A LIBERDADE NAS ESCOLAS PENAIS Ana Luiza Pinheiro

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A LIBERDADE NAS ESCOLAS PENAIS Ana Luiza Pinheiro
A LIBERDADE NAS ESCOLAS PENAIS
Ana Luiza Pinheiro Flauzina
Mestranda em Direito e Estado pela
Universidade de Brasília.
Fabiana Costa Oliveira Barreto
Mestranda em Direito e Estado pela
Universidade de Brasília, Promotora de
Justiça do MPDFT.
Marina Quezado Grosner
Mestranda em Direito e Estado pela
Universidade de Brasília, Advogada.
Ressignificar as bases do moderno Direito Penal é tarefa ainda a ser
cumprida em sua completude. Se a Criminologia Crítica claramente já nos
aponta a necessidade de rever a lógica do sistema, ainda assistimos a uma
forte resistência à aplicação dessa conquista teórica no âmbito da dogmática
e das práticas penais. Sem dúvida, uma das formas de contribuir com a
elucidação do arcabouço penal que se apresenta é lançar luz sobre os momentos
históricos e os elementos mais críticos para a conformação do mesmo. Nesse
sentido, propomo-nos, neste sucinto artigo, fazer uma reflexão sobre as
principais Escolas Penais que estruturaram o pensamento criminológico,
destacando a liberdade como um dos elementos discursivos mais emblemáticos
em todo esse processo.
A escolha da liberdade, como farol nessa empreitada, se justifica pelo fato
de o Direito Penal ter historicamente alicerçado suas teorias e práticas em discursos
que tomavam a liberdade como valor prioritário. Nesses termos, acreditamos que
avaliar criticamente as construções das Escolas em termos de liberdade é passo
fundamental na aferição dos propósitos declarados e efetivos do Direito Penal,
que tem claramente se apropriado das diferentes leituras de liberdade para se
justificar.
A fim de travar um diálogo mais efetivo com o(a) leitor(a), dividimos
didaticamente nosso texto em três partes, em que trataremos sucessivamente
da Escola Clássica, da Positiva e da crítica da Criminologia Crítica aos fundamentos
da Dogmática Penal, tendo sempre a liberdade como aspecto fundamental na
análise.
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Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 28-41, jan./dez./2004.
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A ESCOLA CLÁSSICA E O DISCURSO DA LIBERDADE
Projetada no continente europeu no século XVIII, a Escola Clássica é ponto
de partida obrigatório para a análise pretendida. Essa tradição teórica elabora, de
maneira habilidosa, uma nova leitura do Direito Penal em contraposição à assumida
pelo Antigo Regime, podendo ser mesmo considerada como um dos alicerces
sobre o qual se estrutura, até então, a Dogmática Penal. Nesse universo, a liberdade
aparece como a pedra angular de um discurso que vai ter, como principal bandeira,
a humanização das práticas penais e a consolidação da segurança jurídica.
Os autores da referida Escola (filósofos e juristas), apesar de suas especificidades,
podem ser assim identificados por integrarem um movimento que tinha, como principal
tarefa, a superação das formas feudais de punir e a formulação de novas estratégias
para o Direito Penal. Entre os aspectos de maior relevância suscitados pela Escola,
encontra-se a dicotomia entre liberdade individual e o poder de punir do Estado.1
Desde já é importante destacar que a noção de Direito desses autores
engendra-se na égide do jusnaturalismo. Para eles, o Direito está fora da história.
Resulta da dedução lógica, fruto da razão. Nesse sentido, o Direito, em especial o
Direito Penal, deveria seguir os ditames racionalistas e sistemáticos que
objetivassem, ao máximo, as intervenções individuais.2 O direito de punir deslocase, assim, do soberano para o contrato social. E é só a partir dessa perspectiva
que a usurpação da liberdade se torna legítima.
