no tempo da guerra fria - a casa do mago das letras

Transcrição

no tempo da guerra fria - a casa do mago das letras
NO TEMPO DA GUERRA FRIA
L P Baçan
Edição Eletrônica: L P B Edições
http://www.acasadomagodasletras.net
Direitos exclusivos para língua portuguesa:
Copyright © 2014 L P Baçan
Todos os direitos reservados.
Proibidas a reprodução e a divulgação.
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida por
forma alguma ou qualquer meio sem a expressa
autorização do autor.
2014
NO TEMPO DA GUERRA FRIA
PARTE 1
FÉRIAS CINZENTAS
O ALERTA PRIMAVERA
Lá fora o ruído das turbinas se tornava ensurdecedor,
mas, no interior do aparelho, era apenas um suave zumbido
que não chegava a incomodar Oliver Clark. Quando o
pesado Boing 747 da Lufthansa taxiou em direção à
cabeceira da pista do Kennedy Airport, em Queensborough,
Nova Iorque, passou ao lado de um imponente Tristar da All
Nipon Airway, depois ganhou caminhou livre. O piloto
deixou-o seguir mansamente, enquanto testava pela última
vez as turbinas e realizava a checagem final com seus
ajudantes. Oliver permaneceu atento ao aviso luminoso, no
alto do painel. Quando se apagou, ele soltou o cinto de
segurança e acendeu um cigarro. Respirou fundo, deixando
para trás o inverno americano que tornava a cidade tão sem
atrativos para o seu gosto. O rigor da neve desfolhara as
árvores do Central Park e tornara mais agudos os reflexos da
claridade na fachada espelhada do Lincoln Center
Performing of Arts. No Rockefeller Center, a atração era a
pracinha do ringue de patinação, sempre repleta de crianças,
jovens e adultos.
Oliver Clark tinha quatro semanas de férias a sua
frente, reservas nos principais hotéis das capitais europeias,
um Eurailpass, muito prático e cômodo de viagem. Seu
destino inicial era Frankfurt. Pretendia visitar,
especialmente, o Palmen Carten e apreciar demoradamente
as duas mil espécies de orquídeas e cactos, antes de realizar
um cruzeiro pelo Reno. Um amigo do Departamento do
Tesouro recomendara o excelente vinho de maçã de Sachsen
Hausen, um bairro do outro lado do rio. Ali encontraria,
mais precisamente na taverna Grauer Bock, o melhor
Appelwool da Alemanha. Outro recomendara, com muita
malícia, uma passagem pela Elliot Ellis, uma das mais
importantes e tradicionais boates da cidade. Outro lhe pedira
que comprasse uma navalha de aço Solingen. Pedidos
semelhantes haviam chovido, quando souberam que ele
pretendia viajar pela Europa durante as férias. Seu próprio
chefe, sempre tão preocupado com assuntos de segurança, o
procurara, encomendando-lhe certo vaso de porcelana,
dando-lhe um endereço de uma loja, na Friedresstrasse.
Oliver sorria sempre e concordava com todos,
prontificando-se a atender cada pedido. Seguramente se
esqueceria de todas as encomendas. Não seria difícil
justificar-se depois. Poderia afirmar que, por problema de
excesso de bagagem, as encomendas haviam ficado retidas
na alfândega. Talvez, melhor ainda, fosse dizer
simplesmente que fora roubado.
Retirou do bolso de seu paletó um prospecto do
Frankfurt Plaza Hotel, escolhido por ele pela excelente
localização, a apenas quinze minutos do aeroporto e dez do
centro, próximo ainda do Salão de Exposição. Leu-o por
algum tempo, inteirando-se das comodidades oferecidas,
depois relaxou o corpo. Uma aeromoça parou ao seu lado,
oferecendo-lhe uma bebida. Sorriu e ela retribuiu com um
sorriso agradável.
— Scotch com água — pediu ele.
Ela serviu o copo e estendeu-o. Ao apanhá-lo, seus
dedos se roçaram num movimento casual.
— Mais alguma coisa? — ela indagou, sempre
sorrindo fácil e agradavelmente.
Ele sorriu em resposta e fez um movimento negativo
com a cabeça. Ela seguiu em frente, servindo os outros
passageiros. Oliver inclinou-se ligeira e propositadamente
para o lado, observando-a dobrar-se sobre o carrinho. A saia
curta deixava à mostra coxas perfeitas e joelhos bem
torneados. Como que se sentindo examinada, ela voltou a
cabeça e seus olhares se encontraram. Trocaram sorrisos.
Ela seguiu em frente, terminando de servir a todos e
retornando, passando outra vez por Oliver que lhe sorriu.
Ela respondeu e foi até o fundo, onde se encontrou com
outra aeromoça que servira os passageiros da outra classe.
— E então, o que temos de novo? — indagou aquela
que servira Oliver.
— Os mesmo de sempre. Apenas casais de velhos e
estudantes. Há um homem sozinho, mas maduro demais
para o meu gosto. E você, teve melhor sorte?
— Há um homem ali na frente, distinto, simpático,
com um ar característico de executivo em férias.
— Onde? — apressou-se em perguntar a outra.
— Poltrona quinze A.
A garota, uma loura com sardas e cabelos soltos sobre
os ombros, pôs-se nas pontas dos pés para olhar. Naquele
momento, Oliver também se erguia e girava a cabeça para
trás, procurando pela aeromoça que o servira. Abaixou-se
em seguida, ao perceber que era, seguramente, o motivo da
conversa das duas jovens. Sorriu mais uma vez,
ligeiramente, depois tomou um gole relaxante de uísque.
— Era aquele? — indagou a loura à amiga, morena, de
cabelos curtos, cortados rentes à nuca.
— Sim, ele mesmo. O que me diz? — retrucou, com
um acento de malícia embelezando seu rosto expressivo.
— Está de férias, disponível e acessível, ansioso e
seguramente vai tornar sua escala de um dia em Frankfurt
uma delícia, colega — diagnosticou a outra, com o mesmo
toque de malícia no rosto sardento.
— Foi o que pensei — sorriu a morena, pensando,
talvez, em como tornar as coisas bem fáceis para aquele
agradável executivo em férias.
***
Parado diante da janela, Kurt Stadt fitava os trezentos e
sessenta e cinco metros da torre de televisão, na Alexander
Platz, detendo o olhar no último dos andares, onde ficava o
café, numa plataforma giratória. Parecia ligeiramente
impaciente e irritado. Fora retirado de um agradável
encontro com amigos numa cervejaria e convidado a se
apresentar à sede da recém-criada UDL, sigla de uma
agência de contraespionagem dos russos, instalada em
território da República Democrática Alemã. Quando
chegara, disseram-lhe apenas que deveria aguardar o
superintendente. Certamente se tratava de alguma coisa
urgente, pois o horário era bem impróprio. Sentia-se ainda
com fome e ligeiramente embriagado. Uma olhada na
direção do café, na torre de televisão, pareceu acentuar nele
essas sensações.
Uma porta se abriu a suas costas e um homem ficou
esperando, enquanto mantinha uma das mãos na maçaneta e,
com a outra, segurava alguns papéis diante dos olhos. Kurt
se voltou e esperou alguma ordem. O superintendente
levantou os olhos para ele, soltou a maçaneta e fez meiavolta, caminhando até uma escrivaninha de mogno, num
canto do aposento. Atrás dele havia um pedestal, com a
bandeira do país. À direita e à esquerda, enormes estantes
repletas de livros cobriam todas as paredes, com exceção de
um canto, ao lado da porta, onde havia uma vitrine com
algumas das armas russas mais modernas. Kurt avançou,
parando diante da escrivaninha. O superintendente fez um
gesto para que ele se sentasse, depois continuou atento aos
papéis que mantinha diante dos olhos. Quando terminou,
afinal, a leitura, jogou-o sobre a mesa e uma expressão de
incredulidade estampou-se em seu rosto. Encarou Kurt,
como se lhe pedisse desculpas por interrompê-lo com seus
amigos. Kurt esperou que ele dissesse alguma coisa, mas o
superintendente continuou pensativo e silencioso,
analisando com certeza o que acabara de ler. Kurt baixou os
olhos para as folhas de papel que o outro jogara sobre a
mesa. Havia uma folha de telex e algumas outras,
possivelmente traduções ou interpretações do código
empregado na mensagem.
— Está de licença, não, Kurt? — indagou o
superintendente, rispidamente, com aquela maneira peculiar
de intimidar seus subalternos, pondo-se sempre num plano
superior que, mesmo quando pedia desculpas delicadamente
dava a entender que cumpria apenas uma formalidade sem
importância, já que o homem diante de si deveria estar a sua
disposição vinte e quatro horas por dia, trezentos e sessenta
e cinco dias por ano.
— Sim, senhor! — respondeu Kurt, com o clássico tom
marcial de quem servira anos e anos nas forças armadas e
jamais perderia a pose.
De fato Kurt fora um militar. Servira nos últimos anos
na base de Tokaeyr, ao norte de Berlim Oriental,
destacando-se pela criatividade no setor de inteligência e
investigações. Menos de um ano antes, fora chamado à sala
do seu comandante, Coronel Kaller, que lhe estendera uma
folha de papel onde deveria assinar, solicitando sua baixa.
Surpreso, Kurt ficara segurando o papel durante alguns
instantes, até que o seu superior lhe explicasse o significado
daquilo. Uma nova seção de contraespionagem estava sendo
criada, sob ordens dos russos, para exercer especial atenção
quanto à situação americana no campo das novas armas,
principalmente das armas de defesa que anulariam armas
russas recém-criadas. Kurt era um oficial dedicado e
inteligente, sem ficha nos arquivos de espiões das principais
agências internacionais. A nova seção pretendia permanecer
desconhecida o tanto quanto possível. Ultimamente sem
qualquer explicação plausível para a coincidência, os
americanos vinham desenvolvendo uma nova contra-arma,
sempre que os russos criavam algo de novo no gênero.
Nenhum esquema definido fora ainda implantado, já que a
agência mal saíra da sua fase pré-operacional. Kurt mal
havia penetrado nos segredos de suas novas atribuições, mas
adivinhava, pelo que pudera perceber durante os
treinamentos, que sua nova função seria importante e, por
que não reconhecer, excitante. Possivelmente teria de viajar,
de investigar, de usar sua inteligência para resolver
situações que embaraçariam os seres humanos comuns.
— Sua licença está cancelada. Você começará a agir. É
sua primeira missão — disse-lhe, afinal, o superintendente.
— Sim, senhor! — Kurt respondeu, sem pestanejar,
sentindo-se ligeiramente eufórico e transparecendo isso na
expressão de seu rosto.
— Você deve partir para Frankfurt imediatamente. Lá
se hospedará no Frankfurt Plaza Hotel. Uma reserva já foi
providenciada em seu nome. Neste envelope encontrará
dinheiro e um passaporte. Nesta maleta está uma séria de
artigos que você saberá empregar. Para todos os efeitos, é
um oficial do exército democrático alemão em férias. Fique
por lá até a chegada de um americano chamado Oliver
Clark. Ele tem uma reserva. Assim que notar a sua chegada,
procure mantê-lo sob severa vigilância. Receberá, depois,
novas instruções. O importante, no momento, é que
saibamos onde está aquele americano. Compreendeu?
— Sim, senhor! — ele respondeu, apanhando o
envelope e a maleta que o superintendente havia posto sobre
a mesa.
Particularmente interessado no envelope, abriu-o e
encontrou ali notas altas de marco alemão e de dólares
americanos. Antes que se refizesse da surpresa, o
superintendente falou:
— Deve manter-se junto daquele americano. Se ele
viajar para alguma parte, acompanhe-o. Faça isso e nos
comunique sua nova localização tão logo possível. O
importante, repito, é não perdê-lo de vista. Deve estar com
ele quando decidirmos o que deverá ser feito.
— O que deverá ser feito em que sentido, senhor? —
arriscou perguntar.
— Se for preciso, você saberá quando chegar a hora.
Deve viajar imediatamente. Um carro o levará a Berlim
ocidental, através do posto Charlie, até o Aeroporto Tegel.
Um avião partirá em duas horas para Frankfurt. Você estará
nele. Uma vez lá, aguarde novas instruções, mas não perca o
americano de vista, compreendeu?
— Sim, senhor! — confirmou Kurt, guardando o
envelope no bolso interno do sobretudo e apanhando a
maleta.
***
Marbur Krantz, o superintendente da UDL, deixou sua
sala imediatamente após a saída de Kurt Stadt. Avançou
pelo longo corredor, passando por inúmeras portas fechadas,
até chegar à última delas, que se abria para um amplo
aposento com apenas uma mesa de reuniões ao centro.
Alguns homens se encontravam ali, ocupando metade dos
lugares. Ergueram os rostos a sua chegada, depois voltaram
a se concentrar nos papéis que tinham diante de si. Eram
cópias daqueles que Marbur lera em seu escritório, antes do
encontro com Kurt. Tratava-se realmente de alguma coisa
importante, já que reunia numa mesma sala o
superintendente da UDL, o chefe da PPT, uma ramificação
da KGB, ligada aos assuntos bélicos, um dos principais
agentes russos, seu chefe imediato e Hamsher Knult, chefe
supremo da WEIMAR, que centralizava todas as
superintendências
de
apoio
à
espionagem
e
contraespionagem soviéticas. Marbur sentou-se e passou os
olhos pelos papéis que trouxera. Depois se reclinou em sua
cadeira e ficou esperando que os outros terminassem.
O chefe da PPT, Weiner Mann, terminou primeiro.
Levantou os olhos e encarou diretamente Marbur Krantz.
Esboçou um sorriso ligeiramente irônico, que Marbur
retribuiu na mesma medida. Havia certo antagonismo entre
os dois, justificado porque a PPT vinha fazendo, até então,
entre outras atividades, o controle das contra-armas
inventadas pelos americanos. Ano após ano, no entanto, e
principalmente no último deles, sofrera severas críticas por
parte da KGB, considerando que nada de positivo
conseguira apurar das informações que vinham vazando
sistematicamente. Weiner Mann pressionara seus agentes,
mas era como se trabalhassem na mais completa escuridão.
Nada havia de positivo. Nada apontava para uma pisa
concreta. O próprio intercâmbio de informações com as
outras seções nada trouxera de positivo. Quando a KGB,
finalmente, decidira criar a UDL, Weiner Mann protestara e,
em represália, quase tivera cassado seu posto e sido jogado
no mais obscuro ostracismo. Suas relações com alguns altos
figurões do partido haviam mantido seu cargo, que pendia,
agora, por um fio. Com isso, tivera de resignar-se, certo de
que a UDL não teria sucesso igualmente e tudo seria apenas
uma questão de tempo até que compreendessem que a
criação daquela seção específica em nada resolveria os
problemas que enfrentavam. Para sua decepção e raiva, no
entanto, aqueles papéis diante de si provavam o contrário.
Não podia adivinhar de onde Marbur tirara aquelas
informações nem o que pretendia com elas. O simples fato
de ter alguma coisa para apresentar, porém, frustrava
Weiner. Ele sabia que qualquer coisa que pudesse abalar a
cúpula daria ao seu rival uma projeção inusitada e,
seguramente, reforçaria a confiança dos superiores na nova
seção.
Alexander Rokim, chefe local da KGB, terminou a
leitura em seguida. Ergueu os olhos para Marbur e
cumprimentou-o silenciosamente, dando sua aprovação.
Alexander fora um dos que mais se empenharam na criação
da UDL, mesmo reconhecendo que se tratava de um jogo
perigoso. Se a UDL obtivesse sucesso, ele receberia parte do
reconhecimento. Se falhasse, cairia fatalmente em desgraça.
Acreditava, porém, no material que Marbur conseguira.
Apostara nele e julgava-se vencedor. Aqueles papéis
provariam isso, principalmente a Weiner Mann, a quem ele
olhava agora com desdém.
Bakou, o principal agente russo a operar no ocidente,
depositou os papéis diante de si em por um longo tempo,
fitou friamente Marbur. Havia incredulidade em seus olhos,
como se a leitura do papel o tivesse transportado a uma
fantasia que ele ainda não definira se era patética ou
hilariante.
Hamsher Knult foi o último a terminar a leitura.
Retirou os óculos e depositou-o sobre os papéis. Depois
dobrou cuidadosamente cada uma das hastes de metal para
dentro, com gestos lentos e metódicos, como se precisasse
ganhar tempo para pensar profundamente no que havia
terminado de ler. O que tinha ali era fruto do trabalho de
uma de suas agências. Como sempre fizera, pensava nos
prós e contras e, ao mesmo tempo, procurava esboçar um
plano de ação.
Ao notar que todos haviam terminado a leitura, Weiner
pigarreou discretamente e todos olharam na sua direção. Ele
bateu o indicador de uma das mãos sobre os papéis, num
gesto até certo ponto dramático, depois disse:
— É uma fraude! Não pode e não vai levar a nada,
estejam certos disso.
Marbur Krantz sorriu. Alexander Rokim levou a mão à
testa, como se pretendesse alisar os cabelos, mas conservoua ali, enquanto abaixava a cabeça, escondendo o riso
debochado em sua boca. Girou lentamente a cabeça, então,
para que seu olhar se encontrasse com o de Marbur.
Hamsher Knult adotou uma expressão severa.
— O que temos aqui não é uma disputa familiar por
um troféu de eficiência, Weiner. É algo que devemos
analisar cuidadosamente, pois pode responder a uma série
de perguntas que nos têm incomodado há muito. Quais são,
afinal, seus argumentos para afirmar que tudo isso não passa
de uma fraude? — indagou Hamsher, com rispidez.
— Justamente pelo fato de se dispor a responder a
todas essas perguntas. É conveniente demais, por isso me
parece suspeito...
— Parece-lhe ou é? — cortou-o ironicamente Marbur.
— É suspeito. Temos andado às tontas em busca de
uma resposta para o vazamento de informações nos planos
bélicos. Nada surgiu, nada apontava a nada, nenhum nome
era suspeito, nenhum fato, por menor que fosse, pôde ser
detectado. Agora surge isso, praticamente indicando o
caminho. Pode nos dizer a fonte, Marbur?
Seguramente Marbur havia pensado na possibilidade
de que aquela pergunta lhe fosse feita. Sorriu com
tranquilidade, muito embora não tivesse, realmente, sido
contemplado com um golpe de sorte. A ansiedade em
demonstrar sua eficiência e em apresentar resultados o havia
feito deixar de lado as principais precauções. Depois, se a
informação devesse ser levada em conta ou não, isso não lhe
competia. Seu trabalho era conseguir pistas e aguardar
ordens para agir. Encontrara algo plausível. Decidir se
aquilo valia ou não a pena ficava a cargo de Hamsher Knult
e Alexander Rokim.
— É um princípio básico o respeito à fonte de
informações de cada uma das seções — observou ele. —
Poderia invocar esse direito e me recusar a informá-los, mas
devo aproveitar o momento para um crédito de confiança
em minha equipe. Como já devem ter conhecimento,
tivemos um dia de turbulência solar hoje. Quando isso
ocorre, as comunicações via satélite, principalmente, sofrem
estranhos efeitos de interferência. Apesar disso, ordenei que
minha equipe permanecesse na escuta durante o período,
gravando tudo que surgisse, a despeito da interferência.
Depois tratamos de filtrar e selecionar todo o material.
Finalmente chegamos a algumas mensagens em código, que
nos pareciam importantes. Ficamos surpresos, porém, ao
verificar que numa delas os americanos usavam um código
há muito abandonado. Isso, vale dizer, só conseguimos após
algumas horas de estudos. Jamais poderíamos imaginar que
voltassem a usar o tal código, mas a ideia me chamou a
atenção pela originalidade, digna mesmo dos americanos.
Usavam um código já caído no esquecimento. Podem
imaginar o que isso significa para nossos computadores?
Toda uma programação já havia sido desativada. Seria uma
das últimas hipóteses a que ele recorreria, em seu trabalho
de decodificação. Calculando as probabilidades, o
computador levaria cinco semanas para chegar a esse
código. Oliver Clark estará de férias por apenas quatro
semanas. É evidente que os americanos pensaram nisso.
Precisavam de tempo, de quatro semanas apenas, tempo
suficiente para Oliver Clark se divertir no velho mundo.
— Engenhoso! — comentou Hamsher. — Como
chegaram, então, tão rápidos à resposta? — quis saber em
seguida.
— Um descuido da parte deles, que jamais
imaginariam que tivéssemos obtido a chave para esse
código. Devem compreender o que significa um código, a
dificuldade tanto para sua elaboração quanto para sua
decodificação, para quem o desconhece. Sabemos, porém,
que, caso uma mensagem cite a chave que libera uma
programação de computador para decodificação, ela pode
ser decifrada num computador assemelhado, com a mesma
programação. Nós temos algumas dessas programações
deles, assim como eles têm algumas das nossas. Resumindo,
a chave da programação indica que tipo de código está
sendo usado e é necessária ao destinatário da mensagem,
sem o quê ela jamais poderia ser decodificada...
Uma gargalhada explodiu na sala e Weiner Mann
debruçou-se sobre os papéis. Amassou-os em suas mãos,
depois os atirou para trás.
— Lixo! Puro lixo! — disse zombeteiro. — Os
americanos não são estúpidos.
— Por que afirma isso? — indagou-lhe Hamsher que,
seguramente, em nada o apreciava.
— Eles não nos entregariam de mãos beijadas um
importante segredo, nem nos daria toda a chance de chegar à
solução de nossos problemas. A menos que estivessem
tramando algo contra nós. Algo que não consigo imaginar,
mas que, com certeza, nos afetará tanto ou mais que a
evasão das informações sobre o material bélico.
— Deduções sem base alguma — refutou Marbur, que
levava vantagem sobre o rival; preocupado apenas em atacar
e demonstrar seu visível despeito. — Deciframos o código
inicial. A mensagem está aí, diante de todos: Oliver Clark
vg prioridade Gold pt Intervalo cinco vg alerta primavera pt.
Prioridade Gold significa que Oliver Clark trabalha no
Departamento do Tesouro Americano. Intervalo cinco e
alerta primavera querem dizer que se encontra em férias e
que deve comunicar-se com uma embaixada ou posto de
segurança a cada cinco dias, atestando que se encontra bem
e com vida. Ora, o intervalo cinco é o de máxima segurança.
Significa que seu detentor ocupa um dos mais importantes
postos no departamento. A partir daí, numa investigação
preliminar, procuramos saber quem era ele. O tempo foi
escasso. Soubemos apenas que não se trata de um figurão,
mas de um funcionário qualificado, titular de um posto para
o qual só existe outro elemento capaz de substituí-lo e isso
acontece apenas durante as férias de Oliver, suspeitando-se,
o que é digno de atenção e maiores investigações, que
Oliver Clark trabalha intimamente ligado ao serviço de
pagamento de agentes estrangeiros. Só essa resposta
justificaria a mensagem transmitida a todos as embaixadas e
postos de segurança americanos. Fizemos mais alguns
contatos e descobrimos que Oliver Clark se encontra agora
viajando rumo a Frankfurt, num Boing 747 da Lufthansa.
Chegará ao destino em mais ou menos oito horas. Adquiriu
um Eurailpass para quatro semanas e fez reservas nos hotéis
das principais capitais da Europa, terminando em Paris,
onde tem confirmado seu retorno a Nova Iorque num
Concorde da Air France, para daqui a quatro semanas.
Houve um descuido dos americanos na transmissão da
mensagem. A presença da chave para a tradução do código,
de nosso conhecimento, permitiu-nos decifrá-la. Há um
americano, possivelmente um pagador, ao nosso alcance. Se
mantivermos sob vigilância nós o teremos à mão, enquanto
procuramos obter a confirmação de seu posto no
Departamento do Tesouro. Sabemos que se trata de um
funcionário altamente qualificado. A partir do momento em
que confirmarmos sua importância para nós, teremos
praticamente pronto um esquema para sequestra-lo. Através
dele, então, poderemos chegar à solução do grave problema
que afeta nossa defesa, ou seja, o vazamento das
informações que permite aos americanos a criação de
contra-armas.
— Pode nos adiantar alguma coisa sobre como chegar
a essa solução? — ironizou Weiner.
— Minha equipe já se encontra trabalhando nisso. É
preciso salientar que vamos enfrentar um dos mais
sofisticados esquemas de segurança dos americanos.
Estamos acionando agentes em Washington e outros
colaboradores, esperando em breve termos os elementos
necessários para articular uma operação. Para tanto,
precisamos apenas que seja ordenada uma prioridade —
disse, olhando na direção de Hamsher Knult.
Este se voltou para Bakou, que até então estivera em
silêncio. Era, talvez, o elemento mais habilitado para dar um
parecer abalizado sobre o assunto. Estava há dez anos no
serviço secreto russo, agindo no ocidente. Conhecia os
americanos, suas manhas e seus truques. Era frio e
desconfiado, embora seu rosto ostentasse uma aparência
jovial e esportiva, anacrônica para seus quarenta e tantos
anos. Era alto e espadaúdo, de olhos miúdos e sobrancelhas
espessas. O nariz era delicado, quase feminino. A boca era
um rasgo apenas em seu rosto. Os lábios finos e
excessivamente vermelhos indicavam que se encontrava no
melhor de sua forma.
— Conheço o modo de agir dos americanos. A
princípio me surpreendi e duvidei da validade dessa
mensagem interceptada. Depois, analisando melhor,
pensando nas situações que já enfrentei contra o estilo
americano, cheguei à conclusão que poderia haver uma
possibilidade...
— Então não há uma possibilidade ainda. Ela apenas
poderia vir a existir — cortou-o Weiner, com uma ironia
irritante.
— Há uma possibilidade — corrigiu Bakou, brindando
Weiner com um olhar glacial.
Weiner estremeceu e calou-se. Conhecia a fama de
Bakou. Com um sorriso nos lábios ele apertava o gatilho de
uma arma e matava friamente.
— Há uma possibilidade — repetiu Bakou, lentamente,
quando percebeu que Weiner se aquietara, afinal. —
Devemos investigar, portanto.
— Então que assim seja — decidiu Hamsher. —
Pressione seus agentes, Marbur. Receberá toda a
colaboração que solicitar. A prioridade será decretada
imediatamente. Quero uma nova reunião tão logo chegue a
algo positivo. Balou estará a serviço da UDL. Estou certo
que vocês dois desenvolverão a melhor estratégia para
atingirmos nossos objetivos.
MATERIAL SUSPEITO
Bakou acompanhou Marbur até a sala da UDL.
