Trecho Hades - Beco Diagonal

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Trecho Hades - Beco Diagonal
Hades Volume I – Terra Inversa
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Hades
Volume I
TerraTerra-Inversa
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Hades Volume I – Terra Inversa
Prólogo
O enorme alazão negro, se é que poderia nomear o animal quadrúpede e escuro como um eqüino,
relinchou feito um trovão enquanto empinava e, ao bater com ambas as patas no chão, a terra tremeu perante
seu poder. Os olhos vermelhos e ferinos do animal lançavam uma sombra vermelha e fantasmagórica sobre
suas feições esqueléticas e magras, realçando a pele repuxada e os músculos estranhamente avantajados do
pescoço. Porém, o mais chamativo se encontrava sobre sua garupa; Era um cavaleiro gigantesco, trajava um
manto roxo que descia dos ombros até o dorso do animal, escorrendo por sua lateral direita e quase tocando o
chão. A armadura prateada e grossa, de incrível consistência maleável, cintilava com as chamas que
devoravam a floresta atrás de ambos. Sobre sua cabeça jazia um capacete de ferro negro e reluzente, cujas
únicas aberturas se tratavam de dois espaços para os olhos. A frente escura possuía alguns detalhes prateados
e um vermelho em forma de cruz, que passava sobre a região dos olhos e cruzava a testa até a parte que
protegia o queixo. Várias sobreposições de metal surgiam no topo da cabeça e desapareciam na altura dos dois
chifres metálicos que surgiam nas duas laterais altas do capacete.
Dois escudos repletos de lâminas pairavam a trinta centímetros dos ombros do cavaleiro, suspensos por
uma força invisível. E, por fim, um brasão de prata no formato de um dragão alado segurando uma foice com a
mão direita e uma espada com a esquerda, cruzando ambos os braços sobre o peito, estampava-se sobre o
broche que prendia o manto na altura do pescoço protegido por uma gola negra.
O cavaleiro apertou as rédeas escurecidas com uma das mãos enluvadas e, com a outra, pousou a mão
sobre as costas do animal.
Tudo ao redor deles ateava foto e iria ser em breve destruído. O céu nublado variava nos tons ocre,
preto, verde escuro, amarelo e toques avermelhados. Oliver, o homem que observava o que se sucedia,
defendeu sua cabeça com o antebraço quando uma árvore próxima e engolida pelo fogo despencou, caindo
ruidosamente no chão e lançando faíscas para os lados. Ele estava muito próximo do cavaleiro, mais
precisamente ao seu lado, acompanhando a visão infernal abaixo do penhasco em que se encontravam.
A cidade lá em baixo ardia como uma fogueira. Labaredas altas escalavam os prédios executivos,
explosões demoliam quarteirões inteiros e pareciam se alastrar muito além do horizonte, devorando as
montanhas e até mesmo o céu. “Isso mesmo”, pensou o homem chocado, havia fogo entre as nuvens de tons
apodrecidos.
Era o fim do mundo... Disso ele tinha certeza. Não havia nada vivo por ali, nada que pudesse contar as
histórias do que um dia andara por aquelas terras.
O cavalo negro relinchou novamente e virou o tronco em direção ao homem, batendo a pata dianteira
direita com força sobre o solo. Sua respiração emanava uma fumaça de enxofre extremamente quente.
Oliver recuou um passo. O cavaleiro o analisava por baixo da viseira escura, escondendo suas reais
intenções a respeito do humano.
- Hades. – Disse o cavaleiro com uma voz fria e sussurrante. – Hades está vindo.
- Quem está vindo? – Questionou o homem sem compreender.
O cavalo bufou irritado.
- A verdade. – E o cavaleiro olhou para o alto.
O chão tremeu abaixo de Oliver. O homem olhou para seus pés a tempo de ver o chão desaparecer
enquanto a terra dividia-se ao meio. A escuridão o envolveu assim que começou a cair...
Oliver acordou segurando um grito e batendo com o rosto no chão, após cair da cama. Fora um pesadelo...
Mais um pesadelo. Ao seu lado o despertador tocava repetidas vezes sobre a cabeceira, anunciando a chegada
das seis horas da manhã do dia 10 de fevereiro de 2009. Sentou na beirada da cama e passou as mãos sobre o
peito empapado de suor. Desde que tinha quinze anos aquele pesadelo vinha se repetindo... Já perdera as contas
de quantas vezes o tivera em sua vida.
Olhou para fora através da janela; O céu sadio e escuro adquiria tons amarelados devido à aparição do sol
no horizonte. Não havia nenhuma cidade pegando fogo e muito menos um chão se dividindo ao meio. Uma
brisa fresca adentrou o quarto e acertou o pescoço suado do humano. Ficou com um mau pressentimento a
respeito desse pesadelo, mesmo que já o tivesse tido outras vezes em sua vida, principalmente com mais
freqüência nos últimos meses. Antes tinha apenas uma ou duas vezes a cada trinta dias, mas agora ele se repetia
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Hades Volume I – Terra Inversa
três ou quatro vezes por semana. Talvez a loucura e a culpa o dominassem mais a cada dia... Desligou o
despertador com a outra mão.
Mais um dia começaria. “Correção”, pensou Oliver ao analisar as nuvens carregadas e acomodadas no
horizonte, “Mais um dia de temporal.”
Foi até a mesa da cozinha e trouxe o jornal caído no chão para si. Na página principal havia a notícia de
uma seita “demoníaca” que vinha matando e assassinando cada vez mais pessoas. Segundo a reportagem, os
corpos eram deixados em lugares públicos durante a noite. “Que loucura”, pensou sem muita importância.
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Hades Volume I – Terra Inversa
Capitulo 1 – Leprechaun
As rodas do veículo trituraram os pedriscos em frente aos portões de madeira da casa até que parassem.
O carro popular cinza e velho pareceu dar uma bufada um pouco antes de desligar, relaxando sua carcaça
metálica como um grande ancião cansado.
O céu escuro estava coberto de nuvens que anunciavam com antecedência a chegada do temporal.
Ventos fortes arrastavam as copas das árvores sem piedade, uivando com freqüência para os relâmpagos que
estouravam silenciosos no horizonte.
O homem em seu interior pareceu analisar a situação. Ainda não chovia, no entanto logo o céu
despencaria sobre a estrada e não haveria jeito de voltar para Porto Alegre até que o tempo anuviasse.
Ultimamente, mais precisamente desde o início de dezembro, há dois meses, a cidade do sul vinha sofrendo a
ira de temporais cada vez mais freqüentes e selvagens. As avenidas e estradas ficavam inviáveis devido aos
engarrafamentos quilométricos e o tempo parecia congelar, já que ninguém conseguia fazer qualquer coisa que
não fosse esperar.
“O tempo está ficando louco.” Pensou Oliver dentro do carro, pigarreando para tirar a pressão de sua
garganta. Viera desde o centro da metrópole até a praia do Lami para cumprir um trabalho que, aliás, mal
pagava suas contas. Odiava ter de pegar aquele carro velho, porque além de ser da empresa, ainda dava um
cansaço danado fazê-lo rodar por mais de uma hora seguida sem que ele começasse a gritar ou expelir fumaça
pelo capô.
Como o que ocorria exatamente agora. Oliver retirou a chave da ignição e saiu do carro, suspirando de
rancor e raiva. Árvores altas rodeavam a entrada do portão, assim como os lados e a frente. Não havia um
pedaço de civilização em pelo menos dois quilômetros de distância. A estrada de terra-batida atrás de si não
tinha sequer uma iluminação, quanto mais uma placa com nome para que Oliver se situasse e pedisse por ajuda.
Ao retirar o aparelho celular do bolso constou o que mais temia: Estava sem sinal. E como ainda
esperava qualquer sinal de tecnologia nos confins do inferno em que se encontrava? Atirou o aparelho sobre o
banco do carro e fechou a porta, caminhando até ficar frente a frente com seu meio de transporte. Ergueu o capô
e teve de virar a cara para não receber a baforada quente, cinzenta e fedida de fumaça que escapou em sua
direção.
- Droga! – Exclamou ao se afastar e passar a mão nos olhos ardidos. – Isso é hora pra você parar?
Faltavam pelo menos cinco quilômetros para que chegasse ao seu destino. Precisava entregar uns papéis
para que Ernesto Miller, um fazendeiro rico e cliente de seu patrão, um advogado renomado, assinasse a tempo
de trazê-los de volta no mesmo dia. Para então ir para sua faculdade, se ainda sobrasse um tempo...
Oliver coçou a cabeça. Eram seis e meia da noite e apesar do horário de verão, o temporal a caminho
fizera a noite chegar mais cedo. As sombras espreitavam o terreno como criaturas vivas, tremulando toda a vez
que o vento soprava o mato. Um cheiro de eucalipto e esterco de vaca fazia o seu nariz torcer freqüentemente.
Oliver era jovem. Tinha vinte e um anos, era alto e possuía cabelos castanhos escuros lisos e caídos até
um pouco acima da orelha, picotados porcamente por um barbeiro barato. Seu rosto dotado de traços mal
humorados continha uma ruga de expressão do lado esquerdo da bochecha, que adquirira após receber um soco
com um anel de um policial. Seu humor terrível variava entre o péssimo humor e o horrível humor rapidamente,
tornando-o uma criatura de sôfrega convivência.
Seus olhos verdes faiscaram ao fitar o casebre de janelas abertas atrás do portão que estava oculto por
três árvores que a contornavam. Talvez houvesse alguém ali para ajudá-lo. Um telefonema que fosse já salvaria
sua vida, pelo menos livrá-lo do transtorno do temporal. Passou a mão nos cabelos e pôs a outra mão na cintura,
pensativo.
Estava perdido no meio do nada, sem comunicação ou o que quer que fosse. Não tinha escolha, e
mesmo que o habitante daquele casebre de madeira amarelo queimado fosse um caipira com instintos assassinos
e uma espingarda carregada, teria de entrar.
Parou em frente ao portão e, para a sua surpresa, estava aberta. Empurrou-o com a mão, rangendo as
dobradiças. Olhou para os lados, desconfiado, e começou a analisar o terreno.
- Não entre ai, Oliver. – Disse uma voz no interior de sua mente, quase como uma consciência.
O humano ignorou-a completamente. Não havia luz no interior da casa, mas as janelas encontravam-se
abertas e a porta também, pois ela movia-se em vai-e-vem devido ao vento. Não havia nada no quintal que
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Hades Volume I – Terra Inversa
denunciasse a existência de um cão feroz, e apenas um varal de linha entre duas árvores, cujas roupas claras
balançavam violentamente, declaravam que alguém morava lá.
- Maravilhoso... – Murmurou para si ao entrar.
Caminhou em passos pesados até a varanda simplória e estaqueou de receio. Porque aquelas coisas só
aconteciam com ele? Bateu na porta três vezes.
- Alô!? Tem alguém ai?
Esperou pela resposta que acabou por não vir. Empurrou um pouco a porta e deu um passo, trancando-a
com o pé e colocando a cabeça para dentro.
- Olá? Eu estou entrando. Meu carro pifou na frente de sua casa e... Eu preciso usar o telefone ou algo
do gênero.
Oliver engoliu a seco. O interior escuro da casa era iluminado apenas pela rarefeita claridade da rua.
Notou uma mesa de madeira no centro da sala, um sofá velho, uma estante repleta de latas de comida abertas,
cuja lateral havia sido estraçalhada por algo, e algumas marcas de barro fresco no chão. Fora isso, não
conseguiu enxergar mais nada.
Invadir a casa dos outros sem permissão não era aceitável, mas razoável em seu caso. Se o morador não
se encontrava, poderia, ao menos, alojar-se até que o temporal parasse e arranjasse uma forma de deixar aquele
fim de mundo e retornar a civilização.
- Alguém? – Perguntou uma última vez em voz alta.
Estava definitivamente sozinho. Suspirou até que satisfeito, porque não tinha vontade de conversar com
ninguém. Só esperava não ter de passar a noite naquele moquifo. Vasculhou as duas paredes ao lado da porta
em busca do interruptor e, assim que o encontrou, acendeu-o e inundou a sala com um feixe amarelado. Não
havia muitas coisas além dos móveis que já notara anteriormente, como três quadros tortos na parede, um
relógio cuco estragado ao lado do sofá marrom velho rasgado e com espuma brotando dos assentos.
A cabeça chamativa de um alce empalhado jazia ao lado direito da estante.
“Assustador.” Pensou Oliver receoso. Marcas abstratas de barro no chão, ao redor de um vaso cheio de
terra caído ao lado da mesa e alguns traços na parede causavam um mau pressentimento no humano que, sem
muitas opções, resolvia se ia ou não embora. Parou à beira da porta no exato momento em que um raio
estourava extremamente próximo, fazendo a casa tremer com o trovão. O vento ficou mais forte e as janelas
bateram sucessivamente, abrindo e fechando com ferocidade. Uma onda de folhas secas adentrou a casa ao
passar pela porta e por baixo das pernas de Oliver.
