A SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS NO CASAMENTO DE

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A SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS NO CASAMENTO DE
A SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS NO CASAMENTO DE MAIORES DE 70
ANOS
Fernanda Martins SIMÕES
Mestre em Direito Civil pelo Programa de Mestrado do Centro Universitário
de Maringá. Advogada.
Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná.
Especialista em Direito de Família e Sucessões pela Universidade Estadual
de Londrina/PR. E-mail: [email protected]
Indyanara Cristina PINI
Graduanda em Direito pela Faculdade Arthur Thomas/PR
Monitora do Curso de Direito de Família e Sucessões do 8º Período da Faculdade
Arthur Thomas de Londrina/PR. E-mail: [email protected].
RESUMO
Em breve análise da situação imposta aos maiores de 70 anos no inciso II do art.
1.641 do Código Civil, vislumbra-se que a eles é retirada a liberdade de escolha
quanto ao regime de bens no casamento, o que determina a separação obrigatória
de bens no caso dos indivíduos ali enquadrados. No presente trabalho será
demonstrado que esta imposição não é plausível – e por que não dizer
inconstitucional – tendo em vista que os indivíduos desta faixa etária não são
considerados civilmente incapazes aos atos da vida civil, tampouco apresentam
redução de sua capacidade mental a ensejar o empeço na escolha do regime de
bens que melhor lhe convier. Não obstante, o legislador trouxe o aludido dispositivo
com clara intenção de que fossem evitados os golpes do baú, entretanto, resta
saber, quanto são os idosos no país com tamanha capacidade econômica para
serem vitimados por tal golpe? Sem olvidar, inclusive, da possibilidade de as
pessoas com mais de setenta anos de idade estar autorizadas a viver em União
Estável e, com isso, serem livres para a opção dentre os diversos tipos de regime
patrimonial disponíveis no sistema jurídico pátrio.
Palavras-chave: Idoso. Incapacidade. Separação de bens. Casamento.
ABSTRACT
In brief analysis of the situation imposed on over 70 years in item II of art. 1641 of
the Civil Code, one sees that to them the freedom of choice as to the matrimonial
property regime, which provides for the compulsory separation of property in the
case of individuals framed there is withdrawal. In the present work will be shown that
this charge is plausible - and why not unconstitutional - a view that individuals in this
age group are not considered civilly unable to acts of civil life, nor have reduced his
mental capacity to give rise to the trammels the choice of goods regime that suits you
best. Nevertheless, the legislature brought the aforementioned device with clear
intention that the blows were prevented the trunk, however, remains to be seen, as
are the elderly in the country with such economic capacity to be victimized by this
scam? Without forgetting even the possibility for people over seventy years of age be
allowed to live in Stable Union and, with it, be free to the choice among the various
types of property regimes available in the Brazilian legal system.
Key words: Elderly. Incapability. Separation of property. Marriage.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho surge a partir de uma análise, ponderadamente, crítica
acerca do regime da separação obrigatória de bens, imposta aos nubentes com
idade superior a 70 anos, prevista no artigo 1641, inciso II do Código Civil.
Impende salientar que tal imposição legal perdura no tempo, visto que o
Código Civil de 1916 impunha aos nubentes com idade superior a 60 anos, quando
do sexo masculino, e 50 anos, quando do sexo feminino, a separação obrigatória de
bens.
Entretanto, em razão da Constituição Federal de 1988 igualar homens e
mulheres em direitos e obrigações, foi revogada a distinção de idades no que
concerne ao sexo dos nubentes. Com a reforma do Código Civil em 2002, o criticado
art. 1.641, II não foi revogado, ainda que sendo alvo de inúmeras censuras. Houve
posteriormente uma pequena alteração no que tange à idade dos consortes que, em
razão da elevação da expectativa de vida, saltou de 60 para 70 anos, levando-se à
alteração legislativa do artigo 1.641 do CC, por intermédio da Lei nº 12.344 em 09 de
dezembro de 2010.
Pois bem, da breve análise concluiu-se que a evolução social impôs ao
legislador efetuar pequenos ajustes no dispositivo de lei. Todavia, indaga-se acerca
da pertinência de se manter tal dispositivo, mormente em se considerando algumas
lacunas legislativas, como no caso da união estável, em que há a liberdade de
escolha de regime de bens por maiores de setenta anos.
Ora, a sociedade de 1916 ainda era eminentemente patriarcal, robusta de
preconceitos e distinções entre classes. A escravatura ainda era uma situação
recente e, em razão dos dogmas sociais da época, verificam-se alguns respaldos
pelos quais o legislador se pautou para que justificasse as restrições a nubentes
idosos.
No entanto, a reforma do Código Civil foi realizada em 2002, adentrando ao
século XXI, palco de inúmeras mudanças sociais, avanços tecnológicos, medicinais
e, inclusive, jurídicos, momento em que o Poder Legiferante, vivenciando este
contexto, ainda assim decidiu por manter este dispositivo, com singelas alterações
no que tange à igualdade em direitos entre homens e mulheres, mediante
interpretação conforme a Constituição Federal de 1988.
A manutenção do referido dispositivo causa grande celeuma jurídico entre as
posições doutrinárias e jurisprudenciais, visto que se mostra afronto à própria
Constituição Federal, em razão do princípio da isonomia e máxime por ferir
diametralmente o princípio da dignidade da pessoa humana.
O CÓDIGO CIVIL DE 1916: PANORAMA SOCIAL E LEGISLATIVO
A fim de melhor compreensão acerca do surgimento do dispositivo constante
no artigo 1.641, inciso II do CC/02, insta rememorar a criação do Código Civil
anterior, pois é de lá que advém e perdura esta disposição, outrora prevista no artigo
258 do CC/16.
