitamente racional e coordenada. Fatores como as disputas internas nos governos e a especialização das secretarias e agências executoras dos programas de atração de investimentos é um viés para avanços e melhorias predominantemente instrumentais dessas políticas e desempenham papel fundamental na sua evolução. Portanto, a principal lição que pode ser assimilada deste artigo é que aumentar a habilidade dos governos de “aprender a aprender” pode ser o caminho mais apropriado para tornar suas estratégias mais efetivas e sustentáveis no médio e longo prazo. Além disso, essa capacidade de aprender deve ser desenvolvida para um contexto em que o comportamento e interesses políticos dos agentes são fatores determinantes no processo de aprendizado, e ignorá-los ou tentar suprimi-los do processo pode ser desastroso. Referências AMARAL FILHO, J. do. Incentivos fiscais e políticas estaduais de atração de investimentos. Ceará: IPECE, 2003. (Texto para Discussão). ARBIX, G. Políticas do desperdício e assimetria entre público e privado na indústria automobilística. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 17, n. 48, p. 109-129, 2002. CAVALCANTE, L. R. M. T. Economia baiana: configuração estrutural, desempenho recente e perspectivas. Revista de Planejamento Estratégico, Desenbahia, p. 5774, dez. 2002. Circulação interna. CAVALCANTE, L. R. M. T.; ARGOLLO, M. S. Índice de aderência: uma proposta de aferição dos impactos econômicos e sociais de projetos de investimentos. Salvador: Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 81 Fundação Luis Eduardo Magalhães. Disponível em: <http://www.flem.org.br/ premio/resultadofinal/pflemprj10054.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2002. CAVALCANTE, L. R. M. T.; UDERMAN, S. The cost of a structural change: a large automobile plant in a brazilian less developed region. Salvador, 2003. Não publicado. CAVALCANTI, C. E. G.; PRADO, S. Aspectos da guerra fiscal no Brasil. São Paulo: IPEA/FUNDAP, 1998. COÊLHO, D. B. Descentralização e inovação institucional: a política pública de qualificação profissional em Pernambuco e na Bahia (1996-2002). 2003. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Programa de Pós-graduação em Ciência Política, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2003. MENEZES, V. O comportamento recente e os condicionantes da indústria baiana. In: BAHIA. SECRETARIA DO PLANEJAMENTO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA. Tendências da economia baiana. Salvador: Seplantec, 2000. SOUZA, C. Políticas públicas baianas: análises e perspectivas. 2. ed. Salvador: Universitária Americana, 1991. TEIXEIRA, F.; GUERRA, O. 50 anos de industrialização da Bahia: do enigma a uma dinâmica exógena e espasmódica. Bahia Análise & Dados, Salvador, SEI. v. 10, n. 1, p. 87-98, jun. 2000. UDERMAN, S.; MENEZES, V. O novo ciclo de industrialização na Bahia. In: SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. A indústria baiana nos anos 90. Salvador: SEI, 1998. p. 67-100. VAN EVERA, S. Guide to methods for students of political science. Ithaca and London: Cornell University Press, 1997. 82 | A evolução da política industrial da Bahia: uma abordagem institucionalista 5 O NOVO ENIGMA BAIANO, A QUESTÃO URBANO-REGIONAL E A ALTERNATIVA DE UMA NOVA CAPITAL1 Marcus Alban* Resumo Entre os anos 40 e 50, a Bahia viveu o enigma do não-acompanhamento da dinâmica urbano-industrial do Centro-Sul. Esse Enigma Baiano foi resolvido através de uma industrialização planejada, que lançou o estado numa trajetória de crescimento superior à média nacional. No entanto, em que pese esse dinamismo econômico, pouco se avançou em termos do desenvolvimento social e humano. E essa disparidade de dinamismos constitui um novo e importante enigma baiano. No presente trabalho, busca-se decifrar esse novo enigma através da análise dos desdobramentos sócio-urbano-regionais das políticas industriais adotadas ao longo das últimas cinco décadas, discutindo-se a possibilidade de uma nova capital como ponto de partida para um desenvolvimento mais equilibrado. Palavras-chave: Enigma Baiano. Economia Baiana. Desequilíbrios Regionais. Planejamento Urbano-regional. Abstract Between the 1940s and 1950s, the state of Bahia lived the enigma of “notfollowing” the urban-industrial dynamics seen in Central-South Brazil. This Bahian enigma was solved through the adoption of planned industrialization in the state, which set forth a growth pathway above the national average. Despite its economic dynamism, the state did not accomplish in regard to social and human development. This disparity between economic and social dynamisms comprises a new and important Bahian enigma. This article intends to decipher this new enigma by analyzing the social, urban and regional consequences of the industrial policies over the last five decades. The article is concluded with the discussion of a possible new state capital as a starting point for achieving a more balanced development. Key-words: Bahian Enigma. Bahian Economy. Regional Unbalances. Urbanregional Planning. 1 Trabalho apresentado no XI Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional – ANPUR, Salvador (Bahia), 23 a 27 de maio de 2005. * Professor do NPGA-UFBA, Doutor em Economia pelo IPE-USP. E-mail: [email protected] Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 83 O enigma baiano e o desenvolvimento econômico Tendo compartilhado da hegemonia política e econômica do país até as primeiras décadas do século XX, a sociedade baiana vivenciou, nos anos de 1940 e 1950, o ápice de uma grave crise de desenvolvimento. Com a lavoura açucareira se desmoronando, frente à pesada concorrência de produtores internacionais, e sem condições edafoclimáticas para participar ativamente do cultivo do café, a Bahia, apesar do cacau, terminou não participando do dinamismo que envolvia boa parte do Sul e Sudeste do país. O cacau, embora se desenvolvendo, como o café, desde o final do século XIX, não tinha condições para impor uma dinâmica de grandes proporções na Bahia. De um lado havia as limitações de um mercado internacional relativamente estreito e, de outro, havia as limitações internas – edafoclimáticas e de infraestrutura – que inviabilizavam a expansão acelerada da lavoura. Assim, mesmo com um preço relativo muito superior ao café, o desenvolvimento engendrado pelo cacau era limitado. Ao não participar do dinamismo do café, a Bahia, como todo o Nordeste, passou a perder posições na economia nacional. Essa perda não foi apenas quantitativa. Ocorre que, para expandir a cafeicultura, promoveu-se, no último quartel do século XIX, uma intensa imigração de europeus, provocando profundas transformações sociais. De fato, o imigrante europeu não foi apenas um substituto assalariado do antigo escravo: foi também o criador e difusor de novos padrões culturais, empresariais e tecnológicos, fundamentais ao desenvolvimento do capitalismo urbano-industrial. Na Bahia, a cultura do cacau também contou com imigrantes europeus. Estes, entretanto, constituíam uma ínfima minoria, envolvida quase sempre com a comercialização. A grande maioria dos trabalhadores era, na prática, formada por nordestinos, expulsos pela seca e pela estagnação da lavoura açucareira. Assim, ao iniciar-se a industrialização brasileira, a Bahia, e todo o Nordeste, observou, perplexa, sua mutação de região hegemônica em região periférica do novo sistema. É essa perplexidade, que atinge seu auge nos anos de 1950, que constituirá o famoso “enigma baiano”. Como bem observa Pinto de Aguiar: Os anseios generalizados da população baiana e suas elites, pela obtenção de uma taxa de crescimento econômico mais satisfatória que a atual, encontram eco e apoio na imprensa local, que abre suas colunas aos debates sobre as possíveis causas e as soluções eventuais para este problema, o qual foi denominado de enigma baiano (AGUIAR, 1977). Em síntese, o “enigma baiano” consistia na não-industrialização da Bahia, ou melhor, no por que dessa não-industrialização. A elite intelectual da época 84 | O novo enigma baiano, a questão urbano-regional e a alternativa de uma nova capital buscava então, a todo custo, desvendar o enigma para poder superá-lo. As causas levantadas iam desde “a influência materna na constituição das famílias irregulares de nossa sociedade”, sugerida por Thales de Azevedo, o que, seguindo uma perspectiva freudiana, explicaria o perfil pouco empreendedor dos baianos, até “a sangria de braços na guerra do Paraguai”, salientada por Braz Amaral.2 As razões fundamentais, contudo, eram as de natureza econômica, também levantadas na época. Em linhas gerais, seguindo-se uma análise muito próxima da aqui desenvolvida, considerava-se que: • ao não participar do dinamismo do café, a Bahia não gerava grandes excedentes passíveis de serem canalizados para a indústria; • os excedentes do cacau, além de serem relativamente pequenos, eram, em parte, canalizados para o Sudeste do país, em razão da política de câmbio vigente.3 Por outro lado, o que ficava em mãos dos produtores baianos era, em boa medida, transformado em consumo suntuoso, nem sempre realizado na Bahia; • a Bahia, nesse sentido, vivia um processo de baixa acumulação de capital, o que impedia o desenvolvimento de economias urbanas geradoras de mercados para o desenvolvimento industrial; • as elites e a população baiana, por fim, decorrente da colonização escravocrata lusitana, não detinham capacidades empresariais e tecnológicas para a aventura industrial. O lucro, salvo raras exceções, era sempre perseguido dentro de uma perspectiva mercantil. Como se observa, a Bahia não apresentava, nem de longe, as condições mínimas necessárias ao desenvolvimento do processo de industrialização. Ao contrário, com suas elites atuando dentro de uma perspectiva mercantil, o natural era uma involução constante da economia, com a canalização dos parcos excedentes gerados para o Sul e Sudeste do país, através do sistema financeiro. Para superar o enigma, portanto, tornava-se necessário reverter essa dinâmica involutiva natural, o que só poderia ser feito via planejamento. A necessidade do planejamento também não escapou à análise da elite da época. Voltando a Pinto de Aguiar: Não é por deformação profissional, sendo eu professor de economia, que aponto como primeira providência, o estudo científico do enigma baiano (...). 2 Ambas as análises citadas em Pinto de Aguiar (1977). 3 Em linhas gerais, havia uma sobrevalorização do câmbio na exportação. Sobre esse ponto, ver Mariani (1977). Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 85 Em segundo lugar a terapêutica: o planejamento. Já se foi o tempo em que se podia confiar ao automatismo do mercado (...). Planejamento não significa estatismo e sim demonstração de que o homem tem capacidade para dirigir em termos racionais os seus próprios destinos (AGUIAR, 1977). A perspectiva de que seria preciso planejar a retomada do desenvolvimento foi amplamente assumida pelo Governo de Antônio Balbino (1955-1959). Neste, sob o comando de Rômulo Almeida, constituiu-se o primeiro sistema estadual de planejamento, tendo em sua cúpula a CPE – Comissão de Planejamento Econômico (CARVALHO NETO, 2003).4 Elaborando vários estudos sobre a realidade baiana, a CPE proporia, ao final dos anos 1950, o primeiro plano de desenvolvimento do estado – o PLANDEB. Ainda que não aprovado pela Assembléia Legislativa (em razão das resistências das oligarquias rurais), o PLANDEB, especialmente em sua estratégia industrial, não deixou de ser implementado pelos governos de Balbino, Juracy Magalhães (1959 – 1963) e todos que os sucederam até o final da década de 1980. É interessante observar que o PLANDEB foi desenvolvido quase que simultaneamente ao plano elaborado pelo GTDN – Grupo Técnico para o Desenvolvimento do Nordeste, sob a coordenação de Celso Furtado. Embora contemporâneos, esses planos eram muito distintos. Enquanto o do GTDN propunha um modelo autônomo, visando a repetir, no Nordeste, a industrialização substitutiva de importações que ocorria no Sudeste,5 o PLANDEB, ainda que de maneira não explícita, propunha uma estratégia de integração ao desenvolvimento do próprio Sudeste (ALBAN, 1990). A grosso modo, a estratégia de industrialização proposta pelo PLANDEB estava fundada na produção de bens intermediários. Partindo das matérias-primas existentes, a idéia era agregar valor à produção local, para atender aos novos mercados, no Sudeste, criados pela substituição de importações (ALBAN, 2003; GUERRA; TEIXEIRA, 2000; MENEZES, 2000). Em termos econômicos, essa opção foi, sem dúvida, a mais acertada. Voltandose para mercados externos, e valendo-se também de uma forte articulação para a atração de investimentos estatais, ela não tinha as restrições do mercado local. Desse modo, sempre que a economia do Sudeste se expandia, a economia baiana, ainda que com algum retardo, crescia paralelamente. Com esse processo, a Bahia sustentou taxas de crescimento significativamente superiores 4 Tendo exercido a chefia da assessoria econômica do segundo governo Vargas, Rômulo Almeida era a pessoa ideal para o desafio do planejamento. Eleito Deputado Federal pelo PTB, Rômulo foi convidado para a Secretaria da Fazenda do Governo Balbino, assumindo as funções de planejamento (Almeida, 1986, cap. 3). 5 Para uma excelente análise da estratégia do GTDN, ver Moreira (1979). 86 | O novo enigma baiano, a questão urbano-regional e a alternativa de uma nova capital às médias nacionais (Tabela 1), superando a primazia de Pernambuco, no Nordeste, e transformando-se na sexta maior economia estadual do país. 6 TABELA 1 EVOLUÇÃO DO PIB, BAHIA/BRASIL, 1975 – 1985 Anos Bahia Brasil 1975 100,0 100,0 1976 107,8 110,2 1977 116,8 115,6 1978 130,0 121,3 1979 142,9 129,5 1980 158,7 141,3 1981 160,3 135,1 1982 169,2 135,9 1983 171,6 131,2 1984 174,8 138,2 1985 191,1 149,1 Fonte: SEI. Com a crise enfrentada pela economia nacional, a estratégia de desenvolvimento industrial, proposta pelo PLANDEB, naturalmente se esgotou. Desse modo, a partir da segunda metade dos anos 80, o governo baiano, já com um sistema de planejamento montado, começou a buscar um novo modelo de desenvolvimento. Surgindo de trabalhos diversos, esse modelo se configurou em sua totalidade no plano de governo Reconstrução e Integração Dinâmica, elaborado pela Fundação CPE, no começo dos anos de 1990. Constatando que a estratégia do PLANDEB havia criado um certo mercado de consumo final no estado, o qual, por sua vez, representava a maior parcela de todo o mercado final do Nordeste, o novo plano propunha a verticalização da indústria em direção aos bens finais. O objetivo, ainda vigente, era avançar com a agregação de valor à produção local, estabelecendo uma ponte entre a produção dos bens intermediários e o consumo dos bens finais, viabilizando a complexificação da economia. Paralelamente, propunha-se também a diversificação da base produtiva, com o desenvolvimento dos complexos agroindustriais no interior, bem como do turismo, uma vocação natural e esquecida do estado. Ainda que sem o mesmo dinamismo do PLANDEB, a nova estratégia foi, e continua sendo, implementada no estado com razoável sucesso. Assim, vencida a crise de transição, que se prolongou até o começo dos anos de 1990, a Bahia veio crescendo a taxas equivalentes às do país, mantendo, dessa forma, a sua posição relativa de sexta maior economia estadual (Tabela 2). A recente instalação do complexo automotivo da Ford, por outro lado, coroa e potencializa 6 Esse processo de industrialização será extremamente polarizado na Região Metropolitana de Salvador. De fato, iniciando-se, no final dos anos 50, com a Refinaria Landulfo Alves, em Mataripe, no município de São Francisco do Conde, a moderna industrialização dos bens intermediários se dará sempre no entorno de Salvador. Assim, nos anos 60, tem-se a implantação do CIA, em Candeias e Simões Filho, onde se localizam várias empresas metalo-siderúrgicas e químicas. Nos anos 70, vive-se o auge desse processo, com a implantação do Pólo Petroquímico, em Camaçari. O processo se consolida, por fim, com a metalurgia do cobre da Caraíba Metais, implantada em Dias D’Ávila no começo dos anos 80. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 87 a estratégia, possibilitando, ao menos nos próximos anos, a volta de um crescimento mais acelerado.7 TABELA 2 EVOLUÇÃO DO PIB, BAHIA/BRASIL, 1990 – 2001 Anos 1990 Bahia 100,0 Brasil 100,0 1991 98,5 101,0 1992 1993 100,3 103,4 100,5 105,4 1994 1995 1996 107,1 108,2 111,1 111,6 116,3 119,4 1997 1998 1999 118,4 120,4 128,0 123,3 123,5 124,4 2000 2001 128,0 130,4 129,9 131,7 Fonte: SEI. O baixo desenvolvimento social e humano Em que pese todo essa transformação produtiva alcançada pelo planejamento, não se pode dizer que a Bahia tenha, de fato, se desenvolvido. Se, em termos econômicos, o estado indubitavelmente se industrializou e cresceu, transformando-se na sexta maior economia do país, o mesmo não se pode dizer em termos sociais. Não que não tenha havido melhoras sociais, elas, porém, foram muito tímidas. Assim, como se observa na Tabela 3, em termos relativos a Bahia continua com indicadores socioeconômicos muito precários, semelhantes aos dos demais estados nordestinos. TABELA 3 INDICADORES SOCIOECONÔMICOS SELECIONADOS: BAHIA, SÃO PAULO, BRASIL - 1999 Indicador - Índice de pobreza (% de famílias pobres ou até ½ SM de renda per capita mensal) - Índice de desigualdade de renda (renda dos 10% mais ricos / renda dos 40% mais pobres) - Taxa de formalização do emprego (emprego com carteira + func. públicos / pop. ocupada) - Taxa de cobertura previdenciária (ocup. Contribuintes / pop. ocupada) - Taxa de analfabetismo (pop. > 15 anos de idade) - Taxa de analfabetismo funcional (pop. com 15 anos ou mais e com até 3 anos de estudo) - Número médio de anos de estudo (pop. de 10 anos ou mais) - Taxa de defasagem idade/série (ensino fundamental) – 2001 - Taxa de defasagem idade/série (ensino médio) – 2001 - Taxa de domicílios urbanos com saneamento básico Bahia 36,5 S. Paulo 7,2 Brasil 20,1 20,27 16,65 22,13 25,2 47,6 34,0 23,8 61,2 43,3 24,7 48,3 6,2 19,3 13,3 29,4 4,2 63,1 73,5 44,3 6,8 15,8 36,3 91,1 5,8 39,1 53,3 62,3 Fonte: IBGE e SEI. 7 A expectativa é de que, quando em pleno funcionamento, em 2006, admitindo-se a retomada da economia brasileira, o Complexo Amazon venha a agregar R$ 4,5 bilhões ao PIB baiano (em valores de 1999), gerando cerca de 64 mil novos empregos entre diretos, indiretos e efeito renda. Esses valores foram estimados por Alban et al (2000), tomando por base as matrizes de insumo-produto nacionais desenvolvidas por Najberg e Ikeda (1999). 88 | O novo enigma baiano, a questão urbano-regional e a alternativa de uma nova capital Essa mesma realidade é percebida nos indicadores de desenvolvimento humano. Como se constata na Tabela 4, a Bahia, embora ganhando, na última década, duas posições no ranking do IDH-municípios, permanece entre os 10 piores IDHs do país, juntamente com os demais estados nordestinos e o Acre. Importante observar que isso acontece em todos os três subindicadores do IDH: renda per capita, escolaridade e longevidade.8 Assim, também em termos de desenvolvimento humano, a Bahia apresenta um resultado muito aquém do desenvolvimento econômico-industrial. TABELA 4 RANKING DO IDH – MUNICÍPIOS 1991 – 2000 UF Distrito Federal São Paulo Rio Grande do Sul Santa Catarina Rio de Janeiro Paraná Goiás M. Grosso do Sul Mato Grosso Espírito Santo Minas Gerais Amapá Roraima Rondônia Tocantins Pará Amazonas Rio Gr. do Norte Ceará Bahia Acre Pernambuco Sergipe Paraíba Piauí Maranhão Alagoas IDH-M 1991 0,798 0,773 0,757 0,740 0,750 0,719 0,707 0,712 0,696 0,698 0,698 0,691 0,710 0,655 0,635 0,663 0,668 0,618 0,597 0,601 0,620 0,614 0,607 0,584 0,587 0,551 0,535 IDH-M 2000 0,844 0,814 0,809 0,806 0,802 0,786 0,770 0,769 0,767 0,767 0,766 0,751 0,749 0,729 0,721 0,720 0,717 0,702 0,699 0,693 0,692 0,692 0,687 0,678 0,673 0,647 0,633 Variação 1991-2000 0,047 0,041 0,052 0,066 0,052 0,067 0,062 0,057 0,071 0,068 0,068 0,061 0,039 0,074 0,086 0,057 0,049 0,084 0,102 0,092 0,072 0,077 0,080 0,094 0,086 0,096 0,098 Ranking 1991 1 2 3 5 4 6 9 7 12 10 11 13 8 16 17 15 14 19 23 22 18 20 21 25 24 26 27 Ranking 2000 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 Var. ranking 1991-2000 0 0 0 1 -1 0 2 -1 3 0 0 1 -5 2 2 -1 -3 1 4 2 -3 -2 -2 1 -1 0 0 Fonte: IPEA - Fundação João Pinheiro, PNUD. 8 Para a metodologia de cálculo do IDH-M, ver Najberg e Oliveira (2000). Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 89 Por que razão a dinâmica social apresentou, na Bahia, resultados tão díspares da dinâmica econômica?9 Em outros termos, como foi possível realizar um avanço econômico industrial tão grande, levando a Bahia à sexta posição no ranking nacional, com resultados tão tímidos no desenvolvimento social e humano? Este é, certamente, um novo e importante enigma baiano. Tentar decifrá-lo e, se possível, contribuir para superá-lo, são os objetivos maiores deste trabalho. A insuficiência da análise político-partidária De uma maneira geral, os tímidos resultados obtidos pela Bahia no desenvolvimento humano, vis-à-vis os resultados econômicos, são percebidos como a comprovação de um suposto esquecimento dos governos baianos com a área social. A idéia é que, por serem esses governos vinculados a partidos de direita, a preocupação central seria sempre o desenvolvimento econômico. De fato, ao se observar os governos baianos desde 1964 (Tabela 5), constata-se que, salvo no interregno da gestão Waldir Pires – Nilo Coelho, a Bahia teve sempre um viés de direita. Isso, entretanto, não é suficiente para explicar o baixo desempenho social. TABELA 5 GOVERNOS DA BAHIA PÓS 1964 Governador Luis Viana Filho Antônio Carlos Magalhães Roberto Santos Antônio Carlos Magalhães João Durval Carneiro Waldir Pires – Nillo Coelho Antônio Carlos Magalhães Paulo Ganen Souto César Borges Paulo Ganen Souto Período 1967 – 1971 1971 – 1975 1975 – 1979 1979 – 1983 1983 – 1984 1987 – 1991 1991 – 1994 1995 – 1998 1999 – 2002 2003 – Partido/ Coligação ARENA ARENA ARENA ARENA PDS PMDB PFL PFL PFL PFL Fonte: Memorial dos Governadores - Fundação Pedro Calmon. No período em análise, outros estados, a exemplo de Santa Catarina, também foram comandados preponderantemente por partidos de direita e nem por isso passaram a apresentar desempenhos sociais sofríveis. O percentual de investimentos do governo baiano na área social, por outro lado, não é baixo (Tabela 6), nem muito distinto dos estados com desenvolvimento social mais 9 Deve-se acrescentar que essa disparidade na dinâmica social é também percebida em trabalhos mais recentes, como o Atlas da Exclusão Social no Brasil, de Campos et al (2003). 90 | O novo enigma baiano, a questão urbano-regional e a alternativa de uma nova capital avançado.10 Assim, ainda que a preocupação com questões sociais possa não ter sido tão forte quanto o desejável, outras razões parecem ter contribuído, de maneira mais preponderante, para que os resultados alcançados tenham sido tão tímidos. Frente a esse contexto, a hipótese trabalhada a seguir é de que o baixo desenvolvimento humano obtido pela Bahia não resulta da ausência de ações sociais específicas, mas sim da formulação/implementação inadequada das políticas de governo. Ou seja, da inadequação das políticas de desenvolvimento, não só na área social, como, também, e sobretudo, na área econômica. Por serem inadequadas, essas políticas viabilizaram o crescimento econômico sem enfrentar verdadeiramente os graves problemas estruturais da Bahia. TABELA 6 BAHIA: DESPESAS EFETIVADAS E INVESTIMENTO MÉDIO, 1992 – 1999 Área e Função Área Social - Defesa e Seg. Pública - Educação e Cultura - Habitação e Urbanismo - Saúde e Saneamento - Trabalho - Desenvolvimento Regional Área Econômica - Agricultura - Comunicações - Energia e Rec. Minerais - Indústria, Com. e Serviços - Transportes Área Institucional - Adm. e Planejamento - Assistência e Previdência Área Legislativa e Judiciária - Legislativa - Judiciária Total Despesas* 3.766.124 445.032 1.202.290 135.648 897.297 36.189 1.049.668 680.140 178.324 5.796 54.096 125.358 316.566 2.393.344 1.705.145 688.199 442.222 109.656 332.566 7.281.830 % 51,7 6,1 16,5 1,9 12,3 0,5 14,4 9,3 2,4 0,1 0,7 1,7 4,3 32,9 23,4 9,5 6,1 1,5 4,6 100,0 Investimentos* % 672.561 43,1 25.492 1,6 183.874 11,8 110.123 7,1 265.657 17,0 877 0,1 86.538 5,6 313.291 20,1 26.821 1,7 3.204 0,2 37.170 2,4 52.782 3,4 193.314 12,4 543.312 34,9 442.079 28,4 101.233 6,5 29.761 1,9 2.710 0,2 27.051 1,7 1.558.925 100,0 Total 4.438.685 470.524 1.386.164 245.771 1.162.954 37.066 1.136.206 993.431 205.145 9.000 91.266 178.140 509.880 2.936.656 2.147.224 789.432 471.983 112.366 359.617 8.840.755 % 50,2 5,3 15,7 2,8 13,2 0,4 12,9 11,2 2,3 0,1 1,0 2,0 5,8 33,2 24,3 8,9 5,3 1,3 4,1 100,0 Fonte: Silva (2003, p. 160), para os dados de despesa, e Margarethe (2003, p. 167), para os dados de investimento. Ambos com base nos Balanços Anuais do Estado. * Valores em R$ 1.000,00, corrigidos para preços médios de 2001, com base no deflator implícito do PIB. 10 A rigor, como demonstram os dados consolidados por Fernandes (1998), para o ano de 1995, tanto em termos de percentual da despesa efetiva quanto em percentual do PIB, o gasto social baiano supera os percentuais médios obtidos pelos estados socialmente mais avançados do Sul e do Sudeste. