Disfarce e vigilância: a estratégia judicial Disguise and watch out

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Disfarce e vigilância: a estratégia judicial Disguise and watch out
Hórus – Revista de Humanidades e Ciências Sociais Aplicadas, Ourinhos/SP, Nº 02, 2004
Disfarce e vigilância: a estratégia judicial
Maurício Gonçalves Saliba1
Resumo. Tendo como referencial teórico as idéias de “sociedade disciplinar” de Michel Foucault, este
artigo tem por objetivo analisar as práticas judiciais de controle da criminalidade infantil, fundamentada nos
pressupostos educativos do Estatuto da Criança e do adolescente-ECA. Utilizando-se desse arsenal teórico e
analisando os processos judiciais contra os adolescentes infratores pode-se verificar que as práticas do Poder
Judiciário, camufladas pelo discurso de reeducação e cidadania, têm como estratégia principal a vigilância e o
controle social. A eficácia dessas práticas se dá pela dissimulação, através do caráter educativo e terapêutico
de suas ações, que proporcionam a coerção necessária para evitar e inibir qualquer reação. Dessa forma, o
escopo educativo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tem por finalidade disfarçar a estratégia
judicial de normalização coercitiva do comportamento dos adolescentes infratores e a vigilância constante,
que se expressa através do exame individual, cujo objetivo é prevenir a surpresa e conhecer os virtuais futuros
infratores.
Palavras-chaves: controle social; vigilância; disciplina e normalização; adolescente infrator.
Disguise and watch out: judicial strategies
Abstract: Taking Michel Foucault’s ideas on “disciplining society” as a theorical referential, this article has
such an objective analysing the judicial practices of controlling the enfant criminality based on the Status of
Rights of Children and Adolescents educating assumptions. Making use of this theorical arsenal and studying
the judicial processes against the inflator adolescents one can verify that the Judiciary Power practices, hidden
by the speech on re-educating and citizenship, have as main strategy the watching out and the social control.
The efficiency of these practices happens according to the dissimulation, through the educating feature of
their actions and therapeutically, which offer strength needed to avoid and evade any reaction. Thus, the
educating scope from the Status of Rights of Children and Adolescents tries disguising the judicial strategy of
strength normalization of inflator adolescents’s behaviour and the ongoing watching out that express
themselves by an individual exam, whose objective is to prevent surprise and get knowledge of the virtual
future inflators.
Key words: delinqüência; controle social, adolescente infrator; disciplina e poder.
1
Professor de sociologia e política da Faculdade Estácio de Sá de Ourinhos - FAESO. Mestre em educação
pela Universidade Estadual Paulista-UNESP, campus de Marília e doutorando em educação pela mesma
Universidade. E-mail: [email protected] .
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1. INTRODUÇÃO
Sabe-se que a surpresa é a grande arma da criminalidade, e o anonimato de
seus protagonistas é que garante sua eficácia. Pode-se constatar essa tese através do famoso
fato ocorrido nos EUA, o “11 de Setem bro”. Dia em que o império sucumbiu frente a um
inimigo aparentemente frágil, que utilizou a antiga e eficaz tática da surpresa. Anônimos,
alguns terroristas conseguiram organizar e executar, dentro dos Estados Unidos, o maior e
talvez o único ataque da história. Esse fato talvez possa servir como importante exemplo
histórico da estratégia de controle social. Se a surpresa e o anonimato representam
historicamente as melhores estratégias de combate, como evita-la e usa-la no controle da
criminalidade. Ou seja, para se compreender a estratégia judicial moderna é necessário
buscar sua gênese histórica.
Este artigo tem como base teórica o conceito de “sociedade disciplinar” de
Michel Foucault. Através desse instrumento teórico pode-se desvendar, na ação judicial
contra os adolescentes infratores, a existência de uma estratégia de controle e vigilância e
compreender a racionalidade do Estatuto da Criança e do Adolescente sob um novo prisma,
diferente do conceito de suavização das penas e democratização da justiça.
Antes do advento das sociedades industriais e do capitalismo a
criminalidade, de um modo geral, não expressava um grande problema ao sistema e não
representava uma ameaça a ordem estabelecida. Em todas as épocas, principalmente
durante a Idade Média em virtude da ruralização da sociedade, havia sempre espaço para
ilegalidade, não havendo uma grande preocupação com a vigilância. Crime e pecado se
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misturava e só era combatido quando ultrapassava certos limites. A solução para as
controvérsias, roubos e crimes se davam no âmbito privado e prevalecia a força da
hierarquia e do privilégio. Observa-se, naquele período, “uma negligência ou simplesmente
impossibilidade efetiva de impor a lei e reprimir os infratores” (FOUCAULT, 1987, p.76).
Dessa forma, as camadas populares gozam de margens de tolerâncias para atos contrários
as normas vigentes, sendo possível cometer um ato ilícito e nunca ser descoberto. Da
mesma forma que os senhores abusavam de seus direitos as camadas populares revidavam
burlando certas leis e costumes (contrabandos, pagamentos de impostos, uso da terra, etc..)
Essa “ilegalidade tolerada”, existente antes do surgimento da indústria
moderna, vai mover seu alvo, no início do capitalismo, dos direitos para os bens.
A riqueza dos séculos XVI e XVII era essencialmente constituída pela
fortuna de terras, por espécies monetárias ou eventualmente por letras de
câmbio que os indivíduos podiam trocar. No século XVIII aparece uma
forma de riqueza que é agora investida no interior de um novo tipo de
materialidade não mais monetária; que é investida em mercadorias,
estoques, máquinas, oficinas, matérias-primas, mercadorias que estão para
ser expedidas, etc. E o nascimento do capitalismo ou a transformação e
aceleração da instalação do capitalismo vai se traduzir neste novo modo da
fortuna se investir materialmente. (...) Toda essa população de gente pobre,
de desempregados, de pessoas que procuram trabalho tem, agora uma
espécie de contato direto, físico com a fortuna, com a riqueza.
