a mulher negra na obra de gregório de mattos
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a mulher negra na obra de gregório de mattos
A MULHER NEGRA NA OBRA DE GREGÓRIO DE MATTOS Iraneide Santos Costa (UFBA) Introdução O problema a partir do qual se delineia esta pesquisa é: como se dá a produção identitária da mulher negra na obra de Gregório de Matos. Está ancorada teórico e metodologicamente na Análise do Discurso da linha Francesa, linha teórica que ultrapassa os limites do texto, já que considera os fenômenos sócio-históricoideológicos relevantes para a construção dos sentidos, ou seja, trabalha com o discurso. Ora, como pensar em discurso é também – e principalmente - pensar em relações de poder, é interessante aqui proceder a discussões sob esta perspectiva, uma vez que a proposta é refletir sobre como se dá a constituição do sujeito mulher negra/mulata/crioula/preta, explicitando qual o espaço social designado a esta mulher na sociedade do século XVII. Procura-se estabelecer o papel da história e da memória discursiva, bem como de que forma a relação saber/poder aí se instaura, explicitando especificidades da prática discursiva e seus efeitos de sentidos a partir do entrecruzamento língua/ sociedade/ história/ memória. Para a realização deste trabalho, foram selecionadas algumas poesias de Gregório de Matos. Ressalta-se que o que aqui se pretende é não só rastear marcas do discurso machista/racista nas materialidades discursivas como também relacioná-las à historicidade que as constitui, estabelecendo até que ponto perpetuam/reforçam a ideologia da mulher negra mulata/crioula/preta como objeto sexual, libertina, libidinosa, fogosa, promíscua, interesseira. A mulher na obra de Gregório de Matos Sobressai-se uma dualidade na postura do autor frente às mulheres, podendo isso ser rasteado na forma de que se vale para se expressar, no tratamento dispensado a essas mulheres, na linguagem que utiliza: observa-se, por exemplo, que, quando “fala” para/da mulher branca, faz uso preferencialmente do soneto decassílabo, enquanto, quando o faz para/sobre a mulher negra/mulata/preta/crioula, escreve poemas satíricos em redondilha maior, tida como tipicamente popular; se, em relação àquela, há uma preocupação com a decência, o recato; para esta, o poeta adota atitude grosseira, descortês. Isso se reflete, por sua vez, no seu linguajar: no primeiro caso, a preocupação no uso de uma linguagem que não melindre faz com que a contenção e o velado sejam uma constante; já no que diz respeito ao segundo caso, o que se tem é uma linguagem escrachada, repleta de termos rudes, grosseiros e até cruéis. Debruçando-se sobre os fragmentos 1,2 e 3, constata-se que: a) por um lado, se vincula o sujeito mulher branca à inocência e perfeição, o que remete aos valores morais e religiosos vigentes na sociedade seiscentista, de acordo com os quais o sexo está ligado ao pecado e só deve ser praticado no casamento em prol da procriação. As materialidades “anjo dos meus altares” (fragmento 1) e “alma ditosa”(fragmento 2) evidenciam o imaginário social do século XVII, a grande força da igreja e de seus dogmas na construção desse. Anjo vem a ser “mensageiro celestial entre Deus e os homens” (HOUAISS, 2008, P. 45); alma ditosa é alma bem-aventurada, merecedora das graças divinas: há toda uma historicidade que “permite” ao sujeito poeta e homem esse dizer em relação ao sujeito “ mulher branca”. As posições terminam, pois, por revelar os lugares socioideológicos assumidos por esses sujeitos e a linguagem vem a ser justamente a forma material de expressão desses lugares. b) por outro, vincula-se o sujeito mulher negra à devassidão, licenciosidade, lascívia. Há todo um já-dito que sustenta o dizer do fragmento 3 em relação ao sujeito mulata: tem-se o estereótipo da mulata como sensual, com apetite erótico exagerado. Ao usar a expressão “mulata esfaimada”, por exemplo, reatualiza-se um discurso segundo o qual a exacerbação sexual se constitui no traço mais marcante no que se refere à mulata, uma vez que ela é vista como quem tem “fome” insaciável de sexo. Fragmento 1: Sob a didascália “Rompe o poeta com a primeira impaciência querendo declarar-se e temendo perder por ousado”, escreve o poeta: Se como anjo sois dos meus altares, Fôreis o meu custódio, e minha guarda, Livrara eu de diabólicos azares. Fragmento 2: Sob a didascália “Lisonjeia os sentimentos de Dona Vitória com este feito em seu nome”, escreve o poeta: Alma ditosa, que na empírea corte Pisando estrelas vais de sol vestida, Alegres com te ver fomos na vida, Triste com te perder somos na morte Fragmento 3: Sob a didascália “A Luiza Sapata querendo, que o amigo lhe desse quatro investidas duas de dia, e duas de noite”, escreve o poeta: Uma com outra são duas pela minha tabuada, e vós, Mulata esfaimada, quereis duas vezes duas. Levando em conta o que diz Pêcheux (1990) quando afirma que o discurso produzido por um sujeito A sempre pressupõe um destinatário B que se encontra em um lugar determinado na estrutura de formação social, bem como que não se está aqui falando de sujeito tampouco de lugar empíricos, mas sim de sujeito discursivo, de imagens advindas de projeções, constata-se que entram “em cena” as seguintes “formações imaginárias”: 1. Imagem que sujeito faz dele mesmo: por se inserir em sociedade patriarcal, machista e racista, sujeito homem branco se toma (imagem de si) como superior às mulheres, principalmente se essas negras o forem. Diante do questionamento “Quem sou eu para lhe falar assim”, tem-se um sujeito que fala a partir de uma formação discursiva que se respalda em um saber segundo o qual: a) a mulher deve submissão, subalternidade ao homem; b) o homem deve respeitar a mulher se ela for branca e “de família”; c) é a mulher negra objeto, logo o homem tem plenos poderes, não lhe devendo nenhuma consideração. 