Caminhou às costas do superintendente, fitando sua nuca
com um olhar neutro e, talvez por isso, intimidador. Jamais
se poderia saber o que um homem como Bakou pensava.
Naquele mesmo momento ele poderia estar se recordando
de certa recepcionista de um hotel de Londres, com quem
passara uma semana inesquecível num minúsculo
apartamento de Charing Cross. Ela era hábil em preparar
pizzas e comidas congeladas e insuperável na maneira
maravilhosa de fazer amor. Possivelmente jamais saberá que
abrigara em sua casa, por uma semana, o mais perseguido
espião estrangeiro em território inglês, responsável direto
pela morte de um contraespião particularmente eficiente que
se aproximara demais de uma descoberta sobre certa rede de
informações de importância vital para a Primeira Divisão da
KGB.
Marbur apontou-lhe uma cadeira. Bakou sentou-se,
abriu o sobretudo e retirou uma cigarreira. Prendeu o filtro
de um dos cigarros entre os dentes e ficou empurrando-o de
um lado para outro com a ponta da língua, enquanto
pensava. Marbur encarou-o.
— Sinto que algo o preocupa, Bakou. De que se trata?
— indagou, sondando-o.
— Qualquer coisa não se encaixa. Há um ponto falho
nisso tudo, Marbur. Por que os americanos usariam um
código ultrapassado incluindo na mensagem a chave para
que pudesse ser decifrada, justo num período de turbulência
solar, quando suas comunicações poderiam ser interceptadas
com maior facilidade? — Bakou retrucou, mais como se
expusesse as perguntas a si mesmo, procurando fechar um
elo frágil naquela cadeia de fatos que lhe fora apresentada.
— Pensei nisso também. A primeira hipótese é a mais
viável: Eles não sabem que possuímos as chaves de alguns
de seus códigos, devidamente catalogados em nossos
computadores. Segunda: num período tão impróprio,
certamente podem ter julgado que não nos daríamos ao
trabalho de permanecer na escuta, o que seria também
plenamente aceitável.
— O assunto é de segurança máxima. Jamais eles se
deixariam guiar por suposições, Marbur — interrompeu-o
Bakou, ainda pensativo.
— Há uma terceira hipótese também. Esse foi o
período escolhido por Oliver Clark para viajar. Você deve
saber melhor do que eu que, nesses assuntos burocráticos, os
americanos são exigentes. As férias de Oliver Clark se
iniciavam nesse período e não poderiam ser antecipadas ou
adiadas, considerando a importância de seu trabalho e de
sua necessidade psicológica de relaxar. Juntando tudo isso,
temos mais do que o bastante para acreditar na veracidade
da mensagem interceptada. Oliver Clark entrou em férias. É
um funcionário prioridade Gold, intervalo cinco. A notícia
de sua viagem tem de ser transmitida às embaixadas e
postos de segurança para que tomem as providências
necessárias. No entanto, há o problema da turbulência solar
que afeta as comunicações. Um código novo poderia ser
arriscado, mas temem que captemos a mensagem e que
possamos decodificá-la a tempo. Usam, então, um código
ultrapassado, com sua chave de segurança, sem suspeitar
que isso nos permitiria decodificá-la, pois a temos em
nossos computadores. Precisavam fazer isso, isto é, incluir a
chave. De que outra forma as embaixadas e postos de
segurança conseguiriam traduzir o antigo código? Usaramno sem pestanejar. Analisando as probabilidades de que ele
fosse decifrado, chegaram à mesma conclusão que nós:
seriam necessárias cinco semanas de trabalho de um
computador especial para chegar ao segredo. Quando isso
acontecesse, Oliver Clark já teria terminado suas férias. Não
contavam, porém que esse código nos fosse acessível em
função da chave de segurança que eles precisaram incluir —
concluiu Marbur, encarando Bakou com confiança.
O agente especial, no entanto, ostentava a mesma
fisionomia de antes, como se alguma coisa o incomodasse e
toda a sequência de deduções de Marbur não o tivesse
impressionado. O superintendente da UDL demonstrou uma
ligeira irritação, percebendo que não seria fácil trabalhar
com alguém tão importante como Bakou por perto.
Perturbava-o saber que o outro possuía fortes influências na
Primeira Divisão. Agradá-lo, portanto, seria abrir caminho a
essas mesmas influências. Isso, de certa forma, poderia ser
difícil, caso Bakou resolvesse adotar uma conduta pessoal
de investigação, relegando o trabalho da UDL a um plano
secundário.
— Estou nisso há muito tempo, Marbur. Sei o que
significa exatamente a expressão segurança máxima. Não se
admitem hipóteses. Foge-se das meras suposições.
Desconfia-se de todas as possibilidades. Estudam-se todas
as probabilidades. É como construir uma cerca de palitos de
sorvete ao redor de um rato assustado, tentando barrar-lhe o
caminho e encurralá-lo. É um trabalho estafante.
— Oliver Clark decidiu viajar e... — ia dizendo
Marbur.
— Suas férias estavam marcadas com antecedência.
Férias são marcadas com antecedência. Possivelmente
exigiram-lhe as datas da viagem, o roteiro, tudo. Nada pode
ser improvisado nesse campo.
— Em resumo, quer me convencer que tudo o que
temos é um enorme zero à esquerda? — indagou Marbur,
quase com rispidez, traindo sua irritação.
— Temos alguma coisa — Bakou afirmou com
serenidade. — Não sei, porém, o que temos.
— Kurt Stadt já seguiu para Frankfurt. Sua missão será
acompanhar Oliver Clark e vigiá-lo. Enquanto isso, vamos
elaborar questões específicas para nossos agentes nos
Estados Unidos e colaboradores das outras seções. Vamos
ter em breve um dossiê completo de Oliver Clark.
— Vou ajudá-lo nisso, Marbur. Meus amigos em
Washington nos informarão tudo sobre a seção onde ele
trabalha. Isso pode ser de vital importância — Bakou disse e
Marbur confirmou com um aceno de cabeça, demonstrando
certa satisfação ao perceber que, apesar das dúvidas, Bakou
se dispunha a agir com seriedade profissional.
***
O Serviço de Transmissões e Escuta do CIR, Escritório
de Espionagem e Pesquisa do Departamento de Defesa
Norte Americano, ocupa uma enorme sala no subsolo de
uma das seções do Pentágono. Ali, ao longo de complicados
aparelhos de radiotransmissão, enfileiram-se homens e
mulheres, com fones de ouvido, atentos ao que ouvem,
manipulando botões, acionando gravadores, fazendo girar
poderosas antenas instaladas num ponto de segurança total
na Base Garrard, nos arredores da cidade de Washington,
capital do país.
Os aparelhos são divididos em seções, identificadas por
plaquetas de acrílico coladas ao concreto, acima dos feixes
de fio que correm ao longo da parede. A seção Verde
encontra-se sintonizada no Sul da Europa. A Amarela, no
norte, a Marron, nos países orientais e assim por diante.
Cada seção é dotada de, no mínimo, cinco aparelhos de
escuta e transmissão. Algumas seções, como a russa,
possuem um número maior, justificado pela presença russa
num amplo território.
Angus Hyde era o responsável pelas comunicações de
alta prioridade e segurança máxima. Acionava o
computador e codificava as mensagens que eram, depois,
entregues à seção específica para transmissão. Seu trabalho
compreendia a escolha do código e a destruição da
mensagem original, o que era feito numa máquina picadora
de papel. Esta reduzia uma folha num punhado de tiras tão
finas quanto um fio de cabelo. Estas, por sua vez, eram
imediatamente incineradas. Era um trabalho importante e
Angus se orgulhava dele. Era um americano comum, de
rosto largo, com pouco mais de um metro e sessenta, o que
lhe dava a aparência de um boxeador. Durante o serviço
militar, havia praticado o boxe e chegara às finais do
campeonato de sessenta e cinco, sendo derrotado por um
descuido lamentável. Seu oponente o atraíra para uma
armadilha comum, fingindo-se abalado com um golpe
recebido. No afã de levá-lo imediatamente a nocaute, Angus
avançou resolutamente, preparando e soltando sua
demolidora direita. Comentara, mais tarde, que se vira
desequilibrado ao socar o vazio. Em seguida, vira apenas
uma veloz massa marrom rumando para seu rosto,
apagando-o por completo com o impacto. Deixara o boxe
para sempre depois daquela luta, mas não o exército.
Gostara da experiência e iniciara uma carreira que
rapidamente o levou a West Point, onde se graduou com
distinção, especializando-se em comunicações. Cinco anos
depois, assessorava o chefe da Seção Europa-Norte. Um ano
mais tarde assumia o posto de Operador de Código, que
conservou por apreciar realmente. Era um homem de
hábitos simples, muito caseiro e amigável. Gostava de se
reunir com os amigos e preparar um churrasco que lhe fora
ensinado por um chileno que, certa vez, fizera um estágio
avançado no setor de comunicações, alguns meses antes da
queda de Allende. Às vezes exagerava na bebida, mas nada
a ponto de preocupar a segurança, já que se mostrava
sempre extremamente discreto em relação a assuntos de
trabalho.
Naquela manhã, quando assumiu seu posto para
cumprir o seu turno, foi procurado pelo encarregado da
seção alemã. Era Artur MacBeth, um rapaz de rosto jovial e
afeminado, o que lhe trazia muitos aborrecimentos e
gozações, principalmente de Sherman, o encarregado do
turno da noite, a quem Angus substituía pela manhã. Artur
cumpria um turno de quatro horas, das dezesseis às vinte
horas, depois outro, das quatro às oito da manhã,
diariamente. De forma alguma apreciava Sherman, evitando
a qualquer preço trocar uma palavra que fosse com ele. Suas
relações eram as mais ríspidas possíveis. Sherman se
aproximava, quando havia algo para Artur transmitir, e
depositava a mensagem codificada no aparador. Certa vez,
no início, ao fazer isso, inclinara-se e alisara o pescoço de
Artur, enquanto lhe murmurava palavras obscenas ao
ouvido. Artur retirara rapidamente os fones de ouvido e
colara um deles à orelha de Sherman, abrindo todo o volume
de um canal de estática. Sherman recuou ensurdecido e,
depois daquilo, jamais voltou a molestá-lo, a não ser com
piadas sobre homossexuais que costumava contar à noite,
quando o trabalho de escuta se mostrava improdutivo e o
pessoal fazia uma pausa para um café em conjunto,
deixando os gravadores ligados.
— Alguma coisa errada? — indagou Angus ao rapaz,
quando este se aproximou.
— Veja esta mensagem. Captei-a no primeiro turno.
Deixou-me curioso porque, apesar das indicações, não foi
transmitida por nós — Artur disse, passando-lhe um papel.
— Refere-se a uma prioridade Gold, intervalo cinco, em
férias. Seu nome é Oliver Clark. É estranho porque há
quinze dias, no prazo regulamentar, transmitimos a mesma
mensagem, com outro código.
Angus apanhou o papel e o leu. Por instantes ficou
pensativo. Depois riu e amassou-o, balançando a cabeça de
um lado para outro, como se tudo não passasse de uma
grande piada.
— Não se preocupe, está tudo bem. Algum imbecil
deixou um canal do banco de memória aberto e retransmitiu
a mensagem. Foi um bom trabalho, Artur, apesar de tudo.
Louvo sua dedicação.
— Mas não se trata de uma prioridade em trânsito,
Angus. Se a mensagem for interceptada, principalmente
considerando as condições de ontem...
— Você se preocupa demais, Artur. Já lhe disse, está
tudo bem. É uma chave antiga, jamais seria decifrada a
tempo.
— Mas devo incluí-la em meu relatório, pois...
— Apague-a de seu relatório. Acredite em mim, não é
mesmo importante, Artur — assegurou Angus e o rapaz
acabou concordando, já que tinha em Angus seu único
amigo naquela seção.
Assim que se afastou, Angus adotou uma fisionomia
preocupada.
— Se aquele bastardo soubesse dos problemas que isso
poderia causar... — murmurou e se voltou, ao ouvir o
alarme, para receber a mensagem que descia pelo tubo
pneumático e que deveria ser imediatamente codificada e
transmitida. — Como é possível? — indagou-se, quase
admirado, depois tratou de iniciar seu trabalho.
Datilografou alguns caracteres no papel que subia pelo
cilindro, vindo de uma botina de formulário contínuo
acoplado ao computador, na parte de trás. Parou. Apanhou o
papel que Artur lhe trouxera e que estava amassado junto ao
aparador da máquina picadora. Desamassou-o e releu-o. A
preocupação vincou sua testa. Depositou-o num escaninho a
sua direita, onde se lia: Material de relatório.
***
Às sete horas de uma manhã fria, o Boing 747 da
Lufthansa pousou no moderno e recém-construído aeroporto
de Frankfurt, cujas dimensões, projetadas para o ano 2000,
impressionavam o viajante, que enfrentava distâncias
enormes até se ver livre do lado de fora, após passar pela
Ala de Trânsito. A sua disposição, então, teria uma das mais
agradáveis cidades alemãs, à margem do Main, com
possibilidade de traçar seu roteiro turístico e comercial com
toda a comodidade e rapidez. Oliver Clark estava
particularmente interessado numa visita ao Vale do Reno,
descendo pelo rio, numa viagem de três dias, a partir de
Colônia. Conheceria a velha Catedral de Xantem e Worms,
principalmente. Pretendia, também, ir a Stuttgart para, dali,
visitar a Floresta Negra, a quarenta milhas a oeste, passando
por suas montanhas escuras e suas estâncias de águas
térmicas. Tudo isso, porém, ficaria para o dia seguinte.
Reservara o primeiro dia para instalar-se no Frankfurt Plaza
Hotel e para descansar da viagem.
No táxi, fazendo o percurso de quinze minutos até o
hotel, Oliver retirou um cartão dourado de sua carteira e
examinou por instantes. Depois o devolveu ao bolso e ficou
apreciando a viagem.
O cartão em seu bolso era um inofensivo cartão de
crédito de uma loja desconhecida nos Estados Unidos, a
Gold System. Poucas pessoas o portavam, naquele
momento, fora do país. Fora uma engenhosa criação do
OIR. Aquele cartão deveria apresentado de cinco e cinco
dias a uma embaixada ou posto de segurança, juntamente
com o passaporte de seu portador. Se o perdesse, Oliver
deveria entrar imediatamente em contato com a embaixada
americana mais próxima e preencher uma série de
formulários confidenciais. Em menos de uma hora teria uma
segunda via do cartão, sendo despachado com
recomendações de cautela pelos funcionários que o
atendessem.
No hotel, algum tempo depois, identificou-se e foi
guiado até seu quarto, uma agradável suíte com janelas para
a Hamburger Allee. O aquecimento era perfeito. Os móveis
eram modernos e funcionais. Um tapete felpudo, num leve
tom marrom, combinava com as paredes de um bege
repousante e com as cortinas da janela. Uma colcha de lã
natural cobria a cama. Ao fundo, uma porta conduzia ao
banheiro prático. Oliver testou a água e julgou-a excelente.
Por momentos pensou na jovem aeromoça alemã que
se incumbiria de mostrar-lhe a cidade durante o resto da
tarde. Isso queria dizer que todo seu tempo até a noite
estaria preenchido. Não deixava de ser um programa
interessante.
Despiu-se, tomou um banho e barbeou-se. Usou sua
loção Newa preferida, penteou-se com esmero, depois
desfez as malas, caminhando nu pelo quarto. Escolheu um
terno marrom, finalmente, talvez influenciado pelas cores do
aposento. Vestiu-se, depois examinou seu sobretudo escuro,
à procura de alguma possível mancha. Como o encontrasse
perfeito, vestiu-o e foi abotoar-se diante do espelho.
Consultou o relógio. Passava um pouco das oito e o
desjejum estava sendo servido no salão de refeição. Dirigiuse para lá.
Quando passou pelo saguão, um homem junto à
portaria voltou-se e olhou em sua direção, após receber uma
informação do rapaz do outro lado do balcão. O homem
agradeceu e seguiu, sempre olhando Oliver, na direção de
uma cabine telefônica. Fez uma ligação, sempre de olho na
porta do salão onde Oliver entrara, depois saiu e caminhou
para lá. Kurt Stadt iniciava sua primeira missão como
agente de contraespionagem. Talvez isso justificasse um
ligeiro nervosismo, visível nele. O nervosismo desapareceu,
no entanto, quando se sentou à mesa ao lado daquela
ocupada pelo americano, ansioso agora para testar a
eficiência de seu curso intensivo de inglês. Antes da
abordagem, no entanto, precisava aguardar ordens de
Marbur. Falara com ele ao telefone, dizendo-lhe que o
pássaro chegara, coisa que Marbur entendeu perfeitamente,
respondendo que estava pesquisando o mercado e
verificando o valor da mercadoria, antes de autorizá-lo e
iniciar qualquer conversação.
***
Passado o primeiro período de duas horas, Angus
deveria preencher um formulário, encaminhando-o ao seu
superior imediatamente, com as cópias cifradas das
mensagens expedidas, bem como o registro de qualquer
ocorrência digna de nota. Por momentos ele hesitou, com o
papel amassado numa das mãos e o formulário na outra.
Decidiu-se, afinal, anotou o número da mensagem no
registro de ocorrências de seu relatório, finalizando com a
seguinte observação: material suspeito. Acondicionou tudo
num cilindro de acrílico e despachou-o pelo tubo. Após um
leve chiado, o cilindro desapareceu, absorvido pela sucção,
percorrendo um longo caminho pelo subsolo do Pentágono,
até subir para a sala do superior imediato de Angus. Ali
permaneceu no receptáculo até que a secretária o apanhasse
com aquele ar de enfado que a rotina punha no rosto das
pessoas. Retirou os papéis do cilindro, bateu um carimbo no
relatório e levou-o para a mesa de Cyrus Sarasse. Este a
apanhou tudo e apôs sua assinatura no alto, sob o carimbo
que dizia: "arquive-se". Ia começar a leitura, quando o
telefone tocou. Era o próprio diretor da OIR, ordenando-lhe
que todas as mensagens transmitidas no dia anterior fossem
retransmitidas, pois diversas embaixadas reclamavam de
não tê-las recebido com exatidão em virtude da confusão
ocasionada nas comunicações pela turbulência solar. Cyrus
desligou em seguida e foi até a secretária, ditando-lhe um
memorando onde especificava as ordens ao Serviço de
Transmissão e Escuta. Depois foi até um canto da sala e
apanhou um café. Tomou-o sem pressa. Retirou seu maço
de cigarros e notou-o vazio.
— Sally, você tem cigarros? — indagou à secretária.
— Eu não fumo, senhor. Já devia saber disso —
explicou ela, com um sorriso forçado.
— Oh, sim, é verdade — ele falou, deixando a sala.
Sally datilografou o memorando e levou-o para a mesa
de Cyrus. Viu a assinatura no relatório recém-chegado e
levou-o para a microfilmadora, destruindo-o depois. A
microficha foi para o arquivo top-secret, à prova de guerra
nuclear, embutido na parede de concreto. Quando saía,
lembrou-se do memorando que acabara de datilografar,
retornou aos arquivos e apanhou os filmes das cópias
cifradas de todas as mensagens expedidas no dia anterior,
providenciando cópias e deixando-as junto ao memorando.
Cyrus chegou em seguida, baforando avidamente. Assinou o
memorando e cumprimentou-a por se antecipar quanto às
mensagens. Sally levou tudo para o tubo pneumático,
despachando-o para o STE. O cilindro de acrílico sumiu
pelo tubo e, momentos mais tarde, caía no receptáculo junto
ao computador onde Angus trabalhava.
Leu o memorando. A turbulência confundira todas as
mensagens do dia anterior. Em parte isso era bom. Afinal,
aquela mensagem suspeita também se perdera, fragmentada
no espaço e confundida com outras tantas que cruzavam os
céus de satélite a satélite. Separou as mensagens por seções
e foi distribuí-las. O problema estava resolvido e não tivera
maiores implicações.
SEQUESTRO
Uma chuva miúda e fria caía sobre a cidade, quando o
carro estacionou num ponto qualquer da Zeppelin Alle,
defronte do Palmen Garten. Um casal atravessou
rapidamente a calçada, cobertos pelo sobretudo do homem.
Galgaram alguns degraus de um prédio de tijolos aparentes,
de apenas três andares. Junto à porta, a garota revirou a
bolsa à procura da chave. Entraram logo em seguida e
fecharam-na atrás de si, no momento em que um táxi
estacionava na rua e um homem descia apressadamente.
Oliver e Ellis Weber atravessaram um pequeno hall, junto à
portaria vazia àquela hora, e rumaram até a escada que os
conduziu ao primeiro andar. Ali dobraram à direita e
caminharam rapidamente pelo corredor. Ellis abriu, então, a
porta do apartamento 1-D e entraram. As luzes se
acenderam.
— Um belo apartamento! — comentou ele,
examinando os móveis, as paredes e as cortinas, tudo com
um toque feminino inconfundível onde os matizes do rosa e
do azul se mesclavam com bom gosto.
Um enorme sofá, coberto de almofadas, estava
posicionado estrategicamente diante da lareira, sobre cuja
cornija se viam algumas garrafas de vinho e uma de uísque,
junto de uma porção daquelas miniaturas distribuídas nos
aviões.
Oliver tratou de acender a lareira, depois de retirar o
sobretudo e o paletó, dobrando as mangas da camisa. Ellis
desapareceu por uma porta, de onde retornou, pouco depois,
com um prático roupão preso à cintura por um cordão de
tecido. Trazia uma toalha e esfregava os cabelos, embora
não os tivesse molhado tanto quando correram do Express
Cabaret até o carro que Oliver alugara naquela manhã. Ela
retocara o batom dos lábios e estava descalça. Esse detalhe
excitou Oliver, que fixou seu olhar nos pés delicados da
garota. Ellis sorriu e atravessou a sala, indo até a cozinha.
Abriu um armário sobre a geladeira e retirou um pacote. Por
algum tempo ouviu-se o ruído de pratos e o inconfundível
barulho de uma faca terminando de cortar e batendo na
louça.
O fogo se acendera com facilidade. Havia um piloto a
gás que foi acionado e as chamas crepitaram, lambendo a
casca rugosa de um tronco parcialmente chamuscado. Ellis
retornou da cozinha e depositou uma bandeja com pedaços
de queijo e pão de centeio cortado em fatias pequenas.
Apanhou, depois, uma garrafa de vinho sobre a cornija da
lareira e, antes que começasse a abri-la, Oliver se antecipou,
tomando-a delicadamente de suas mãos e desarolhando-a.
Ela estendeu-lhe dois copos que foram servidos. Deixou a
garrafa junto à bandeja e se sentaram no tapete, apoiando as
costas no sofá.
— Com as almofadas vai ficar mais confortável —
Ellis disse, derrubando duas ou três sobre ele.
— Sim, claro — concordou com um sorriso,
acomodando-se melhor.
Suspirou. Fora um dia inesquecível. Haviam almoçado
no Kupperfane, um restaurante sofisticado e caro. Depois
haviam visitado a Hauptwache, onde se localizam as
maiores lojas da cidade. Ali Oliver comprara um presente
para Ellis: uma cara embalagem importada da essência
Newa para mulheres, que ela apreciara muito e que estava
usado agora.
Rodaram pela cidade durante o resto da tarde. Jantaram
em Sachsen Hausen, provando o recomendado Appelwool,
o delicioso vinho de maçãs alemão. Terminaram a visita à
cidade no Express Cabaret, mas a noite realmente
começava, para os dois, naquele momento.
A chuva batia na janela e escorria em pequenos filetes
que desapareciam nos reflexos da luz que vinha da rua. O
fogo crepitava e, com as luzes apagadas, provocava um jogo
de sombras sugestivas em seus rostos e corpos. O calor do
vinho prometia emoções intensas, já que, durante toda a
tarde e parte da noite, uma insinuante tensão erótica brotara
e crescera neles a cada olhar trocado, em cada roçar de seus
corpos.
Lá fora a cidade corria apressada sob a chuva. Diante
do prédio, um homem se ocultava sob uma marquise,
olhando a janela parcialmente iluminada, com reflexos
avermelhados que indicavam uma lareira acesa. Kurt Stadt
apertou a gola do sobretudo ao redor do pescoço e afundou
ainda mais o chapéu na cabeça. Possivelmente pegaria uma
pneumonia e isso, no início de sua carreira de contraespião,
seria prosaico demais. Recebera um treinamento rigoroso.
Enfrentara condições subumanas de vida, nos testes de
sobrevivência. Tudo, porém, continha certa dose de emoção
e aventura, como a passagem para um mundo novo e
movimentado. Ninguém, porém, jamais lhe dissera que um
espião, por força de seu trabalho, teria de ficar imóvel sob
uma marquise, numa noite de chuva, observando o trânsito e
uma janela parcialmente iluminada.
***
Nos três dias que se seguiram, enquanto Oliver Clark
realizava um agradável cruzeiro pelo Vale do Reno, no
escritório da UDL, na Alexander Platz, em Berlim Oriental,
fora acionada uma operação para reunir o máximo de
informações possíveis acerca dele e de seu trabalho. De
Washington veio sua ficha pessoal e esparsas informações
sobre seu trabalho. Soube-se que se formara com louvor
num curso de programação e operação de computadores
ultrassofisticados. Todas essas informações iam se juntando
e formando um painel da vida daquele homem. Esse
trabalho era feito por Bakou e Marbur, auxiliados por mais
dois ou três agentes qualificados.
Um dos itens interessara particularmente a Bakou, que
o lera inúmeras vezes, procurando, talvez, um ponto falho
ou uma explicação plausível. Marbur percebera isso, mas
nada indagara. Estava aprendendo a conhecer o estilo do
outro.
— Todos os homens com prioridade Gold e intervalo
cinco têm suas férias comunicadas a embaixadas e postos de
segurança, quando pretendem viajar durante elas, com
quinze dias de antecedência — comentou Bakou.
— Não entendi — Marbur falou, deixando de lado o
papel que pretendia ler e que falava de um intrincado plano
de transferência de numerário através de uma rede de
computadores ligados via satélite.
— Quinze dias antes de Oliver Clark entrar em férias,
seu roteiro de viagem estava pronto e a mensagem foi
transmitida a todos os postos e embaixadas. Sendo assim,
não há uma explicação plausível para a mensagem que foi
captada, justo no dia em que ele iniciava a viagem. Os
americanos sempre foram rigorosos em questão de
segurança e burocracia. Jamais deixariam para a última hora
algo tão importante como a comunicação da viagem de
férias de um homem tão especial como Oliver Clark.