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 91 As fragilidades do desenvolvimento baiano Para testar a hipótese de que o baixo desenvolvimento humano da Bahia não resulta da ausência de ações sociais específicas, mas da inadequação das políticas de desenvolvimento, é preciso conhecer, antes, as características estruturais dos estados com os 10 maiores IDHs do país.11 De fato, apenas com base nessas características é possível analisar as políticas de desenvolvimento empreendidas pelo governo baiano – bem como pelo governo federal, no tocante ao desenvolvimento regional –, verificando suas possíveis falhas no processo de desenvolvimento. Em linhas gerais, como se observa na Tabela 7, os estados de melhores IDHs não conformam um único grupo homogêneo. Ao contrário, se subdividem em três tipos de estados/desenvolvimento, com características bastante distintas. No primeiro grupo estão os estados da federação com territórios pequenos e fortes economias urbanas metropolitanas. Nesse grupo, composto pelo Distrito Federal, Rio de Janeiro e Espírito Santo, o IDH é relativamente elevado porque a maior parte da população encontra-se envolvida com a economia urbanoindustrial das respectivas metrópoles. Assim, com uma população que cresce a taxas baixas, garante-se, relativamente, elevados padrões de renda per capita, educação e saúde. TABELA 7 CARACTERÍSTICAS GEOGRÁFICAS E SOCIOECONÔMICAS DOS 10 ESTADOS COM MAIORES IDHS Estado Distrito Federal São Paulo R.Grande do Sul Santa Catarina Rio de Janeiro Paraná Goiás M.Grosso do Sul Mato Grosso Espírito Santo Renda População per capita (em mil) 15.725 10.642 9.129 8.541 10.160 7.511 4.898 6.505 5.650 7.148 2.102 37.645 10.306 5.448 14.570 9.689 5.114 2.112 2.558 3.153 Área Densidade km² Pop/km² 5.794 248.256 280.674 95.318 43.653 199.324 340.166 357.471 901.421 45.733 362,8 151,6 36,7 57,2 333,8 48,6 15,0 5,9 2,8 68,9 Diversidade Importância Importância R. MetroCidades Econômica* politana* Médias* Alta Baixa Baixa Alta Alta Alta Média Alta Alta Baixa Alta Alta Alta Baixa Alta Média Alta Alta Baixa Baixa Baixa Baixa Baixa Baixa Baixa Baixa Baixa Alta Baixa Média Fonte: IBGE, dados de renda per capita e população para 2001. * Tipologias formuladas pelo autor, com base em fontes diversas. 11 O estudo necessita ser tipológico, pela diversidade estrutural encontrada entre os 10 maiores IDHs. O Distrito Federal e São Paulo, por exemplo, são os dois maiores IDHs: suas especificidades, entretanto, não permitem estabelecer uma média entre ambos para definição de um padrão de análise único. 92 | O novo enigma baiano, a questão urbano-regional e a alternativa de uma nova capital O segundo grupo é caracterizado por estados de grande extensão territorial, mas de baixa densidade demográfica. São os estados vazios que compõem o Centro-Oeste, onde se desenvolve a expansão da fronteira agrícola brasileira. Por associarem essas duas características – serem vazios demográficos e possuírem uma dinâmica economia agrícola e agroindustrial – esse grupo, composto por Goiás, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, garante uma renda per capita relativamente elevada, com a qual se criam as condições para um desenvolvimento social e humano também elevado.12 Por fim, no terceiro grupo estão os estados que, além de possuírem grandes extensões territoriais, são densamente povoados. Esses estados, com economias diversificadas e complexas ocupando todo o território, são fortemente infraestruturados e possuem uma estrutura urbana caracterizada por importantes cidades médias. Com essas características, esse grupo, composto pelos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, agrega, à dinâmica metropolitana do primeiro grupo, a forte economia urbana e a maior qualidade de vida das cidades médias, que conformam, em grande medida, as condições básicas para os elevados IDHs.13 Analisando, a partir dessas características, a situação da Bahia, observa-se que a dinâmica de industrialização polarizou todo o processo de crescimento no entorno de Salvador. De fato, iniciada, no final dos anos 50, com a RLAM – Refinaria Landulfo Alves, no município de São Francisco do Conde, a moderna industrialização dos bens intermediários se dará sempre na RMS – Região Metropolitana de Salvador.14 Assim, nos anos 60, tem-se a implantação do CIA – Centro Industrial de Aratu, em Candeias e Simões Filho; nos anos 70, vive-se o auge desse processo, com a implantação do Pólo Petroquímico, em Camaçari; e nos anos 80, por fim, essa dinâmica se consolida com a metalurgia do cobre da Caraíba Metais, implantada em Dias D’Ávila.15 12 Observe-se que a renda per capita de Goiás, a pior do grupo, é quase 24% superior à da Bahia. 13 Para uma excelente análise da importância das cidades médias nos estados de Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, ver Motta (2000). Para uma análise mais teórica do tema, ver Amorim Filho Serra (2001). 14 A RMS é formada pelos municípios de Camaçari, Candeias, Dias D’Ávila, Itaparica, Lauro de Freitas, Madre Deus, Salvador, São Francisco do Conde e Vera Cruz. 15 Essa extrema polarização, é claro, não surgiu por acaso. Ao contrário, foi intencionalmente planejada. Ocorre que, para atrair as grandes empresas produtoras dos bens intermediários, além de incentivos fiscais, era necessária, também, uma infra-estrutura física e urbana mínima, na época só existente em Salvador. A península de Salvador, contudo, já tinha bastante ocupada a sua face voltada para a Baía de Todos os Santos. Assim, a saída encontrada foi a interiorização para os municípios do seu entorno, onde já havia alguma infra-estrutura física, em função da RLAM. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 93 Deve-se acrescentar que o crescimento não foi apenas industrial. Além dos serviços empresariais, naturalmente demandados com as grandes empresas produtoras de bens intermediários, surgiu também toda uma nova classe média urbana que, por sua vez, sobretudo em Salvador, engendrou o desenvolvimento do comércio e o surgimento de inúmeras pequenas e médias empresas de serviços. Assim, com a industrialização, Salvador e a RMS cresceram aceleradamente, gerando fortes economias urbanas e elevados padrões de IDHs. Se a Bahia fosse um estado territorialmente pequeno, ou seja, se Bahia se resumisse ao Recôncavo, ou mesmo ao conjunto das regiões litorâneas, essa dinâmica, a exemplo do que ocorre com os estados do primeiro grupo, seria certamente suficiente para colocá-la entre os 10 maiores IDHs do país. O mesmo acontece, vale acrescentar, com a dinâmica que se processa no oeste do estado. Nessa macrorregião, a Bahia é um imenso vazio demográfico vivenciando uma forte expansão agrícola e agroindustrial. Tem-se, assim, um processo muito semelhante ao vivenciado pelos estados do segundo grupo.16 A Bahia, contudo, não se resume ao conjunto do Oeste e da RMS. Como se sabe, entre o litoral e o oeste do estado, a Bahia possui um imenso semi-árido, onde vive boa parte da sua população.17 A Bahia, portanto, como os estados do terceiro grupo, possui um grande território com razoável densidade populacional. Desse modo, para apresentar um elevado desenvolvimento humano, a Bahia, como esses estados, teria que apresentar, também, uma ampla infra-estrutura que lhe possibilitasse uma economia diversificada e complexa ocupando todo o território. Além disso, teria que possuir uma boa parte de sua população residindo em cidades médias. Como nada disso acontece, nem foi planejado para acontecer, a Bahia, embora estando entre as 10 maiores economias do país, apresenta um dos 10 piores IDHs. Como visto, o grosso da infra-estrutura de transporte e energia do estado foi planejada e implantada para atender apenas a RMS e o litoral do estado. Assim, é muito difícil desenvolver o interior do estado.18 A população, por outro lado, salvo a residente na RMS, está dispersa pelo campo e numa miríade de pequenos municípios, quase todos com pouquíssima infra-estrutura.19 Dessa 16 A região Oeste, que conforma todo o “além-São Francisco”, detém apenas 3,6% da população do estado. 17 Importante observar que essa população, de pouco mais de 5 milhões de habitantes, é ainda preponderantemente rural. De fato, de acordo com o censo de 2000, a Bahia tem ainda 32,95% de sua população vivendo no campo, o que equivale a 4,3 milhões de pessoas, “o maior contingente rural, em termos absolutos, de todo o Brasil” (RIBEIRO, 2002). 18 Toda a dinâmica agroindustrial do Oeste, por exemplo, encontra-se, hoje, estrangulada pela falta de infra-estrutura para escoamento. Sobre esse ponto, ver Alban (2002, Cap. 1). 19 Importante observar que a Bahia possui 417 municípios. 94 | O novo enigma baiano, a questão urbano-regional e a alternativa de uma nova capital maneira, não é de se estranhar que Salvador detenha 18,7% da população do estado e, junto com os demais municípios da RMS, alcance a marca de 23,1%. Acrescendo a esse montante a população de Feira de Santana, que numa visão ampliada também compõe a RMS, chega-se à marca de 26,8%.20 Em termos do PIB, essa concentração é ainda maior, com a RMS representando quase 47% de toda a riqueza gerada. Fora da RMS, por outro lado, excluindose Feira, somente Vitória da Conquista ultrapassa ligeiramente a marca de 2% da população. Já a participação de Vitória da Conquista no PIB não chega a 1,3%.21 Como se observa, a Bahia é um estado sem cidades médias. Dessa maneira, quase só se tem economia urbana na RMS, o que faz com que a população, sem maiores alternativas no interior, migre para a mesma de forma excessiva, engendrando problemas crescentes de favelização, violência e desemprego, mesmo com todo o dinamismo da região. 22 O impasse eleitoral dos desafios urbano-regionais Naturalmente, todo esse processo não se desenvolve sem o conhecimento do governo baiano. Ainda que um diagnóstico, como o aqui proposto, nunca tenha se efetuado em sua totalidade, a percepção da dinâmica concentradora da RMS e de seus problemas decorrentes é bastante antiga. Nesse sentido, várias estratégias, visando à desconcentração do desenvolvimento, já foram intentadas no estado. Estratégias que vão desde a implantação de distritos industriais no interior até o fomento de agroindústrias no oeste. Todas elas, no entanto, fracassaram ou apresentaram um sucesso relativamente limitado. A razão para esse desempenho tão pequeno, nas tentativas de interiorizar o desenvolvimento, é que elas nunca se deram associadas a uma estratégia efetiva de interiorização da infra-estrutura, inclusive no que toca a infra-estrutura urbana, visando à constituição de uma rede de cidades médias. Com isso não se está dizendo que o governo nunca tenha planejado a interiorização da infraestrutura. Ao contrário, esse objetivo sempre foi presente nos seus planos de governo. Ele, entretanto, na prática da aplicação dos recursos, nunca se coloca como uma verdadeira prioridade. Assim, entre se concentrar recursos para uma efetiva infra-estrutura de transportes, ligando, por exemplo, o oeste do 20 Percentuais calculados com base em dados censitários de 2000. 21 Percentuais calculados com base em dados da SEI-SEPLAN para o PIB, por municípios, em 2000. 22 Como se pode perceber, embora a concentração na RMS tenha sido, a curto prazo, benéfica para a mesma, a médio e longo prazo tende a inviabilizá-la. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 95 estado ao litoral, fica-se, sempre, com a implantação de ligações asfaltadas a todas as sedes municipais. Do mesmo modo, entre se concentrar recursos em municípios com potencial para se transformarem em cidades médias ou a adoção de políticas com pequenas intervenções num vasto número de municípios, fica-se também com a segunda opção. As razões para essas opções por políticas pulverizadoras são claramente eleitorais: se os recursos são escassos, melhor diluí-los em ações de pequeno porte, no maior número de municípios possível. Concentrá-los em poucos municípios, ou numa dada região, embora tecnicamente mais acertado, implica excluir municípios e regiões que, naturalmente, migram para a oposição. Dessa maneira, com a pulverização, especialmente nos municípios pequenos, garantese uma melhor votação para o partido da situação. A única exceção às políticas pulverizadoras são, obviamente, os investimentos em infra-estrutura na RMS. Além de possuir a base industrial do estado – e cerca de 25% do eleitorado – a RMS é, também, a sede e a vitrine do poder político do Estado. Dessa maneira, tanto em termos econômicos quanto em termos sociopolíticos, justifica-se – e se aceita – a elevada concentração dos investimentos e gastos governamentais nessa região, o que viabiliza e potencializa a continuidade da concentração socioeconômica, com todos os problemas decorrentes. É importante observar que essa não é uma dinâmica inerente e exclusiva aos partidos de direita que, como já visto, vem dominando a Bahia ao longo das últimas décadas. Ocorre que, dado o sistema político-eleitoral vigente, seja qual for o partido que chegue ao poder, a tentação para buscar se manter no poder adotando políticas pulverizadoras é muito grande. De fato, como no sistema eleitoral brasileiro não existe nenhuma vinculação entre a eleição dos candidatos e o seu desempenho nas regiões, a disputa para o governo se dá voto a voto, município a município. Dessa maneira, nada mais eficiente do que essas políticas pulverizadoras. 23 A alternativa de uma nova capital Como se observa, o novo enigma baiano tem suas origens no sistema políticoeleitoral brasileiro, que não cria incentivos para projetos estruturantes de regiões e redes de cidades. Como cada voto é um voto, melhor atender, a curto prazo, ao maior número de eleitores possível. Lógico que uma saída definitiva para essa questão exigiria uma profunda reforma do sistema político-eleitoral brasileiro, 23 Um bom exemplo dessa lógica, embora numa outra esfera, é a ação do PT no Governo Federal que, não por acaso, nas ultimas eleições, obteve seu melhor desempenho nos municípios de pequeno porte. 96 | O novo enigma baiano, a questão urbano-regional e a alternativa de uma nova capital reforma essa que, contudo, deverá demorar ainda muitos anos. Assim, até lá, para se evitar o contínuo agravamento dos problemas, é preciso pensar em alternativas de curto prazo, ou seja, pensar em alternativas de efetiva interiorização do desenvolvimento, com viabilidade política mesmo no atual sistema político-eleitoral. É nesse contexto de agravamento dos problemas, e de busca de alternativas com viabilidade política, que, a título de conclusão, se propõe aqui – para o estudo da academia e dos organismos de planejamento governamentais – a criação de uma nova capital para o estado. Ou seja, a criação de uma importante cidade média no interior, para instauração de uma nova capital. Seguindo o padrão adotado nos casos de Belo Horizonte, Brasília e, também, em vários estados norte-americanos, a idéia seria instaurar a nova capital na Chapada Diamantina – centro geográfico do estado.24 Com isso, não só se criaria uma importante cidade média, como viabilizar-se-ia uma maior integração do estado, especialmente das regiões do Oeste e do Vale do São Francisco.25 Deve-se notar que essa estratégia, além de não privilegiar nenhuma das cidades existentes – o que lhe confere viabilidade política –, pode ser empreendida a um custo líquido relativamente baixo. Ocorre que, como a RMS já ultrapassou a marca de 3 milhões de habitantes, e expande-se a uma taxa em torno de 2% ao ano, se nada for feito, em cerca de 8 anos serão mais 500 mil habitantes na região. Isso, naturalmente, exigirá a expansão da infra-estrutura existente, infra-estrutura que, em várias vertentes, já apresenta claras deseconomias de escala.26 Assim, nada melhor do que alocar esses novos habitantes, e a infraestrutura requerida, numa nova capital.27 24 É importante observar que a idéia de uma nova capital para o estado já foi proposta antes por Antonio Mota de Oliveira (1951). Em 1958, Milton Santos voltou ao tema, discutindo uma outra proposta formulada pelo General José Lôbo. Discordando da oportunidade da proposta, Santos sugeriu que se fomente, antes, o desenvolvimento das cidades médias (1958). 25 Sucede que um dos principais desafios econômicos da Bahia é a implantação de uma ligação ferroviária do Oeste com o sistema portuário da Baía de Todos os Santos. Com ela torna-se possível, não só o escoamento de safras bem maiores, como também a expansão da produção de fertilizantes e implementos agrícolas no complexo industrial da RMS (ALBAN, 2002, Cap. 1). Essa ligação, contudo, tem, como principal obstáculo a vencer, o grande vazio econômico do semi-árido. Assim, com o desenvolvimento de uma importante cidade média na Chapada Diamantina, superar-se-ia, em grande medida, esse obstáculo. Para uma outra análise, abordando a importância de uma cidade média na Chapada Diamantina com funções integradoras equivalentes às de Brasília, ver Avena (2002). 26 Entre outros aspectos, nos referimos aqui à infra-estrutura de transporte urbano, que já está exigindo a implantação de um sistema metroviário, e também à infra-estrutura de saneamento que, como se sabe, nos últimos anos exigiu vultosos investimentos. 27 É importante ressaltar que, com essa proposta, não se pretende desacelerar o desenvolvimento de Salvador. Ao contrário, o que se espera é que, com a mudança da capital, Salvador possa se desenvolver ainda mais. Esse desenvolvimento, contudo, seria muito mais qualitativo que quantitativo. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 97 Claro que a criação de uma nova capital não resolve todos os problemas. Ela é, contudo, um importante primeiro passo, especialmente se for acompanhado de uma maior descentralização administrativa, reforçando os embriões de cidades médias já existentes nas demais regiões.28 A criação da nova capital, portanto, é uma proposta com inúmeros desdobramentos potenciais que, acreditamos, podem ajudar a Bahia a retomar o seu crescimento, de forma articulada a um desenvolvimento social e humano bem mais justo e equilibrado. Referências AGUIAR, P. Notas sobre o enigma baiano. Planejamento - Revista da CPE, Salvador, v. 4, out./dez. 1977. ALBAN, M. A industrialização baiana e o Amazon: dos bens intermediários aos bens finais. Bahia Análise & Dados, Salvador, SEI, v. 12, n. 2, jun. 2003. ALBAN, M. Transportes e logística: os modais e os desafios da multimodalidade. Salvador: SEINFRA-FLEM, 2002. ALBAN, M.; SOUZA, C. 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Desigualdades Regionais. Território. Políticas Públicas. Abstract This article intends to demonstrate the existence of economic differences between distinct regions in the State of Bahia/Brazil and how globalization tends to reinforce these developmental gaps across regions. It focuses, under this perspective, the economic inequality and shows how the industrial development tends to concentrate on five poles of growing, excluding most of the Semi-arid Region, which lacks public policies interconnected and have increased poverty indicators. Key-words: Economic Planning. Globalization. Inequality. Territory. Public Policy. * Economista, Especialista em Economia Baiana pela UNIFACS, aluno especial do mestrado em Geografia na UFBA e Analista de Desenvolvimento da Desenbahia. E-mail: [email protected] Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 101 Introdução Com mais de 13 milhões de habitantes e um PIB estimado em R$ 88,3 bilhões, a Bahia é a sexta economia do país e o quarto estado mais populoso. Desde que começou seu período de desenvolvimento econômico, no início da década de 1950, tem passado por importantes movimentos de transformação espacial. O lento crescimento econômico, que caracterizou a economia estadual na década de 1980 até a metade da década de 1990, foi substituído por um forte dinamismo, tanto das antigas quanto de novas atividades que emergiram no estado. Contudo, a pobreza ainda é uma realidade em grande parte do território baiano, cujo dinamismo econômico dos últimos anos não conseguiu alterar, tornando-se um grave problema para o seu processo de desenvolvimento econômico-social. A Bahia apresenta distribuição bastante irregular da população e das atividades produtivas, o que levou à formação de espaços com elevados níveis de pobreza em sua parte central, notadamente no semi-árido, desvinculados dos eixos de desenvolvimento econômico. Com efeito, as unidades produtivas, essencialmente localizadas no litoral e nos extremos de seu território, impuseram um ritmo de desenvolvimento bastante desigual em relação à região central do estado. De fato, pode-se observar que os eixos de desenvolvimento da economia baiana se concentram na Região Metropolitana, no Extremo Sul, no Oeste do estado e, em menor dimensão, no Baixo Médio São Francisco. No entanto, grande parte do território está inserida na Região Semi-árida que, ainda hoje, desprovida de vantagens comparativas e sem intervenções públicas eficientes, permanece à margem do desenvolvimento obtido por outras regiões. A análise da distribuição geográfica das atividades econômicas no território baiano mostra como algumas regiões estão mais aptas a captar investimentos privados do que outras e como a intervenção pública direciona a localização de novos investimentos, particularmente os industriais, justamente para as áreas já dotadas de dinamismo. Dados os novos requisitos necessários à localização dos investimentos privados, este trabalho mostrará como as regiões inseridas no semi-árido tendem a ficar à margem do processo de desenvolvimento da Bahia, já que a ação privada e a intervenção estatal têm favorecido a concentração de investimentos nos eixos mais desenvolvidos. Além desta introdução, este artigo possui mais quatro seções: na primeira, fazse uma breve retrospectiva do desenvolvimento recente da economia baiana até a formação dos cinco pólos dinâmicos que sustentam a economia estadual; 102 | Reflexos da globalização na distribuição espacial dos investimentos industriais privados no estado da Bahia a segunda, trata dos tradicionais eixos de pobreza do estado, localizados no semi-árido, e que possuem ritmo de desenvolvimento bastante inferior ao verificado nos eixos dinâmicos; na terceira seção, sob o contexto da globalização, analisão-se as previsões de investimentos industriais e governamentais no estado, demonstrando como são concentradas nas áreas dinâmicas, já detentoras dos requisitos mínimos de competitividade. Em contrapartida, os eixos mais pobres continuam sem uma política de integração que permita seu desenvolvimento e aproximação econômica das regiões mais desenvolvidas. Na quarta seção, à guisa de conclusão, mostra-se que a seletividade espacial dos investimentos privados industriais, aliada à ausência de políticas públicas eficientes para os eixos menos desenvolvidos, tende a acentuar as desigualdades regionais na Bahia. A Bahia dos eixos de desenvolvimento O caráter concentrador do modelo de desenvolvimento do estado da Bahia, seja em termos espaciais ou de níveis de renda, proporcionou a concentração de atividades econômicas em espaços específicos de seu território. Investimentos privados, potencializados por forte ação estatal, possibilitaram o desenvolvimento de cinco regiões, dotando-as de estruturas econômicas modernas e transformando-as em focos de dinamismo, responsáveis pelo desempenho positivo apresentado pelo conjunto da economia estadual. Essas regiões são tratadas, na literatura especializada, como “eixos dinâmicos” e/ou “pólos de desenvolvimento”. São elas: o complexo petroquímico de Camaçari, o pólo agroindustrial de Juazeiro, as áreas de moderna agricultura no Oeste do estado, o complexo industrial de papel e celulose no Extremo Sul e as áreas turísticas do litoral baiano. O pólo petroquímico de Camaçari é responsável por mais de 25% da receita estadual de ICMS e foi o investimento que mais contribuiu para alterar a estrutura da economia baiana. Em 1960, a indústria representava apenas 12% do PIB estadual, enquanto que, em 2004, seu peso já era de 49,8%1 (SEI, 2005). Além disso, contribuiu para a elevação das exportações baianas e representa, ainda hoje, importante via para a verticalização da matriz industrial do estado. Ainda em Camaçari, foi instalado o Projeto Amazon, da Ford, com investimento de US$ 1,2 bilhão, que seria o passo inicial da instalação de uma cadeia automotiva no estado. A instalação de um complexo automotivo propiciaria uma maior integração da indústria local, concentrada em bens intermediários, 1 Dados sujeitos a retificação, depois de consolidados os resultados de todas as UF’s (Projeto de Contas Regionais – SEI/IBGE). Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 103 e iniciaria um novo ciclo de crescimento, voltado para a produção de bens duráveis de alto valor agregado. Esse projeto, de início, apontou uma ótima perspectiva para o setor de transformação plástica na Bahia. Entretanto, em que pese os esforços do estado nesse sentido, ainda não existem sinais de encadeamento entre o projeto Amazon e as indústrias de transformação plástica aqui instaladas, de forma que estas não conseguiram inserção representativa no setor automotivo. Nos anos 1970, apoiado pelo Programa de Desenvolvimento dos Cerrados – PRODECER, desenvolveu-se, ao longo do Vale do São Francisco, um complexo agroindustrial que mudou as características dessa região. Com capital japonês, reforçado pela fundamental presença do Estado, dotou-se a região de moderna infra-estrutura de captação e distribuição de água para irrigação. Isso permitiu o cultivo de produtos com maior valor agregado, servindo de chamariz para a instalação de médias e grandes indústrias na região. Instalaram-se empresas de variados ramos, como de processamento de alimentos, bens de capital, embalagens, equipamentos para irrigação e materiais de construção, além de fertilizantes e rações (ARAÚJO, 1997). Um pouco mais tarde, começou a expansão da Região Oeste da Bahia, com o cultivo da soja trazida por agricultores do Sul do país, a partir do desenvolvimento de técnicas avançadas, que viabilizaram esse cultivo em áreas do cerrado. Com o crescimento dessa atividade, implantou-se, nos cerrados baianos, diversas indústrias vinculadas à ela, como avicultura, suinocultura e frigoríficos, além das indústrias de fertilizantes e máquinas para a agricultura, que encontraram aí um ambiente propício ao desenvolvimento rápido. Em 1990, toda a produção do Oeste baiano já representava 14% do PIB estadual (SILVA SOBRINHO, 2000). Em meados da década de 1980, surgiu a indústria de papel e celulose no Extremo Sul do estado. As condições ideais de solo e clima existentes ali permitiram que a plantação extensiva de eucaliptos se expandisse a médias de crescimento dez vezes superiores àquelas verificadas por outros produtores mundiais de celulose, como os países asiáticos e escandinavos. Inicialmente dotado de um parque composto de pequenas e médias empresas produtoras de papel, o estado recebeu, no início da década de 1990, um vultoso projeto no Extremo Sul da Bahia, na cidade de Mucuri. Com um investimento de US$ 1,4 bilhão (era o maior investimento em andamento no Brasil, à época) esse projeto da Bahia Sul Celulose alterou o perfil do produto estadual, antes concentrado apenas na produção petroquímica. Ainda no segmento de celulose e no Extremo Sul, no segundo semestre de 2005 entrou em operação a fábrica da Veracell. Com um investimento de US$ 104 | Reflexos da globalização na distribuição espacial dos investimentos industriais privados no estado da Bahia 1,25 bilhão, esta será uma das maiores fábricas de celulose do mundo e sua produção, de aproximadamente 900 mil toneladas anuais, será destinada ao mercado externo. Contudo, em que pese a importância do setor para o produto estadual, é importante ressaltar que o complexo produtor de celulose é um ramo industrial intensivo em capital, com reduzida necessidade de mão-de-obra, baixo nível de encadeamento intersetorial e necessita de extensas áreas de terras para o plantio de eucaliptos, motivos pelos quais não gera impactos significativos em termos sociais. Além desses quatro vetores de crescimento que impulsionaram a economia do estado nos últimos anos, deve-se mencionar os diversos investimentos turísticos, direcionados, sobretudo, para o litoral, principalmente os grandes projetos na Costa dos Coqueiros e na Costa do Dendê, voltados para os turistas de elevados gastos per capita. Além disso, investimentos em infra-estrutura melhoraram as condições de diversos destinos turísticos, a exemplo da Costa do Descobrimento, Costa das Baleias e Chapada Diamantina. Todos esses espaços, hoje de forte dinamismo econômico, impulsionaram a economia do estado nos últimos trinta anos, evidenciando uma Bahia que poucos acreditavam que poderia surgir. Entretanto, fora desses “eixos de desenvolvimento”, existe uma Bahia que não se modernizou: Ao mesmo tempo em que alguns subespaços se modernizaram, em outros a resistência ao desenvolvimento permanece sendo a principal característica de um ambiente socioeconômico marcado pela pobreza. Esses espaços estão, em grande parte, localizados na região semi-árida. A Bahia dos eixos tradicionais de pobreza O semi-árido baiano é formado por 258 municípios, que ocupam cerca de 70% da área do estado e abriga 47,2% da sua população total (SEI, 2004). É uma região com condições climáticas desfavoráveis e o solo não é propício à agricultura. Em 2002, a região respondeu por apenas 28% do produto estadual; desse total, 10 municípios detinham 40% de todo o produto do semi-árido (SEI, 2002). De fato, o semi-árido é a região mais pobre do estado, situação atestada por vários indicadores: a taxa de analfabetismo é de 27%, enquanto que a média do estado, excluído o semi-árido, é de 17%; o PIB per capita é apenas 20% do total das outras regiões; o número de leitos hospitalares, por 1.000 habitantes, é 60% menor quando comparados às outras regiões, além das dificuldades de Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 105 acesso a saneamento básico adequado, energia elétrica e linha telefônica. A falta de dinamismo socioeconômico, aliada à reduzida intervenção pública, imprime à região um ritmo de desenvolvimento desigual em relação às demais regiões, deixando poucas possibilidades de expansão econômica e de melhoria das condições de vida da sua população. Por outro lado, as condições climáticas e de solo dificultam o cultivo de vários produtos, constituindo-se em importante variável que limita seu desenvolvimento. Dependentes do regime de chuvas e impossibilitados de cultivar produtos de elevado valor agregado, os agricultores levam ao mercado o pequeno excedente da produção agrícola de sobrevivência (milho, feijão e mandioca, entre outros). As culturas tradicionais do semi-árido, como o algodão, a caprinocultura e o sisal, entraram em decadência desde a segunda metade do século passado, contribuindo para acentuar as dificuldades da população. Somente no fim da década de 1990 é que o algodão e o sisal retomaram o crescimento e voltaram a ter participação significativa no produto estadual. Exceção para o Vale do São Francisco, que recebeu diversos investimentos em infra-estrutura agrária e, hoje, é um dos pólos de crescimento do estado. É um excelente exemplo de que outros locais do semi-árido, se devidamente assistidos com políticas públicas de desenvolvimento, podem crescer economicamente e desfrutar dos benefícios advindos da chegada do capital privado. O nível de pobreza na região só não é maior por conta dos benefícios previdenciários. Contudo, a expansão da ação previdenciária, cobrindo parte da população idosa e assegurando renda mínima permanente a muitas famílias, é uma política assistencialista compensatória, que minimiza a pobreza, mas não contribui para o desenvolvimento de ninguém. A necessidade de uma agenda permanente de desenvolvimento para o semiárido torna-se imperativo: é uma região com potencial tendência a ficar excluída dos movimentos do capital privado e cada vez mais distante do rumo do desenvolvimento econômico-social, como se verá a seguir. Globalização e investimentos industriais no estado da Bahia O fim do século XX foi marcado por movimentos que afetaram profundamente a economia mundial. A globalização, assumida como um processo de hegemonia do mercado e do capital financeiro, provocou impactos diferenciados em países, regiões e cidades. A competitividade e a produtividade passaram a ser requisitos cruciais para a inserção na economia mundial, fazendo com que a presença de grandes 106 | Reflexos da globalização na distribuição espacial dos investimentos industriais privados no estado da Bahia conglomerados econômicos, que operam em escala global, se tornasse uma das maiores características do fim do século XX. Esse movimento transformou o cenário econômico internacional, no qual fatos e tendências cada vez mais hegemônicos e de influência crescente passaram a afetar regiões até então alheias ao capital financeiro. Nesse contexto, a globalização trouxe consigo efeitos muito fortes de seletividade. E esse efeito merece particular reflexão ao se definir as possibilidades de inserção da economia baiana na economia mundial, uma vez que o caráter seletivo do movimento de globalização faz com que certos espaços interessem menos que outros, que alguns espaços exerçam função de comando e, outros, fiquem relativamente isolados, enquanto outros espaços, ainda, por serem bastante competitivos, sejam ferrenhamente disputados pelo capital privado (ARAÚJO, 1997). A Bahia possui espaços que são altamente competitivos, alvos de diversos investimentos produtivos de empresas multinacionais. Contudo, também possui espaços que ainda vivem sob intensa resistência ao desenvolvimento, com economias de base primária e com significativo atraso na acumulação de capital, na formação de ativos produtivos e no aprimoramento da força de trabalho. Aliado às mudanças advindas com o fortalecimento do processo de globalização, a necessidade de atingir altos níveis de competitividade e produtividade levou o setor privado a reestruturar-se, definindo novos perfis da demanda por mãode-obra, requerendo menos trabalhadores, mas mais qualificados e aptos ao trabalho em grupo e ao desempenho da polivalência (ARAÚJO, 1997). Esses fatores intensificaram as tendências de localização das atividades produtivas pelo país. Um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais, elaborado por Campolina Diniz e Crocco (1996) constatou uma forte tendência de concentração espacial das atividades produtivas nos centros urbanos dinâmicos do país. Essa tendência, na Bahia, tem privilegiado as regiões mais ricas e industrializadas, dotadas dos requisitos mínimos necessários à atração de investimentos: oferta de mão-de-obra qualificada, infra-estrutura adequada e eficiente, proximidade com centros de pesquisa e proximidade com mercado consumidor de elevada renda. Dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais do Estado da Bahia (SEI), quanto ao PIB estadual e quanto à distribuição espacial dos investimentos industriais, podem atestar essa informação: a Tabela 1 mostra o Produto Interno Bruto, a preços correntes, por regiões econômicas do estado da Bahia. Observa-se que, em 2002, 50,7% do produto baiano concentrava-se exclusivamente na Região Metropolitana de Salvador (RMS), enquanto 74,9% Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 107 TABELA 1 DISTRIBUIÇÃO ESPACIAL DO PIB, SEGUNDO AS REGIÕES ECONÔMICAS BAHIA – 1999/2002 Produto Interno Bruto (R$ 1.000) 1999 2000 2001 2002 Metropolitana de Salvador 22.061,26 25.347,24 27.364,83 31.457,92 3.071,50 3.232,45 3.557,63 4.642,33 Litoral Sul 2.497,81 2.818,08 3.008,30 3.464,98 Paraguaçu 2.004,57 2.219,20 2.559,09 3.113,44 Extremo Sul 1.661,39 1.927,52 2.584,44 2.976,57 Litoral Norte 1.874,04 2.110,76 2.121,63 2.945,75 Nordeste 2.041,58 2.331,89 2.528,36 2.867,02 Sudoeste 1.565,15 1.947,55 2.135,57 2.686,11 Oeste 1.135,26 1.278,18 1.315,99 1.603,20 Recôncavo Sul Baixo Médio São Francisco 1.042,65 1.247,38 1.156,46 1.564,52 816,88 966,99 1.016,09 1.211,73 Serra Geral 726,96 882,53 969,34 1.149,94 Piemonte da Diamantina 641,04 758,85 829,50 1.014,86 Chapada Diamantina 476,30 612,03 575,77 721,70 Irecê 423,72 516,53 526,30 682,67 Médio São Francisco Regiões Econômicas Produto Interno Bruto (%) 1999 2000 2001 2002 52,5 52,6 52,4 50,7 7,3 6,7 6,8 7,5 5,9 5,8 5,8 5,6 4,8 4,6 4,9 5,0 4,0 4,9 4,8 4,0 4,5 4,4 4,1 4,7 4,9 4,8 4,8 4,6 3,7 4,0 4,1 4,3 2,7 2,7 2,5 2,6 2,5 2,6 2,2 2,5 1,9 2,0 1,9 2,0 1,7 1,8 1,9 1,9 1,5 1,6 1,6 1,6 1,1 1,3 1,1 1,2 1,0 1,1 1,0 1,1 Fonte: SEI/IBGE. estava em regiões cuja totalidade, ou grande parte do território, estão fora da região semi-árida (Metropolitana, Litoral Sul, Extremo Sul, Litoral Norte, Oeste e Recôncavo Sul). Esse número era de 75% em 1999. As outras nove regiões econômicas do estado, inseridas no semi-árido, detinham apenas 25,1% do produto em 2002. Apesar do esforço estatal em desconcentrar a atividade produtiva, levando algumas empresas, de gêneros industriais mais intensivos em mão-de-obra, para o interior do estado, percebe-se que ainda não há resultados que indiquem desconcentração do produto estadual. No que se refere ao investimento privado, a previsão para a área industrial, no qüinqüênio 2005-2009, fornecida pela Secretaria da Indústria, Comércio e Mineração da Bahia, permite traçar algumas possibilidades referentes ao futuro da distribuição das atividades produtivas pelo território baiano: a análise das informações destaca com bastante clareza a seletividade espacial dos investimentos industriais, que continuam a privilegiar algumas regiões específicas. De fato, como pode ser visto na Tabela 2, a produção tende a se concentrar ainda mais nas regiões onde já está consolidada a indústria intermediária baiana de química e petroquímica e de papel e celulose: a RMS e o Extremo Sul. 108 | Reflexos da globalização na distribuição espacial dos investimentos industriais privados no estado da Bahia TABELA 2 INVESTIMENTOS INDUSTRIAIS E GOVERNAMENTAIS PREVISTOS – 2005/2009 NO ESTADO DA BAHIA, POR EIXO DE DESENVOLVIMENTO Investimentos Industriais Privados Eixos de Desenvolvimento R$* % Nº de Projetos % Metropolitano 10.234 52,7 165 57,3 Extremo Sul 6.682 34,4 9 3,1 Grande Recôncavo 1.606 8,3 53 18,4 Oeste do São Francisco 313 1,6 4 1,4 Mata Atlântica 236 1,2 19 6,6 Planalto Central 135 0,7 1 0,3 Planalto Sudoeste 92 0,5 16 5,6 Chapada Norte 61 0,3 8 2,8 Nordeste 24 0,1 3 1,0 Chapada Sul 15 0,1 3 1,0 Baixo Médio São Francisco 12 0,1 3 1,0 Centro Leste São Francisco 0 0,0 0 0,0 Médio São Francisco 0 0,0 0 0,0 A definir 14 0,1 4 1,4 Total 19.424 100,0 288 100,0 Investimentos Públicos R$* % Total % Definido 1.544 11,1 29,8 389 2,8 7,5 601 4,3 11,6 285 2,0 5,5 474 3,4 9,1 302 2,2 5,8 294 2,1 5,7 341 2,5 6,6 347 2,5 6,7 218 1,6 4,2 125 0,9 2,4 156 1,1 3,0 112 0,8 2,2 8.716 62,7 0,0 13.904 100,0 95,0 Fonte: SICM, 2005. * Em mil reais. Verifica-se, também, que 52,7% dos investimentos concentram-se na RMS e 34,4% no Extremo Sul. Ou seja: apenas duas regiões econômicas absorverão 87,1% de todos os investimentos industriais previstos para os próximos cinco anos. Os eixos inseridos no semi-árido absorverão somente 1,7% do valor dos investimentos, contando com 34 projetos, de um total de 288. Assim, do ponto de vista do capital privado, pode-se inferir que o hiato econômico entre o semiárido e os demais espaços do estado baiano tende a aumentar. A ausência do capital privado em algumas regiões deveria ser compensada com investimentos públicos em infra-estrutura, educação e saneamento. Entretanto, ainda pela Tabela 2, se deduz que, dos investimentos públicos já definidos, apenas 36,5% serão direcionados para os oito eixos de desenvolvimento dentro do perímetro do semi-árido. Além disso, são os eixos com menor participação individual nos gastos públicos estaduais: ou seja, os investimentos públicos priorizam os focos dinâmicos do estado, deixando em segundo plano as áreas de economia tradicional. Isso é preocupante, uma vez que se espera que as ações do Estado tenham como objetivo a redução das disparidades econômico-sociais, compensando com sua atuação a ausência de investimentos privados nas regiões desprovidas de dinamismo econômico. Pelo contrário, as ações do Estado ainda acompanham Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 109 os movimentos do mercado, direcionando-se para os eixos de desenvolvimento onde os novos fatores de competitividade já são abundantes, fortalecendo áreas já desenvolvidas em detrimento das menos desenvolvidas. Com o desenvolvimento das forças produtivas em espaços seletos, as disparidades regionais na Bahia tendem a agravar-se, mantendo algumas regiões, ou eixos de desenvolvimento, desarticuladas dos eixos dinâmicos do estado e, principalmente, deixando de assegurar condições de inserção em uma economia cada vez mais exigente de requisitos locacionais. Em que pese o estado ter feito volumoso esforço com incentivos fiscais e infraestrutura no sentido de fortalecer novas atividades industriais em espaços fora da região industrial tradicional, caso da indústria calçadista, a estrutura do PIB não sofreu modificações significativas. A produção e os investimentos privados ainda concentram-se significativamente na RMS e Extremo Sul e, a não ser que se direcionem recursos para a construção de infra-estrutura física e social nos eixos menos dinâmicos da economia estadual, há o risco potencial de perpetuar a exclusão de grande parte do território baiano dos fluxos do capital. Considerações finais Face ao exposto até aqui, parece claro que as tendências atuais caminham no sentido de aprofundar as disparidades regionais na Bahia, destacando os eixos de desenvolvimento “dinâmicos” das áreas tradicionais de pobreza, notadamente localizadas no semi-árido. Nessa região, as características socioeconômicas funcionam como fatores adversos à sua inserção produtiva e, como os requisitos mínimos de competitividade são ausentes, ela não é atrativa para muitas atividades e perde muitos investimentos para outras regiões. O caráter seletivo dos investimentos industriais mostra que as deficiências da região são muitas e, diante da consolidação da globalização, com a acentuação do poder do capital financeiro sobre o produtivo, leva a inferir que suas possibilidades de desenvolvimento, no futuro próximo, são bastante improváveis. A ineficiência do reduzido investimento público agrava a situação, uma vez que as deficiências de infra-estrutura econômica e social são fatores determinantes da pobreza na região. O estado mantém alguns programas voltados para as atividades da população do semi-árido, como o Cabra Forte e o Programa de Incentivo à Lavoura do Sisal, entre outros, que, de alguma forma, amenizam a situação dos produtores da região, mas não induzem, por si só, à consolidação das atividades produtivas, que são o foco dos programas. 110 | Reflexos da globalização na distribuição espacial dos investimentos industriais privados no estado da Bahia A conclusão mais importante que se tira do que foi exposto é que a população do semi-árido baiano não possui os meios necessários para participar da economia de mercado, dada a ausência dos requisitos mínimos à atração do capital produtivo, lembrando-se que é a região que concentra os mais baixos níveis de renda e de desenvolvimento humano do estado. Diante disso, é urgente a elaboração de uma agenda de desenvolvimento que consolide suas atividades produtivas e proporcione o crescimento da qualificação da mão-de-obra local, configurando-se nos passos iniciais de um projeto de longo prazo que permita ao semi-árido uma maior representatividade na economia estadual, de forma a torná-lo apto à atração dos investimentos privados. Referências ALBUQUERQUE, Roberto C.; VILLELA, Renato. A situação social no Brasil: balanço de duas décadas. São Paulo: Nobel. 1995. ARAÚJO, Tânia Bacelar de. Industrialização do Nordeste: intenções e resultados. Comunicação apresentada no Seminário Internacional sobre Disparidade Regional. FÓRUM NORDESTE: Recife. 1997. ARAÚJO, Tânia Bacelar de. O Nordeste brasileiro face à globalização: impactos iniciais e desvantagens competitivas. Recife: UFPE, 2002. CAMPOLINA DINIZ, Clélio; CROCCO, Marco Aurélio. Reestruturação econômica e impacto regional: o novo mapa da indústria brasileira. 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Juazeiro exibe-se como uma economia mais calcada na produção de mercadorias primárias voltadas para a exportação; enquanto Vitória da Conquista apresenta-se como uma economia mais diversificada e com fluxos voltados para o próprio município e entorno; e Ilhéus como uma via de desenvolvimento em fase de consolidação, posto que as atividades econômicas que mais se destacam ainda requisitam esforços para o seu estabelecimento pleno. Palavras-chave: Economia Baiana. Ilhéus. Juazeiro. Vitória da Conquista. Desenvolvimento Econômico. Abstract This study presents, discusses, and compares the most important economic features of counties in the State of Bahia, Brazil. Three major municipalities were selected, Ilhéus, Juazeiro, and Vitória da Conquista, that share relevant 1 Os autores agradecem a Luis Fernando Guerreiro e Vera Spínola pelo apoio no levantamento dos dados. * Doutora em Administração pela UFBA; Mestre em Economia pela UFBA; Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS e da Universidade Salvador – UNIFACS; Chefe da Unidade de Estudos Econômicos e Pesquisas da Agência de Fomento do Estado da Bahia – Desenbahia. E-mail: [email protected] ** Mestre em Economia pela UFBA; Professor da Universidade do Estado da Bahia – UNEB e da Universidade Católica do Salvador – UCSAL; Gerente de Estudos e Assessoria da Agência de Fomento do Estado da Bahia – Desenbahia. E-mail: [email protected] Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 113 and similar weights on the state’s GDP. From the described data and the combined analysis of each economic scenario, it was possible to identify three different pathways of local economic development. Juazeiro appears as an economy centered on the production of basic agricultural commodities focused on exportation; while Vitória daConquista has more diverse economic activities, a consequence of trading channels between the main town and its neighboring communities; and, finally, Ilhéus was found as having a new development track, since its main economic activities are still requiring further efforts to be consolidated. Key-words: Bahian Economy. Ilhéus. Juazeiro. Vitória da Conquista. Economic Development. 114 | Municípios baianos em destaque: três vias de desenvolvimento local no estado da Bahia Introdução Em 2003, Porto publicou um estudo no qual destacou a “rede principal de cidades da Bahia”1, buscando esclarecer como se deu a sua consolidação ao longo do tempo, as mudanças mais recentes e a importância de ações das esferas governamentais na indução do seu desenvolvimento. Segundo o autor, com o processo de globalização em curso e demais dinâmicas correlacionadas (reorganização da produção e avanços nos meios de comunicação e transporte), essa rede de cidades perdeu parte de sua força de coesão, na medida em que cada núcleo ganhou mais independência em relação aos demais, desestimulando esforços de integração regionalizada. Essa nova situação começou a exigir novas formas de atuação em termos de políticas públicas, uma vez que parte do planejamento local passou a ser realizada por empresas que, muitas vezes, mantêm sedes em outros centros urbanos. Com a preocupação de tecer uma visão mais sistêmica do processo de diferenciação dos territórios, a partir dos efeitos da globalização, Santos e Silveira (2001) explicaram essa perda de força de coesão entre cidades próximas, a partir da submissão dos circuitos regionais de produção aos circuitos espaciais de produção. A origem do fenômeno deve ser buscada nos progressos da ciência, da técnica e da circulação de informações, que viabilizam condições para intensificar a especialização do trabalho nos diversos lugares. Tal situação provoca segmentações de territórios, fazendo com que despontem como compartimentos mais ativos justamente aqueles mais aptos aos produtos exigidos pelo mercado mundial (SANTOS; SILVEIRA, 2001, p. 105). Se as diferenciações territoriais são um dos aspectos mais visíveis dos efeitos geoeconômicos da globalização, uma tipologia dessas diferenças constitui-se numa tarefa das mais complexas e arriscadas. Santos e Silveira (2001, p. 257) propuseram a existência de áreas em que prevalece uma globalização “absoluta”, ao lado de outras em que essa globalização é apenas “relativizada”. Nas primeiras, onde se verifica uma presença mais plena da globalização, são observadas cadeias produtivas modernas, produtos exportáveis, serviços empresariais intensivos em tecnologia, movimentos financeiros especulativos etc. Nas outras áreas, onde a presença da globalização é menor, esses aspectos não se apresentam ou são vistos de forma muito tênue. Tal diferenciação não foi estranha a Porto (2003), ao desenhar a “rede principal de cidades da Bahia”, posto que ele percebeu o papel distinto que cada cidade exerce 2 De acordo com Porto (2003, p. 9): “trata-se de uma rede que dá o suporte urbano mais importante e estruturante ao desenvolvimento atual do Estado, exercendo essas cidades o papel de centros de apoio às atividades de serviços, comércio, educação, saúde, cultura, movimentos sociais criativos e outros, o que permite classificá-las como cidades-elo (...)”. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 115 no conjunto, seja por conta de seu envolvimento nos fluxos globais, seja por conta de suas raízes históricas e culturais, porte e características socioeconômicas. Não obstante tais considerações, Porto (2003) propôs que, como as 28 cidades3 que compõem a referida rede guardam características gerais próximas, elas podem ser agrupadas como “co-participantes dos mesmos problemas”. Optou, assim, por tratá-las como um conjunto, que pode ser compreendido com o fito de implementação de políticas públicas. Ações de cunho mais geral, como estimular o espírito empreendedor, qualificar recursos humanos, provocar a irradiação territorial de informações adequadas, por exemplo, podem ser pensadas com o propósito de potencializar vantagens locais. Mas como também é essencial que se desenvolvam ações particularizadas (em função, inclusive, das diferenciações cada vez mais evidentes dos núcleos), tornam-se fundamentais estudos individualizados de cada caso, desenhando-se o quadro da cidade, nos seus diversos aspectos: histórico, cultural, social, político, econômico e outros que permitam compreender a conformação da realidade. O presente artigo vem ao encontro dessa proposta, buscando explorar os aspectos econômicos relevantes dessas cidades, a partir de três casos específicos. Procurase apresentar, discutir e contrapor os diferentes cenários econômicos, correspondentes a três importantes municípios baianos, observando-se, ao final, a construção de diferentes vias de desenvolvimento econômico local. A exposição sistematizada de dados econômicos sobre os municípios-objeto deste artigo busca contribuir para uma melhor compreensão da dinâmica local, o que auxilia na identificação de medidas necessárias para a potencialização das vantagens de cada município, assim como os limites que a realidade impõe e que devem ser conhecidos pelos formuladores de políticas públicas. Cabe registrar que a identificação de medidas dessa natureza não constitui objetivo deste artigo, que se restringe, nesta oportunidade, a apresentar e contrapor os três diferentes quadros econômicos baianos. Metodologicamente, opta-se por trabalhar com os municípios de Ilhéus, Juazeiro e Vitória da Conquista, em razão dos seguintes motivos: 1) são municípios que integram a “rede principal de cidades da Bahia”, participando com pesos significativos e relativamente parecidos no PIB do estado; 2) constituem-se municípios que abrigam parcelas consideráveis da população da Bahia, posicionando-se entre os seis maiores municípios do estado em número de habitantes; 3) não são localidades que se 3 São elas: Alagoinhas, Bom Jesus da Lapa, Barreiras, Brumado, Camaçari, Cruz das Almas, Eunápolis, Feira de Santana, Guanambi, Ilhéus, Itabuna, Itapetinga, Irecê, Itaberaba, Itamaraju, Juazeiro, Jacobina, Jequié, Porto Seguro, Paulo Afonso, Senhor do Bonfim, Serrinha, Santo Amaro, Santo Antonio de Jesus, Teixeira de Freitas, Vitória da Conquista, Valença, Salvador/Metrópole (incluindo os municípios de Salvador, Vera Cruz, Itaparica, Lauro de Freitas e Simões Filho). 