(FOUCAULT, 1999, p. 100/1)
Surge, nesse momento histórico, uma próspera burguesia que não quer ter
seu patrimônio e sua propriedade ameaçada por falta de controle sobre os despossuídos. O
surgimento das casas comerciais, dos grandes armazéns, dos bancos e o aumento dos bens
pessoais e domésticos transforma a ilegalidade e o crime de forma geral em algo
intolerável. A riqueza tende a investir, cada vez mais em máquinas, equipamentos e
mercadorias, “supõe uma intolerância sistemática e armada à ilegalidade” (FOUCAULT,
1987, p. 79). A partir desse momento é preciso codificar e, principalmente, controlar as
práticas ilícitas. O anonimato é o grande inimigo a ser vencido.
Encontrar novas técnicas às quais ajustar as punições e cujos efeitos
adaptar. Colocar novos princípios para regularizar, afinar, universalizar a
arte de castigar. Homogeneizar seu exercício. Diminuir seu custo
econômico e político aumentando sua eficácia e multiplicando seus
circuitos. Em resumo, constituir uma nova economia e uma nova tecnologia
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do poder de punir: tais são sem dúvida as razões de ser essenciais da
reforma penal no século XVIII. (FOUCAULT, 1987, p. 82)
Conscientes do perigo do anonimato organiza-se, a partir do século
XVIII, uma estratégia de defesa da ordem social, cujo principal instrumento estava na
vigilância individual. A ordem industrial capitalista não poderia sobreviver sem que todos
os seus inimigos estivessem identificados e que sua maior arma, o ataque surpresa, fosse
neutralizado. Para ser eficaz a lógica deveria ser invertida, era o inimigo quem deveria ser
surpreendido. A nova racionalidade do poder deveria ser a antecipação, que se daria através
da vigilância individual. Um projeto de sociedade vigiada começava a ser esboçado e
deveria se estabelecer através de uma forma de estratégia social onde todos pudessem estar
todo o tempo sendo vigiado e examinado. Era imprescindível a organização de estratégias
de poder que preparassem para o trabalho disciplinado e alienado a massa dispersa e
perigosa existente até aquele momento. Além de preparar para o trabalho, essa estratégia
deveria manter controlada e vigiada a população dos bairros pobres e eliminar a
potencialidade do perigo político das multidões. Enfim, o imperativo era instaurar
mecanismos de “controle que permitiss em a proteção dessa nova forma material da
fortuna” (FOUCAULT, 1999, p. 101).
A figura do inimigo, produzido pelo sistema industrial, direta ou
indiretamente, e localizado entre a população dos bairros pobres, exige (...)
o renovado esforço intelectual do reconhecimento de sua presença, da
seleção de seus traços de identidade, da contagem de seu efetivo. E isso
porque identificam na miséria (tipo degradado de pobreza) um subproduto,
uma criatura, da sociedade industrial do trabalho; um dejeto, sobra sem
lugar social e, portanto, ameaça sempre presente na forma inquietante do
crime, mas também na forma mais perigosa da revolução. (BRESCIANI,
1994, p. 57)
A grande questão da época era: como reorganizar a classe popular, sem a
repressão puramente física, já que a economia industrial necessitava da conservação e
manutenção dessa mão-de-obra?
A reposta foi: Vigiando e disciplinando os indivíduos, examinando-os desde
o seu nascimento até a sua morte. Para isso, as instituições sociais (escola, família, exército,
fábricas), seriam reorganizadas e transformadas em aparelhos (ou “dispositivos de
biopoder”) que cumpririam basicamente a mesma função de vigilância, disciplina e
normalização. O modelo ideal de sociedade teria como base a prisão: confinamento,
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hierarquia, sistema de punição/gratificação, regulamentação do tempo, disciplina e
vigilância constante. Todas as instituições, da família à escola, passando pelas fábricas e
hospitais deveriam ter como modelo a prisão. Essas instituições deveriam administrar e
modelar a vida dos sujeitos, construindo uma nova subjetividade que internalizava a
vigilância. Dentro de todas elas funcionava um “pequeno tribunal”, que julgava,
condenava, punia, premiava ou reprimia os menores gestos as mínimas falhas. Sob os
princípios da prisão, a família, primeira instância disciplinar a submeter o individuo,
deveria ser reorganizada para cumprir suas funções normalizadoras. “Nessa formação
social, especificamente, os dispositivos de biopoder apontam para a construção de corpos
dóceis — domesticados, adestrados, disciplinados — destinados a alimentar as engrenagens
da produção fabril” (SIBILA, 2003, p. 31)
Assim, a estratégia mais eficaz de manutenção da ordem social capitalista foi
a organização da vigilância e do exame individual através das famílias que, por outro lado,
também deveriam ser vigiadas. Considerando a poderosa influência do pensamento
filosófico liberal do período, que condenava qualquer tipo de intervenção do Estado nas
relações econômicas e sociais, a intervenção não seria aceita de forma estatal, mas deveria
partir de ações de cunho privado ou filantrópico. Por isso, a filantropia, que é uma ação de
cunho privado, ou seja, que se dava fora da atribuição do Estado, foi a maneira de
intervenção mais eficaz nessa missão de dominação, pacificação e integração social. Havia
uma certeza para os filantropos daquela época, que o trabalho infantil, a promiscuidade, as
condições de higiene pública e privada, o nomadismo em busca de trabalho, enfim, as
crianças famélicas e raquíticas andando em bandos pelas cidades produziam um contágio
fácil com a desordem e a revolta. No momento em que a criança mais precisa de vigilância
ela está entregue às ruas ou ao trabalho irregular. A criança, futuro trabalhador, deveria ter
sua vida moldada para forjar o adulto útil e dócil, modelo ideal para a necessidade da nova
forma de trabalho. Sob a ação dos filantropos uma nova moral familiar e um novo
comportamento passam a ser exigido dos cônjuges. Estrutura-se a “família burguesa” como
ideal dos filantropos e dos higienistas.