Outro trovão roncou e a chuva despencou do céu com uma agressividade tremenda. Apenas quando um
granizo do tamanho de uma bola de golfe caiu próximo ao pé direito de Oliver, partindo o chão de madeira, foi
que percebeu o quão lascado estava. Fechou a porta e as janelas, admirando a violência com que as gotas batiam
contra as folhas das plantas mais próximas, sacudindo-as como se estivessem vivas.
Não temia temporais, mas duvidou que aquele telhado simplório de telhas velhas agüentasse por muito
tempo. Parecia que uma tropa de fuzileiros disparava interminavelmente sobre o teto.
Contudo, não perdeu o controle. Embora preferisse ficar sozinho em muitos momentos de sua vida,
detestava ter de estar só em situações como aquelas. Era supersticioso e não gostava do escuro. Muito pelo
contrário, detestava ficar na plena escuridão. E se a luz acabasse?
Olhou para a lâmpada e, como se ela lesse seus pensamentos, sua incandescência tremulou e quase
apagou.
“Preciso de uma lanterna.” Pensou.
A casa, feita de madeira e pintada de um tom cinzento por dentro, possuía mais dois quartos, um
banheiro e uma área de serviço. Ela apenas parecia pequena por fora, entretanto não deixava a desejar por
dentro. O que levava alguém a morar ali? Entrou no corredor apertado e cheirando a mofo. Parou para observar
o retrato antigo e em preto e branco de uma mulher; Ela tinha a pele extremamente alva, olhos claros e rosto
arredondado e liso, cabelos trançados ao redor da cabeça, e se encontrava sentada em uma cadeira enquanto
bordava em um pano de prato. Por algum motivo, a imagem lhe pareceu assustadora e até mórbida. Os
contornos do quadro foram devorados pelo limo, que, aliás, estava por toda a casa. A madeira apodrecida da
parede do corredor indicava uma infiltração feia.
Sacudiu a cabeça e continuou, procurando por um interruptor. Assim que o encontrou, parou diante das
três portas; Uma o levaria até a área de serviço e a outra para os dois quartos.
- Saia daí, vá embora. Não há nada aqui para você. – Dissera a voz de sua consciência novamente.
Oliver costumava a chamar assim, embora muitas vezes essa voz mais parecesse uma loucura que ouvia tão
realística em determinadas situações.
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Hades Volume I – Terra Inversa
Escolheu um dos quartos, cuja porta entreaberta revelava uma cama de lençóis encardidos e revirados.
Havia, também, uma mesa de cabeceira baixinha e arranhada, um armário sem uma das portas que revelava
duas ou três mudas de roupas emboladas e, para sua surpresa, um lampião desligado ao lado da cama.
Oliver riu ao imaginar qual pessoa ainda teria um lampião em casa. Lanternas eram práticas, baratas e
custavam apenas pilhas que poderia se comprar em qualquer boteco de esquina. Todas as lâmpadas da casa
eram frágeis e mal iluminavam, causando uma sensação irritante de claustrofobia. Tábuas, dentre algumas
destruídas, bloqueavam a janela. O humano franziu o nariz com o cheiro de suor e urina.
As lâmpadas falharam com o trovão e Oliver se viu obrigado a apanhar o lampião. Depositou-o sobre a
mesa da sala, analisando-o com cautela. Ele era velho, tinha os vidros trincados e sujos de pó que marcavam
impressões oleosas. Um metal enferrujado e antigamente verde começava na base e terminava na alça da
superfície, forjando sua estrutura. Um brasão em alto relevo no topo da alça tinha a forma de um olho, ou algo
parecido com isso, sujo por uma substância escura.
Oliver vasculhou os bolsos até encontrar uma caixa de fósforos, que carregava consigo desde que parou
de fumar, por incrível que parecesse, e acendeu o artefato. “Funciona.” Pensou aliviado e curioso ao mesmo
tempo. Mediu a intensidade do fogo para que o reservatório de óleo durasse o suficiente, erguendo-o diante dos
olhos para iluminar a sala.
As luzes piscaram e apagaram-se como mágica quando chegou novamente ao redor. Resolveu
prosseguir com sua busca para aliviar a mente dos medos, entrando no segundo quarto. Se qualquer outra coisa
já o colocara medo em sua vida, certamente não se comparava a agora; As paredes daquele quarto eram feitas
de pedra. A porta, apesar de aparentar ser de madeira por fora, fora revestida por uma couraça metálica do
tamanho de um palmo. As pedras arredondadas e polidas jaziam marcadas por arranhões e marcas escuras do
que parecia ser sangue seco.
Uma contagem feita por tracinhos começava no teto e terminava no chão, provavelmente passando da
casa dos milhares. Teria alguém ficado preso ali por todo aquele tempo? Não havia janelas no quarto e a única
iluminação provinha da lâmpada capenga e suspensa na parede por dois fios elétricos torcidos. Foi olhando para
o alto que percebeu que havia mais marcações de tempo.
“Mas que lugar é esse?” Perguntou perturbado. “Algum tipo de prisão, ou forte de proteção talvez.”
Moveu o lampião para mais perto do chão, tal qual foi a sua surpresa ao perceber que o mesmo olho esculpido
no lampião fora desenhado sobre o piso de pedras.
Recuou até a entrada da porta com os olhos arregalados. Oliver nunca teve medos, pelo menos não do
tipo de monstros ou pesadelos infantis. Crescera desde os quinze anos sem um pai, que fora morto em um
acidente em que ele fora o protagonista. E nem mesmo quando se lembrava disso, ou quando pensava na solidão
que o habitava internamente, ou ainda na sua claustrofobia por lugares escuros, nada disso se comparava a
sensação de que presenciava um mistério real. Não havia nada pior do que um monstro humano. Ou pelo menos
era o que pensava. E não fazia a mínima idéia de quanto a sua vida mudaria nas próximas horas.
Sentiu seu coração quase saltar pela boca quando uma das panelas penduradas sobre o fogão na cozinha
caiu no chão e titubeou circularmente até que ficasse imóvel.
Um frio percorreu suas entranhas e amoleceu suas pernas. Só de imaginar as coisas mais que poderia
encontrar na casa era o suficiente para cruzar a tempestade e correr para a segurança de seu carro.
- Quem está ai? – Perguntou Oliver antes mesmo de avaliar se deveria ou não fazer a pergunta.
Não obteve resposta.
- Deve ser o vento... Ou a minha imaginação. Provavelmente deixei alguma panela fora do lugar e agora
ela caiu. – Disse para si mesmo.
Comprimiu os lábios até senti-los ardendo enquanto calculava seus passos de volta para a cozinha.
Primeiro ergueu o lampião diante do rosto e verificou o lugar; Assim que se certificou de que estava sozinho,
avançou até a panela caída entre o fogão e a mesa.
Juntou-a com cautela e fitou o próprio reflexo no fundo distorcido do alumínio. Oliver Drummond, um
cara como outro qualquer. Teve a impressão de ver um vulto passar refletido abaixo de seu cotovelo e, quando
virou, deu-se de cara com a criatura mais bizarra que vira em sua vida; Ela tinha um metro de altura, sendo dois
terços do tamanho composto por pernas, e um corpo completamente redondo. Seus olhos eram pequenos e
situavam-se acima dos lábios, divididos entre si por um longo espaço e duas narinas. A boca era feia e dividia o
corpo praticamente ao meio, tinha a consistência macilenta e o lábio inferior era protuberante, expondo três ou
quatro dentes. O maxilar achatado grudava na barriga redonda e pequena, com um umbigo em seu centro.
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Hades Volume I – Terra Inversa
Suas pernas eram longas e finas, tão finas que pareciam não suportar o peso do restante do corpo. Os
braços, bem pequenos em comparação as pernas, mas também finos, terminavam em pequenos dedos longos e
com pequenas bolotas nas pontas.
Mas aquilo ainda não era o mais estranho de tudo. Sua pele tinha um tom amarronzado com manchas
verde escuras. Ele usava uma meia calça desfiada nas pernas e uma peruca na cabeça, que Oliver acreditou ser
de um manequim de vitrine. Um óculos transparente de operário repousavam em sua cabeça redonda e um
espelho de cabo na mão direita.
Seus pezinhos de cinco dedos compridos e espalmados causavam um som engraçado toda à vez que
tocavam o chão.
Oliver congelou. Enquanto encarava os dois olhos miudinhos e negros da criatura, seu corpo por inteiro
sofria um jato de adrenalina. Suas veias pinicavam, seus músculos ficavam rígidos e suas pernas ainda mais
molengas.
- UM MONSTRO! – Gritou assim que despertou do choque.
- Monstro! – Repetiu a criatura. Sua voz era pomposa e quase humana, diferente do que se esperaria de
um monstro. Ele olhou para os lados, perturbado. – Onde!?
Oliver gritou de novo e recuou tropeçando em seus próprios pés. Esfregou os olhos com as costas da
mão. A boca entreaberta expressava um pavor intenso.
- Monstro! – Gritou de novo ao dar meia volta e correr. – Socorro! SOCORRO!
Esbarrou em uma cadeira, que rolou a sua frente, e saltou sobre ela em seguida, alcançando a saída.
Deixou o lampião cair no chão e chegou ao gramado, permitindo que as gotas cortantes e pesadas de chuva
encharcassem seus trajes em segundos. Precisava apenas entrar no carro estacionado em frente ao portão.
Mesmo que este não funcionasse, a segurança de estar trancafiado e protegido numa carcaça metálica o
reconfortava.
- Socorro! – Repetiu o monstrinho desengonçado.
Quando Oliver olhou por sobre o ombro, ele estava correndo logo atrás.
- Salve Pierre! – Gritou ele para Oliver.
Oliver apressou o passo no intuito de salvar-se a qualquer custo. Ver aqueles dentes mortais e afiados
dançando na bocarra da criatura lhe causava arrepios. Só podia estar preso em algum tipo de pesadelo. Gritou de
pavor, rezando mentalmente para que nada daquilo fosse real.
- Meu Deus, eu não posso morrer... Não posso. – Oliver olhou por sobre o ombro, notando que a coisa
horrenda estava mais perto. – Meu deus, é horrível!
- Espere por mim! – Pediu a criatura. – Não me deixe aqui! Eu não quero ser devorado por um monstro!
Oliver sentiu as pernas latejarem mais uma vez. Quando deu por si, o monstrinho o ultrapassava e
começava a correr a sua frente. Sacudiu a cabeça e reduziu o passo, incrédulo. A criatura percebeu e também
parou, respirando ofegante há poucos metros do portão, dizendo em voz alta:
- O que está fazendo? O monstro vai pegar você!
“Isso não está acontecendo...” Pensou Oliver ao arquear as sobrancelhas.
- Mas você é o monstro! – Acusou o humano.
- Quê!? – A criatura se apalpou, chocada. – Pierre não é nenhum monstro!
- Pierre?
- Pierre, meu nome. – Disse ele apontando para a barriga. Abaixo do umbigo havia uma tatuagem
escura com um símbolo π, um R e um 2. – Pierre II!
- Você não pode ter um nome... Também não pode estar falando e nem existindo! Seu MONSTRINHO!
Pierre franziu a testa, pasmo. Pôs a mão sobre o peito e depois admirou o próprio reflexo no espelho
encardido que carregava. Apenas em fitar a própria imagem já se acalmou, ajeitando a peruca emaranhada e
molhada de fios vermelhos sobre o topo oval da cabeça. A água da chuva sequer o molhava, escorregando
velozmente sobre sua pele impermeável. Oliver começou a sentir-se mais perturbado ainda, principalmente
porque o céu parecia despencar sobre sua cabeça. Estava difícil respirar e enxergar com toda aquela água
acertando seu rosto.
- Mon Dieu!Você só pode estar brincando... – Retrucou Pierre. – Já se olhou no espelho? Ou a sua mãe
estava com dor de barriga quando deu a luz a você, ou é defeito de nascença mesmo!
Oliver apalpou o rosto como ele, insultado.
- Eu sou NORMAL, mas o que diabo é você? Uma mistura de sapo com... Com... – Como não
conseguiu pensar em nada melhor para dizer, se calou. Para ele, aquilo não passava de um sonho muito louco.
Ou uma alucinação... Ou quem sabe apenas uma reação desesperada de seu medo.
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Hades Volume I – Terra Inversa
Pierre deu a impressão de revirar os olhos, estava irritado com a ignorância do humano.
- Eu sempre me esqueço de como as pessoas são burras.
- O que você disse? – Questionou Oliver.
- Sou um Leprechaun, da quinta geração.
