Ciência A meridiana de Saint Sulpice

Transcrição

Ciência A meridiana de Saint Sulpice
Ciência
A meridiana de Saint Sulpice
A astronomia n’«O Código Da Vinci»
Ajoelhado na primeira fila de bancos, Silas fingia rezar
enquanto estudava o interior da igreja de Saint Sulpice.
Embebida no granito do soalho brilhava uma fina tira de latão
que atravessava o chão da igreja, indo-se prolongar num
obelisco por onde trepava verticalmente até ao topo. Era na
sua base que a irmandade tinha escondido a Chave da
Abóbada...
Quem tenha lido O Código Da Vinci lembrar-se-á deste
emocionante capítulo, em que o monge procurava a chave
secreta do Priorado e destruiu uma laje na base do obelisco.
Nesse local descreve-se uma mística tira de latão a que o
autor chama «linha da rosa». Em tempos, a igreja de Saint
Sulpice, assim como várias igrejas do sul da Europa,
nomeadamente a de São Petrónio, em Bolonha, funcionaram
como gigantescos observatórios solares. Nos seus soalhos
foram desenhadas longas linhas perfeitamente alinhadas com
a direcção norte-sul. E nos seus tectos foram efectuados
orifícios por onde a luz do Sol passava, indo projectar uma
imagem do disco solar sobre o chão da igreja.
DAVID P. HENRY
A linha meridiana da igreja, que o Sol
atravessa ao meio-dia; mostra-se aqui
o extremo, atingido no solstício de
Verão
Esses instrumentos eram conhecidos como meridianas, pois a
linha no chão, se prolongada indefinidamente, passaria pelos pólos terrestres e daria uma volta
ao globo. Marca, pois, o meridiano do lugar. O Sol passa por cima dessa linha quando atinge a
sua altura máxima no céu e está exactamente na direcção sul. Por isso, tal passagem é
designada como passagem meridiana do Sol. Atinge-se no momento do meio-dia solar
verdadeiro.
Na igreja de Saint Sulpice existia um orifício numa janela superior, na altura obscurecida, onde
se encontrava uma lente colocada por cima da linha meridiana. Dessa forma, a imagem do Sol
projectada pela lente passava sobre a linha marcada com uma tira de latão exactamente no
meio-dia solar. A igreja funcionava, pois, como um gigantesco relógio solar, por onde se
podiam acertar diariamente os relógios mecânicos.
Quem teve a ideia de construir este aparelho foi o cura da paróquia de Saint Sulpice, JeanBaptiste Joseph Languet, quando a igreja começou a ser reconstruída numa escala maior e
mais ampla, nos inícios do século XVIII. O padre queria apenas marcar a hora solar exacta, de
forma a executar os rituais da igreja nos momentos próprios. Mas o homem a quem confiou a
execução, o matemático parisiense Pierre-Charles Lemonnier (1715-1799), tinha ambições
científicas mais arrojadas. Lemonnier resolveu instalar no orifício do tecto da igreja uma lente,
que possibilitava uma melhor focagem da imagem do Sol projectada no soalho. E alinhou a
linha meridiana de latão com um gigantesco obelisco colocado no interior da igreja, de forma a
que a imagem do Sol projectada de Inverno pudesse ser menos distorcida.
Na realidade, a imagem do Sol passa sempre sobre a linha meridiana no meio-dia solar. Mas
passa em locais diferentes da linha ao longo do ano. De Verão, quando o Sol está mais alto, a
imagem projecta-se no soalho mais perto do orifício do tecto. De Inverno, quando o Sol está
mais baixo, a imagem projecta-se mais longe e é por isso mais alongada e distorcida.
Colocando o obelisco no enfiamento da meridiana, Lemonnier conseguiu reduzir essa
distorção, fazendo com que o ângulo do Sol com o plano onde estava a meridiana diminuísse.
Nos extremos da linha de latão, o matemático francês colocou as marcas dos solstícios - no
obelisco, o de Inverno; na outra extremidade, o de Verão. No ponto intermédio apropriado,
colocou as marcas dos equinócios de Primavera e de Outono. O aparelho era tão preciso que
Lemonnier dizia conseguir calcular o meio-dia solar com a precisão de um quarto de segundo.
Mas os objectivos do matemático eram ainda mais ambiciosos. Ele queria estudar a mudança
de direcção dos raios solares causada pela atmosfera - a chamada refracção - e os momentos
em que a órbita da Terra a levava mais perto e mais longe do Sol, os chamados periélio e
afélio, respectivamente.
Ao fazê-lo, Lemonnier inscreve-se numa linha de investigação levada a cabo em várias igrejas
europeias e que ajudou a decidir a escolha entre o modelo heliocêntrico de Copérnico, na sua
versão de Kepler, e o antigo modelo geocêntrico de Aristóteles e Ptolemeu. Com efeito, as
aproximações e afastamentos entre a Terra e o Sol ao longo do ano são diferentes nos dois
modelos. No de Kepler, resulta da forma elíptica das órbitas dos planetas. No de Ptolemeu,
resulta da posição excêntrica da circunferência em que o Sol se moveria. A diferença de
previsões dos dois modelos não é muito pronunciada, mas pode teoricamente ser revelada
pela maneira como o Sol muda de altura meridiana ao longo do ano e pelo seu diâmetro
aparente.
Durante muitos anos, os astrónomos tentaram medir esses parâmetros, mas sem resultados
conclusivos. Foram necessários instrumentos solares gigantescos, com dimensões que apenas
as grandes igrejas da altura alcançavam. Nos séculos XVII e XVIII, a verdade foi revelada nas
meridianas dos soalhos das igrejas. O resultado é conhecido: os céus manifestaram-se a favor
de Kepler.
TEXTO DE NUNO CRATO, Expresso de 16 de Outubro de 2004 (Revista Actual)
Os erros d' «O Código Da Vinci»
Ao contrário do que diz Dan Brown, a linha meridiana da igreja não é um gnómon - nome
habitualmente reservado a um ponteiro ou haste que marca a sombra do Sol. No caso da igreja
de Saint Sulpice, pode-se considerar a lente no tecto como um gnómon, e o próprio sistema, tal
como um relógio solar, pode ser chamado gnómon, por sinédoque.
O nome de «linha da rosa», dado por Brown à linha meridiana de Saint Sulpice, é inventado.
Ao contrário do que igualmente diz, a meridiana desta igreja nunca serviu como marca do
meridiano de referência de Paris. Esse meridiano de referência, ou longitude zero, usado de
1669 a 1884 pelos marinheiros e cartógrafos franceses, passa ligeiramente a leste, pelo
Observatório de Paris.
A melhor referência moderna às meridianas solares nas igrejas é The Sun in the Church, do
historiador de ciência norte-americano J.L. Heilbron (Harvard, 1999).

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