Baseando-se no princípio da vigilância, como forma de se evitar os riscos
das revoltas e da criminalidade, a criança deveria ser alvo de toda a ação de controle. A
preparação do adulto útil e dócil ao sistema deveria se iniciar com a “educação” das
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crianças. É nesse momento que, nos países industrializados, se difundem as escolas laicas,
públicas e obrigatórias, tendo como uma de suas finalidades a difusão de uma moral mais
rígida, bombardeando para dentro das famílias, através da criança, as normas de bons
hábitos, comportamentos sadios, higiênicos e disciplinados, introduzindo no lar a
“civilização dos costumes”. “Todos os Estados da era industrial implementaram essa
biopolítica de planejamento, regulação e prevenção, a fim de intervir nas condições de vida,
para modifica-las e impor normas” (Sibila, 2003, p. 158). É notório, na França, a explosão
de leis de proteção à infância que se inicia na década de 1840 e paulatinamente se difundem
por toda a Europa: 1840/1, lei do trabalho de menores; 1850, lei sobre a insalubridade das
moradias; 1851, lei sobre o salário de aprendizagem; 1876, lei sobre a vigilância das
nutrizes; 1874, lei sobre a utilização de crianças pelos mercadores e feirantes.
Os filantropos deveriam ensinar as virtudes, a higiene e as normas de
comportamentos às famílias, ao mesmo tempo em que examinam os indivíduos e suas
condições de vida. Ao contrário de reprimir, gerir a população através da difusão de normas
de comportamento e de moralidade. Para DONZELOT (1986), a valorização da família e
da criança, a partir do século XIX não poderia ser atribuída ao triunfo da modernidade ou
ao progresso da civilização, mas sim como resultado de uma estratégia de controle.
(...) De modo que se poderá tentar compreender a liberalização e a
revalorização da família, que irão se desenvolver no final do século XIX,
não como o triunfo da modernidade, a mutação profunda das sensibilidades,
mas sim como o resultado estratégico da acoplagem dessas duas táticas
filantrópicas. (DONZELOT, 1986, p. 58)
As duas táticas filantrópicas das quais Donzelot se refere são as linhas pelas
quais a filantropia se efetiva na sua ação junto à sociedade. A primeira delas é a
assistencial, através do “ensino das virtudes”, forne cendo conselho eficaz em vez de
caridade humilhante e promovendo a “autonomia familiar”. A segunda é a que ele chama
de “ médico-higienista”, que se baseia na necessidade de conservação da população e que se
dará por meio da educação dos costumes de higiene. Às famílias seriam atribuídas as
responsabilidades da tarefa de disciplinar e normalizar o comportamento de seus membros
e de organizar sua subsistência. O princípio fundamental era que controlando a “infância
perigosa” evitava -se o eventual adulto criminoso. Em 1889, na França, surge uma lei que
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determina serem os pais, que por algum motivo comprometam a segurança, a saúde e a
integridade física e moral de seus filhos, destituídos de seus direitos de pátrio poder,
podendo o Juiz confiar a guarda da criança a uma instituição filantrópica ou a terceiros. Em
1898 e 1912 surgem leis que iriam organizar progressivamente uma transferência de
soberania da família moralmente insuficiente para o corpo de notáveis filantropos,
magistrados e médicos especializados na infância.
Nota-se que, em nome da segurança e da integridade física da criança,
organiza-se um sistema contínuo de vigilância (através das leis editadas pelo Estado) que
permite aos agentes das normas de saúde e educação penetrarem legalmente na família e
tornarem-se intercessoras entre ela e a justiça. O século XIX foi, portanto, o momento de
organização e definição das políticas de controle das famílias e da infância. A edição das
normas sanitárias e educativas propiciou ao movimento assistencial a legitimação de sua
ação. Contra a força ameaçadora do anonimato e da surpresa, a estratégia da “vigilância
filantrópica” recebeu grande apoio do Estado por meio das leis. A vigilância das famílias
pobres, alicerçadas no ideal da educação, da higiene e da normalização dos
comportamentos, possibilitou a difusão das normas de comportamento e manteve o Estado
liberal, de característica não intervencionista, afastado da intervenção direta. Essa iniciativa
incitava a família a reforçar seus laços e controlar o comportamento de seus membros para
que não sofressem a intervenção normativa e corresse o risco da suspensão do pátrio poder.