116 | Municípios baianos em destaque: três vias de desenvolvimento local no estado da Bahia situam na Região Metropolitana de Salvador (RMS) e entorno, não usufruindo, portanto, os impactos dos seus fluxos de pessoas, mercadorias, serviços e dinheiro; 4) são municípios localizados em regiões do estado bastante distintas, o que faz com que se deparem com realidades diferentes no que se refere à história, cultura, sociedade, infra-estrutura etc. No que tange aos dados utilizados e suas fontes, são apresentados: 1) o crescimento/decrescimento da população nos últimos 20 anos e a evolução do PIB no período 1999-2002, inclusive a estrutura setorial (fornecida pelo IBGE e pela Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais do Estado da Bahia – SEI); 2) as produções agrícola e pecuária no ano de 2003 (provenientes da Pesquisa Agrícola Municipal e da Pesquisa Pecuária Municipal, ambas do IBGE); 3) os números de estabelecimentos e de empregos formais por atividade econômica em 2003, (disponibilizados pela Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego); 4) a movimentação financeira em 2004 (fornecida pelo Banco Central do Brasil). No que se refere aos números de estabelecimentos e de empregos formais por atividade econômica, estão expostos apenas aqueles das atividades locais que têm participação superior a 3% da respectiva atividade baiana. Para efeito de organização, apresenta-se, a seguir, para cada município, uma breve contextualização da sua economia nos últimos anos, os dados de população e PIB, os principais segmentos econômicos e uma análise dos dados expostos. Ao final, uma avaliação conjunta dos três casos estudados é realizada com vistas a aprimorar algumas das análises empreendidas, permitindo-se tecer considerações sobre a via de desenvolvimento econômico adotada e os desafios que o município vem enfrentando. Ilhéus Breve contexto econômico Após cerca de um século de hegemonia da cacauicultura no conjunto econômico de Ilhéus e região, instalou-se a crise da atividade nos anos de 1990, em função de fatores de mercado e tecnológicos. O baixo preço do produto e a concorrência no mercado internacional, aliados aos pequenos níveis de investimento e ao alastramento da praga vassoura-de-bruxa na produção local, foram os principais motivos para o rápido declínio da atividade, ocasionando importante queda na oferta de postos de trabalho e geração de renda. Diante desse quadro, duas novas atividades foram introduzidas em Ilhéus, como estratégia para suprir a lacuna deixada pela cacauicultura. A primeira delas, o turismo, apesar de não chegar a se constituir numa atividade inteiramente nova para Ilhéus e Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 117 entorno, recebeu impulso significativo, através de novos investimentos, principalmente no que se refere à implantação de meios de hospedagem, além da construção de nova via turística (estrada Ilhéus-Itacaré). A segunda, o Pólo de Informática, Eletroeletrônicos e Telecomunicações, foi idealizada como mecanismo de diversificação da estrutura produtiva e redução do nível de desemprego, contando com os benefícios de um programa estadual de incentivo fiscal, implementado em 1995. Dados População estimada em 2005: 221.110 habitantes – 1,60% da população da Bahia – 4a maior população da Bahia Taxas médias de crescimento anual da população (dados de censo): Pop. 1980: 135.642 hab. Pop. 1991: 223.750 hab. Tx. Cresc. 1980/1991: 4,66% ao ano Pop. 2000: 222.127 hab. Tx. Cresc. 1991/2000: -0,08% ao ano TABELA 1 EVOLUÇÃO DO PIB DE ILHÉUS, 1999-2002 Ano 1999 2000 2001 2002 PIB a preços correntes (R$ milhões) 961,35 948,69 1.105,67 1.367,97 Participação no Posição na PIB da Bahia Bahia (%) 2,29 6 1,97 7 2,12 6 2,20 6 Estrutura Setorial (%) Agropecuária Indústria Comércio e Serviços 6,59 5,78 4,76 3,98 51,46 49,18 52,27 56,79 41,95 45,04 42,97 39,23 Fonte: SEI / IBGE. Elaboração própria. TABELA 2 PRODUÇÃO AGRÍCOLA DE ILHÉUS, 2003 Produto Área Quantidade plantada produzida (ha) (mil ton.) 215 4.100 Banana 1.500 1.050 Borracha 12.000 1.920 Cacau 400 6.000 Coco (mil frutos) 30 465 Limão 50 950 Mamão 15 190 Maracujá Valor (R$ mil) 2.050 2.415 9.024 4.800 302 618 110 Participação Participação Brasil (%) Bahia (%) 0,5 0,06 4,7 0,7 1,1 1,7 0,9 0,3 1,0 0,04 0,05 0,1 0,2 - Produtividade Média Região Bahia Brasil 19.070 700 160 15.000 15.500 19.000 12.667 14.581 759 226 8.947 14.747 48.922 13.382 13.217 1.442 281 7.050 19.144 46.872 13.836 Fonte: PAM / IBGE, 2003. Elaboração própria. 118 | Municípios baianos em destaque: três vias de desenvolvimento local no estado da Bahia TABELA 3 PRODUÇÃO ANIMAL EM ILHÉUS, 2003 Espécie Bovinos Suínos Aves Quantidade (mil cabeças) 47 9 132 Participação Brasil (%) 0,02 0,03 0,01 Participação Bahia (%) 0,5 0,4 0,4 Fonte: PPM / IBGE, 2003. Elaboração própria. TABELA 4 NÚMEROS DE ESTABELECIMENTOS E DE EMPREGOS FORMAIS DAS ATIVIDADES ECONÔMICAS MAIS RELEVANTES DE ILHÉUS NA ECONOMIA BAIANA, 2003 Atividade Econômica Ilhéus 01. Agricultura, pecuária e serviços relacionados 15. Fab. produtos alimentícios e bebidas 30. Fab. de máquinas p/ escritório e equipamentos de informática 32. Fab. de material eletrônico e de aparelhos e equipamentos de comunicação 33. Fab. de equipamentos de instrumentação para uso médico-hospitalar 55. Alojamento e alimentação 63. Atividades anexas e auxiliares do transporte e agências de viagem 73. Pesquisa e desenvolvimento Bahia Participação na Bahia (%) Emp. Est. Emp. Est. Emp. Est. 482 64 43 2.198 1.169 663 13.240 1.853 58 67.790 25.970 1.105 3,64 3,45 74,14 3,24 4,50 60,00 10 198 18 374 55,56 52,94 3 25 31 641 9,68 3,90 225 23 1.309 244 5.696 773 43.868 7.600 3,95 2,98 2,98 3,21 2 26 23 856 8,70 3,04 Fonte: RAIS / MTE. Elaboração própria. TABELA 5 MOVIMENTAÇÃO BANCÁRIA NA PRAÇA DE ILHÉUS, 2004 Descrição Número de agências bancárias Operações de crédito Depósitos à vista do setor privado Poupança Depósitos a prazo Movimentação Valores Participação na (R$ milhões) Bahia (%) 9 1,22 13.548,01 1,45 3.919,09 1,50 7.405,42 1,40 5.743,81 1,55 Fonte: Banco Central do Brasil. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 119 Análise dos dados Ilhéus ocupa a posição de quarto maior município, em termos de tamanho da população, abrigando cerca de 1,60% dos habitantes do estado, em 2005. Observando a série histórica a partir de 1980, no entanto, constata-se que Ilhéus já se posicionou com mais destaque no passado, uma vez que vem registrando taxas de crescimento médias anuais negativas, a partir de 1991. Se contrapostos o tamanho da população levantada no censo de 2000 (222 mil habitantes) com a estimativa realizada para 2005 (221 mil habitantes), concluise que o movimento de perda de população continua em curso. Para uma avaliação do ritmo de incremento da atividade econômica, deve-se observar as limitações impostas pela escassez de informações, diante da ausência de uma série histórica mais longa sobre a evolução do PIB municipal. Para o período anterior a 1999, o que se tem são proxies da participação dos municípios baianos no conjunto da economia estadual, produzidas com metodologias muito distintas da empregada para o cálculo do agregado de 1999 a 2002, o que inviabiliza uma tentativa de comparação. Tomando, assim, apenas o quadriênio 1999-2002 como referência, nota-se que o PIB de Ilhéus apresentou uma perda de participação relativa no PIB do estado entre 2000 e 1999, vindo a se recuperar nos anos seguintes. Em 2002, o PIB de Ilhéus somou R$ 1.368 milhões, representando 2,20% do agregado estadual (índice inferior ainda ao 2,29% de 1999), e guardando a sexta posição no ranking das maiores economias baianas – a mesma colocação de 1999. Ao observar a estrutura setorial da economia do município, constata-se que, enquanto a agropecuária e o setor terciário têm perdido espaço relativo, o segmento industrial vem ganhando mais terreno, tendo sido responsável por 57% da conformação do PIB de 2002. Se confrontado esse índice ao congênere baiano, percebe-se que Ilhéus vem se exibindo como uma economia mais fortemente calcada na indústria, que a Bahia como um todo (o segmento industrial baiano representou 42,2% do PIB do estado em 2002). Por outro lado, é necessário ressaltar a queda de importância da agropecuária, atividade econômica que, via a cacauicultura, elevou Ilhéus e entorno à condição de região das mais ricas da Bahia até poucas décadas atrás. Concentrando a atenção na produção agropecuária de Ilhéus em 2003, percebese que apenas o cultivo local da borracha mantém uma participação importante no estado, respondendo por 4,7% da produção baiana. A produtividade dessa cultura, no entanto, está aquém das médias baiana e nacional. Em termos de geração direta de renda, a cacauicultura permanece como principal atividade agrícola no município, mas representa apenas 1,7% da produção do estado e 120 | Municípios baianos em destaque: três vias de desenvolvimento local no estado da Bahia exibe uma produtividade média muito mais baixa que as calculadas para a Bahia e o Brasil.4 Quando observados os dados sobre números de estabelecimentos e de empregos diretos formais, constata-se que, apesar da produção agrícola de Ilhéus não vir se destacando em nenhuma cultura em particular, ainda se trata de uma atividade que conta com números relativamente significativos de estabelecimentos e de empregos no conjunto do setor estadual. Quando calculado o volume médio de empregados formais por estabelecimento, percebe-se que o resultado obtido (4,56) é inferior ao mesmo número baiano (5,12), o que pode apontar para uma possível melhor distribuição relativa da propriedade rural. No segmento industrial, Ilhéus sobressai-se em quatro setores no conjunto do estado, com os números de estabelecimentos e de empregos formais representando pelo menos 3% das respectivas quantidades estaduais. Desses quatro setores, dois em especial – fabricação de máquinas para escritório e equipamentos de informática (CNAE 30) e fabricação de material eletrônico e de aparelhos e equipamentos de comunicação (CNAE 32) – exibem percentuais de participação, no conjunto da Bahia, superiores a 50%. Nas atividades terciárias, Ilhéus apresenta uma participação relevante, no conjunto estadual, em três setores: alojamento e alimentação (CNAE 55), atividades anexas e auxiliares do transporte e agências de viagem (CNAE 63) e pesquisa e desenvolvimento (CNAE 73). Enquanto duas delas se relacionam com o turismo – atividade que vem se desenvolvendo no município em função da sua localização geográfica e do seu patrimônio cultural e histórico, a terceira pode vir a estreitar laços com os segmentos industriais citados acima, consolidando e fortalecendo todos os três setores (os dois industriais ligados à informática e eletro-eletrônicos e o próprio de serviços). A despeito de determinadas atividades terciárias do município mostrarem-se com alguma densidade nas respectivas atividades do estado, a movimentação bancária de Ilhéus não foi tão representativa em 2004. Para todos os indicadores financeiros levantados, a relevância da movimentação realizada em Ilhéus, no conjunto da Bahia, exibiuse inferior à importância da economia municipal no PIB do estado.5 4 Observando uma série de dados a partir de 1990, nota-se que a produção de cacau em Ilhéus correspondia a cerca de 10% da produção baiana e em torno de 8% da nacional nos anos de 1990, vindo a cair ano a ano após 2000. Os dados mais recentes, disponibilizados pelo IBGE, mostram que a produção do cacau voltou a se elevar em Ilhéus, em 2004, mas sem alcançar nem a metade dos índices de participação calculados para a década anterior. As diferenças entre a produtividade média da região em relação às da Bahia e Brasil acentuaram-se, uma vez que a primeira caiu, enquanto as duas últimas se elevaram, quando comparados os dados de 2004 com os de 2003. Cabe registrar que a produtividade média do cultivo realizado em Ilhéus, nos anos 1990, aproximava-se das médias baiana e nacional, superando as duas em diversos momentos. 5 A proximidade entre Ilhéus e o centro comercial de Itabuna concorre como uma das melhores explicações para a relativamente baixa movimentação financeira no município. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 121 Juazeiro Breve contexto econômico Até a década de 1970, a economia de Juazeiro mantinha como lastro as atividades relacionadas à pecuária e ao comércio. A criação extensiva de gado beneficiouse de um conjunto de fatores favoráveis, presentes na região do município e entorno: extensão de terras, relevo suave do solo, vegetação rasteira e arbustiva da caatinga, ar seco (dificultando a propagação de pragas) e afloramento de jazidas de salitre. Diante desse cenário, o criatório de caprinos e ovinos também se difundiu, mas voltado, basicamente, para o consumo local. Aos poucos, observou-se um melhoramento desse rebanho, passando a carne e o couro a serem explorados em maior escala, inclusive para a exportação. O comércio, por sua vez, apresentou-se como atividade relevante desde os primeiros momentos, em face à posição favorável do município, encravado no cruzamento entre as rotas do sertão nordestino, Piauí, Maranhão e o sul do país. A conexão ferroviária com a RMS viabilizou que Juazeiro se tornasse um centro abastecedor de mercadorias do interior nordestino.6 Após os anos de 1970, no entanto, a conformação econômica de Juazeiro se alterou com os projetos de irrigação implantados pela Companhia do Desenvolvimento do Vale do São Francisco – Codevasf, viabilizando o incremento da agricultura irrigada, notadamente da fruticultura. Atualmente, encontram-se em operação quatro projetos de irrigação em Juazeiro: Mandacaru, Tourão, Maniçoba e Curaçá. Dados População estimada em 2005: 203.261 habitantes – 1,47% da população da Bahia – 6a maior população da Bahia Taxas médias de crescimento anual da população (dados de censo): Pop. em 1980: 95.170 hab. Pop. em 1991: 128.767 hab. Tx. Cresc. 1980/1991: 2,79% ao ano Pop. em 2000: 174.567 hab. Tx. Cresc. 1991/2000: 3,44% ao ano 6 Ver Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Juazeiro, elaborado pela CAR, em dezembro de 2001. 122 | Municípios baianos em destaque: três vias de desenvolvimento local no estado da Bahia TABELA 6 EVOLUÇÃO DO PIB DE JUAZEIRO, 1999-2002 Ano 1999 2000 2001 2002 PIB a preços correntes (R$ milhões) 520,84 611,15 668,56 849,07 Participação no PIB da Bahia (%) 1,24 1,27 1,28 1,37 Posição na Bahia Estrutura Setorial (%) Agropecuária Indústria Comércio e Serviços 18,25 22,83 21,55 33,00 13 12 12 10 26,65 23,33 25,74 20,41 55,09 53,84 52,70 46,59 Fonte: SEI / IBGE. Elaboração própria. TABELA 7 PRODUÇÃO AGRÍCOLA DE JUAZEIRO, 2003 Produto Cana-de-açúcar Cebola Melancia Melão Tomate Banana Coco (mil frutos) Goiaba Limão Manga Maracujá Uva Área Quantidade Valor Participação Participação plantada produzida (R$ mil) Brasil (%) Bahia (%) (ha) (mil ton.) 15.253 340 450 195 32 1.800 272 250 200 6.000 90 2.100 1.365.476 5.540 11.250 3.017 1.024 45.000 7.024 6.250 6.000 108.000 1.265 52.500 46.426 3.535 1.856 1.343 625 16.200 871 2.625 1.140 52.920 620 84.525 0,3 0,5 0,6 0,8 0,03 0,7 0,4 1,9 0,6 11,7 0,3 5,0 28,7 3,7 6,0 11,6 0,5 5,7 1,0 18,3 13,3 36,9 1,2 62,7 Produtividade Média Região Bahia Brasil 89.522 16.294 25.000 15.472 32.000 25.000 25.823 25.000 30.000 18.000 14.056 25.000 56.692 24.258 22.210 18.600 39.847 14.581 8.947 12.419 14.747 16.177 13.382 24.939 73.646 17.718 23.079 21.472 58.301 13.217 7.050 18.494 19.144 13.512 13.836 15.592 Fonte: PAM / IBGE, 2003. TABELA 8 PRODUÇÃO ANIMAL EM JUAZEIRO, 2003 Espécie Eqüinos Ovinos Caprinos Quantidade (mil cabeças) 6 163 361 Participação Brasil % 0,1 1,1 3,8 Participação Bahia % 1,0 6,0 10,1 Fonte: PPM / IBGE, 2003. Elaboração própria. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 123 TABELA 9 NÚMEROS DE ESTABELECIMENTOS E DE EMPREGOS FORMAIS DAS ATIVIDADES ECONÔMICAS MAIS RELEVANTES DE JUAZEIRO NA ECONOMIA BAIANA, 2003 Atividade Econômica Juazeiro Bahia Participação na Bahia (%) Est. Emp. Est. Emp. Est. Emp. 64 1.169 1.853 25.970 3,45 4,50 15. Fab. de produtos alimentícios e bebidas 2 336 64 5.160 3,13 6,51 40. Eletricidade, gás e água quente 3 460 82 5.420 3,66 8,49 90. Limpeza urbana e esgoto e ativ. relacionadas Fonte: RAIS / MTE. Elaboração própria. TABELA 10 MOVIMENTAÇÃO BANCÁRIA NA PRAÇA DE JUAZEIRO, 2004 Descrição Número de agências bancárias Operações de crédito Depósitos à vista do setor privado Poupança Depósitos a prazo Movimentação Valores (R$ milhões) Participação na Bahia (%) 9 1,22 15.400,14 1,65 4.123,87 1,57 6.883,99 1,30 4.290,03 1,15 Fonte: Banco Central do Brasil. Análise dos dados Com uma população estimada em 203 mil habitantes, em 2005, Juazeiro abriga 1,47% da população baiana, colocando-se como o sexto mais importante município do estado em número de habitantes. Trata-se de um município que vem registrando elevadas taxas de crescimento populacional ao longo do último quarto de século, quando comparadas com o patamar das taxas da Bahia como um todo. Tomando como referência apenas os dados censitários, observase que a população de Juazeiro cresceu 83% entre 1980 e 2000, enquanto que a população baiana aumentou 38% nos mesmos 20 anos. Também o PIB de Juazeiro (R$ 849 milhões em 2002) apresentou altas taxas de crescimento no período mais recente, maiores, inclusive, que as taxas de incremento da economia baiana. Em razão dessa situação, a participação do PIB de Juazeiro na economia estadual cresceu no período 1999-2002, passando de 1,24%, em 1999, para 1,37%, no final do quadriênio. Em termos de colocação no ranking das maiores economias estaduais, Juazeiro migrou da 13a colocação, em 1999, para a 10a posição, em 2002. A estrutura setorial de Juazeiro é bastante característica, com uma participação da agropecuária muito marcante (33%), quando comparada com a importância 124 | Municípios baianos em destaque: três vias de desenvolvimento local no estado da Bahia que o mesmo setor guarda na estrutura produtiva baiana (13%). É de se notar que a pujança da agropecuária de Juazeiro tem se acentuado nos últimos anos, pois a relevância do setor no agregado produtivo municipal saiu de 18%, em 1999, para chegar aos 33%, em apenas quatro anos. Se calculado o desempenho do PIB agropecuário do município, nesse período, verifica-se que ele cresceu não menos que 193%. Em compensação, o setor industrial e as atividades terciárias têm perdido espaço, notadamente o primeiro. A participação do setor industrial, no PIB, caiu de 26,65%, em 1999, para 20,41%, em 2002, tanto em razão do incremento da agropecuária quanto por conta do desempenho pífio do PIB industrial que, para o quadriênio em análise, registrou uma elevação de 24,20%. As atividades terciárias contabilizaram uma queda menos acentuada da sua participação na economia de Juazeiro, resultado do aumento do seu PIB setorial em 37,19% nos quatro anos em destaque. Ao concentrar as atenções nos dados de produção agrícola de Juazeiro, em 2003, nota-se que o município abriga vários cultivos que se destacam nos cenários estadual e nacional, chegando a responder por participações, na produção baiana, acima de 10% em seis culturas (cana-de-açúcar, melão, goiaba, limão e manga) e acima de 50% no caso da uva. Em algumas dessas culturas, a produtividade média calculada encontra-se acima da contabilizada para o estado e o país (a exemplo do que ocorre com os cultivos da cana-deaçúcar, melancia, banana, coco, goiaba, limão, manga, maracujá e uva). Na pecuária, a relevância da produção de Juazeiro no rebanho baiano também é percebida, notadamente para caprinos e ovinos. Como a importância do número de estabelecimentos da agropecuária de Juazeiro não se revela significativa na Bahia (1,53%), vis-à-vis a importância do número de empregos formais nesse mesmo setor no conjunto baiano (7,06%), é possível se depreender que a atividade primária de Juazeiro mantém uma relação de empregados por estabelecimentos muito acima da média do estado. De fato, calcula-se uma média de 23,68 empregados formais por estabelecimentos em Juazeiro, em 2003, frente a uma média de 5,12, na Bahia. Setores econômicos de Juazeiro, com participações superiores a 3% nos seus congêneres estaduais, simultaneamente em números de estabelecimentos e de empregados, somam apenas três, sendo dois industriais e um de serviços. Os industriais são o de fabricação de produtos alimentícios e bebidas (CNAE 15) e o de eletricidade, gás e água quente (CNAE 40); enquanto que o de serviços é o de limpeza urbana e esgoto e atividades relacionadas (CNAE 90). Aparentemente, trata-se de setores típicos de município que polariza fluxos regionais de mercadorias e de serviços, não se revelando nenhuma especialização produtiva significativa, inclusive por conta dos percentuais encontrados, pouco acima da casa dos 3%. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 125 A despeito do incremento do PIB de Juazeiro nos últimos anos e, particularmente, da pujança do setor agropecuário, os dados de movimentação bancária no município, em 2004, não indicam tratar-se de uma praça muito dinâmica. De um modo geral, os percentuais de participação das operações bancárias realizadas em Juazeiro nas respectivas operações estaduais aproximam-se da importância do PIB municipal no valor agregado do estado. Em algumas situações, os percentuais são um pouco mais elevados (a exemplo de operações de crédito e depósitos à vista) e, em outros, os índices encontrados são inferiores (depósitos em caderneta de poupança e depósitos a prazo). Vitória da Conquista Breve contexto econômico A pecuária extensiva consistiu na principal atividade econômica de Vitória da Conquista até os anos de 1940, quando o comércio passou a assumir um papel mais relevante na economia e na sociedade do município e região. A abertura da estrada Rio-Bahia (atual BR 116) e da estrada Ilhéus-Lapa fizeram com que Vitória da Conquista incrementasse suas transações com outras localidades do estado e do restante do país. Na década de 1970, duas novas atividades foram introduzidas, ainda que nenhuma delas, isoladamente ou em conjunto, conseguisse ultrapassar a importância das atividades terciárias, notadamente o comércio. A primeira foi a monocultura do café e, a segunda, a expansão do segmento industrial, com a implantação do Distrito Industrial dos Imborés. Beneficiando-se do Plano de Renovação e Revigoramento de Cafezais, dos governos federal e estadual, o pólo cafeeiro de Vitória da Conquista chegou a responder por mais de 50% da produção baiana do produto, na segunda metade dos anos de 1970.7 Na década seguinte, no entanto, os produtores já começaram a enfrentar problemas nos preços e na comercialização, tendo as dificuldades se agravado com o longo período de estiagem no final da década de 1980.8 A implantação do Distrito Industrial dos Imborés, por sua vez, foi concebida com o objetivo de verticalizar o bolsão pecuário existente na região, assim como o processamento de café, numa perspectiva de integração agroindustrial. Contrariando as expectativas, no entanto, o DI dos Imborés não chegou a apresentar-se como um centro industrial importante. Nos últimos anos, apesar da instalação de novas empresas, a atividade secundária de Vitória da Conquista permaneceu com baixa representatividade na malha produtiva estadual. 7 Ver A penetração do café na Bahia, elaborado pela CEPLAB, em 1979. 8 Segundo estudo efetuado pela Federação da Agricultura do Estado da Bahia (FAEB, 1984), os problemas nos preços e na comercialização derivavam da reduzida penetração da política oficial de preços mínimos e da limitação das exportações de café nos portos baianos. 126 | Municípios baianos em destaque: três vias de desenvolvimento local no estado da Bahia Dados População estimada em 2005: 285.927 habitantes – 2,07% da população da Bahia – 3a maior população da Bahia Taxas médias de crescimento anual da população (dados de censo): Pop. em 1980: 170.624 hab. Pop. em 1991: 225.091 hab. Tx. Cresc. 1980/1991: 2,55% ao ano Pop. em 2000: 262.494 hab. Tx. Cresc. 1991/2000: 1,72% ao ano TABELA 11 EVOLUÇÃO DO PIB DE VITÓRIA DA CONQUISTA, 1999-2002 Ano 1999 2000 2001 2002 PIB a preços correntes (R$ milhões) Participação no PIB da Bahia (%) Posição na Bahia 646,40 705,41 752,70 819,19 1,54 1,46 1,44 1,32 10 9 8 11 Estrutura Setorial (%) Agropecuária Indústria Comércio e Serviços 23,26 22,83 23,26 22,02 5,39 5,63 6,16 6,77 71,35 71,55 70,58 71,21 Fonte: SEI / IBGE. Elaboração própria. TABELA 12 PRODUÇÃO AGRÍCOLA DE VITÓRIA DA CONQUISTA, 2003 Produto Banana Café Maracujá Área Quantidade Valor Participação Participação plantada produzida (R$ mil) Brasil (%) Bahia (%) (ha) (mil ton.) Região 6.600 7.938 101 10.000 525 7.000 1.100 7.200 120 11.000 3.780 840 0,2 0,2 0,2 1,4 3,0 0,8 Produtividade Média Bahia Brasil 14.581 13.217 880 825 13.382 13.836 Fonte: PAM / IBGE, 2003. TABELA 13 PRODUÇÃO ANIMAL EM VITÓRIA DA CONQUISTA, 2003 Espécie Bovinos Suínos Eqüinos Ovinos Aves Quantidade (mil cabeças) 114 33 8 34 1.561 Participação Brasil % 0,06 0,1 0,1 0,2 0,2 Participação Bahia % 1,1 1,7 1,4 1,2 4,9 Fonte: PPM / IBGE, 2003. Elaboração própria. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 127 TABELA 14 NÚMEROS DE ESTABELECIMENTOS E DE EMPREGOS FORMAIS DAS ATIVIDADES ECONÔMICAS MAIS RELEVANTES DE VITÓRIA DA CONQUISTA NA ECONOMIA BAIANA, 2003 Vitória da Bahia Conquista Est. Emp. Est. Emp. 279 870 7.153 18. Confecção de artigos do vestuário e acessórios 40 501 3.233 104 22. Edição, impressão e reprodução de gravações 19 24 314 273 7.439 25. Fabricação de artigos de borracha e plástico 344 656 9.822 26. Fabricação de produtos de minerais não metálicos 37 9 108 3.133 124 27. Metalurgia básica 28 217 422 4.028 28. Fabricação de produtos de metal - exclusive máquinas e equipamentos 37 381 468 4.700 36. Fabricação de móveis e indústrias diversas 31.208 50. Com. e reparação de veículos automotores e 250 2.030 5.128 motocicletas, com. a varejo de combustíveis 226 1.518 4.429 34.557 51. Com. por atacado e representantes comerciais e agentes do comercio 1.490 5.498 39.388 163.283 52. Com. varejista e reparação de objetos pessoais e domésticos 73 3.173 2.034 43.511 60. Transporte terrestre 8 81 168 1.506 66. Seguros e previdência complementar 88 1.215 2.632 29.607 91. Atividades associativas 4.036 30.117 109.918 1.364.607 Total Atividade Econômica Participação na Bahia (%) Est. Emp. 4,60 3,90 3,79 3,22 8,79 4,22 5,64 3,50 8,33 3,96 6,64 5,39 7,91 4,88 8,11 6,50 5,10 4,39 3,78 3,37 3,59 4,76 3,34 3,67 7,29 5,38 4,10 2,21 Fonte: RAIS / MTE. Elaboração própria. TABELA 15 MOVIMENTAÇÃO BANCÁRIA NA PRAÇA DE VITÓRIA DA CONQUISTA, 2004 Descrição Número de agências bancárias Operações de crédito Depósitos à vista do setor privado Poupança Depósitos a prazo Movimentação Valores (R$ milhões) Participação na Bahia (%) 13 1,76 17.309,79 1,86 6.003,97 2,29 14.353,27 2,72 4.477,04 1,20 Fonte: Banco Central do Brasil. Análise dos dados Vitória da Conquista possuía, estimadamente, 286 mil habitantes em 2005, o que significa 2,07% da população baiana, colocando-se como o terceiro município mais importante do estado em tamanho de população. Ao longo do último quarto de século, apresentou taxas de crescimento médio anual da população superiores às respectivas taxas do estado. 