- Leprechaun não são homenzinhos irlandeses que se vestem de verde e concertam sapatos? –
Perguntou Oliver irônico. Se era para entrar naquele jogo doido, então que assim fosse.
- Monsieur! Se eu cuspisse uma moeda por cada vez que eu ouvisse isso definitivamente estaria rico
agora. – Retrucou Pierre para si. – Minha mãe era irlandesa, sim, e vivia numa colônia na Irlanda, mas meu pai
é francês. E não, não sou nenhum homenzinho que concerta sapato. Embora nossa raça produza couro...
Concertar sapatos está definitivamente fora de cogitação desde que a segunda guerra mundial terminou.
Oliver não compreendia nada do que o Leprechaun estava dizendo. Entretanto, ele não parava de falar.
- Nós viemos em um barco cargueiro, eu e minha mãe, para o Brasil depois que meu pai e meus irmãos
foram exterminados durante a guerra. Eles foram recrutados pelos humanos para o exército, sabem... Foi então
que nós vimos como os humanos são. Eu era pequeno demais na época e então quando cresci foi melhor irmos
embora. Queríamos um lugar tranqüilo para morar e achamos os esgotos daqui, muito bons...
- Olha, eu... Eu não quero interromper o seu falatório. – “Que não faz sentido nenhum para mim.”
Completou em pensamento. – Mas eu tenho que acordar desse pesadelo...
Oliver riu diante da expressão do Leprechaun. A criatura se aproximou; Oliver fez menção de recuar,
mas ele já estava à sua frente no passo seguinte. Pierre estendeu a mão, as gotas de chuva desprendiam-se de
seu braço fino e desapareciam na grama enlameada.
- Vamos esquecer nossas diferenças e nos tornarmos amigos.
Oliver olhou enojado para a mão da criatura.
- Você não espera mesmo que eu o cumprimente, não é? Você é um monstro. Não existe... Nem fala,
nem anda. Fruto da minha imaginação. Não podemos ser amigos. Em qualquer instante ou eu acordarei de um
pesadelo, ou você simplesmente desaparecerá para sempre.
Pierre suspirou pacientemente. No seguinte piscar de olhos, Oliver não estava mais diante do
monstrinho, mas de um garoto de aproximadamente quatorze anos. Cabelos vermelhos, pele alva e manchada
por uma tonalidade mais escura em algumas partes. Seu rosto redondo, embora humano, ainda apresentava
traços anfíbios, como uma boca um pouco mais larga do que o comum e o queixo realçado. Contudo, era
indubitavelmente um humano. Os olhos negros e pequenininhos reluziam em esperteza.
- E agora... Podemos ser amigos?
Os dedos humanos alvos e finos dele continuavam abertos para um aperto. Oliver balbuciou coisas,
incrédulo. Sua mão moveu-se sozinha de encontro à de Pierre, apertando-a quase sem forças.
- Meu nome é Oliver.
- Oliver. – Repetiu Pierre estalando a língua. A água agora aderia a sua pele humana e rosada,
principalmente na região das bochechas. – Eu preciso de sua ajuda.
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Hades Volume I – Terra Inversa
Capitulo 2 – Resgate
O cavalo negro relinchou novamente e virou o tronco em direção ao homem, batendo a pata dianteira
direita com força sobre o solo. Sua respiração emanava uma fumaça de enxofre extremamente quente.
Oliver recuou um passo. O cavaleiro o analisava por baixo da viseira escura, escondendo suas reais
intenções a respeito do humano.
- Hades. – Disse o cavaleiro com uma voz fria e sussurrante. – Hades está vindo.
- Quem está vindo? – Questionou o homem sem compreender.
O cavalo bufou irritado.
- A verdade. – E o cavaleiro olhou para o alto.
Oliver sacudiu a cabeça, despertando do choque que acabara de ter. Por algum motivo lembrou-se do
sonho que viera tendo repetidamente nos últimos anos de sua vida. Conseguia ver com clareza todos os detalhes
do cavalo negro e horrendo. Havia algo de familiar no cavaleiro de capacete semelhante a um touro.
- Você está bem? – Perguntou Pierre parado quase no centro da sala.
O humano não soubera como vier parar dentro da casa tão rápido, talvez porque estivesse perdido em
pensamentos chocados. Ambos estavam encharcados da cabeça aos pés, deixando um rastro de água por onde
passassem.
- Na realidade nem um pouco. – Retrucou Oliver. – O que está acontecendo? Eu estou dormindo? Ou o
que? Porque o que eu acabo de ver não pode ser real.
- Mas é. – Corrigiu o Leprechaun. – Monsieur... Sou tão real quanto você mesmo. Você não entende
porque é humano e não sabe da verdade.
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Hades Volume I – Terra Inversa
“A Verdade.” pensou Oliver, “Já é a segunda vez que ouço isso hoje... No sonho, anteriormente, e agora
nesse pesadelo.”
- Que verdade?
Pierre coçou a nuca.
- Eu não estou autorizado a falar sobre isso com humanos, sinto muito.
Oliver arqueou as sobrancelhas.
- Desde quando se precisa de autorização para falar algo? Não tem ninguém olhando para dizer se você
pode ou não pode falar algo. Eu preciso de uma explicação lógica para o que está acontecendo. Como você é
possível?
- Há algens sim, mas não posso lhe ceder à verdade ou eles virão atrás de mim. Eles sempre sabem sobre
nós, e você, que é humano, e todos os outros iguais a você não sabem de nada. São da sétima geração, são sim.
- Geração? – Perguntou Oliver sem compreender, as frases do monstrinho perdiam o sentido.
- Escute... – Pediu Pierre forçando a mudança de assunto. – Eu preciso da sua ajuda.
- Desculpe, estou ocupado no momento arranjando um jeito de ENTENDER a situação ou, simplesmente,
sumir dessa porcaria de lugar. – Tachou o humano em voz alta. – Maldito carro que me trouxe para os confins
do mundo!
Pierre fechou a cara.
- Me escute! Minha mãe está aprisionada em uma armadilha lá fora, eu saí para colher ervas com ela e
acabamos indo além dos limites da nossa casa. Nos perdemos e quando a reencontrei, ela estava presa em uma
gaiola de metal. Eu não consegui tirá-la de lá, então vim buscar por ajuda. Pensei que houvesse um morador
aqui que me ajudar, mas quando cheguei a casa estava vazia... E então apareceu você.
Oliver recolheu o lampião caído no chão. O vidro trincara mais, mas pelo menos o fogo não se apagara
em seu interior.
- Peça para outra pessoa ajudá-lo.
- Mas não há ninguém! E com esse temporal também não acharei ninguém... – Insistiu Pierre
desesperado, somente agora Oliver notara seu semblante preocupado e receoso. – Eu não tenho mais ninguém
além de minha mãe. Sem ela eu vou acabar morrendo. Por favor, me ajude!
- Porque eu deveria ajudar um monstrinho? Se você é desse jeito, imagino como sua mãe deva ser! Outra
monstrenga também. – Disse Oliver com um “quê” de maldade. Fora que a idéia de haver outro monstro igual a
Pierre, talvez maior e pior, solto por ai lhe assustava. – Eu vou embora. Quem sabe o morador dessa casa não
chega e te ajuda!
Muita informação girava na cabeça de Oliver. Eram novidades demais para o gosto de quem estava
acostumado à rotina cansativa. Oliver fizera inúmeras coisas em seu passado que tentava esquecer, mas
nenhuma delas o assombrava tanto quanto a idéia de dividir a casa com um monstro, mesmo que Pierre não
fosse tão horrendo ou agressivo como uma criatura maligna deveria ser. E se fosse uma armadilha? Riu sozinho
ao imaginar pelo que estava passando.
Talvez Oliver estivesse começando a quitar sua dívida pelos males que cometera...
Percebeu o silêncio de Pierre e olhou em sua direção; O “garoto” chorava baixinho.
- Ah, não... – Grunhiu Oliver. – Você também chora?
- Covarde! Minha mãe está lá, sozinha nesse temporal... E você nem pode me ajudar só porque sou
diferente? Os humanos são ruins! Agora eu entendo porque não podem saber da verdade... São todos egoístas e
preconceituosos! As piores criaturas que já vi.
Oliver passou a mão livre no rosto.
- Pare de chorar...
Pierre, ao invés de obedecê-lo, começou a chorar com mais intensidade. As lágrimas cristalinas brotavam
de seus olhos, escorriam pelas bochechas já molhadas e terminavam por repousar em sua blusa branca
encharcada. Se havia algo que Oliver odiava era o choro. Nunca chorara em sua vida... Nem mesmo após a
morte de seu pai. Ou quando era apenas um bebê. Mesmo que seus olhos doessem... Ou perante um filme triste.
Nada o fizera se comover até então. Ninguém o ensinara a chorar e seu desejo de aprender passava longe.
- Ela está muito longe daqui? – Perguntou Oliver por fim.
- Não muito. – Respondeu Pierre entre soluços.
Quando no passado ele faria aquilo? Oliver era a última pessoa que se recorreria para pedir ajuda.
- Se acontecer algo com ela será sua CULPA!
Oliver bufou de raiva diante da acusação do Leprechaun.
- Tudo bem! Eu ajudo, mas só se você parar de chorar e sumir da minha vida depois!
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Hades Volume I – Terra Inversa
Pierre secou rapidamente as lágrimas, esperançoso.
- Mesmo?
Oliver olhou para fora; a chuva havia amainado um pouco, mas raios ainda despencavam do céu no
horizonte.
- Temos que esperar a chuva baixar um pouco.
Demorou pelo menos uma hora para que as gotas caíssem menos espessas e mais afastadas entre si, até
que se resumisse a uma garoa fina e gelada. O chão enlameado parecia uma arapuca para desligados que, ao
menor deslize, se veria atolado em um buraco fundo. Oliver encontrou mais óleo para abastecer o lampião e
assim o fez, preparando-o para entrar na floresta. Ainda não cria no que estava prestes a fazer, mas que outra
escolha tinha? Encontrou um pé de cabra abaixo do armário da cozinha e guardou-o consigo, para caso
precisasse.
- Acho que já podemos ir, pelo menos antes que a chuva caia novamente. – Disse Pierre olhando para o
alto. – As nuvens só deram uma pausa... O pior ainda está por vir.
- Como sabe? – Questionou Oliver parando ao lado de Pierre, na varanda.
- Eu posso sentir o tempo dentro de mim. Meus instintos dizem que logo o tempo vai piorar muito.
- O que mais você sabe fazer? – Indagou o humano ironicamente. – Cuspir dinheiro?
Pierre sorriu cinicamente, como se tivesse acabado de ouvir uma piada interna. Oliver apenas revirou os
olhos, aflito.
- Eu juro que se isso for uma armadilha ou algo do gênero eu acabo com você! Eu já matei um homem
antes e não vou hesitar em fazer isso de novo, principalmente em um monstro.
- Eu já falei que não sou um monstro! – Rosnou Pierre olhando o próprio reflexo no espelhinho que
carregava constantemente consigo. Um brilho de medo cintilou em seu olhar. – Mas porque você matou uma
pessoa?
Oliver riu com o medo do monstrinho. Os dois atingiram o pátio e depois viraram à esquerda, penetrando
na orla da floresta que rondava a casa. As árvores escuras tinham espaços curtos entre si; A umidade pesada
tornava a respiração difícil e as gotas que despencavam dos galhos e folhas altas os molhavam mais ainda. A luz
do lampião os guiava pelo caminho enlameado, cujos arbustos que os espreitavam lançavam galhos sobre o
caminho.
Oliver não cria que estivesse fazendo aquilo. Sua parte humana negava e sua parte irracional aceitava...
Ambas pareciam guerrear dentro de sua cabeça.
- Você ainda não me respondeu. – Insistiu Pierre.
O som das gotas assemelhava-se a passos, como se mais alguém os acompanhassem.
- Morrer faz parte da vida. Precisei matar para sobreviver, se é o que quer saber.
Pierre fez um som de quem compreendia.
- Meu pai e meu irmão mais velho partiram para a segunda guerra mundial quando eu ainda tinha apenas
cento e vinte anos...
Oliver estaqueou.
- O que você disse?
- Cento e vinte anos! Nós, os Leprechauns, vivemos cerca de seiscentos anos. Minha mãe tem
quatrocentos e sessenta e sete, viemos para o Brasil junto com as caravelas portuguesas alguns anos depois da
descoberta do país.
O humano piscou atônito.
- Você não pode estar falando sério...
- Se você acha que seiscentos anos é muito é porque ainda não viu os dragões... Conheci um barão
holandês com trinta mil anos... Dá pra acreditar nisso? Foi ai que aprendi a distinguir as espécies. – Contou
Pierre emocionado. – Barão Potro era um dragão de Khorde muito culto, amigo de meu pai. Dragões de fogo
duram apenas algumas centenas de anos, mas os de Khorde, ou os da terra, podem chegar a milênios de vida.