A habitação do pobre não escapará ao desejo de disciplinarização do
proletariado manifestado pelos dominantes. Na moradia operária, a
burguesia industrial, os higienistas e os poderes públicos visualizam a
possibilidade de instaurar uma nova gestão da vida do trabalhador pobre e
controlar a totalidade de seus atos, ao reorganizar a fina rede de relações
cotidianas que se estabelecem no bairro, na vila, na casa e, dentro desta, em
cada compartimento. Destilado o gosto pela intimidade confortável do lar,
a invasão da habitação popular pelo olhar vigilante e pelo olfato atento do
poder assinala a intenção de instaurar a família nuclear moderna, privativa
e higiênica, nos setores sociais oprimidos. (RAGO, 1985, p. 163)
As palavras de ordem eram gerir, administrar, modelar, controlar e examinar
a vida dos indivíduos através da redefinição do modelo de todas as instituições sociais e,
principalmente, da família. O modelo de família engendrado pelos higienistas e filantropos
era a “nuclear burguesa”, que teria como característica a promoção de um novo modelo de
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mulher, voltada para o lar e para a família. No seu interior procura-se difundir, entre a
classe operária, “os valores burgueses da honestidade, da laboriosidade, da vida regrada e
dessexuada e do gosto pela privacidade” (RAGO, 1985, p. 26). O modelo disciplinar da
prisão foi, aos poucos, difundido e incorporado pelas famílias populares. Para manter sua
autonomia, sem a intervenção dos filantropos e higienistas, a família deveria controlar e
regular a vida de seus filhos, mantê-los dentro de casa, combater o ócio, afasta-los das “más
companhias” e estimular s ua higiene. Em suma, a intimidade do lar deveria propiciar o
cuidado físico dos filhos e prevenir as perigosas conseqüências políticas da pobreza e da
miséria. Assim, o novo papel da família, organizado pelos médicos higienistas e
filantropos2, será, através da disciplina, o de vigiar, corrigir e reeducar, organizando o
tempo e tendo como objetivo condicionar as pessoas para obedecer e produzir uma
individualidade dócil e eficiente. Não basta o sujeito de capacidade de trabalhar, é
necessário para o capitalismo um tipo de trabalho especifico. O indivíduo normalizado e
disciplinado é aquele que foi domesticado e o disciplinado para o trabalho e a vida na
sociedade industrial capitalista.
Nasceu assim o operário: um dos protagonistas do grande drama industrial.
As análises de Foucaultianas permitem perceber que o trabalho, tal como
foi definido na era mecânica, de maneira alguma constitui “a essência
natural do homem”; para que tal traço passasse a estruturar os corpos e as
subjetividades ocidentais, pelo contrário, foi preciso efetuar uma
complicada operação biopolítica e disciplinadora. (...) Ao estender seus
controles à vida inteira de todos os indivíduos, o projeto de biopoder era
ambicioso demais: requeria
envolvimento de uma série de
estabelecimentos pedagógicos e médicos decalcados do modelo da prisão,
dedicados a talhar incessantemente todos os corpos e todas as almas.
(SIBILA, 2003, p. 164)
Ou seja, o trabalhador desejado pelo sistema deveria ser produzido durante
toda sua infância. O modelo da sociedade foi retirado do modelo da prisão. Essa estratégia
de controle social será lastreada na proteção da infância. As famílias passavam por um
verdadeiro saneamento moral a fim de se descobrir indícios de se estar gerando
eventualmente o futuro marginal. Todo esse trabalho visava reduzir o recurso ao judiciário,
evitando o acumulo dos processos penais. O escopo educativo e terapêutico propiciava uma
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Entre uma série de profissões ligadas ao trabalho social que surgem no século XIX, está o de assistente
social.
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intervenção profunda na intimidade familiar. A colaboração entre justiça e filantropia
produziu um sistema semelhante à nossa atual liberdade vigiada.
Durante todo o século XIX o Tribunal de Menores organizou sua estratégia
pelo princípio da prevenção, baseando-se nos pressupostos do controle, vigilância e do
exame. A edição das normas sanitárias, educativas e morais, transformadas em lei,
propiciou ao movimento assistencial a legitimação de sua ação. Isso possibilitava a
filantropia uma forma de intervenção alicerçada no ideal da normalização, possibilitando a
difusão das normas. Por esses mecanismos de controle, as famílias populares incorporam as
suas vidas, de forma coercitiva, as características da higiene, da educação e da vigilância.
Um lar que não se estruture dentro dessas regras pode ser considerado virtualmente como
um perigo à ordem social. Quando detectada uma “família de risco”, com as características
definidas pelos especialistas3, instaurava-se uma infra-estrutura de prevenção pela qual se
dava uma ação “educativa” que pudesse reter a criança aquém do delito. A “família de
risco” passava por um verdadeiro saneamento moral, a fim de se descobrir indícios de se
estar gerando o futuro delinqüente.
Por conta dessa estratégia, o recurso repressivo policial e judiciário seria
poupado para os casos que extrapolassem a prevenção regenerativa da educação
normalizante. Por essa intervenção a família seria incitada a adotar os procedimentos
normalizantes que deveriam interiorizar na criança as normas sociais e os preceitos morais,
tornando-a preparada para viver numa sociedade industrial capitalista e transformando
futuramente em mão de obra para as industriais. Jurandir Freire Costa (1999) tem uma
definição precisa do que seja o indivíduo normalizado.
O indivíduo moralmente apto a conviver neste sistema é aquele que se
regule: em primeiro lugar pelo hábito criado pela mecânica dos gestos e
condutas; em segundo lugar, pela culpa, pelo sentimento de desvio moral
com relação ao social; em terceiro lugar, pelo julgamento de seus pares e
iguais. Primeiro sistema de regulação cria consciência de que todos os
predicados sentimentais, físicos e sociais são ahistóricos. O adulto
domesticado por essa técnica não consegue imaginar que sua vida e seu
modo de ser foram socialmente produzidos com fins político-econômicos
precisos. (...) O indivíduo assim formado tende a reagir, diante de qualquer
reação afetiva ou comportamental discordante de seu meio, com uma
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Já no final do século XIX esses especialistas eram pessoas cujas profissões estavam ligadas ao trabalho
social.