Nessa linha de ideias, importante trazer à tona o panorama social daquela
época:
Toda estrutura socioeconômica da sociedade brasileira, ao longo do
Império, amparou-se na monocultura latifundiária e na técnica do trabalho
escravo. Isso iria refletir-se na construção inicial da ordem político-jurídica
do país. Numa estrutura agrária e escravocrata, como a brasileira do século
XIX, não havia lugar para o abrigo de concepções avançadas na esfera do
direito privado (WOLKMER, 2010, p. 153).
Neste contexto, surgem dois novos projetos daquilo que seria o Código Civil
hoje em vigor: o de Coelho Rodrigues em 1890 e o de Clóvis Beviláqua em 1889,
sendo este último quem preponderou na arte legislativa daquele período quase que
medieval.
Influenciado pelo Código Civil Alemão de 1896 (que entrou em vigência em
1 de janeiro de 1900), sua aprovação passou por inúmeras discussões na
Câmara e no senado da república, onde recebeu críticas contundentes
(principalmente de Rui Barbosa) e modificações consideráveis, sendo
sancionado somente em 1916, vigorando a partir de 1917. O primeiro e tão
esperado ordenamento civil, substituto das ordenações portuguesas, deixa
transparecer o espírito que norteava seu redator, Clovis Beviláqua,
integrante da escola do Recife e com pendores naturais pela recepção do
direito Alemão. As características do novo Código estavam mais próximas
de um perfil conservador do que inovador, em razão da ênfase muito maior
atribuída ao patrimônio privado do que realmente as pessoas, admitindo um
pátrio poder rigoroso, que foi diminuído posteriormente com a gradativa
concessão de outros direitos a esposa. Em verdade, a codificação civil,
enquanto uma das primeiras grandes realizações da jovem republica,
traduzia, em seus avanços relativos, sem muita ousadia, os intentos de uma
classe média consciente e receptiva aos ideais liberais mais igualmente
comprometida com o poder oligárquico familiar (WOLKMER, 2010, p. 155).
É neste contexto recém-liberto da escravatura, com uma monarquia ainda
dominante e uma sociedade excessivamente conservadora, que o Código Civil de
1916 teve seu nascedouro, período em que ainda havia a preponderância do
patrimônio em dissonância ao valor do indivíduo como pessoa humana.
De fato, lardeada de resquícios preconceituosos, a seara jurídica não
esperava por grandes inovações, tampouco a valoração dos indivíduos, visto que,
há poucos anos anteriores à outorga da Lei Substantiva de 1916, negros ainda eram
comercializados como objetos, mulheres tratadas como relativamente incapazes.
Partindo ainda de uma sociedade excessivamente patriarcal, frustrada a
implementação de grandes avanços no que diz respeito à condição da família no
contexto social e, ainda, percebe-se o contexto pelas quais as disposições versavam
mais a respeito do patrimônio do que o quesito volitivo do casal em compartilharem
suas vidas em comum.
Diante desta conjuntura extremamente voltada ao TER – alijado o valor do
SER – nenhuma surpresa há no que tange a restrição descabida da obrigatoriedade
da separação de bens entre os cônjuges idosos; entretanto, é surpreendente e
repugnante essa questão retrógada ainda ser mantida até hoje, no corpo do Código
Civil de 1916.
A FAMÍLIA CONJUGAL NO CÓDIGO DE BEVILÁQUA
Revestindo-se da tradição, outra não seria a formação da família senão
essencialmente patriarcal e hierarquizada.
Neste diapasão, o art. 233 do Código Civil de 1916 determinava que o
marido fosse o chefe da sociedade conjugal, e nos incisos seguintes havia o rol de
sua competência e funções no âmbito familiar.1
Uma curiosa disposição do Código de 1916, no que diz respeito às relações
conjugais, era a impossibilidade de alteração do regime de bens após a celebração
1
Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da
mulher, no interêsse comum do casal e dos filhos (arts. 240, 247 e 251).
I - A representação legal da família;
II - a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher que ao marido incumbir
administrar, em virtude do regime matrimonial adotado, ou de pacto, antenupcial (arts. 178, § 9º, nº I,
c, 274, 289, nº I e 311);
III - o direito de fixar o domicílio da família ressalvada a possibilidade de recorrer a mulher ao Juiz, no
caso de deliberação que a prejudique;
IV - prover a manutenção da família, guardadas as disposições dos arts. 275 e 277.
do casamento, situação revogada pelo Código atual, em que vigora a possibilidade
de modificação motivada e conjunta do regime de bens pelos cônjuges.
A mulher era considerada relativamente incapaz, nos termos do artigo 6º, II,
do aludido diploma, motivo pelo qual há ligeira presunção de que a mens legis era
manter a mulher sempre sob o comando de seu esposo.2
Havia, ainda, disposição legal quanto ao consentimento dos pais para a
realização do casamento dos filhos menores de 21 anos. Contudo, em razão desta
família efetivamente patriarcal, centrada no domínio paterno, havendo discordância
prevalecia à vontade paterna.
Era ainda obrigação da mulher velar pela direção material e moral da família,
conforme disposto no artigo 240, embora seja de sabença que naquela época
apenas o varão era o arrimo de família, único provedor da casa patriarcal.3
A igualdade entre os filhos também não foi matéria elucidada no diploma
legal de 1916, pelo contrário, havia expressa disposição de desigualdade entre eles,
com odiosa classificação discriminatória dentre os legítimos, ilegítimos e adotivos,
sendo que os adotados sequer participavam da sucessão hereditária, nos termos do
artigo 377.4
O CÓDIGO DE 2002
Após quase um século da promulgação do primeiro Código Civil, a
sociedade clamava por mudanças que atendessem às necessidades e evoluções da
contemporaneidade.
No
decorrer
do
século
passado,
houveram
algumas
modificações esparsas, em alguns pontos não tão significativos, mas que, de certa
forma, atendiam ao clamor da época.
Assim, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a manutenção
do vetusto Código Civil de 1916 passou a ser uma afronta aos ditames
constitucionais, haja vista estarem em choque contundente com o foco que havia
2
Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer:
(omissis)
II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal.