— Creio que isso vai esclarecer tudo — disse Marbur,
apanhando uma pasta e retirando algumas folhas.
Bakou apanhou os papéis e começou a ler. Os vincos
em sua testa, porém, não se desfizeram. Marbur o notou.
— A turbulência solar deve ter provocado mais do que
uma simples confusão nas mensagens. Com certeza
afetaram também seus computadores. De alguma forma,
acionaram uma mensagem que já fora transmitida antes,
com outro código, a cuja chave não temos acesso e, por isso,
não nos alertou. Observe que eles perceberam o problema,
pois retransmitiram todas as mensagens daquele dia,
excluindo aquele sobre Oliver Clark.
Bakou observou, pela leitura daqueles papéis, que
diversas mensagens não haviam sido decodificadas ainda. A
explicação poderia estar numa delas.
— Ainda assim acho muito suspeito... Gostaria de
conhecer um pouco mais sobre o STE deles, se seus
computadores trabalham com bancos de memória ou não.
Talvez seja explicável o fato de, ao acionar uma mensagem
ou digitá-la, o operador, inadvertidamente fazer entrar em
ação o banco de memória e uma mensagem indesejável ser
transmitida. Acho que devemos pensar seriamente em
introduzir um agente nosso nesse setor com a máxima
urgência... — ponderou Bakou.
— Já que o assunto sobre computação o fascina tanto,
leia isso. Acaba de chegar e me parece fantástico — Marbur
sugeriu, passando-lhe o papel que pretendia ler minutos
antes.
O agente russo começou a ler e os vincos de sua testa
desapareceram imediatamente, substituídos por um ar de
estranha excitação. Seus olhos miúdos brilharam. Ele sorriu
e bateu a mão espalmada sobre a mesa.
— Fantástico! Engenhoso! Precisamos confirmar. De
quem veio esta informação? É importante demais para não
ser confirmada — ele disse e Marbur apressou-se em
respondê-lo.
— Veio de um agente infiltrado num alto posto do
Departamento do Tesouro Americano. É raramente
acionado, segundo informado pela chefia da Primeira
Divisão, mas sempre surpreende com informações
aproveitáveis.
— Mande uma mensagem pedindo confirmação.
— Agora mesmo — prontificou-se Marbur, rabiscando
algo numa folha de papel e passando a um dos agentes ali,
com ordens específicas.
O agente se retirou imediatamente da sala e se dirigiu à
Central de Comunicações. Conforme solicitado por Marbur,
foi acionado o botão de prioridades máxima, que garantia
um canal aberto e resposta imediata. A mensagem foi
transmitida. Dez minutos depois a confirmação foi feita. O
agente apressou-se em levar o resultado a Marbur.
— Confirmada! — disse ele a Bakou.
O russo ficou em silêncio, fitando os papéis diante de
si. Tinham em mãos um dos segredos mais importantes
desde a notícia da viagem de Oliver Clark. Tinham o
esquema do sofisticado sistema de pagamento dos agentes
estrangeiros a serviço dos Estados Unidos.
— Vamos trabalhar nisso aqui imediatamente. Para
isso vamos precisar de Oliver Clark. Acione Kurt. Ordene
uma reunião com Hamsher e Rokim. Deixe Weiner de lado.
Ele só atrapalha. Precisamos saber também o que está sendo
feito em Moscou a respeito desta descoberta. Uniremos
esforços, aproveitando tudo que já tiverem obtido.
Precisamos, também, fazer alguns contatos imediatamente
— falou o russo e seu tom de voz era excitado ao extremo.
***
Oliver Clark havia planejado seu roteiro para aquele
dia. Visitaria o local mais importante de Colônia: a catedral
gótica, salva milagrosamente da destruição que reduziu a
escombros a cidade, durante a Segunda Guerra Mundial.
Tencionava, também, ir até Glocken Gasse, atrás da Ópera,
mais precisamente no número 4711, e comprar um frasco
tradicional Água de Colônia. Ellis seguramente apreciaria o
presente e seria um modo de agradecê-la pela noite
maravilhosa de alguns dias atrás.
Estava em seu quarto e terminara de se vestir, quando
bateram. Distraidamente foi abrir. Um homem jovem ainda,
envergando um sobretudo ligeiramente amarrotado,
avançou, empurrando-o para dentro. Antes que pudesse
fazer qualquer coisa, o desconhecido apontou-lhe uma
Makarov soviética de nove milímetros e ordenou-lhe
silêncio com o sinal característico. Fechou a porta atrás de si
e fez novo sinal, ordenando que Oliver se voltasse. O
americano obedeceu relutante. Kurt ergueu o braço para
golpeá-lo na cabeça, mas não o fez. Guardou a arma no
coldre sob a axila esquerda e segurou os braços de Oliver,
puxando-o para trás. Empurrou-o até a cama. Retirou um
rolo de esparadrapo do bolso do sobretudo e enrolou os
pulsos de Oliver. Depois rasgou um pedaço e colou-o sobre
a boca do americano. Em seguida, retirou do bolso interno
do sobretudo um pequeno estojo, semelhante a uma
cigarreira de metal. Abriu-o. Havia uma seringa
hipodérmica e uma pequena ampola, com um líquido
levemente azulado. Estendido na cama, Oliver voltara a
cabeça para observar os movimentos de seu agressor. Havia
pânico em seus olhos.
***
O grupo estava de novo reunido na sala ampla e nua.
Começara a chover naquela manhã e a temperatura descera
bastante. Os últimos a chegar foram exatamente Bakou e
Marbur. Assim que entraram, o chefe supremo da WEIMAR
e o chefe da seção local da KGB olharam-nos com
ansiedade, já que a reunião significava que um importante
progresso havia sido conseguido. Bakou não os fez esperar.
— Rokim, expedimos uma mensagem à Primeira
Divisão, indagando-lhes o que estava sendo feito em relação
à descoberta sobre o sistema de pagamentos dos americanos.
Informaram-no de algo?
— Sim, recebi instruções para deixar em suas mãos.
Estão mandando tudo que já descobriram sobre o assunto.
— Ótimo! — exclamou o russo, com satisfação. —
Vou esclarecer o significado disso para nós, recapitulando
desde o início. Temos enfrentado problemas no setor bélico,
pois, nos últimos tempos, os americanos vêm projetando
sistematicamente novas contra-armas que se opõem a nossas
descobertas nesse campo. A suposição é de que existe um
agente deles em nosso meio, mas não há como chegar até
ele. Não podemos afastar todos os envolvidos no processo,
pois isso paralisaria o setor de pesquisa de novos
armamentos. Há muita gente envolvida, com acesso aos
planos, desde os projetos até a fase final de testes. Torna-se
praticamente impossível descobrir em que ponto da
fabricação está o delator. Investigações foram feitas, mas
mostraram-se infrutíferas. Temos agora, porém, ao nosso
alcance, um funcionário do Departamento do Tesouro
Americano, cuja função especifica é pagar agentes
estrangeiros, através de um complicado sistema, sofisticado
o bastante para desafiar a imaginação mais fértil. Há um
computador especial no Tesouro Americano, ligado ao
National Bank, de Washington, e ao Richemond, creditando
valores diretamente na conta numerada do agente a ser
pago. Imediatamente entra em ação um sistema de
comunicação que notificará o agente do crédito efetuado.
Temos de chegar a esse sistema. É o modo de apanharmos o
traidor.
— E Oliver Clark nos ajudará nisso? — Hamsher
indagou.
— Sim, ele poderá nos ajudar, se o convencermos.
Além disso, com as informações que ele nos fornecer,
nossos cientistas poderão desenvolver um meio de obtermos
uma ligação com o National Bank e o Richemond.
Acionaríamos uma transferência. Oliver deve saber os
detalhes para tanto. O agente que nos interessa seria
notificado da transferência. Nós estaríamos a postos, no
final da rede de comunicação, para apanhá-lo e julgá-lo.
Um silêncio momentâneo caiu sobre a sala. O ruído da
chuva na janela e o som distante de uma sirene policial
puderam ser ouvidos. A temperatura caía vertiginosamente,
indicando a possibilidade de uma nevasca.
— Parece-me tão simples — comentou Rokim,
fascinado.
— Mas muito mais completo do que parece, embora
seja nossa única chance de chegar ao traidor, antes de
afirmarmos que isso poderá ser possível. Oliver Clark é o
homem-chave para nós. É perito em computadores e opera o
computador do Tesouro Americano. Talvez, mesmo, tenha
trabalhado pessoalmente em sua programação — Bakou
disse.
— E onde está ele agora? — Rokim indagou.
— Em Colônia, num hotel, com um de nossos agentes
— apressou-se Marbur em informar.
— Vamos trazê-lo para cá, então — decidiu Hamsher.
O HOMEM DO DESERTO
Pouco se sabia sobre um homem chamado Trianon, a
não ser que era um agente especial e morava em algum
ponto do Arizona, numa fazenda afastada, praticamente sem
vizinhos. Diziam que ele possuía uma motocicleta Jerkins
especial, sob encomenda, própria para a areia e treinava tiro
ao alvo quase que diariamente. Comentavam, no CIR, que
ele mantinha um ajudante japonês, com o qual se exercitava
nas artes marciais e que mandara fazer, para seu uso
especial, uma pequena maleta cheia de truques, que
seguramente desafiava a imaginação do próprio criador de
James Bond. As secretárias comentavam que sua casa era
toda eletrônica e que um batalhão de mulheres o servia,
proporcionando-lhe inúmeros e inenarráveis prazeres. Os
homens mais invejosos do Departamento o chamavam de
bêbado. Seus superiores o respeitavam. Todos o temiam. Ele
jamais falhara.
Trianon era um homem misterioso e introvertido, que
criava cactos numa cabana perdida no deserto, a cinquenta
milhas do povoado mais próximo. Possuía, na verdade, uma
Kawasaki 500, que comprara de segunda mão. Um velho
gerador funcionava diuturnamente, fornecendo energia. Na
sala confusa da cabana havia um radiotransmissor e uma
geladeira. No alpendre, pendurado num prego enferrujado,
um rádio de pilhas tocava música caipira. Sentado numa
velha cadeira de balanço, Trianon terminava de beber a
garrafa, depois a atirava para longe. Sacava sua arma e
disparava, arrebentando-a, depois voltava para o interior da
cabana e apanhava outra. Essa rotina se repetia
ininterruptamente. Sua barba crescia. Sua pele amarelava-se.
Seus olhos viviam constantemente injetados. Era como uma
sombra, alimentado apenas pelo desejo extravagante de
beber e arrebentar garrafas.
Media em torno de um metro e sessenta e cinco. Os
cabelos lisos, caídos para frente, começavam a rarear no alto
da cabeça. Parecia magro e fraco, mas músculos definidos
se torciam sob sua pele. Seus olhos eram acinzentados. O
nariz era adunco, como o do índio de madeira da
propaganda de charutos. Suas orelhas eram miúdas, mas os
ouvidos eram aguçados ao extremo. Sua boca era
ligeiramente retorcida para a esquerda, como se ele vivesse
constantemente crispando-a com nojo de algumas coisas.
Seus lábios grossos inchavam-se pelo excesso de bebida e
pela falta de uma alimentação adequada. Ninguém sabia
sobre sua vida, mesmo seu superior imediato. Sabiam
apenas que bastava acionar um prefixo de rádio e em breve
ele estaria em Washington, pronto para entrar em ação.
Trianon era um agente interno, com a missão
especifica de investigar o desaparecimento de prioridades de
intervalo cinco. Quando acionado, aguardava três dias para
se apresentar. Casos aconteciam de a prioridade ter perdido
o cartão ou, por um problema qualquer de trânsito, ter
ficado retido num aeroporto ou outro local, impossibilitado
de se apresentar à embaixada ou posto de segurança.
Durante os três dias que se seguiam ao alerta do
desaparecimento, Trianon mudava radicalmente seu modo
de vida. Se antes disso chegasse um cancelamento de alerta,
ele retornava à rotina e à bebida. E se o alerta fosse
confirmado, estava pronto.
A força muscular de Trianon era espantosa,
considerando seu tipo físico quase franzino. Ninguém sabia
como era seu treinamento pessoal. Muitos o atribuíam ao
pseudoauxiliar japonês, que o treinava. Ninguém jamais
vira, porém, aquela figura estranha, correndo pelo deserto,
quase o dia todo, vestindo uma roupa esquisita e pesada.
Trianon a criara especialmente para si, costurando a lona
dupla, preenchendo os espaços vazios com areia. Era como
um acolchoado maciço que ele vestia e carregava em longas
caminhadas pelo deserto, após haver se encharcado de água.
O peso era brutal e o calor infernal derretia até a última
grama de gordura acumulada durante a beberagem. Os
músculos reagiam fantasticamente, suportando o peso e o
excesso que chegava ao exagero. Em dois dias ele
recuperava o condicionamento físico. No terceiro dia,
exercitava-se nos diversos aparelhos que improvisara no
velho celeiro. Era um homem novo, quando tomava a moto
e rumava para Williams, onde um helicóptero o esperava
para levá-lo dali para Washington. No quarto dia, pela
manhã, quando o Cel. Foster chegasse para seu expediente
diário, Trianon estaria a sua espera, sentado diante da
secretária, que devoraria com olhares intrigantes aquele
estranho exemplar do sexo masculino, sem idade definida.
***
Em Colônia, Kurt efetuara uma ligação e falara com
Marbur. Feito isso, tratou de providenciar imediatamente o
necessário para a viagem. Retornou ao quarto onde estava
Oliver Clark, adormecido sob os efeitos do tranquilizante.
Retirou-lhe a mordaça de esparadrapo e acomodou-o na
cabeceira da cama. Observou-o, olhando-o de frente.
Aproximou-se e esbofeteou-lhe o rosto diversas vezes.
Oliver abriu os olhos num sobressalto. Kurt alisou-lhe os
cabelos e recuou, apanhando uma câmara fotográfica.
— Oliver Clark! — chamou.
O americano levantou a cabeça e foi ofuscado pelo
brilho da luz. Apertou os olhos com força e abriu a boca,
movendo-a como se tentasse falar. A sensação exata que
deve ter sentido foi a de se ver numa cena de câmara lenta e
sua voz demorasse uma eternidade para chegar aos lábios.
Era esse um dos efeitos do Nevral 50. Observando-o, Kurt
teve a impressão de assistir a um filme onde houvera uma
falha na dublagem e a personagem focalizada movia os
lábios muito antes de o sim de sua voz tornar-se audível.
Antes que isso acontecesse, voltou a amordaçá-lo com
esparadrapo e a acomodá-lo na cama. Depois tratou de
verificar a foto que acabara de fazer. Destacou o papel
protetor e observou o resultado. A foto estava perfeita.
Havia um cortador embutido na própria câmara e ele cotou a
foto até o tamanho adequado, medindo-a pela graduação
existente no suporte do cortador. Retirou, então, do bolso
um passaporte. Na folha de identificação havia todas as
anotações necessárias, mas nenhuma foto. Kurt tinha todo o
material necessário. Colou a foto no local indicado, depois
apôs os carimbos necessários. Oliver Clark era, agora,
Helmut Strasse, um oficial do exército da República
Democrática Alemã, com um grave problema de saúde,
sendo levado às pressas para casa.
FEMALE
Dois dias após o desaparecimento de Oliver Clark de
um hotel de Colônia, na Alemanha Ocidental, enquanto um
homem sistemático e estranho corria pelo deserto do
Arizona, usando uma pesada e quente vestimenta, em algum
ponto da Karl Marx Allee, num casarão antigo que
sobrevivera à Segunda Guerra Mundial, em Berlim Oriental,
Marbur, Kurt e Bakou esperavam ansiosamente o
diagnóstico do médico que examinava o americano
estendido numa cama comum, de molas, com um colchão
encardido.
— Ele está bem. Vai precisar repousar um pouco,
depois estará pronto. Suas condições físicas são excelentes.
O efeito do Nerval 50 passará em breve — disse o médico e
Marbur o acompanhou até a porta, enquanto Bakou e Kurt
iam até Oliver Clark e se debruçavam sobre ele.
— Como foi a viagem? — indagou o russo a Kurt.
— Sem problemas. O esquema funcionou
perfeitamente — Kurt respondeu, com um acento de
orgulho no tom de voz.
— Um bom trabalho — disse Bakou e o elogiou
alegrou bastante o alemão.
A porta se fechou após a saída dos dois e, na mais
completa escuridão, Oliver Clark se sentia flutuando num
mar de retalhos, restos de conversa, sons estranhos e
sensações angustiantes. Mal podia mover o corpo. As mãos
pareciam pesar toneladas e o menor esforço físico
provocava dores agudas. Tentou dizer alguma coisa. A boca
deveria estar ressecada em função das doses sucessivas de
Nevral 50 e apenas se abria, sem articular nenhum som. A
mente se encontrava à beira de um precipício escuro,
oscilando entre a consciência e um sono forçado.
A porta se abriu novamente e uma luz ofuscante foi
acesa sobre seus olhos. Ele os apertou ao máximo, mas a luz
feria intensamente.
— Café da manhã! — gritou uma voz aguda e, em
seguida, a luz se apagou e a porta se fechou num estrondo.
Na escuridão espalhou-se um cheiro de café. Oliver
lutou para deixar a cama. A boca ressequida ansiava por
qualquer coisa líquida. Cada movimento era demorado e
doloroso. Haviam-lhe aplicado a última dose de
tranquilizantes às nove da noite anterior. Gradativamente o
efeito passava, embora a sonolência persistisse. Havia
conseguido, finalmente, sentar-se na cama, quando a luz se
acendeu novamente e a porta se abriu como da vez anterior.
— Almoço! — gritou a mesma voz de antes, num
péssimo inglês.
A luz se apagou em seguida. A porta se fechou
estrondosamente. A sensação para Oliver foi das piores. Um
homem, numa sala escura, sob os efeitos de uma droga
especial, fatalmente perde a noção de tempo. Oliver jamais
poderia imaginar que pudesse demorar tanto tempo para um
movimento tão simples como se sentar à beira da cama.
Antes que fizesse algum outro movimento, a luz voltou a se
acender e ele ouviu passos. Pelas vozes que se seguiram,
notou a presença de três pessoas no quarto. Alguém moveu
a lâmpada e ela incidiu diretamente sobre os olhos dele. Ele
os cobriu instintivamente com as mãos.
— Você é Oliver Clark? — indagou uma voz num
inglês perfeito.
— Sim, sou Oliver Clark — disse ele, num grito,
desacostumado que estava a conseguir articular as palavras.
— Sim, sou Oliver Clark — repetiu, num tom mais baixo.
— Onde estou? O que houve comigo?
— Nós fazemos as perguntas — disse a mesma voz. —
Quer um cigarro? Água, talvez?
— Sim, água, por favor!
Um braço estendeu-lhe um copo de água. Oliver
manteve uma das mãos sobre os olhos e apanhou-o. Tomou
sofregamente. Devolveu o copo.
— Vamos entrar direto no assunto, Oliver, sem perda
de tempo. Nós o trouxemos aqui porque precisamos de sua
ajuda. Você tem duas opções: colaborar livremente ou
forçadamente. Antecipo-lhe que de uma forma ou de outra,
vamos obter sua cooperação.
— O que querem de mim, afinal?
— Informações sobre computadores. É seu ramo, não?
— Como sabe disso? Onde estou?
— Isso não é importante agora. Terá algumas horas
para pensar — a voz disse, num tom persuasivo. — Só
precisa pensar nas duas opções que lhe oferecemos. Poderá
repousar primeiro, depois voltaremos.
A luz se apagou, assim que os passos deixaram a sala.
A porta se fechou. Oliver ficou só na escuridão.
Do lado de fora, os três homens se entreolharam.
— O que acha? — indagou Marbur.
— Não me parece um homem duro, mas ainda não
podemos afirmar nada sobre que tipo de condicionamento
ele possui. Se ele colaborar livremente, ganhamos tempo. Se
ele resistir, teremos de apelar para as drogas e os
especialistas, o que poderá ser uma faca de dois gumes. Há
muito que descobrir sobre ele e as drogas podem abreviar
seu tempo de lucidez e vida. Tive experiências antes. Um
homem pode alienar-se definitivamente antes de fornecer as
informações que estão em seu cérebro. Além disso,
precisamos pensar no esquema de segurança do computador
americano. O desaparecimento de Oliver já deve ter sido
detectado. Isso produzirá, seguramente, alterações de
segurança. Nosso tempo é escasso, temos de nos apressar —
falou o russo.
— Quando voltaremos a falar com ele? — Kurt quis
saber.
— Em meia hora. Na condição dele, um homem perde
a noção do tempo e vamos nos aproveitar disso. Vamos
acionar nosso esquema. Logo obteremos todo o apoio
cientifico solicitado.
***
O comunicado de que o cartão da Gold System de
Oliver Clark fora apresentado numa das embaixadas ou
postos de segurança deveria ter sido depositado na mesa do
Cel. Foster na manhã do dia anterior. Como isso não
ocorreu, foi encaminhando um pedido urgente a todos os
postos e embaixadas da Alemanha e países vizinhos,
solicitando confirmação da negativa. À tarde, a confirmação
estava de volta. Oliver Clark desaparecera. Imediatamente
Trianon foi comunicado e aguardou o tempo regulamentar.
Naquela manhã, persistindo o desaparecimento, o coronel
comunicara o Departamento da Defesa e o do Tesouro. O
resto era com Trianon. Se nada surgisse, ele começaria a
agir.
***
Female é o curioso codinome de um computador,
instalado numa sala de segurança máxima do Departamento
do Tesouro. Ligado ao National Bank e ao Richemond
Bank, era através dele que se efetuavam os pagamentos
ultrassecretos. Apenas dois homens tinham habilitação
especifica para operá-lo. Um era Oliver Clark. O
comunicado de seu desaparecimento acionou um comando
automático na sala de pessoal, que selecionou
imediatamente doze nomes entre os mais capacitados
especialistas de computadores, inscritos para o programa de
treinamento. Esses nomes seriam imediatamente analisados
por uma equipe que levantaria o passado e o presente, vícios
e virtudes a respeito de cada candidato. Eles seriam
submetidos e uma bateria intensiva de testes no mesmo dia.
A seleção, feita através de computadores e técnicos,
apontaria o melhor entre eles, que seria submetido a pesados
exames psicológicos, antes de ser encaminhado ao curso
para operar o Female.
Os dispositivos de segurança desse computador davam
ao Departamento do Tesouro toda a tranquilidade a respeito
do desaparecimento de Oliver. Ele conhecia códigos, sabia o
que manipular, mas tudo isso apenas poderia ser feito no
Female, a começar do sistema inicial de segurança montado
nas teclas de comando eletrônico, dotadas de células
fotoelétricas, ligadas ao banco de memória. Apenas
determinados dedos fariam funcionar aquelas teclas. Mais
precisamente, apenas determinadas impressões digitais
podiam liberar o sistema de segurança das células
fotoelétricas. Como Oliver se encontrava em férias, o
comando de suas impressões digitais havia sido bloqueado
no computador. Durante quatro semanas exatas, a máquina
apenas aceitaria os comandos digitados pelo seu substituto.
A menos que fosse utilizada a chave de segurança correta
para liberar o bloqueio, Oliver jamais poderia voltar a
operar Female. Desse modo, a segurança era total. Aquela
chave era do conhecimento apenas do seu substituto, que a
usaria quando entregasse seu posto de volta a Oliver.
Ninguém mais poderia acionar Female.
Para o Departamento do Tesouro, a situação era de
alerta, mas não de alarme. O desaparecimento de um
operador de máxima segurança nada significava em termos
de ameaça. No caso de Oliver, sua função era acionar a
transferência de numerário de um banco a outro, para contas
determinadas. Poderia, teoricamente, fazer isso, mas apenas
através de Female. A preocupação, portanto, era treinar o
mais rapidamente possível um segundo operador.
Terminado os dez dias regulamentares, as impressões de
Oliver seriam apagadas do banco de memória de Female e
ele jamais voltaria a operá-lo, a menos que surgisse com
uma boa explicação para seu desaparecimento. Seria
imediatamente transferido para outra seção, onde iniciaria
novo trabalho.
Quatro dias faltavam para isso.
PARTE 2
BATALHA CONTRA O TEMPO
SESSÃO PRELIMINAR
A porta se abriu, após a luz ter sido acesa, ferindo
novamente os olhos de Oliver. Os passos se aproximaram.
Um dos homens postou-se diante dele. Oliver podia ver-lhe
o bico dos sapatos, que estavam úmidos. Outro homem
parou ao seu lado, apoiando um dos pés no estrado da cama
e cruzando os braços sobre o joelho. Suas mãos eram largas
e bem cuidadas. O último dos homens foi se posicionar ao
fundo, como se desejasse apenas observar o desenrolar dos
acontecimentos.
— Quem são vocês, afinal? — Oliver indagou.
— Pessoas interessadas no tipo de trabalho que você
faz. Já comeu? Não está com fome? — retrucou Bakou.
— Não... Vocês drogaram a comida, não é? Você
querem me drogar! — Oliver falou, alarmado.
— Não, ainda não — respondeu Kurt e Oliver voltou a
cabeça na direção de sua voz.
— Não vão me drogar?
— Depende de você — respondeu-lhe Bakou, com
frieza.
— Vão me torturar?
— Também depende de você.
— Há quanto tempo estou aqui?
— Cinco dias — Bakou respondeu, após ligeira
hesitação.
— Cinco dias? Não pode ser... Não cinco dias... —
disse Oliver, com surpresa exagerada para a situação.
— Isso o preocupa? — quis saber Bakou.
— Sim... Eu devia me apresentar... Eles estão a minha
procura, com certeza...
— Refere-se ao seu Serviço de Segurança?
— Sim, ao Serviço de Segurança. Se eu não me
apresentar, jamais poderei voltar ao meu posto e operar o...
— interrompeu-se.
— Operar o quê? — quis saber Kurt, falando
rispidamente.
— O que vocês querem de mim, afinal? — explodiu
Oliver, quase histérico.
— Que nos ajude. Você vai fazer isso. É sua única
chance de sair daqui. Para que entenda bem a sua situação,
espalhamos que você passou espontaneamente para o nosso
lado e está colaborando, dizendo tudo que precisamos saber.
Isso se chama traição, não é mesmo? — explicou-lhe
Bakou.
— Mas eu não fiz nada disso. Vocês me forçaram... —
protestou Oliver, erguendo-se.