Mas também têm os Avalungas, esses sim vivem pra caramba... Conhecemos um durante a nossa viagem. Ele
vivia no mar e ia destruir a embarcação, mas nós pedimos que não fizesse isso ou acabaríamos morrendo
também... São peixes enormes e...
Oliver enfiou a mão na boca do garoto.
- Cale-se. Se der mais um pio eu juro que dou meia volta e vou embora! – Murmurou irritado. – Pare de
falar essas coisas, está deixando a minha cabeça repleta de dores. Eu não quero saber como você existe e nem
que podem existir mais de você, ou piores do que você, então, por favor, fique quieto...
Nada fazia sentido... Nem mesmo uma palavra que fosse.
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Hades Volume I – Terra Inversa
- Desculpe. – Pediu Pierre baixando a cabeça, mas mesmo assim não parou de falar. – Como eu ia
dizendo, meu pai e meu irmão mataram muita gente durante a guerra. Eles eram soldados que lutavam pela
frança. Eles não gostavam, entende? Nossa raça não é violenta...
Oliver apressou o passo e rapidamente deixou o Leprechaun para trás.
- Ei, espere! – Exclamou Pierre. – Não me deixe!
- Escute...
O humano ia dizer algo, mas sua fala foi interrompida pelo estalar de um galho mais adiante. Permaneceu
imóvel e tentando ouvir mais a fundo. O pé de cabra escorregava em sua mão úmida e o lampião tremulava de
receio na outra. Como não constou nada, soltou a respiração e continuou caminhando. Pierre adiantou o passo e
afastou dois arbustos mais a frente, entrando no bosque que se sucedia. Oliver precisou de muita astúcia e
maleabilidade para ultrapassar as plantas sem se cortar. Acabou por embolar-se numa raiz sobressalente e quase
caiu no chão, resmungando palavrões quando alcançou o bosque.
- Mamãe! – Exclamou Pierre parando abaixo da rede metálica.
- Pierre! – Retribuiu a voz feminina exaltada. – Filho, você voltou...
- Eu trouxe ajuda, mamãe! – Bradou ele satisfeito consigo mesmo.
Oliver ergueu os olhos para cima instintivamente. Tal qual foi sua surpresa quando fitou a mulher de
cabelos escuros e pele extremamente alva, enroscada pela rede metálica suspensa na grande macieira a frente
deles. Ela estava a dois metros do chão e abraçava a si mesmo, evitando o contato com a rede o máximo
possível. Ela o analisou; Tinha o rosto magro e parecido com o de Pierre, no entanto carregava uma expressão
mais humanizada. Usava um lenço amarelo queimado ao redor da cabeça que escondia a ausência de cabelos.
Qualquer um que a olhasse diria que é uma mulher muito doente.
E só de pensar que ela não era humana lhe causava arrepios...
- Oliver! – Disse Pierre apontando para o alto da árvore. – Me ajude a soltá-la.
- Ah, eu... – Oliver engoliu a seco e embolando-se com as palavras. – Ela também é... Digo, como você?
Pierre fez menção de pedir que Oliver se calasse, mas a Leprechaun fêmea percebeu.
- Pierre! – Repreendeu a mulher. Ela estava molhada e tremia, Oliver pressupôs que ela sentisse frio. – O
que você fez?
- Desculpe, mãe! – Pediu o “garoto”. – Foi sem querer... Eu me assustei e não consegui manter o meu
disfarce! Então ele me viu... E...
A mulher arregalou os olhos, apavorada.
- Você infringiu as leis! O que já conversamos sobre aparecer sem o disfarce na frente dos humanos? E se
eles tivessem pegado você?
- Desculpe. – Pediu Pierre baixando a cabeça. – Mas eu fiquei preocupado com você e ele aceitou me
ajudar!
O Leprechaun gesticulou em direção a Oliver, que jazia imóvel e confuso.
- Esse é Oliver, mamãe. E Oliver, esta é a minha mãe Marlyn.
Oliver piscou atônito quando a mulher pôs o braço para fora da rede e puxou o filho para longe dele.
- Não chegue perto desse humano, Pierre! Eu já lhe falei do que as pessoas são capazes.
- Mas, mãe... – Grunhiu a criaturinha. – Não temos escolha!
- Você não está falando sério! – Disse Oliver subitamente. – Vocês são os monstros e eu que sou o vilão?
Marlyn fechou o punho, trazendo-o para perto do peito numa demonstração de nojo. Com a luz do
lampião mais próximo ao seu rosto, Oliver deduziu que ela tivesse por volta dos trinta e dois anos, e não
quatrocentos e sessenta e sete.
- Eu devo ter virado na esquina errada para ter encontrado essa maluquice toda! Não me lembro de ter
atravessado nenhum portal mágico ou o que seja! – Resmungou o humano consigo mesmo.
- Então volte de onde veio! Eu não preciso da ajuda de sua espécie! – Defendeu-se a Leprechaun. – Eu lhe
proíbo, Pierre, de chegar perto de um humano de novo!
- Eu não estou ouvindo isso de um monstro! – Murmurou Oliver. – Tudo bem! Eu vou embora dessa
porcaria de lugar.
- Não, Oliver! – Pediu Pierre esquivando-se dos braços da mãe. – Se você for não arranjarei mais
ninguém para nos ajudar!
- Você não ouviu? Sua mãe não me quer por perto e eu também não faço questão de ajudar! – Falou o
humano rabugento dando as costas. – Eu nunca deveria ter saído do meu carro!
- Viu o que você fez! – Tachou o Pierre para Marlyn. – Não vou conseguir achar ajuda! Não há ninguém
por essas bandas! E se aparecer algum inimigo?
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Hades Volume I – Terra Inversa
Marlyn virou a cara, mas mudou de idéia antes que Oliver desaparecesse de vista entre os arbustos. Seu
filho estava certo.
- Ei, humano, espere! Não vá sem me soltar! Peço desculpas por minhas palavras, fui ríspida e grosseira.
Oliver parou de andar e virou o rosto, fitando-os por sobre o ombro.
- Deveria ter pensado em dizer isso quando eu ainda estava apto a ajudá-los! Tenho mais o que fazer.
- Não! – Insistiu ela. – Eu sei que a sua espécie só ajuda a quem lhes paga! E eu posso pagá-lo. Darei algo
em troca de sua ajuda.
- Algo? – Questionou Oliver mais por curiosidade do que por vontade de possuir tal coisa.
Marlyn comprimiu os lábios, desesperada. Ela não podia continuar ali, a deriva do perigo, com seu
precioso filho. Já perdera seu marido e sua outra prole, então porque continuar arriscando mais? A escuridão ao
redor do bosque pareceu silenciosamente mórbida. As plantas não se moviam e o vento cessara
momentaneamente, evitando até que as folhas se sacudissem e derrubassem a água acumulada em suas
superfícies. O bosque cheirava a lama e a musgo.
Pierre retirou uma moeda de ouro do bolso e estendeu-a para Oliver, aproximando-se em passos furtivos
até parar às suas costas. Oliver virou completamente, achando incrível o brilho e a pureza do ouro a sua frente.
- Os Leprechauns transformam tudo o que comem em ouro. O nosso ouro é o mais rico e puro da
natureza... Tenho certeza de que poderá ficar rico se dermos ouro em troca de sua ajuda.
Subitamente a idéia de ajudar monstros não era tão ruim. Oliver não tinha dinheiro e qualquer centavo a
mais o ajudaria, e muito.
- Bem, eu...
Pierre insistiu que Oliver pegasse a moeda.
- Nós temos mais do que isso.
Oliver recolheu a moeda, admirado com sua textura. Nunca vira um ouro tão belo em sua vida...
“Leprechauns e potes de ouro, que ironia.” Pensou. Um trovão titubeou ruidosamente além da serra,
despertando-os para a realidade.
- Vai chover logo. Por favor, nos ajude! – Insistiu Pierre.
- Droga! – Tachou Oliver guardando a moeda no bolso. A tentação de ter o dinheiro que precisava falava
mais do que seu orgulho porco. – Tudo bem, mas depois simplesmente sumam da minha vida!
Pierre concordou e o guiou até o pé da árvore de caule grosso e galhos estrondosos. Sua estrutura ao todo
deveria ter mais de cinco metros de altura.
- É enorme... E está escorregaria. – Supôs Oliver. – Mas vou ver o que posso fazer. As correntes da rede
estão presas lá no alto. Sua mãe caiu em uma armadilha de caça. Eu já vi uma dessas antes... É uma sorte que
ela não esteja ligada a um dispositivo elétrico, ou ela morreria antes mesmo de saber o que estava acontecendo.
Marlyn mordiscou o lábio, preocupada. Oliver entregou o lampião para Pierre, retirou o casaco molhado
que usava e também os tênis e as meias encharcadas. A aderência de seus pés nus era melhor do que as solas de
borrachas dos calçados. Pôs a mão num galho saliente e deu um impulso, enfiando os dedos pálidos em dois
buracos. Apanhou novamente o lampião e colocou a alça na boca, de forma a carregá-lo sem ocupar as mãos.
Respirou fundo e iniciou a longa escala até o topo da árvore.
- Está tudo bem ai? – Perguntou Pierre.
- Estaria bem se eu não estivesse aqui. – Tartamudeou Oliver entre dentes.
Oliver enfiou a mão entre dois galhos grossos e colocou o pé em um buraco repleto de selva.
- Nojo! – Rosnou ao sacudir o pé sujo, mas mudou de idéia ao perceber que adquirira maior aderência
com a substância pegajosa.
Mergulhou o outro pé no buraco e começou a subir com mais agilidade e velocidade, alcançando
finalmente o galho na qual a rede estava apoiada. Um pequeno dispositivo do tamanho de uma caixa de sapatos
fora ardilosamente preso no galho por laços metálicos. Oliver esticou o corpo sobre a caixa, entretanto manteve
o equilíbrio envolvendo as pernas sobre a parte mais grossa do caule, de forma que se o galho quebrasse, ainda
tinha chances de continuar preso no alto ao invés de espatifar-se no chão como uma melancia. Abriu a tampa de
ferro da caixa com a mão direita livre.
Com o braço esquerdo agarrou o tronco e ergueu o lampião sobre o dispositivo, fitando seu interior com
uma manivela, uma roldana envolta pela corrente anteriormente esticada da armadilha e um pequeno painel com
três botões e uma telinha retangular.
- Ô-hô. – Disse Oliver após pressionar o botão que deveria liberar a rede. – O circuito está emperrado
porque acabou a bateria. Essa armadilha deveria estar aqui há muito tempo... Os caçadores que a deixaram
devem tê-la esquecido, e o seu acionamento fez com que extinguisse o restante de energia de seu sistema.
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Hades Volume I – Terra Inversa
- E isso é ruim? – Perguntou Pierre preocupado.
Marlyn juntou ambas as mãos, perturbada.
- Não quando se tem um pé-de-cabra. – Disse Oliver para si.
Oliver retirou pé-de-cabra preso em sua calça, nas costas, que encontrara na casa antes de vir em auxílio
de Marlyn.
- Oliver. – Sussurrou uma voz masculina ao seu ouvido, era a consciência de novo. Porém, dessa vez,
parecia que ela dizia tais palavras em seu ouvido como uma assombração. – O que você está fazendo, Oliver...
O humano parou ao ouvir a voz que vinha de dentro de sua cabeça. Não era possível que aquilo estivesse
começando agora...
- Porque perde seu tempo ajudando monstros, Oliver... Será que és louco?
Oliver olhou para os lados e sua respiração ficou mais freqüente. Pierre notou seu cheiro de receio.
- Eu falei para não entrar naquela casa estranha, Oliver. Porque não me ouvistes, Oliver? Será que não
lhe ajudei bastante em sua vida?
“Eu não quero ouvir.” Pensou Oliver fechando os olhos e passando o antebraço sobre os cabelos que
repousavam sobre sua testa.
- És muito ignorante, Oliver. Eu bem que lhe disse... Eu avisei... Agora você corre perigo, Oliver. Porque,
Oliver? Porque deixastes seu trabalho e fora ser curioso, Oliver?
- Você está bem? – Perguntou Pierre.
- Vais morrer como seu pai, Oliver. Vai sim, vai...
- Cale-se! – Urrou Oliver desferindo um soco no tronco da árvore. Pierre se encolheu, pensando que a
ordem fosse para si. – Eu não quero ouvi-lo agora! Não se meta, consciência maldita!
Oliver esperou que sua respiração voltasse ao normal. A voz se calara, ou pelo menos por agora. Tinha
acessos constantes em que ouvia sua consciência discordar de tudo o que pensava. Era loucura, disso ele tinha
certeza. Quem discutia com a própria cabeça por tanto tempo? Os pensamentos eram seus e deveriam obedecêlo.