3
Art. 240 - A mulher, com o casamento, assume a condição de companheira, consorte e
colaboradora do marido nos encargos de família, cumprindo-lhe velar pela direção material e moral
desta.
4
Art. 377. Quando o adotante tiver filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos, a relação de adoção
não envolve a de sucessão hereditária.
sido dada á igualdade, fraternidade e solidariedade da Constituição Cidadã. Acerca
do tema, leciona Antônio Carlos Wolkmer:
A nova legislação privatista, ao longo de seus 2046 artigos, redefiniu
institutos como casamento, filhos, herança, uso do sobrenome,
emancipação, maioridade civil e perda da virgindade feminina, bem como
instituiu novos temas acerca dos direitos da personalidade, associações e
fundações, propriedade fiduciária, posse-trabalho, direito de empresa e etc.
Entretanto, numa análise mais rigorosa critica mais rigorosa, verifica-se que
seus avanços foram muito comedidos para enfrentar a evolução e o grau de
complexidade das relações sociais, vivenciadas nos horizontes de um novo
milênio, marcadas por diversidades e realidades emergenciais. Obviamente,
que o Código Civil de 2002 tentou adequar à legislação civil a constituição
brasileira de 1988, que já vinha despertando o sopro de ventos alternativos
como a “constitucionalização do direito civil” e a “repersonalização da
civilística nacional”. Na verdade, o Código Civil do novo milênio foi tímido e
não desencadeou significativas e profícuas inovações. (WOLKMER, 2010,
p. 159).
Dentre as tímidas alterações realizadas no Código Civil de 2002, a
disposição prevista no art. 258 do CC 1916, qual seja, a da separação obrigatória de
bens imposta aos nubentes maiores de 60 anos (agora 70) não foi uma delas, ou
seja, mantiveram-se as raízes patrimonialistas em detrimento das relações
intersubjetivo- afetivas.
Todavia, duas grandes importantes modificações em toda a seara familiarista
dispostas no Código Civil foram a igualdade entre os homens e mulheres, baseandose no preceito constitucional (art. 5º, inciso I, CF/88) e a afetividade como princípio
norteador do Direito de Família.
A IDADE COMO CAUSA DETERMINANTE DA INCAPACIDADE: SERÁ?
Envelhecer é consequência da própria existência do ser humano. Tudo
quanto existe na natureza está fadado ao envelhecimento e à morte, sendo que a
ciência, em seus inúmeros avanços e descobertas ao longo dos tempos dificilmente
encontrará um “elixir da juventude”.
Neste ínterim, o Estatuto do Idoso prevê que idosa é a pessoa que conta com
60 anos ou mais, enquanto que a Organização Mundial da Saúde estatui que
pessoa idosa é aquele que conta com 60 anos ou mais quando reside em um país
em desenvolvimento, enquanto que nos países desenvolvidos, esta idade salta para
65 anos.
Contudo, cumpre esclarecer o que efetivamente significa e quais as
consequências do processo de envelhecimento:
Envelhecer é um processo multifatorial e subjetivo, ou seja, cada
indivíduo tem sua maneira própria de envelhecer. Sendo assim o processo
de envelhecimento é um conjunto de fatores que vai além do fato de ter
mais de 60 anos. Deve-se levar em consideração também as condições
biológicas, que está intimamente relacionada com a idade cronológica,
traduzindo-se por um declínio harmônico de todo conjunto orgânico,
tornado-se mais acelerado quanto maior a idade; as condições sociais
variam de acordo com o momento histórico e cultural; as condições
econômicas são marcadas pela aposentadoria; a intelectual é quando
suas faculdades cognitivas começam a falhar, apresentando
problemas de memória, atenção, orientação e concentração; e a
funcional é quando há perda da independência e autonomia,
precisando de ajuda para desempenhar suas atividades básicas do
dia-a-dia (PASCHOAL, 1996; MAZO, et al., 2007 apud Dias, 2007)”.
Neste diapasão, é perceptível que o processo de envelhecimento não
incapacita o idoso para os seus atos da vida civil, tampouco lhe prejudica o
discernimento no que tange às suas escolhas e seus quesitos racionais.
As mudanças são apenas biológicas, excluindo, contudo os casos
excepcionais em que há a perda das faculdades cognitivas e mentais, não
elucidados neste trabalho, quando deverá ser objeto de perícia e, possivelmente,
processo de interdição e representação por um curador.
Nada obstante, o próprio artigo 1º do Código Civil assegura que a princípio
todos os indivíduos são plenamente capazes e, após, elenca as exceções, conforme
artigo 3º e 4º, donde não se encontra elencada a figura do idoso para que haja uma
cognição sumária de sua incapacidade em decidir sobre o regime de bens que
deseja para vigorar em razão do seu enlace nupcial.
O REGIME DA SEPARAÇÃO DE BENS VERSUS O REGIME DA SEPARAÇÃO
OBRIGATÓRIA DE BENS
Aos cônjuges é dado, antes da celebração do casamento, a opção de
escolha de regime de bens por meio de pacto antenupcial, que é assim definido por
Rolf Madaleno, citado na obra de Flávio Tartuce:
No pacto antenupcial, o Direito de Família permite exercer livremente a
autonomia da vontade, podendo os nubentes contratar acerca do regime
que melhor entendam deva dispor sobre as relações patrimoniais de seu
casamento, constituindo-se em verdadeira exceção a regra de
indisponibilidade dos direito de família, cujos preceitos são compostos de
normas cogentes e, portanto, insuscetíveis de serem derrogadas pela
convenção entre particulares (MADALENO apud TARTUCE, 2014, p. 155).
A legislação civil pátria dispõe de cinco tipos de regimes de bens passíveis
de escolha pelos cônjuges, quais sejam: a comunhão universal de bens; a
comunhão parcial de bens; o regime da participação final dos aquestos; e o regime
da separação absoluta de bens.