Uma das mãos de Kurt se estendeu para segurá-lo pela
gola do paletó e puxá-lo violentamente para trás,
derrubando-o sobre a cama. A ordem inicial era não torturálo, mas intimidá-lo apenas. Kurt sabia, portanto, que uma
pequena amostra do que o esperava poderia ser útil, por isso
comprimiu o polegar e o indicador, em pinça, no músculo
externo do pescoço do americano, que gemeu de dor e se
contorceu sobre a cama. Bakou avançou um passo,
deixando-se iluminar pelas costas, por instantes.
— Eu sinto muito! — disse, zombeteiramente, depois
recuou novamente.
Oliver voltou a se sentar na cama, massageando o
músculo dolorido. Ao seu redor os homens estavam em
silêncio, mas suas respirações podiam ser ouvidas fora do
círculo de luz.
— Como eu dizia — continuou o russo. — Você não
tem alternativa. Se voltar ao seu país, jamais conseguirá
provar sua inocência. Ninguém brinca com questões de
segurança. A traição é um crime grave em qualquer país.
Por outro lado, se não colaborar conosco, nós vamos matálo, não sem antes procurar extrair de você tudo aquilo que
desejamos. Essa parte violenta nos desagrada tanto quanto a
você, mas não hesitaremos em aplicá-la. Temos métodos
modernos e métodos antiquados para fazer um homem falar.
Depende de como ele seja. No seu caso, percebi que é muito
sensível à dor, como demonstrou há pouco. Eu detestaria
deixar que meu amigo utilizasse em você todos os
conhecimentos e aparelhos de que dispõe. Ele é um tanto
sádico, mas muito eficiente. Muitas vezes ele exagera nos
seus métodos, você compreende, mas é muito eficiente.
Pode estar certo disso.
— E se eu... E se eu colaborar? — Oliver indagou, com
voz sumida e trêmula.
— Como disse? — indagou-lhe o russo, sem
demonstrar o mínimo interesse.
— E se eu colaborar? — falou o americano, quase num
grito.
— Nós o deixaremos vivo e talvez até paguemos pelo
que nos disser. Depende, é claro, da importância de suas
informações. Poderá, depois, exilar-se na Suíça e viver uma
vida tranquila e descansada...
— Tranquila? — ironizou Oliver. — Até quando?
Cedo ou tarde alguém me descobriria e...
— Não através de nós? Você teria uma nova identidade
e muitos anos de despreocupação pela frente. Se o desejar,
poderemos até mantê-lo a nosso serviço. Sempre se
consegue algo para um especialista em computação,
disposto a trabalhar.
— Quem são vocês?
— Que diferença isso faz? O que interessa é que está
em nossas mãos e que poderemos matá-lo ou dar-lhe uma
vida tranquila.
— E que garantias eu tenho?
— A nossa — afirmou o russo, com naturalidade.
— Não me deixam muita escolha...
— É uma questão de raciocínio. Você é jovem ainda,
as mulheres devem apreciá-lo, tem muito a gozar da vida.
Por que perder tudo isso? Por que se deixar torturar e matar?
Não me venha com o idealismo democrático nem com o
patriotismo meloso dos heróis de Hollywood — repreendeuo Bakou. — Pense em você, na sua pele, em seu cérebro, na
sua dor, na sua sensibilidade, nos seus sonhos, Oliver. Você
está encurralado. Terá de confiar em nós.
— O que querem exatamente de mim?
— Que nos fale sobre computadores.
— Vocês estão gravando esta conversa?
— Sim, estamos gravando, mas que importância isso
tem?
— Estou aqui há cinco dias mesmo? — Oliver
indagou, demonstrando preocupação quanto a esse detalhe,
alertando o russo, hábil interrogador.
— Sim, você está aqui há cinco dias. Por que isso o
preocupa?
— Vocês não querem saber apenas sobre
computadores, não é? Querem saber especificamente sobre
Female...
— Quem é Female?
— Vocês não sabem o que é Female? — retrucou
Oliver, ligeiramente surpreso.
— Não, mas esperamos que você o diga.
— E se eu disser?
— Não se arrependerá.
— Eu preciso pensar...
— Qual é a importância de você estar aqui há cinco
dias? — insistiu Bakou.
— Eu não sei... Eu não sei... — gaguejou Oliver,
confuso. — Preciso pensar. Por favor, eu preciso pensar.
— Responda-me isso, Oliver! — continuou insistindo
o russo.
— Depois poderá descansar — ajuntou Kurt.
— Eu não sei... Estou tonto...
— Não, está fingindo. O efeito da droga que injetamos
em você já passou. Você já teve tempo de repousar...
— Pouco tempo... Preciso de mais tempo... Estou
muito cansado.
— Vamos, Oliver, não dificulte! — Kurt falou,
pousando a mão sobre o pescoço de Oliver e exercendo uma
leve pressão no músculo externo.
— Porque após cinco dias eles já me apagaram do
computador e jamais poderei voltar a operá-lo — gritou
Oliver, intimidado.
— Mas você jamais poderia voltar a operá-lo de
qualquer forma, Oliver. Já se esqueceu do que espalhamos
sobre você? Será julgado como traidor, se voltar. Você
conhece a pena. Seu país é rigoroso. Deseja ser castigado,
Oliver? — insinuou o russo.
— Não, eu não quero... Deixem-me sair daqui, por
favor. Eu quero sair daqui. Quem são vocês? Para quem
trabalham? Por que me trouxeram aqui? — desesperou-se o
americano.
— Ora, Oliver! Não banque a criancinha desprotegida,
chamando pela mamãe! É patético demais. É humilhante
para você — zombou Kurt.
— Eu preciso pensar — suplicou Oliver.
— Está bem, Oliver. Vamos deixá-lo descansar.
Amanhã cedo voltaremos a falar com você. Tenha uma boa
noite de sono. Falaremos com mais calma e chegaremos a
um acordo — disse-lhe Bakou.
Os homens se retiraram do aposento. A luz foi
desligada. A porta se fechou. Oliver deixou-se pender para
trás, caindo de braços abertos sobre a cama.
***
Na sala ao lado, os três homens se reuniam ao redor de
uma mesa. Kurt encarou Bakou. Parecia surpreso com a
maneira com que o russo encerrara a primeira sessão do
interrogatório preliminar.
— Ele estava cedendo — observou Kurt.
— Ele está relutante, mas já teve o bastante por ora.
Vamos deixá-lo repousar um pouco, depois voltaremos.
— Mas você disse que... — ia tornar Kurt.
— Um homem na condição dele pode ser confundido,
Kurt. Será que não aprendeu isso ainda? — cortou-o Bakou,
asperamente. — Que importa o que dissemos a ele? É a
maneira como ele se sente que nos interessa. Além disso, ele
nos adiantou algo muito importante.
— E o que foi? — indagou Marbur, que fizera questão
de estar presente nas primeiras entrevistas com o americano
capturado.
— Os cinco dias. É o prazo para que seja ativado o
sistema de segurança que impedirá o acesso definitivo de
Oliver ao computador Female, como ele mesmo nomeou.
Isso nos deixa quatro dias para extrai-lhe todas as
informações e, ao mesmo tempo, convencê-lo a fazer o que
lhe pedirmos.
— Quanto aos detalhes técnicos, posso garantir que
uma equipe de técnicos e todo o material necessário já estão
a caminho, remetidos pela Primeira Divisão. Vão se instalar
no barracão, você sabe qual — informou Marbur. — Acha
que haverá tempo? Que conseguiremos dobrar Oliver?
— Vamos conseguir. Estes quatro dias são
importantes. Vamos precisar de drogas estimulantes, doses
maciças que o mantenham acordado o tempo necessário.
Não podemos perder um minuto. Vamos reduzir para meia
hora os intervalos entre as sessões de interrogatório,
confundindo-o. Marbur, você deve providenciar tudo que
necessitaremos. Este homem é nossa única chance de
chegarmos ao traidor. Comunique-se com Hamsher e
Rokim. Que eles ordenem todo o apoio necessário.
Precisamos ter tudo à mão, quando chegar o momento —
pediu Bakou.
— Teremos, eu lhe garanto — afiançou Marbur.
***
A porta se abriu ruidosamente e a luz foi acesa,
iluminando os olhos injetados de Oliver, que se ergueu num
salto, precipitando-se na direção da porta. Kurt segurou-o
pela cintura. Oliver se debateu e seu cotovelo atingiu o rosto
do alemão, que praguejou e arremessou-o contra a parede.
Oliver gritou de dor e ficou encolhido, apertando o pulso
direito entre a mão esquerda e o peito.
— Vocês são alemães... São alemães comunistas! —
murmurou Oliver. — Vocês trabalham para os russos...
— Que diferença isso faz agora? — Bakou perguntou,
aproximando-se dele.
— Não vou colaborar... Vocês não me farão falar, nem
que me torturem. Eu não direi nada — gritou, erguendo-se
num salto, mas não chegando a dar um passo.
O pesado punho de Kurt afundou-se em seu estômago,
tirando-lhe o fôlego. Oliver tossiu, dobrando-se para frente.
Bakou se aproximou e segurou-o pelos ombros.
— Vamos, caminhe um pouco, vai ajudar. Você está
aprendendo a conhecer meu companheiro. Ele não é
paciente e, muitas vezes, violento. Só vai dificultar as coisas
para você. Não queremos isso, Oliver. Sinceramente. Tem
de acreditar em mim.
— Por que não me deixaram dormir? — indagou o
americano, pateticamente, caminhando curvado.
— Mas você dormiu a noite toda — afirmou Bakou,
levando-o para junto da cama e fazendo-o sentar-se. —
Como se sente agora?
— Estou bem.
— Ótimo! Agora nos fale de Female.
— Vocês não me deixaram dormir...
— Já lhe disse, você dormiu a noite toda.
— Onde está meu desjejum?
— Virá logo. Agora nos fale sobre Female.
— Que dia é hoje?
— Por que quer saber?
— Quero calcular... Se estou com vocês todo esse
tempo, já fui expulso da programação do computador. Não
poderei ajudá-los em nada.
— Claro que pode, Oliver! Só queremos informações.
— Quero ir à privada.
— Pois vá! Ela está bem ali, atrás de você.
— Não posso enxergar no escuro...
— Pode sim, eu ilumino para você.
Oliver se levantou e caminhou na direção de uma
pequena abertura, iluminada agora pelo facho de luz que
Bakou dirigira para lá. Não havia porta. Apenas a privada
simples, de agachar. Oliver se voltou na direção da luz,
cobrindo os olhos.
— Não tem porta! — disse.
— Não precisa de porta, Oliver. Não vamos incomodálo.
— Não posso fazer... Assim...
— Ora, Oliver, não seja criança — riu Kurt. — Não
nos obrigue a agachá-lo aí.
Oliver hesitou por instantes, depois retornou à cama,
sem ter usado a privada. Sentou-se. Bakou soltou a lâmpada,
que ficou dançando, iluminando-lhe os joelhos e o pé de
Kurt, apoiado sobre o colchão da cama.
— E então, Oliver, podemos contar com você? —
indagou o russo.
— Meu pulso está doendo — choramingou o
americano.
— Deixe de frescura, Oliver — explodiu Kurt. — Por
enquanto é apenas seu pulso. Se continuar assim, logo estará
com o corpo todo dolorido.
— Eu não sou um traidor...
— Sabemos disso, Oliver. Compreendemos sua
situação, mas você é um homem que pode morrer a qualquer
momento. O que é mais importante? Você ou as
informações? Elas não serão tão valiosas assim. O que acha
que poderíamos fazer com elas? Vamos, pode dizer o que
pensa! O que poderemos fazer, conhecendo o segredo do
funcionamento de Female? Nada! Só queremos saber.
Precisamos comparar os métodos. Se o sistema de vocês é
mais seguro que o nosso, poderemos aprender com isso, não
vê? — ponderou Bakou.
— Vocês também fazem pagamentos de agentes
através de computador? — indagou inocentemente o
americano.
— Era esse seu trabalho? — retrucou Bakou e seus
olhos brilhavam.
Oliver, então, pareceu perceber que dissera algo
indevido, retraindo-se imediatamente.
— Não sei do que está falando — disse, fazendo-se de
desentendido.
— Estamos falando do pagamento de agentes
estrangeiros, de espiões, Oliver. Era esse o seu trabalho?
Pagar os agentes estrangeiros a serviço dos Estados Unidos?
— intimou o russo.
— Eu não sei nada sobre isso...
— Oliver, Oliver! Nós sabemos de tudo...
— Então o que querem de mim, diabos? — praguejou,
enfurecido.
— Confirmações, Oliver. Detalhes que nos escapam,
coisinhas simples...
— Tão simples que ainda não conseguiram descobrir
— observou Oliver, com ironia, rindo baixinho.
O aposento dançou diante dele, enquanto seu ouvido
estalava ensurdecedoramente para, em seguida, ficar
vibrando como se um besouro houvesse penetrado até o
fundo de seu cérebro.
— Não gostamos de desprezo — disse Kurt,
esfregando as mãos. — Estamos sendo educados com você.
Por que não age da mesma forma conosco?
— Vocês me humilharam — soluçou ele.
— Ora, Oliver, que tolice! — riu Bakou.
— Vocês me humilharam, quando eu fui à privada.
— Está bem, eu lhe peço desculpa. Meu amigo
também lhe pedirá desculpas — assegurou o agente da
KGB, fazendo um sinal diante da lâmpada.
— Sim, Oliver, isso mesmo. Desculpe-me, está bem?
— pediu Kurt.
— E então, Oliver? — insistiu Bakou.
— Vão me deixar ir embora depois disso?
— Talvez. Tudo depende de como você se comportar.
Não temos interesse algum em matá-lo. Você nos seria mais
valioso como nosso aliado, Oliver.
O americano ficou em silêncio por instantes,
esfregando o pulso. Depois se levantou e foi até a privada.
Dessa vez Bakou não o iluminou. Oliver ficou lá durante
uns dez minutos, enquanto Bakou e Kurt esperavam
pacientemente. Quando retornou, havia algo novo nas faces
de Oliver, como se estivesse exageradamente aliviado.
Aguardaram até que o ruído da água cessasse. Oliver
esboçou um patético sorriso.
— Sente-se melhor agora? — quis saber o russo.
— Sim, muito melhor... Obrigado!
— Vai colaborar conosco, sem violência e sem drogas?
— Não tenho alternativa, tenho?
— Não, não tem, Oliver — assegurou-lhe Bakou.
— Vocês me deixarão ir embora mesmo?
— Depende de como se comportar. Coopere conosco e
não se arrependerá.
— Onde está o desjejum que me prometeram?
— Nosso outro amigo foi buscá-lo, eu garanto. Você
não o vê aqui, não é?
— Está bem — acedeu Oliver, vencido. — O que
querem saber? Essas informações de nada valerão para
vocês. Meu desaparecimento pode ter até provocado uma
mudança completa no sistema, principalmente considerando
que vocês espalharam que eu...
— Queremos experiências apenas, Oliver. Agora fale.
Conte-nos como funciona Female.
Oliver começou a falar. Um microfone sob a cama e
outro sobre a lâmpada garantiam a transmissão de suas
palavras para a sala do lado e, dali, para um barracão na
Friedrichostrasse, que retransmitia, por sua vez, para uma
sala na Alexander Platz.
Ele falou sobre Female, sobre a mensagem que vinha
do CIR, com aprovação do Departamento do Tesouro.
Descreveu como acionava o Female. Bakou pediu detalhes.
Oliver falou sobre as células fotoelétricas do sistema de
segurança, da maneira como o National Bank liberava o
dinheiro e a forma como era efetuado o crédito no
Richemond Bank. Bakou demonstrava uma excitação
incomum e parecia ansiar por um detalhe importante.
Quando Oliver terminou de falar, indagou-lhe:
— E como o agente sabe que um crédito foi feito em
sua conta numerada?
— O próprio crédito na conta aciona um sistema de
comunicação. Cada agente tem uma programação específica
para seu caso, de forma que o recebimento do dinheiro lhe
seja comunicado sempre o mais depressa possível, no
máximo cinco dias após cada crédito.
— Isso que dizer que, se fizéssemos um crédito na
conta de um agente estrangeiro agora, seria possível
localizá-lo se pudéssemos seguir a comunicação do crédito?
— quis saber o russo, com visível interesse.
— Teoricamente...
— E na prática?
— Difícil, mas não impossível. Bastaria reverter o
processo de transmissão para uma consulta ao computador
do Richemond Bank...
— Female pode fazer isso?
— Female pode ser programado para fazer isso.
— Quem poderia programá-lo? Alguém como você,
Oliver?
— Eu não sei — gaguejou o americano, confuso, agora
que as perguntas se sucediam num ritmo sufocante.
— Está bem, Oliver. Por hoje é só. Descanse. O seu
desjejum virá em breve.
— Quando vão me deixar sair?
— Logo, Oliver. Logo! — garantiu Bakou, retirando-se
da sala.
A porta se fechou, mas a luz não foi apagada dessa vez.
Oliver ergueu-se e apanhou a lâmpada, iluminando o
aposento ao seu redor. Era um quarto fechado. As janelas
haviam sido lacradas com tijolos e argamassa. Havia apenas
a cama e a abertura da privada. Depois de examinar tudo
atentamente, Oliver afrouxou a lâmpada, fazendo-a apagarse. Esperou algum tempo, olhando as paredes,
completamente escuras, sem nenhuma abertura que
permitisse entrar uma claridade. Voltou a rosquear a
lâmpada, depois se sentou na cama e tirou um dos sapatos.
Forçou o salto, até que ele saltasse fora. Dentro dele havia
um relógio digital pequeno, sem pulseira. Oliver apertou os
botões repetidas vezes e um sorriso de satisfação estampou-
se em seu rosto. Havia alívio total em suas faces quando
caminhou até a privada e atirou o relógio na abertura,
puxando a descarga barulhenta. Voltou à cama. Sentou-se e
adotou uma posição de ioga para meditação e relaxamento.
A RÉPLICA
Na sala ampla, com apenas a mesa ao centro e janelas
bloqueadas com traves de madeira cruzadas, Bakou
caminhava de um lado para outro, pensativo. Kurt parecia
entusiasmado com os resultados preliminares que poderiam
levar ao sucesso. Isso, por seu turno, seria um importante
registro em sua ficha pessoal. Ao ver a expressão de Bakou,
que caminhara até a mesa e se sentara, Kurt demonstrou
preocupações. Sentou-se em frente ao agente russo.
— O que o preocupa, Bakou? — indagou.
— Fácil demais, Kurt. Fácil demais. Temos uma
equipe pronta. Psicólogos, especialistas em drogas, um
médico treinado e ele nos entrega tudo de imediato sem
nenhuma resistência.
— E isso o preocupa? — perguntou Kurt,
aparentemente surpreso.
— Sim, isso me preocupa. Já participei de
interrogatórios preliminares antes. Jamais vi alguém se
submeter tão facilmente...
— Temos que considerar que Oliver não um agente
treinado para resistir. É um burocrata apenas.
— A função dele exige treinamento especial. Não
posso conceber alguém com um cargo tão importante sem
qualquer tipo de treinamento antiespionagem.
— Você exagera, Bakou. Está habituado a lidar com
agentes treinados. Oliver é um homem sem resistência. Fez
o que qualquer homem comum faria em seu lugar. As
ameaças o assustaram.
— Gostaria de submetê-lo aos especialistas. Um pouco
da droga certa e alguma habilidade arrancariam dele a
confirmação.
— Não temos tempo, você sabe disso. Nós o
pressionamos, ele cedeu. Temos outros preparativos a serem
considerados. Oliver Clark não tem substâncias nem
aparência de agente especial. O que pensa fazer, então?
Bakou não respondeu. Foi até a sala onde estava a
aparelhagem de rádio e o telefone. Discou um número e
falou umas poucas palavras. Desligou em seguida e retornou
à sala onde Kurt o esperava para olhá-lo como se o
criticasse. Menos de meia hora mais tarde, ouviram o ruído
de um carro que estacionava diante do prédio. Kurt foi até a
porta e espreitou. Abriu-a parcialmente para dar passagem a
um pequeno cortejo. À frente vinha Marbur, seguido de
Hamsher e outros três homens de aparência sinistra.
— Qual é o problema, afinal? — indagou Hamsher. —
Nós os ouvimos — adiantou.
— Eu não sei... Foi fácil demais — hesitou Bakou,
como se ainda não tivesse definido suas suspeitas.
— Vamos, Bakou! Nosso tempo é escasso, precisamos
nos apressar. O que tem em mente, afinal? Suspeita de
alguma coisa? — insistiu Hamsher.
— Sim, acho que ele está fazendo um jogo... Há
qualquer coisa de inconsistente nele...
— Está sugerindo que deveríamos entregá-lo aos
especialistas?
— Sim, seria prudente confirmar tudo o que ele falou
— ponderou o russo.
Hamsher meditou por instantes, depois se voltou para
um dos homens que o haviam acompanhado.
— O que me diz, doutor?
A testa de Johan Stefanie vincou-se e ele se voltou para
Bakou, observando o rosto sombrio do agente especial.
Conheciam-se. Haviam participado juntos de missões
semelhantes. Johan sabia que Bakou tinha um faro especial,
uma espécie de sexto sentido, embora jamais se ativesse a
isso como decisivo para qualquer decisão.
— Pelo que ouvi, Oliver Clark é um homem frágil,
sensível e assustado, disposto a colaborar. Se o
pressionarmos, ele pode bloquear-se inconscientemente.
Teríamos de usar drogas. Talvez confirmássemos sua
história ou descobríssemos a verdade de que suspeita
Bakou. O certo, porém, é que Oliver Clark, depois disso,
ficaria imprestável por alguns dias, até se ver livre
totalmente dos efeitos residuais da droga. Não poderia
colaborar, portanto, na outra parte do plano. Ao ouvir isso,
Bakou encarou Hamsher como que o recriminando.
— Achei que eles deveriam saber quais são os nossos
objetivos — antecipou-se Hamsher. — E agora, o que tem a
dizer? Acreditamos nele e seguimos em frente ou nos
arriscamos a perder a oportunidade? Se confiarmos nele,
teremos outras maneiras de corroborar sua historia no
desenrolar de seu trabalho.
— A decisão é sua — disse o agente, caminhando até a
porta que conduzia ao aposento onde Oliver se encontrava
aprisionado.
— Vamos confiar. Vá lá e diga a ele o que terá de fazer
para que acreditemos nele! — ordenou Hamsher.
Bakou parecia esperar essa ordem, pois destrancou a
porta e empurrou-a. A lâmpada estava acesa. Oliver dormia.
O russo se aproximou e tocou-o no ombro. Kurt entrou
também e empurrou a porta, o bastante para tapar de Oliver
a visão dos homens lá fora.
— O que foi? — indagou Oliver, abrindo os olhos e
sentando-se num sobressalto.
— Estivemos pensando no que nos disse, Oliver. É
tudo tão fantástico... Sabemos que pode ser possível, mas
temos razões para crer que você está nos mentindo,
ocultando informações que nos são importantes.
— Mas eu disse tudo — balbuciou o prisioneiro,
aturdido e sonolento.
— Precisamos nos certificar disso.
— Quer dizer que ainda não vão me deixar sair? —
indagou o americano, com desespero nos olhos injetados e
inquietos.
— Eu não disse isso. Vai depender de você. Queremos
que nos ajude a confiar em você. Que tal nos ajudar a
montar uma réplica de Female. Acha isso possível?
A surpresa estampou-se no rosto do americano.
— Vocês... Não, não vejo ligação com... Por quê? —
gaguejou confuso.
— É apenas um modo de nos certificarmos de que tudo
que nos disse é verdade. Vai nos ajudar a montar o
computador. Sabemos que tem condições para isso. Você
nos ensina como programá-lo e...
— Programá-lo para quê? — cortou-o Oliver, cheio de
suspeitas.
— Programá-lo, Oliver — respondeu apenas o russo,
persuasivamente.
O americano cobriu o rosto com as mãos. Era visível
sua confusão interior. Kurt se adiantou e olhou-o
ameaçadoramente. Oliver descobriu os olhos. Estremeceu,
retraindo-se.
— Está bem — disse num fio de voz.
— Vamos lhe trazer lápis e papel. Você vai relacionar
tudo que precisará para isso. Acha que pode se lembrar?
— Sim... Sim, claro! — confirmou Oliver.
Bakou ia se retirar. Em seu rosto era visível uma
suspeita. Voltou. Abaixou-se adiante de Oliver e fitou-o nos
olhos demoradamente. Oliver sustentou o olhar, desafiandoo abertamente. Bakou se ergueu. Não estava convencido ou
satisfeito.
— Descanse, Oliver! Você vai ter muito trabalho —
falou o russo, retirando-se com Kurt.
Quando a porta se fechou, Oliver voltou a se deitar e
era um homem inexplicavelmente tranquilo demais para a
perigosa situação que vivia.
PROVOCAÇÕES
A manhã estava cinzenta, quando Oliver Clark deixou
a casa escoltado por Kurt e Bakou, entrando num Mercedez
azul-escuro. Kurt assumiu o volante. Bakou se sentou com
Oliver no banco traseiro. O agente russo se manteve calado.
Seu semblante impessoal não deixava transparecer nenhuma
emoção. Oliver lhe fez algumas perguntas e ele respondeu
com monossílabos. Oliver desistiu de falar com ele e se
voltou para ficar observando as ruas por onde avançavam. O
carro passou nas proximidades do aeroporto Schonefeld, no
exato momento em que um jato da Interflug levantava voo.
Oliver acompanhou a elevação do avião, depois voltou a se
concentrar nas calçadas. Atravessaram a Karl Marx Alee.
Oliver parecia um tanto confuso, mas, quando se
aproximavam da Alexander Platz e pôde ver a enorme torre
de televisão, demonstrou certa confiança.
Pararam por algum tempo na praça. Kurt desceu
rapidamente e, pouco mais tarde, retornava na companhia de
outro homem, que se sentou a seu lado, no banco dianteiro.
Seguiram, então, afastando-se do centro da cidade e
tomando o rumo este. Flocos de neve começaram a dançar
suavemente no céu, antes de pousar e acumular-se no parabrisa. Kurt ligou o limpador, pouco antes de penetraram
numa rua estreita, com prédios altos e aparentemente vazios,
até que Kurt estacionasse o veículo diante de duas enormes
portas de aço, que se abriram imediatamente, fechando-se
após a passagem do carro.
Ali dentro reinava uma agitação incomum. Enormes
caixas haviam sido descarregadas de diversos furgões,
alinhados nas paredes laterais. O amplo depósito estava
iluminado por potentes holofotes. Homens suspensos das
traves do telhado instalavam outros, na parte dos fundos.
