Resenha de CLARK, TJ, A PINTURA DA VIDA MODERNA

Transcrição

Resenha de CLARK, TJ, A PINTURA DA VIDA MODERNA
Resenha de CLARK, T. J.,
A PINTURA DA VIDA MODERNA. PARIS NA ARTE DE MANET
E DE SEUS SEGUIDORES
Fátima Costa de Lima1
Resumo
Em A pintura moderna, T.J. Clark investiga a modernidade européia
da segunda metade do século XIX à luz dos conceitos de imagem e de
espetáculo, de Guy Debord. Clark discute a classe e a ideologia
marcadas nas pinturas de Édouard Manet, focando a polêmica
recepção de suas obras e a crítica da modernidade da nova Paris de
Haussmann.
Palavras-chave: Pintura moderna. Imagem. Crítica do espetáculo.
O historiador e teórico de arte T.J. Clark se vale, neste livro, dos conceitos
de classe e ideologia, e relaciona-os ao de espetáculo para colocar em questão o
modernismo que marca uma parte da pintura parisiense da segunda metade do
século XIX, numa arena de conflito com a crítica que a acompanha.
Deve-se ressaltar, antes de tudo, a importância da tradução, mesmo
depois de duas décadas da publicação original. Clark se insere na tendência crítica
que desafia os cânones da teoria Modernista, que privilegiou certos artistas e
estabeleceu obras exemplares com valor estético superior. Ao mesmo tempo, tal
teoria estabeleceu uma distância considerável entre valor estético e conteúdos
sociais, políticos e culturais e, por isso, é contestada por autores como Nigel Blake,
Francis Frascina e Briony Fer2. O comentário de Fer sobre a modernidade, por
exemplo, resta incompleto se não contemplada esta exaustiva reflexão de T.J. Clark
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa
Catarina – UFSC; professora da Habilitação Cinema e Vídeo do Curso de Comunicação Social da
Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL; e do Departamento de Artes Cênicas do Centro de
Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. Endereço: Rua Hermes Guedes da
Fonseca, 214, Armação, Florianópolis; telefone 8806.2067; e-mail [email protected].
2
Ver FRANSCINA, Francis et alii. Modernidade e modernismo. A pintura francesa no século XIX.
São Paulo: Cosac & Naify, 1998, 297 páginas.
que fornece alicerces investigativos àquele autor em sua avaliação de L’Olympia, de
Manet.
Clark coloca em questão a pintura impressionista como reflexo das
classes, dos espaços e das representações sociais da moderna Paris que surge por
iniciativa do então prefeito da região do Rio Sena, o Barão Haussmann. Durante a
maior parte do século XIX, a representação de classe havia sido determinada pelas
relações entre a burguesia e o operariado. Na segunda metade dos novecentos,
porém, a pequena-burguesia, nova classe à qual pertencem os pintores
impressionistas, desafia a relativa segurança burguesa, num processo de
crescimento da indústria e do comércio que, gradualmente, passam a ser praticados
em grande escala. O gradualmente se instaura, precisamente, no momento histórico
selecionado por Clark para enfrentar a tarefa de desconstruir, pela análise
minuciosa, a ideologia naturalizada na nova representação pictórica. Os sinais que
denunciam este espaço-tempo são particularmente evidentes em algumas telas de
Édouard Manet3, se comparadas a outras do próprio artista e de alguns de seus
contemporâneos, como Van Gogh, Seurat e Cézanne.
O espetáculo – definido como “capital acumulado que se torna imagem” –
foi produzido numa sociedade do espetáculo4 cuja primeira visualização possível
deu-se na capital francesa, nos anos 1860s, a partir da grande reforma
haussmaniana que erigiu grandes magazines e boulevards, novos bairros e
personagens. Representados na pintura impressionista, eles comporiam com ela
uma das formas deste espetáculo. O modernismo inicia-se na ruptura da obra de
Manet com a representação clássica, e na disposição a deslocar a percepção do
espectador pela ênfase na materialidade, em oposição à busca de similitude nas
obras realistas. Ao priorizar tinta e pincelada, a nova pintura passou a buscar
significado em seus efeitos exclusivos, retirando da realidade o que é arte,
3
Pintor francês que viveu entre 1832 e 1883. É considerado o grande precursor do movimento
impressionista. Sobre Manet, é interessante a leitura do ensaio de Émile Zola, O Sr. Manet. Em seu
texto, Zola profetiza, a despeito do grande repúdio que sofreu em sua época por parte de críticos e
comentaristas e apenas um ano após a exposição de L’Olympia no Salão, o sucesso futuro da obra
de Manet, que assumiria caráter antológico na história da pintura da modernidade.