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extrema sensação de desconforto e aflição. Qualquer dissintonia
experimentada com relação aos valores socialmente canonizados é, em
princípio, culpa sua. (COSTA, 1999, p. 200 )
Todos os Estados capitalistas perceberam que a população era um problema
político e que deveria ser controlada, registrada, acompanhada e individualizada. A partir
do momento que Charles Darwin informou ao mundo as engrenagens da vida, surgem uma
gama de saberes e ciências que tem por finalidade ultima a manipulação e a construção do
indivíduo perfeito ao sistema. Essas estratégias de controle social são os pilares do Estado
capitalista industrial, pois todos precisam de uma mão de obra disciplina e controlada.
O modelo ideal de sociedade foi projetado a partir da prisão. Todas as
instituições (família, escola, fábricas, etc) deveriam ter como fundamento a disciplina do
sistema de punição/gratificação das prisões, transformando-se em instituições disciplinares.
A disciplina se estabelecia através do controle do tempo, da distribuição dos corpos no
espaço, da vigilância e do exame constante, condicionando o indivíduo ao autocontrole.
Essas instituições, apoiadas nos saberes das ciências humanas (pedagogia, psicologia,
psiquiatria, serviço social, etc) são destinadas a moldar o corpo e a subjetividade dos
indivíduos para obter os efeitos de utilidade necessária para o regime de trabalho
capitalista, dispensando a relação custosa de violência utilizada no período da escravidão,
sendo apresentada de uma maneira “elegante” que não provoca as grandes reações de
conflito. Moldar o corpo e a subjetividade do indivíduo significa aumentar a força útil dos
trabalhadores por meio dos treinamentos rigorosamente organizados. Em suma, pode-se
dizer que essa estratégia parte do pressuposto que os indivíduos não nascem aptos ao
trabalho da sociedade industrial (manual, repetitivo, alienado, sem sentido), mas são
transformados pelas instituições disciplinares, ao longo de sua vida, pela docilização e
domesticação dos corpos.
As análises foucaultianas permitem perceber que o trabalho, tal como foi
concebido na era mecânica, de maneira nenhuma constitui “a essência natural
do homem”; para que tal traço pass asse a estruturar os corpos e as
subjetividades ocidentais, pelo contrário, foi preciso efetuar uma complicada
operação biopolítica e disciplinadora. (SIBILA, 2003, p. 164)
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Paralelamente ao sistema judiciário, surge como seu complemento e com
capacidade de apóia-lo, a sociedade disciplinar, que estende seu controle durante toda a
vida dos indivíduos, a fim de examina-lo, moldá-lo e adapta-lo às necessidades imperiosas
do capital. Prisão, escola, fábrica e família burguesa, entre outros, fazem parte integrante da
mesma estratégia.
2. A IMPLANTAÇÃO DA ESTRATÉGIA DE CONTROLE NO BRASIL
O Brasil, mesmo com industrialização tardia, não ficou à margem dessa
estratégia de controle social. Organizada e definida na Europa durante os séc. XVIII e XIX
e aplicadas durante todo o século XX, essa estratégia chega tardiamente ao Brasil mas
ainda resiste e sobrevive.
Pode-se identificar seu desenvolvimento no Brasil durante o século XIX e
início do século XX. A chegada da corte e a urbanização demonstram a necessidade da
reorganização da cidade e das famílias a fim de promove-las na disciplina e na vigilância.
Por outro lado, a abolição da escravidão no final do século XIX estimula a instalação de
instrumentos cada vez mais eficazes de disciplina e vigilância, para a formação do
trabalhador útil ao sistema capitalista.
Importa apontar que o desestímulo para o trabalho disciplinado e regular
obstaculizava o desenvolvimento de oficinas e profissões, embotando as
habilidades inerentes às atividades artesanais, de onde, tradicionalmente na
sua versão clássica, emerge a industria moderna. (KOWARICK, 1994, p.
57)
É a partir da urbanização brasileira, notadamente a partir da chegada da
Corte de D. João e, mais tarde, com o projeto de abolição que se inicia a implementação no
Brasil da sociedade disciplinar. Segundo COSTA (1999, p. 51), a “intervenção médico estatal sobre a cidade assumiu, junto à família, a forma de higiene e medicina doméstica”, e
afetou particularmente a organização da casa e a intimidade familiar. Tudo (e todos) que
afetava o convívio íntimo do pai, da mãe e dos filhos foi afastado. A regra básica era a de
promover, no interior do lar, a possibilidade de controle integral dos membros da família
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uns sobre os outros. A família passava a ser “colonizada” pelos agentes da normalização
que aproximaram seus membros, estimulando o contato permanente entre eles, e
enriqueceram seu lado emocional e afetivo. A família deve ser a primeira instância de
controle, vigilância e exame que o individuo ingressa durante a sua vida.
O Estado moderno, voltado para o desenvolvimento industrial, tinha
necessidade de um controle demográfico e político da população adequado
àquela finalidade. Esse controle, exercido junto às famílias, buscava
disciplinar a prática anárquica da concepção dos cuidados físicos dos filhos,
alem de, no caso dos pobres, prevenir as perigosas conseqüências políticas
da miséria e do pauperismo. (COSTA, 1999, p. 51)
Essa estratégia brasileira de disciplina e vigilância visava principalmente o
controle social. O poder necessitava determinar o lugar dos indivíduos e prepara-los para o
trabalho. O confinamento e o isolamento como estratégia passa a configurar a organização
da sociedade brasileira. Nesse momento da história do Brasil, em que a escola pública era
apenas o sonho de alguns utópicos e a base do trabalho era rural, a única instituição
disciplinar que perpassava toda a vida do indivíduo era a família. Portanto, como no
modelo europeu, ela é reorganizada tendo como modelo a prisão (confinamento, disciplina,
punição-sanção e vigilância). A reorganização da casa é “aconselhada” pelos médicos
higienistas, que utilizam sua base cientifica para persuasão, e legitimadas pelo Estado
através da expansão da saúde pública.