Alguns aparelhos de aquecimento de ar haviam sido
montados nos quatro cantos da construção. Uma espécie de
sala de vidro estava sendo erguida no centro. Caixas eram
abertas com meticuloso cuidado. Homens vestindo
uniformes brancos levavam os materiais das caixas para a
sala de vidro.
— O que está acontecendo aqui? — indagou Oliver,
surpreso com a movimentação toda.
— Esse é o material que solicitou. Creio que
encontrará todo o necessário para montar uma réplica de
Female. Aqueles de branco são técnicos especialistas em
computador e vão ajudá-lo em tudo que precisar.
Nesse momento, um dos homens de uniformes deixou
os outros e foi ao encontro do grupo.
— Este é Hanz Kauff, técnico em programação. Vai
assessorá-lo, Oliver — disse Bakou.
O americano pareceu não apreciar a ideia, pois ignorou
a mão que o recém-chegado lhe estendera e caminhou na
direção da sala de vidro. O técnico alemão o seguiu em
silêncio. Bakou se voltou para Marbur.
— O que acha? — indagou-lhe Marbur.
Bakou jogou a cabeça de um lado para outro, omitindose. Kurt ia dizer qualquer coisa, mas interrompeu-se, pois
Oliver caminhava ao encontro deles, após haver
inspecionado rapidamente os materiais que já haviam sido
levados para a sala de vidro.
— Por que o transmissor? Ninguém disse que eu teria
de montar o transmissor também — falou, alterado. — O
que pretendem, afinal? Não vão exigir que eu sintonize esse
arremedo de computador ao satélite e... — interrompeu-se,
apreensivo, fitando um e outro alternadamente.
— E o quê, Oliver? — indagou Bakou , aproximandose até que seus corpos quase se tocassem, cravando seu
olhar nos olhos assustadiços do americano que, dessa vez,
fugiu ao confronto.
Bakou sorriu levemente.
— Não pode ser feito — murmurou Oliver, num sopro
de voz assustada.
— Temos os materiais e os técnicos para isso. Basta
você ordenar e tudo acontecerá como num passe de mágica,
como num conto de fadas — falou o russo, com ironia.
— Não o farei... Posso montar a réplica do
computador, mas para que ligá-lo ao transmissor? Que
poderão obter fazendo a conexão com o satélite?
— Apenas faça, então, Oliver. É tudo que lhe pedimos.
Faça isso e estará livre para ir para onde quiser, com uma
boa recompensa.
O americano voltou-lhe as costas e esfregou as mãos
no rosto. Quando descobriu os olhos, quase em seguida, seu
olhar acompanhou, entre surpreso e admirado, a passagem
de uma garota metida num dos uniformes, com os cabelos
louros e longos derramados sobre os ombros e as mãos finas
e delicadas carregando um importante componente
eletrônico. Bakou se aproximou e pousou a mão forte no
ombro de Oliver, que o olhou. Bakou sorriu
zombeteiramente. O americano olhou-o com ódio.
***
Arabell Hoff, foi assim que se apresentou a Oliver,
possuía uma beleza tipicamente saxônica. Seus olhos azuis
espelhavam um céu como jamais existiu sobre Berlim. Suas
maneiras eram femininas ao extremo, muito embora sua
concentração no trabalho tirasse parte de seus encantos.
Oliver a observou durante toda a manhã. Arabell era fria,
impessoal e agia como se fizesse questão de ser tratada
como os homens que trabalhavam no local. Era perita em
micro-soldagem. A habilidade de suas mãos fascinou
Oliver, assim como as linhas suaves do rosto, o nariz afilado
e levemente arrebitado, os lábios carnudos e bem
delineados, tornando sua boca tentadora e sensual. Um
suave perfume envolvia seu corpo, sugerindo calor e, ao
mesmo tempo, emoção. Enquanto fazia sua parte no
trabalho, orientando os técnicos, Oliver não a perdia de
vista. Algumas vezes ela havia levantado os olhos para ele e
dera a impressão de ser apenas uma menina assustada.
Havia algo de frágil em sua aparência, como se seu
semblante pedisse um socorro especial. Oliver demonstrou
visivelmente estar sendo atraído por ela. Durante o intervalo
rápido para o almoço, aproximou-se dela, levando sua
bandeja, onde nadava em molho um pedaço de salmão do
Reno, ao lado de uma salsicha branca e um pedaço de pão
preto com algumas fatias de queijo.
— Estivemos trabalhando desde as seis da manhã. Que
horas são agora? — indagou ele.
— Passa um pouco do meio-dia — ela respondeu com
uma cordialidade inesperada, erguendo a cabeça para sorrirlhe e exibir dentes perfeitos.
Oliver sorriu em resposta, reclinando-se contra um
caixote. Ergueu os olhos para o salão profusamente
iluminado. Do outro lado, junto à porta de aço, Bakou e
Kurt pareciam um par de violentos dobermen vigiando a
saída. Havia um ar zombeteiro pairando nos lábios do russo
e isso pareceu irritar Oliver. Ele voltou sua atenção para a
garota, como que disposto a ignorar o russo.
— Você fala inglês muito bem — observou ele.
— Aprendi em Oxford, na Inglaterra. Fiz um curso lá
há algum tempo — respondeu ela, desembaraçadamente.
— Conhece os Estados Unidos?
— Não, mas gostaria. Dizem que é um excelente país.
Tenho alguns parentes que emigraram para lá depois da
guerra. Contam maravilhas do país que os acolheu. Gostaria
mesmo de um dia poder visitá-los — ela disse, e seu
semblante se tornou levemente sonhador, realçando sua
feminilidade.
— Nada a impede — Oliver disse em resposta e havia
um acento de tristeza em sua voz que ela captou, pois
deixou o talher e encarou-o demoradamente, com piedade
no olhar meigo.
Oliver sustentou o olhar e, por momentos, uma
atmosfera de perigosa aproximação pairou entre os dois,
como se a solidariedade demonstrada por ela o abalasse e
comovesse. Sua tristeza a havia tocado profundamente.
Voltaram a comer em silêncio, mas uma aura de
cumplicidade nascera, envolvendo-os e tornando-os
semelhantes.
Após o almoço, quando reiniciaram os trabalhos,
tiveram oportunidade de, por alguns instantes, ficarem longe
das vistas dos outros. Haviam ido apanhar algumas peças
que ainda se encontravam embaladas nas caixas,
armazenadas no fundo do depósito. Quando se inclinaram,
suas mãos se roçaram rapidamente, mas o toque de suas
peles sensibilizou-os visivelmente, imobilizando-os.
Olharam-se em silêncio, então.
— O que vai fazer depois que tudo aqui estiver
terminado? — ele perguntou.
— Haverá outros trabalhos — murmurou ela,
abaixando a cabeça, dando a entender que sua perspectiva
de futuro não era das melhores.
Oliver ia dizer qualquer coisa, ao mesmo tempo em
que esboçava o gesto de levar sua mão ao queixo dela, mas
interrompeu-se ante a aproximação de dois uniformizados.
Apanharam o que haviam ido buscar e retornaram à sala de
vidro. Junto às portas de aço, Bakou os observava, com
aquele sorriso de zombaria constantemente nos lábios.
Oliver e Arabell não voltaram a se aproximar até que
escurecesse. O jantar foi trazido e, junto com ele, algumas
pílulas que Bakou fez questão de entregar pessoalmente a
Oliver.
— O que é isso? — indagou o americano.
— Estimulante.
— Para quê? Não preciso de estimulante...
— Vai precisar.
— Uma boa noite de sono e estarei bem...
— Não haverá noite de sono — informou o russo,
friamente.
Oliver encarou-o por instantes, como se não
compreendesse o motivo daquilo. Olhou ao seu redor, então.
Os outros todos engoliam suas pílulas sem pestanejar, como
se aquilo já fosse um hábito em suas vidas. Procurou atônito
a figura de Arabell. Ela fazia o mesmo, mastigando suas
pílulas antes de provar um pedaço de Frankfurt com salada.
O americano ficou revoltado. Antes que dissesse qualquer
coisa, porém, Bakou tomou-lhe uma das mãos e depositou
nela duas pílulas amarelas, sem marca alguma que as
identificasse. Oliver encarou-o desconfiadamente.
— E se eu me recusar?
Bakou se voltou e olhou na direção de dois homens que
estavam aguardando ali perto. Tinha toda a aparência de
dois truculentos enfermeiros.
— Se você não tomar as pílulas, eles virão e as
injetarão em suas veias. Você escolhe...
— O que pretendem, afinal? Por que isso? Por que essa
pressa? Mesmo que liguem essa maldita réplica de Female
ao satélite e consigam uma conexão com Richemond, de
que isso adiantará? Estou fora do banco de memória, meu
tempo já passou. Desconheço a nova chave. Nada poderá ser
feito, seja lá qual for a ideia maluca que vocês têm em
mente.
— Faça apenas, Oliver, sem problemas e não se
arrependerá — disse o russo e havia uma indisfarçável
ameaça no seu tom neutro de voz.
***
O trabalho avançou pela noite. Ninguém demonstrava
sinais de cansaço, embora estivessem naquele trabalho
delicado desde a manhã. Oliver passou a observar melhor
Arabell. Seu trabalho na micro-soldagem era estafante.
Apesar de máscara, seus olhos eram submetidos a uma
tensão constante, capaz de abalar os nervos da pessoa mais
treinada. Era madrugada, quando ela vacilou e o aparelho de
solda caiu a seus pés. Ela o desligou e cambaleou em
seguida, indo se apoiar numa das paredes de vidro. Oliver
correu para ela, mas uma figura mais ágil intrometeu-se
entre os dois. Bakou agarrou a jovem pelos ombros e agitoua, depois a jogou de encontro à parede.
— Vamos, volte ao trabalho! — gritou o russo.
Oliver olhou ao seu redor. Ninguém movera um
músculo ou fizera o menor gesto em defesa de Arabell, que
soluçou e começou a chorar. Bakou estendeu a mão para
segurá-la pelo pescoço. Oliver se adiantou, empurrando a
mão dele e pondo-se entre os dois.
— Saia da frente! — ordenou Bakou, furioso.
— Deixe-a em paz. Está cansada. Não compreende que
seu trabalho é delicado demais? Ela precisa repousar. Dê-lhe
alguns instantes.
— Saia da frente! — rugiu Bakou, irritado, talvez, pela
vigília, adiantando-se.
Oliver, então, num movimento inesperado, empurrouo, desequilibrando-o. O russo caiu sobre uma caixa e
praguejou, erguendo-se em seguida e avançando
ameaçadoramente para o americano.
— Basta, Bakou! — gritou uma voz, de um ponto
qualquer do armazém.
A voz fora enérgica e imperativa. Bakou estacou,
encarando Oliver, antes de se afastar pisando firme sobre o
cimento frio. O americano observou-o sair por uma das
portas de aço. Segundos depois, o ruído do motor de um
carro indicava que ele se afastava. Arabell levantou os olhos
para Oliver e murmurou terna e agradecidamente.
— Obrigada, Oliver!
A ternura daquela voz seguramente o comoveu
profundamente.
***
Três horas de uma madrugada fria lá fora. No interior
da construção, o cansaço se refletia, afinal, nos rostos de
todos os que se encontravam lá. Colchões de campanha
começaram, então, a ser alinhados na parte dos fundos do
depósito, atrás das caixas vazias empilhadas. Ali o
aquecimento havia sido ligado ao máximo e a temperatura
era agradável, apesar de, lá fora, a neve cair intermitente e o
piso frio guardar uma umidade que se infiltrava até os ossos.
— O que vai acontecer agora? — indagou Oliver a
Arabell, assim que os trabalhadores começaram a
interromper seus afazeres.
— Vamos descansar um pouco.
— Que horas são?
— Três horas — ela respondeu, após um ligeiro
movimento de pulso.
— E amanhã, como vai ser?
— Desjejum com pílulas, almoço simples e jantar com
pílulas. Vamos dormir, em média, três horas por dia.
— Mas é um absurdo! — exclamou ele, indignado,
olhando ao seu redor.
Arabell, no entanto, fez um movimento de ombros e
adotou uma expressão que traduzia sua impotência diante
dos fatos.
— Venha, cada segundo é precioso. Você também
precisa descansar — ela disse, carinhosamente, tomando-o
pela mão e fazendo-o caminhar atrás de si.
Oliver a acompanhou até os fundos do depósito, onde
estavam os colchões. Apanharam dois deles, com
cobertores, e levaram para um canto próximo do aquecedor.
Os holofotes daquela parte haviam sido desligados
completamente. A pilha de caixas quebrava a luminosidade
dos outros, que ficaram acesos na parte dianteira do
armazém. Alinharam, então, seus colchões lado a lado.
Estenderam-se, cobrindo-se com os grossos cobertores.
Apesar do aquecimento, o piso de cimento enregelava.
Alguém, em alguma parte, reclamou dos holofotes. Alguns
mais, então, foram desligados, permanecendo alguns que
estavam voltados para as portas. A penumbra caiu sobre o
depósito. O rigor do frio começou a se fazer sentir. O
aparelho aquecedor estalou, depois o silêncio se fez
completo, quebrado momentaneamente pelo farfalhar do
corpo de Arabell sobre o colchão, quando ela se moveu,
procurando se encostar em Oliver, abraçando-o. Com a
proximidade de suas peles, um calor repousante logo os
envolveu, adormecendo-os prostrados após o dia estafante.
Se não fosse o cansaço extremo, certamente teriam
ouvido passos e, caso Oliver ou Arabell estivessem de olhos
abertos, teriam visto o rosto de Bakou, com aquele mesmo
sorriso zombeteiro e provocador pairando nos lábios.
Por algum tempo o russo os observou, depois
caminhou de volta para a porta de aço, como se estivesse
satisfeito e o que observara o deixasse tranquilo a respeito
de tudo que pudesse preocupá-lo.
FUGA
Oito horas da manhã em Berlim Oriental. Nuvens
escuras e pesadas ameaçavam desabar sobre a cidade. Atrás
do vidro embaçado, Bakou fumava pensativamente,
enquanto fitava o movimento na Alexander Platz. Apesar
das poucas horas de sono, o russo não demonstrava cansaço.
Seus olhos, pelo contrário, revelavam uma excitação
incomum, como se a expectativa do cumprimento da missão
desse-lhe forças adicionais para suportar o ritmo pesado da
espera.
Ouviu vozes atrás de si e se voltou. Hamsher e Marbur
acabavam de entrar. Marbur fez-lhe um sinal para que os
seguisse até sua sala. Os três se sentaram nas poltronas de
couro, em frente da vitrine de armas.
— E então, Bakou? — Marbur perguntou.
— Tudo está correndo satisfatoriamente — ele
respondeu, mas seu rosto demonstrou certa apreensão que
não passou despercebida pelos outros.
— O que o preocupa, então? — Hamsher insistiu, de
bom humor.
— Quantas pessoas sabem, realmente, tudo sobre a
operação? — o agente quis saber.
Marbur e Hamsher trocaram olhares surpresos.
— Por que a pergunta? — Hamsher perguntou,
ligeiramente autoritário, como se a indagação de Bakou
viesse perturbar seu bom humor.
— Preciso saber — ele respondeu, num tom neutro,
mas convincente.
— Nós, diretamente envolvidos, e alguns poucos, na
cúpula da Primeira Divisão e do partido.
— E o pessoal do depósito?
— Ninguém, como de praxe, além de Hanz Kauff, o
programador.
— A equipe de interrogatório?
— Tive de dizer-lhes. Afinal, iam interrogar Oliver por
solicitação sua.
— Eu não pedi a presença deles afirmando que
interrogariam. Poderiam ficar alheios até o último momento.
Se a informação vazar, poderá chegar ao homem que
procuramos e tudo estará perdido — observou Bakou,
fazendo com que Hamsher e Marbur se entreolharem
novamente.
— Os interrogadores sabem de seu ofício — respondeu
Marbur, rispidamente, dando a entender que a lembrança do
agente russo era totalmente descabida. — O que o preocupa,
afinal?
— A missão não pode falhar — ele disse, erguendo-se.
— Eu os manterei informados. O que pretendem fazer com
Oliver Clark quando tudo terminar?
— Ainda não decidimos. Estamos pesando os prós e os
contras. Nós o notificaremos, assim que chegarmos a uma
decisão — disse Hamsher.
— Sugiro que o matem — Bakou disse, com frieza.
— É uma hipótese a ser considerada. Por outro lado,
ele realmente entende de seu trabalho. Pode nos ser útil
futuramente. Poderemos forçá-lo a outros trabalhos
igualmente importantes, não importa para onde ele vá —
considerou Hamsher.
— Ele não tem estrutura para ser um espião — afirmou
o russo.
— Ele não precisa ser um espião, necessariamente,
para nos ser útil — Hamsher falou, com displicência,
demonstrando que não estava disposto a aceitar mais
nenhuma sugestão de Bakou, que concordou com
movimentos de cabeça e se retirou em seguida.
***
O almoço havia sido servido. As bandejas de metal se
enchiam com Mockwurst, a salsicha gorda, salada de batata,
repolho e panquecas. O pessoal dispersou-se, espalhando-se
pelo depósito. Pareciam, agora, autômatos. Seus olhos eram
inexpressivos e seus movimentos eram lentos, mas precisos.
Oliver e Arabell foram se sentar ao fundo, junto das caixas.
Ele a observou por algum tempo. Ela esboçou um sorriso
alentador, embora visivelmente cansado. Havia carinho em
seu olhar, capaz de enternecer um homem. Passos fizeramnos desviar o olhar. Bakou se aproximou deles, com o ar
zombeteiro que irritava Oliver.
— Como vão os trabalhos? — indagou o agente.
— Adiantados. Jamais pensei que pudesse montar um
computador tão rápido. Devo reconhecer que a sua
tecnologia é...
— O pessoal é de primeira qualidade — cortou-o
Bakou. — Bom material humano — continuou, olhando
com provocação Arabell, que abaixou os olhos e se
concentrou na comida em sua bandeja.
Oliver empalideceu e suas mãos tremeram. Bakou se
aproximou ainda mais de Arabell, até que seus joelhos
roçassem os dela. Ele sorriu, enquanto um de seus joelhos
forçava passagem por entre os joelhos unidos de Arabell,
fazendo oscilar a bandeja sobre eles. Uma tensão
incontrolável estampou-se no rosto de Oliver, que se
enrijeceu. Bakou era mais corpulento que ele, mas Oliver
empunhava com força o garfo, como que disposto a fazer
dele uma arma inesperada.
— Jamais conheci uma garota que fosse perita em
micro-soldagem — zombou o russo. — Essas mãos devem
fazer maravilhas nos instrumentos certos — ele disse,
estendendo o braço e tomando entre seus dedos uma das
mãos de Arabell, que o repeliu com um safanão.
O agente perdeu o controle e ameaçou reagir
violentamente. Num movimento inesperado, Oliver se
ergueu e o conteúdo de sua bandeja foi jogado contra as
roupas de Bakou, que soltou uma praga, enquanto se
afastava um passo.
— Desculpe-me, fui desastrado! — disse Oliver,
encarando-o ostensivamente.
O russo caminhou lentamente ao encontro dele. Seus
rostos ficaram próximos. A mão de Oliver tremeu,
empunhando o garfo. O agente soviético sorriu,
zombeteiramente, virou-lhe as costas e se afastou. Oliver
ficou trêmulo, olhando-o. Seus olhos chispavam. Arabell
fixou seu olhar no garfo que ele apertava entre seus dedos.
Estendeu a mão e tocou-lhe o pulso num gesto apaziguador,
Oliver relaxou-se lentamente. Um dos uniformizados
se aproximou, trazendo outra bandeja. Oliver agradeceu e
voltou a se sentar. A mão de Arabell ainda permanecia sobre
seu braço. Olharam-se.
— Você está se arriscando — alertou ela, visivelmente
preocupada.
— Eu não o temo — ele disse e sua voz ainda tremia.
— Precisam de mim.
— Deve pensar, no entanto, no que poderá lhe
acontecer depois, Oliver.
Ele a olhou demoradamente, como se essa observação
o houvesse atingido e trazido de volta a uma realidade cruel.
Uma expressão de desalento tomou conta de seu rosto.
— Não tenho alternativa, Arabell.
— Estou com medo, Oliver. Medo por você e por mim.
Bakou é violento e vingativo.
— Bakou é apenas um instrumento. Quando chegar o
momento, negociarei.
— Que momento? Com quem negociará?
— Não se preocupe, Arabell — ele disse, procurando
tranquilizá-la.
Kurt avançou na direção deles, após ter estado
conversando por algum tempo com Bakou, junto às portas
de aço.
— Arabell, venha comigo! — ordenou.
— Ela vai estar ocupada. Preciso dela... — argumento
Oliver.
— É só por alguns instantes — Kurt disse, com
zombaria.
— Deixe estar, Oliver — falou a garota, resignada,
erguendo-se e depositando a bandeja sobre uma caixa. —
Não vou me demorar.
Oliver observou os dois se afastarem na direção das
portas, onde Bakou os aguardava. Os três deixaram o
armazém e o americano se mostrou visivelmente
transtornado. A preocupação e a irritação marcaram seu
comportamento. Ele desprezou a comida e foi para a sala de
vidro, onde uma complexa estrutura eletrônica já se achava
praticamente pronta.
Inspecionou algumas ligações. Verificou os cabos
elétricos. Examinou o termômetro que marcava a
temperatura ideal para o delicado equipamento. A todo
instante se voltava, impaciente, para olhar as portas.
Descobriu um defeito numa das ligações elétricas. Dois fios
mal ligados poderiam levar a um circuito. As portas de aço
se abriram. Arabell entrou à frente de Bakou e Kurt. A
jovem procurou Oliver com o olhar, caminhando na sua
direção. Bakou e Kurt vieram atrás. Arabell passou por
Oliver, na sala, e foi apanhar uma aparelhagem de solda. Em
seu rosto eram visíveis a consternação e a revolta. Bakou se
adiantou e encarou Oliver, aproximando-se ao máximo do
americano.
Oliver estremeceu e seus olhos brilharam. Suas mãos
tremeram. Ele ergueu os dois fios elétricos lentamente, até
sob o queixo de Bakou, e uniu-os. Fagulhas estalaram e o
agente russo recuou surpreso, num salto. Oliver riu. Kurt se
adiantou e reteve Bakou, segurando-o por um dos braços.
— Desculpem-me! — Oliver disse, zombeteiro. — Foi
um acidente.
Kurt puxou Bakou para trás. O agente russo livrou-se
com um repelão. Encarou Oliver por instantes, depois girou
nos calcanhares e se retirou, seguido por Kurt.
— Bastardo! Maldito vermelho nojento! — desabafou
Arabell, soluçando em seguida e começando a chorar.
— Arabell! — exclamou Oliver, correndo ampará-la.
Ela se abraçou a ele, debruçando sua cabeça contra o
peito do americano, extravasando uma tensão que explodia
em seu semblante. Oliver acariciou-lhe os cabelos
lentamente, como se o fato de tê-la consigo e poder acariciála e senti-la o agradasse muito.
***
Durante o resto da tarde, Arabell se mostrou nervosa,
falhando algumas vezes em seu delicado trabalho,
obrigando-se a refazê-lo. Oliver a corrigia com brandura,
mas ao vê-la efetuar uma solda desastrosa, que poderia
afetar o funcionamento do computador, segurou-a pelos
ombros e levou-a para os fundos do depósito, longe das
vistas de Bakou e dos outros. Ela manteve a cabeça baixa,
evitando olhá-lo. Ele a segurou pelo queixo e forçou-a a
encará-lo.
— O que ele lhe fez? — indagou ele e sua voz traduzia
um ódio perigoso.
— Esqueça, Oliver! Vamos voltar ao trabalho. Há
muito ainda a ser feito...
— Não! Não suporto vê-la dessa forma. Vi o que
acabou de fazer. Aquela ligação poderia comprometer todo
o funcionamento de uma programação. O que há, afinal?
Ela soluçou com agonia, depois desatou um pranto
nervoso, pousando a cabeça contra o peito de Oliver, que a
abraçou com emoção, esperando que ela se acalmasse. Com
a voz entrecortada, ela disse:
— Querem que eu o espione, Oliver. Duvidam de sua
lealdade!
— O que aquele bastardo lhe disse? — ele quis saber,
indignado.
— Ele queria saber sobre o que conversamos tanto, se
eu suspeitava de sua lealdade, o que estava achando do
modo como o trabalho estava sendo feito... Ele queria coisas
que pudessem comprometê-lo, Oliver. Mas eu não disse
nada. Juro-lhe! — afirmou ela, levantando o rosto banhado
de lágrimas que realçavam sua fragilidade e sua beleza.
— Pobre Arabell! — murmurou ele, apertando-a em
seus braços.
Alguns uniformizados passaram ao lado, carregando
caixas. Oliver os ignorou e manteve Arabell junto de si.
— Malditos! Eu devia deixá-los entregues à própria
sorte — rugiu ele.
— Façamos isso, Oliver! Sei como fugir, atravessando
o muro. Uma vez em Berlim Ocidental, poderemos fugir
para qualquer parte do mundo. Conseguir identidades falsas
não é tão difícil. Leve-me daqui, Oliver — pediu ela,
febrilmente, enlaçando-o pelo pescoço e roçando as peles de
seus rostos num crescendo que culminou num beijo violento
e desesperado, onde a volúpia se mesclava ao temor.
Oliver a apertou firme nos braços até que ela se
imobilizasse mansa e quieta como uma mulher apaixonada e
satisfeita.
— Não posso fugir, Arabell. Preciso ajudá-los.
Comprometeram-me. Não me deixaram saída. Não poderia
viver eternamente com medo, arrastando-a para um inferno.
Ajudando-os, terei ajuda para quando tudo isso terminar.
— E quem pode garantir que eles não o matarão depois
de tudo? — ela indagou e sua lógica era chocante.
— Isso eu saberei quando chegar o momento — ele
respondeu, afagando-lhe os cabelos.
— Que momento, Oliver? — ela quis saber, curiosa e
confusa.
— Tranquilize-se, Arabell. Tudo vai acabar bem para
nós. Eu lhe prometo!
