o mito de La Malinche em Paletitas de Guayaba

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o mito de La Malinche em Paletitas de Guayaba
Cadernos de Lerras da
UFF- Alunos
da Pós-Graduaçio 2003,
105
n.28,
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Viajantes e t ra dutoras :
o mito de La Ma/inche em Paletitas de Guayaba
Carla de F igueiredo P o rtilho
REsUMO
O ato de viajar tem sido marcado, ao longo dos séculos, por questões de gênero, classe, raça
e cultura. À medida que os relatos e diários de viagem tornaram-se comuns, em especial
durante o século XIX, a ação de viajar foi legitimada pelo discurso dominante como
essencialmente masculina, branca e européia. Com base no conceito de James Clifford
( 1 997), de que "viajar é traduzir", este ensaio buscará discutir como o romance Paletitas de
Guayaba, da escritora chicana Erlinda Gonzáles-Berry, faz uma contra-escritura dos relatos
de viagem tradicionais, de origem anglo-saxônica, por meio da narrativa de viagem de uma
jovem chicana ao México, em busca de suas origens, e da releitura do mito de L a Malinche,
a intérprete e amante indígena do conquistador Hernán Cortés.
Que procuras? Tudo. Que desejas? Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.
( Cecília Meireles .Despedida,
1 942)
Digo alô ao inimigo,
encon rro um abrigo
no peiro do meu rraidor
(Cazuza,. Faz parte do meu show,
O
1 988)
ato de viajar tem sido marcado, ao longo dos séculos, por questões de gênero,
classe, raça e cultura.
À medida que
os relatos e diários de viagem tornaram-se
comuns, em especial durante o século XIX, a ação de viajar foi legitimada pelo
discurso dominante como essencialmente masculina, branca e européia. Conceituada por
um ponto de vista positivo como exploração, pesquisa, evasão e encontro transformador,
uma viagem era algo que deveria ser feito por h omens, e esses viajantes eram basicame nte
representantes da burguesia, ligados à literatura ou à ciência, e de origem ocidental
(Clifford, 1 997: 3 1) . Para os homens, viajar era considerado heróico, educativo, científico,
aventureiro e enobrecedor. Poucos são os registras históricos e antropológicos onde constam
lCXí
PORTILHO , Carla de Figueiredo.
Viajanres e rraducoras: o mico de
La Malinche
em . . .
viajantes mulheres - e geralmente como acompanhantes, salvo raras exceções. Acredita-se,
entretanto, que o número real de mulheres que voluntariamente empreenderam longas viagens
não tenha sido registrado , uma vez que a atividade não era considerada adequada a uma
"dama" - leia-se uma mulher branca de origem burguesa - pelos discursos e práticas dominantes.
Viajar i mplica colocar culturas diferentes em contato. O viaj ante, ao ser exposto a
uma cultura distinta da sua, não a apreende de forma isenta, mas com base em seus pró­
prios conceitos, nos cami nh os que já trilhou. O movimento e o i ti nerário percorrido
tornam-se assim fundamentais para o estudo de culturas, para a compreensão de que as
culturas não são estanques, mas modificam-se constantemente pelo contato umas com as
outras. Ainda segundo James Clifford, "viagem é um termo para tradução " . D esta forma,
o viajante torna-se um tradutor (e i mplicitamente um traidor, ao menos segundo uma
antiga frase italiana que diz Tradu ttore, tradito re, livremente traduzida como "o tradutor
é um traidor") que aprende sobre povos e h istórias diferentes dos seus própri os e traduz o
que experimenta de uma cultura para outra. Os relatos e histórias de viagem, vistos sob
essa ó tica, não são documentos imparciais, já que trazem no seu âmago o olhar estrangeiro,
mas constituem importantes mei os de co nexão entre culturas.