O problema da extensão da liberdade e de seu resguardo está, portanto, nas
bases discursivas da Escola Clássica. Em Carrara, um dos principais nomes dessa
tendência, há uma justaposição entre o direito e a liberdade, sendo impossível
promover sua dissociação. Em suas palavras: “O direito é a liberdade. Bem
entendida, a Ciência Penal é, pois, o código supremo da liberdade, que tem por
escopo subtrair o homem à tirania dos demais e ajudá-lo a subtrair-se à sua própria,
bem como a de suas paixões”.3
O discurso que promove a defesa da liberdade está colocado, dessa maneira,
como alicerce de uma nova orientação do Direito, em especial o Penal, consolidando
uma mudança na lógica punitiva. Oportuno assinalar que foi o debate sobre a
extensão da liberdade que possibilitou a ruptura (sofisticação, atualização) com as
tradições punitivas do antigo regime e a construção de uma outra orientada para a
limitação do poder de punir. Beccaria afirma:
1
2
3
ANDRADE,
violência do
ANDRADE,
ANDRADE,
Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à
controle penal, 2003, p. 47.
op. cit., p. 48.
op. cit., p. 54.
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Assim sendo, somente a necessidade obriga os homens a ceder uma
parcela de sua liberdade; disso advém que cada qual apenas concorda
em por no depósito comum a menor porção possível dela, quer dizer,
exatamente o necessário para empenhar os outros em mantê-lo na
posse do restante. A reunião de todas essas pequenas parcelas de
liberdade constitui o fundamento do direito de punir. Todo
exercício de poder que deste fundamento se afaste constitui abuso
e não justiça; é um poder de fato e não de direito; constitui usurpação
e jamais um poder legítimo.4
Concretamente, o esforço dos autores clássicos na reelaboração do Direito
Penal passa pela objetivação do delito e a construção da noção de livre arbítrio.
Para esses teóricos, o autor do comportamento desviante não é um elemento
objetivável, como para os positivistas futuramente. A tensão do debate entre os
teóricos do período está no crime, na violação. Mas uma violação pautada na vontade
livre e consciente do indivíduo que, sendo um signatário natural do contrato social,
descumpre a norma de maneira arbitrária. Nas palavras de Andrade:
Mas, além de ser uma violação, o crime é, para o classicismo, uma
violação ‘consciente e voluntária’ da norma penal e, pois, dos seus
elementos constitutivos conferem especial relevância à ‘vontade
culpável’ – àquele elemento subjetivo que, contemporaneamente, é
denominado ‘culpabilidade’. É mister que o crime seja animado por
uma vontade culpável entendida mais como vontade de violar a norma
do que como voluntariedade do fato constitutivo do crime. Enfim, é
necessário que a vontade seja livre para que seja culpável. O livrearbítrio constitui, assim, o sustentáculo do Direito Penal clássico.
(sublinhas nossss).5
Observamos, portanto, que a nova configuração do poder punitivo promovida
pela Escola Clássica passou pela valorização da liberdade individual, da liberdade
de escolha. Eis uma noção fundamental herdada desse período pelo Direito Penal
contemporâneo, que, associando essa categoria a outras posteriormente formuladas,
sofisticou sobremaneira a Dogmática Penal.
Dessa análise decorre uma outra discussão fundamental travada pelos
autores clássicos, qual seja, a pena e sua legitimidade. No entendimento desses
autores, a pena é tomada como uma resposta objetiva à prática delituosa. É
retribuição, castigo, mas não voltada ao indivíduo e à sua recuperação e sim
associada à lógica formal. Assim, o indivíduo que, agindo livremente (livre arbítrio),
4
5
BECCARIA apud ANDRADE, op. cit., p. 50.
ANDRADE, op. cit., pp. 55-56.
.
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viola as normas penais responde pelos seus atos na proporcionalidade do dano
causado. A atividade do juiz, nessa lógica, reduz-se a adequar a vontade do
legislador ao caso concreto. O juiz deve aplicar a pena em seus termos ideais, a
retribuição do sistema se dá de forma a completar o quadro lógico de reelaboração
da liberdade arquitetado pelo classicismo.
É necessário, entretanto, desde já, relativizar a empreitada dita humanizadora
efetuada pela Escola Clássica e a forma como suas conquistas teóricas foram
recepcionadas pela Dogmática. Se a bandeira da liberdade, como vimos, foi pedra
angular fundamental para estruturar uma nova lógica punitiva, esta não foi
preservada em seus termos iniciais após a estruturação do sistema. A mudança
nas estratégias punitivas não cumpriu sua função declarada de preservar a liberdade
geral, respeitando igualmente os indivíduos signatários do contrato social, mas, ao
contrário, reformulou o Sistema Penal de forma a resguardar os interesses do
novo Estado que então se estruturava.