Todavia, contrariando o que dispõe as lições supracitadas, haverá situações
em que a autonomia da vontade restará suprimida ante a imposição do Estado pelo
regime da separação obrigatória de bens, sendo uma delas a que é imposta aos
nubentes maiores de 70 anos, matéria sobre a qual versa o presente trabalho.
No regime da separação absoluta, total ou convencional de bens, que não se
confunde com o da separação obrigatória ou legal de bens, a escolha deriva da
autonomia da vontade dos nubentes, a partir da Escritura Pública de pacto
antenupcial, não havendo comunicação de quaisquer bens, sejam advindos antes ou
após a constância do casamento. Há uma liberdade negocial maior e os patrimônios
dos cônjuges varão e virago são independentes entre si.
Assim, caberá a cada cônjuge a livre administração de seus bens, de forma
exclusiva, podendo dar, dispor, alienar, gravar de ônus real sem que haja
necessidade de anuência do outro cônjuge, nos termos do art. 1.647 do CC5.
Em contrapartida, no regime de separação obrigatória ou legal a divisão
patrimonial é imposta aos nubentes em virtude de uma das situações elencadas no
art. 1.641 CC, que no caso em discussão, será analisada a disposição constante no
inciso II: maiores de setenta anos.
Logo, ainda que os cônjuges desejem contrair núpcias com qualquer outro
regime aceito pela legislação vigente, essa vontade é neutralizada ante a
preponderância da imposição normativa. Trata-se de disposição que suprime um
dos princípios do regime de bens, qual seja, a autonomia da vontade.
5
Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do
outro, exceto no regime da separação absoluta:
I - alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;
II - pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;
III - prestar fiança ou aval;
IV - fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura
meação.
Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem
economia separada.
Objetivando a justificação do dispositivo, o legislador assevera que se trata de
norma efetivamente protecionista em razão das peculiaridades de determinado
grupo de pessoas e, principalmente (ou tão somente), no que diz respeito ao seu
patrimônio, teleologia esta que cai por terra diante da possibilidade de na união
estável os maiores de setenta anos escolherem livremente o regime de bens que
lhes aprouver, por simples contrato de convivência6.
A DISCUSSÃO ACERCA DO ARTIGO 1.641, II, DO CÓDIGO CIVIL.
A escolha do regime de bens, feita por ocasião do casamento, rege a
situação patrimonial do casal durante sua vigência, mas tem maior significado
quando de sua dissolução. Podem os noivos adotar qualquer dos regimes de bens
previstos na lei ou gerar um regime próprio. Mantendo-se silenciosos, ou seja, não
firmando pacto antenupcial, vigorará o regime da comunhão parcial. Hipóteses há,
no entanto, em que a vontade dos nubentes não será respeitada. Impõe a lei o
regime da separação obrigatória (CC, art. 1.641).
Para fins de imposição do regime de separação obrigatória, até o ano de
2010 vigorava a idade de 60 anos. Contudo, o inciso foi alterado pela lei
12.344/2010, elevando a faixa etária para 70 anos. Sobre tal alteração, é imperiosa
a lição de Pérola Melissa Vianna Braga:
Em dezembro de 2010, a lei 12.344 alterou a redação do inciso II do artigo
1641 da lei 10.406, de 10 de Janeiro de 2.002 (Código Civil), para aumentar
para 70 anos a idade a partir das qual se torna obrigatório o regime de
separação de bens no casamento. Isto é um absurdo e uma falta de
conhecimento do direito do idoso. Ao invés de revogar este artigo, o
legislador federal mais uma vez expropriou o idoso de seu direito de escolha
do regime de bens, pressupondo sua incapacidade civil e contrariando o
artigo 1º do Código Civil de 2002. Esta pressuposição é que é totalmente
ilegal e inconstitucional, uma vez que o idoso, em razão de sua idade de 70
anos, não está incluído em nenhuma das previsões de incapacidade
contidas nos artigos 2º e 3º do atual Código Civil (BRAGA, 2011, p. 56).
A questão aqui elucidada é, sem dúvida, bastante polêmica, tendo em vista a
limitação de uma escolha, que reflete na liberdade, e que tem caráter
personalíssimo, em razão da idade do indivíduo. Maria Berenice Dias obtempera:
6
Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações
patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
A forma encontrada pelo legislador de para evidenciar sua insatisfação
frente à teimosia de quem desobedece ao conselho legal e insiste em
realizar o sonho de se casar é impor sanções patrimoniais. Para todas as
outras previsões legais que impõe a mesma sanção, ao menos existem
justificativas de ordem patrimonial. [...] Mas, com relação aos idosos, há
previsão juris et de jure de total incapacidade mental. De forma aleatória
e sem buscar sequer algum subsídio probatório, o legislador limita a
capacidade de alguém exclusivamente para um único fim: subtrair a
liberdade de escolher o regime de bens quando do casamento. A imposição
de INCOMUNICABILIDADE é absoluta, não estando prevista nenhuma
possibilidade de ser afastada a condenação legal. Nas demais hipóteses em
que a lei impõe esse regime de bens, pode o juiz excluir dita apenação (CC
1523). Tal chance não é dada aos noivos idosos. Mesmo que provem a
sinceridade de seu amor, sua higidez mental e que nem tem família para
deixar os bens. Não há opção. (DIAS, p. 256-7)
Pois bem, conforme demonstrado, o envelhecimento por si só não induz a
qualquer incapacidade ao indivíduo, em observância aos ditames dos próprios
artigos 1º, 3º e 4º do Código Civil, inexistindo qualquer justificativa para que o Estado
presuma a senilidade como fator de restrição cognitiva e, com isso, esteja autorizado
a delimitar idade para vigorar o regime da separação obrigatória de bens.