O ACORDO
A Primeira Divisão da KGB, através da WEIMAR e da
UDL, empenhara toda a tecnologia soviética num projeto
arrojado a ser cumprido em tempo recorde. Para tanto,
mobilizara um pessoal altamente especializado e capacitado,
pondo-o sob a aparente coordenação de Oliver Clark. Na
realidade, cada um dos uniformizados sabia exatamente o
que deveria fazer o tempo todo. A estrutura do computador
viera pré-montada. Os componentes adicionais, conforme
solicitado por Oliver, foram sendo acrescentados,
procurando dar a esse computador a mesma autonomia e
poder de ação de Female. As antenas que o ligariam aos
satélites haviam sido instaladas no alto dos trezentos e
sessenta e cinco metros da torre de televisão, na Alexander
Platz, onde técnicos no setor ultimavam os preparativos para
torná-las operacionais.
A noite chegara fria e triste, com um céu de nuvens
baixas refletindo as luzes da cidade e a neve tecendo uma
cortina semitransparente que escondia as fachadas mutiladas
dos prédios ao longo do muro. No interior do armazém, o
jantar começara a ser servido. Hanz Kauff, o programador,
foi ter com Oliver, que, visivelmente, o hostilizava.
— Poderemos iniciar a programação após o jantar —
disse o alemão.
— Eu sei disso — respondeu Oliver, rispidamente,
tomando suas pílulas estimulantes. — Quando chegar o
momento, eu farei minha parte.
— Devo estar a seu lado. Preciso acompanhar todo o
trabalho de...
— Não! — interrompeu-o Oliver, bruscamente.
O alemão empalideceu e olhou na direção de Arabell,
que abaixou a cabeça e se concentrou no peixe que nadava
no molho. Hanz voltou a encarar Oliver.
— Acho que não entendeu o que... — ia dizendo Hanz,
mas Oliver o fez calar com um gesto.
— Foi você quem não entendeu, amigo. Eu cuido da
programação. Apenas eu! — frisou bem.
— É o que veremos — respondeu Hanz, girando nos
calcanhares e caminhando até onde estavam Bakou e Kurt.
Trocaram algumas palavras, sempre olhando na
direção de Oliver e Arabell. Em seguida, Kurt deixou sua
bandeja no local e saiu rapidamente por uma das portas de
aço. Bakou e Hanz caminharam na direção de Oliver, que
deixou de lado a bandeja, preparando-se para recebê-los
hostilmente. Arabell estendeu uma das mãos e segurou-lhe o
punho crispado. Ele se voltou e esboçou um sorriso que
jamais a tranquilizaria.
— Após o jantar você inicia a programação — ordenou
o russo, num tom monocórdio, sem trair emoção alguma.
— Eu sei o que devo fazer — respondeu Oliver, no
mesmo tom.
— Hanz o acompanhará.
— Eu o farei sozinho. Ou então não o farei — afirmou
o americano, com decisão.
Bakou estremeceu, perdendo a frieza que era uma de
suas principais virtudes como agente especial. Entre ele e
Oliver se desenvolvera uma forte barreira de rancor. A
inimizade era percebida à distância. Seguramente o russo o
eliminaria ali mesmo, naquele momento, se Oliver não
tivesse importância.
O russo respirou fundo, depois desabotoou o sobretudo
e sacou calmamente sua Makarov, avançando um passo na
direção de Arabell. A garota imobilizou-se, trêmula. O cano
da arma encostou-se A e em sua têmpora esquerda. O
estalido seco da trava sendo libertada provocou um frêmito
no corpo de Oliver.
— Acho que compreendeu bem o que eu quis dizer,
não? — zombou o russo.
— Está bem! — Oliver respondeu num fio de voz.
O agente soviético travou a arma e guardou-a no coldre
sob a axila esquerda. Encarou Oliver com arrogância e
superioridade, depois se afastou na companhia de Hanz.
Arabell se ergueu e foi procurar apoio no corpo de Oliver,
que a abraçou com carinho protetor.
— Não se preocupe, querida! Está tudo bem! —
afirmou ele.
— Ele vai nos matar. Bakou é rancoroso, não hesitará
em nos eliminar depois que tudo acabar.
— Já lhe disse, não se preocupe — insistiu ele,
acariciando-lhe o rosto pálido.
***
Após o jantar, os uniformizados não retornaram à sala
de vidro. Haviam recebido ordens expressas de Bakou para
que deixassem o americano fazer sua parte sozinho. Apenas
Hanz o seguiu, postando-se atrás dele, numa cadeira
giratória. Por algum tempo, Oliver ficou imóvel, olhos
fechados, concentrando-se. Depois começou a digitar
rapidamente. Havia uma tela logo acima de sua cabeça,
diretamente a sua frente, e seu nome apareceu ali escrito,
seguido de uma série de números. Ele continuou e seu
propósito aparente era testar o computador, carregando e
checando-o com informações sem sentido para Hanz que o
mantinha sob vigia.
— Já que está aqui e não há como expulsá-lo, penso
que devo aproveitá-lo. Quer acionar a chave de liberação
para introdução da programação especial? — pediu ele a
Hanz, sem se voltar.
O alemão se adiantou, debruçando-se para acionar uma
tecla.
— Não! — gritou Oliver, alto o bastante para ser
ouvido lá fora, enquanto fazia um movimento quase
imperceptível com a ponta de um dos pés, tocando um cabo
elétrico que passava junto à estrutura.
Fagulhas saltaram do painel, seguidas de muita
fumaça.
— A chave geral! — berrou Hanz.
— Seu idiota desastrado! — Oliver gritou,
empurrando-o para o outro extremo da sala, completamente
desequilibrado.
Arabell correra e desligara a chave geral. Bakou e Kurt
se apressaram em ir até lá. O agente russo estava lívido.
— Tirem esse idiota daqui! — ordenou Oliver. — Ele
quase pôs tudo a perder. Como puderam me impingir
alguém assim, com a delicadeza de um paquiderme?
Hanz estava boquiaberto, incapaz de compreender o
que houvera. Apenas tocara uma chave e o painel explodira
em seu rosto. Depois Oliver o empurrara e o acusara.
— Não sei o que houve aqui, mas não acredito que
Hanz pudesse... — ia dizendo Bakou.
— Não viu o que ele fez? É cego, russo? Tire-o daqui
ou nada será feito — cortou-o Oliver, encolerizado.
— Eu não fiz nada — Hanz conseguiu dizer, afinal.
— Quais são os danos? — quis saber Bakou.
— Superficiais, creio. Talvez apenas substituir os
circuitos impressos do painel, mas só teremos certeza depois
de verificar — antecipou-se Arabell.
— Façam-no, então. Hanz continuará aqui —
determinou o russo.
— Se ele ficar, eu não faço nada! — afirmou Oliver,
categoricamente.
Um pesado silêncio pairou na sala. A tensão chegara a
um nível insustentável. Bakou desabotoou o sobretudo.
Sacou a Makarov automática, destravou-a e apontou-a para
a cabeça de Arabell. Oliver estremeceu, encarando-o com
ódio, depois lhe virou as costas e se retirou da sala. A
expressão do russo foi patética.
— Volte aqui! — gritou e Oliver nada respondeu, indo
se sentar numa das caixas lá fora.
Bakou abaixou a arma e caminhou na direção dele, que
se manteve calmo, relaxando, como se a tragédia iminente
não o afetasse. O russo balançou a arma destravada diante
do seu rosto.
— Dou-lhe três segundos para... — começou Bakou.
— Para o inferno com você! — rugiu Oliver.
— Maldito cão imperialista! — vociferou o russo,
erguendo a arma com disposição de atirar.
— Pare, Bakou! — ordenou a voz firme de Hamsher,
passando pelas portas de aço. — O que está havendo aqui?
— Eu o preveni contra esse cão americano — gritou o
russo. — Ele se nega a cooperar, agora que tudo está pronto.
— Eu não me neguei a nada. Apenas não quero aquele
perdigueiro fungando em meu pescoço o tempo todo —
respondeu Oliver apontando Hanz.
Hamsher fez um sinal enérgico para que Bakou e os
outros se afastassem. Arabell fazia o mesmo, mas Marbur,
que viera atrás de Hamsher, a reteve.
— Quer me contar o que houve? — indagou Hamsher
a Oliver.
— Bakou o tem enervado o tempo todo — antecipouse Arabell.
— Sim, é um brutamontes imbecil! — rugiu Oliver,
olhando na direção do russo que o observava
rancorosamente, à distância.
— E quanto ao computador? — quis saber Hamsher.
— Nada de grave. Pode ser reparado imediatamente —
informou Arabell.
— Você vai cooperar? — quis saber o superintendente,
fixando seu olhar nos olhos do americano.
— Sim, vou, mas tenho algumas condições — exigiu
ele, firmemente, sustentando o olhar.
Hamsher e Marbur se entreolharam com surpresa.
— Você não está em condições de fazer exigências.
Está em nossas mãos — lembrou Marbur.
— Talvez, mas vocês precisam de mim. Enganaramme durante algum tempo. As antenas para a conexão com os
satélites, o transmissor, a pressa, as pílulas estimulantes para
que dormíssemos pouco, uma etiqueta colada com a data de
embarque de uma das caixas, algumas perguntas
descuidadas ao cozinheiro e aos técnicos, tudo isso acabou
confirmando minhas suspeitas. Sei que dia é hoje. Ainda
estou na memória de Female e posso acioná-lo. É o que
vocês pretendem que eu faça, não? Só que temos pouco
tempo, antes que eu desapareça da memória daquele
computador. Como veem, agora estou em condições de
fazer minhas exigências.
— Podemos forçá-lo — ameaçou Marbur.
— Eu não tenho escolha. Se fizerem isso,
demonstrarão apenas que estive certo o tempo todo e que, de
maneira alguma, sairia daqui com vida. Temo pelo meu
destino e quero apenas me resguardar.
Hamsher e Marbur voltaram a trocar olhares marcados
pela indecisão. Ordens diretas da KGB exigiam o sucesso
daquele projeto. Um agente russo estava a serviço dos
americanos, minando a tarefa armamentista dos cientistas
russos e precisava ser descoberto rapidamente. Novas armas
haviam sido projetadas e em breve os protótipos estariam
sendo montados. Não podiam correr o risco de tê-las
reveladas aos americanos, já que o caráter estratégico delas
fora comentado pela cúpula do partido. O momento era
decisivo. O tempo era importante. Não havia como efetuar
consultas. A decisão deveria ser pessoal e imediata.
— Quais são as condições? — indagou Hamsher,
rompendo um silêncio que pusera tenso o americano.
— Quero garantias de que sairei daqui com vida.
— Quais?
— Ela — afirmou Oliver, apontando Arabell. — Quero
que a soltem imediatamente e que a levem para o lado
ocidental da cidade. Há um telefone junto à porta de aço.
Quando ele tocar e Arabell me confirmar que está em
segurança, iniciarei a programação. Amanhã, quando tudo
terminar, serei solto e irei ao encontro dela. Se eu não
aparecer, Arabell procurará a embaixada americana e dará
detalhes sobre o que houve aqui. E quero, também,
cinquenta mil dólares e uma nova identidade para mim e
Arabell. Isso não será difícil para vocês, creio. Adianto que,
tão logo eu estiver livre, procurarei meios de me garantir
contra qualquer represália. Escreverei um documento e
mandarei cópias a alguns amigos para que façam chegar ao
governo americano, caso algo me aconteça ou a Arabell. E
então, acham que estou pedindo demais?
Hamsher meditou por instantes, depois se voltou para
Marbur.
— Providencie para que a garota seja levada
imediatamente a Berlim Ocidental. Consiga a documentação
e os cinquenta mil.
— Há mais uma condição — disse Oliver.
Hamsher voltou-se para ele com uma expressão
apreensiva.
— Quero-o fora daqui — disse Oliver, apontando
Hanz. — E Bakou também.
— Será feito. Creio que não precisaremos, portanto,
explicar-lhe o que desejamos que faça.
— Sim, eu sei. Querem a localização de um agente
americano infiltrado, não?
— Isso mesmo, mas gostaria de saber como poderá
chegar ao agente que queremos se deve haver outros, em
outros setores — lembrou Hamsher, providencialmente.
— Penso que devo procurar a pessoa que tem recebido
com maior frequência remessas de pagamento. Mais
precisamente, aquele cujas ordens de pagamento vinham
assinadas pela Superintendência do Material Bélico —
sorriu Oliver.
— Perfeito! — exclamou Hamsher.
— Conseguirão isso, desde que possamos superar certa
barreira — disse Oliver, apreensivo. — Posso entrar em
contato com Female. Posso quebrar seu sistema de
segurança, mas, para operá-lo, preciso da chave que o libere
para mim, bloqueando-o ao meu substituto. Só assim
poderei fazê-lo sem que haja nenhuma interrupção. Vocês
sabiam desse detalhe, não?
Marbur sorriu e retirou um pedaço de papel do bolso
interno de seu sobretudo, estendendo-o ao americano.
— Posso saber como o conseguiram? — indagou
Oliver.
— Nós sempre conseguimos — sorriu Hamsher. —
Sua garota estará a salvo em meia hora. Por que não
descansa um pouco enquanto isso? Vai ter uma longa noite
pela frente.
Oliver se afastou deles, levando Arabell pelo braço. A
garota o olhava maravilhada.
— Vá com eles, Arabell. Se tudo der certo, amanhã
estaremos juntos. Você terá a oportunidade que esperava.
Estaremos livres de Bakou. Poderemos pensar com calma a
nosso respeito.
— Oliver! — murmurou ela, incrédula, abraçando-o e
roçando timidamente seus lábios nos dele.
— Só uma coisa mais, querida. É importante que a
faça. Quando falar comigo, se estiver realmente em
segurança, sem nada que a ameace, comece a conversa
dizendo estou bem, Oliver. Se algo saiu errado e eles a
mantém prisioneira de alguma forma, comece dizendo a
mesma frase, mas invertendo apenas. Diga Oliver, estou
bem. Compreendeu.
— Sim, Oliver...
— Repita, então. É importante para nós. Só assim
poderei avaliar o grau de sinceridade deles e ter esperanças
quanto a nós — pediu ele, insistente.
— Certo, Oliver. Se eu estiver bem, direi: estou bem,
Oliver. Caso contrário, digo: Oliver, estou bem.
— Ótimo, querida! Ótimo! Agora vá. Se tudo acabar
bem, estaremos juntos amanhã. Conhece bem Berlim
Ocidental?
— Não...
— Ordene que a deixem diante da Embaixada
Americana. Depois, a partir dali, procure o hotel mais
próximo, entendido?
Ela o olhou demoradamente, confirmando com
delicados movimentos de cabeça. Havia lágrimas em seus
olhos claros. Inesperadamente ela o beijo sofregamente,
depois correu na direção das portas de aço. Marbur a seguiu.
Oliver caminhou lentamente na mesma direção, olhos fixos
nas portas que se fechavam após darem passagem à garota e
Marbur. Bakou ainda estava no local e se adiantou,
ameaçadoramente. Oliver sentou-se sob o telefone e
aguardou. Bakou estacou surpreso. Hamsher fez-lhe um
gesto enérgico para que fosse embora. O russo demonstrou
surpresa e indignação, mas obedeceu, saindo apressada e
nervosamente.
Oliver ficou ali, olhos fixos na sala do computador
onde uniformizados trabalhavam febrilmente para deixá-lo
de novo em condições. Hanz conversou alguns instantes
com Hamsher, depois saiu do armazém, acompanhado de
Kurt. Quase uma hora depois o telefone tocou. Hamsher,
próximo dele, atendeu, enquanto Oliver o encarava ansioso.
O alemão estendeu o fone para o americano.
— Sou eu, Oliver — o americano disse, com
ansiedade.
— Estou bem, Oliver — falou Arabell, numa alegria
incontida.
Um sorriso largo desenhou-se no rosto de Oliver Clark.
A CONEXÃO
Durante o resto da noite Oliver trabalhou no
computador. Agiu como um autômato, num trabalho
alucinado e suicida, como se ele próprio estivesse
programado para fazer o que fazia, ingerindo mais algumas
pílulas estimulantes durante a madrugada e completando a
programação pouco antes do meio-dia. Estava pálido e
trêmulo. Profundas olheiras marcavam seus olhos. Sua pele
ganhara uma aparência doentia, reforçada pelos olhos
injetados. Hamsher e Marbur haviam se retirado durante a
madrugada, mas retornaram pela manhã, quando um sol
pálido lutava inutilmente para vencer as nuvens escuras e
baixas que se adensavam, indicando uma nevasca iminente.
Permaneceram na sala de vidro, mantida numa temperatura
adequada o tempo todo, observando o trabalho febril do
americano.
Oliver trabalhara ininterruptamente. Não tocara no
hambúrguer posto a seu lado. Ignorara o desjejum que
alguém lhe trouxera ao alvorecer. Concentrara-se
inteiramente em seu trabalho, demonstrando habilidade e
memória prodigiosas, pois não se valia de nenhuma
anotação. Tudo estava em seu cérebro e era transposto ao
computador de uma forma que impressionara Marbur,
Hamsher e os outros, jogando dúvidas nas expressões de
seus rostos. Alguns comentavam que aquele trabalho era
impossível demais para ser eficaz. Jamais algo com o que se
pretendia poderia ser feito, embasado unicamente na
memória de um homem. Oliver seria um gênio, um homem
programado como um computador ou apenas procurava
ganhar tempo desnecessariamente, pois se estivesse tentado
enganar a KGB seu destino seria trágico.
Quando os homens chegaram com a comida do
almoço, estacionando o furgão dentro do depósito e
começando a retirar as enormes panelas, Oliver deu por
terminado o trabalho que se propusera realizar. Imobilizouse, debruçando-se no teclado, como se adormecesse.
Hamsher e Marbur trocaram olhares ansiosos. O silêncio e a
imobilidade de Oliver significavam que o trabalho de
programação estava pronto. Restava acionar a conexão e
verificar até que ponto tudo aquilo fora válido. Isso gerou
um clima de expectativa que manteve os dois homens
imóveis, olhos fixos em Oliver. Este, afinal, ergueu-se e
cambaleou, apoiando-se à cadeira que girou, quase o
derrubando. Marbur e Hamsher fizeram menção de ir em
seu socorro. Ele fez um gesto de mão, dispensando-os.
— Estou bem... — afirmou, deixando a sala e indo até
um dos banheiros.
Quando saiu, caminhou até onde estava sendo servida a
comida. Os uniformizados abriram caminho. Oliver teve sua
bandeja repleta. Sentou-se ali perto e comeu, enquanto
Hamsher e Marbur permaneciam na sala, entre ansiosos e
preocupados.
— Tudo isso pode ter sido uma farsa — disse
Hamsher, com um suspiro indefinido.
— Bakou está na escuta, pronto para checar as
informações. Saberemos numa questão de minutos. Todos
os postos de informações da Europa, Ásia e África estão a
postos. Não sabemos quais os caminhos desse sistema de
informação, mas estaremos preparados para rastreá-lo —
disse Marbur.
Oliver, afinal, terminou de comer. Parecia satisfeito,
apesar de fisicamente péssimo. Ingeriu mais duas daquelas
pílulas estimulantes, depois foi até a sala do computador.
— Creio que estamos prontos para o que desejam —
disse, sentando-se diante do computador.
Retirou um papel do bolso. Era a chave que Marbur lhe
entregara na noite anterior. O suor começou a escorrer em
seu rosto, realçando seu aspecto doentio. Acionou algumas
chaves no painel, tentando a conexão com os satélites. Não
obteve resposta na primeira tentativa. Marbur e Hamsher se
mexeram, inquietos. Oliver aguardou alguns instantes,
depois voltou a acionar as chaves, aguardando. O silêncio
era quebrado apenas pelo leve zumbido do aparelho. Marbur
e Hamsher mal respiravam. Oliver continuava transpirando.
Entrelaçou as mãos atrás da nuca e reclinou-se na cadeira,
olhando sempre o visor. O leve zumbido se transformou
num martelar ritmado. O visor forneceu a informação. A
conexão esta pronta. Oliver estremeceu. Os dois homens
atrás dele também começaram a suar, apesar da temperatura
ambiente não ter sido alterada. Por momentos Oliver se
manteve imóvel. Depois olhou o papel que pusera no
suporte ao lado e começou a digitar.
— Gostaria que Hanz estivesse aqui — murmurou
Hamsher.
— Estou certo que Oliver o fará — assegurou Marbur.
— Apenas para sabermos o que ele está fazendo a cada
minuto — explicou o outro.
A mensagem fora iniciada. Tudo em seguida se
resumiu em sequências de movimentos de mão de Oliver,
seguidas de intervalos de imobilidade, quando, então,
cravava seus olhos no visor. Oliver parecia satisfeito com o
andamento do projeto. O computador funcionava a contento.
A conexão com Female fora efetivada.
O momento crucial parecia se aproximar. Oliver
hesitou por instantes, depois iniciou um comando de
transferência de numerário. Dois milhões de dólares foram
movimentados para serem creditados na conta do espião
americano a serviço na Rússia. Female efetuou a conexão
automática com o National Bank, ordenando a transferência.
O computador do National confirmou a existência de fundos
e transferiu a importância para o computador do Richemond
Bank, na Suíça, que, logo após, confirmou o recebimento do
numerário para crédito numa conta numerada. A etapa
inicial havia sido cumprida. Oliver se voltou para os dois
homens atrás de si.
— Acabo de transferir certa importância para a conta
do espião...
— Está tudo escrito nisso aí? — indagou Hamsher,
desconfiado e confuso, observando a sequencia sem nexo de
caracteres acumulados no visor.
— Sim, está tudo em código. Estou habituado a ele e a
interpretação é imediata. Female só trabalha assim. Vou,
agora, acionar o computador do Richemond Bank para
solicitar uma consulta e indagar-lhe sobre a rotina de aviso
ao destinatário. Como se trata de uma consulta meramente
bancária, agora, vocês verão a resposta numa linguagem
acessível — informou Oliver.
— Uma linguagem que possamos entender —
resmungou Hamsher, como se aquilo fosse realmente uma
boa ideia.
Oliver concentrou-se no teclado. Datilografou alguns
caracteres e aguardou. Após alguns instantes de silêncio,
quando a expectativa de Hamsher e Marbur podia ser
sentida e palpada, as teclas do aparelho começaram a se
mover e a mensagem foi surgindo no visor:
— RPT CONSULTA 0796 — ROTINA DE
COMUNICAÇÃO — MSG HOTEL WIEN BUDAORSI
UT 88 BUDAPESTE A/C ONUSZ ZOLTAN... CONEXÃO
HOTEL LENINGRASKAYA MOSCOU URSS A/C
PETRO BORISTPOV... CONTATO DIÁRIO RUSSPY
SORBONY... HAVERÁ ALTERAÇÃO???
Oliver digitou em resposta:
— Ok, checando rotina!!!
Oliver apontou para o visor.
— Era isso que desejavam?
— Sim.
O americano comprimiu alguns botões. Um pedaço de
papel se projetou por uma fenda. Oliver destacou-o e
estendeu-o a Hamsher.
— Está tudo aí. Seu espião fará contato com o
receptador provavelmente amanhã cedo, na Praça do
Kremlin, diante da catedral. Iniciando a perseguição pelo
Hotel Leningraskaya, será fácil apanhá-lo. Fiz minha parte.
Espero que cumpram a promessa.
Marbur retornara do telefone e entregava de volta a
Hamsher a cópia da mensagem. Hamsher dobrou-a e
guardou-a no bolso.
— Marbur providenciará tudo para você — disse,
retirando-se da sala de vidro e do armazém.
Oliver ficou diante de Marbur, que o olhou
demoradamente. Havia uma espécie de piedade no rosto do
alemão e, ao mesmo tempo, certo asco despertado pela visão
de um traidor.
— Antes de mais nada, creio que você precisa de um
pouco de descanso, Oliver, enquanto checamos suas
informações. Saiu-se bem, muito bem mesmo. Nós lhe
seremos gratos. Gostaria de levá-lo, agora, a um dos
melhores hotéis de Berlim Oriental. Você descansará até a
noite, enquanto providenciamos o dinheiro e as identidades.
Depois o levaremos a Berlim Ocidental, onde poderá se
encontrar com a sua querida Arabell. Tudo será
providenciado para que nada os perturbe. Cortesia do
Kremlin — finalizou o aliado russo, esboçando um sorriso
enigmático.
O PAGAMENTO
O carro entrou na Alexander Platz e estacionou.
Marbur desceu e foi abrir a porta. Oliver deixou o veículo
lentamente, demonstrando problemas com sua coordenação
motora. Os reflexos do exaustivo trabalho se manifestavam
agora. O estimulante o mantivera acordado, mas não evitara
o desgaste físico e mental diante da pressão e da tensão.
Marbur o ajudou, segurando-o pelo braço e amparando-o até
e entrada de Stadt Berlim Hotel. Atravessaram o saguão,
indo para o elevador. Marbur disse o número do andar ao
ascensorista. Oliver se apoiava à parede, lutando contra um
cansaço extremo.
Saíram, afinal, para um amplo corredor acarpetado de
bege, que passava diante de portas envernizadas, com
relevos artísticos. Marbur sabia aonde conduzi-lo. Levou-o
até um dos últimos quartos do corredor, tomando a direita
após o elevador. A porta do aposento não estava trancada.
Marbur entreabriu-a. Tudo estava às escuras lá dentro.
Oliver ia entrar, mas o alemão o reteve. Ficaram ali, em
silêncio, parados. O som de vozes murmurantes, gemidos
lascivos e risos lúbricos se tornaram audíveis para Oliver.
Seu rosto crispou-se. Seu corpo todo se enrijeceu. Seus
olhos abriram desmesuradamente. Um tremor violento
abalou-o em seguida. As unhas das mãos cravaram-se nas
palmas. Marbur acendeu as luzes. Oliver gritou, após
observar a cena.
Nua sob o corpo de Bakou, Arabell ria de prazer,
zombando da surpresa e do sofrimento de Oliver, que
parecia ter perdido a razão.
— Então, americano idiota? Julgou que eu lhe
entregaria minha esposa apenas porque você se mostrou
gentil com ela? Apresento-lhe Geórgia Turkmov, minha
esposa e agente russa de primeira linha — gargalhou Bakou,
girando o corpo e sentando-se, nu e obsceno, na borda do
leito.
Oliver virou o rosto. Marbur agarrou-o pelo pescoço,
forçando-o a olhar a cena. Nua, com os cabelos dourados
soltos sobre os ombros delineados, exibindo seios rijos e
provocantes, Arabell enroscava-se ao corpo nu de Bakou.
Em seu olhar celeste havia um ódio e um desprezo absolutos
pelo sofrimento do americano.