É de se atentar que a Escola Clássica traz em seu cerne as aspirações
iluministas colocadas naquele momento histórico com a ascensão burguesa. Esse
é o tempo dos questionamentos das obrigações e dos privilégios herdados do
medievo que ainda se colocam a despeito das modificações na ordem social.
Politicamente, o marco da Revolução Francesa de 1789 põe fim às obrigações
feudais para o chamado Terceiro Estado (plebe e burguesia). Nessa mesma esteira,
os privilégios da nobreza caem por terra, abrindo o caminho do poder político para
a classe que já detinha o econômico.
Entretanto, uma vez consolidado o poder político pela burguesia, a dinâmica
do processo revolucionário é interrompida, prevalecendo, a partir de então, o
discurso conservador com a intenção precípua de preservar a propriedade e os
privilégios agregados. No âmbito da criminologia, é por meio do discurso
humanizador que se percebe a restrição das transformações anunciadas. Pavarini
coloca a questão da seguinte maneira:
Com a consolidação do domínio capitalista na Europa da Restauração,
a interpretação política da criminalidade que havia caracterizado a
época da conquista do poder por parte da nova classe burguesa,
incluídas as contradições do pensamento iluminista, sempre indeciso
entre o momento crítico e as exigências de racionalização, parece
resolver-se definitivamente numa leitura apologética da ordem social
existente. A ambigüidade que caracterizava as primeiras formas de
conhecimento criminológico estava realmente ditada pela dupla
exigência de criticar as formas hostis de poder (o feudal) e ao mesmo
tempo projetar as formas de um novo poder (o burguês); mas, uma
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vez que o poder político foi definitivamente conquistado, os
interesses da classe hegemônica se limitaram a inventar a estratégia
para conservá-lo.6
Nesses termos, uma leitura crítica das formulações elaboradas pelos autores
da Escola Clássica nos permite ver o duplo aspecto em que a liberdade pode ser
considerada. Em primeiro lugar, na nova estruturação de mundo que propõem os
jusnaturalistas. A liberdade, nesse modo de pensar, deve ser vista como a referência
do Estado, o bem maior do indivíduo, em torno do qual se justifica a punição dos
violadores do contrato social. Concomitantemente, essa mesma liberdade deve
ser entendida como o elemento discursivo fundamental na consolidação de um
Estado hegemonicamente burguês. Dessa sorte, tomemos a liberdade em seu
paradoxo. É tanto anunciadora de uma ruptura (dos modelos do Antigo Regime)
como elemento de conservação no discurso então dominante (Modernidade).
Dessa forma, a noção de liberdade anunciada pela Escola Clássica é elemento
fundamental para a Dogmática Penal contemporânea. Aliada a essa primeira
perspectiva, há ainda uma outra vertente que influencia sobremaneira o Direito
Penal que deve ser tomada em conta, qual seja, a leitura da Escola Positiva sobre
o sistema punitivo e a liberdade, de que trataremos a seguir.
2
A LIBERDADE NA ESCOLA POSITIVA
Nas últimas décadas do século XVIII, começou a se consolidar movimento
que se contrapunha aos ensinamentos da Escola Clássica e, em muitos aspectos,
o combatia. Nesse período, surgiu a Escola Positiva, que dominou o saber penal
até o início do século XIX e, até hoje, encontra reflexo nas legislações penais
ocidentais.
Autores como Cesare Lombroso, Enrico Ferri, Raffaele Garofalo, Franz
Von Liszt e Gabriel Tarde propunham novo método para o estudo do crime. Não
mais, como os clássicos, deveria se estudar o crime sob enfoque racionalista e
jusnaturalista. A tarefa seria estudar, por meio do método empírico, as causas do
delito.