Neste sentido, é imperiosa a lição de Silmara Jury Chinellato, citada por
Flávio Tartuce, em que explica que as pessoas idosas da atualidade:
[...] aportam a maturidade de conhecimento de vida pessoal, familiar e
profissional, devendo, por isso, ser prestigiadas quanto à capacidade de
decidir sobre si mesmas. [...] a plena capacidade mental deve ser aferida
em cada caso concreto, não podendo a lei presumi-la, por mero capricho do
legislador que simplesmente reproduziu razões de políticas legislativas
fundadas no Brasil do século passado (CHINELLATO apud TARTUCE,
2014, p. 139).
Indo mais além, e analisando de forma crítica a justificativa legislativa de que
a imposição visa salvaguardar o patrimônio do nubente que conta com mais de 70
anos, partilha-se da mesma ideia o jurista Flávio Tartuce, quando leciona que o
referido dispositivo tem o condão protecionista da figura do herdeiro em detrimento
da figura do idoso:
O inciso II visa, supostamente, à tutela do idoso, potencial vítima de um
golpe do baú, em geral, praticado por pessoa mais jovem, com más
intenções. De qualquer forma, até para sustentar a tese de
inconstitucionalidade a seguir demonstrada, a este autor parece que a
norma tende a proteger não o idoso, mas os seus interesses patrimoniais de
seus herdeiros, que, muitas vezes, à espreita, esperam a morte do familiar e
o recebimento do acervo patrimonial. De imediato, insta notar que o
casamento para o idoso, NÃO TRARÁ PREJUÍZOS AFETIVOS, MAS
VANTAGENS, AINDA MAIS SE CONTRAÍDO COM PESSOA MAIS
JOVEM. Vale ainda se lembrar do antigo provérbio a respeito da herança:
filho bom não precisa, o filho ruim não merece (TARTUCE, 2014, p. 138).
Da fusão das lições supracitadas, conclui-se tão somente que além da
inconstitucionalidade escancarada do dispositivo, é cabal o entendimento de que o
casamento da pessoa idosa, com mais de setenta anos, não lhe restará qualquer
prejuízo, tampouco que existem comprovações de limitações racionais para a
decisão de seus atos da vida civil.
O que se percebe efetivamente é um cuidado exacerbado com o acervo
patrimonial do indivíduo, acuidade esta que não mais comporta ao Direito Civil
Contemporâneo, ou melhor, Direito Civil Constitucional. A constatação desta
questão se dá quando da análise das lições doutrinárias majoritárias, bem como
quanto ao Enunciado 125 da I Jornada de Direito Civil, que propõe a revogação do
disposto no art. 1.641 do CC/02:
A norma que torna obrigatório o regime da separação absoluta de bens em
razão da idade dos nubentes (qualquer que seja ela) é manifestamente
inconstitucional, malferindo o principio da dignidade da pessoa humana, um
dos fundamentos da República, inscrito no pórtico da Carta Magna (art. 1º,
III, CF/88). Isso porque introduz um preconceito quanto às pessoas idosas
que, somente pelo fato de ultrapassarem determinado patamar etário,
passam a gozar da presunção absoluta de incapacidade para alguns atos,
como contrair matrimônio pelo regime de bens que melhor consultar seus
7
interesses.”
Sobre tal preceito leciona Flávio Tartuce:
[...] o enunciado é perfeito. Primeiro porque o dispositivo atacado é
totalmente dissonante da realidade pós-moderna ou contemporânea, que
tende a proteger a pessoa. Realmente, ao contrário de ser uma norma de
tutela, trata-se de uma norma de preconceito (TARTUCE, 2014, p. 138).
Nada obstante, ainda que o dispositivo se justificasse objetivando resguardar
a quota hereditária dos sucessores, continuaria não merecendo qualquer guarida,
visto que o patrimônio foi adquirido, onerosamente, por aquele indivíduo e cabe tão
somente a ele decidir a maneira como pretende dispor, seja contraindo núpcias ou
realizando qualquer outro ato, tais como viagens, ou aquisição de bens que tanto
almejou durante toda a sua juventude.
7
Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados aprovados / coordenador científico Ministro Ruy
Rosado de Aguiar Júnior. – Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários,
2012.
Aquele que deseja possuir uma vida efetivamente abundante deve laborar
para tanto, e não aguardar a morte de seus ascendentes para então desfrutarem
das conquistas destes.
Vislumbra-se, ainda, flagrante afronta ao que prescreve o Estatuto do Idoso,
Lei nº 10.741/2003, cujo fim é exatamente assegurar aos maiores de sessenta anos
qualidade de vida, exercício pleno de direitos, proteção, dentre outros.8 Na
sequência, o artigo 2º assegura ao idoso todas as oportunidades e facilidades para a
efetivação de suas condições de liberdade e dignidade.9
A respeito dos direitos individuais, igualmente extensivos ao idoso, lecionam
os insignes juristas Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino que: “os direitos individuais
correspondem aos direitos diretamente ligados ao conceito de pessoa humana e de
sua própria personalidade, como, por exemplo, o direito à vida, à dignidade, à
liberdade “(PAULO; ALEXANDRINO, 2008, p. 89).
Portanto, não só assegurado pela legislação especial como também pela
Magna Carta a liberdade do idoso em todos os seus atos da vida civil, sendo,
portanto, incontroversa a inconstitucionalidade da delimitação em sua liberdade no
que diz respeito ao empeço do regime de bens ser avençado no momento da
celebração de seu casamento.
No que tange, ainda, a respeito do direito à liberdade do idoso sobre seus
atos da vida civil, assegurado ainda no Estatuto do Idoso, é imperiosa a lição de
Pérola Melissa Vianna Braga:
O direito a liberdade significa que o idoso tem direito de continuar fazendo
suas próprias escolhas como poder optar pelo tratamento de saúde que lhe
for mais indicado (mesmo que a opção seja pelo não tratamento ou por
tratamentos alternativos como religiosos, a decisão do idoso deve ser
respeitada), ou decidir sobre a forma de gastar seus recursos, OU AINDA
ESCOLHER COM QUEM VAI SE RELACIONAR ou onde vai morar
(BRAGA, 2011, p. 71).