O termo viagem tem sido usado comumente em um contexto europeu, masculino,
burguês, literário , científico, h eróico e recreativo. Tal uso se restringe à típica viagem
burguesa, fei ta de fo rma voluntária, e marginaliza outros tipos de deslocamento, como
aqueles feitos co ntra a vontade do viaj ante. No primeiro caso, p oderíamos usar o termo
viaj ante p raticamente como um sinônimo para turista, embora haja uma distinção sutil ­
o olhar do turista é exotizante, ao passo que consideramos genuinamente viajante aquele
que p rocura se i n tegrar, i mergir na cultura com a qual entra em contato 1 • O segundo caso
tem como exemplo extremo o tráfico de escravos emp reendido durante a colonização das
Américas - uma ativi dade que deslocava populações africanas inteiras das suas terras de
orige m - mas i nclui também as migrações e imigrações feitas h oj e em dia por motivos
eco n ô micos e p olíticos.
A noção de que o viajante é um tradutor que faz uma ligação entre duas culturas, mas
não necessariamente um homem de origem burguesa européia viajando p o r sua própria
vontade, encontra respaldo na h istória de Malin rzin, La Malincbe ou Dona Marina, per­
sonagem da História do M éxico que se tornou uma figura mítica tanto para os mexicanos
quanto para os chicanos2•
B em p ouco se conhece da verdadeira história de Malintzin. Não se sabe ao certo nem
mesmo o seu verdadeiro nome. A figura da nobre asteca que supostamente traiu o seu povo ao
tornar-se intérprete, amante e sobretudo aliada do conquistador espanhol Hernán Cortês na
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empreitada de tomar a capital asteca Tenochtitlán é ainda hoje uma personagem contro­
versa. N os registres históricos como, por exemplo, as cartas de Cortés ao Rei de Espanha
ou os relatos de Berna! D íaz dei Castillo (Firch, s.d.) , co nsta a existência de uma certa D o na
Marina, uma personagem de fundamental importância na conquista do território i ndíge­
na mexicano; i n térprete asteca de Cortés, ela recebeu este n o m e cristão ao ser batizada
pelos espanhóis. Entre os seus compatriotas e ra chamada Malin tzin , um n ome que tem
duas possíveis o rigens. Uma vertente diz que este seria o n o m e que ela recebeu de sua
família ao nascer e lhe atribui n ome e sob reno m e : Malin tzin Ten epal (Alarcón, 1 9 94: 1 1 01 1 2). Outra vertente defende a idéia de que não se sabe o seu n ome o riginal e explica que
Malintzin seria o equivalente nah uátl (língua asteca) para o termo D ona Marina.
Nascida em uma família de nobres astecas, governantes da região de Paynala, Malintzin
recebeu educação condizente com a sua posição social. Quando seu pai morreu, no entan­
to, sua mãe casou-se novamente e teve um filho. D ecidida a torná-lo seu único herdeiro e
a evitar disputas pela herança e poder aos quais M al i n tzin teria direito como filha do
primeiro casamento, sua mãe forj ou sua morte e vendeu-a como escrava aos maias Xicalango
que, por sua vez, a ofereceram à tribo Tlaxalteca, prove n iente da região de Tabasco. Ao
t o rnar-se uma escrav a , M al i n tzi n t o r n o u- s e tam b é m u m a v i aj a n t e , a i n d a que
involuntariamente, e deixou sua Paynala natal em direção a Tabasco. Por conta dos suces­
sivos deslocamentos territoriais a que foi submetida em sua n o va c o n dição, ela, ainda
muito j o vem, teve contato com n ovas tribos e culturas, desenvolvendo assim sua capaci­
dade lingüística para o aprendizado de n ovos idiomas. Ma!intzin aprendeu diversos diale­
tos locais, que passou a dominar j untamente com o seu Nahuátl nativo e o chon tal, língua
maia usada na região do Yucatán , onde viviam os Tlaxaltecas (Firch, s.d.).
Quando Malintzin contava 14 anos , os con quistadores espanhóis chegaram a Tabasco,
onde obtiveram sua primeira vitória significativa em terras mexicanas. Ela foi-lhes então
oferecida como presente, i ntegrando um grupo de vinte moças, todas batizadas com no­
mes cristãos e distribuídas en tre os oficiais da confiança de H ernán Cortés. M alintzin
tornou-se então Dona Marina e foi destinada a um dos oficiais, Alonzo Puertocarrero.
Seus talentos lingüísticos foram logo percebidos e utilizados pelos conquistadores e quan­
do P uertocarrero partiu para a Corte como enviado ao Rei Carlos V, Cortés tomou-a para
si também como amante, além de tradutora e intérp rete.