4
Ver DEBORD (1997). T. J. Clark foi membro do grupo da Internacional Situacionista, fundado por
Guy Debord na década de 1960. Nesta obra, Debord cunha o termo “sociedade do espetáculo” para
qualificar, a partir de uma visão crítica e niilista, uma sociedade capitalista, predatória e hegemônica
que marcou o Ocidente moderno. Clark assume essa concepção para o termo espetáculo, quando o
evoca neste livro.
restituindo a percepção visual como valor de obra e valorizando o olho do artista
que, antes de materializar a obra na tela, a “vê”, in loco e feita de luz.
Numa segunda fase do movimento, a partir de Cézanne, este olhar
impassível cede à incerteza que se torna, ela própria, valor, estética e herança de
todo o século XX. Fundamentará, no futuro próximo das vanguardas, um universo
inteiro fora da figuração. Ironia, negação, não expressividade, simulação da
ignorância ou da inocência no inacabado: para Clark, todas estas qualidades já
estariam insinuadas na arte de Manet, e é exatamente o des-reconhecimento delas
que produziria a rejeição, por parte da crítica e de público, de L’Olympia, exposta no
Salão Parisiense de 1865. Clark atenta para a superfície da pintura como jogo de
metáforas: é nas interpretações dos diversos espectadores que ela se pluri-significa.
A modernidade nela representada, no entanto, não chegou imediatamente à
consciência dos parisienses do final do século XIX. Estes, tardando em reconhecêla, fizeram de sua recepção motivo de escândalos.
O Impressionismo teria sido uma das formas do espetáculo que,
juntamente com a fotografia, os panoramas, as exposições universais, dentre outras,
estabeleceram a modernidade. Tal movimento é reavaliado pelo autor em seus
próprios termos - a pintura, o olhar e a aderência estrita aos fatos da visão. Para ver
a obra impressionista, porém, é preciso tomar distância: o recuo do pintor impõe o
recuo do espectador, e é esse mesmo afastamento que Clark persegue, enquanto
historiador da arte. Para isso, elegeu a matéria da pintura como objeto de sua
reflexão sobre onde, na natureza ainda realista retratada pelos impressionistas,
pode ser vislumbrado o desaparecimento da figuração e, com ela, parte do mundo
nela e por ela representado.
O autor postula, em quatro capítulos, teses que colocam em foco,
respectivamente, a cidade, a personagem, o espaço e as classes, para iluminar a
sociedade parisiense da época. A nova Paris, as duas Paris, ou ainda a semi-Paris é
a cidade que, por projeto e empreendimento de Haussmann, rompe o tradicional
conceito de urbe tranqüila e calma onde cada classe demarcava seu lugar.
A personagem é Olympia, pintada no quadro homônimo de Manet. Sua
representação é analisada a partir da problematização da categoria da prostituta,
protagonista social parisiense apresentada em seus diversos papéis e contracenas
com os clientes, a polícia e as autoridades. Essa rede de relações sociais deriva da
sua performance, gestualidade, trajetória e cena.
O espaço é aquele que se constrói nos arredores de Paris, nem cidade
nem campo, o “oposto do subúrbio” que o autor toma como ícone dos espaços
modernos que dariam continuidade a este território-novidade da haussmanização.
As classes sociais passariam por uma desconfiguração que, mais do que posterior
reconfiguração, resultaria numa indefinida figuração na condução de burgueses e
operários à convivência em situação de estranheza mútua nos locais recéminventados, os bares e parques freqüentados pela recente pequena-burguesia.
Enfim, o quadro social emoldurado por Clark representaria uma sociedade
do futuro e do espetáculo, incipiente e com a aparência incerta, mas já definitiva, do
sol de Monet5 que serviu de motivo à nomeação - por ironia dos críticos-, e à
autonomeação - por orgulho dos pintores-, do movimento que a pintura de Manet
preconizou.