Em complementação ao raciocínio esposado, o art. 4º do Estatuto do Idoso
dispõe: “Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação,
8
o
Art. 3 É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso,
com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura,
ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência
familiar e comunitária.
9
o
Art. 2 O idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem
prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios,
todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu
aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.
violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou
omissão, será punido na forma da lei.”10
Neste diapasão, impende destacar a lição de Débora Brandão:
Vislumbramos ai dupla inconstitucionalidade, tanto sob o prisma da violação
da igualdade diante da possibilidade de qualquer adulto capaz poder se
casar e ele (o idoso) não, quanto do elemento da idade como critério de
discriminação (BRANDÃO apud TARTUCE, 2014, p. 139).
Nada obstante, a discriminação do idoso é crime, previsto ainda no Estatuto
do idoso, em seu artigo 96, que prevê, em havendo discriminação que o impeça (o
idoso) de exercer sua cidadania, o agente da conduta será punido. Deveria então o
legislador ser punido ante o flagrante texto discriminatório do artigo 1641, II CC?
Ora, se o Estatuto do Idoso visa justamente assegurar os seus direitos,
garantir igualdade e coibir atos de discriminação, percebemos que a lei caminha na
contramão de suas próprias legislações. Nada mais exemplar que o próprio
legislador contrarie as regras feitas por ele mesmo, demonstrando a sociedade de
forma geral que suas regras, em verdade, não devem ser seguidas tão ao pé da
letra.
Resta claro, portanto, o repúdio majoritário a este dispositivo pela grande
maioria de doutrinadores como também por uma minoria jurisprudencial que prevê
flagrante inconstitucionalidade na previsão do art. 1641, II, CC, por se constituir
violação à dignidade da pessoa humana.11
10
Art. 4º do Estatuto do Idoso.
INCIDENTE DE INCONSTITUCIONALIDADE - DIREITO CIVIL - CASAMENTO - CÔNJUGE
MAIOR DE SESSENTA ANOS - REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA DE BENS - ART. 258,
PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI 3.071/16 - INCONSTITUCIONALIDADE - VIOLAÇÃO DOS
PRINCÍPIOS DA IGUALDADE E DA DIGNIDADE HUMANA. - É inconstitucional a imposição do
regime de separação obrigatória de bens no casamento do maior de sessenta anos, por violação aos
princípios da igualdade e dignidade humana.(TJ-MG - ARG: 10702096497335002 MG , Relator: José
Antonino Baía Borges, Data de Julgamento: 12/03/2014, Órgão Especial / ÓRGÃO ESPECIAL, Data
de Publicação: 21/03/2014).
INCIDENTE DE INCOSNTITUCIONALIDADE - REGIME DE BENS - SEPARAÇAO LEGAL
OBRIGATÓRIA - NUBENTE SEXAGENÁRIO - INCISO II, DO ART. 1.641, DO CÓDIGO CIVIL DISPOSITIVO QUE FERE O DIREITO FUNDAMENTAL DO CÔNJUGE DE DECIDIR QUANTO À
SORTE DE SEU PATRIMÔNIO DISPONÍVEL - PRESUNÇAO DE INCAPACIDADE POR
IMPLEMENTO DE IDADE - INCONSTITUCIONALIDADE DECLARADA. - O disposto no inciso II, do
art. 1.641, do CC exprime exigência legal que irradia afronta à dignidade humana abarcando sem
critérios válidos cidadãos plenamente capazes e com extrema carga de experiência de vida,
igualando-os às pessoas sem capacidade civil.(TJ-SE - IIN: 2010107802 SE , Relator: DES. OSÓRIO
DE ARAUJO RAMOS FILHO, Data de Julgamento: 17/11/2010, TRIBUNAL PLENO).
11
Contudo, até o momento vislumbra-se a ideia do legislador que é justamente
a proteção patrimonial, justificada a partir do pressuposto de que todos os idosos
tenham uma situação econômica abastada.
Todavia, grande parte de nossa população idosa conta com apenas uma
singela aposentadoria mensal, que não raras vezes mal atende as necessidades
básicas, tais quais remédios, saúde, alimentação, lazer.
Nestas situações, um casal de idosos que contam com mais de 70 anos e
decidem contrair núpcias, ainda assim são obrigados a conviverem com o regime de
separação obrigatória de bens, deixando de lado os princípios afetivos que norteiam
sua união.
Com estes casos resta totalmente afastado o principio de proteção patrimonial
assegurado pelo dispositivo legal, visto que a união se dá por mútuo afeto e vontade
dos nubentes.
O quê dizer ainda de idosos, que se casam, e sequer possuem descendentes
ou ascendentes para deixar o parco patrimônio que constituíram ao longo de sua
vida?
Pelas regras que norteiam a sucessão, estes bens serão direcionados a um
colateral de grau próximo e ainda, inexistindo qualquer destes, será declarado
vacante e pertencerá aos cofres públicos, quando, em verdade, poderia suprir
alguma necessidade do cônjuge supérstite, ainda que seja um sepulcro.
Não deveria o legislador se atentar para o fato de que os relacionamentos,
não se embasam em perspectivas patrimoniais, mas sim no quesito afetivo? Diga-se
de passagem, é esta a vertente de nossa legislação atual, quem tem trazido à tona o
afeto como constituição e base familiar.
Estando o legislador de fato preocupado com as questões patrimoniais dos
nubentes, retroagindo ao início do século XX, nada mais igualitário e assertivo que
revogar as disposições que tratam a respeito dos regimes de bens e vigorar tão
somente a separação obrigatória. Neste caso sim veríamos os preceitos
constitucionais sendo atendidos nos termos do artigo 5º da Constituição Federal:
“todos são IGUAIS” perante a lei.