Ao apertarem na região maia, os conquistadores espanhóis haviam resgatado um
padre, também espanhol, Jerónimo de Aguilar, que havia naufragado na costa de Cozumel
e há anos era mantido como escravo pelos indígenas. Ele era capaz de se comunicar tanto
em espanhol quanto na língua maia, o que o to rnara o primeiro i n térprete de Cortés.
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O p róximo desti n o da expedição espanhola e ra a região asteca governada por
Montezuma, onde se falava N ahuátl, língua desconhecida para Aguilar. Cortês, conhece­
dor da grande habilidade lingüística de D oíí.a Marina, que era capaz de falar e entender não
apenas nahuátl como também outros dialetos, concedeu-lhe posição de destaque na con­
quista. Ele não somente a tornou sua tradutora e intérprete oficial, mas também o uvia
seus conselhos. O processo de tradução era a princípio bastante lento, uma vez que ela não
dominava o espanhol. Cortês se comunicava com Aguilar em espanhol, este falava com
Marina em Chontal e ela traduzia para o dialeto necessário na ocasião. Uma vez estabelecida
a comun icação, dava-se o p ro cesso inverso: ela traduzia do dialeto local para o chon tal e
Aguilar para o es panh ol. Logo, no entanto, ela aprendeu a comunicar-se em espanhol e o
processo to rnou-se mais ágil. Ela tornou-se conhecida entre os soldados espanhóis como
la lengua, a trad utora, que se postava ao lado de Cortês não apenas traduzindo o que era
dito, mas também i nserindo conselhos a ambas as partes, convencendo muitas tribos a se
entregarem sem luta, buscando acordos diplomáticos e alianças sempre que possível (Firch, s/d).
D oíí.a Marina fo i um fator-chave para o sucesso da expedição espanhola, segundo
relatos de D íaz del Castillo e do próprio Cortês. Em frases como "Sem a ajuda de D oíí.a
Marina nós não haveríamos entendido a língua da Nova Espanha e do México" e "Após
Deus, nós devemos essa conquista da N ova Espanha a D oíí.a Marina"3 (Firch, s.d.), fica
claro que a estratégia usada para destruir o império asteca dependia em grande parte da
capacidade de Cortês de comunicar-se com os seus adversários e, por extensão , da capaci­
dade de Malintzi n , la lengua, de traduzir para os conquistadores.
Um exemplo da eficácia dessa estratégia foi a tomada da capital asteca, Tenochtitlán,
hoje Cidade do México. Ao aproximar-se da capital, Cortês enviou mensageiros ao impe­
rador asteca, M o ntezuma, declarando que chegava em paz e desejava visitá-lo apenas para
apresentar os cumprimentos do seu próprio monarca, o Rei de Espanha. Tal atitude cau­
sou grande indecisão a M ontezuma, que recebeu os espanhóis na capital, influenciado não
apenas pelas mensagens de paz, mas também pela crença de que os espanhóis seriam deu­
ses que haviam prometido um dia voltar ao povo asteca pelo mar. O próprio Cortês se
assemelhava fisicamente às descrições de Quetzalcóad, o grande deus asteca. A recepção oferecida
aos supostos deuses abriu caminho para o aprisionamento de Montezuma, o ataque-surpresa
e o subseqüente massacre de pessoas desarmadas no principal templo de Tenochtidán, fato
que marcou o fim da primeira fase da conquista do Império Asteca (Firch, s/d).
Os espanhóis, aparentemente em desvantagem, pois lutavam em território desconhe­
cido e em condições adversas, eram , en tretanto, superiores em tática e tecnologia, o que
lhes conferia sup remacia militar geral. Contavam - além da valiosa aj uda de D o fia Marina,
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sem a qual a estratégia de tomada de Tenochtidán teria sido inviável - com o uso de
cavalos (animais desconhecidos pelos astecas) e armas de fogo, contra as lanças de madeira
dos guerreiros de M o n tezuma. Além disso, entre as tropas espanh olas havia soldados con­
taminados por doenças como a varíola, que rapidamente dizimaram parte da p o p ulação
nativa. P ode-se considerar que os espanhóis não teriam tido tantas chances de sucesso caso
M ontezuma h ouvesse ordenado um ataque imediato às tropas estrangeiras que se aproxi­
mavam de Teno chtitlán, fato que p ossivelmente teria o co rrido caso C ortés não pudesse
confiar n os p réstimos lingüísticos de Dofia Marina.