Assim, o objeto das pesquisas passou a ser o “homem criminoso”, com o
objetivo de identificar os sinais antropológicos da criminalidade. Mediante a
observação de indivíduos situados no universo dos cárceres e dos manicômios,
características como altura, tamanho do crânio e do maxilar, textura do cabelo
6
32
PAVARINI apud ANDRADE, op. cit., p. 244.
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eram medidas para identificar o perfil do criminoso. Com Ferri, a investigação das
causas ligadas à etiologia do crime foram ampliadas, acrescentadas às
antropológicas, causas físicas e sociais.
Essa forma de estudar o fenômeno crime partia do pressuposto de que o
homem delinqüente estava determinado a praticar delitos. A conduta criminosa
não era resultado de escolha ou do exercício do livre arbítrio, como propunham os
expoentes da Escola Clássica, mas conseqüência de causas naturais, sobre as
quais a vontade do homem não interferia. Como afirmava Ferri:
“Todo crime, do mais leve ao mais terrível, não é o fiat incondicionado da
vontade humana, mas sim o resultante destas três ordens de causas naturais”.7
A conduta criminosa não era, portanto, o resultado da escolha livre, mas
conseqüência de causas externas à vontade do agente. Oportuno assinalar, ainda,
que, ao mesmo tempo em que se entendia que o homem delinqüente estava
determinado à prática do crime, permitia-se que a sociedade agisse contra ele, em
defesa dela.
Nesse contexto, a noção de liberdade negativa, ou de existência de direitos
subjetivos em face do Estado, praticamente se esvaiu. Para defender a sociedade
do homem diferente e perigoso, a sociedade poderia submetê-lo a diversas
restrições, independentemente de sua aceitação.
A pena passou a ser vista, assim, como um mecanismo de prevenção da
prática de delitos. A finalidade da pena já não era retribuir a prática de conduta
contrária às normas, mas tratar, modificar o comportamento criminoso, agir nas
suas causas. Como afirma Baratta, ao referir-se à Escola Positiva:
Se não é possível imputar o delito ao ato livre e não-condicionado de
uma vontade, contudo é possível referi-lo ao comportamento de um
sujeito: isto explica a necessidade de reação da sociedade em face de
quem cometeu o delito. Mas a afirmação da necessidade faz
desaparecer todo caráter de retribuição jurídica ou de retribuição
ética da pena.8
Nesse contexto, o discurso clássico de proporcionalidade da pena e de ênfase
na liberdade individual caiu por terra. Em nome da defesa da sociedade e do
tratamento do delinqüente, a intervenção do Estado era considerada positiva e
útil. Assim, os teóricos não se preocupavam com os limites dessa intervenção.
7
8
ANDRADE, op. cit., p. 66.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia
do Direito Penal, 2002, p. 39.
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A pena seria necessária enquanto perdurassem as causas que levavam os agentes
a delinqüir.
E foi justamente nesse aspecto que a Escola Positiva mais foi combatida.
Em face das conseqüências práticas dessa maneira de pensar, que conduziu a
internações indeterminadas, ao afrouxamento dos limites para a aplicação da pena,
foram diversas as reações contrárias aos seus ensinamentos. Nesse sentido, é
emblemática crítica formulada por Bettiol:
Por acentuarem características do agente em lugar de características
da ação, transformam o Direito Penal de um direito que considera o
fato objetivo como único título justificador da pena, num direito que
encara o fato como mero índice de periculosidade. Eles ampliam
indubitavelmente os poderes discricionários do Juiz, com graves
danos para a liberdade individual. (...) Nota-se, assim, na esfera de
influência das concepções positivistas, uma incerteza indiscutível
acerca dos pressupostos da aplicação da medida de segurança, uma
larga discricionariedade do juiz e uma indeterminação na duração da
medida. A certeza, que, no Direito Penal, postula precisão dos fatos e
subordinação do Juiz à vontade da Lei, fica, indubitavelmente,
comprometida.9
O estudo sobre a Escola Positiva demonstra como o debate sobre a liberdade
permeou as discussões sobre a legitimidade da defesa da sociedade em face do
autor de condutas criminosas. E, aqui, a noção de liberdade negativa ganhou força
e se transformou no principal alicerce de combate às teorias da Escola Positiva.