A intervenção médica, através da saúde pública determina o modelo social
familiar ideal para os paises urbanos/industriais. Em nome “da família”, essa intervenção
buscava o intimismo familiar, afastando as famílias das mazelas e dos “perigos” da rua e
dos espaços públicos. A rua colonial era agora mostrada como um antro de perdição,
“reservado a homens, vagabundos, capoeiras, ciganos, ladrões, negros, quadrilheiros,
prostitutas, mendigos ou penitentes (COSTA, 1999, p. 119). Determinava a idade dos
casamentos, a organização da casa (nas questões de higiene, horários, etc). Determinava
também o remanejamento dos papeis sociais dos membros da família, a mulher, antes
submissa e ociosa, se transformava em “rainha do lar”, responsável direto pela disciplina e
vigilância dos filhos, ou seja, confinada e doméstica, tendo sua vida regulada pela rotina do
“lar”; o papel do pai, antes apenas com direitos, sem deveres e com poderes sobre todos,
agora limitado pela manutenção da casa e com deveres conjugais e paternos, disciplinando
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sua vida para dar exemplos aos filhos. Finalmente os filhos, antes criados com imprudente
desvelo, ociosos, completamente livres e entregues aos cuidados dos escravos, agora serão
a razão da existência do lar, cujos pais deverão devota-lhes o “verdadeiros am or”,
discipliná-los e afasta-los dos vícios da rua e dos espaços públicos, fazendo deles
verdadeiros soldados da higiene, ou seja, autocontrolados moralmente e normalizados. A
família examina o comportamento dos filhos detectando qualquer sinal de “desvio do
normal”. O projeto da higiene publica e do Estado pretendia que a cidade fosse dominada
por esse modelo renovado de família, convertendo-a em célula social básica, que retirava as
pessoas da rua e as enclausurava na intimidade e na vida privada onde seria disciplinada na
ética e moral burguesa.
Observando essa estratégia brasileira de reorganização social, fica evidente o
projeto de ordem estabelecido entre o Estado brasileiro e a intervenção higiênica, que na
mesma época, na Europa, já contava com novos profissionais e técnicos (psicólogos,
assistentes sociais, pedagogos, médicos, etc). Essas práticas impõem aos indivíduos novas
normas que são fundamentais e complementares as leis. Não bastam apenas leis sem que as
pessoas acreditem nelas. Segundo Foucault (1987) a organização e o controle social sempre
passam por agentes legais (baseados em leis) e normativos (baseados em normas de
comportamento e disciplina). A lei apenas pune o comportamento desviante. Já a norma
cria
novos
comportamentos,
éticas
e
valores
normalizando
os
indivíduos
e
conseqüentemente a sociedade.
A medicina social percebia que a urbanização forçava a mudança da
família e que o Estado, apoiando a expansão da saúde pública, lhe havia creditado uma
certa confiança que competia explorar até onde fosse possível. A intervenção na casa
respondia, em parte, a esta movimentação estratégica. Não é difícil identificar a escola
como complemento dessa ação moralizadora e disciplinadora. O colégio também se
organizava sob a estratégia da vigilância e da disciplina.
A criança moralizada no colégio era necessária à engrenagem social. A
meta de todo esse arsenal moralizador era a criação, nos educandos, de uma
ética compatível com as mudanças econômicas. Pelo menos dois aspectos
desta ética são visíveis nas prescrições higiênicas: a aceitação do valor
trabalho e o respeito à propriedade privada. (COSTA, 1999, p. 201)
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3. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE-ECA: CIDADANIA OU
VIGILÂNCIA.
Toda essa histórica estratégia de organização social baseada na vigilância e
disciplina pode ser observada hoje nas práticas do poder judiciário.
Para que possamos verificar essa estratégia em ação, devemos observar as
práticas judiciais contra as crianças e adolescentes em confronto com a lei (adolescente
infrator) ou com “problemas familiares”. Toda a sua ação não se dá através da prisão ou da
segregação do adolescente (senão em casos extremos), mas principalmente em liberdade. É
através do acompanhamento social do adolescente infrator que se pode verificar toda a
força e malícia da ação judicial. Assim, ao contrário das pesquisas tradicionais, que
priorizam o trabalho de controle comportamental nas instituições, para que se possa avaliar
a intervenção judicial como um todo, é necessário seguir seu trajeto através dos processos
dos infratores em liberdade. A medida de internação representa o último ato da batalha do
controle versus delinqüência.
Verificando criteriosamente esses processos (Atos Infracionais), revela-se
uma ação minuciosamente desenvolvida de controle e exame das ilegalidades. O
adolescente infrator, quando detectado, aciona um dispositivo de segurança que o cercará
de uma vigilância constante. Essa vigilância se expressa através do exame.
O tribunal de menores não julga, efetivamente, delitos, mas examina
indivíduos. É a desmaterialização do delito que coloca o menor num
dispositivo de instrução penal interminável de julgamento perpétuo.
(Donzelot, 1986, p.104)
Assim, da mesma maneira, o Juiz da Vara da Infância e Juventude não julga
os adolescentes infratores mas os examina, através de seus técnicos (assistente social,
psicólogo, pedagogo, etc). O exame é o instrumento pelo qual toda a ação judicial vai se
dar. Quando detectado um “ambiente impróprio” para o desenvolvimento da criança,
existindo o risco de um futuro desvio comportamental, expresso no desrespeito às normas e
regras sociais (tais como o ócio, a vadiagem e a falta hábitos saudáveis), esse dispositivo é
acionado e todo o mecanismo judicial de controle é ativado, tendo à frente os técnicos
responsáveis pela observação minuciosa do indivíduo e seu meio, ou seja, seu bairro, sua
casa e sua família. O conceito subjacente a essa ação é que, mormente a grande maioria dos
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infratores serem provenientes da camada empobrecida da sociedade, nem todo pobre
comete crime. Partindo deste princípio, a pobreza em si não explica o comportamento
divergente. Dessa forma, existe “algo” de errado com o adolescente infrator, e esse “algo” é
sua educação, seu caráter, seu psiquismo e principalmente seu desejo (Foucault, 1978, p.