128 | Municípios baianos em destaque: três vias de desenvolvimento local no estado da Bahia Diferentemente do que vem acontecendo com o tamanho da população, o PIB de Vitória da Conquista (R$ 819 milhões em 2002) apresentou taxas de crescimento, no quadriênio 1999-2002, sistematicamente inferiores às taxas baianas. Em razão disso, a participação da economia conquistense, no agregado do estado, tem registrado índices cada vez menores: em 1999, o PIB do município respondeu por 1,54% do baiano; em 2000, passou a corresponder por 1,46%; em 2001, esse índice foi para 1,44%, chegando a 1,32% em 2002. Essa performance fez com que Vitória da Conquista saísse de 10a economia mais importante do estado, em 1999, para a posição de 11a, em 2002. A estrutura setorial do PIB não tem se alterado de forma significativa no período em análise. Com exceção da elevação da participação da agropecuária, de 5,39%, em 1999, para 6,77%, em 2002, um incremento de pouco mais de um ponto percentual sob uma base relativamente pequena, pode-se afirmar que a malha produtiva do município apresenta-se estável, sem importantes transformações. Enquanto o setor agropecuário responde por 6,77% do PIB municipal (metade do respectivo índice baiano, que é de 13%), o segmento industrial é responsável por 22,02% (também metade da importância que o setor assume no PIB do estado), ficando para a atividade terciária a enorme fatia de 71,21% do agregado produtivo do município em 2002. Na produção agropecuária, de 2003, se destacaram as atividades relacionadas ao café e à avicultura. A produção cafeeira do município respondeu por 3% de toda a produção baiana, mas registrou uma produtividade média muito aquém daquelas contabilizadas para o estado e o país. A avicultura, por sua vez, reunindo cerca de 1,6 mil cabeças, apresentou um rebanho de quase 5% do estadual. Um dos principais aspectos a caracterizar o quadro econômico de Vitória da Conquista é o número relativamente alto de setores locais que possuem densidades em termos de estabelecimentos e de empregos formais. Em 2003, 13 setores (entre industriais e terciários) apresentaram participações dos números de estabelecimentos e de empregados, para seus congêneres estaduais, superiores a 3%. Do segmento industrial, sete setores registraram tal performance; os três setores de comércio (por atacado, varejista e o relacionado a veículos) também estão inclusos nesse rol; e mais três setores de serviços. Entre esses últimos, cabe ressaltar a presença do de seguros e previdência complementar, posto a complexidade que envolve a atividade, o que certamente pode servir de indicador do nível de sofisticação que a economia do município vem apresentando. A análise dos dados referentes à movimentação bancária vem ao encontro da inferência realizada acima. Na maioria dos fluxos levantados para 2004, as Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 129 operações realizadas na praça bancária de Vitória da Conquista registraram índices de participação, no conjunto do estado, superiores à importância do PIB municipal na economia da Bahia. Nos casos de depósitos à vista (2,29% do fluxo baiano) e de poupança (2,72%), essa situação ficou mais que evidente, quando confrontado com a relevância do PIB local no estado (1,32%). Avaliação comparativa das três vias de desenvolvimento O primeiro aspecto que se destaca, analisando conjuntamente os três quadros econômicos, é o ritmo de crescimento acelerado de Juazeiro vis-à-vis as taxas observadas para Ilhéus e Vitória da Conquista. Seja em termos de tamanho da população, seja em termos de atividade econômica, Juazeiro apresenta taxas de crescimento superiores à média baiana e muito maiores que as referentes aos outros dois municípios. Enquanto Ilhéus exibiu decrescimento populacional na última década e meia, mantendo com alguma dificuldade sua posição no ranking das maiores economias do estado, Vitória da Conquista, apesar de manter um ritmo de crescimento populacional acima da média estadual, apresenta queda de participação do seu PIB no agregado baiano. Juazeiro, por sua vez, é o único município a registrar, simultaneamente, taxas elevadas de incremento populacional e econômico. No que tange à questão econômica, o ritmo de crescimento mais acelerado de Juazeiro, que a média baiana, faz com que a sua participação na estrutura produtiva estadual cresça ano a ano, permitindo que o município registre posições mais importantes no ranking das maiores economias do estado. Observando os dados levantados para Juazeiro, constata-se que se trata de uma economia que cresce bastante concentrada na produção agrícola, mais especificamente na fruticultura, e, em menor medida, na produção de caprinos. Focando a atenção na produção de frutas, atual carro-chefe da economia municipal, é necessário que se acrescente que, apesar da atividade contar com o apoio fundamental do setor público, através dos projetos de irrigação da Codevasf, é uma via de desenvolvimento mais conectada com os movimentos do capital internacional, voltando uma parte significativa da produção para o mercado externo. Como o nível de transformação do principal produto (frutas de mesa) é praticamente inexistente (observa-se que o setor industrial não é forte no município, contando-se com a presença de poucas vinícolas, por exemplo), é possível associar as características dessa via de desenvolvimento com o tradicional modelo primário-exportador. Como é sabido, nas versões contemporâneas desse modelo, as exigências de aprimoramento tecnológico constante se constituem em condições sine qua non à sobrevivência da atividade, 130 | Municípios baianos em destaque: três vias de desenvolvimento local no estado da Bahia a fim de garantir altos níveis de competitividade, dada a elevada concorrência praticada no mercado internacional.9 Empregando a tipologia proposta por Santos e Silveira (2001), dos três municípios em análise, Juazeiro se exibe como aquele mais próximo da referência de área onde prevalece uma globalização “absoluta”, dada a presença de cadeias produtivas modernas, produtos exportáveis, preocupação com desenvolvimento tecnológico etc. Sua inserção nos fluxos globais na condição de primárioexportador, no entanto, coloca importantes desafios para a manutenção da atividade em ritmo crescente. Flutuações nos preços (inclusive por conta da evolução da taxa de câmbio), risco de entrada de novos ofertantes no mercado, inovações tecnológicas que podem levar a incrementos substanciais de produtividade em outros mercados e perda de competitividade do produto local são alguns dos aspectos a que uma economia calcada na produção primárioexportadora encontra-se submetida, precisando manter-se alerta. No caso de Juazeiro, a constante atualização dos produtores e do emprego de novas técnicas, com vistas a garantir a qualidade do produto, faz-se importante, assim como a continuidade do setor público, viabilizando os projetos de irrigação. Ademais, atentar para eventuais investimentos específicos, como em logística e transportes, por exemplo, podem viabilizar a expansão da competitividade do setor, sobretudo quando houver forte concorrência externa. A via de desenvolvimento observada para Ilhéus, por sua vez, é menos evidente que a anterior, ou pelo menos ainda se encontra em fase de construção. Com a crise da cacauicultura, a alternativa delineada aparenta calcar-se em duas vertentes distintas: a indústria de informática e de eletroeletrônica e o turismo. Além do baixo grau de complementaridade que se observa nas duas atividades, ainda é necessário destacar o elevado nível de complexidade que envolve cada uma delas. No caso do turismo, apesar de Ilhéus estar margeada por um litoral extenso, é necessário que se desenvolvam estratégias para explorar o patrimônio histórico existente, assim como se realizem investimentos em infra-estrutura e preparação de mão-de-obra na prestação de serviços. A consolidação da indústria de informática e de eletroeletrônica não é menos complexa, a despeito da concentração constatada de empresas e empregados do setor no município. Focando a atenção nessa indústria, resultado de uma política de incentivos fiscais iniciada em 1995 e ainda em vigor, ressaltam-se alguns aspectos indicativos de que a sua consolidação não se encontra estabelecida. Há problemas com a qualificação da mão-de-obra local, que não se encontra apta 9 Santos (2000) destaca as exigências de uma agricultura científica globalizada. Sobre os problemas da “reprimarização“ das exportações brasileiras, ver Gonçalves (2005, cap. 9). Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 131 a atender às necessidades da indústria de forma imediata; com o mercado consumidor e fornecedor que não se encontram na região; com a forte dependência tecnológica, o que explica o baixo grau de inovações; e, não menos importante, com a inadequação de equipamentos de infra-estrutura. Dois indicadores que atestam essa realidade são as elevadas taxas de mortalidade e de natalidade de empresas, nessa indústria, em Ilhéus.10 A questão premente que se coloca é se a indústria permanecerá representativa no município quando os prazos para os benefícios dos incentivos, por parte das empresas, se expirarem. Apesar da pequena complementaridade que pode ser observada entre as duas vertentes eleitas para o desenvolvimento da economia de Ilhéus, sobressai-se a qualificação da mão-de-obra como um requisito necessário a ambas as atividades. Nesse aspecto, em particular, o planejamento de ações integradas, contando, inclusive, com o apoio de instituições de ensino de terceiro grau, em especial da universidade estadual sediada no município, pode se constituir numa estratégia para atacar os problemas e aproximar as duas atividades. Uma estratégia particular para a indústria de informática seria a de articular a produção de computadores em Ilhéus com o Arranjo Produtivo Local de Tecnologia da Informação, sediado em Salvador, o qual vem produzindo software e desenvolvendo tecnologia na área.11 Enquadrando-se a via de desenvolvimento de Ilhéus na proposta estilizada de Santos e Silveira (2001), sobre o grau de inserção da área nos fluxos globais, constata-se que prevalece, no município, apenas uma globalização “relativa”, a despeito das duas atividades principais estabelecerem vínculos com o mundo externo. Isso porque, como ambas se encontram em estágios ainda incipientes, as raízes delas na economia do município e, mesmo, suas relações com as demais atividades são tênues. À medida que as duas vertentes se consolidem, é possível que Ilhéus seja inserida nas áreas de globalização plena. O modelo de desenvolvimento econômico que ora se observa em Vitória da Conquista difere completamente dos dois casos anteriores. Enquanto, no primeiro, verificam-se aspectos típicos de um modelo primário-exportador, tratando-se de uma área de globalização “absoluta”, e, no caso de Ilhéus, de um modelo em construção que tende a se inserir nos fluxos globais mais intensamente, pari passu à solidificação das atividades representativas, em 10 As informações sobre a indústria de informática e eletroeletrônica geralmente convergem para essas questões mencionadas. Entre os estudos mais recentes sobre o tema, ver Ferreira Jr. e Santos (2004) e França (2004). 11 Ver trabalho que vem sendo desenvolvido pela Rede de Apoio aos Arranjos produtivos Locais do Estado da Bahia, coordenado pela Secretaria de Ciência, Tecnologia e Informação do Estado da Bahia, no site www.redeapl.ba.gov.br. 132 | Municípios baianos em destaque: três vias de desenvolvimento local no estado da Bahia Vitória da Conquista, observa-se uma economia mais diversificada, sem predominância de atividades representativas e com indicativos de presença de atividades terciárias mais complexas. Diferentemente de Ilhéus, onde a crise da cacauicultura parece ter incitado a formulação de uma estratégia de eleição de atividades que viessem “substituir” a importância que a cultura assumia até então, em Vitória da Conquista, a crise da cafeicultura não engendrou uma alternativa lastreada em um ou poucos segmento(s) como carro-chefe da economia municipal. A produção de animais mantém uma importância relativa (notadamente a avicultura), mas também alguns segmentos industriais, de comércio e de serviços exibem representatividade no conjunto da economia. A diversificação econômica que se verifica em Vitória da Conquista não permite apontar alguma atividade como sendo característica da economia do município, assim como nenhuma grande inserção dos setores locais nos fluxos globais de produção, mercadorias, pessoas ou capital. Ao contrário, o quadro econômico que se delineia para Vitória da Conquista aparenta tratar-se de uma economia com desenvolvimento mais endógeno, tendo os raios de abrangência das transações econômicas do município alcance mais limitado, ainda que relevantes para o entorno. Esse caráter de endogeneidade, da via de desenvolvimento de Vitória da Conquista, associado à ausência de uma ou poucas atividades como carrochefe da economia local, pode se constituir numa das principais explicações para a maior estabilidade da estrutura setorial do PIB do município. Como se constata nos dados apresentados, a estrutura setorial de Juazeiro é aquela que mais apresenta mudanças recentes, ao passo que a de Vitória da Conquista é a que menos tem sofrido alterações significativas nos últimos anos. Por outro lado, esse mesmo caráter endógeno e a ausência de importantes demandas externas podem estar na base explicativa para as menores taxas de crescimento da economia do município, tanto em relação aos outros casos analisados quanto em relação à média baiana. Considerações finais Com vistas a ampliar o nível de conhecimento sobre municípios baianos, notadamente daqueles participantes da chamada “rede principal de cidades da Bahia”, este artigo buscou apresentar, analisar e contrapor alguns aspectos econômicos relevantes de Ilhéus, Juazeiro e Vitória da Conquista. Constatouse que, apesar de se constituírem em três municípios com importâncias no estado muito próximas, em termos de tamanho da população e relevância da Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 133 economia, exibem vias de desenvolvimento econômico bastante distintas, podendo-se até contrapor os quadros observados em Juazeiro e Vitória da Conquista como o de dois casos extremos. De um lado, verifica-se uma economia que apresenta elevadas taxas de crescimento recentes, fortemente calcada na produção agrícola, com algumas culturas locais assumindo pesos muito significativos na produção baiana e nacional, e com uma parcela relevante da produção voltada para a exportação. Inserindo-se nos fluxos globais, através do modelo primário-exportador, Juazeiro desponta como uma área de globalização absoluta. De outro, em Vitória da Conquista, observa-se uma economia que exibe taxas de crescimento inferiores à média estadual, uma estrutura econômica diversificada, aparentemente mais complexa e com aspectos de estabilidade no que se refere ao peso dos três grandes setores econômicos no PIB municipal. Com uma via de desenvolvimento mais voltada para dentro, Vitória da Conquista apresenta-se menos vulnerável a mudanças nos fluxos globais, posto não se perceber a presença, em seu território, de importantes produções voltadas para exportação ou com vínculos fortes com o exterior. Por sua vez, com uma via de desenvolvimento ainda em construção, não se pode dizer que Ilhéus apresenta-se como uma área de globalização plena, nem como uma economia com crescimento endógeno. Suas atividades mais relevantes no momento (informática e turismo) não possuem integração, estando o desenvolvimento de cada uma delas aparentemente dependendo de ações empresariais específicas e de políticas próprias. Por fim, cabe salientar que o presente trabalho tem um caráter exploratório e busca levantar inquietações sobre as diferentes vias de desenvolvimento econômico adotadas por importantes municípios do estado. Evidentemente que as análises aqui empreendidas, bem como as conclusões alcançadas, podem ser mais aprofundadas e consistentes, se os aspectos sociais, geográficos e históricos dos municípios forem contemplados. Essa não parece ser uma tarefa fácil de ser realizada, posto que complexa e interdisciplinar, mas possível na medida em que envolva os órgãos do Estado, universidades e demais especialistas no assunto. 134 | Municípios baianos em destaque: três vias de desenvolvimento local no estado da Bahia Referências BAHIA. SEPLANTEC. CENTRO DE PLANEJAMENTO DA BAHIA – CEPLAB. A penetração do café na Bahia. Salvador: CEPLAB, 1979. (Relatórios de Pesquisa 1). FEDERAÇÃO DA AGRICULTURA DO ESTADO DA BAHIA. Café na Bahia: um projeto inacabado. Salvador: FAEB, 1984. FERREIRA JR., Hamilton; SANTOS, Luciano. Arranjo produtivo e a dinâmica do Pólo de Informática de Ilhéus/BA. Salvador: SEBRAE / UFSC / NEITEC / FEPESE, 2004. (Relatório para Programa de Financiamento de Bolsas de Mestrado Vinculadas à Pesquisa “Micro e Pequenas Empresas em Arranjos Produtivos Locais no Brasil”). FRANÇA, Milena. Pólo de Informática de Ilhéus. Conjuntura & Planejamento, Salvador, SEI, n. 124, p. 26-28, set. 2004. GONÇALVES, Reinaldo. Economia política internacional: fundamentos teóricos e as relações internacionais do Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. JUAZEIRO (BA). PREFEITURA MUNICIPAL. Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Juazeiro. Salvador: Companhia de Desenvolvimento e Ação Social – CAR, 1999-2002. Relatório VII – Documento analítico básico – Tomo A: Economia, Sociedade e Administração Municipal – dez. 2001. PORTO, Edgard. Desenvolvimento e território na Bahia. Salvador: SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, 2003. (Série Estudos e Pesquisas, 61). SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. SEI. SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Dinâmica demográfica da Bahia: 1980 – 2000. Salvador: SEI, 2003. 2 v. (Série Estudos e Pesquisas, 60). SEI. SUPERINTENDÊNCIA DE ESTUDOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA BAHIA. Serviços Estratégicos na Região Metropolitana de Salvador. Salvador: SEI, 2004. (Série Estudos e Pesquisas, 70). Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 135 136 | Estudo da indústria do gás natural e seu inter-relacionamento com o setor elétrico na Bahia: perspectivas e potencialidades 8 ESTUDO DA INDÚSTRIA DO GÁS NATURAL E SEU INTERRELACIONAMENTO COM O SETOR ELÉTRICO NA BAHIA: PERSPECTIVAS E POTENCIALIDADES Daniel Prates* Georges Rocha** Resumo A indústria de gás natural vem tendo um grande inter-relacionamento com o setor de energia elétrica, devido a aspectos técnicos, econômicos e institucionais. No Brasil, essa tendência mundial acentua-se rapidamente, sobretudo a partir da crise de energia vivida pelo país em 2001. Não obstante ser o terceiro maior produtor e consumidor no Brasil, a Bahia atualmente é deficitária em gás natural, comprometendo a geração termelétrica, dada a carência desse energético, bem como a deficiência na infra-estrutura de transporte e distribuição. Além disso, a Bahia é o estado brasileiro com a maior população sem acesso à energia elétrica. Isso motiva reflexões acerca das potencialidades do gás natural para atenuar esta situação. Este trabalho tem como objetivo avaliar as estruturas da indústria do gás natural e o setor elétrico na Bahia e a relação entre esses segmentos. Palavras-chave: Gás Natural. Indústria. Setor Elétrico. Termeletricidade. Bahia. Abstract The natural gas industry has been gaining increased inter-relations with the electric power trade as a result of technical, economic and institutional factors. In Brazil, this worldwide tendency is quickly increasing, especially after the energy crisis that occurred in 2001. In spite of being the third largest producer and consumer in Brazil, currently the state of Bahia has no natural gas sufficiency, which compromises the thermal-electrical production, also a result of problems in transport and distribution infrastructure. In addition, Bahia is the Brazilian * Engenheiro Mecânico, Especialista em Engenharia de Gás Natural – PETROBRAS S.A. E-mail: [email protected] ** Doutor em Planejamento de Sistemas Energéticos, Professor do Curso de Especialização em Engenharia do Gás Natural – CEEGAN/DEQ/UFBA e do Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia – CEFETBA, à disposição da Secretaria de Petróleo, Gás Natural e Combustíveis Renováveis do MME. E-mail: [email protected] Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 137 state with the largest population lacking access to electric power. This raises reflections concerning the potential use of natural gas to minimize this situation. Therefore, this article has the objective of evaluating the structures of the natural gas industry and the electric sector in the state of Bahia and the relationship between these segments. Key-words: Natural Gas. Industry. Electric Sector. Thermal-Electricity. Bahia. 138 | Estudo da indústria do gás natural e seu inter-relacionamento com o setor elétrico na Bahia: perspectivas e potencialidades Introdução A geração de energia elétrica no Brasil está intrinsecamente vinculada ao aproveitamento do enorme potencial hídrico existente no país. A matriz energética brasileira, no que diz respeito à energia elétrica, apresenta 83,6% de sua potência de geração de origem hídrica, através de Usinas Hidrelétricas (UHE) e de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) (BIG, 2005). Apenas 14,7% da potência de geração é de origem térmica, através de Usinas Termelétricas (UTE), sendo que, desse montante, 3,6% corresponde à geração térmica cujo energético é o gás natural; o restante é ocupado por outros energéticos, a exemplo da biomassa (bagaço de cana, madeira etc.), derivados de petróleo (óleo diesel, óleo residual) e carvão mineral. Na Bahia, a matriz de energia elétrica tem espelhado em seu território o cenário nacional e nordestino em particular. De 9.016 MW de capacidade instalada de geração (BIG, 2005), o que equivale a 9,83% da capacidade nacional, apenas 1.522 MW é de origem térmica, sendo que, desses, somente 976 MW utiliza o gás natural como energético, ou seja, cerca de 10% da capacidade de geração do estado. Como não poderia deixar de ser, por razões óbvias, a vocação do Brasil para a geração de energia elétrica, foi e ainda tem sido o aproveitamento do seu potencial hídrico. O país tem um aproveitamento de apenas 26,6% do seu potencial hidrelétrico tecnicamente aproveitável (BEN, 2005). Porém, alguns aspectos já demonstram a necessidade de busca de outras fontes primárias de energia, com o intuito de se diversificar a matriz de energia elétrica no país. O investimento em hidrelétricas tem características singulares e exigem alto grau de planejamento e disponibilidade de recursos. Além disso, podem trazer conseqüências indesejáveis do ponto de vista sócio-ambiental – grandes alagamentos e deslocamentos de populações, entre outros – embora paradoxalmente traga também grandes benefícios quando comparado à geração por energéticos de origem fóssil: não-geração de poluentes, a exemplo de dióxido de carbono, monóxido de carbono, óxidos de enxofre, óxidos de nitrogênio, particulados pesados de carbono, etc. A termeletricidade a gás natural no país se apresentou, durante um curto período de tempo, revestida de aspectos que preponderaram para um melhor equacionamento do setor energético brasileiro. No final da década de 90, o governo federal, a partir de uma conjunção de dados que apontava para um cenário de escassez de energia elétrica, configurada através da falta de investimentos no parque de geração no porte necessário para fazer frente ao crescimento econômico e demográfico da população, e de índices pluviométricos Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 139 e afluências abaixo da média histórica, instituiu, dentre outras ações, o Programa Prioritário de Termeletricidade (PPT). Esse programa teve o intuito de fomentar o desenvolvimento do parque gerador a partir da termeletricidade a gás natural. A iniciativa configurada com o PPT, porém, não logrou os resultados esperados, devido a diversos fatores, entre os quais a baixa infra-estrutura de transporte instalada, o que demandaria altos investimentos para sua implantação, a rigidez da indústria de gás natural frente à instabilidade nos preços do energético e a baixa competitividade da geração termelétrica em um país potencialmente hídrico. A despeito das razões que levaram ao engessamento do programa de fomento à termeletricidade no país, a região Nordeste, em particular, necessita ver equacionados os fatores que dificultam a viabilização da termeletricidade a gás natural, pois tem seu potencial hídrico bastante explorado, e é dependente da importação de energia elétrica dos subsistemas norte e sudeste, tornandose vulnerável, sob o ponto de vista de desenvolvimento econômico, e exposta em demasia aos riscos de falta de energia. A co-geração a gás natural figura como grande promessa, no plano nacional, e no regional em particular, no crescimento da indústria do gás natural. O potencial para sua utilização é enorme e agrega o propósito nobre do desenvolvimento sustentável, através do planejamento integrado de recursos, viabilizando um aumento na eficiência termodinâmica do processo de geração elétrica, em relação à termeletricidade pura e simples. Ademais, vários aspectos contribuem de forma assertiva no aumento da sinergia entre a indústria do gás natural e o setor elétrico, quais sejam: • Tecnológicos: o advento das Usinas Termelétricas em Ciclo Combinado, aumentando enormemente sua eficiência termodinâmica; • Econômicos: a elevação dos custos de produção e transporte de Usinas Hidrelétricas, cada vez mais distantes dos centros de consumo; • Institucionais: a saída do Estado como agente protagonista dos investimentos em geração, transporte e distribuição de energia elétrica – resultado das privatizações –, criando oportunidades de negócios para agentes privados a partir de unidades termelétricas de menor porte. As reservas de gás natural no Brasil e na Bahia O Brasil é um país de grande extensão territorial, conquanto com pequena participação no que tange à oferta de gás natural, no cenário internacional. As reservas provadas nacionais de gás natural responderam, em 2004, por apenas 0,18% do total mundial (BP STATISTICAL..., 2005). 