A concepção determinista da conduta criminosa passou a ser combatida no
período Pós-Guerra, em especial no tocante às causas antropológicas do crime,
mas continuou influenciando os teóricos por diversas décadas. A mudança de
enfoque do estudo criminológico das causas do delito para a reação da sociedade
apenas surgiu no final da década de 60 do século XX, como será abordado a
seguir.
3
A LIBERDADE NA DOGMÁTICA PENAL E AS CRÍTICAS DA
CRIMINOLOGIA CONTEMPORÂNEA
A partir da década de 70 do século XIX, na Alemanha e, posteriormente,
na Itália, com a Escola Técnico-Jurídica, a Ciência Penal consolida-se como
Dogmática Jurídica. Essa consolidação foi fruto de um movimento de resgate,
9
34
ANDRADE, op. cit., p. 71.
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pelo juspositivismo, do caráter propriamente jurídico da Ciência Penal, que, na
Escola Positiva, considerava apenas a Sociologia Criminal como sua verdadeira
expressão.
A Dogmática Penal manteve, em seu bojo, tanto a intervenção sobre a
criminalidade e o indivíduo delinqüente – herança da Escola Positiva – como as
estruturas garantidoras do Direito Penal liberal – herança da Escola Clássica –,
ambigüidade que se viu presente nas legislações penais do século XX, incluindose, aí, o Código Penal brasileiro de 1940.
Convivem, pois, nas legislações penais do século XX,
[...] o discurso de garantia do indivíduo com o discurso da defesa
social; o discurso do homem como limite do poder punitivo e o
discurso do homem como objeto de intervenção positiva desse mesmo
poder, em nome da sociedade.10
No tocante à garantia do indivíduo, o limite do poder punitivo, como
preservação da liberdade individual, é tratado, pela Dogmática Penal, como
segurança jurídica,e, nessa perspectiva, o Direito Penal tenta “[...] racionalizar,
em concreto, o poder punitivo (violência física) face aos direitos individuais
(segurança); [...] punir, em concreto, com segurança, no marco de uma luta racional
contra o delito”.11
Por outro lado, na perspectiva da sociedade, a identidade liberal da Dogmática
Jurídico-Penal fica restrita pela “ideologia da defesa social”, desenvolvida pelas
Escolas Penais e que se constitui na ideologia dominante sobre criminalidade e
pena. Essa ideologia é constituída por princípios que informam máximas admitidas
não só pela Ciência Penal, mas pelo senso comum, de que, por exemplo, o crime
é a representação do mal, enquanto a sociedade é o bem a ser defendido; o fato
punível é expressão de uma atitude reprovável e consciente do autor contra valores
e normas existentes na sociedade; a reação punitiva estatal representa a legítima
reação da sociedade a certos comportamentos; o Direito Penal é igual para todos,
e a reação penal se aplica igualmente a todos os autores de delitos; os bens jurídicos
protegidos pelas leis penais são de interesse de toda a sociedade; a pena tem
função de retribuir e prevenir o delito e ressocializar o delinqüente.12
A identidade ideológica da Dogmática Penal está, assim, na dialetização do
discurso liberal com o discurso da ideologia da defesa social. Ou seja,
10
11
12
ANDRADE, op. cit., p. 73.
ANDRADE, op. cit., p. 123.
BARATTA apud ANDRADE, op. cit., pp. 136-137.
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[...] quando se aplica uma norma penal, tutela-se um bem jurídico
(interesse ou valor) que interessa indistintamente a todos os cidadãos
(princípio do interesse social). Mas é necessário também tutelar o
autor de delitos contra punições arbitrárias e desiguais, garantindolhe uma aplicação segura (princípio da legalidade) e igualitária
(princípio da igualdade) da lei penal.13
Trata-se, portanto, de uma dupla tutela das liberdades. A proteção da
liberdade da “universalidade dos cidadãos”, ou seja, da “maioria não transgressora”,
e a proteção da liberdade dos sujeitos à Justiça Penal, isto é, a “minoria
transgressora”.