88). O caráter é construído através de inúmeros aparelhos (escola, família, trabalho) que,
como se viu, tem como finalidade disciplinar seu comportamento e reduzir os desvios.
Esses aparelhos só são eficazes quando funcionam em conjunto e permeiam toda a vida do
indivíduo, não deixando qualquer espaço livre do controle e da vigilância. O exame vai
proceder a uma avaliação completa do infrator, de sua família e seu meio social a fim de
identificar exatamente qual a origem do comportamento desviante. A origem do problema
comportamental pode estar nos aparelhos disciplinares, destinados a procederem à correção
moral do indivíduo.
É importante salientarmos o que são os aparelhos disciplinares. Destinadas
às crianças, entendemos como principais aparelhos a família burguesa, a escola e o
trabalho, que têm como finalidade última produzir o que Foucault chama de “indivíduos
normalizados”. No interior deles funciona como repressora, toda uma micropenalidade do
tempo, da atividade, da maneira de ser, do gesto. Qualquer desvio deve ser punido e
corrigido, e todo comportamento adequado recompensado e sancionado. Dentro delas, as
normas que são estabelecidas, os exames, as classificações, as punições disciplinares,
penalizando tudo que está inadequado à regra e todos os desvios. Essas micropenalidades
normalizadoras, fazem parte do controle por que passa o indivíduo desde seu nascimento,
tornando-o adaptado às normas de comportamento exigidas pelo sistema capitalista. Esses
aparelhos têm, como regra de funcionamento, um conjunto de práticas de normalização
cujo objetivo é a produção do normal. O normal é sustentado por um conjunto de
conhecimentos ancorado em saberes, tais como o psicanalítico, psiquiátrico, e sociológico,
na medida em que fixa critérios racionais que aparecem como objetivos e, ao mesmo
tempo, está ancorada no poder, na medida em que constitui os princípios de regulação da
conduta segundo os quais funcionam as práticas sociais de disciplina. O poder deixa de ser
exterior aos sujeitos para fazer-se interior ao próprio processo de aprendizagem,
desaparecendo as penalizações exteriores.
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O indivíduo moralmente apto a viver neste sistema é aquele que se regule:
em primeiro lugar, pelo hábito criado na mecânica dos gestos e condutas;
em segundo lugar, pela culpa, pelo sentimento de desvio moral com relação
ao social; em terceiro lugar, pelo julgamento de seus pares ou iguais.
(COSTA, 1999, p. 200)
Têm como pressuposto básico o enquadramento moral das crianças,
aceitação do valor do trabalho e respeito à propriedade, integrando-os à ordem política
característica do capitalismo industrial. Como conseqüência, a escola, além da transmissão
de conhecimentos, tem como função mais importante a manutenção da ordem social e
evitar que os conflitos sociais ocorram. Através do autodisciplinamento, os estudantes
conservam a si e os outros sob controle e vigilância, funcionando como repressora toda
uma “micropenalidade do tempo (atrasos, ausências) da atividade (desatenção, negligênc ia,
falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice,
insolência), do corpo (atitudes “incorretas”, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade
(imodéstia, indecência), que vão de castigos físicos leves a privações ligeiras e a pequenas
humilhações” (Foucault, 1987, p. 77). Os indivíduos são conduzidos à padronização da
conduta, transformando o desejo de infracionar em anormalidade e desvio de conduta.
Dessa maneira, os psicólogos, assistentes sociais são os
técnicos da
disciplina, encarregados de avaliar, através de seu saber normalizante, a fissura do controle
e reconduzir o infrator ao maquinário de ortopedia moral. Elaboram um minucioso estudo,
possibilitando ao “olho do poder” penetrar profundamente na intimidade da vida do
adolescente e sua família.
ESTUDO SOCIAL. E. (menor), procede de família desagregada há 9 anos,
em virtude da separação dos pais, motivada pelo adultério da genitora. A
avó paterna foi quem cuidou de E. desde 1 ano de idade e esta veio a
falecer, há 2 anos atrás. O genitor é portador de seqüelas na coluna devido
ao excesso de peso, porque trabalhou muito tempo na função de saqueiro,
sem possuir estrutura física para este tipo de serviço. Ele anda com muita
dificuldade (...). Residem em casa alugada, construída em alvenaria,
composta de: quarto e banheiro. O ambiente é muito escuro, pouquíssimo
ventilado e até sufocante, embora limpo. A genitora está residindo em
Pederneiras, onde possivelmente é proprietária de uma quitanda.(...) O
adolescente em questão se mostra penalizado com os problemas do genitor,
mas alega que não agüenta ficar o dia todo cuidando dele (...). E. está
trabalhando como servente de pedreiro, percebendo R$8,00 por dia.
Considerando-se que E. não tem recebido limites em sua educação, tem se
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recolhido tarde da noite(...). Percebe-se que ele tem boas perspectivas de
mudança comportamental, se retirado com urgência do meio nefasto em
que se encontra, por isso somos favoráveis ao seu encaminhamento à
unidade Educacional de Iaras ou Batatais. (a) Assistente Social. (ato
infracional do Cartório da Infância e Juventude de SCRPardo, 1992)
O caráter terapêutico oculta a violência da invasão permitindo uma incursão
ilimitada da vigilância e do poder. A partir desse momento, o adolescente infrator e sua
família, sem capacidade de reação, inserem-se no sistema de vigilância judicial.