140 | Estudo da indústria do gás natural e seu inter-relacionamento com o setor elétrico na Bahia: perspectivas e potencialidades O país, entretanto, vem percebendo um crescimento a uma taxa média de 7,7% a.a. nas reservas provadas de gás natural, de 1964 a 2004, no esteio da busca do desenvolvimento da indústria do gás, energético com comprovadas vantagens energéticas e ambientais quando comparado a outros energéticos de origem fóssil, e da redução da dependência do petróleo. Atualmente, 77,4% das reservas provadas de gás natural do país encontram-se em mar, principalmente na Bacia de Campos (39,1%), enquanto que as 22,6% restantes encontram-se em terra, principalmente no campo de Urucu (AM) e em campos produtores no estado da Bahia (ANP, 2005b). A Bahia, nesse contexto, se insere como um estado que responde por 7,7% do total dessas reservas. Mas um aspecto importante a ser observado é o crescimento acentuado das reservas em mar, particularmente a partir de 2001, e o decrescimento das reservas em terra. A principal razão para esse fenômeno é a descoberta de reservas importantes na bacia de Camamú-Almada, justificando a elevação das reservas em mar, e o amadurecimento dos campos de produção em terra. A produção de gás natural no Brasil e na Bahia A produção de gás natural no Brasil teve, em 2004, uma presença percentual maior (0,41%), em relação ao cenário mundial, porém ainda muito tímida quando comparada a outros países da América Latina. O México, por exemplo, tendo reservas provadas aproximadamente 27% superiores às brasileiras, produziu mais de 3,3 vezes o que o Brasil produziu em 2004 (BP STATISTICAL..., 2005). Isso revela que, apenas sob o viés da similaridade de porte econômico do país em relação a outros países com economia equivalente, existe um potencial enorme de crescimento da produção. Apesar dessa ainda tímida participação do Brasil no cenário latino-americano e internacional, a produção de gás natural do país tem crescido a passos largos, apresentando aumento total de 7,2%, em 2004 em relação a 2003, e aumento na produção líquida, excluindo-se reinjeção, perdas, queima e consumo próprio, de 9,3% no mesmo período. Segundo o Boletim de Gás Natural da ANP, no período 1954-2004, a produção cresceu 11,8% a.a., em média, tendo ocorrido um grande salto na década de 1980, principalmente em decorrência do início de operação das jazidas da Bacia de Campos. Em 2004, 54,2% da produção se concentrou nos campos marítimos, situação bastante distinta daquela ocorrida até 1972, quando a produção concentrava-se nos campos terrestres, especialmente no Estado da Bahia (ANP, 2005b, p. 12). A Bahia é o terceiro estado em produção de gás natural, com 13,3% da produção total do país em 2004, atrás apenas do Rio de Janeiro – Bacia de Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 141 Campos, basicamente – e do Amazonas – campo de Urucu. A produção na Bahia está essencialmente situada em campos terrestres do recôncavo baiano (98,3%) e, em sua maior parte, sob a forma não-associada1 (70,8%). A Tabela 1 apresenta os três maiores produtores de gás natural do Brasil. TABELA 1 PRODUÇÃO DE GÁS NATURAL, POR LOCALIZAÇÃO (TERRA E MAR), SEGUNDO UNIDADES DA FEDERAÇÃO, 1994-2004 Unidades da Localização Federação Total Produção de Gás Natural (milhões m3) 1997 1998 1999 2000 2001 04 / 03 2004 % 7.711,85 8.065,95 9.167,43 9.824,72 10.787,6 11.855,18 13.282,88 13.998,8 15.525,15 15.792,06 16.923,23 7,2% 1994 1995 1996 2002 2003 Subtotal Terra 2.813,65 2.906,29 3.288,98 3.530,61 3.750,21 3.896,87 5.232,58 5.827,55 6.168,64 6.708,65 7.744,57 15,4% Amazonas Terra 308,82 257,66 Bahia Terra 1.584,92 1.606,87 1.717,18 1.805,23 1.909,92 1.860,27 1.895,90 1.958,07 1.964,18 2.115,72 2.212,27 Mar 4.898,19 5.159,66 5.878,45 6.294,11 7.037,39 7.958,31 8.050,30 8.171,25 9.356,51 9.083,42 9.178,66 Mar Rio de Janeiro 13,18 37,39 369,47 27,78 1,0% 529,73 617,94 734,15 2000,20 2.427,33 2.743,18 2.992,56 3.610,95 20,7% 30,64 32,28 - 0,02 8,48 52,64 50,15 4,6% 37,96 -24,3% Mar 2.893,31 3.164,61 3.576,92 3.876,35 4.544,31 5.528,26 5.721,03 5.968,33 6.886,34 6.660,15 6.758,71 1,5% Fonte: Anuário Estatístico ANP, 2004 e Boletim, 2005. A comercialização de gás natural no Brasil e na Bahia A comercialização de gás natural no Brasil sofreu alterações estruturais a partir de 1997, quando foi publicada a Lei Federal no 9.478, de 06 de agosto de 1997, dispondo acerca da política energética nacional e das atividades relativas ao monopólio do petróleo. A partir desse momento, as estruturas de produção, importação, carregamento e transporte de gás natural foram profundamente alteradas, com vistas à abertura do mercado, que deixava de ter o monopólio da União exercido exclusivamente pela Petrobras. Estabeleceu-se, a partir disso, um marco, onde se regulamentava a alteração constitucional e se conferia a criação de uma agência reguladora independente para a consecução desse objetivo. A Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis2 – ANP, tem a função, explicitada no artigo 8º da Lei no 9.478, de promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis. As vendas de gás natural pelos produtores, bem como seus desdobramentos no consumo interno das regiões do país, apresentaram, em 2003, um 1 A expressão produção não-associada significa a produção do gás natural sem a presença de petróleo. 2 Este último energético foi introduzido entre as funções da ANP mais tarde, pelo governo atual, através da Lei Federal No 11.097 de 13 de janeiro de 2005. 142 | Estudo da indústria do gás natural e seu inter-relacionamento com o setor elétrico na Bahia: perspectivas e potencialidades crescimento acentuado em relação a 2002, de 12,5%. Esse expressivo aumento nas vendas tem relação direta com a nova orientação energética que se tem adotado para o país: o gás natural tem se firmado como importante energético, com participação cada vez maior na matriz energética nacional. Segundo o Balanço Energético Nacional – BEN, emitido pelo Ministério das Minas e Energia, o gás natural já participava com 8,9% na matriz energética nacional em 2004 (BEN, 2005). Verifica-se, ademais, que esse crescimento experimentou um salto, a partir de 1999, de 12%, em relação a 1998 e, de forma ainda mais contundente, aumentou em 31% em 2000, em relação a 1999. Entretanto, a participação do gás natural importado, na oferta nacional, tem sido cada vez maior e atinge, atualmente, um patamar bastante expressivo: 45,53% do volume de gás natural ofertado3 no país, em 2004, foi importado (ANP, 2005b). Consoante à explicação anterior, a produção própria de gás natural no país cresceu 7,16% em 2004, em relação a 2003, enquanto a importação cresceu 35,71% no mesmo período. O total da oferta de gás natural no país, então, aumentou, em 2004, 19,91%, em relação a 2003. Na Bahia o cenário é convergente com o nacional, tendo o estado apresentado crescimento bastante acentuado nas vendas de gás natural, resultado de sua maior participação na matriz energética regional: em 2003 houve crescimento de 39% no volume comercializado, em relação a 2002. Tal estado é responsável pelo maior volume de vendas no nordeste e está na terceira colocação entre os demais estados da federação. O Gráfico 1 apresenta a evolução das vendas de gás natural realizadas pela concessionária Bahiagas no Estado da Bahia, no período 1994-2004. Nota-se um crescimento vultoso, de aproximadamente 4,8 vezes, na comercialização de gás natural, de 19944 ao ano de 2004, indicando a existência de uma demanda reprimida por esse energético. A despeito de ser o terceiro maior produtor de gás natural do país, o estado da Bahia é importador desse energético do estado de Sergipe. A produção baiana é insuficiente e o fornecimento é igualmente limitado. Ao analisar-se a estratificação do consumo de gás natural no mercado baiano, percebe-se que a parcela industrial é bastante expressiva, seguida da co-geração e do consumo automotivo. É interessante notar, entretanto, que apesar da grande participação do segmento industrial, responsável por mais de 60% do 3 Oferta: Igual ao mercado aparente (produção nacional líquida + importação), que engloba LGN, condensado, consumo próprio nas refinarias, unidades de processamento de gás natural e sistemas de transferência e transporte, importações, vendas e ajustes de gás natural de produção nacional. 4 Ano em que se iniciou as atividades da Bahiagas. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 143 consumo de gás natural, há um crescimento perceptível nos segmentos de cogeração em 2004, saltando de 18%, em janeiro, para cerca de 30%, em dezembro desse ano, e, no segmento automotivo, com elevação da participação de 4%, em janeiro, para 6%, em dezembro. O Gráfico 2 apresenta a participação de cada segmento nas vendas de gás natural no estado da Bahia. Gráfico 1 Volume de Gás Natural Comercializado na Bahia 1994 - 2004 3.809 2004 3.826 2003 3.416 2002 3.298 2001 2000 3.103 2.188 1999 1.888 1998 1.603 1997 1996 1.508 1.352 1995 782 1994 500 1.000 1.500 2.000 mil m3/dia 2.500 3.000 3.500 4.000 Fonte: Bahiagas, 2003 e Revista Brasil Energia, 2004/2005. Gráfico 2 Estratificação das Vendas de Gás Natural na Bahia por Segmento – 2004 100% 90% 80% 4% 0% 0% 0% 0% 0% 0% 0% 1% 0% 25% 28% 29% 30% 29% 30% 32% 33% 29% 29% 26% 5% 5% 5% 4% 5% 5% 5% 5% 5% 6% 68% 66% 66% 66% 65% 65% 65% Nov Dez 18% 70% 60% 0% 16% 4% 5% 50% 40% 30% 66% 69% 62% 63% 61% 20% 10% 0% Jan Fev Residencial Comercial Mar Abr Mai Industrial Automotivo Jun Jul Ago Set Out Co-geração Geração Elétrica Fonte: Revista Brasil Energia, 2004/2005. 144 | Estudo da indústria do gás natural e seu inter-relacionamento com o setor elétrico na Bahia: perspectivas e potencialidades 18% O ano de 2004 também foi marcado pelo início do fornecimento de gás natural no segmento residencial. Tal fornecimento começou em maio desse ano, com um volume comercializado de 30 m3/dia, chegando, em novembro, à marca de 1.000 m3/dia. Apesar de representar pequeno volume incremental, sinaliza uma mudança no planejamento estratégico da concessionária estadual, no âmbito da disseminação e massificação da utilização de gás natural no estado da Bahia. A distribuição de gás natural canalizado para o segmento residencial se concentrou na cidade de Salvador no ano de 2004, em consonância com a ampliação da disponibilização de gás para os segmentos automotivo e de co-geração. Os investimentos na produção e ampliação das malhas de transporte e distribuição de gás natural no Brasil e na Bahia O Brasil apresenta um cenário bastante promissor no que diz respeito à ampliação da oferta de gás natural canalizado. Os investimentos na ampliação da produção de gás, bem como nas ampliações das malhas de transporte e distribuição, são expressivos e indicam uma orientação bastante clara quanto à sua inserção na matriz energética nacional. A descoberta de gás natural na Bacia de Santos, divulgada pela Petrobras em 2003, representou um novo paradigma na oferta, pois significou quase o dobro das reservas provadas de gás do país nesse ano: o país possuía 245,34 bilhões de m3 em reservas provadas e foi divulgado um volume descoberto de 419,00 bilhões de m3 na Bacia de Santos (SIQUEIRA, 2003). Saliente-se, entretanto, que tal volume ainda se encontra em avaliação para sua classificação como reserva provada5, de acordo com o Regulamento Técnico ANP no 001/2000 e código publicado pela Society of Petroleum Engineers – SPE (ANP, 2005b). A Petrobras, através de seu Plano de Negócios 2006-2010, projeta um crescimento no mercado de gás natural, de 2004 a 2010, da ordem de 162%. Para tanto, a estatal pretende investir US$ 4,5 bilhões no período 2006-2010, no intuito de desenvolver o mercado de gás natural e assegurar suas estratégias de negócios para esse segmento, que incluem o desenvolvimento da indústria de gás natural, garantindo a colocação do seu gás e sua atuação no negócio de energia elétrica com o idêntico objetivo de garantir o mercado de gás natural da companhia. 5 Segundo a ANP (2005) “Reservas Provadas são aquelas que, com base na análise de dados geológicos e de engenharia, se estima recuperar comercialmente com elevado grau de certeza”. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 145 Os principais projetos citados no Plano de Negócios 2006-2010 são: • Gasoduto Sudeste-Nordeste – GASENE • Malha de Gasodutos do Nordeste • Gasoduto Urucu-Coari-Manaus • Ampliação Gasbel • Gasoduto Bolívia-Brasil (até 34 MM m3/dia) • Projeto Malhas Sudeste e Nordeste • Gasoduto Paulínea-Jacutinga • Plano de Desenvolvimento do Escoamento de Gás – PDEG No que tange, especificamente, as malhas de transporte de gás natural no nordeste e sudeste do país, destaca-se a implementação de um ambicioso investimento que objetiva sua ampliação. Trata-se do Projeto Malhas, concebido e estruturado pela empresa, com o objetivo central de atender as demandas originadas pelo Programa Prioritário de Termeletricidade – PPT, estabelecido pelo governo federal, que visa a fomentar, através de incentivos, a ampliação da oferta de energia elétrica de origem térmica, através de usinas termelétricas a gás natural – cujo arcabouço legal foi estabelecido a partir do decreto presidencial no 3.371, de 24 de fevereiro de 2000. Tal decreto instituiu o PPT no âmbito do Ministério das Minas e Energia – MME, e, desse ministério foram emanadas, especificamente, as portarias no 43/00, de 25 de fevereiro de 2000, e no 215, de 26 de julho de 2000, que estabeleceram as regras para consecução do programa. Essas normas determinaram a obrigatoriedade, por parte da Petrobras, de suprimento de gás natural por um período de até 20 anos. O Projeto Malhas visa, pois, a ampliar as malhas de gasodutos do Nordeste e Sudeste, para atender, primordialmente, às demandas térmicas para geração de energia elétrica – termeletricidade. Com isso, o governo federal objetiva ampliar a participação do gás natural na matriz energética nacional, bem como deslocar o perfil de geração hidrotérmico para uma condição de maior equilíbrio; a portaria MME no 43/00, de 25 de fevereiro de 2000, considera uma projeção de participação de 80% (hidro) e 20% (térmico) no cenário hidrotérmico até 2009. Esse projeto é, em si, de grande envergadura: exigiu engenhosa estruturação financeira, em função do aporte de capital, inicialmente previsto em US$ 960 milhões, com a participação de bancos financiadores japoneses e de empresas transportadoras de capital japonês, e a criação de um consórcio – o Consórcio Malhas – formado por tais transportadoras, além da Transportadora Nordeste Sudeste (TNS)6, e Transpetro7 (ANP, 2003). 6 7 A TNS é subsidiária da Gaspetro que, por sua vez, é subsidiária da Petrobras. A Transpetro é uma empresa controlada pela Petrobras. 146 | Estudo da indústria do gás natural e seu inter-relacionamento com o setor elétrico na Bahia: perspectivas e potencialidades A implantação do Projeto Malhas não atingiria os objetivos propostos se não houvesse um projeto de interligação das malhas de gasodutos do nordeste e sudeste do país, o Gasene. O nordeste, deficitário em energia elétrica e carente em reservas e produção de gás natural (as reservas provadas de gás natural nordestinas representam apenas 22,8% das reservas nacionais e, a produção nordestina, 32,8%) não poderia prescindir da interligação com a malha sudeste, sob o ponto de vista estratégico. A viabilização do PPT, particularmente no que diz respeito à diversificação da matriz energética e à redução da vulnerabilidade elétrica do nordeste do Brasil, passa por essa integração das malhas de gasodutos. Segundo Tourinho (2004), em resumo, a alternativa de interligar a rede de gasodutos de gás natural do Nordeste com a da Região Sudeste, de forma a viabilizar a geração térmica local, tem as seguintes motivações: 1. O esgotamento dos potenciais hidrelétricos e a mudança no regime hidrológico indicam a necessidade urgente da diversificação da matriz energética do Nordeste. 2. A expansão baseada em importação de outras regiões através de longas linhas de transmissão compromete a confiabilidade elétrica do NE (risco de blecaute, não de corte do suprimento de energia). 3. A baixa complementaridade hidrológica entre o NE e outros subsistemas reduz os benefícios das interligações. Uma baixa hidrologia no SE poderia comprometer o suprimento no NE; 4. O aumento da capacidade instalada térmica próxima aos centros de carga aumenta a confiabilidade elétrica do sistema, reduzindo os riscos de blecaute. 5. O transporte de energia via gasodutos tem menor custo ambiental do que linhas de transmissão (pequena faixa de passagem). A Tabela 2 apresenta investimentos em produção, processamento e transporte de gás natural, implementados, ou em implementação, na Bahia, nos últimos 3 anos. No que tange à distribuição de gás natural no estado da Bahia, o cenário aponta para a ampliação e interiorização da malha de gasodutos, em consonância com os investimentos na ampliação da produção, processamento e transporte. A concessionária responsável por distribuir o gás natural, a Bahiagas, anunciou investimentos de até R$ 90 milhões para o ano de 2005 (CRUZ, 2005). Os planos de investimento da concessionária incluíam a inauguração do gasoduto que interliga a estação de recebimento de gás natural, no município de Candeias, ao município de Feira de Santana, a 110 km de Salvador, investimento orçado em R$ 22 milhões (VIGLIANO, 2004c). Tal empreendimento marca uma nova fase na história da distribuição de gás natural na Bahia, uma vez que se principia com maior vigor o atendimento a municípios e microrregiões mais afastadas da região metropolitana de Salvador e, por conseguinte, da produção e processamento de gás natural. Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 147 TABELA 2 INVESTIMENTOS EM PRODUÇÃO, PROCESSAMENTO E TRANSPORTE DE GÁS NATURAL NA BAHIA NOS ÚLTIMOS 3 ANOS Situação Extensão Diâmetro Capacidade (km) (in) (milhões m3/dia) Plataforma Gasoduto de Transferência Unidade de Processamento de Gás Natural (UPGN) Em construção Em construção Em construção 125 - 24 - 6,0 6,0 6,0 Projeto Malhas Gasoduto Candeias-Aratú Gasoduto Dow-Aratú-Camaçari Gasoduto Catú (BA) – Carmópolis (SE) Em operação Em construção Em licenciamento ambiental/Instalação 15,4 27 265 14 14 26 0,65 2,29 9,0 Gasene Gasoduto Cacimbas (ES) – Catú (BA) Em licenciamento ambiental/Instalação 970 28 20,0 Processamento UPGN-3 (Catú/BA) Em operação - - 2,5 Projeto Manati Fonte: Elaboração própria. Dificuldades a serem vencidas para o crescimento da indústria de gás natural e seus desdobramentos no setor elétrico na Bahia A despeito dos investimentos que se pronunciam na ampliação da produção, processamento, transporte e distribuição de gás natural no Brasil, e particularmente na Bahia, existem dificuldades que deverão ser vencidas para que o projeto nacional de massificação do gás e seus desdobramentos, no que tange a integração com o setor elétrico, possam alcançar o êxito desejado. Os obstáculos vão desde a inexistência de um marco regulatório bem definido para o setor de gás natural, em nível federal e estadual; passam pelo modelo de desenvolvimento e expansão do setor elétrico, onde há um argumento subjacente de incentivar usinas termelétricas próximas aos centros de carga, ou investir em transmissão; atravessam a política de preços do gás, que pode inviabilizar projetos de substituição de energéticos, em função de baixa competitividade desse energético em relação a outros menos nobres (a exemplo do carvão); e remetem à capacidade de alavancagem financeira da concessionária estadual, de sua capacidade de endividamento, em função de sua geração de caixa, e do fato de ser uma estatal. Além dessas questões, as dificuldades quanto à emissão de licenças por parte de órgãos ambientais se constituem, muitas vezes, entraves aos investimentos previstos. 148 | Estudo da indústria do gás natural e seu inter-relacionamento com o setor elétrico na Bahia: perspectivas e potencialidades Do ponto de vista regulatório, as atividades de produção, processamento, importação, carregamento e transporte estão sob a égide da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis – ANP, cuja função é promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria dessas áreas. A distribuição de gás natural canalizado, entretanto, está sob a jurisdição das agências reguladoras estaduais, haja vista o fato dessa atividade ser de competência dos Estados, conforme preconiza o parágrafo 2º do artigo 25 da Constituição Federal. Na Bahia, a agência reguladora estadual foi criada através da Lei Estadual no 7.314, de 19 de maio de 1998. A Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia – AGERBA tem por finalidade regular, controlar e fiscalizar a qualidade dos serviços públicos concedidos nos setores de energia, transportes e comunicações. Tem, ademais, o ofício de garantir a universalização e qualidade dos serviços públicos concedidos, bem como a modicidade tarifária e o equilíbrio econômico e financeiro dos contratos de concessão. O fato de ser uma agência reguladora multissetorial confere certa dificuldade no atendimento às demandas que legalmente lhe são impostas. Para Rocha (2003), as dificuldades podem ser classificadas em dois tipos: internas e externas. As dificuldades de natureza interna estão relacionadas à organização do seu organograma, que não possibilita diferenciar precisamente os papéis desempenhados pelos seus técnicos, em relação a cada setor regulado, especificamente no que tange a fiscalização, controle de tarifas, estudos, planejamento e a regulação propriamente dita. As dificuldades de natureza externa têm relação com as deficiências no chamado marco regulatório estadual. Para o autor, existe grande defasagem no contrato de concessão estabelecido entre o poder concedente e a única empresa distribuidora de gás natural canalizado no estado da Bahia, por sua vez, sob controle estatal. A ausência de uma política bem definida de preços do gás natural, atualmente amarrada a uma cesta de óleos, pode representar uma dificuldade adicional à penetração mais acentuada desse energético na matriz energética brasileira e, mais especificamente, baiana. Segundo Amaral (2004, p. 16), o país precisa de uma “política muito mais agressiva de precificação do gás natural”. O segmento industrial reclama uma maior atratividade do gás natural, sob o ponto de vista comercial, para que se concretize a tão sonhada substituição de energéticos menos nobres e mais poluentes, pelo gás. Segundo o consultor Fernando Tavares Camacho (VIGLIANO, 2004a), a indústria do gás natural no Brasil precisa de um choque de competitividade, para que o mercado possa ditar o preço, estimulando a entrada de novos produtores, regulando a entrada de terceiros nas malhas existentes e estabelecendo um controle sobre as tarifas de distribuição em nível nacional, tal como faz a Agência Nacional de Energia Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 149 Elétrica – ANEEL, no setor elétrico. Essa proposição, entretanto, se traduz em grandes dificuldades, uma vez que implica mudança constitucional, que confere aos Estados a autonomia sobre a distribuição do gás natural canalizado. Além de a conversão térmica industrial estar ameaçada em função dessa instabilidade e indefinição na política nacional e estadual de preços do gás natural, outros segmentos potenciais, particularmente de geração termelétrica e co-geração, se deparam com a mesma situação. A massificação do gás natural no Brasil, e em particular na Bahia, está intrinsecamente associada à capacidade da distribuidora estadual em alavancar os recursos para garantir investimentos que suportem o crescimento na oferta de gás natural no estado. A malha de gasodutos atual é incipiente e está concentrada em apenas dois pólos industriais que integram a Região Metropolitana de Salvador. Segundo Almeida et al (2004, p. 8), a superação desse problema “irá requerer uma política setorial para o gás natural que ataque também o problema específico da dificuldade de financiar investimentos por parte das empresas”, particularmente as estatais, como é o caso da Bahiagas. Perspectivas e potencialidades de integração entre a indústria de gás natural e o setor elétrico na Bahia O Brasil, como fora dito anteriormente, possui enorme potencial de aproveitamento hídrico para geração de eletricidade. Tal característica se traduz em enorme vantagem competitiva, quando comparada a qualquer outra fonte primária de geração elétrica, inclusive a termeletricidade a gás natural. Apesar desse fato concreto, quando analisadas de forma conjuntural e integradas no plano macro, as regiões do país possuem características e potencialidades distintas. A região Nordeste, em particular, não possui grande potencial hidrelétrico em relação a outras regiões do país e, o que dispõe, já se encontra em sua maior parte explorado. Portanto, para essa região, ao contrário das demais, faz-se necessário pensar concretamente outras formas de geração elétrica, em complementação ao sistema hídrico. Atualmente, a região Nordeste é importadora de energia elétrica dos subsistemas norte e sudeste, através do Sistema Interligado Nacional – SIN. A dependência dessa região do suprimento de