O problema é que a Dogmática Penal, em sua trajetória, não conseguiu
cumprir sua promessa garantidora de maximizar a proteção do imputado e minimizar
o arbítrio punitivo. Tal constatação foi alcançada a partir de uma mudança de
paradigma, verificada na Criminologia, que permitiu evidenciar a crise de
legitimidade do sistema penal.
A partir da década de 60 do século XX, a Criminologia passou por uma
troca de paradigmas: de uma ciência que estudava as causas da criminalidade
(paradigma etiológico, inaugurado na Escola Positiva) para uma ciência das
condições da criminalização (paradigma da reação social). Essa mudança de
paradigma foi possível porque, desde os anos 30 do século XX, várias teorias
criminológicas foram elaboradas, desconstruindo os princípios da “ideologia da
defesa social”, base do sistema penal.
A mais importante dessas teorias, a teoria do labelling approach,
demonstrou, por exemplo, que
[...] o desvio e a criminalidade não são entidades ontológicas
preconstituídas, identificáveis pela ação das distintas instâncias do
sistema penal, mas sim uma qualidade atribuída a determinados
sujeitos por meio de mecanismos oficiais e não-oficiais de definição
e seleção.14
Portanto, não é possível estudar a criminalidade sem estudar esses processos
de definição e seleção. Além disso, o labelling approach demonstrou que, do
ponto de vista das definições legais, “[...] a criminalidade se manifesta como o
comportamento da maioria, antes que de uma minoria desviada da população [...]”
e se apresenta como um status social que caracteriza determinado indivíduo apenas
13
14
36
ANDRADE, op. cit., p. 139.
ANDRADE, op. cit., p. 201.
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quando lhe é atribuída uma etiqueta de desviante ou criminoso pelas instâncias
com poder de definição. Nesse processo, ademais, as chances de ser “etiquetado”
são desigualmente distribuídas, evidenciando que o comportamento dos indivíduos,
por si só, não é condição suficiente para receber a “etiqueta”, mas sim sua seleção
nesse processo criminalizador.15
Dessa forma, uma conduta não é criminal por si só, nem seu autor é um
criminoso em razão dos traços patológicos que possui, mas porque conduta e
autor receberam um etiquetamento, como resultado de um processo social de
definição e seleção.
A importância dessas considerações que o labelling approach trouxe para
a Criminologia está no deslocamento que promoveu em seu objeto, da investigação
sobre as causas do crime para a reação social à conduta desviada e, em especial,
para o sistema penal, “[...] como conjunto articulado de processos de definição
(criminalização primária) e de seleção (criminalização secundária) e para o impacto
que produz o etiquetamento na identidade do desviante”.16
A investigação da Criminologia, então, passa dos controlados para os
controladores e, numa dimensão macrossociológica, para o poder de controlar. E,
no particular, a Criminologia Crítica identificou que os interesses que estão na
base da formação e aplicação do Direito Penal são, justamente, os interesses dos
grupos que têm o poder de influir sobre os processos de criminalização.17
Em resumo, os principais resultados alcançados pelos estudos da Criminologia
contemporânea são relacionados por Alessandro Baratta:
a) a pena, especialmente suas manifestações mais drásticas, que têm por
objeto a esfera de liberdade pessoal dos indivíduos, é uma violência institucional.
Limita direitos e reprime necessidades fundamentais dos indivíduos por meio do
poder punitivo;
b) os órgãos da justiça penal não representam nem tutelam interesses comuns
a todos os membros da sociedade, mas sim interesses de grupos minoritários
dominantes e socialmente privilegiados;
c) o funcionamento da justiça penal é altamente seletivo, tanto no que diz
respeito à proteção outorgada aos bens jurídicos quanto no que se refere ao processo
15
16
17
ANDRADE, op. cit., pp. 201-202.
ANDRADE, op. cit., p. 207.
ANDRADE, op. cit., p. 213.