La Malinche passou à História do México como uma traidora. Aliando-se ao con­
quistador e permitindo a comunicação entre espanhóis, maias e astecas, p oderíamos con­
siderar que ela realmente facilitou a conquista do território indígena mexicano pelos espa­
nhóis. S ua missão consistia em traduzir as palavras que eram ditas, mas ela também inseria
conselhos e explicações que contribuíram para a transição de uma cultura indígena, prin­
cipalmente asteca e maia, para uma cultura que mesclava características indígenas a carac­
terísticas espanholas.
Ao mesmo tempo , é impo rtante ressaltar que ela não escolheu j untar-se a Cortés,
mas foi-lhe oferecida como um presente, uma escrava, alguém que deveria servir-lhe e
cuja vontade a p rin cípio não seria reconhecida nem levada em consideração. Além disso,
também é fundamental lembrar que era grande o interesse espanhol em subj ugar os povos
indígenas e dominar as terras mexicanas. Assim, caso a missão de C o rtés não lograsse
êxito, apesar da superioridade bélica de que dispunham e do apoio diplomático e lingüístico
de Dofia Marina, a Espanha p rovavelmente enviaria sucessivas expedições conquistadoras
ao M éxico até alcançar seu obj etivo.
Além de sua crucial importância como intérprete e mediadora para a vitória espanh o­
la, La Malinche cumpriu um outro papel que também marcaria p rofundamente a história
do p ovo mexicano - o de amante de Co rtés. Os con quistadores espanhóis vieram para a
América sem a companhia de suas esposas, p ois n ão era comum entre as mulheres da
época empreender tal tipo de viagem aventureira. Esse fato muito contribuiu para a mis­
cigenação que teve lugar em terras mexicanas. Ao t ornar-se mãe de um filho , Martín, cuja
paternidade foi reconhecida pelo conquistador, La Malinche t ornou-se simbolicamente a
mãe do povo mexicano mestizo, a fundadora de uma n ova raça, de uma nova nacionalida­
de, não mais espanhola ou asteca, mas mexicana.
Ainda h oj e , La Malinche é uma personagem histó rica vista de forma paradoxal. S ua
importância simbólica transcendeu sua existência histórica e ela tornou-se uma figura mítica
para mexicanos e chicanos, os quais, no entanto , não compartilham de um mesmo ponto
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de vista. Os mexicanos, partidários da visão tradicional (que ganhou força durante o
movimento de i n dependência do México, no século XlX) , a consideram realmente uma
traidora, aquela que entregou seu p ovo aos conquistadores, "uma metáfo ra cultural para
tudo o que h á de errado com o México" (Krauss, 1 997) . O próprio adjetivo malinchista
guarda conotação pejorativa - é usado pata designar aquele que trai o seu povo, e hoje se refere
principalmente aos mexicanos que têm uma estreita ligação com o estilo de vida anglo-americano.
A visão expressa por Octávio Paz ( 1 959)em seu ensaio " Los H ij os de La Malinche" é o
ponto de partida para praticamente todas as revisões que foram feitas do mito de La Malinche
a partir do M ovimento Chicano. A teórica e crítica chicana No rma Alarcón ( 1 994: 1 1 4), em
seu ensaio "Traddutora, traditora: a paradigmatic figure of chicana feminism " , mostra
que Paz foi o p rimeiro a subverter o mito tradicional de La Malinche e não considerá-la
uma traidora. Malintzin seria simplesmente a mãe primi tiva do p ovo mexicano , aquela
que deu origem a uma nova raça - ainda que essa origem seja considerada "impura" , já que
a mãe teria sido violentada pelo conquistador. Seguindo essa linha de raciocín i o , Paz
argumenta que as p róp rias origens mexicanas são baseadas na conquista, opressão e
ilegitimidade. D esse modo, La Mal inche torna-se parte integrante do imaginário mexicano
- romper com esse mito seria romper com o passado e negar as próp rias origens.