— Cumprimos o prometido, Oliver. Você se encontrou
com sua Arabell e ela está bem, muito bem, como você
mesmo pode ver. Talvez tenhamos alguns problemas com o
resto das promessas feitas — zombou Marbur.
Bakou se ergueu, aproximando-se de Oliver e
encarando as faces macilentas do americano.
— O que vamos fazer com ele? — indagou.
— Vamos aguardar e ver o que valem aquelas
informações. Caso sejam úteis, devolva-lhe os pertences e
solte-o em alguma parte por aí. Já não precisamos dele —
ordenou Marbur.
— Vamos ser condescendentes. No estado em que ele
se encontra, um internamento numa clínica de repouso da
Suíça lhe fará bem — riu Bakou.
Oliver não os ouvia. Seu corpo fraquejou e ele tombou
sobre o felpudo tapete ao aposento. Acordou algumas horas
mais tarde. Marbur e Bakou estavam, ao lado da cama,
fitando-o com desprezo.
Oliver encarou um e outro, depois começou a rir
histericamente, como o bêbado que ri da última piada da
noite, como o idiota que não entendeu a informação, como o
adolescente que não compreendeu a tirada picante. Uma
expressão imbecil estampou-se em seu rosto. Além dela,
porém, havia algo de zombeteiro, de forçado, de satisfeito
em seu riso, que Marbur e Bakou jamais entenderiam.
— É inofensivo, agora. Pobre diabo! As informações
foram checadas. As pessoas mencionadas existem. O
esquema foi montado. Oliver nos serviu como esperávamos.
Por que não matá-lo simplesmente? — indagou Bakou.
— Este homem já está morto — disse Marbur,
esbofeteando o rosto de Oliver, que continuava gargalhando,
derramando lágrimas de tanto rir de uma piada que apenas
ele compreendia.
— Eu o levarei esta noite para o outro lado do muro.
Vamos lhe dar a identidade nova e algum dinheiro. Talvez a
ideia de levá-lo para a Suíça seja boa. Quando se sentir bem
e compreender o que fez, Oliver Clark será um homem sem
pátria, sem paz para o resto da vida. Eu, particularmente,
vou me sentir muito satisfeito sabendo disso — falou o
russo, com desprezo.
— Sim, faça isso — recomendou Marbur, caminhando
para aporta.
— Espero que consiga aquela transferência para
Geórgia, Marbur. Ela está se desgastando no trabalho idiota
que faz naquela seção insignificante. Quero-a na próxima
missão na Polônia.
— Seu pedido não é convencional, mas verei o que se
pode fazer. Afinal, o que fizemos deve ter algum
reconhecimento, não? — sorriu Marbur, tranquilizando-o
com alguns tapinhas nas costas.
PARTE 3
TRIANON
PRELIMINARES
Às sete horas da manhã de um dia frio, em
Washington, um jato da USAF pousou na Base de Garrard,
a vinte minutos do Pentágono. Um carro avançou pela pista,
parando ao lado do avião, quase sob a ponta da asa. A
escada foi conectada e um homem magro e baixo, vestindo
um sobretudo de lã pura com gola de pele de lontra desceu
apressadamente, entrando no veiculo, que permanecera com
o motor ligado. O Lincoln cinza-metálico se afastou
rapidamente, deixando para trás a fumaça condensada do
escapamento.
Sentado no banco traseiro, o homem magro afundou a
cabeça na gola de pele de seu sobretudo e fechou os olhos,
como se dormisse. O motorista olhou-o pelo retrovisor,
depois voltou a se concentrar nas ruas escorregadias após a
nevasca da madrugada. Caminhões limpa-neve avançavam
em sentido contrário, dificultando um pouco o tráfego que,
àquela hora, começava a se intensificar.
Após meia hora de viagem, o motorista enfrentou um
rígido esquema de segurança, até deixar seu silencioso
passageiro diante de uma das portas do enorme prédio, por
onde ele entrou sem dizer uma palavra.
Lá dentro, moveu-se com familiaridade, chegando até
uma sala vazia. Aboletou-se numa das poltronas e
imobilizou-se, da mesma maneira como já o fizera no carro.
Às sete e quarenta e cinco, a secretária chegou. Reconheceu
Trianon, mas nada lhe disse. Conhecia, em parte, seu estilo.
O agente especial, por seu turno, apenas abriu levemente os
olhos e sorriu vagamente, voltando àquela expressão de
sono anterior. A secretária moveu-se pela sala, preparando o
inicio do expediente. Às sete e cinquenta e cinco trouxe
café. Trianon agradeceu com um de seus vagos sorrisos e
aceitou. Tomou lentamente o café fumegante, depois se
ergueu e foi atirar o copo plástico no cesto de lixo.
Caminhou até a janela, onde ficou até às oito, quando o
General Foster chegou.
O militar entrou pela porta de seu escritório e foi
ocupar a poltrona do outro lado de uma moderna
escrivaninha. Trianon o seguiu, sentando-se numa das
poltronas diante da mesa. Foster abriu uma gaveta e retirou
uma pasta. Estendeu-a ao agente, que começou a ler. Era um
dossiê completo sobre Oliver Clark, desde seu nascimento
até seu último dia em serviço. Relatava o esquema de
trabalho de Oliver, sua importância e as medidas de
segurança que o cercavam. Traçava, também, as diretrizes a
serem seguidas no caso de seu desaparecimento. Trianon
levou aproximadamente uma hora para se inteirar do
conteúdo da pasta. Quando terminou, fechou-a e devolveu-a
a Foster, que a retornou à gaveta de onde a tirara uma hora
antes.
— Temos três hipóteses a considerar — disse Foster.
— Acidente, traição ou sequestro.
Trianon concordou com um movimento seco de
cabeça. Foster estendeu-lhe, então, uma pequena carteira de
couro, contendo documentos e um passe especial que o
permitia penetrar em qualquer setor reservado. Trianon
abriu a carteira e retirou a identidade. Era, agora, Maxwell
Max, um americano de Utah, com trinta e cinco anos de
vida e um cargo sigiloso no Departamento da Defesa. Sorriu
levemente, cumprimentou o general com um movimento de
cabeça e se retirou.
Quando passou pela sala da secretária, ela estava com
duas colegas, que observaram curiosamente a passagem do
agente especial.
— Esse é Trianon? — uma delas indagou, entre
surpresa e decepcionada, logo após a saída dele.
— Sim, este é Trianon — confirmou a secretária do
general. — Imagem que...
***
George Staford já se encontrava a postos na sala de
Female, preparando-se para outro dia de trabalho. Naquela
manhã, quando se despedira da mulher, não resistira à
pressão e lhe confessara que estava na iminência de receber
uma gorda comissão como operador efetivo do computador.
Sua esposa vivia reclamando da escola que os filhos
frequentavam, argumentando que a Hyde Park School
estava mais bem aparelhada para desenvolver as
potencialidades de seus alunos e isso deveria ser levado em
conta, já que o pequeno Jimmy se mostrava muito bom no
halterofilismo. George afirmara que o menino era apenas
um pouco gordo e que não possuía toda a força que julgava
ter. Discutiram durante o desjejum, quando ela aproveitou
para perturbá-lo com o conserto do telhado, que precisava
ser feito. George tentara argumentar que o problema era
dinheiro, mas ela contra-atacara, dizendo que uma de suas
amigas soubera, através do marido, que George poderia
receber uma promoção em breve. Ele procurara convencê-la
de que havia certa possibilidade, mas que não era certo
ainda e que seria imprudente confiar nisso. Ela chorara,
então, diante das crianças, reclamando que George não
confiava nela e que nada lhe dissera a respeito antes. Com
voz branda, controlando-se, ele, então, confirmara que a
promoção estava noventa por cento assegurada. Ela rira e o
abraçara, dizendo-se orgulhosa dele. As crianças festejaram
ao redor dos dois, antes que o ônibus buzinasse lá fora,
chamando-as para a escola.
A sós com a esposa, então, George aproveitara para
dizer que, em função da promoção e de sua permanência
como operador efetivo do computador, teria de, durante a
próxima semana, participar de uma sessão de treinamento
noturno. Ela o beijara e dissera que não se importava, já que
o objetivo era o conforto e o bem-estar da família. George
nada revelara, portanto, de certo convite feito por um de
seus amigos solteiros, que realizaria em seu apartamento
uma festinha toda especial para comemorar, com as garotas
do Saint James Club, seu vigésimo noivado com uma
coelhinha toda especial de quem se separava semanalmente
para reatar com a mesma periodicidade.
De certa forma, a perspectiva de poder ir à festa fora
suficiente para acalmar todo o nervosismo pela cena
matutina da esposa, pois dirigira com calma no trânsito
lento, chegando ao trabalho em cima da hora. Após passar
pela segurança, fora para sua sala especial, sentando-se
diante de Female e olhando o aparelho com um carinho todo
especial.
Realizou a rotina diária de checagem, depois se ergueu
e foi buscar um café. Deveria permanecer ali num
expediente de seis horas, com intervalos de duas para o
almoço, apenas aguardando e checando a intervalos o
perfeito funcionamento do complicado sistema eletrônico.
Caso surgisse uma mensagem, deveria transmiti-la
imediatamente. Se nada surgisse, aporia o carimbo de Nihil
na folha do relatório diário e o encaminharia em três vias ao
secretário. Esporadicamente, Female era também utilizado
para consultas ou outros trabalhos específicos, mas, desde
que substituíra Oliver, George não tivera oportunidade de
executar nada nesse sentido.
Passava das nove, quando um dos oficiais da segurança
interna entrou na sala, acompanhado de um homem baixo e
ligeiramente calvo no alto da cabeça, com um pesado
sobretudo de lã com gola de pele.
— George, este é Maxwell Max, do serviço Especial
do Departamento da Defesa — disse o oficial, retirando-se
em seguida.
— Tudo bem — disse George, quando Trianon lhe
estendeu a identificação. — Quer saber alguma coisa sobre
nossa maravilhosa eletrônica?
— Quero saber sobre Oliver Clark, inicialmente —
falou Trianon.
— Entendi. Investigação, não?
— Você o conhecia bem? — retrucou Trianon, que
mostrava desejar um tom puramente profissional àquela
conversa.
— Oliver era um bom sujeito.
— Era? — cortou-o Trianon, incisivo.
— Dizem que sumiu... — embaraçou-se George.
— Continue! — pediu Trianon, olhando-o nos olhos.
— Oliver é um bom sujeito — reiniciou George,
corrigindo-se. — Trabalha direito, conhece computadores e
fundo, tem uma memória prodigiosa, pratica ioga, gosta de
garotas, mas é discreto quanto a isso, selecionando muito
bem suas companhias. Detesta vulgaridades. É requintado,
conhece vinhos e bebidas em geral, queijos e roupas. Se
fosse rico, um milionário, quero dizer, seria uma presença
destacada e constante nas colunas sociais pelo seu bom
gosto. Está sempre querendo aprender mais, principalmente
sobre eletr6onica, cibernética e transistores. Não faz curso
algum, mas tem frequentado ultimamente a Universidade.
Talvez seja por causa de Norah...
— Quem é Norah?
— Uma garota que trabalha com o computador da
Universidade. É muito bonita e inteligente. O tipo exato de
mulher para atrair Oliver. Acho que é tudo que sei sobre ele.
Não vejo em que mais poderia ajudá-lo...
Trianon agradeceu com movimentos de cabeça, depois
se voltou na direção do imenso computador. Esboçou um
sorriso intimidado. George percebeu o interesse dele pelo
aparelho e adotou uma pose orgulhosa. Trianon se retirou.
Lá fora um carro comum o esperava. Oliver sentou-se
ao volante e ligou o limpador do para-brisa para retirar a
película congelada que se grudara externamente. Quando o
motor funcionou, o sistema de aquecimento desembaçou o
interior. Tomou a avenida, na direção da Universidade.
***
Norah Cooper recebeu com indiferença aquele homem
que chegou acompanhado do Prof. Hilton, chefe do
Departamento de Eletrônica da Universidade. Os dois foram
apresentados e deixados a sós em seguida. Trianon afastouse por instantes para examinar o computador diante dele.
Era menor, bem menor que Female e, seguramente, não
deveria conter nenhum esquema especial de segurança, já
que suas informações deveriam ser puramente acadêmicas.
— Gostaria de saber alguma coisa sobre Oliver Clark
— ele disse.
— Sobre Oliver? — surpreendeu-se ela e a expressão
se casou bem com seu rosto moreno, de linhas suaves, olhos
amendoados e nariz pequeno e afilado.
— Ele vinha sempre aqui, não?
— Sim, Oliver nos ajudou na programação do
computador, depois do acidente...
— Que acidente? — ele quis saber.
— Bem, houve um curto-circuito com principio de
incêndio que afetou o banco de memória e toda a
programação...
— E quando foi isso?
— Há umas quatro ou cinco semanas, não me lembro
ao certo...
— Descobriram as causas?
— Não, não chegaram a uma conclusão definitiva na
perícia que realizaram. O motivo foi um curto-circuito. Não
é normal, mas é possível.
— Oliver já frequentava o computador quando isso
aconteceu?
— Não, creio que não... Espere um pouco! — pediu
ela, com uma expressão pensativa que a tornava
particularmente interessante. — Engano-me. Fazia mais ou
menos uma semana que ele vinha aqui diariamente. Estava
particularmente interessado em se especializar em
computadores. Era um técnico nisso. Quando aconteceu o
acidente, ele se comprometeu a refazer toda a programação
sem ônus para a Universidade, desde que permitissem que
ele utilizasse o computador para desenvolver uma tese em
que vinha trabalhando...
— Que tese era essa?
— Não sei. Oliver a mantinha em segredo e não o
recrimino por isso. Temos visto dezenas de casos em que
boas teses são apresentadas, ao mesmo tempo, por dois ou
mais alunos. Acho que compreende o fato, não? Alguém
tem alguma coisa especial e outro alguém fica sabendo e se
apropria...
— Sim, eu compreendo — cortou-a ele. — Alguém
acompanhou Oliver durante a programação do computador?
— Esporadicamente o chefe do departamento vinha
aqui. Eu também não me intrometia no trabalho dele.
Reconhecíamos a sua boa vontade. Oliver vinha aqui após
seu serviço. Ele trabalha para o governo. Todo o seu tempo
disponível era importante para nós. Apresentaram-lhe a
programação básica e ele a desenvolveu. Tudo está
funcionando perfeitamente. Além do esperado, devo
reconhecer.
— E como homem, como era ele? Alguma coisa entra
vocês?
O rosto da garota fechou-se, revelando claramente que
ela se ofendera com a indagação.
— Estou noiva, Sr. Max, e amo meu noivo. Quando a
Oliver, sempre esteve mais interessado no computador do
que em qualquer outra coisa — ela disse, revelando, agora,
no tom de voz, um despeito velado, uma ligeira ferida em
seu orgulho próprio.
— O que é surpreendente. Você é muito bonita! —
observou Trianon, retirando-se e deixando-a com uma
curiosa expressão no rosto, entre lisonjeada e ofendida.
***
Meia hora após seu encontro com Norah Cooper,
Trianon estava na Classic Tour, uma agência de viagens das
mais conceituadas do país, com escritórios nas principais
capitais do mundo e filiais em todos os estados americanos.
Foi atendido por Fred Walkmann, o agente de viagens de
Oliver Clark. Ali se inteirou da programação de férias de
Oliver e de todos os detalhes. Não parecia satisfeito, quando
se retirou, algum tempo depois.
Ficou algum tempo no carro, consultando um guia da
cidade. Depois dirigiu calmamente pelas ruas de
Washington. Nuvens escuras pairavam no céu, anunciando
outra nevasca. Algum tempo depois, estacionava o carro
diante de um luxuoso prédio na Praça Jefferson. Tomou o
elevador e foi até a cobertura, onde estavam as instalações
da Academia Pandha de Ioga. Pessoas lotavam a sala de
espera, trocando conselhos sobre dietas macrobióticas ou
mergulhadas em intrincadas filosofias de domínio físico e
mental. Trianon se dirigiu à secretária. Queria falar com
Pandha, o proprietário. Ao exibir sua identificação, tudo lhe
foi facilitado. Ele foi levado a um escritório, onde um
homem magro, com um turbante negro e uma túnica da
mesma cor o recebeu.
— Gostaria de falar sobre Oliver Clark, um de seus
alunos — disse o agente especial.
— Algo em particular sobre ele? — indagou o outro,
com certa preocupação.
— Apenas rotina — observou Trianon, secamente.
— Bem, Oliver é um dos meus melhores alunos. Seus
progressos no controle da mente são surpreendentes, a
começar por sua memória. Sua resistência à dor atingiu o
ponto máximo. É fantástico! Penso que ele trabalha em
algum serviço onde a tensão seja extrema. Eu o submeti a
exercícios de resistência à pressão e à dor. Ele se
condicionou muito bem.
Havia uma expressão patética no rosto de Trianon, mas
nenhuma surpresa.
— Quer ser mais claro, por favor, a respeito desse
treinamento!
O homem diante dele apanhou uma agulha e, num
movimento rápido e inesperado, picou a mão de Trianon,
que se retraiu com rapidez, crispando-se. A outra mão já se
encontrava apoiada ao coldre da arma sob a axila, pronta
para sacá-la, quando Pandha começou a rir.
— Estenda novamente a mão, senhor! — pediu.
Trianon o observou atentamente, depois o atendeu.
Pandha segurou-a entre seus dedos longos e finos, depois
pousou a agulha sob a unha do polegar do agente. Fez
menção de espetá-la ali. Trianon livrou-se da ameaça com
um repelão. O outro riu novamente.
— Isto seria apenas um aperitivo para Oliver. A dor
não existe para ele, basta ele desejar. Ela é, então, relegada a
um segundo plano em sua mente, graças à concentração e...
— Quer dizer que ele poderia ser torturado sem ceder?
— espantou-se Trianon.
— O exemplo é um tanto invulgar, mas dá a exata
noção do resultado do treinamento. Sim, Oliver pode ser
torturado. E tem mais. Ele sempre quis ir mais longe.
Resistência psicológica, entende? Algo difícil. Mesmo as
drogas mais poderosas... — interrompeu-se Pandha,
encarando Trianon com uma expressão maravilhosa no
rosto, como se compreendesse, afinal, algum mistério.
— Algo errado? — indagou Trianon.
— Qual é a natureza do trabalho de Oliver, senhor? —
indagou o outro.
— É sigilo, sinto muito não responder.
O iogue riu, balançando a cabeça num movimento
afirmativo.
— Seja o que for, Oliver deve ser alguém importante.
Se correr o risco de ser torturado, só dirá ou fará o que
quiser.
— Justamente porque tivesse se preparado para ela
espontaneamente — disse Trianon, retirando-se.
O agente tomou o carro e retornou ao Pentágono. Foi
até a sala de comunicações e pediu que ligassem para
embaixada americana na Alemanha Ocidental, o que foi
feito rapidamente.
— Jonas Krill, sou eu, Trianon. Estou em missão.
Quero que verifique tudo que possa ter ocorrido de anormal
por aí, tanto no seu setor como no setor oriental.
— Como o quê, por exemplo, Trianon?
— Movimentação de agentes, principalmente russos ou
aliados deles. Veja o que surgiu de novo, o que aconteceu de
diferente, o que ficou sem resposta para seu pessoal. Se tiver
alguma coisa para mim nesse sentido, deixe com o pessoal
aqui em Washington. Posso confiar em você?
— Como sempre, amigão — respondeu o outro.
Após desligar, Trianon deixou com o operador o
telefone do Welington Hotel, onde iria se hospedar. Se
surgisse algo de urgente ou de máxima importância, deveria
entrar em contato com o General Foster, que se encarregaria
de localizá-lo. Agradeceu e se retirou.
INVESTIGAÇÃO
Após o almoço, Trianon foi até o escritório de Cyrus
Sarasse, encarregado do setor de arquivo e pesquisa, duas
tarefas ligadas, já que a ele competia o arquivo das
mensagens e a ordem inicial de investigação de qualquer
item confidencial. Trabalhava diretamente ligado ao chefe
da OIR. Sally, a secretária, o atendeu. Cyrus havia saído.
— Quero ver o arquivo dos relatórios do STE — pediu
ele.
— Algum em particular?
— Tudo o que se referir à Seção Europeia nos últimos
quinze dias.
— É toda sua — disse ela, apontando a máquina leitora
de microfilmes, onde Trianon foi se sentar, quanto ela ia até
o arquivo e trazia algumas pequenas caixas quadradas,
contendo rolos de microfilmes.
O primeiro deles foi acoplado à máquina. Trianon
começou a verificar relatório por relatório. Foi apressando a
passagem do filme. Terminou o primeiro rolo. Acoplou o
outro imediatamente e continuou. Deteve-se por instantes no
quadro onde era mencionada a mensagem regulamentar das
férias de Oliver Clark. Continuou verificando. Não parecia
procurar algo em especial. A paciência em seu rosto era
reflexo de uma frieza interior. A testa vincada revelava,
porém, uma ligeira preocupação, facilmente interpretada
como enfado naquele seu rosto estranho e inexpressivo.
— Se me disser exatamente o que procura, talvez eu
possa ajudá-lo — disse Sally, que o estivera observando.
— Aconteceu algo de anormal por aqui ultimamente?
— Nada além de perturbação solar.
— Quando foi isso?
— Há alguns dias atrás. Tudo o que foi transmitido
naquele período está no terceiro rolo... Esse com a etiqueta
amarela — apontou ela.
Trianon apressou a passagem do filme que estava na
máquina, acoplando aquele indicado por Sally. Examinou
atentamente cada relatório. Um deles chamou-lhe a atenção,
afinal. Algo parecido com alegria estampou-se em seu rosto.
Acionou a copiadora, reproduzindo aquele relatório.
— Encontrou o que procurava? — indagou Sally,
solícita.
— Sim — respondeu ele, levantando os olhos para
observar a entrada de Cyrus Sarasse na sala.
Sally fez as apresentações. Trianon estendeu a cópia do
relatório para Cyrus.
— O que foi feito a respeito disso? — indagou.
Cyrus apanhou o relatório, piscando os olhos miúdos.
O cigarro ficou queimando entre seus dedos amarelados.
Quando terminou a leitura, ergueu os olhos para Trianon e
disse, pateticamente:
— Não me lembro de ter lido isto...
***
No Serviço de Transmissões e Escuta, Trianon
procurou por Angus Hyde, sendo informado que o operador
fazia o turno da manhã apenas. Indagou por Arthur
MacBeth, citado no relatório, mas este apenas estaria de
volta no primeiro turno da noite. Trianon pediu e obteve,
então, o endereço particular de Angus, indo encontrá-lo
fiscalizando o jardim de sua casa, num bairro tipicamente
residencial. Apresentou-se e indagou-lhe de imediato a
respeito da mensagem e do relatório. O embaraço e o medo
estamparam-se no rosto de Angus, numa curiosa máscara.
— Você é do Serviço Especial, não é? — indagou,
preocupado, embora tivesse visto a identificação de Trianon.
O agente confirmou com um aceno de cabeça.
— Procuro Oliver Clark. Meu objetivo é encontrá-lo. O
que quer dizer isto? — perguntou, estendendo-lhe a cópia
do relatório.
Angus o convidou para entrar. Sua esposa e as crianças
haviam saído para compras. Ofereceu uma bebida a
Trianon, que recusou com um gesto. O nervosismo era
crescente no operador.
— Aquele bastardo! — desabafou Angus, que
compreendia que nada poderia ser omitido naquelas
circunstâncias. — Eu ensinei a ele esse velho código. Ele
insistiu. Fizemos uma aposta alguns dias antes de sua
viagem. Ele dizia que conseguiria introduzi uma mensagem
em nosso sistema de transmissão e escuta, mas eu duvidei.
Não havia como fazer isso. Ele disse, então, que só
precisava de um código já desativado. Dei-lhe um, então. Eu
havia bebido um pouco e o desafio me irritou, de certa
forma. O idiota realmente fez o que prometera. Houve
turbulência, as mensagens ficaram truncadas. Nós as
repetimos, exceto essa, é claro. Não fora nossa
transmissão...
— Tem ideia de como ele conseguiu transmitir isso?
— Realmente eu não sei... Oliver era um diabo em
eletr6onica. Podia fazer qualquer coisa que quisesse
realmente, por mais absurda que fosse a ideia. Eu não devia
ter-lhe dado o código, apesar de desativado já — lamentou
Angus, terminando sua bebida e servindo-se de outra
imediatamente. — Houve alguma complicação? Isso vai
afetar minha carreira?
— Eu não sei — respondeu Trianon.
— Acha que essa mensagem tem alguma coisa a ver
com o desaparecimento de Oliver?
— Também soube disso? Como?
— As mensagens que temos transmitido...
Trianon ergueu-se sem lhe responder. Deu-lhe as
costas e saiu. Angus estava assustado.
***
Trianon retornou à Universidade, procurando por
Norah. Foi encontrá-la na sala do computador, operando-o.
Por algum tempo ficou atrás dela, observando seu trabalho,
até que ela se voltasse. Ele esboçou um sorriso, então.
— Mais alguma coisa, Sr. Max? — quis saber ela.
— Sim. Este computador pode fazer transmissões?
— Como assim?
— Digamos... Ele poderia transmitir uma mensagem
para a Europa?
— Isso é estranho, mas computadores podem fazer
uma porção de coisas, desde que programados. Nesse caso,
precisaria ainda estar acoplado a um transmissor...
— E está?
— Não.
— Oliver mencionou alguma coisa a esse respeito?
— Não, nada, mas sei que esteve na sala de
transmissão. Temos uma onde os alunos fazem estágio.
— Onde fica?
— Do outro lado dessa parede — apontou ela.
— Ele pode ter ligado o computador ao transmissor?
Teoricamente?
— Se o quisesse, mas não vejo porque o faria, sem nos
comunicar, sem pedir uma autorização.
— Este computador tem conexão com outros?
— Sim, com uma série de outros. O do senado, para
registro de novas leis e projetos. Com outras universidades,
com alguns bancos...
— Bancos? — cortou-a ele, interessado.
— Sim. Muitos alunos efetuam seus pagamentos por
crédito direto. Nós fazemos pagamentos da mesma forma...
— Estaria ligado ao National Bank?
— Não, o National Bank é um banco governamental
com caráter próprio...
— Isso pode ser verificado?
— Sim, pode — afirmou ela, voltando-se para o
teclado.