energia elétrica pura e simplesmente através de linhas de transmissão é por demais arriscado e a coloca em situação de grande desconforto, haja vista não se poder garantir uma confiabilidade de 100% nessa transmissão, tecnicamente impossível. Além disso, o espectro de dependência de outros subsistemas se apresenta desfavorável quando pensado sob o ponto de vista da escassez do recurso hídrico em nível nacional, como acontecido em 2001 com a crise energética, o que poderia conduzir a um 150 | Estudo da indústria do gás natural e seu inter-relacionamento com o setor elétrico na Bahia: perspectivas e potencialidades privilégio das regiões mais desenvolvidas e industrializadas do país, particularmente as regiões Sul e Sudeste, em detrimento das regiões menos desenvolvidas. Deve-se pensar na inserção do gás natural na matriz energética regional, inclusive, e sobretudo, sob o viés do potencial de integração com sistema elétrico da região. O modelo de complementação térmica é uma tendência mundial e no Brasil deve ser melhor explorado, em especial nas regiões mais carentes em recursos hídricos, a exemplo do Nordeste. A Bahia se insere nesse contexto como estado de grande desenvolvimento industrial e de grande tradição na utilização desse energético para fins industriais. A prospecção e o desenvolvimento da indústria do gás natural começou nesse estado e, em função disso, o mercado desse energético foi se instalando progressivamente. Isso confere ao estado da Bahia a condição de terceiro maior mercado de gás natural do país. Considerando a conjunção desses fatores positivos, quais sejam tradição e mercado, faz-se mister refletir sobre algumas possibilidades de integração entre a indústria de gás natural e o setor elétrico regional. A possibilidade do desenvolvimento de um mercado industrial de gás natural com consumo interruptível parece ser bastante razoável, quando analisada sob a ótica da complementaridade térmica. As térmicas, com base na previsibilidade hídrica, venderiam o gás nos períodos em que não o utilizassem. Tal fato atenuaria o efeito da rigidez da indústria do gás natural, o qual, em função do alto capital investido, de natureza irrecuperável, impõe contratos de “take or pay” ou “ship or pay”. A co-geração figura também como uma possibilidade real e grande promessa, quando analisada sob a ótica da racionalidade da utilização dos recursos naturais. A Bahia, com um parque industrial de porte e diversificado, concentra ainda melhores condições de explorar essa possibilidade. Paro et al (2004), em seu estudo acerca da análise comparativa entre a geração termelétrica convencional e a partir de co-geração, conclui que “sob o aspecto do aproveitamento energético do gás natural, a utilização de sistemas de co-geração traz melhor benefício global”. A atratividade econômica da utilização do gás natural, aliada à co-geração, se mostra evidente, na medida em que eleva a eficiência termodinâmica dos processos em que se insere e, portanto, deve ser sempre lembrada quando se planeja a integração da indústria do gás e o sistema elétrico. Paula e Sauer (2004), em seu estudo sobre a co-geração no setor elétrico a partir de um plano de inserção incentivada do gás natural, apresenta um potencial de inclusão no setor elétrico da região Nordeste de 5.878 MW de capacidade de geração, em 2013, a partir da co-geração. Isso representaria Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 151 um incremento de aproximadamente 10,1 milhões de m3 por dia de gás natural no consumo da região Nordeste. Para chegar ao montante potencial de acréscimo na capacidade de geração instalada no país, através da co-geração, tal estudo estratificou as contribuições de três setores potenciais: o setor industrial, o setor sucroalcooleiro e o setor de serviços. Os resultados apontam o setor industrial como maior contribuinte potencial para a co-geração em todas as regiões do país. No caso específico da região Nordeste, a contribuição do setor industrial representaria 85% do potencial de incremento na capacidade de geração, através da co-geração, em 2013. O estado da Bahia, como dito anteriormente, é pujante em seu parque industrial, devendo, à luz dos dados que se apresentam, intensificar seus esforços no sentido de fomentar, como política de Estado, cada vez mais a participação da co-geração como possibilidade real de otimização de processos, com a utilização ecologicamente eficiente dos energéticos disponíveis, em particular do gás natural, o que implica a redução da vulnerabilidade elétrica do estado e, por conseqüência, da região Nordeste. Uma particularidade desse estado, que amplia as possibilidades de integração energética através da co-geração, embora em proporções menores, é o crescimento acentuado do setor de serviços8. Segundo Nascimento (2002, p. 79), “o setor de serviços foi o que mais cresceu na economia baiana nas últimas duas décadas, com 3,6% de taxa geométrica média anual, no período 1980/1990, e 2,5% no período 1990/2000. O consumo comercial de energia elétrica (que envolve atividades similares às agregadas no setor de serviços) respondeu a esse crescimento de forma ampliada: 6,2%, entre 1980-2000”. Esses dados demonstram que o potencial existente para integração da indústria de gás natural e o setor elétrico, a partir da co-geração, na região Nordeste, e em particular no estado da Bahia, não é pequeno. Considerando a capacidade instalada atual, da região Nordeste, de 24.131 MW (BIG, 2005), o potencial apresentado de incremento, através de co-geração, de 5.878 MW, representa, aproximadamente, um quarto da capacidade de geração atual. Considerações finais As considerações apontadas no texto permitem concluir que a região Nordeste do país, e em particular a Bahia, necessita ver concretizadas ações efetivas na direção da ampliação da produção, processamento, transporte e distribuição de gás natural. Os planos de investimento atualmente apresentados, com vistas 8 O Setor de Serviços inclui shopping centers, hospitais, hotéis, etc. 152 | Estudo da indústria do gás natural e seu inter-relacionamento com o setor elétrico na Bahia: perspectivas e potencialidades à consecução desses objetivos, não apenas devem ser viabilizados, como devem ser ampliados. A escassez de recursos hídricos e a dependência de importação de energia elétrica de outras regiões, através de linhas de transmissão, são aspectos que merecem uma reflexão aprofundada acerca da vulnerabilidade, riscos e limitação de crescimento econômico e social na região de menor PIB per capita do país (MDIE, 2004). A entrada do gás natural, com maior vigor, na matriz energética regional e estadual, certamente mitigará tais riscos, através da sua utilização na geração termelétrica, segundo um modelo de desenvolvimento diferenciado – de mercado secundário com consumo industrial interruptível – assim como através da co-geração. A Bahia, por abrigar o maior número de habitantes “sem luz” do país e, paradoxalmente, dispor de presença industrial pujante, deve ter um compromisso assertivo, no sentido de não apenas desenvolver a indústria do gás natural, mas integrá-la ao setor elétrico, o que configura oportunidade ímpar de desenvolvimento regional. Referências ALMEIDA, L. F et al. Os obstáculos aos investimentos na rede de distribuição de gás natural no Brasil. In: RIO OIL & GÁS 2004 CONFERENCE, 2004, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: IBP644-04, 2004. AMARAL, D. Política, gás e energia elétrica. Revista Brasil Energia, Rio de Janeiro, n. 281, abr. 2004. (Entrevista). ANP. AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO, GÁS NATURAL E BIOCOMBUSTÍVEIS. Sumário de autorizações concedidas para construção e operação de instalações de transporte de gás natural – período 1998 a 2005. mar. 2005a. Disponível em: <http://www.anp.gov.br>. Acesso em: 1 set. 2005. ANP. AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO, GÁS NATURAL E BIOCOMBUSTÍVEIS. 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Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 155 156 | Desafios ao fortalecimento da cadeia do algodão: o caso da Região Oeste 9 DESAFIOS AO FORTALECIMENTO DA CADEIA DO ALGODÃO: O CASO DA REGIÃO OESTE1 Vera Spínola* Marcelo Xavier** Resumo A Região Oeste é aquela de maior produção agrícola no estado da Bahia, impulsionada pela cultura de grãos em grande escala: soja, milho e, mais recentemente, algodão, do qual o estado já se tornou o segundo produtor nacional. No corrente artigo, faz-se um estudo do processo de expansão da cotonicultura no Oeste e sua inserção no mercado nacional e internacional; apresentam-se as possibilidades e entraves ao fortalecimento de sua cadeia produtiva em nível local e estadual; discutem-se alternativas para a consolidação da cotonicultura nessa região, a fim de não se tornar apenas mais um ciclo agrícola. Palavras-chave: Cotonicultura. Algodão. Bahia. Região Oeste. Cadeia Têxtil. Abstract The western region of the state of Bahia, Brazil, has reached the highest levels of agricultural production, boosted by large-scale grain crops, such as soybeans, corn, and, more recently cotton, of which the state has become the second domestic producer. The current paper studies the process of expansion of the cotton crop in the western region of the state of Bahia, as well as its embeddedness in the domestic and international markets. It also presents the possibilities and obstacles to its integration at local and state levels. The alternatives to the development of the cotton crop in the western region of Bahia state are discussed, aiming at preventing it from simply becoming one more agricultural cycle. Key-words: Cotton Crop. Cotton. Bahia. West. Textile Productive Chain. 1 Os autores agradecem a Adelaide Motta Lima, cujas reflexões contribuíram para o aprimoramento desse estudo. * Doutoranda em Administração pela UFBA; mestre em Economia pela UFBA; analista de desenvolvimento da Desenbahia; professora da Unifacs. E-mail: [email protected] ** Estagiário da Desenbahia e estudante do curso de graduação em Ciências Econômicas da UFBA. E-mail: [email protected] Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 157 Introdução Em 2004, o estado da Bahia alcançou a posição de segundo maior produtor brasileiro de algodão, depois do Mato Grosso, superando Goiás. O vertiginoso crescimento da cotonicultura se deu a partir de 1998, quando foi introduzida no cerrado. De fato, o oeste da Bahia pode ser considerado, hoje, a maior região exportadora do produto no Brasil, respondendo pela quase totalidade dos US$ 60 milhões exportados pelo estado: sua produção, por hectare, é das mais elevadas do país e seus produtores são organizados e mecanizados, além de plantarem o algodão em rodízio com a soja e o milho. No corrente artigo faz-se um estudo do processo de expansão dessa cultura na Região Oeste, buscando entender como se dá sua inserção no mercado nacional e internacional, suas fragilidades, suas possibilidades de verticalização e sua diversificação na economia local e estadual. O estudo consta de cinco seções. Após esta introdução, faz-se uma análise das características e principais ramificações da cadeia do algodão. Em seguida, na terceira seção, apresentamse dados de produção e de mercado, em nível mundial e nacional. Na quarta seção, a mais extensa, discorre-se sobre a cultura do algodão na Região Oeste do estado da Bahia: evolução; estrutura empresarial e investimentos previstos nas diferentes atividades da cadeia produtiva dentro do estado; destino da produção; composição de custo; logística de transporte; as atividades de P&D, incluindo a atuação da Embrapa Algodão no desenvolvimento do algodão colorido; e a questão dos transgênicos. A cotonicultura do oeste tem semelhanças com o modelo de produção agrícola referido por Couto Filho (2004) como “modelo produtivista”, caracterizado pela busca contínua de aumento dos rendimentos físicos por hectare, com a utilização intensiva de máquinas e equipamentos, de insumos químicos e de sementes melhoradas geneticamente, para a produção em grande escala de monoculturas de commodities. Também são características inerentes a esse modelo a concentração fundiária, a desocupação da mão-de-obra e o uso intensivo da terra. À luz do referido modelo, nas considerações finais do corrente artigo, sintetizamse as vantagens e desvantagens do algodão cultivado em larga escala nas grandes propriedades do oeste, alertando para a necessidade de se criarem alternativas ao caminho produtivista. Infere-se que a cotonicultura do oeste, se continuar focada na produção de uma commodity agrícola apenas, corre o risco de se tornar mais um ciclo agrícola, altamente vulnerável às oscilações da demanda externa. 158 | Desafios ao fortalecimento da cadeia do algodão: o caso da Região Oeste Principais segmentos da cadeia produtiva do algodão O algodão é cultivado em mais de 100 países, em área superior a 34 milhões de hectares. Seu cultivo requer uma longa estação de crescimento, com muita água e sol, e um período de estiagem na colheita, condições encontradas em latitudes quentes subtropicais, seja no hemisfério norte ou sul. O algodoeiro é uma planta de cultura delicada e bastante sujeita a pragas, além de grande consumidora de desfolhantes, herbicidas e fungicidas. Em 1 kg de algodão bruto, 35% a 40% equivalem à pluma, utilizada na indústria têxtil, mais de 50% refere-se ao caroço e, o restante, a impurezas. Com o caroço fabricam-se tortas e óleos, utilizados na produção de uma gama de itens: sabões e cosméticos e comestíveis, a exemplo do óleo de fritar, margarinas e chocolates, além do biodiesel. Embora o algodão tenha múltiplas aplicações, sua principal utilização está na indústria têxtil, onde os maiores concorrentes são as fibras químicas: algumas análises indicavam uma tendência de aumento da demanda pela fibra sintética de poliéster (PANORAMA SETORIAL, 2005), devido ao menor custo desta. No entanto, a alta dos preços do petróleo repercutiu no aumento de preço do poliéster e, em contrapartida, na tendência de expansão do consumo de algodão. Distingue-se, como principais elos da cadeia têxtil: a cultura do algodão; seu beneficiamento primário, que consiste em separar o caroço da pluma; a produção de fios e fibras a partir da pluma; a fiação e fabricação de tecidos; e a indústria de confecções, incluindo malharia e vestuário. Apesar da cadeia têxtil e de confecções se caracterizar pela diversidade, sendo cada elo constituído por um número relativamente alto de segmentos, existe uma elevada concentração industrial na produção de fibras e filamentos, onde atuam poucas e grandes empresas. Segundo Santos (2005), o produtor do algodão em pluma está sujeito a um oligopsônio, dominado pelos grandes compradores produtores de fios, fibras e tecidos, dentre os quais se destacam a Coteminas, a Vicunha e a Santista, em nível nacional. À medida que se aproxima do final da cadeia (produção de artigos de confecção), o número de estabelecimentos cresce significativamente, mas o porte da empresa decresce. É possível se inferir que o poder de barganha dos produtores de confecções é limitado pelos interesses dos seus fornecedores, os produtores de tecidos. Em se tratando do aproveitamento do caroço do algodão, constatou-se que parte é consumida in natura, ou em farelo, na alimentação de bovinos. O restante é destinado a empresas de esmagamento para a produção de óleo, Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 159 de farelo e de línter – fibra que sobra no caroço após a retirada da pluma. O óleo obtido do caroço do algodão é também utilizado para a produção de biodiesel, semelhante à soja, ao milho, à colza, à mamona, ao girassol e a outras culturas. Mercado mundial e brasileiro Algumas estatísticas do mercado mundial As estatísticas do período 2004/2005 indicam que a produção mundial de algodão ultrapassa 24 milhões de toneladas e é dominada por três produtores: a China, com 6,423 milhões de toneladas; os Estados Unidos, com 4,909 milhões de toneladas; e a Índia, com 3,092 milhões de toneladas. O Brasil aparece na quinta posição, depois do Paquistão, de acordo com o relatório de janeiro de 2005 do United States Department of Agriculture – USDA (PANORAMA SETORIAL, 2005). Agentes do setor avaliam que o Brasil, em poucos anos, deve se tornar o terceiro maior produtor de algodão do mundo, posto que o seu volume de produção tende a dobrar em dez anos. O excedente mundial exportável atinge 7,0 milhões de toneladas, sendo que os EUA, a África e a Ásia Central representam 65% das exportações mundiais. Os EUA lideram as exportações, com 2,722 milhões de toneladas. Os principais mercados importadores estão na Ásia, liderados pela China, seguida da Indonésia, Tailândia e Bangladesh. A China, maior produtor e maior importador da matéria-prima, com 1,687 milhão de toneladas, é também o maior consumidor. Estima-se que o país asiático tenha consumido 7,838 milhões de toneladas na safra 2004/2005, à frente da Índia, com 3,092 milhões de toneladas. A demanda de algodão no comércio internacional também está em expansão, mas não em igual ritmo da produção. A expectativa é de aumentar de 21,447 milhões de toneladas (98,506 milhões de fardos), na safra 2003/2004, para 22,411 milhões de toneladas (102,931 milhões de fardos) na safra 2004/2005. O crescimento no período equivaleria a 4,5% (PANORAMA SETORIAL, 2005). Mercado brasileiro A projeção de uma promissora evolução do setor algodoeiro, na agricultura do Brasil, é baseada na recente trajetória de recuperação do mercado nacional. Após a interrupção no desenvolvimento da cultura, ocorrida principalmente nos primeiros anos da década de 1990, a atividade reverteu seu fraco desempenho para um ritmo mais vigoroso, a partir dos anos 2000, como comprovam os dados da Tabela 1. 160 | Desafios ao fortalecimento da cadeia do algodão: o caso da Região Oeste TABELA 1 PRODUÇÃO BRASILEIRA DE ALGODÃO (1990-2003) (EM TONELADAS MÉTRICAS) Estados Mato Grosso Bahia Goiás São Paulo Mato Grosso do Sul Minas Gerais Paraná Outros Brasil 2000 1.002.836 132.675 254.476 148.230 127.839 99.743 125.444 115.859 2.007.102 2001 1.525.376 170.092 326.150 166.219 169.425 69.760 174.771 41.731 2.643.524 2002 1.141.211 179.971 301.255 154.200 154.105 90.588 84.432 60.252 2.166.014 2003 1.065.779 276.360 305.187 167.000 159.060 85.914 71.720 68.248 2.199.268 2004 1.884.315 704.163 469.794 224.700 187.296 134.966 89.945 103.075 3.798.254 Fonte: IBGE/PAM – Produção agrícola municipal. Elaboração própria. Nas décadas de 1980 e 1990, a cotonicultura brasileira passou por três momentos que desgastaram a atividade no mercado nacional: iniciou com a incidência da praga do bicudo, ao longo dos anos 80, que dizimou plantações; depois, no início dos anos 90, houve a abertura comercial, que contribuiu para a substancial entrada de produtos têxteis; e, finalmente, a política cambial do Plano Real, adotada pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que reduziu acentuadamente a competitividade do agricultor (PANORAMA SETORIAL, 2005). A fase de recuperação do setor veio com a mudança do regime da política monetária, em 1999, através da implantação do sistema de câmbio flutuante. Não obstante a melhora das condições internas, entre 2001/2002 houve uma retração do cultivo do algodão, motivada pela redução dos preços internacionais, devido a uma supersafra mundial no período. A valorização das cotações das demais commodities, por sua vez, também desestimulou a ampliação das plantações de algodão: os agricultores optaram pelo aumento das lavouras de soja, influenciados pelo menor custo de produção, pelos preços atraentes e pela alta liquidez da comercialização (PANORAMA SETORIAL, 2005). O crescimento no cultivo de algodão foi retomado a partir da safra 2003/2004. No que se refere ao número de produtores e tamanho das propriedades, o estado do Mato Grosso, maior produtor nacional, abriga milhares de pequenos produtores com menos de cinco hectares, embora seja possível encontrar propriedades com mais de 10.000 ha. Na Bahia, as grandes propriedades caracterizam a produção do oeste e, as pequenas, do sudoeste. O incremento da atividade da cultura do algodão, a partir de 2000, também contou com as mudanças tecnológicas ocorridas no agronegócio do Brasil, que permitiram o aumento da produtividade e o surgimento da cotonicultura moderna, especialmente em Mato Grosso, Bahia e Goiás (PANORAMA SETORIAL, Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 161 2005). De fato, o deslocamento da cultura do algodão para a região do Cerrado favoreceu a produção mecanizada em maior escala. Um aspecto tecnológico relevante é que a aproximação da lavoura do algodão à cultura da soja viabilizou que uma se tornasse complementar à outra, num movimento de rotatividade. Com efeito, a cultura da soja é economicamente menos exigente que a do algodão e ainda deixa o solo com resíduos significativos de nutrientes para o plantio do algodão. Este, por sua vez, viabiliza retornos mais atraentes para o produtor, em função dos preços mais elevados da mercadoria. Assim, em algumas regiões, onde é possível semear soja precoce nos meses de setembro e outubro, permite-se a plantação de algodão a partir de janeiro, em tempo de aproveitar os períodos de chuvas e obter fibras de melhor qualidade (PANORAMA SETORIAL, 2005). Em termos de preços, estima-se que, no ano de 2005, com o aumento da produção norte-americana e a queda das cotações internacionais, as commodities tenham tido um desempenho mais contido que o observado em 2004. Comparando-se os preços do algodão em pluma, no primeiro trimestre de 2004, de US$ 1,45 mil/ton a US$ 1,60 mil/ton, com os operados na Bolsa de Nova York no final do mesmo ano, na casa de US$ 1,018 mil/ton, constata-se essa tendência de queda (PANORAMA SETORIAL, 2005). Na Tabela 2 destacam-se as principais categorias de produtos de algodão exportadas pelo Brasil, no período de 2000 a 2004. TABELA 2 EXPORTAÇÕES DOS PRINCIPAIS PRODUTOS DA CADEIA DO ALGODÃO – BRASIL US$ 1.000 FOB – 2000/2004 Produtos da Cadeia do Algodão 2000 2001 Algodão não cardado 31.930 152.835 Tecidos de algodão de diferentes tipos 156.795 193.350 Fios de algodão de diferentes tipos 39.602 32.545 Demais produtos 34.559 31.252 Total 262.887 409.982 2002 2003 2004 92.055 186.974 404.734 158.821 210.459 228.830 46.710 87.747 61.481 26.089 47.470 57.853 323.675 532.649 752.899 Participação % 2000 2004 12,15 53,76 59,64 30,39 15,06 8,17 13,15 7,68 100,00 100,00 Fonte: Secex – Secretaria de Comércio Exterior MDIC/Promo – Centro Internacional de Negócios da Bahia. Elaboração UEP/Desenbahia. Observando a coluna relativa às exportações em 2004, verifica-se uma grande concentração (53,76%) nas exportações de algodão em estado primário. Se contrapostos, porém, os dados de 2004 aos referentes ao período 2000/2003, percebe-se que a concentração das vendas de algodão em estado primário é uma tendência mais recente e que vem se acentuando ano a ano. Em 2000, apenas 12,15% das exportações eram de algodão não cardado; em 2001, a 162 | Desafios ao fortalecimento da cadeia do algodão: o caso da Região Oeste parcela desse produto menos beneficiado contabilizou 37,28%; em 2002, foi de 28,44%; chegando, em 2003, a pouco mais de 35%. É possível se inferir, assim, que o incremento da produção brasileira de algodão está viabilizando uma exportação maior do produto, mas pouca agregação de valor tem sido realizada à mercadoria exportada. Como na maioria dos produtos agrícolas, as exportações brasileiras de algodão enfrentam barreiras tarifárias e não-tarifárias. Em junho de 2004, o Brasil conquistou uma vitória na OMC, com a condenação dos subsídios do governo dos Estados Unidos a seus produtores de algodão: a OMC reconheceu que os subsídios vinham deprimindo os preços das commodities e determinou que os EUA retirassem os subsídios ao algodão até 1° de julho de 2005 (PANORAMA SETORIAL, 2005). Segundo Beltrão (2004), os produtores norte-americanos estocaram o produto até a retirada dos subsídios, contribuindo para a queda brusca dos preços internacionais, estimada em 9% entre julho e agosto de 2005. Em conseqüência, alguns produtores brasileiros declararam que os preços inviabilizavam o plantio (AGRICULTOR..., 2005). Um levantamento da Companhia Nacional de Abastecimento – Conab, mostrou que, a preços de agosto de 2005, enquanto a soja possibilitaria uma rentabilidade de 23,9%, o algodão viabilizaria apenas 4,1% sobre o custo variável de produção. Além disso, como já mencionado, a cultura da soja demanda menos adubos que a do algodão, o que torna o desembolso inicial, por parte do produtor de soja, menor que o investimento a ser realizado pelo produtor de algodão. Os altos estoques e as cotações menores também reduziram a disposição dos agricultores brasileiros de investir em algodão para a safra de 2006. O IBGE prevê reduções de 24,14% na colheita (2,8 milhões de toneladas) e de 28,07% na área plantada (SOARES, 2005). A cultura do algodão na Região Oeste do estado da Bahia Sua evolução A Região Oeste da Bahia, composta por 23 municípios e com cerca de 20% do território do estado, exibiu, nos últimos anos, uma excepcional evolução no que se refere à atividade agrícola. Na safra de 2003/2004, foi responsável por 62% da soja, cerca de 90% do algodão, 27% do milho e 6% das frutas produzidas no Nordeste. A cultura do algodão ocupava cerca de 14% da área plantada na safra agrícola do oeste baiano, em 2004/2005, ficando atrás somente da área destinada à soja (58%) e ultrapassando a do milho (8%), de acordo com estimativas da Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 163 Associação dos Agricultores e Irrigantes da Bahia – Aiba. Na safra 2004/2005, houve um aumento de 35% da quantidade produzida, em relação à de 2003/ 2004, que já registrava um incremento de 147% em relação à da safra anterior. Trata-se da produção que mais cresce entre os grãos do oeste (DIAS, 2004), permitindo ao estado ocupar o posto de segundo maior produtor nacional em 2004. Do volume total de algodão produzido na Bahia, 85% se localiza no oeste e 15% no sudoeste baiano. No oeste da Bahia, a primeira colheita significativa de