M i tos e histó rias heróicas são i nstrumentos comumente usados pelas culturas para
criar modelos a serem seguidos, diferenciar comportamentos corretos dos incorretos, trans­
mitir valores m o rais e identificar características consideradas desejáveis por um determi­
nado grupo. Quando os mitos existentes não correspondem aos valores que se deseja
transmitir, torna-se necessário então escolher um entre dois possíveis caminhos: criar um
novo m ito que atenda à demanda ou imbuir os modelos existentes de traços e caracterís­
ticas às vezes radicalmente diferentes dos originais (Rebolledo, 1 995: 49).
Seguindo esse raciocín i o , as escritoras chicanas - sobretudo a partir dos anos 80
-
começaram a revisitar mitos j á existentes, como o de La Malinche ou o de La Llorona,
por exemplo , em b usca de arquétipos que corresp ondessem à demanda por figuras fem i­
ninas p ositivas, ativas e e nérgicas. Assi m , a leitura feita pelas mulheres chicanas do mito
de La Malinche vai além dos aspectos mais superficiais da história e subverte a idéia de
conotação machista perpetuada pela tradicional interp retação mexicana.' De acordo com
Rebolledo, La Mal inche torna-se uma personagem a ser não apenas redimida, mas tam­
bém transformada (Rebolledo, 1995: 64).
Ainda segundo a visão tradicional, traduzir para Cortés, facilitando o trabalho de
conquista, e gerar um filho dele, dando i nício a uma nova raça, teriam inscrito o nome de
Malintzin na H istória defini tivamente como uma " tradutora, traidora" - aquela que tra-
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duz é também a que trai o seu povo, não apenas entregando-o nas mãos do conquistador
para que seja escravizado, mas também gerando um filho que dará origem a um povo
amaldiçoado, marcado pela traição. Norma Alarcón explica como os conceitos de tradu­
tora e traidora se fundem na figura de La Mal inche:
Malinrzin suscita um fascínio misturado com asco, suspeita e tristeza. Como tradutora, ela
é a mediadora entre culturas anragônicas e contextos históricos. Se presumirmos que a
linguagem é sempre, de cerro modo, metafórica, enrão qualquer discurso, oral ou escrito,
pode implicar traição quando se nora que ele vai além de repetir o que a comunidade
percebe como conceitos, imagens ou narrativas " verdadeiros" e/ou "autênticos". O ato de
traduzir, que freqüentemenre introduz conceitos e percepções diferenres, desloca o conhecimento
local e pode até mesmo lhe ser violento por meio da linguagem. (Alarcón, 1994: 1 1 3)
No mesmo ensaio, Alarcón tece alguns comentários sobre um poema do romancista e
poeta mexicano José Emilio Pacheco, intitulado Traduttore, traditore, que também ajudam a
compreender melhor a questão:
Os tradutores, que usam a linguagem como agente mediador, têm a habilidade, conscienre
ou inconsciente, de distorcer ou converter o evento, a emissão, o texto, a experiência
"originais", tornando-os assim falsos, "impuros". ( ... ) Ao traduzir, converter, transformar
uma coisa em outra, inrerprerar (todos significados sugeridos pelo dicionário) o "original",
a conexão supostamenre clara entre palavras e objetos é rompida e corrompida. A corrupção
que tem lugar por meio da mediação lingüística pode tornar o falante um traidor no pomo
de vista dos outros - não simplesmente um traidor, mas um traidor da tradição representada
no evento, emissão, texto ou experiência "originais". (Alarcón, 1 994: 1 1 6-1 1 7 )
Ainda na visão de Alarcón, Malinrzin é considerada uma traidora porque assume
uma postura própria, independente do seu papel de mãe. Essa postura era vista como uma
catástrofe, pois uma mulher da época só teria permissão para articular suas necessidades e
desejos em nome de seus filhos, e não em seu p róprio. Por falar em seu próprio nome, ela
seria uma traidora também da função primordial da mulher - a maternidade. (Alarcón, 1 994: 1 1 3)
Durante o Movimento Chi cano, muitas mulheres fo ram rotuladas malinches ou ven­
didas apenas por tomar parte ativa no Movimento, demons trando que buscavam trans­
formar seus papéis culturais, o que gerava um conflito com a obrigação social de desem­
penhar um papel feminino tradicional. Seus maridos e os homens chicanos em geral p res­
supunham que elas deveriam ficar em casa cuidando dos filhos, cabendo a eles participar
de marchas e p rotestos. Na visão masculina, o povo chicano sofria op ressão por igual; na
visão feminina, entretanto, a mulher era oprimida não apenas pela sociedade anglo-ameri­
cana, por ser chicana, mas também por seu povo, por ser mulher.