Datilografou durante algum tempo. Uma lista de
bancos que operavam diretamente com a Universidade,
tanto para créditos como para débitos, surgiu na folha de
resposta. O National não estava entre eles.
Trianon agradeceu e se retirou. Algum tempo depois
estacionava o veículo diante do Texas Bar, na Lincoln
Street. Entrou. Rapazes e garotas vestidas à moda cowboy
circulavam por entre as mesas. Uma índia vendia cigarros.
Um grupo musical, formado por uma rabeca, um
contrabaixo e uma guitarra, agitava-se no palco decorado
com motivos country.
O agente sentou-se a uma das mesas. Pediu suco de
tomate e ficou ouvindo música caipira durante o resto da
tarde, com uma expressão estranha no rosto magro.
***
Quando chegou ao hotel, no começo da noite,
encontrou um recado a sua espera na portaria. Após lê-lo,
voltou ao carro e rumou ao Clube dos Oficiais da Base de
Garrard, onde procurou o General Foster. Ele o conduziu a
uma sala reservada, ao lado do bar.
— Recebemos algumas informações de Jonas Krill.
Seus agentes em Berlim Oriental notaram certa
movimentação por lá. Souberam da presença de Bakou, um
dos nossos mais ilustres adversários na espionagem. Sua
presença significa que algo grande está em andamento por
lá, Além disso, anteontem, um Tupolev chegou ao
Aeroporto Schonefeld e uma preciosa carga de material
eletrônico foi levada para Berlim. Estão tentando localizar
para onde a levaram. Um grupo de pessoas chegou também
com a carga. Iminentes técnicos alemães, de repente,
sumiram da cidade. Acho que não é preciso dizer mais nada
a respeito o que está havendo, não? Eles pegaram Oliver.
Você deve ir para lá imediatamente.
— Amanhã — disse Trianon. — Há algumas coisas
que ainda não compreendi. É importante que eu termine
minhas investigações aqui primeiro.
— Pretendem usar Oliver, Trianon. Não sei o que
poderão fazer, se ele vai colaborar ou não...
— Saberemos em breve...
— Não dispomos de tempo. Seja lá o que for que
Oliver possa fazer por eles, só poderá ser feito amanhã.
Depois disso, o dispositivo de segurança do computador
apagará completamente os registros sobre a existência de
um operador autorizado chamado Oliver Clark. Depois
disso, será como se ele não tivesse existido para aquela
máquina.
— Seja lá o que for que vai acontecer, general, não
poderemos evitar. Já deve estar pronto. Pode estar
acontecendo agora. Descobrir o que pode ser feito é a única
maneira que temos para minimizar-lhe os efeitos. Eu o verei
amanhã, general.
De volta ao carro, Trianon não se dirigiu para o hotel.
Retornou ao Texas Bar, onde pediu uísque de milho do
Kentucky e ficou ouvindo o conjunto caipira.
A LOURA ESPETACULAR.
Na manhã seguinte, às sete horas, Trianon se
encontrava na sala de Female, aguardando a chegada de
George Staford, o operador. Quando este chegou, era visível
que sua noite não fora das melhores, já que profundas
olheiras mascaravam seu rosto e seus olhos ainda estavam
ligeiramente injetados. Ao ver Trianon, esboçou um sorriso
sem graça, como que justificando seu estado lastimável.
— Tenho mais algumas perguntas a fazer — disse
Trianon, friamente.
— Sim, claro. Dê-me tempo de checar o computador.
São só alguns minutos — pediu George, cumprindo a rotina
e depois indo apanhar um café. — O que deseja saber? —
indagou, quando retornou.
— Female pode ser acionado à distância?
— À distância? — surpreendeu-se George, não
entendendo a pergunta.
— Uma conexão, ou sei lá como possa ser chamado
isso, pode ser tentada à distância e fazer Female operar?
— Não, é impossível! — afirmou George e uma
expressão decepcionada estampou-se no rosto magro do
agente, que se moveu inquieto de um lado para outro. —
Não que seja incapaz disso; o fato é que não foi
programado...
Trianon imobilizou-se e encarou-o. George suava e
estava pálido.
— Sente-se bem? — indagou ao operador.
— Sim, estou bem. É apenas ressaca. Tomei uma
aspirina... Acho que me deram dinamite pura para beber.
Apaguei-me no colo da loura mais espetacular do Saint
James Club — riu George, tentando dar ares de importância
ao que dizia.
— Se era assim tão espetacular e do Saint James,
gostaria de saber o nome dela — falou Trianon, com um
riso malicioso nos lábios.
— Nelly O'Hara — apressou-se em responder o outro.
— Diga que é amigo do George e do Peter...
— Peter?
— Peter Johnson, ela deve conhecê-lo. A festa de
ontem foi no apartamento dele. Que festa! Se minha esposa
soubesse...
— Mas voltemos a Female. Você disse que, caso fosse
programado, poderia ser acionado à distância...
— Entenda bem o que quis dizer com distância: não
me refiro a uma operação a partir de Londres ou Paris,
estaria fora do esquema, pois seria detectado pelo serviço de
Transmissões e Escuta e imediatamente bloqueado. A
operação poderia, teoricamente, ser realizada através de
outro computador, esse livre de vigilância. Teria de estar
igualmente programado e aqui por perto...
— Teoricamente, então, o computador auxiliar,
digamos, poderia ser acionado a partir de Paris?
— Se programado, é claro. Eu entendo perfeitamente o
que quer dizer. Uma cadeia operacional que começaria em
Paris acionaria o computador auxiliar, como você mesmo
definiu, e este, por sua vez, acionaria Female. Posso
perguntar por que alguém faria isso? — indagou George,
intrigado.
— É o que gostaria que você respondesse. Se alguém,
em Paris, seguindo o exemplo, acionasse seu computador,
ligando o computador auxiliar a Female e acionando este, o
que poderia obter?
— Inicialmente teria de saber operar Female e vencer
seu esquema de segurança...
— Suponhamos que a pessoa interessada tenha feito
isso.
— Ela poderia fazer qualquer coisa como acionar
Female, efetuar uma transferência de dinheiro do National
Bank para o Richemond, numa conta numerada de máximo
sigilo. Creio que seria esse o objetivo de alguém capaz de
executar essa cadeia operacional.
— Indo um pouco mais longe — falou Trianon, tenso,
— haveria um meio de retirar uma informação do
Richemond Bank, como, por exemplo, a rotina de
comunicação do destinatário do dinheiro transferido?
— Se ele fosse um dos agentes a serviço nosso e
tivesse acesso à rotina especial de comunicação de
recebimento, sim. A consulta pode ser feita. É uma operação
simples, até certo ponto. Basta conhecer a rotina. E os
códigos, é claro. A consulta, aliás, independe de
transferência de numerário. Posso acionar Female agora e
indagar ao Richemond como é feita a comunicação ao titular
da conta Az-09807-7, por exemplo. Fazemos isso
rotineiramente, da mesma forma como procedemos a
alterações ou cancelamentos. Mas há um detalhe importante
em toda essa cadeia operacional, Sr. Max: apenas eu, no
momento, poderia fazer isso. Qualquer outra pessoa teria de
saber a chave de acesso a Female, liberando-o para si. Ela é
pessoal, eu a criei e programei. Está apenas aqui — disse
George, apontando para a própria cabeça, com um sorriso
orgulhoso e confiante.
Trianon aproximou-se e encarou-o no fundo de seus
olhos injetados.
— A menos que a dinamite pura que lhe deram ontem
o tenha feito falar, placidamente recostado no colo de uma
loura espetacular, chamada Nelly O’Hara — disse Trianon,
apanhando um telefone na mesa ao lado e pedindo uma
ligação urgente com o Saint James Club.
George endureceu, tenso, em sua cadeira, enquanto o
agente especial falava.
— Não há nenhuma loura espetacular chamada Nelly
O'Hara trabalhando no Saint James Club — informou
Trianon.
George tornou-se lívido. O suor escorreu pelo seu rosto
Trianon fulminou-o com um olhar glacial e retirou-se
apressadamente.
***
Trianon procurou imediatamente o General Foster, que
se encontrava numa reunião. Ao ser informado da presença
do agente, compreendeu que se tratava de algo importante,
saindo imediatamente e indo ao encontro dele.
— General, é de suma importância que se lembre do
que vou perguntar: há algum espião nosso, a serviço na
Rússia ou na Alemanha Oriental, cujo trabalho possa estar
perturbando sobremaneira a cúpula soviética.
Por momentos o general pensou, enquanto sondava o
rosto sombrio e tenso do agente.
— Sim, temos, é claro. Há um espionando os
progressos no campo da energia, mas suas informações não
têm sido frequentes... Há outro, no campo das armas, este,
sim, nos tem sido valioso, pois suas informações nos
permitirem um equilíbrio perfeito entre as novas armas
russas e nossas defesas. Estrategicamente, talvez seja o
nosso agente mais importante no momento...
— Talvez esse homem esteja ameaçado, general.
Talvez o plano todo seja para localizá-lo — disse Trianon,
fornecendo-lhe detalhes de sua conversa com George que
permitiam essa dedução.
Antes que chegasse ao fim, porém, o telefone tocou. O
general atendeu e empalideceu imediatamente, desligando.
— Está acontecendo — falou, num desabafo agoniado.
— Female está sendo acionado.
Rapidamente rumaram para lá. Havia certo alvoroço na
sala do computador. George Staford apertava botões e
acionava chaves desesperadamente.
— O que está havendo? — indagou o general, aos
berros.
— Ela está repassando dinheiro do National para o
Richemond — berrou George, aturdido e à beira de uma
crise nervosa.
— Pare isso! — gritou Trianon.
— Impossível — respondeu George. — A transmissão
é irreversível.
— Desligue a energia...
— Female é autônomo...
— Destrua-o, então — berrou Trianon, sacando sua
pesada Colt 45.
— Não seja louco, homem — gritou o General,
segurando-lhe o pulso. — São milhões de dólares de gastos
e anos de pesquisas. É uma nova linguagem de
computadores, sofisticado ao extremo, desconhecido dos
melhores técnicos civis...
— Um homem pode morrer, general —argumentou
Trianon, com a arma já engatilhada.
— Se está referindo ao espião, é o preço a pagar. Ele
sempre soube dos riscos, é substituível. O computador, não!
— respondeu o General.
— Vejam! Foi feita uma consulta ao Richemond. Ele
está informando! — berrou George.
Todos ficaram em silêncio, fixando os olhos no visor,
onde a mensagem começava a tomar corpo:
RPT CONSULTA 0796 — ROTINA DE
COMUNICAÇÃO — MSC HOTEL WIEN BUDAORSI
UT 88 BUDAPESTE A/C ONUSZ ZOLTAN... CONEXÃO
HOTEL LENINGRASKAYA MOSCOU URSS A/C
PETRO BORISTPOV... CONTATO DIÁRIO RUSSPY
SORBONY... HAVERÁ ALTERAÇÃO???
Ok checando rotina!!!
— Deve haver um meio de alertar o nosso homem —
falou Trianon.
O general encarou-o e a expressão de seu rosto era de
puro desalento, dando a entender o destino reservado ao
agente em missão na Rússia.
Trianon desengatilhou a arma e guardou-a. Fitou o
computador com apreensão. Releu a mensagem ainda no
visor. Havia um número de conta e uma transferência de
dois milhões de dólares para ela. Voltou-se para o pálido e
apavorado George.
— Esta conta pertence ao espião russo?
George, trêmulo, efetuou uma consulta ao computador.
— Não, não consta do relatório de contas — disse num
fio de voz.
Os olhos do agente especial cintilaram de puro ódio.
— Conhece o sistema de segurança do Richemond
Bank?
— É de segurança máxima. O número da conta leva a
um nome, podendo ser falso e geralmente é. Para obter
qualquer informação sobre a conta, você precisa saber o
número e o nome...
— Se fizermos uma consulta agora ao Richemond,
solicitando confirmação da transferência, do número da
conta e do nome, o que aconteceria?
— Ele bloquearia e solicitaria os dados completos:
número da conta e nome. A resposta poderia ser conseguida
se tivéssemos a chave de segurança capaz de romper esse
bloqueio...
— Talvez certa loura espetacular do Saint James Club
possa nos ajudar — ironizou Trianon e George esteve à
beira de um colapso, sob o olhar intrigado do General
Foster.
A VIAGEM
Naquele mesmo dia, Trianon embarcou num jato da
Força Aérea, desembarcando no Kennedy Airport, onde
tomou outro, da Lufthansa, com destino a Berlim. Na manhã
seguinte, fria e nebulosa, avistava-se com Jonas Krill, numa
ala reservada da embaixada.
— Acabamos de saber e lamentamos, Trianon. Nosso
agente na Rússia foi capturado. Vamos enfrentar sérios
problemas estratégicos, até que um novo agente consiga
acesso aos novos planos armamentistas soviéticos e
localização das instalações de mísseis.
Uma expressão de fúria e desalento estampou-se no
rosto de Trianon.
— Souberam alguma coisa sobre Oliver Clark e
Bakou?
— Bakou ainda está por aqui. Foi visto ontem, no lado
ocidental. Está sendo seguido. Nada sabemos sobre Oliver
ainda. Presumo que esteja morto. Tentamos encontrar o
local para onde levaram o carregamento do Tupolev. Isso só
foi conseguido nessa madrugada, quando um comboio se
movimentou de um bairro de Berlim Oriental. Investigamos
o local. Nada encontramos de especial, a não ser vestígios
de que várias pessoas estiveram ali durante alguns dias e
que qualquer coisa foi montada. Julgo que tenha relação
com a antena que instalaram na Alexander Platz e que,
ontem, durante uma hora mais ou menos, causou
interferências nas transmissões de TV. A antena foi
desmontada ontem à tarde mesmo e nenhuma explicação
oficial foi feita. Há algo que possa fazer por você, além
disso?
O telefone tocou. Jonas atendeu e uma expressão
irritada estampou-se em seu rosto.
— Continuem tentando. Precisamos localizá-lo! —
ordenou, desligando. — perderam Bakou e seus
acompanhantes — disse encarando Trianon.
— Quem acompanha Bakou?
— Um homem e uma mulher. Não sabemos ainda
quem são. Alguma ideia?
— O homem talvez seja Oliver Clark. A mulher eu não
sei.
— Oliver Clark? Por que ele? Deve estar morto!
— Talvez — disse Trianon, num tom vago.
— O que pretende fazer agora?
— Esperar. Precisamos encontrar Bakou!
— Para quê?
— Preciso de algumas respostas — afirmou Trianon.
— Depois matá-lo, talvez — acrescentou, com ódio.
Durante o resto do dia, Trianon circulou pela cidade,
sem um rumo definido. Passeou ao longo do muro,
acompanhado de um dos homens de confiança de Jonas
Krill. À noite foram jantar no Hardtke, onde provaram uma
comida típica alemã. Depois retornaram ao hotel. Trianon se
mostrava tenso, como uma fera metida numa jaula ou um
rato num labirinto. A frieza de seu rosto fora substituída por
uma expressão profunda de rancor. Seus olhos brilhantes se
cobriram de uma película transparente, tornando-os
esgazeados e assustadores. Apenas de madrugada recebeu a
informação que aguardava. Bakou fora até a Suíça. De lá
embarcara para a Polônia, acompanhado de uma mulher.
Trianon tomou o primeiro trem da manhã para
Varsóvia.
DESFECHO DE UMA TRAIÇÃO.
No mesmo dia, ao amanhecer, no elevador do Victoria
Intercontinental Hotel, na Kroslowsko Str. 11, em Varsóvia,
Bakou e Geórgia subiam para o apartamento que ocupavam
no quinto andar, com vista para a rua, após retornarem de
um inocente passeio. Na cabine, apenas os dois, o
ascensorista e um homem magro e baixo, ligeiramente
calvo, com aparência doentia. Quando o elevador parou no
quinto andar, o casal russo deixou-o, seguindo pelo
desconhecido. Caminharam ao longo do corredor acarpetado
que abafava seus passos. Bakou parou diante de uma porta,
tilintando a chave. Introduziu-a na fechadura e abriu-a.
Geórgia passou. Ele a seguiu. Quando ia fechar a porta atrás
de si, o homenzinho que vinha pelo corredor chutou-a,
derrubando Bakou para trás. Antes que Geórgia pudesse
gritar, uma arma automática Colt 45, com um longo
silenciador, surgiu na mão do desconhecido. Bakou olhou-o
com surpresa e ódio.
— Quem é você? O que quer? — indagou o russo,
fazendo menção de introduzir uma das mãos pela gola do
sobretudo.
O estalido da Colt sendo destravada o fez imobilizarse. O silenciador era um cano de escape em miniatura,
exibindo a boca ameaçadora por onde passaria um projétil
de 45.
— Você é Bakou, não? — indagou o homem calvo.
— Meu nome é Wladimir Snoskaya...
— Onde está Oliver Clark?
Bakou empalideceu. Geórgia estava trêmula. O
americano continuava imóvel, frio e impassível como uma
estátua.
— Nós o deixamos na Suíça. Internou-se numa clínica
de repouso em Zurique. Ele precisava disso, após ter traído
seu país — falou o russo, com zombaria, mas calou-se ao
ver que nenhuma emoção provocara no desconhecido.
— Qual a identidade dele agora? Seu nome, quero
apenas o nome — ordenou Trianon.
— August Zopper — disse Bakou, começando a se
levantar lentamente, fixando-se nos olhos do homem diante
de si.
Levantou um dos braços como se fosse pedir alguma
coisa, embora seu olhar revelasse a clara intenção de
suplicar. A bala partiu abafada do cano da Colt 45 e o
atingiu na testa. Sua cabeça foi jogada violentamente para
trás. Sangue e miolos grudaram-se à parede atrás dele,
enquanto seu corpo desabava como um pesado tronco sem
vida. Geórgia esboçou um movimento. Seus miolos
espalharam-se pelo tapete rosa felpudo. Chumaços de seus
cabelos, gotejando sangue, caíram sobre a cama de casal,
manchando a colcha de arminho. Trianon guardou a arma e
saiu pela porta, com os lábios crispados e retorcidos numa
careta de ódio e nojo.
***
Oliver Clark estava num pequeno chalé, nas
proximidades do lago Leman, repousando numa confortável
poltrona de couro no alpendre, apesar do vento frio que
soprava, encrespando as águas do lago. No interior do chalé,
uma bela loura preparava um delicioso fondue
Bourgovignore, que espalhava seu aroma pelos aposentos. A
aparência do americano era das melhores. Suas faces
estavam coradas e seu físico mostrava-se em forma. Estivera
numa clinica de repouso por cinco dias, submetido à
sonoterapia e desintoxicação. Um carro esporte importando
estava estacionado no abrigo ao lado. Um barco novíssimo
estava junto ao ancoradouro, aguardando o degelo. Algumas
caixas de uísque escocês, junto a uma centena de garrafas de
vinhos franceses das melhores marcas abasteciam sua
adega. Queijos finíssimos estavam armazenados na
despensa. Caviar o aguardava no gelo. Pacotes de roupas
recém-chegados dos melhores alfaiates de Genebra
esperavam o momento de serem desfeitos, para que ternos
de talhe impecável fossem ornamentar o amplo armário
espelhado no quarto principal do andar superior do chalé,
— Quer mais uísque, Oliver querido? — indagou a
loura num inglês sofrível, mas esforçado.
— Sim, Leone — respondeu ele, levantando a gola de
pele de seu sobretudo.
Leone apanhou a garrafa e saiu para o alpendre. Um
carro acabara de chegar. Um homem baixo e ligeiramente
calvo desceu, sorrindo amistosamente. Acenou para Oliver,
depois começou a subir a escadaria que o levaria ao
alpendre do chalé. Oliver se ergueu surpreso e intrigado.
— Você é August Zopper? — indagou o recémchegado.
— Sim. Quem é você?
— Sou do Richemond Bank. Preciso de uma assinatura
sua nuns papéis — disse o outro.
— Está bem, chegue até aqui.
O desconhecido chegou até Oliver e lhe entregou um
envelope. Leone ficou atrás, sorrindo com a garrafa de
uísque nas mãos. Oliver abriu o envelope e retirou os
papéis. Leu-os, depois empalideceu e fitou pateticamente o
homem a sua frente. A surpresa fora terrível. Fez menção de
protestar e uma Colt 45 foi apontada para seu rosto.
— Assine! — ordenou o baixinho.
Oliver ficou tenso e abismado por momentos, fitando
os olhos frios do homem diante dele.
— Preciso de uma caneta — disse num fio de voz.
— Aqui a tem — falou o outro, passando-a para
Oliver, que a apanhou e assinou os documentos,
devolvendo-os.
— E agora? — indagou, estupidamente.
O desconhecido dobrou os papéis, meteu-os no
envelope e guardou-o no bolso interior do sobretudo com
gola de pele de lontra. Depois fez uma expressão indefinida
e apertou o gatilho. A cabeça de Oliver dobrou-se
violentamente para trás. Seus miolos ensanguentados
espalharam-se sobre Leone e a parede. A garota gritou,
horrorizada, soltando a garrafa. Foi seu último gesto.
O RELATÓRIO FINAL
Sentado diante do general e de outros oficiais do
Departamento da Defesa, Trianon iniciava seu relatório
verbal a respeito do caso Oliver Clark.
— Oliver Clark foi um traidor. Já o matei. Seu plano
foi perfeito e seu grande mérito foi ter feito os russos de
palhaços. Era inteligente, muito mais do que possam
imaginar, e se preparou conscientemente, premeditando o
plano. Era um homem de bom gosto e talvez se ressentisse
de melhores condições para revelar isso. Apossar-se de dois
milhões de dólares do governo americano lhe pareceu algo
fácil, suponho, e ele provou isso. Inicialmente preparou
Female, conectando-o ao computador da Universidade, a
que teve acesso fácil. Sabotou-o e se prontificou a refazer a
programação. Preparou, então, os dois computadores para
agirem a seu comando. Transmitiu uma mensagem de sua
viagem num código ultrapassado, usando o computador da
Universidade. Esse código, penso eu, era do conhecimento
dos russos e Oliver Clark sabia disso. Num dia propício,
onde a ineficácia ou conivência de alguns de nossos homens
facilitou-lhe a execução do plano, transmitiu a mensagem
para que ela chegasse ao conhecimento dos russos. Oliver
estava preparado, então, para ser apanhado e forçado pelos
russos a trabalhar para eles. Havia um espião nosso entre os
russos, burlando-lhes os planos das melhores armas
estratégicas e frustrando-lhes os planos de uma supremacia
nesse campo. Oliver usou isso como isca. A mensagem
seguramente os intrigou. Investigaram, o que nós também
teríamos feito, descobrindo quem era ele e o que fazia. A
ideia de usá-lo deve ter surgido naturalmente. Oliver foi
apanhado e cooperou. Não sei dizer se foi torturado ou não,
mas também estava preparado para isso. Atingiu um salto
grau de controle físico e mental praticando ioga. Isso poderá
ser comprovado com as declarações de seu mestre. Os
russos, então, providenciaram instalações para que ele
pudesse agir, entregando-lhe todo o material de que ele
necessitava para seu próprio beneficio, não importava o fato
de que isso pudesse custar uma ou mais vidas. Profundo
conhecedor do assunto, dotado de memória prodigiosa, ele
obteve uma conexão com o computador da Universidade,
que havia sido preparada para operar Female. Uma revisão
minuciosa da programação dos dois computadores
seguramente comprovará isso. Restava-lhe, porém, um
problema e esse Oliver entregou aos russos, que o
resolveram sem muita dificuldade, creio. Como estivesse de
férias, Oliver não poderia operar Female de modo algum, a
menos que soubesse a chave de segurança operacional,
criada pessoalmente por seu substituto, o operador George
Staford. Graças a sua discrição e seu interesse por mulheres,
principalmente louras espetaculares, essa chave de
segurança tornou-se do conhecimento dos russos, que a
forneceram a Oliver para que efetuasse a transferência de
dois milhões de dólares para uma conta numerada no
Richemond Bank. Ao mesmo tempo, forneceu aos russos a
informação que eles desejavam sobre nosso espião. Não sei
que tipo de acordo fizeram com ele, soltando-o ao final.
Procurei, então, o agente russo que suspeitava haver
chefiado toda a operação. Encontrei-o em Varsóvia. Ele me
informou o paradeiro de Oliver. Procurei inicialmente em
Zurique, nas clínicas de repouso, mas o complexo esquema
de segurança deles me prejudicou. A pista, então, era o
Richemond Bank. Eu tinha o número da conta, mas não o
nome. Arrisquei, então, a nova identidade que me fora
informada por Bakou, o agente russo. Oliver na certa
deveria ter posto seu novo nome na conta. Acertei em cheio.
Com essas informações pude solicitar um extrato da conta.
Um saque de cem mil dólares já havia sido feito. O
endereço para correspondência anotado no extrato era de um
chalé, no Lago Leman, para onde me dirigi, após me
informar com o banco o que deveria ser feito para se obter
uma transferência de numerário de uma conta para outra. No
caso, da conta de Oliver Clark para uma conta que abri em
nome do governo americano. Recebi os formulários.
Preenchi-os com a importância de um milhão e novecentos
mil dólares, saldo da conta de Oliver, e levei para que ele
assinasse, juntamente com uma confissão que eu preparara,
segundo o que descobrira em minhas investigações. Oliver
assinou tudo. Eu o matei em seguida. Está tudo em meu
relatório escrito, inclusive outros detalhes e algumas
sugestões para uma revisão geral nos dispositivos de
segurança do pessoal especializado e de interesse nacional.
Há muitas falhas e muitos riscos. Anotei os nomes das
pessoas diretamente envolvidas que, com sua omissão,
negligência, incapacidade, ou, o que é pior, conivência
permitiram que isso acontecesse e que uma lacuna fosse
aberta em nosso sistema de defesa. Quanto a Oliver Clark,
reconheço que foi uma jogada arriscada, altamente perigosa
e desesperada. Poderia ter sido morto, mas tinha dois
milhões a lucrar, talvez mais, se o quisesse. Ele não hesitou,
penso eu. Foi um tiro no escuro que acertou em cheio um
bando de patos russos. A seu crédito, repito, devemos
apenas o fato de ter zombado da Primeira Divisão da KGB
como ninguém jamais o fez antes.
Trianon ergueu-se. Deixou a pasta sobre a mesa e se
retirou. Talvez pensasse em sua moto, nas garrafas que
esvaziaria e arrebentaria, em alguma música caipira, numa
certa garota do Saint James Club ou, então, não pensasse
absolutamente em nada.
FIM

Documentos relacionados