- Eu vou soltá-la. – Disse Oliver erguendo o pé de cabra para quebrar o dispositivo.
Um brilho refletiu sobre seus olhos e o cegou por instantes. Olhou para os lados, mas não viu nada além
da escuridão. Sacudiu a cabeça, perturbado. O que estava acontecendo consigo? Seria esquizofrenia? E se Pierre
e Marlyn fizessem parte dessa loucura absurda?
Hesitou por breves instantes.
Então desferiu duas golpeadas no dispositivo até que entrasse em circuito e liberasse a corrente, fazendo
com que a rede caísse no chão com Marlyn. Pierre ajoelhou-se ao lado da mãe, ajudando a soltá-la dos ganchos
metálicos. Oliver escorregou de volta para o chão e foi auxiliar ao pequeno que, sem muita perícia, não
conseguia tirar a mãe das redes. O humano acabou por cortar um dos dedos e, sem ligar, ajudou-a a se libertar e
olhou para os lados; A nova sucessão de temporal viria a seguir.
- Obrigada, senhor. – Pediu Marlyn assim que ficou de pé.
- Que seja, que seja. – Murmurou Oliver virando o rosto. – Temos que arranjar um abrigo... A chuva vai
começar a cair em breve.
- Estamos um pouco longe de casa. – Disse Pierre. – E daquele abrigo à beira da estrada também.
Um clarão forte inundou o ar e um raio acertou uma árvore vizinha ao bosque. Suas folhas arderam em
chamas enquanto faíscas ferozes se atiravam para todos os lados. O som de sua explosão veio a seguir, quase
ensurdecendo o trio.
- Rápido! – Disse Marlyn puxando o filho pelo braço. – Venham comigo! Há um abrigo mais adiante que
podemos usar!
Oliver não objetou. Agarrou seu lampião, os trajes e calçados, e o pé-de-cabra como se valessem a sua
vida e correu atrás dos Leprechauns, abaixando a cabeça para não bater nos ramos baixos das árvores. O som
dos milhares de gotas grossas de água e granizo acertando o chão era assustador, como se dezenas de criaturas
os perseguissem através da mata. Oliver agradeceu pelas copas das árvores serem densas e cobrirem todo o
caminho, caso contrário já teria sido fatiado em pedacinhos por pedaços de gelo.
A escuridão e o frio os envolviam. Mesmo correndo, os músculos ardiam e os dedos adormeciam com o
frio anormal. Nuvens de vapor exalavam sucessivamente de suas respirações, preenchendo o ar. Outro raio
ricocheteou próximo, iluminando previamente o caminho que seguiam. Oliver avistou uma caverna mais
adiante, oculta em meio a um mato alto e um barranco estreito acima. Jorros torrenciais de água escorriam pelas
laterais da entrada, acumulando lama por todo o caminho.
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Hades Volume I – Terra Inversa
Oliver enfiou um pé no buraco e sentiu um puxão para baixo. Duas mãos pareceram segurá-lo no chão,
prendendo-o a menos de um metro da entrada da caverna. Marlyn e Pierre alojaram-se no interior rochoso, no
entanto a pequena criatura retornou e puxou o humano pela mão, ajudando-o a se livrar do buraco atolador.
Oliver entrou aos tropeços na caverna e quase deu de cara no chão.
Demorou um pouco para que acomodasse. Recolocou seus calçados e o casaco, mesmo que estes
estivessem molhados. Encostou-se na parede uniforme e deslizou até o chão, sentando sobre as pedras úmidas e
frias. Largou o pé de cabra e o lampião apagado, segurando a cabeça com ambas as mãos enquanto sentia uma
dor insuportável.
- Eles estão a caminho. – Dissera-lhe a voz da consciência. Pela primeira vez, houve certo que de raiva
em sua frase. – E não serão piedosos.
- Quem? – Perguntou Oliver trincando os dentes. – Quem está vindo?
Marlyn fitou o humano maluco e abraçou o filho, receosa. No entanto Pierre a afastou.
- O que está havendo, Oliver?
- A voz... – Murmurou o humano com o rosto vermelho e a veia da testa saltada. – Ela não quer calar...
O garoto olhou para a mãe, aflito, e depois sentou ao lado de Oliver.
- Eles querem você também, Oliver... Agora que você sabe da verdade.
- Eu não seu de verdade nenhuma! – Rugiu o humano cobrindo os ouvidos. – Cale-se, cale-se! Apenas me
deixe em paz!
- Você não pode saber. Ninguém pode saber... O que fará agora, Oliver? Você não me ouviu.
Marlyn vasculhou rapidamente os bolsos e encontrou, fixado em um deles, a sacola de ervas que viera
coletando. Espalhou-as sobre o chão, atenta. Estava escuro e quase impossível de se enxergar qualquer detalhe
naquela caverna, mas seus olhos escuros acostumados à noite percebiam melhor do que um olho humano
durante o dia. Selecionou três das três plantas e depositou uma sobre a outra, utilizando a palma da mão para
amassá-las em seguida. Misturou algumas gotas de água e juntou-as em uma porção, aproximando-se
cautelosamente de Oliver.
O humano estava quieto. Oliver mal conseguia pensar com tamanha dor de cabeça, seus nervos pareciam
prestes a explodir. Desde o acidente que sofrera além de ouvir a tal voz, também sofria com uma dor terrível e
intermediária. Entretanto, ela nunca lhe fora tão forte. Grunhiu e puxou os próprios cabelos, a fim de aliviar a
dor com outra.
Oliver acabou se assustando quando Pierre segurou seu braço direito com uma das mãos e empurrou sua
cabeça para trás com a outra. Marlyn enfiou o dedo entre seus lábios e a muito custo afastou seus dentes,
abrindo espaço para enfiar a mistura que acabara de fazer. Oliver cuspiu, se engasgou e praguejou ao inclinar-se
para a frente. A substância entrou queimando por sua boca; O gosto amargo e horrível quase o fez vomitar por
breves instantes, enquanto respirava ruidosamente.
Ergueu o rosto enfurecido e fitou a mulher, mas a raiva durou até perceber que sua cabeça parara de doer.
Cuspiu os restos da mistura alojada entre seus dentes e limpou a boca com a manga molhada.
- Mas que porcaria é essa?
- Se sente melhor? – Perguntou Pierre arqueando as sobrancelhas.
- S-Sim. – Respondeu Oliver.
- Então não precisa saber o que é. – Concluiu Marlyn voltando a sentar.
Oliver se contentou com a resposta e observou a caverna ampla e escura, cujas paredes rochosas e
pontudas tinham um cheiro de limo e fezes de morcego. Pensou em acender o lampião, mas o aparelho estava
molhado e não funcionaria. Suspirou agora mais calmo. Fez-se um longo silêncio entre eles. Ninguém falou,
objetou ou o que fosse.
O primeiro a abrir a boca, no entanto, após longos minutos cujo som da tempestade voraz lá fora se fazia
de trilha sonora, foi o próprio Oliver.
- Obrigado. – Agradeceu o humano sem muita vontade. Educação não era seu forte.
Pierre sorriu.
- Viu, mãe? Ele não é tão ruim assim.
Marlyn deu de ombros. E o garoto continuou contente.
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Hades Volume I – Terra Inversa
Capitulo 3 – O Quinto
O tempo subitamente começou a passar mais lentamente. A escuridão da caverna só não abalava tanto o
humano porque havia mais duas pessoas consigo, mesmo que ambas não fossem tão humanas assim. O frio
gelava seus músculos e os enrijecia, dificultando seus movimentos. Mal sentia as pernas e braços, quanto mais
os dedos. Oliver nunca desejou tanto um cobertor velho ou uma fogueira. Se o ambiente da caverna não
estivesse tão úmido devido ao temporal ferino que despencava sobre a terra, talvez até conseguisse acender
uma.
Infelizmente passar frio, fome e dor já eram algo ao qual Oliver se acostumara durante sua juventude. O
que ele fora no passado lhe envergonhava de certo modo, mas não o trazia nenhum arrependimento. As coisas
tiveram de ser do jeito que foram, e nada mudaria os fatos. Nem mesmo o arrependimento.
Quantas vezes Oliver não passou frio durante as noites geladas? Não porque não tinha onde morar, mas
porque se envolvera com as pessoas e as atitudes erradas. Com o tempo suas memórias foram se apagando, já
outras ficavam vivas dentro de sua mente.
“O passado não importa mais.” Pensou Oliver. E nem o presente lhe agradava muito. Tinhas problemas,
problemas e mais problemas. Sua mãe doente precisava de um tratamento caro que viera pagando desde que não
conseguira mais os medicamentos por fornecimento do governo. Trabalhava o dia inteiro, inclusive os sábados.
Fazia bicos além de seu serviço na firma de advocacia. Como mudara a faculdade para de noite, ainda sobrava o
turno da manhã para fazer seu ganho adicional durante o ano. Fazia entregas, relatórios, trabalhos para outros
colegas.
Se esmerava todos os dias para conseguir o menor centavo que fosse. Era obrigado a pegar até cinco
ônibus numa mesma tarde, isso quando não tinha dinheiro e resolvia ir a pé para economizar e pagar as dívidas
que se acumulavam no final do mês. Férias? Nunca vira a cor delas desde que seu pai morrera há seis anos. Só
tinha uma amiga e nada mais, seu tempo para festejar e aproveitar ficara para trás.
Não podia dizer que odiava sua vida, mas tinha certeza de que se resolvesse morrer ali mesmo ninguém
sentiria sua falta. Nem mesmo sua mãe louca. Muito menos aqueles que viveram no seu passado.
A idéia de estar com dois Leprechauns em uma caverna escura não era tão assustadora quanto o fato de
passar o resto de sua vida preso numa monotonia sôfrega.
- Você parece cansado. – Comentou Pierre após um tempo de observação em silêncio.
- Muita informação para um dia só. – Disse Oliver a fim de mudar de assunto.
Um manto de sono o envolveu como mágica. Repousou a cabeça na parede rochosa e inspirou fundo,
fechando os olhos. Só queria que aquele pesadelo acabasse... Mas sabia que se fosse embora, outros pesadelos o
aguardariam em casa.
Som de cascos de cerca de quatro cavalos ao todo ecoaram mais adiante. Oliver tentou abrir os olhos, mas
estava preso numa semi-inconsciência de sono. Flashs repetitivos mostravam a chuva violenta despencando
sobre um campo aberto, em seguida ouviu um relinchar alto. Viu pernas negras de cavalos trotando por sobre a
relva alta; Mantos esvoaçaram diante de seu campo de visão e a chuva pesada não cessou em nenhum instante.
- Eles estão a caminho, Oliver. - Alertou a voz de sua consciência. – Corra, salve-se. Antes que seja
tarde... Deixe as duas criaturas para trás ou morrerá.
- Quem está vindo? – Questionou Oliver tentando abrir os olhos.
Tudo ficou escuro e, no instante seguinte, voltava à realidade. Inflou os pulmões com vontade, como se
tivesse acabado de mergulhar por mais de dois minutos em um mar de águas negras.
- Pierre! – Gritou Marlyn parada à beira da caverna.
Oliver sobressaltou-se e só faltou que seu coração saltasse pela garganta.
- Pierre, volte aqui!
- O que está acontecendo? – Perguntou Oliver franzindo o cenho.
Como não obteve resposta, ficou de pé e caminhou com a cabeça abaixada até a entrada. Seu coração
disparou novamente e chegou até a doer; Um formigamento percorreu dos seus pés até a nuca, como se
recebesse pequenos choques gelados.
Pierre estava parado em frente à caverna e, diante dele, havia quatro cavaleiros. Seus cavalos, criaturas
negras, musculosas e de olhos vermelhos vivos, eram arredias e violentas. Percebia-se por seus semblantes que
eram animais perigosos e ariscos. Oliver os achou muito parecido com o cavaleiro de seu sonho, no entanto os
tais animais eram menores e nem tão feios fisicamente.
Sobre suas celas de couro negro jaziam para cada um, um cavaleiro de manto vermelho vivo. Um broche
o fixava na altura da garganta, tinha o formato de um olho cuja Iris fora feita de rubi. Os detalhes dos cílios
grosseiros eram de ouro e o restante de prata. Oliver sentiu náuseas. Por baixo dos capuzes compridos havia a
escuridão, e nela pairavam duas esferas vermelhas que queimavam. A respiração de enxofre dos cavaleiros
preenchia o ar diante de suas faces invisíveis. As mãos protegidas por luvas metálicas reluziam toda a vez que
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Hades Volume I – Terra Inversa
um relâmpago estourava, mesmo que distante de onde estavam. No manto comprido das costas repousava o
desenho de uma foice e uma espada, uma sobrepondo a outra em “x”, em dourado.