Tal situação contribuiu para que várias escritoras chicanas ficassem fascinadas pelo
mito da mulher que transgrediu sua cultura e procurassem reler o mito, vingando La Malinche.
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O ato de escrever em si - o uso da linguagem , a produção de literatura - poderia implicar
uma traição aos valores tradicionais, por envolver escolhas interpretativas e não apenas
mera repetição. P o r meio de sua revisão, as chicanas buscavam uma ruptura radical com a
tradição , legitimando o seu discurso com base na reapropriação do m i t o da Malinche a
partir dos escritores mexicanos e da tradição oral chicana. Assim, elas deram voz a Malinche,
transformando-a em um suj eito autón omo (Alarcón, 1 994: 1 1 8).
S ua habilidade de traduzir para C o rtés é considerada de fundamental importância
entre as chicanas, uma vez que elas compartilham desse ir e vir consciente entre duas
línguas e duas culturas. Assim como La Malinche foi acusada de hispanizar a cultura indí­
gena, a comunidade chicana carrega o peso da acusação de anglicizar a c ultura mexicana.
Mudam as fro nteiras e culturas, permanecem as viajantes e tradutoras que se identificam
com a figura da mediadora entre uma cultura dominante e uma cultura nativa que luta
para resistir à dominação . La Malinche transitava entre a cultura espanhola que se i mpu­
nha aos povos indígenas conquistados e a cultura nativa que b uscava sobreviver, enquanto
as
chicanas transitam entre a cultura anglo-americana dominante e a cultura chicana, composta
por elementos espanhóis, mexicanos e indígenas, que luta bravamente para manter sua voz.
Torna-se difícil para muitas chicanas compactuar com a visão que considera La Malinche
culpada por todos os males que afligem o México, traidora do seu povo e da sua raça. Uma
mulher que é ven d i da como escrava pela p rópria família e o ferecida como p resente aos
con quistadores seria antes também uma vítima dos algozes que dizimaram o seu povo, ao
invés de cúmplice da conquista. Apesar desse contexto, no entanto, as escritoras chicanas
não vêem a figura de La Malinche como uma vítima passiva dos acontecimentos. O prin­
cipal ponto de ruptura com O ctávio Paz é exatamente o confronto entre a visão da mulher
apresentada por ele - sexualmente passiva, violentada pelo conquistador - e a visão chicana,
na qual ela é considerada uma mulher que exerceu o seu direito de escolha e optou pelo
cam i n h o da sobrevivência. Ao aliar-se a C ortés, traduzir para ele e possibilitar a negocia­
ção entre os conquistadores e as tribos em lugar da matança indiscriminada, ela teria salvado
milhares de vidas e evitado uma aniquilação ainda mais completa das trib os indígenas do
México (Rebolledo, 1 995: 64-65).
A visão defe ndida p o r Rebolledo quanto à posição de La Malinche como uma mu­
lher que fez escolhas encontra críticas n o ensaio de Norma Alarcón já previamente menci­
onado. Em relação a Adelaida R. dei Castillo, outra escritora chicana que defende esse poder
de escolha, diz ela:
Na realidade, toda a noção de escolha, urna noção existencialista da filosofia anglo-européia
do século XX, precisa ser problematizada a fim de se compreender os entraves com os quais
vivem as mulheres de outras culturas, épocas e lugares. Ao tentar tornar Malintzin urna
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motivada "produtora de história", dei Castillo não está reconstruindo o próprio momento
histórico de Malintzin tanto quanto a usando para ir de encontro ao discurso masculino
contemporâneo e para projetar um sentido mais novo do "eu" feminino, um sujeito dotado
de fala, com uma visão totalmente moderna de consciência histórica. (Alarcón, 1 994: 1 2 1 ) .