É contundente a afronta aos preceitos constitucionais a vigência deste
dispositivo. Afronta ainda a figura dos idosos, que são postos em uma situação que
não lhes cabe, a de uma ingenuidade extrema e, ainda, uma afirmação de que eles
não dispõem de quaisquer características capazes de despertar o afeto de
conotação imaterial, senão pela vantagem pecuniária em troca.
Aliás, a Constituição Federal de 1988 trouxe uma projeção de família
totalmente desvinculada dos valores patrimoniais, embasada no afeto mútuo,
assistência. Nada obstante, o art. 1.566, CC, elenca o rol dos deveres dos cônjuges
na constância do casamento, e de breve leitura, em momento algum encontramos
qualquer disposição ligada a patrimônio, mas sim ao atendimento das questões
íntimas de cada indivíduo.
Assim sendo, generalizar que o casamento quando contraído por pessoa com
idade superior a 70 anos gira unicamente em torno da questão patrimonial, é sem
dúvidas, descartar as legislações vigentes, visto que, estas dispõem efetivamente o
contrário.
DA UNIÃO ESTÁVEL E O REGIME DE BENS
Aduz o Código Civil, em seu artigo 1.723 que união estável nada mais é que a
convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o intuito de constituir
família.12
Apesar de doutrinariamente existirem duras críticas no que tange inclusive a
posição do instituto no Código Civil, deveras apartado do capítulo em que trata do
casamento, o Estado tutela a ambos os institutos de igual forma.
O Código de 1916, com o propósito de proteger a família constituída pelos
sagrados laços do matrimônio, omitiu-se em regular as relações
extramatrimoniais. Tantas reprovações, contudo, não lograram coibir o
surgimento de relações destituídas de amparo legal. Não há lei, nem de
Deus nem dos homens, que proíba o ser humano de buscar a felicidade. As
uniões, surgidas com o selo do matrimônio, eram identificadas como
concubinato. Em face das queixas generalizadas – e mais do que
justificáveis, aliás – passou a justiça a reconhecer a existência de sociedade
de fato. Com a evolução dos costumes, as uniões extramatrimoniais
acabaram merecendo a aceitação da sociedade, levando a Constituição a
dar nova dimensão a concepção de família e introduzir um termo
generalizante: entidade familiar. As uniões de fato entre um homem e uma
mulher foram reconhecidas como entidade familiar, com o nome de união
estável (DIAS, 2009, p. 158-9).
12
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher,
configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de
constituição de família.
A união estável é espécie de entidade familiar protegida pela legislação e que,
portanto, possui reflexos patrimoniais para os companheiros, nos termos do artigo
1.725 do Código Civil, que aduz em não havendo disposição em contrário, vigorará
entre os companheiros o regime da comunhão parcial de bens.13
É a partir desta disposição que surgem as duras críticas e controvérsias no
que diz respeito à união estável da pessoa maior de 70 anos. Deverá vigorar a
separação obrigatória ou o regime da comunhão parcial de bens?
Oportuna a lição de Flávio Tartuce quanto à interpretação desta problemática:
Não há imposição da separação obrigatória à união estável em nenhum dos
casos previstos no art. 1641 do mesmo código. Isso porque o art. 1641 do
CC é norma restritiva da autonomia privada, que não admite interpretação
extensiva ou por analogia. Ainda, se a regra gera restrição para o
casamento, não existindo hierarquia entre categorias familiares, não há
razão para sua aplicação à união estável, pois são institutos diferentes
tratados de maneiras distintas quanto aos direitos e deveres (TARTUCE,
2014, p. 326).
Da interpretação literal do dispositivo de lei, infere-se, pois, a necessidade de
vigorar para o maior de 70 anos que conviva em união estável o regime da
comunhão parcial de bens e não o da separação obrigatória, como aduz o discutido
art. 1.641 do CC.14
Em contrapartida, existe uma corrente que demonstra verdadeiro repúdio a
este entendimento, tanto no âmbito doutrinário como jurisprudencial. Nada obstante,
o próprio Superior Tribunal de Justiça tem aplicado o artigo 1.641 do CC à união
estável ante a suposta equiparação da categoria familiar ao casamento, o que
afronta diametralmente as técnicas de interpretação, uma vez que sendo o aludido
dispositivo legal de natureza restritiva de direitos, não poderá ser dada a ele uma
interpretação extensiva a casos análogos.
Érica Verícia de Oliveira Canuto, citada por Flávio Tartuce, transparece o
repúdio da não aplicação do regime da separação obrigatória de bens a união
estável daqueles que contam com mais de 70 anos, vejamos:
13
Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações
patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
14
Como a Lei estabelece regra específica para as relações econômicas entre os conviventes na
união estável, e não contemplou a previsão do regime da separação obrigatória de bens, não se
pode interpretar ampliativamente a exceção prevista para a relação patrimonial própria do
casamento. (TJRS, Apelação Cível 70027870567, Porto Alegre, 7ª. Câmara Cível, Rel. Des. Sérgio
Fernando Silva de Vasconcellos Chaves, j. 08.07.2009, DOERS 16.07.2009, p. 35).
É de todo inaceitável que exista a sanção da obrigatoriedade do regime da
separação de bens em certas situações para o casamento e não tenha a
mesma correspondência à união estável. As duas situações (casamento e
união estável) devem ser interpretadas de maneira igualitária. Ou se impõe
também o regime da separação obrigatória de bens para união estável nas
mesmas situações previstas para o casamento (art. 1641, CC/2002), ou não
se aplica para o casamento a restrição ao direito de livre estipulação do
regime patrimonial de bem, como se dá na união estável (CANUTO apud
TARTUCE, 2014, p. 327).