Os cavaleiros estavam postados um ao lado do outro, apenas o segundo da direita estava um pouco mais a
frente. E foi esse o primeiro a falar, sua voz rouca e gutural causava arrepios.
- Pierre II, filho de Marlyn e Pierre Ferdinand I. Leprechaun, Ghostgan da terceira geração racial. – Disse
o cavaleiro erguendo uma das mãos e apontando para o garoto. – Você está sendo acusado por violar a terceira
lei Priori do Código dos Imperfeitos.
- Nunca revele sua verdadeira identidade para um humano e permita que este continue vivo. – Entoou o
cavaleiro ao lado direito do primeiro. Sua voz era andrógena.
Pierre recuou um passo. O terror estampado em seu rosto nunca fora tanto.
- Eu... Eu não tive a intenção. – Gaguejou o Leprechaun. – Foi sem q-querer!
- Pierre. – Grunhiu Marlyn num guincho.
Ela levantou, pois estava ajoelhada, e evitou a mão de Oliver quando correu para o lado de seu filho.
- Fique longe dele! É apenas uma criança e não sabe o que faz. – Exclamou a mãe.
O cavalo do líder bateu o casco no chão e bufou ferozmente. Relinchou perante a aparição da mulher e
revelou os dentes afiados que forravam toda a sua boca em desalinho. Marlyn apenas grunhiu de medo, sem
deixar seu filho para trás.
- Marlyn Ferdinand. Esposa de Pierre Ferdinand II. Proles: Pierre III e Lucius I. – Disse o cavaleiro líder
como se tivesse acesso a um tipo de banco de dados espectral de monstros. - Leprechaun, Ghostgan da terceira
geração racial. Sua prole infringiu uma das dez leis Priori que possui como penalidade a morte.
- Não! – Exclamou ela. – Mate-me! Mas deixe meu filho!
- Mamãe... – Grunhiu Pierre com os olhos injetados. – Por favor, não se meta nisso!
- Meu marido e meu outro filho já morreram lutando para os humanos! Não permitirei que leve este filho
também.
Oliver assistia perplexo. O que eram aquelas criaturas imponentes e monstruosas? Sua cabeça voltou a
doer, mesclando uma raiva grosseira com receio.
- São eles, Oliver. São os que vêm junto com Hades... Fuja enquanto há tempo. – Ordenou-lhe a
consciência. – Deixe que os Leprechauns paguem por seus erros.
O humano sentiu um pavor intenso. Aqueles monstros se pareciam com os de seus pesadelos... Um medo
tremendo tomou conta de seus pensamentos e seu único desejo foi fugir. Olhou para trás, certificando-se de que
a caverna tinha uma continuação. Talvez se arranjasse um buraco escuro para se alojar, os cavaleiros
monstruosos não viriam atrás de si. Apalpou o chão até encontrar o lampião e vasculhou os bolsos, encontrando
a caixa de fósforos molhada.
- Droga. – Murmurou com as mãos trêmulas de medo.
Seu pior pesadelo estava lá fora. Seja lá o que aquelas coisas fossem, eram das piores. Não queria ficar
para ver o que se sucederia. Agarrou o pé-de-cabra caído no chão e esticou a mão para usar a parede como guia
para longe dali. Que cada um se virasse... Oliver não era nem de perto um herói.
- Por favor. – Disse a voz de súplica de Marlyn lá de fora. – Não mate meu filho.
Oliver trancou a respiração.
- Fuja, covarde. Fuja e salve-se. Você deve ficar vivo, mesmo que isso signifique uma covardia. –
Zombou-lhe a voz em sua mente.
- Pare de brincar comigo. – Resmungou Oliver em voz baixa. O coração disparado não sossegava um
instante, bastando pensar nos cavaleiros para que este doesse.
Começou a andar em passos lentos para o fundo da caverna.
- Eu, Rai IV, cavaleiro do Chamado líder do décimo oitavo batalhão de correção, condeno Pierre II à pena
de Priori.
Marlyn tomou a frente do filho.
- Não permitirei.
- Já que está ai, porque não para de olha? Olhe, Oliver. Veja quem são os inimigos. – Ironizou a
consciência. – Assista e, se ainda sim tiver coragem, continue a fugir. Salve-se. Corra. Busque um buraco para
enfiar a sua pútrida carcaça.
- Porque você está dizendo isso? – Questionou Oliver encostando-se na parede da caverna. A dor em sua
cabeça voltara. – Primeiro me ordena que fuja, depois que fique...
- A verdade é que és um covarde e nada mais. Primeiro, desobedece-me. Depois, não arca com as
conseqüências. – Ponderou a voz. – Sua vida tem sido isso, Oliver. Você é um fracasso. Um lixo humano.
Apenas isso é o que sobrou de você.
- Marlyn Ferdinand, você também está condenada a sentença de Priori por violar a nona lei de Priori. –
Sentenciou Rai IV.
- Nunca interfira uma sentença de Priori. – Entoou o cavaleiro que parecia saber de todas as leis.
- Ambos vão morrer. – Acrescentou o da ponta direita.
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Hades Volume I – Terra Inversa
- Mas não fizemos nada! – Disse Pierre. – Nunca ferimos um humano! Sempre vivemos em paz em nossa
casa, mesmo depois que metade de nossa família foi levada. Não vou deixar que toquem um dedo em minha
mãe!
O Leprechaun empurrou a mãe de volta para dentro da caverna. Sua forma não era mais humana,
retornada a ser o pequeno monstro com face de anfíbio. O cavaleiro situado no extremo da esquerda riu
esganiçado.
- Eles sempre são orgulhosos.
Marlyn caiu de bruços com metade do corpo para dentro da caverna. A mulher grunhiu e ergueu o olhar
para Oliver, que estava encostado mais no fundo, e esticou a mão em sua direção.
- Por favor, salve meu filho.
- Eu não posso fazer nada. – Respondeu Oliver subitamente. – Não posso...
- Eles vão matá-lo... Meu pobre filhinho nunca fez nada. – Suplicou ela com lágrimas nos olhos. E
embora Oliver não a visse, sabia que chorava.
Só de pensar em chegar perto dos cavaleiros já sentia náuseas de medo.
- Covarde. – Acusou a voz de sua consciência. – Se não correres para longe, então o que fará além de
sentares ai e chorar?
O que estava acontecendo de errado? Porque sua vida normal, talvez nem tão normal, estava beirando
agora a loucura? Cobriu os ouvidos e sentiu um frio na barriga. Não era medo, era vergonha.
- Não posso... Não contra isso.
Pierre tremia de medo da cabeça aos pés. A chuva em momento algum cedeu, castigando o seu pequeno
corpo sem pena. Os cavaleiros não se importavam com a água que descia por seu manto e desaparecia na
escuridão de suas montarias. Rai IV pôs a mão na cintura, por baixo do manto, e puxou uma espada comprida e
prateada. Não havia nenhum detalhe nela se não a lâmina pura e seu cabo irregular. A lâmina da espada reta
cintilava de tão afiada.
- Morra! – sentenciou Rai IV mais uma vez, batendo as rédeas abruptamente.
O cavalo negro relinchou e avançou sobre Pierre, erguendo-se nas duas patas e virando o dorso levemente
para o lado, de modo que seu cavaleiro pudesse usar a espada no inimigo. O manto vermelho sacolejou no ar
quando Rai IV abaixou-se para cravar sua espada de prata no Leprechaun. Tal qual foi sua surpresa quando sua
lâmina bateu contra o pé-de-cabra e saiu voando, desprendendo-se de seus dedos.
Oliver tremia mais do que nunca. Seus olhos arregalados não criam no que acabara de fazer. Ainda
segurava o pé-de-cabra arranhado onde interferiu a espada de agir. O cavalo negro por pouco não perdeu o
equilíbrio, recuando para recobrar sua estabilidade. Rai IV fitou o humano com raiva.
- Fuja! Pegue sua mãe e fuja! – Ordenou Oliver para Pierre.
O monstrinho admirava Oliver, imóvel.
- Anda! – Gritou o humano fazendo menção de dar-lhe uma bofetada na cara para acordá-lo do choque.
Pierre assentiu com a cabeça e recuou, ajudando a mãe a ficar de pé.
- Eu me viro. – Murmurou Oliver descrente de suas próprias palavras.
Os quatro cavaleiros agora se remexiam nervosamente. Os animais não gostaram nada da interrupção,
sacolejando suas cabeças desordenadamente. Pierre carregou a mãe para longe.
- Humano! – Disse o cavaleiro da ponta direita. Sua voz era sussurrada.
- Oliver Drummond, filho de Cecília e Guilherme Drummond. – Ponderou Rai IV. – Humano, Sétima
geração racial. Não-Ghostgan.
Oliver ficou surpreso por aquelas criaturas saberem ao seu respeito.
- Infrator, violento, ex-marginal, espancador, ex-drogado, ex-alcóolatra, ladrão, preso duas vezes pela
guarda humana. – Disse o da esquerda.
- Cale a boca! – Urrou Oliver irritado com as acusações. – Vocês não sabem nada de mim!
- Assassino. – Completou Rai IV. – Atualmente é apenas um fracassado. Você está condenado a morrer
em três dias... Seu destino já estava selado. No entanto não podemos perpetuar sua existência.
Oliver não entendeu.
O cavalo do líder avançou dois passos na direção de Oliver, sacudindo a cabeça e relinchando, quase não
contendo a ânsia de atacar o humano. Oliver recuou e tropeçou, caindo de costas no chão. Suava muito, mesmo
que chovesse e estivesse frio. Temia as criaturas e ao mesmo tempo as odiava... Olhou para os lados; Pierre já
fora e levara sua mãe junto. Estava definitivamente sozinho.
- Você é o humano que fez Pierre II infringir a lei Priori. E, além de interromper uma execução, está
agora também sentenciada a morte. O que você viu não pode ser perpetuado. A verdade deve permanecer
imaculada... Ninguém deve saber dos imperfeitos. – Retrucou Rai IV.
- Eu não me lembro de nada! Eu juro! Ninguém ficará sabendo. Não tenho interesse em me envolver mais
nesse mundo. – Falou Oliver.
- Fez um ato heróico e agora se treme de medo. – Dissera-lhe a voz em sua consciência.
Uma raiva, que Oliver não reconheceu como sua, incomodou a boca de seu estômago.
- O que você espera fazer agora, Oliver? Como escapará desses monstros que ceifaram sua vida?
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Hades Volume I – Terra Inversa
- Eu não tenho medo de nada! – Defendeu-se Oliver olhando para os lados, como um lunático. – Acha
que se morrer aqui fará diferença?
Os cavaleiros se entreolharam sem compreender.
- Porque as suas pernas tremem, então?
- Eu... – Oliver olhou para as pernas trêmulas. – Isso não importa. Não faz diferente... Eu estou aqui, não
estou?
- Exatamente como um tolo despreparado estaria.
Oliver riu, cínico. A que ponto de loucura se encontrava? Discutindo consigo mesmo? Começou a
gargalhar, sentindo as gotas de chuva acertar seu rosto com um pouco mais de delicadeza. Primeiro
Leprechauns, agora cavaleiros demoníacos? Ou, seja lá o que fossem aquelas coisas.
- Ah, pai! – Disse o humano olhando para o céu. – Você estaria rindo comigo agora!
- Você vai morrer! – Rugiu Rai IV. – Como ousas a nos zombar dessa forma? Humano sujo!
Oliver retornou a sua pobre realidade.
“Já burlei a morte tantas vezes.” Pensou Oliver deitando o tronco no chão. Esticou os braços, envolvendoos na lama. “Talvez seja à hora de encontrá-la, seja lá para onde for o meu lugar.” O quão ruim lhe seria a
morte? A vida não lhe reservava nada mais especial. Ninguém sentiria sua falta, ninguém o esperaria em casa
após um dia fatídico. Era apenas mais um lunático fracassado. Principalmente agora, que sua loucura se tornara
tão realista.
- Corra, Oliver. Corra...
- Me deixe morrer... – Murmurou ao admirar o céu negro.
- É cedo, Oliver, é cedo para morrer... Lute, lute. – Suplicou a voz impaciente.
As gotas de chuva acertavam sua testa e desciam pelos cabelos, embrenhando na raiz até se juntar na lama
em que estava imerso. Lances de memória vieram-lhe a tona; Primeiro, estava em frente a um latão de lixo que
ateava fogo. Era noite e sentia frio, muito frio. Oliver passou os dedos no nariz, recolhendo o sangue que
escorria das narinas feridas. Depois, se via desferindo pancadas com um taco de baseball em um carro
estacionado. Também era noite e dessa vez havia mais quatro jovens consigo.