Alarcón mantém uma postura divergente tanto dos escrito res mexicanos quanto das
mencionadas escritoras chicanas. Para os escritores mexicanos, a questão da violência se­
xual é de suma importância, pois marca a condi ção ilegítima do p ovo mexicano.
É
i n te­
ressante lembrar que a expressão hijo de la chingada é uma grande ofensa n o México , uma
referência clara a Malinche, a violen tada. Já as escritoras chicanas nem mesmo mencio nam
esse tipo de violência em sua produção literária, mas valo rizam um poder de escolha que
Alarcón diz ser questionável. Em sua visão, ela poderia ter se aliado a Cortés até como
uma fo rma de se proteger, de evitar sofrer violência. O u seja, ainda que ela tenha agido
tenha agido por sua própria vontade, essa seria apenas a opção reservada aos que são
escravizados: escolher, entre dois males, o menor.
Em seu livro Paletitas de Guayaba, Erli nda G onzáles-Berry se vale do mito d e La
Malinche para discutir as questões identitárias de uma outra Marina, cujo apelido é Mari,
sua heroína /pro tagonista. Marina é uma j ovem chicana que empreende uma viagem de trem
à Cidade do México , impulsionada por vários fatores: a carta que abre o livro mostra que
um dos seus obj etivos ao partir é deixar para trás uma relação amo rosa mal-sucedida; ao
mesmo tempo, ela segue para o México em busca de suas origens, de suas raízes, da terra o nde
se sentiu acolhida quando criança, já que, embora fosse do lado de lá da fronteira (ou seja , dos
Estados U nidos) , havia morado com sua família na Cidade do México durante a infância.
Ao longo da viagem, Marina anota suas impressões sobre o que vivencia e m um
"caderni n h o " , o que evoca a imagem tradicion al dos antrop ólogos em trabalho de campo.
Este caderno mais tarde será a base para o relato de sua experiência de viajante em busca de
s i mesma, juntamente com as conversas que entabula com Sergio (seu namorado/amante/
" P ríncipe Encantado" ) , a carta de abertura, alguns diálogos reais ou imaginários e c omen­
tários a si mesma e ao leitor. Voltando ao início deste texto, vemos que Erlinda G onzáles­
Berry escolhe uma personagem que subverte a idéia tradicio nal do típico viajante europeu
masculino e burguês. Marina não se encaixa em nenhum padrão: é mexicana para os ame­
ricanos e americana para os mexicanos. C o nvive com termos pouco apreciativos como
güera e pocha, que marcam sua condição de estrangeira, de mexicana dei o tro lado. Mes­
mo entre os chicanos não é aceita de imediato como uma igual. Eles a rotulam manita ­
manitos são os descendentes diretos dos espanhóis que se estabeleceram no N ovo M éxico
na época da I n quisição e que tradicio nalmente professam p ureza racial, alegando n ã o te­
rem se misturado à população indígena nativa.
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La Malinche
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O episódio de que tratarem os aqui (71 -77) narra um sonho de Marina n o qual ela se
encontra com La M al inche/ D o na Marina - e o nome da protagonista de G o nzáles-Berry
não terá sido uma mera coincidência. Dona Marina conduz n ossa j ovem heroína chicana
por um discurso histórico anterior à destruição da grande cidade de Tenochtidán. Ela
prediz o fim de sua raça e aponta a fome de poder dos espanhóis e a fraqueza de Montezuma
como fatores determinantes. Ela também p revê que o próprio império espanhol há de se
desintegrar e o N ovo M undo será a salvação (Rebolledo, 1 995: 75).