algodão ocorreu na safra de 1997/1998. Adotou-se, então, um novo sistema de manejo e mecanização, já empregado no Mato Grosso: foi introduzida a variedade Delta Opal, hoje responsável por 90% da produção do oeste e de cerca de 70% da produção do estado (ANUÁRIO BRASILEIRO DO ALGODÃO, 2005a). Antes, a produção de algodão do estado era realizada principalmente no sudoeste, nos municípios de Guanambi, Brumado e Caetité. O Gráfico 1 evidencia o momento de introdução da cultura na Região Oeste, revelando como a produção total do estado se comportou após seu ingresso na cultura do algodão. Gráfico 1 Total da produção de algodão na Bahia (em mil toneladas) 900 800 700 600 500 400 300 200 100 - 90/91 91/92 92/93 93/94 94/95 95/96 96/97 97/98 98/99 99/2000 00/01 01/02 02/03 03/04 04/05 Fonte: Conab. Até os meados da década de 1990, a produção baiana de algodão sofreu pequenas oscilações, típicas de uma commodity. Entre a safra de 1993/1994 e de 1997/ 1998, a trajetória foi decrescente, caindo de 133 mil toneladas para, apenas, 37,8 mil toneladas colhidas. A inflexão começa na safra de 1998/1999, com um pequeno aumento para 42,3 mil toneladas: daí em diante a lavoura se expandiu geometricamente no oeste, em particular na última safra, ultrapassando 700 mil toneladas. O principal município na produção de algodão é São Desidério, com 45% da produção baiana e 8% da nacional (SANTOS, 2005). A evolução da área plantada corrobora o comportamento da produção de algodão no período. Houve um decréscimo acentuado até a safra de 1997/1998, pontuado 164 | Desafios ao fortalecimento da cadeia do algodão: o caso da Região Oeste por recuperações conjunturais. A queda mais significativa ocorreu entre as safras de 1996/1997 e 1998/1999, quando o plantio caiu em 70%. A situação se inverteu nos anos seguintes, aumentando expressivamente a partir da safra de 2002/2003. Na última safra, de 2004/2005, houve um crescimento de 18% da plantação em relação à anterior, ultrapassando os 200 mil hectares plantados na Bahia, o que representa mais de 2,3 vezes a área plantada de algodão nos demais estados nordestinos (PANORAMA SETORIAL, 2005). Entre 2003 e 2005, o aumento do produto médio por hectare, no estado, foi de 4,5%, passando de 3.300 kg/ha para 3.450 kg/ha. A Região Oeste obteve um resultado mais representativo, com uma produção média de 3.724 kg/ha. Esse resultado pode ser atribuído aos maciços investimentos na mecanização, que levaram ao aumento da produtividade e à ampliação da área plantada. Estrutura empresarial e investimentos previstos Enquanto, no sudoeste do estado, estima-se que existam cerca de 15.000 produtores com propriedades de até 10 hectares, no oeste predominam as grandes propriedades, em número de aproximadamente 150, com áreas a partir de 1.000 hectares, sinalizando uma concentração fundiária, típica do modelo produtivista. Desses, 144 são associados à ABAPA – Associação Baiana dos Produtores de Algodão, e cultivaram cerca de 210 mil hectares na safra de 2004/2005: contudo, prevê-se a redução da área plantada, em 2005, devido à tendência de queda do preço internacional no período. Calcula-se que, de forma geral, a atividade gere em torno de 8.000 empregos na região (ABAPA, 2005). Considerando a Região Oeste como um todo, existem 58 algodoeiras, onde se dá o beneficiamento primário, ou seja, a separação da pluma do caroço. Cada uma delas gera, aproximadamente, 50 empregos diretos (SANTOS, 2005). No município de Luís Eduardo Magalhães, há duas pequenas esmagadoras de caroço, a Taje e a Xavier, produtoras de torta utilizada para ração animal. No sudoeste, no município de Guanambi, encontram-se mais duas pequenas esmagadoras de caroço. A única empresa de fiação da região, a Algofio, localiza-se no município de Urandi, fronteira com o estado de Minas Gerais, com investimento estimado em R$ 20 milhões. A empresa está em processo de ampliação, com a produção quase toda vendida para o estado de Santa Catarina. Seu maior gargalo é a escassez de energia, cujo custo atinge cerca de R$ 50 mil/mês (LEDO, 2005). Atualmente, no oeste, embora não se verifique qualquer aglomerado têxtil ou de confecção, em se tratando de outros aproveitamentos do algodão, em agosto de 2005 foi inaugurada uma refinaria de óleos vegetais em Juazeiro, do grupo cearense Icofort, com capacidade para produzir 1,8 mil toneladas de óleo de Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 165 algodão e 2 mil toneladas de óleo de soja por mês. O grupo já contava, desde 1999, no próprio município de Juazeiro, com uma fábrica de extração de óleo bruto de algodão, que era vendido para outras empresas, e que passou a abastecer a nova refinaria. Embora seu foco principal seja o mercado interno, particularmente o Nordeste, a Icofort Agroindustrial pretende exportar óleos semi-refinados e refinados de algodão (ICOFORT..., 2005). De acordo com informações do prefeito de Luís Eduardo Magalhães, Oziel Oliveira, prevê-se a implantação de uma empresa de fiação nesse município, pertencente ao grupo Mota e Fernandes do Brasil, de origem portuguesa. Seu protocolo de intenção foi assinado junto à Secretaria de Indústria, Comércio e Mineração do Estado da Bahia (OLIVEIRA, O., 2005). Por sua vez, em novembro de 2004, também foi assinado um protocolo para implantação, em Barreiras, da fiação de algodão Confecções Oeste da Bahia, com um investimento de R$ 3 milhões e geração de 42 empregos diretos (SICM, 2005). O maior projeto agroindustrial previsto para a região é o do grupo francês Dagris, que deverá cultivar algodão em áreas da Codevasf, implantar uma unidade de processamento de óleos vegetais e outra de produção de biodiesel. As obras da unidade multiuso para a produção de óleos vegetais serão iniciadas no final de 2006, também no município de Luís Eduardo Magalhães. O investimento total do projeto integrado é calculado em 40 milhões, gerando, estimadamente, 250 empregos industriais diretos (AGECOM, 2005). Pretendese trabalhar com a produção de caroços de algodão, proveniente tanto da agricultura intensiva como daquela originária de pequenos agricultores, fomentando a agricultura familiar e o cooperativismo. Dentre os protocolos firmados entre a SICM e os grupos empresariais com intenção de investir na Região Oeste, destaca-se ainda a Mill Indústria de Alimentos, voltada à produção de derivados do milho, no município de Luís Eduardo Magalhães, e a AJS Grãos e a Bahia Oeste Indústria, ambas produtoras de óleos vegetais, a serem implantadas em Barreiras (SICM, 2005). Ressaltase, contudo, que a assinatura de um protocolo de intenção não implica, necessariamente, a concretização do empreendimento. A Vicunha Têxtil, uma das maiores empresas de fiação do país, também firmou um protocolo de intenção para a implantação de uma produtora de fios de algodão no Centro Industrial de Aratu – CIA, município de Simões Filho, Região Metropolitana de Salvador (RMS). Sua entrada em operação é prevista para 2006, com um investimento de R$ 87 milhões e geração de 300 empregos diretos. Seu foco comercial será o mercado interno (OLIVEIRA, A., 2005). 166 | Desafios ao fortalecimento da cadeia do algodão: o caso da Região Oeste O projeto da Vicunha integrará o pólo têxtil a ser implantado em Camaçari, que produzirá tanto fibras naturais quanto sintéticas, sob a liderança da Braskem, que garantirá a fabricação do insumo utilizado na indústria de fiação, o ácido tereftálico purificado (PTA), cuja matéria-prima, o paraxileno, já é produzida no Pólo de Camaçari. O investimento do pólo têxtil, previsto na carta-consulta em tramitação no BNDES, é da ordem de US$ 1 bilhão. Estima-se que diferentes tecelagens sejam atraídas para a RMS pela garantia de suprimento de fibras têxteis e, a jusante, empresas de confecções, completando, assim, os elos da cadeia produtiva (CASTANHEIRA, 2005). A título de curiosidade, é interessante lembrar que, no século XIX, a Bahia foi um grande produtor de tecidos do país. A Valença Têxtil, localizada na região do Litoral Sul, a quase 300 km de Salvador, foi fundada em 1844 e chegou a ser responsável por 35% da produção no período imperial. Na segunda metade do século XX passou por grandes dificuldades e atualmente é controlada pelo grupo empresarial Troller, de origem cearense, que modernizou suas técnicas de produção e gestão: atualmente fabrica mais de um milhão de metros de tecido por mês, além de gerar cerca de 400 empregos diretos. Destino da produção Segundo informações dos próprios produtores, o mercado brasileiro absorve 70% da produção de algodão do oeste baiano. Na região Nordeste são comercializadas 70% das vendas destinadas ao mercado interno (90% no estado do Ceará e, o restante, nos outros estados, com destaque para Paraíba); os 30% remanescentes vão para São Paulo, Santa Catarina e Minas Gerais. Por conseguinte, menos de 5% são beneficiados no próprio estado. Enquanto o beneficiamento da pluma é realizado, em grande parte, no estado do Ceará, o caroço é vendido para outros estados ou comercializado como ração no mercado local, segundo Ledo (2005). Estima-se que o mercado externo seja destino de 30% da produção do Oeste, que se tornou a maior região exportadora de algodão do Brasil. O estado da Bahia já exporta mais que o Mato Grosso: em 2004, as vendas externas dos produtos de algodão do estado totalizaram US$ 60,2 milhões (Tabela 3), representando 7% das exportações do Brasil (US$ 752,9 milhões). O principal destino é o sudeste asiático e seu maior concorrente é o algodão australiano. As exportações se concentram no material em estado primário (99,99%) e não incluem fios ou tecidos. Nota-se que os valores FOB mais que triplicaram de 2003 a 2004, com aumento do volume exportado de 11,3 mil para 32,9 mil toneladas. Segundo Santos (2005), a exportação é a melhor opção para o algodão do oeste, porque, no mercado interno, os preços são controlados por poucas e Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 167 grandes empresas de fiação. Além disso, as transações de comércio exterior têm acesso a linhas de crédito com juros mais baixos, e, geralmente, são negociadas no mercado a termo, protegidas pelas operações paralelas de hedge. TABELA 3 EXPORTAÇÕES DOS PRINCIPAIS PRODUTOS DA CADEIA DO ALGODÃO – BAHIA US$ 1.000 FOB – 2000/2004 Produtos da Cadeia do Algodão 2000 2001 2002 2003 2004 Algodão não cardado - diferentes tipos Tecidos e Fios de algodão Total 8.298 0 8.298 27.216 104 27.320 11.180 185 11.365 18.061 74 18.135 60.294 5 60.299 Part. BA 2004 % 99,99 0,01 100,00 Fonte: Secex – Secretaria de Comércio Exterior MDIC/Promo – Centro Internacional de Negócios da Bahia. Elaboração UEP/Desenbahia. Se acrescido, a essa explicação, a constatação de que o produto exportado é de baixo valor agregado, tratando-se, portanto, de uma commodity, cujos preços são determinados pelo mercado internacional, percebe-se a vulnerabilidade do produtor diante dos seus principais mercados compradores, problema típico da atividade primário exportadora. Custo, preço e competitividade Em linhas gerais, os produtores estimam que seus custos estejam distribuídos de acordo com os itens da Tabela 4. Quase 50% do custo de produção do algodão provêm de fertilizantes e defensivos agrícolas, grande parte importada. TABELA 4 PLANILHA DE CUSTOS DE PRODUÇÃO DE ALGODÃO Descrição Fertilizantes Defensivos agrícolas Gastos com Pessoal Fixo Energia Elétrica Depreciação de equipamentos Serviços Terceirizados Demais custos operacionais % 20 25 10 7 10 10 18 Fonte: Santos (2005). Elaboração própria. Os principais equipamentos utilizados na produção são importados, a exemplo da colheitadeira e da máquina separadora, esta última facilmente adquirida de fabricante nacional. 168 | Desafios ao fortalecimento da cadeia do algodão: o caso da Região Oeste É importante registrar que o patamar da taxa de câmbio interfere sobremaneira na rentabilidade do negócio. No momento, por exemplo, os produtores alegam que houve queda de rentabilidade por conta da valorização do real: compraram insumos importados quando a taxa de câmbio era R$ 3,0/US$ e, no último trimestre de 2005, exportavam seu produto a uma taxa de R$ 2,20 a 2,30/US$. De acordo com a ABRAPA – Associação Brasileira dos Produtores de Algodão, os produtores estão enfrentando custos e juros igualmente elevados. Para agravar, os preços estão em queda, devido a uma superprodução da safra brasileira. Por isso, os produtores goianos ameaçam reduzir a área plantada para a próxima safra, caso o governo não defina uma política para o setor que garanta um preço mínimo de mercado. Avaliando a produção do algodão em pluma, nota-se que a produtividade média nacional da safra 2004/2005 foi estimada em 1.190 kg por hectare (ANUÁRIO BRASILEIRO DO ALGODÃO, 2005b). O melhor desempenho será o da produção mato-grossense, cuja produtividade deverá alcançar 1348 kg/ha. Logo atrás virá a Bahia, firmando o segundo melhor índice de produtividade, com 1.344 kg de pluma por hectare. Estima-se que, no oeste, esse indicador chegue a 3.900 kg por hectare (ANUÁRIO BRASILEIRO DO ALGODÃO, 2005a). Vale lembrar que a busca contínua pelo aumento dos rendimentos físicos, por hectare, como ocorre no oeste, é inerente ao modelo produtivista. O potencial da Região Oeste para a cultura do algodão é inequívoco, haja vista o crescimento substantivo da atividade em curto espaço de tempo. No entanto, a Abrapa não acredita que o algodão ameace a hegemonia da soja na região (DIAS, 2004), que ainda continuará ocupando a maior parte da área plantada. Para corroborar, há o fato de que os custos de entrada (iniciação da produção) da soja são bem menores que os do algodão. De fato, os custos da lavoura de algodão, em virtude do elevado grau de mecanização, estão acima dos custos das demais culturas da região, algo em torno de US$ 1.400 por hectare. Apenas a título de comparação, a área plantada com soja tem um custo de US$ 400 por hectare. Contudo, o algodão possui um retorno líquido bem maior, cerca de US$ 500/ha, enquanto a rentabilidade da soja varia entre US$ 100/ha a US$ 200/ha (DIAS, 2004). A explicação para a expansão da cotonicultura baiana reside na elevada qualidade da pluma do algodão, superior à do Mato Grosso, segundo Herald Brunckhorst, diretor da agropecuária Maeda. O produto local permite obter uma fibra mais longa e resistente, o que é um diferencial traduzido em preços maiores (DIAS, 2004). Foi assim que os cotonicultores baianos conseguiram negociar 100 mil toneladas da safra de 2005, ainda na colheita de 2004 (PANORAMA SETORIAL, 2005a). Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 169 O diferencial de qualidade do algodão é atribuído às condições climáticas do oeste, consideradas ideais para a cultura, com precipitações bem distribuídas no período de plantio e sem chuvas na época da colheita, além da alta luminosidade. “Estas características climáticas proporcionam a homogeneidade da cor branca, que é uma vantagem competitiva em relação ao produto do Mato Grosso”, comenta Santos (2005). Ademais, a região, localizada entre a Serra Geral e o Rio São Francisco, possui uma topografia plana, o que facilita a mecanização das lavouras (ANUÁRIO BRASILEIRO DO ALGODÃO, 2005a). Santos (2005) acrescenta que o associativismo entre os empresários contribui para reforçar a competitividade. Com vistas a recuperar uma parcela do mercado de fibras têxteis, não deixando o consumo de algodão perder mais espaço para outras fibras químicas, as associações de produtores de algodão tentam desenvolver estratégias de fidelização do consumidor, além do desenvolvimento de novos usos para o produto. No V Congresso Brasileiro de Algodão, ocorrido em Salvador, em setembro de 2005, algumas propostas foram levantadas, como a de criação de um selo, identificando a matéria-prima utilizada, e a divulgação massiva da idéia de que o algodão é sinônimo de conforto e durabilidade, além de se tratar de um produto biodegradável. Logística Toda a produção de algodão sai, embalada em fardos, para os portos de Salvador, Vitória e Santos. A carga destinada ao Nordeste, que representa 70% das vendas no mercado interno, geralmente parte dos municípios de Barreiras ou Ibotirama, pela rodovia BR-242, em direção a Itaberaba e Paulo Afonso e, daí, é escoada para toda a região. Na visão de Riva et al (2003), a implantação de um sistema de transporte multimodal é a melhor solução para o escoamento da produção do oeste, aproveitando e adaptando a infra-estrutura já existente. O primeiro passo seria a revitalização da navegação no rio São Francisco que, hoje, em escala comercial, está restrita apenas ao trecho de 610 km de extensão, de Ibotirama a Juazeiro/ Petrolina (SEPLAN, 2005). Em linhas gerais, a trajetória do sistema de transporte multimodal teria início nas estradas que conectam as zonas produtoras do oeste com a rodovia BR-242, através da qual se transportariam cargas em direção ao portal da hidrovia, que poderia se localizar em Ibotirama ou Muquém do São Francisco. Na visão de alguns produtores (SANTOS, 2005), contudo, a desvantagem do transporte multimodal são os transbordos. Oliveira (2005) aponta, como melhor solução, a construção de uma ferrovia ligando a Região Oeste ao complexo portuário da Baía de Todos os Santos. 170 | Desafios ao fortalecimento da cadeia do algodão: o caso da Região Oeste A infra-estrutura portuária, por outro lado, tem sido incapaz de suprir a demanda por armazéns. Santos (2005) aponta a precariedade dessa estrutura no estado da Bahia como o principal problema logístico: pondera que tem sido mais fácil exportar algodão pelo porto de Santos. Os melhoramentos de logística poderão contribuir para um maior adensamento da cadeia do algodão no oeste, já que a facilidade de acesso ao mercado consumidor parece ser fator determinante para a instalação de empresas de beneficiamento na cadeia têxtil, a exemplo da Corduroy Suape Têxtil. Sua posição de terceiro maior fabricante de veludo do mundo é atribuída à decisão estratégica de transferir parte da produção de São Paulo para o Porto de Suape, em Pernambuco. Por estar mais próxima dos Estados Unidos e da Europa, a empresa passou a atender aos pedidos internacionais em apenas vinte dias, três vezes mais rápido que seus concorrentes asiáticos (PETRY, 2005). Infelizmente, nas condições atuais, a facilidade de acesso aos mercados não é característica da região oeste. Pesquisa e desenvolvimento No Brasil, o desenvolvimento tecnológico da cultura do algodão é apoiado pela Embrapa Algodão, instituição vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Através de mutação genética, a Embrapa Algodão desenvolveu uma variedade cuja pluma já nasce colorida, nas cores creme, marrom, verde e, mais recentemente, vermelha. A fibra colorida pode representar uma redução de custos para a indústria têxtil, pois o processo de tingimento representa de 25% a 30% do custo final do produto têxtil. Na visão de Beltrão e Cardoso (2004), a produção de algodão colorido é uma oportunidade para os pequenos produtores do Nordeste. Políticas setoriais têm estimulado sua expansão no estado da Paraíba. Resistente à seca e menos poluente, por não precisar de tingimento artificial, nem desbotar, o valor de mercado do algodão colorido é 30% superior ao tradicional (PANORAMA SETORIAL, 2005): trata-se de um bem produzido em pequena escala, cuja demanda é ainda muito limitada. Embora, no laboratório da Embrapa do município de Luís Eduardo Magalhães, se façam experimentos para medir a qualidade da fibra colorida, não se verificou interesse dos produtores da Região Oeste pela nova alternativa: por ser voltado a nichos de mercado, seu cultivo é mais adequado para pequenos produtores. Assim, há expectativas de que esse tipo de cultura seja adequado à realidade do sudoeste do estado. Aponta-se, ainda, como alternativa à cotonicultura em pequena escala, o plantio de algodão de fibras extralongas, que o Brasil importa (ANUÁRIO BRASILEIRO DO ALGODÃO, 2002, apud BELTRÃO; CARDOSO, 2004). Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 171 A Embrapa também está desenvolvendo uma variedade de algodão transgênico, agregado a uma enzima capaz de matar o bicudo, ainda não disponível no mercado. Suas pesquisas começaram na primeira metade da década de 1980, quando o inseto, que tem grande capacidade reprodutiva, dizimou boa parte da lavoura nacional. O foco do trabalho, realizado pelo Laboratório de Regulação Gênica da Embrapa Biotecnologia e Recursos Genéticos, em Brasília (DF), é evitar o uso acentuado de produtos químicos, a exemplo de inseticidas, que elevam o custo de produção e agridem o meio ambiente (PANORAMA SETORIAL, 2005). Para os membros da Abrapa, o cultivo do algodão transgênico pode trazer impactos positivos para a indústria têxtil nacional, contribuindo para a redução dos custos da matéria-prima. De acordo com representantes da Aiba, a liberação da produção do algodão transgênico reduz o uso de inseticidas e, conseqüentemente, o custo de produção (HERMES, 2005a). Além disso, os transgênicos possibilitam uma diminuição de gastos com combustíveis, maquinário e mão-de-obra, e a redução da alocação de capital para o controle de pragas (ALGODÃO..., 2004). A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CTNBio aprovou, em março de 2005, o cultivo e a comercialização do algodão Bollgard, desenvolvido pela Monsanto, resistente às principais pragas da lavoura algodoeira: a lagarta-damaçã, o curuquerê do algodoeiro e a lagarta rosada. No final de 2005, o Ministério da Agricultura definiu os municípios brasileiros autorizados a plantar algodão transgênico e, também, as zonas excluídas desse cultivo. À exceção de municípios da Região Norte do estado da Bahia, os demais poderão plantar a variedade transgênica. “Trata-se de uma vitória dos produtores brasileiros”, comentou Walter Horita, presidente da Abapa (HERMES, 2005a). No entanto, o uso de transgênicos não é consenso. Os principais argumentos contrários são: a atual dificuldade de avaliar se afetam ou não a saúde e o meio ambiente; o risco de não se ter mais uma espécie pura, sem mistura com grãos geneticamente modificados; a maior dependência dos produtores em relação a um menor número de fornecedores de sementes; e os produtos e serviços agregados ao pacote tecnológico, que podem aumentar o custo e reforçar o aprisionamento tecnológico ao fornecedor. Considerações finais As vantagens comparativas naturais da Região Oeste, aliadas à organização dos produtores, colocaram a Bahia na posição de segundo maior produtor brasileiro de algodão. A cotonicultura do oeste concentra-se na produção de matéria-prima com poucas atividades de beneficiamento. A indústria a jusante na cadeia têxtil – fiação, 172 | Desafios ao fortalecimento da cadeia do algodão: o caso da Região Oeste tecelagem e confecção – geralmente localiza-se mais próxima aos grandes centros de consumo, ou de fácil acesso ao mercado externo ou, por fim, em locais onde as atividades de tecelagem ou confecções sejam parte da tradição local. É o caso do Ceará, principal destino do algodão do oeste: sua população detém conhecimentos tácitos no ramo, que se transformaram em especialização, estimulada por políticas públicas. Considerando que as tortas e os óleos produzidos do caroço do algodão têm inúmeras aplicações e servem de insumos na fabricação de uma gama de itens, pode-se vislumbrar uma série de aproveitamentos da cotonicultura, não necessariamente na cadeia têxtil. No oeste estão se implantando diversas esmagadoras de grãos, para a produção de óleo de algodão a ser utilizado em diferentes produtos da indústria de alimentos e, até, como fonte de energia na fabricação de biodiesel. Ademais, na SICM, existem vários protocolos de intenção prevendo a implantação de projetos de beneficiamento de algodão, embora suas assinaturas, por prováveis investidores, não impliquem, necessariamente, a concretização dos empreendimentos. O maior gargalo à expansão da cadeia do algodão, na Região Oeste, é a logística: hoje, toda a produção é escoada através de rodovias em péssimo estado, problema agravado pelas dificuldades de armazenamento nos portos do estado da Bahia. Uma alternativa ao transporte rodoviário é a implantação de um sistema multimodal, a partir da recuperação da hidrovia do Rio São Francisco e das vias férreas já existentes. Na Região Oeste, a produção de bens de maior valor agregado da cadeia do algodão não acompanha o dinamismo da produção da matéria-prima. Pelo menos no médio prazo, não se vislumbra o adensamento da cadeia por meio da formação de um aglomerado têxtil no oeste, mas, possivelmente, na RMS. A verticalização local da cadeia é mais provável de ocorrer pelo lado das esmagadoras de algodão. No médio e longo prazo, se os problemas logísticos forem superados ou minorados, naturalmente uma gama de atividades será atraída à região e as diferentes possibilidades da cadeia do algodão tenderão a se desenvolver com maior dinamismo. Nas condições atuais, a cotonicultura do oeste parece uma atividade primário-exportadora para outras regiões do Brasil e para o mercado externo, vulnerável às oscilações da demanda internacional, com risco de se tornar apenas mais um ciclo agrícola. Dentre as desvantagens do agronegócio homogêneo e em larga escala, nos moldes produtivistas, estão o uso intensivo dos recursos naturais, com a erosão do solo, sua dependência em insumos industriais e a pouca absorção de mãode-obra no meio rural, que constitui uma ameaça à proliferação de favelas nos Revista Desenbahia nº 4 / mar. 2006 | 173 núcleos urbanos da região. Políticas de desenvolvimento local deveriam considerar a alternativa de reservar, no oeste, áreas para assentamento em minifúndios, com agricultura familiar e diversificada, ao lado da grande propriedade voltada à produção de grãos em grande escala. Tende-se a concordar com Couto Filho (2004), segundo o qual esse tipo de arranjo poderia amenizar os problemas inerentes ao produtivismo do agronegócio. Referências ABAPA – Associação Baiana dos Produtores de Algodão. Coleta direta de informações. 6 set. 2005. AGECOM – Assessoria Geral de Comunicação Social do Estado da Bahia. 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