Por fim, se via dentro de um carro. Não lembrava direito dessa memória, por isso só viu fragmentos que
envolviam faróis altos, rodas derrapando sobre o asfalto e uma sensação de que planava, enquanto o carro
pairava sobre a inércia do ar ao cair na imensidão negra abaixo da ponte em que o veículo se encontrava.
“Morte.” Pensou Oliver. “Ele sempre está comigo...”
Viu de relance o cavalo negro empinando muito próximo a si. O cavaleiro, irritado, empunhou sua espada
para o alto.
- Saia daí! – Ordenou a voz de sua consciência.
Oliver ignorou-a.
- Saia do caminho! – Urrou a voz novamente.
O humano se assustou com a intensidade e clareza em que a voz adentrou sua mente. Era como se ela não
tivesse dentro de si, mas fora, como segundos antes na árvore. Levantou de supetão.
- Abaixe-se, idiota! – Ordenou-lhe mais uma vez.
Mais por impulso do que por vontade, Oliver abaixou-se. Atrás de si, o imenso corpo do cavalo negro de
Rai IV empinava mais uma vez, pronto para esmagá-lo com as duas patas dianteiras. Agora, olhando de perto,
Oliver percebeu o quão grandes eram aquelas criaturas. Sustou um grito e cobriu a cabeça com os braços,
sentindo o ar acima de si acertá-lo com violência.
Teve a impressão de ouvir um trovão. Não, não era um trovão, mas as patas do quinto animal que
acertavam o solo ao seu lado após saltar do meio da mata escura às suas costas. O cavalo de Rai IV trombou
para trás devido ao susto, esmagando a lateral de seu cavaleiro. O quinto animal relinchou; E se Oliver achou o
grito dos quatro cavalos assustadores, não conseguiu descrever o quão medonho aquilo se parecia.
- Você! – Gritou um dos cavaleiros. A essa altura, não havia como identificá-los, pois haviam recuado tão
rápido quanto um cão acuado. - O que faz fora de seu mundo?
- Esse é o meu mundo. – Rosnou o quinto cavaleiro por baixo do manto escuro, de uma leve tonalidade
roxa. – Esse humano é meu, sumam daqui!
Rai IV ergueu-se novamente do chão. Seu semblante humilhado explodia de raiva, no entanto nada vez
contra o outro ser. Não estava sobre sua montaria, por isso apenas abaixou o tronco e ajoelhou-se, baixando a
cabeça em sinal de respeito ao cavaleiro maior.
- Se esta é a sua ordem.
- Eu disse para sumirem!
Os outros três cavaleiros dispersaram-se num segundo, desaparecendo de vista na escuridão. Sequer o
trote de seus cavalos foi ouvido, abafados pela respiração da montaria do quinto cavaleiro e a chuva que ainda
lançava sua praga contra o solo. Rai IV baixou o olhar para o humano acocorado de costas no chão, encolhido
ao redor de si mesmo.
Teve a impressão de que ia dizer algo, mas manteve-se quieto. Montou a cela de seu cavalo e deu meia
volta, também desaparecendo entre as plantas.
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Hades Volume I – Terra Inversa
O quinto cavaleiro ainda permaneceu naquela posição por longos instantes silenciosos. Por fim, seu
cavalo recuou e saiu de cima de Oliver. O humano continuava abaixado e encolhido, de ouvidos apurados e
olhos fechados, escondidos em baixo dos braços.
- Abra seus olhos, humano. – Ordenou o cavaleiro.
Oliver achou que era sua consciência falando mais uma vez. Entretanto, o cavalo bufou próximo ao seu
ouvido, o acordando do choque.
- Me mate de uma vez, me mate! – Exclamou ao ficar de pé e recuar, assustado.
Notou logo que os demais cavaleiros haviam se dispersado, no entanto aquele continuava ali. De onde
viera? Um vazio preencheu seu interior ao reconhecer tal cavaleiro como o mesmo de seus sonhos. O cavalo era
idêntico; Enorme e de musculatura distorcida. O cavaleiro, grandalhão, apenas não tinha sua armadura à vista.
O manto recobria-lhe o rosto, os ombros e o dorso e parecia apenas um pouco mais arroxeado. Suas pernas
armadas, aliás, eram as únicas partes visíveis além das mãos enluvadas.
Por baixo de seu capuz a respiração de enxofre exalava um cheiro horrível.
- Oliver. – Dissera o cavaleiro.
Reconheceu a voz, mas não como a sendo a de seu sonho. Era a mesma da sua consciência, aquela que
viera lhe enlouquecendo todos os dias desde os quinze anos.
- Me obedeça se quiser viver. Cale a sua boca e talvez ainda viva mais uns dias... – Falou o quinto
cavaleiro. – Não sou seu amigo. Deve me temer, mas também me ouvir. Sua vida dependerá disso em três dias.
- Eu...
E antes que Oliver pudesse dizer mais uma palavra, o cavalo negro, cuja face deformada e feiosa estava
muito próxima, ergueu a pata e desferiu-lhe um coice topo da testa. Chegava a ser assombroso que um animal
de seu tamanho existisse. Então, tudo simplesmente apagou. Escureceu como se mergulhasse em um penhasco
escuro. Não havia dor nem lembranças naquele estado, como se simplesmente deixasse de existir.
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Hades Volume I – Terra Inversa
Capitulo 4 - 1704
Pesadelo. Outro pesadelo. Oliver esticou os braços e bocejou, encolhendo-se sobre a cama macia.
“Malditos pesadelos... Cada vez mais reais.” Pensou ao esfregar o rosto no travesseiro, preguiçoso.
Leprechauns, cavaleiros... Tais maluquices estavam afetando seu cérebro de forma irreal. Acomodou os braços
ao lado do travesseiro e sentiu a saliência de couro, do tamanho de um palmo. Tateou-a e, ainda de olhos
fechados, descobriu que se tratava de um saco. Enfiou os dedos no interior da bolsinha, sentindo a textura fria e
arredondada dos pertences ali depositados. Puxou um deles para fora e fitou-a, abrindo os olhos por fim. Era
uma moeda de ouro.
Sentou-se bruscamente na cama de lençóis brancos que não lhe pertencia, por sinal. Havia outros onze
catres como o seu, distribuídos no longo recinto de paredes amareladas e chão de lajotas reluzente, cujo cheiro
de desinfetante ardia no nariz. Puxou o braço e grunhiu quando a borboleta que o alimentava com soro soltou,
fazendo o líquido começar a pingar sobre o colchão fino.
“Uma ala hospitalar?” Pensou ao passar os dedos sobre a faixa que cobria toda a sua testa. Um ar fresco
adentrou a janela atrás de si, pois sua cama era a última e ficava ao lado da janela com cortinas de plástico. Lá
fora, o mato verde estreitava-se até o horizonte de morros baixos, as nuvens contornavam as árvores e
repousavam sua neblina esbranquiçada sobre o gramado. O sol ponderava absoluto no restante do céu
descoberto; Finalmente o temporal se fora. Alguns bancos de ferro azul desbotado jaziam abaixo das árvores
mais corpulentas, gabando-se das sombras frescas que cediam.
- Mas que... – Murmurou com a voz apagada.
Não conseguiu dizer mais nada. Voltou à atenção para a bolsa de couro, virando-a sobre os lençóis.
Tinham ao todo dez moedas de ouro, contando com a que pegara primeiro, tão reluzentes e puras quanto
pareceram na noite anterior. Todas idênticas a que Pierre lhe entregara no seu suposto pesadelo. Percebeu um
papel alojado no interior do saco e pinçou-o com dois dedos, desdobrando-o até conseguir a ler a letra
rabiscada.
“Obrigado por tudo. P. II.”
P. II. Não podia e nem deveria significar Pierre II. Juntou rapidamente as moedas como se estas
estivessem contaminadas e atirou-as para baixo do travesseiro, trêmulo. Vasculhou a mesinha de cabeceira ao
lado da cama, impaciente. Nenhum dos outros pacientes se movia ou faziam qualquer outra coisa que não fosse
repousar. Encontrou suas mudas de roupas limpas e dobradas, lençóis, sua carteira, seu relógio de pulso
estragado (pois não era a prova d’água) e um espelho.
- Não...
O espelho era o que Pierre carregava quando o conheceu. Juntou-o com a mão trêmula e fitou o seu
próprio reflexo. O vidro estava trincado, mas ainda sim conseguiu ver suas duas grandes olheiras cinzentas, um
corte abaixo do queixo e a faixa branca envolvendo sua testa. Puxou lentamente o tecido de gaze até que a pele
ficasse completamente visível: Um enorme hematoma em forma de uma fina lua crescente, como uma
ferradura, enfeitava sua cabeça com os tons roxo escuro, azulado, verde nas beiradas e, no mais, vermelho e um
pouco de amarelo. Sentiu-se um arco-íris, se não um tolo maluco.
Cobriu novamente a testa quando viu uma enfermeira entrando na ala. A mulher trajando roupas brancas
e uma toca transparente, que cobria os cabelos grisalhos, ergueu o rosto e encarou Oliver. Primeiro, com
surpresa. E depois com profissionalismo.
Andou em sua direção em passos calculados, depositando a bandeja repleta de pequenos frascos, ampolas
e seringas sobre o criado mudo de Oliver.
- Veja só, finalmente resolveu acordar Senhor...
Ela constou num papel fixado na prancheta sobre a bandeja.
- Cama doze... Senhor Oliver Drummond, e bem na hora de tomar sua medicação.
Oliver resumiu-se apenas a observá-la. A mulher apanhou um frasquinho do tamanho de um copinho de
uísque, numerado por um adesivo como 12, e juntou a palma de Oliver, despejando o conteúdo sobre ela.
- Parece que não precisaremos mais dos injetáveis a partir de hoje. – Comentou ela amável enquanto
recolhia o soro e limpava o braço de Oliver com um algodão embebedado em álcool. Deveria ter por volta dos
cinqüenta anos.
E estendeu para ele um copo com água. A jarra estivera o tempo todo sobre a cabeceira, apenas o humano
não a notara.
- Onde estou? – Perguntou assim que tomou os remédios sem questionar.
- No posto de saúde do Lami. Você foi encontrado desmaiado na beira da estrada por dois moradores da
região, eles o trouxeram para cá e o tratamos.
- Há quanto tempo estou aqui?
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Hades Volume I – Terra Inversa
A enfermeira, cujo nome Tereza estava no crachá, olhou no relógio de pulso.
- Quase um dia e meio.
- Um dia e meio. – Repetiu com o olhar catatônico. Sacudiu a cabeça e ergueu o travesseiro, mostrando a
bolsa de couro fechada. – De onde veio isso?
A mulher meneou a cabeça.
- Deve ser do senhor. – E recolheu a bandeira. – Vou chamar um médico para vê-lo.
- Eu posso usar algum telefone?
- Há um no final do corredor, mas acho que deve esperar um médico.
Oliver a viu sair e voltou a deitar-se na cama, puxando o lençol por cima das pernas pálidas. Usava
apenas um avental branco e quase transparente. Constrangeu-se ao perceber que estava nu por um triz.
Não demorou e médico veio lhe ver. Um homem negro, altivo e de seus quarenta anos. A barba curta e
esbranquiçada demais para a idade não combinava com seus olhos escuros e viçosos. Ele usava um jaleco
branco por baixo dos trajes comuns.
Usava também os óculos de grau sobre a cabeça de um modo engraçado.
- Olá, Oliver, me chamo Otto e serei seu médico por enquanto. Sente-se para que eu possa ouvi-lo.
Oliver não respondeu, apenas obedeceu. Ele tirou o estetoscópio do pescoço e auscultou o coração.
- Está saudável. – Resumiu-se ele em comentar. – Como vai sua cabeça?
Só agora o humano pode perceber a pequena dor, mas constante, no topo do ferimento em forma de meialua.
- Está bem. – Mentiu com o intuito de sair logo dali. – Quando poderei ir embora?
- Quanta pressa. – Resmungou Otto anotando algo na prancheta anteriormente presa aos pés do catre. –
Está certo de que não sente nada?
Sua cabeça pareceu doer mais de uma hora para a outra.
- Nós temos uma máquina de raios-X aqui em nosso Posto, cedida ano passado pelo governo federal.
Fizemos um exame de sua cabeça... Você já bateu a cabeça anteriormente?
Oliver encarou o médico.
- Isso é mesmo necessário?
Otto ergueu as sobrancelhas como resposta.
- Aos 15 anos sofri um acidente e bati a cabeça, sim. – Respondeu Oliver a contragosto. – Mas não foi
nada de mais.