Na releitura d e G o n záles-Berry, D o n a Marina deixa d e ser uma figura silenciosa e, ao
adquirir voz p rópria, o ferece ela mesma as explicações para os seus atos:
Resolvi aliar-me a ele para absorver esse poder que certamente será seu e assim alterar o
destino de meu povo, que se encontra caminhando para a aniquilação. S irvo-me da força de
minha voz e ofereço-a a Corrés, convertendo-me em sua língua e em sua informante. Sim, o
elo necessário entre seu mundo e o nosso. Meu objetivo é ajudá-lo a alcançar seus imperiosos
desígnios por meio da palavra e do compromisso. Vejo essa como a única forma de salvação
da nossa raça ( . . )
M as enfim, se minha colaboração com este diabo feiticeiro é necessária para assegurar que
não morreremos rodos, eu estou disposta a vender a mim mesma. (Gonzáles-Berry, 199 1 : 77)4
.
P o r esse p o n to de vista, a história de Cortés e La Malinche não foi obviamente uma
história de amor, mas tamp ouco de violência e submissão. Teríamos sim uma história de
sob revivência, p r o tagonizada p o r uma mulher que optou por aliar-se ao inimigo p rocu­
rando salvar seu povo da aniquilação total. Ao escolher ajudar Cortés, ao invés de entregar
o seu p ovo nas mãos dos con quistadores, ela p oderia estar, na realidade, evitando um
massacre ainda mais sangrento.
D urante sua conversa com Mari, La Senora demonstra estar ciente das conseqüências
que teria a sua conduta:
Como és bonita! ( ... ) Eu tinha consciência de que o meu comportamento produziria uma
raça bela e forre. Ver-te me dá prazer e compensa os insultos e castigos que sobre a minha
pessoa lançará a História.
Entretanto, devido às minhas ações, se dará uma nova raça mestiça em cujas veias fluirá a
força do meu sangue, da minha vontade e da minha palavra feminina. Tu, Mari, és o futuro
fruto do meu ventre, a flor da minha traição. (Gonzáles-Berry, 1 99 1 : 73)
Marina, uma filha da Malinche, encontra abrigo naquela que é considerada a traidora
da s ua raça. Ao p artir em b usca de um lar que j ulgava ser o M éxico, e se dar conta de que
é discriminada p elos mexicanos assi m como pelos americanos, ela se descobre membro de
uma terceira raça - uma raça de viajantes que mantém um pé em cada lado da fronteira,
transitando e traduzindo entre duas culturas todo o tempo e se descobrindo não em falta,
por não ser u ma coisa nem outra, mas em excesso , por ser ambas.
115
Cadernos de Lems da UFF - Alunos da Pós-Graduação 2003, n.28,
p.
1 05- 1 1 5, 2003
N O TAS
1
A cena inicial do filme O céu q ue nos prorege ( The shelrering sky) , de Bernardo B errolucci, é bastante
esclarecedora a respeiro da distinção entre os termos "turista" e "viajante". Diz o personagem Porter Moresby
que o turista pensa em voltar para casa no momento em que chega ao seu destino. Sua mulher Kit completa
que o viajante pode simplesmente decidir náo voltar. (Pore chimes in, "A rourisr is someone who rhinks abour
going home the momenr they arrive, Tunner. " "Whereas a rraveler mighr nor come back ar ali " , Kir finishes) .
2
Chicanos sáo os cidadáos estadunidenses de origem mexicana ou mexicanos radicados nos Estados Unidos.
O termo era uma forma pejorativa utilizada nos Estados Unidos pela sociedade branca até ser adorado pela
comunidade mexicano-americana durante o Movimenro Chicana das décadas de 60 e 70. Hoje em dia o
termo guarda uma conotaçáo política: denominam-se chicanos os mexicano-americanos engajados na luta
por igualdade racial.
3 Os trechos eirados sáo traduçóes minhas, a menos quando especificamente mencionado.
4 Parte do trecho citado foi traduzida por Sonia Torres (Torres, 200 1 : 68) . O restante é traduçáo minha.
REFERtN CIAS
B I B LI O GR.Á.F I CAS
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THOMAS , J eremy; BERTOLUCCI, B ernardo. O céu que nos protege I The shdtering sky. [ Filme­
vídeo] Produçáo de J eremy Thomas, direçáo de Bernardo B errolucci. EUA, Warner H ome Vídeo, 1 990. I
cassette VHS I NTSC, 1 48 min. colo r. legend.
TORRES, Sonia. Nosotros in USA: literatura, etnografia e geografias de resistência. Rio de Janeiro: Zahar, 200 I.

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