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de criminalização e recrutamento da clientela do sistema penal. O sistema penal,
em todas as suas fases e agências de controle, está direcionado quase
exclusivamente contra as classes mais pobres, apesar de os comportamentos
socialmente negativos estarem distribuídos em todos os estratos sociais;
d) o sistema punitivo produz mais problemas do que os resolve, porque não
soluciona os conflitos, apenas os reprime;
e) o sistema punitivo, pelo modo como funciona, é inadequado para cumprir
as funções socialmente úteis propostas por seu discurso oficial: o cárcere, por
exemplo, como pena principal, é instituição que historicamente fracassou em
combater a criminalidade e ressocializar o condenado.18
Com essa perspectiva crítica do sistema penal, a Criminologia da reação
social e, mais especificamente, a Criminologia Crítica (que resgata a dimensão
macrossociológica da investigação) passam a questionar a promessa garantidora
do Direito Penal dogmático.
É que, por seu caráter altamente seletivo, o Direito Penal moderno, apesar
de ter nascido como reação contra os excessos de violência punitiva e contra o
déficit de garantismo da antiga Justiça Penal, está inserido em um modelo de
controle penal que obedece a uma lógica de dominação. Lógica essa que esvazia
o conteúdo desse conjunto de garantias contra a intervenção do Estado na liberdade
dos indivíduos.19
Nesse sentido, ao se comparar
[...] a programação normativa do sistema penal, isto é, como deveria
ser, de acordo com os princípios constitucionais do Estado de Direito
e do Direito Penal e Processual Penal liberal, com seu real funcionamento
[...]”, pode-se concluir que o sistema de justiça criminal é um sistema
de violação, em vez de proteção.20
Como esclarece Eugênio Raúl Zaffaroni, citado por Vera Andrade:
A realização de todos os princípios garantidores do Direito Penal
(legalidade, culpabilidade, humanidade e, especialmente, o de
igualdade) é, em definitivo, uma ilusão, porque a operacionalidade
do sistema penal está estruturalmente preparada para violar a todos.21
18
19
20
21
38
BARATTA, Alessandro. Princípios del Derecho Penal Mínimo (para una teoría de los derechos
humanos como objeto y limite de la ley penal). Doctrina Penal, 1987, pp. 624-626.
ANDRADE, op. cit., p. 258.
ANDRADE, op. cit., p. 289.
ZAFFARONI apud ANDRADE, op. cit., p. 290.
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O Direito Penal moderno, que tinha em sua programação a proteção das
duas dimensões da liberdade – a da sociedade e a do indivíduo criminalizado –,
não consegue romper com sua herança positivista e utiliza o discurso da proteção
da “maioria” não transgressora para cumprir seu papel seletivo em detrimento
das garantias da liberdade individual contra o poder punitivo. E assim o faz, na
verdade, por ser um instrumento de produção e reprodução de relações de
desigualdade existentes nas sociedades tardo-capitalistas.
A desconsideração daquela dimensão de liberdade que era tão cara à Escola
Clássica é fortemente sentida, ainda, em tempos de globalização.
O processo de globalização, vivenciado desde as últimas décadas do século XX,
promoveu uma mudança no papel do Estado com sérios reflexos no controle penal.
O enfraquecimento, a descapitalização e a falta de poder dos Estados
deixam os operadores políticos com poucas possibilidades de oferecer
alguma coisa diferente de uma atividade gerencial local. [...] o Estado
se torna um espetáculo diante do escasso exercício do poder efetivo
de seus operadores [...].22
E, na tentativa de recuperar essa perda de poder, as leis penais são os meios
preferidos do que Zaffaroni chama do “Estado-espetáculo” e de seus “operadores
showmen”. São elas um recurso que obtém alto crédito político com baixo custo.
Nesse espetáculo, novas emergências são apresentadas como ameaçadoras
para a humanidade (como a questão de tóxicos e terrorismo), reforçando a
necessidade de proteção da dimensão sociedade da liberdade na perspectiva penal.
As novas emergências não impulsionam, entretanto, tentativas de resolver o
problema, mas incentivam um controle social punitivo cada vez mais repressivo.
Para realizar esse controle ultra-repressivo, renuncia-se à racionalidade,
incorporam-se componentes antiliberais, reduzem-se as garantias, potencializa-se
o poder punitivo e, principalmente, eliminam-se suas limitações mais formais e
elementares.23 Uma manipulação do Direito Penal pelas forças políticas que, para
conservação do sistema de poder, produz uma falsa representação de solidariedade
que unifica todos os cidadãos na luta contra um “inimigo interno” comum.24
O Direito Penal, portanto, falha em cumprir sua promessa de garantia de
liberdade.