Através da aplicação das medidas sócio-educativas os técnicos judiciais
testarão o adolescente infrator nas instituições disciplinares e acompanharão o processo de
“normalização” de seu comportamento. Ele é cercado por três instâncias estratégicas: o
judiciário, o psicológico e o educacional. A família será reordenada e normalizada,
tornando-se um aparelho eficiente de vigilância e controle, para receber e redisciplinar o
infrator. Aos poucos, o adolescente vai sendo reconduzido às instituições disciplinares e, ao
mesmo tempo, testado sob a possibilidade de adequação às normas de comportamento.
(...) Relatório de Acompanhamento de Liberdade Assistida: (...) No
segundo contato com o jovem R.C.C. relatou que estava decidido a não
cometer atos infracionais. Está iniciando um curso de informática que será
realizado aos sábados; foi aprovado e providenciou a matrícula escolar para
o próximo ano.(...) Alegou que às vezes desanima do padrão de vida que
leva (...); percebemos que é um adolescente de temperamento forte e não
foram impostos os limites necessários para a sua criação. É um jovem
trabalhador, não falta ao serviço e tem um relacionamento satisfatório com
os companheiros de trabalho. Quanto às medidas impostas (...) alegou estar
cumprindo à risca. (a) Assistente Social. 11/12/92. (processo de execução
de medida sócio-educativa n.º 377/92 de R.C.C., p. 14)
O perigo está na vacuidade. Se a família não vigiar a criança o judiciário o
fará. O adolescente infrator só se libertará dessa ortopedia moral gerenciada pelo judiciário,
após sujeição às normas e a conseqüente normalização de sua conduta. Os refratários,
estarão numa orientação irreversível para a delinqüência, e serão vigiados até a idade
adulta, perdendo o espaço da ilegalidade quando, sem surpresa para o sistema, efetuarão a
passagem do registro tutelar para o penal. Esse olho do poder na privacidade familiar torna
previsível o futuro criminoso.
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Percebemos, que o Poder Judiciário tem o papel legitimador do trabalho
de vigilância, no exame e controle normalizador. Segundo Donzelot, ele outorga poder
aos técnicos para afastar a autoridade paterna, sendo a viga-mestre do sistema pois tem um
papel intermediário de garantir e ratificar o trabalho da instância distribuidora de normas,
conferindo-lhe autoridade e capacidade de coerção necessária ao seu exercício, filtrando os
produtos negativos do trabalho de normalização. Ao contrário da ostentação policial, essa
técnica mobiliza o mínimo de coerção, para obter o máximo de informação.
Nesse sentido, pode-se dizer que é o aparelho judiciário que fabrica seus
delinqüentes, já que aqueles que passaram do registro tutelar para o registro
penal, e que constituem uma grande parte dos delinqüentes adultos, foram
preliminarmente testados como refratários à ação normalizadora. Essa
filtragem orienta para uma carreira de delinqüência aqueles que não
quiseram jogar o jogo. (DONZELOT, 1986, fls. 104/5)
Portanto, evidencia-se que os técnicos judiciais têm como principal
estratégia a normalização do comportamento e a vigilância dos infratores. Eles transmitem
às “famílias de risco” normas para vigilância e controle do comportamento de seus
membros, corrigindo as anormalidades e os desvios e, ao mesmo tempo, certificam-se de
que o adolescente infrator está sendo encaminhado e testado nos aparelhos disciplinadores
onde estarão sob constante avaliação, exame, registro e vigilância, para uma reorientação
da conduta, regendo e adestrando o comportamento para uma vida resignada e útil ao
sistema.
Por tudo isso, o desmascaramento dessa estratégia coercitiva de vigilância,
travestida pelo seu caráter terapêutico, deve ser parte do estudo atual sobre a violência
contra a criança. O enquadramento social por que passa o adolescente em conflito com a
lei não tem por finalidade intrínseca ou, ao menos como conseqüência objetiva, a geração
de cidadãos participativos e conscientes, mas uma ortopedia moral de controle
comportamental, onde a produção de adultos dóceis e subservientes, para a manutenção da
ordem social, é a finalidade última. O indivíduo normalizado é aquele em que os eventos de
sua vida miserável continuam os mesmos, mas sua resposta comportamental agora é outra.
Seu impulso contra a ordem foi canalizado para dentro de si, onde agora é travada a batalha
entre o “normal” e o “delinqüente”. O que realmente importa ao sistema judicial é se
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antecipar ao eventual criminoso através da vigilância proporcionada pela ação dos técnicos
judiciais frente aos adolescentes infratores.
REFERÊNCIAS
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COSTA, Jurandir Freire. Ordem Médica e Norma Familiar. Rio de Janeiro: ed. Graal, 3ª
ed. 1999.
DONZELOT, Jacques. A Polícia das Famílias. Rio de Janeiro: ed. Graal, 2º ed. 1986.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Trad.Roberto Machado. Rio de Janeiro: Ed.
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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, história das violências nas prisões. Rio de Janeiro:
Ed. Vozes, 9ª ed. 1987.
__________ A verdade e as forma jurídicas. Rio de Janeiro: Ed. Nau, 9ª ed. 1999.
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SIBILA, Paula, O Homem Pós-Orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio
de Janeiro: ed. Relume Dumará, 2º ed. 2003.
Documentos
Processo de execução de medida sócio-educativa n.º 377/92 de R.C.C., do Cartório da
Infância e Juventude da Comarca de Santa Cruz do Rio Pardo-SP.
Processos (Atos Infracionais) do ano de 1992, do Cartório da Infância e Juventude da
Comarca de Santa Cruz do Rio Pardo-SP.

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