- Nada de mais? – Questionou o médico plácido. – Você tem uma cicatriz no seu osso. Ele é um pouco
protuberante para dentro no lado direito do seu lobo-frontal. O céu cérebro se adaptou bem a isso, mas essa sua
nova batida foi muito próximo a essa cicatriz. Não temos a aparelhagem adequada aqui para dar um diagnóstico
exato, mas eu acho que você deva fazer uma bateria de exames cerebrais para verificar o estado de sua cabeça,
Sr. Oliver.
“Durante o tempo em que permaneceu sedado o senhor não parou de dizer coisas desconexas e sem
sentido. Coisas como “Hades está vindo”, “Tenho que salvar os Leprechauns” ou não parou de descrever um
cavaleiro de capa roxa. Não sei por que tipo de problemas está passando, mas me preocupo com a sua sanidade
mental. Há algum histórico de distúrbio mental em sua família?”
Oliver não respondeu de imediato. Seu coração batia acelerado; Subitamente seu rosto enrubesceu só de
pensar na idéia das pessoas descobrirem o que passou nos últimos dias. Agradeceu por todos na ala estarem
dormindo. Quando a abriu a boca para responder, as palavras ficaram entaladas na garganta. “Sim, doutor Otto,
minha mãe tem esquizofrenia grave e não faz nada sem uma enfermeira. Antes era fácil de lidar, mas depois que
meu pai morreu por um acidente que eu forcei... Ela piorou.” Respondeu mentalmente. Sorriu irônico diante do
pensamento.
- Não, não tenho.
Otto comprimiu os olhos com as mãos.
- Vou lhe dar requisições para que faça esses exames. Por enquanto está tudo fisicamente bem, mas não
temos certeza do que poderá se proceder nos próximos dias. Você ouve vozes? Vê coisas anormais? Tem algum
tipo de pensamento caótico?
Oliver meneou a cabeça negativamente.
- Sou perfeitamente normal...
- Hmmm. E como ocorreu seu acidente atual?
“Levei um coice de um cavalo negro, cuja montaria parecia um demônio de lata.” Pensou.
- Não sei. Eu só consigo lembrar que meu carro estragou e eu caminhei pra buscar ajuda. Começou a
chover forte... Talvez um granizo tenha acertado a minha cabeça, vai saber. – E deu de ombros após mentir tão
explicitamente. – Já posso ir?
Otto riu, sem graça.
- Precisamos de mais seis horas de observação. Até o final do dia pode ir, mas eu insisto que faça os
exames. Tereza disse que você queria usar o telefone... Ele está no final do corredor. É só sair da ala e virar à
direita, vai enxergá-lo sem dificuldades.
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Hades Volume I – Terra Inversa
- Agradeço sua ajuda, doutor. – Disse Oliver, solene.
E, assim que ficou só novamente, tratou de buscar um banheiro. Pôs as roupas e os pertences, inclusive
alojando a bolsa de couro com as moedas nos bolsos. Deixou a ala quando o corredor de lajotas brancas e
amareladas estava vazio, deslocando-se agilmente até o telefone azul embutido na parede. Discou rapidamente
um número de telefone. Precisava sumir daquele lugar antes que o enfiassem num manicômio.
Oliver esperou longas duas horas, sentado sobre o banco verde enferrujado, abaixo da sombra fornecida
pelo teto metálico da parada de ônibus. Havia deixado o hospital após pular a janela. Não tinha tempo para
coisas supérfluas como sua saúde, estava bem e sentia-se melhor ainda. Um pouco enjoado e com dor de
cabeça, talvez, mas sobreviveria. O doutor Otto tinha que entender que Oliver possuía uma mãe esquizofrênica,
contas de uma casa e o salário de uma enfermeira que dependiam dele.
Quando o pequeno fusca rosa surgiu na estrada de asfalto coberta por terra seca, Oliver levantou de
sobressalto.
- Finalmente. – Murmurou com a boca seca. Desejou um copo de água mais do que nunca.
O veículo estacionou em frente à parada. Não havia ninguém em volta além do mato alto, um armazém de
fachada gasta e a carcaça de um carro velho envolta pelo mato selvagem, logo ao lado. Oliver abriu a porta e
entrou, forjando uma expressão séria.
- Oliver! Por onde você andou? – Questionou a mulher, preocupada.
Seu nome era Anne e seu olhar amigo. Deveria ter a mesma idade de Oliver, cabelos cor de mel, lisos até
um pouco abaixo do ombro e olhos verdes como o oceano. Seus lábios rosados comprimiram-se, formando uma
linha fina reprovativa. Tinha a pele clara e trajava sempre roupas leves, como uma calça jeans clara, uma blusa
de algodão bege e sandálias abertas. Era bonita, entretanto não atraia Oliver de nenhuma forma. Talvez não
houvesse espaço para uma mulher em sua vida conturbada, por isso não desenvolvia seu lado romântico.
- Fui roubado. – Mentiu ele. O tempo ocioso de duas horas lhe dera a oportunidade de elaborar uma
estratégia para embromar a todos. – E bati a cabeça, mas estou bem. Obrigado por vir me buscar e desculpe
interromper seus estudos, mas não tinha ninguém mais a quem recorrer.
- E pensar que você não gosta desse fusca. – Comentou ela, rindo. – E está melhor?
Oliver apalpou a faixa.
- Sim, estou bem. Vamos embora de uma vez desse lugar... Não agüento mais um instante aqui. Vou fazer
um boletim de ocorrência quando chegar a Porto Alegre. Como está Cecília?
Anne deu meia volta com o fusca e seguiu pela mesma estrada que viera.
- Está como sempre, fui vê-la hoje de manhã. Os medicamentos estão acabando e eu não estou gostando
de sua temperatura. Acho que está com uma virose. – Anne era a enfermeira que Oliver contratara para cuidar
de sua mãe enquanto estudava e trabalhava. – Me admirei por não tê-lo visto lá.
A viagem foi silenciosa. Oliver não gostava de falar e nem Anne fazia perguntas, talvez por isso gostasse
um pouco da mulher. O tempo fora ensolarado e fresco, devido à chuva que caíra no dia anterior. Uma brisa
agradável entrava pela fresta da janela do fusca. A estrada também se encontrava vazia, mais do que o comum.
- Que tempo louco, não? – Perguntou Anne quando já se encontravam próximo a Porto Alegre.
Havia construções grandes e antigas de fábricas ao redor da estrada. No entanto, era apenas uma aqui e
outra ali. Veículos circulavam pelos dois lados da pista naquele trecho, aglomerando mais volume de veículos.
O trecho que percorriam era um pouco íngreme e perigoso, devido aos maus tratos da via, mas Anne dirigia
com cuidado e velocidade reduzia. Seu fusca também não era condicionado a grandes corridas.
- Você nem imagina como esse mundo é louco. – Devaneou Oliver apalpando o bolso e juntando a
bolsinha de couro.
E se estivesse mesmo fora da casinha? Então o que diabos o ferimento do casco fazia em sua cabeça e o
ouro em seu bolso?
- O que é isso? – Perguntou ela interessada.
- Nada de mais, apenas algumas bugigangas.
Sabe-se lá quanto dinheiro conseguiria com aquele ouro. O suficiente para pagar o salário de Anne, a
mensalidade da faculdade e as contas atrasadas. Seria o fim de suas dívidas? Não deixou de pensar em Pierre e
Marlyn. Lembrava muito bem de suas fisionomias, mesmo que a cabeça doesse a ponto de incomodar sua
concentração. Ouviu um zumbido distante. Pensou que fosse de sua mente...
- Como vão os estudos? – Perguntou Oliver enfiando o dedo na orelha para ver se aliviava o som
semelhante ao zumbido de uma abelha.
- Vão bem! Meu curso de enfermagem deve terminar no próximo semestre, estou empolgada com as
expectativas. Sempre quis trabalhar em um hospital, mas como nunca tive vocação para medicina, creio que
realizarei meu propósito de ajudar pessoas.
Oliver ajeitou-se no banco felpudo. O som estava ficando mais alto, por isso deu um tapinha em sua
orelha e pigarreou, olhando para fora.
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Hades Volume I – Terra Inversa
- Que bom. – Disse Oliver alto, mas não percebeu que o zumbido estava tão ensurdecedor a ponto de
fazê-lo gritar. – Seus pais devem estar orgulhosos.
- Minha mãe está... – Respondeu ela estranhando o comportamento do outro. – Porque está gritando?
- O que? – Questionou alto olhando para ela. – É esse zumbido que não me deixa ouvir direito!
Oliver olhou para o rádio e notou que estava ligado.
- Como se desliga isso?
- Que zumbido? – Perguntou Anne. – O rádio não funciona, Oliver!
Ele riu, cínico. A brincadeira estava perdendo a graça. Começou a apertar os botões do painel do rádio
estragado e uma série de números acendeu-se atrás da pequena tela negra. O número 1704 estampou-se por fim.
O chiado tornou-se mais inquieto, mas reduziu gradativamente.
- Atenção, torre de comando... – Disse uma voz metálica distante proveniente do rádio.
Oliver fitou o aparelho. O chiado não permitia que ouvisse com clareza.
- Atenção, aqui quem fala... Vôo 170... üestro... ora de ...Ole. – Dizia a voz freneticamente. – indo...
- O que é isso? Não conheço essa estação. – Questionou Oliver.
Anne olhou para o rádio, sem compreender. Não estava ouvindo nada.
- Você... – Oliver fitou-a preocupado. – Não está ouvindo?
Anne meneou a cabeça, receosa. Os chiados do rádio alternaram-se. Teve a impressão de ouvir um
estouro e um grito.
- Indo... amos... caindo.... – Dizia a voz um pouco mais histérica. – Orro... Socorr...
Oliver desferiu um soco no rádio, partindo-o quase ao meio. Respirava ofegante e ao mesmo tempo
tentava se controlar. Anne estacionou o veículo no acostamento e virou-se completamente para o amigo.
- Oliver! O que está acontecendo?
E o chiado não parou. Oliver cobriu os ouvidos.
- Torre de controle... – Repetiu a voz uma última vez.
O som ficou mais claro e opaco, revelando-se não estar dentro de sua cabeça. Ignorou Anne e virou-se
lentamente para trás, olhando diretamente para o avião que descia onipotente do céu. Sua velocidade embalada
cortava o ar com voracidade, fazendo o ruído que Oliver viera ouvindo. Sua carcaça de Boeing balançava ora
para um lado, ora para o outro. Uma fumaça escura desprendia-se de sua hélice da turbina direita, proveniente
do fogo que queimava sobre sua asa branca. Estava próximo, muito próximo... E vinha para o chão, em sua
direção.
Oliver arregalou os olhos. Ninguém além dele parecia ver. Abriu a porta do carro e saltou para fora,
parando ao lado veículo. Haviam outros veículos rodando pela rodovia, pessoas trabalhando nas industrias e
armazéns próximos. E ninguém via! Ninguém parecia perceber o tremendo Boeing descer do céu como um
cometa.
- Corram! – Gritou Oliver inutilmente, pois o ar faltou-se do pulmão.
Caiu de joelhos e pôs as mãos na cabeça. O avião contorceu-se para o lado e sua asa mergulhou sobre o
asfalto da avenida, erguendo carros, poeira e destroços para o alto. E ele veio em sua direção enorme,
assustador. O calor emanado por suas turbinas acertou-lhe o rosto e depois, quando a frente do avião mergulhou
no chão, pode sentir o tremor com mais clareza. O chão tremeu e o tempo pareceu parar. No instante seguinte, o
avião explodia, engolindo a estrada, as árvores e tudo mais ao redor e a ele.
O fusca desapareceu em pleno ar, transformando-se em uma maçaroca em chamas. Cobriu o rosto com os
braços e mesmo assim não impediu que o fogo o queimasse até os ossos. Primeiro a pele, depois os músculos.
Conseguia ver, conseguia sentir a dor em seu mais íntimo. Gritou como pôde, mas nenhum som escapou de seus
ossos.
- Oliver! – Gritou Anne sacudindo-o.
Oliver abriu os olhos e respirou fundo, tão fundo quanto seus pulmões conseguiram. Suava frio e um
filete de sangue escorria de sua orelha esquerda. Empurrou Anne instintivamente para trás e citou-se; Estava
dentro do fusca estacionado no estacionamento. Não havia zumbido, nem fogo. Olhou para trás e também não
viu avião nenhum. Fora só um pesadelo.
Respirou fundo por longos instantes.
- Tudo bem? – Perguntou Anne, pálida. – Você começou a gritar como um louco enquanto dormia!
- Desculpe. – Pediu ele, atordoado. – Foi um pesadelo... Ando tendo-os com freqüência ultimamente.
- Quem é Hades?
Oliver a encarou. Teria gritado isso também? Deu apenas de ombros e ela aceitou incerta sua resposta,
voltando a dirigir.
- Só um pesadelo. – Repetiu num sibilo de lábios sem som.
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Hades Volume I – Terra Inversa
Continua...
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