As fontes utilizadas por Clark são várias. Percorre os jornais, revistas e
programas de exposição da época para analisar a recepção das obras através dos
enunciados de críticos de arte e da reação do público à arte exposta nos Salões ou
nas mostras impressionistas. As correspondências entre pintores e poetas e a
literatura da época, juntamente com alguns relatos de fragmentos de vidas e
comportamentos, corroboram a contrapartida dos artistas ilustrada, por exemplo, na
inconformidade de Manet frente ao repúdio de sua pintura. A leitura de imagem das
obras – o livro contém muitas reproduções cuja consulta visual auxilia o leitor no
acompanhamento do texto – cumpre o papel de interface entre as intervenções de
quem produz e de quem critica.
Por outro lado, Clark utiliza a análise de arte como pano de fundo para
descrever a Paris reconstruída por Haussmann, especialmente focados os dados
sociológicos que se prestam à interpretação do autor. Paris, ela mesma, pode ser
vista como uma grande obra em trânsito, um work in progress que começa com a
modernização urbana da capital francesa e não especificamente termina, já que se
estende pelo século XX na sobrevida de um capitalismo do qual tanto a
haussmanização quanto alguns quadros de Manet são nada menos que alguns dos
5
Presente na tela Impressão, Sol Nascente (1892), de Monet, óleo sobre tela com 48 cm x 63 cm.
Sobre o pintor, consultar SCHAPYRO (2002).
pontos de partida. Na paisagem rapidamente modificada, prostitutas, operários,
pintores, escritores, críticos, burgueses e pequeno-burgueses passeiam por entre
obras arquitetônicas, urbanísticas ou pictóricas e, de sua trajetória, se extrai
informes e reflexões sobre classe, relações econômicas e trabalho.
Especialmente interessantes são os espaços que circulam pelo livro. A
contemplação das reproduções de pinturas e gravuras lidas por Clark faz imaginar o
centro e a periferia tomados pela efervescência de uma metrópole em reconstrução.
Deixam transparecer a ruína social profeticamente anunciada na hora do parto da
nova Paris. Para esse retrato de uma urbanidade inédita e, paradoxalmente, já
derrotada, contribuem tanto as descrições dos boulevards centrais quanto das
paisagens recém edificadas de Argenteuil ou de Asnières; tanto a cama de Olympia
e suas companheiras de categoria – o que Clark afirma ser a prostituta – quanto os
bares, locais preferidos de Manet e dos impressionistas que, com a simpatia própria
dos freqüentadores assíduos, fazem deles a cenografia predileta de várias de suas
obras.
Tais espaços, entretanto, configuram mais do que contextos de vida dos
atores sociais tornados personagens pictóricos e literários. Os tijolos de Haussmann
e as tintas de Manet os convertem, através da reflexão de Clark, em agentes ativos
da modernização e precursores dinâmicos de uma modernidade que espreita no
horizonte de cada traço e cada pincelada. Extremamente críticas, as opiniões do
autor revelam seu afã de desvendar o véu de ilusão que encobre uma realidade que
se torna, pelas ações políticas e pelas visões artísticas, cada vez mais imagem.
O sentido de imagem veiculado aqui pode ser entendido não como uma
conquista que se estenderá às vanguardas pelo exercício de uma “planaridade”6,
cuja aceitação e difusão nos círculos pictóricos transmitem a força de um imaginário
moderno, transgressor e inovador. Clark entende imagem como ilusão da
modernidade, como destruição de históricas visões de mundo. Mas não somente
enquanto ruptura com o passado da tradição visual: possibilidades futuras são
igualmente assassinadas, mesmo que a cidade de Haussmann signifique, para o
barão, um fracasso político. No viés espacial, a passagem do tridimensional para o
6
Conceito utilizado por Clement Greenberg (1997; 2002) para definir um dos principais efeitos da
pintura moderna, aquele que ressalta a bidimensionalidade da tela versus o efeito de realidade que
domina a pintura desde o advento da perspectiva, na Renascença italiana. Sobre planaridade no
Impressionismo, ler HARRISON in FRASCINA (1998).
bidimensional em termos de pintura indica o desaparecimento de variáveis que
enquadravam vivências que não mais serão encontradas. A redução de três para
dois eixos simboliza não uma conquista, mas a perda da modernidade que, para
Clark, não pode ser celebrada.