O que se percebe é a aplicação de analogia em uma situação derivada da
autonomia privada, situação esta não admitida pela técnica da hermenêutica
jurídica. Neste sentido, assevera Flávio Tartuce:
Apesar dos argumentos bem expostos, com eles não se concorda, pois se
reafirme que as normas restritivas da autonomia privada não admitem
aplicação por analogia. A liberdade da pessoa humana, como valor
constitucional, deve ser preservada, prevalecendo sobre a proteção
patrimonial na discussão exposta (TARTUCE, 2014, p. 328).
Portanto, contrariando a disposição expressa do artigo 1.725 CC, que
determina tão somente à vigência do regime da comunhão de parcial no que
concerne a união estável, sem qualquer restrição, a doutrina e jurisprudência têm
sido tendenciosa e intransigente, aplicando de forma analógica o disposto no artigo
1.641, inciso II, do Código Civil também a este instituto. É, no mínimo, um erro
grosseiro de interpretação.
Todavia, caso o entendimento não versasse sob este prisma, haveria uma
saída bastante simplista para burlar as disposições impostas no artigo 1641, II, CC,
bastando aos nubentes maiores de 70 anos tão somente se unirem de fato, de modo
a atender os requisitos para a configuração da união estável e, após, estaria vigente
no que tange a questão patrimonial o regime de comunhão parcial de bens.
O legislador, por sua vez, ao equivocar-se, não impondo as mesmas
condições patrimoniais que impôs ao casamento, salvou-se com o entendimento
retrógrado e preconceituoso de grande parte dos juristas para que a disposição tão
repudiada se equipare. Entretanto, como a sociedade costuma caminhar em direção
ao progresso, há uma possibilidade de que em breve, este entendimento
eminentemente
jurisprudencial,
contrário
ao
texto
legal
e
aos
ditames
hermenêuticos, não perdure de forma uníssona.15
15
“União Estável. Sexagenários. Regime. Bens. Trata o caso de definir se há necessidade da
comprovação do esforço comum para a aquisição do patrimônio a ser partilhado, com a peculiaridade
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se da situação exposta neste trabalho que, o Legislador, encontra-se
em flagrante contradição a suas próprias normas, no que diz respeito à imposição do
artigo 1641, II, CC, o texto de lei promulgado no Estatuto do Idoso e mais adiante, a
disposição acerca do regime de bens na união estável, 1725, CC.
Nada obstante, verifica-se ainda que a sociedade moderna, contando com
inúmeros avanços sociais ainda se mostra eminentemente preconceituosa e
conservadora em alguns pontos, um deles, a imposição do regime da separação
obrigatória de bens aos nubentes maiores de 70 anos.
O que se percebe é que o legislador afronta princípios constitucionais, como a
dignidade da pessoa humana, liberdade, para salvaguardar o patrimônio dos
maiores de 70 anos, impondo-lhes uma característica de iminente incapacidade no
que concernem as decisões da vida civil quando o assunto é o patrimônio e o
casamento.
Percebe-se que, apesar da conotação eminentemente afetiva nas relações
familiares modernas, o legislador mostra-se arcaico e patrimonialista quando a
situação diz respeito aos maiores de 70 anos e adoção de regime de bens no
casamento.
Além da flagrante intromissão desnecessária do Estado na autonomia privada
dos particulares, de que a percepção que se tem do idoso é a de uma pessoa
incapaz e que pode facilmente ser ludibriada, quando, em verdade, a convivência
com os mesmos na sociedade moderna e suas próprias características demonstram
o contrário, infere-se mais uma vez que o texto legal inserto no art. 1641, II, CC não
de que no inicio da união estável reconhecida pelo tribunal a quo pelo período de 12 anos, um dos
companheiros era sexagenário. A turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, entendeu, entre
outras questões, que, embora prevalecendo o entendimento do STJ de que o regime aplicável na
união estável entre sexagenários é o da separação obrigatória de bens, segue esse regime
temperado pela súmula nº 377 do STF, com a comunicação dos bens adquiridos onerosamente na
constância da união, sendo presumido o esforço comum, o que equivale a aplicação do regime da
comunhão parcial. Assim, consignou-se que, na hipótese, se o acórdão recorrido classificou como
frutos dos bens particulares do ex companheiro aqueles adquiridos ao longo da união estável, e não
como produto de bens eventualmente adquiridos antes do início da união, opere-se a comunicação
destes frutos para fim de partilha. Observou-se que, nos dias de hoje, a restrição aos atos praticados
por pessoas com idade igual ou superior a 60 anos representa ofensa ao principio da dignidade da
pessoa humana. Precedentes citados: REsp. 915.297-MG, DJe 3/3/2009; REsp 1.090.722-SP. DJe
30/08/2010”(STJ, REsp. 1.171.820/PR, Rel. originário Min. Sidnei Beneti, Rel. para o acórdão, Min.
Nanci Amdrighi, j. 07.12.2010).
merece guarida nos tempos hodiernos. No entanto, o dissenso ainda ressoa na
comunidade acadêmica, sendo indiscutível a continuação da celeuma dogmática.
REFERÊNCIAS
BRAGA, Pérola Melissa Vianna. Curso de Direito do Idoso. São Paulo: Atlas, 2011.
DIAS, ALEXSANDRA MARINHO. O processo de envelhecimento humano e a
saúde do idoso nas práticas curriculares do curso de fisioterapia da UNIVALI
campus Itajaí: um estudo de caso. 2007. 189 f. Dissertação (Mestrado em Saúde e
Gestão do Trabalho – Área de Concentração em Saúde da Família) – Universidade
Vale do Itajaí. Itajaí, SC, 2007. Disponível em:
<http://www6.univali.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=376>. Acesso em
29 setembro 2014.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 9. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2013.
_______. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 25. ed. São Paulo:
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FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. 2. ed. Rio
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GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito civil: família. São Paulo: Atlas,
2008.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família. 7. ed. São
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MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
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TARTUCE, Flávio. Direito Civil : Direito de Família. 8. ed. São Paulo: Método, 2014.
WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2010.

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