22
23
24
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalização e sistema penal na América Latina: da segurança nacional
à urbana. Discursos Sediciosos, 1997, p. 33.
ZAFFARONI, op. cit., p. 34.
BARATTA, op. cit., 2002, p. 205.
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LIBERDADE EM FOCO: A PERSPECTIVA DAS ESCOLAS EM
CONTRASTE
O estudo das Escolas Penais demonstra como a discussão sobre a liberdade
esteve sempre no centro das atenções e constitui o eixo condutor das diversas
teorias formuladas.
Na Escola Clássica, o comportamento desviante é a violação pautada na
vontade livre e consciente do indivíduo que, sendo um signatário natural do contrato
social, descumpre a norma de maneira arbitrária. E é justamente o livre arbítrio
que justifica a reação do Estado contra o ato violador da norma. Apenas é culpável
aquele que age livremente.
Ao mesmo tempo, o Estado está autorizado a reagir mediante diversos
limites. A noção de liberdade negativa ganha força. Não é qualquer violação que
justifica a pena, nem é tampouco qualquer pena que pode ser aplicada. Os indivíduos
devem ter garantias contra o poder de agir do Estado, e a pena deve ser
proporcional à violação.
A Escola Positiva contrapõe-se à Escola Clássica justamente nesses dois
aspectos. Para seus teóricos, a prática do delito não é o resultado de uma escolha
livre, mas a conseqüência de causas antropológicas, físicas e sociais. Assim, o
que justifica a pena não é o livre arbítrio, mas a necessidade de defesa da sociedade.
E, nesse contexto, perde espaço o debate sobre a liberdade negativa. Para
prevenir a prática de crime, o Estado pode intervir quase livremente na vida do
“homem delinqüente”. O caráter ressocializador da pena justifica essa livre intervenção.
As primeiras reações contra a Escola Positiva pautaram-se principalmente
por essa negligência quanto à noção de liberdade negativa. A crítica contra a
adoção de penas indeterminadas e da quase ausência de limites ao poder de punir
consistiu na principal bandeira contra as teses positivas.
Foi nesse contexto que surgiu a Escola Técnico-Jurídica, que resgatou
estruturas garantidoras da Escola Clássica e manteve a intervenção sobre a
criminalidade e o indivíduo delinqüente – herança da Escola Positiva.
Entretanto, os estudos desenvolvidos a partir da década de 60 do século XX
demonstraram que a simples regulação da intervenção e a existência de limites
para o poder de punir do Estado não eram suficientes para garantir um sistema de
justiça criminal de proteção. Com efeito, observou-se que, tanto na Escola Clássica
como na Positiva, não se questionava a legitimidade da pena ou o caráter ontológico
do crime e que a ideologia da defesa social permeava ambas as abordagens.
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Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 28-41, jan./dez./2004.
Dessa maneira, observamos como os discursos sobre a liberdade serviram
e servem às formulações do Direito Penal. Se nossa viagem termina aqui, as
discussões sobre como consolidar um Direito voltado para o resguardo da liberdade
de todos ainda têm um longo caminho a trilhar. Estamos diante de uma concepção
de controle penal que obedece a uma lógica de dominação em que o Estado protege
a liberdade do indivíduo de forma seletiva. Superar essa contradição é um desafio
para os que acreditam que pode haver efetivamente um Direito que cumpra com
suas funções declaradas e proteja a liberdade de todos de maneira indistinta.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do
controle da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003. 336 p.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal:
introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Tradução por Juarez
Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia,
2002. 254 p.
____. Princípios del Derecho Penal Mínimo (para una teoría de los derechos
humanos como objeto y limite de la ley penal). Doctrina Penal. Buenos
Aires: Depalma, 1987.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalização e sistema penal na América Latina: da
segurança nacional à urbana. Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro: Instituto
Carioca de Criminologia, 1997. v. 4.
Rev. Fund. Esc. Super. Minist. Público Dist. Fed. Territ., Brasília, Ano 12, Volume 23, p. 28-41, jan./dez./2004.
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