Manet, em obras como L’Olympia e Un Bar aux Folies-Bergères, tanto
anuncia como ironiza estas des-aparições. Tais anunciações de modernidade se
dão em poucas obras, salienta o autor, mas elas são importantes indicadores da
desumanização que transfigura os traços fisionômicos em faces inexpressivas que
parecem pousar para uma fotografia. Na composição da pose de Olympia – no
posicionamento do cenário, dos adereços e dos figurantes de sua alcova, a mulher
negra e o gato -, assim como nas deformações espaciais que permitem o espelho
posicionado atrás da garçonete do bar de Folies-Bergères, Manet pinta aquilo que
não alcançam visualizar seus críticos.
Nestas telas, o artista entinta a esterilidade dos territórios que, na
representação ilusionista de lugar de convivência em que cabem todos, de todas as
classes, emerge uma barreira doravante invisível, mas inexorável, entre os corpos
que se encontram no rito social. O estar junto faz entrever, nos detalhes dos
quadros, o falso poder de um falso existir: mesmo que desejáveis e imitáveis, os
sonhos e hábitos burgueses são traídos pela pintura onde, por vezes, mal se
consegue adivinhar quem é quem. Fora dela, o dinheiro se torna cada vez mais a
língua cujo domínio balizará a pertença social, restando à obra ser apenas o que é,
imagem. O perigo, para Clark, está em crer que tal imagem seja uma espécie de
realidade.
A arte de Manet seria então uma espécie de alerta, se tivessem sido
compreendidos, em sua época, seus personagens proto-impressionistas. Eles são o
que são no ritual moderno do piquenique matinal ou da comemoração noturna
tematizados pelo pintor: são eventuais e momentâneos. Da fragilidade desses
momentos e figuras se nutrirá o futuro. De instantes fugidios e lugares inacabados
será feita a modernidade pictórica. Com personagens autistas se povoará a arte que
se anuncia na década de 1860.
A modernidade embutida nas telas de Manet, enfim, anuncia – como
outras telas o fizeram na Renascença. Se questionada esta anunciação moderna,
“quais seriam as boas novas?”. Clark responderia com um pessimismo exemplar: há
novas, mas não necessariamente boas. Da transitoriedade daquele tempo de
mudanças e novidades da capital parisiense, o que transcende é apenas isso:
transitoriedade, mudanças e novidade. A imagem da modernidade apagará o
cenário e mesmo os personagens, deixando em seu lugar as indeterminações de um
falso dinamismo que não denota senão seu próprio mover-se e sua ansiedade.
Quanto à classe, ela se tornou invisível na pintura burguesa, embora a
inspirasse. Se esta classe definiu a imagística da época, sua imagem fundou-se,
entretanto, em outra, a classe trabalhadora da prostituta Olympia e da garçonete do
bar de Folies-Bergère. Vinculados aos interesses e hábitos econômicos da
burguesia, porém, a maior parte dos pintores da época selecionou assuntos e
desenvolveu técnicas que levaram a arte ao status de mercadoria e a subordinaram
ao mercado, para agradar à figura emergente do crítico-marchand. Entre as
exceções a esse comportamento comum Clark aponta Manet que, em alguns de
seus quadros, mostrou as brechas da representação da época.
Estas fendas demonstram, conclui Clark, que pertencer a uma classe e
compartilhar sua ideologia é também estar em condições de expor seus limites e
incompetências.
A
pintura
moderna
pôde,
enfim,
ver
representado,
sem
necessariamente pretender, o ponto de vista do proletariado em sua ambígua, mas
explícita, permanência nas telas de Manet.
REFERÊNCIAS
CLARK, T. J. A pintura da vida moderna. Paris na arte de Manet e de seus
seguidores. Tradução de José Geraldo Couto, coordenação de Sérgio Miceli. São
Paulo, Companhia das Letras, 2004, 469 páginas.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Comentários sobre a sociedade do
espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto,
1997, 238 páginas.
FRASCINA et alii. Modernidade e modernismo. A pintura francesa no século
XIX. São Paulo: Cosac & Naify, 1998, 297 páginas.
GREENBERG, Clement (e outros). Clement Greenberg e o debate crítico. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1997, 280 páginas.
____________________. Estética doméstica. Observações sobre a arte e o
gosto. SP: Cosac & Naify, 2002, 288 páginas.
SCHAPYRO, Meyer. “O impressionista exemplar: Claude Monet”, 195-221 pp. In:
Impressionismo. Reflexões e percepções. Tradução de Ana Luiza Dantas Borges.
São Paulo: Cosac & Naify, 2002, 359 páginas.
ZOLA, Émile. A Batalha do Impressionismo. Tradução de Martha Gambini. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1989, 328 páginas.

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