2. Imagem que sujeito faz de seu interlocutor (mulher branca): embora a imagem que se tenha do sujeito mulher na sociedade seiscentista seja de ser frágil fisico e moralmente, precisando da tutela do homem, encerra-se nela o estereótipo do que se toma como perfeito, belo (ter traços europeus seriam responsáveis por isto) e puro, a ponto de muitas vezes sua imagem estar ligada a imagens religiosas (anjo). Por ser ela a com quem se deve casar e ter filhos, é símbolo da família, sendo vista na maioria das vezes como santa. Quando se reflete a partir do questionamento: quem é você para que possa lhe falar dessa ou daquela maneira, ela muitas vezes ocupa a posição sujeito donzela superior (espiritualmente) e inatingível. Toda a questão da sensualidade não estará, pois, a ela vinculada, uma vez que os sentimentos que desperta são os mais puros, posto que sexo estaria vinculado a pecado . Ou seja, nas materialidades analisadas, pode-se rastrear toda uma aura de proteção, idolatria e de códigos de respeito para com ela. 3. Imagem que sujeito faz de seu interlocutor (mulher negra): imagem que se tem do negro/mulato/preto/crioulo no século XVII é de ser inferior, muitas vezes sendo tomado como objeto do qual se pode dispor quando se é dono. Quando se elucubra a partir do questionamento: quem é você para que possa lhe falar dessa ou daquela maneira, nas materialidades analisadas o sujeito fala a partir de uma formação discursiva pautada em um saber de acordo com o qual a negra/preta/crioula/mulata é safada, fogosa, sensual. A Negra, a Preta, a Mulata, a Crioula Através do processo discursivo, tem-se acesso ao jogo linguístico-histórico, em que o simbólico se instaura, constituindo-se, subjetivando-se os sujeitos sociais especificamente, neste estudo a que ora se procede, o sujeito mulher negra/ preta/ crioula/ mulata; o sujeito homem branco; o sujeito mulher branca seja -, muitas vezes pelo silenciamento de outros sentidos e de outras posições-sujeito. Uma vez que o discurso exerce papel capital na representação e na constituição da vida social, o indivíduo aprende a ser quem é, se constitui como sujeito nas práticas discursivas nas quais opera, tanto em sua relação com o mundo como com as outras pessoas (MOITA LOPES, 2003). Observa-se, por exemplo, que as materialidades ora estudadas falam a partir de uma formação discursiva pautada em um saber segundo o qual a questão sexual não representa possibilidade de interação entre duas pessoas, mas sim se trata de uma forma de aliviar uma necessidade - como qualquer atividade fisiológica - premente nos homens, porque as mulheres que são honestas não têm tais necessidades. Na sociedade baiana do século XVII, que está hierarquizada segundo a teleologia cristã, tem-se, pois, um sujeito homem que vive dividido entre esses dois sujeitos mulher: a) Ao se vincularem as palavras mulata, crioula, negra e preta a traços como feiticeira (fragmento 5), puta (fragmentos 4 e 5), dissoluta (fragmento 4) , ao mesmo tempo em que as distanciam de traços como discrição (fragmento 6), vê-se delineado o imaginário social da sociedade seiscentista brasileira em relação a essa mulher. Tem-se um sujeito que fala a partir de uma formação discursiva respaldada em um saber segundo o qual a religião católica aproxima os homens de Deus, já as outras práticas religiosas estariam ligadas à feitiçaria e ao demônio. A imagem da mulher não católica como feiticeira, por exemplo, está ancorada na memória discursiva. Além do mais, retoma-se aí a figura de Eva, sendo a mulher representada como a que seduz, que conduz ao caminho do pecado, já que acena com os prazeres da carne. b) Por outro lado, tem-se esse sujeito homem que está entre o pecado – materializado na mulher negra/ preta/ crioula/ mulata - e a pureza. Ter-se-ia então o sujeito mulher branca ligada a traços como virtude, honestidade, honra e discrição. Fragmento 4: Sob a didascália “Ressentida também como as outras o poeta lhe dá esta satisfação por estilo proporcionado ao seu gênio.”, escreve o poeta: Jelu, vós sois rainha das Mulatas, E sobretudo sois Deusa das putas, Tendes o mando sobre as dissolutas, Que moram na quitanda dessas Gatas. Fragmento 5: Sob a didascália “A uma negra que tinha fama de feiticeira chamada Luiza da prima.”, escreve o poeta: Dizem, Luíza da Prima, que sois puta feiticeira, no de puta derradeira, no de feiticeira prima: grandemente me lastima, que troqueis as primazias a lundus, e a putarias, sendo-vos melhor ficar puta em primeiro lugar, em último as bruxarias. Fragmento 6: Escreveu o poeta, sob a didascália “a uma crioula por nome Ignacia que lhe mandou para gozar o seguinte mote: para que seja perfeito, um bem feito cono em tudo, há de ser alto, carnudo, raspadinho, enxuto, estreito.” Inácia, a vossa questão, quem crerá, que é de uma preta, mas vós sois preta discreta, criada entre a discrição: a proposta veio em vão, pois a um tolo de mau jeito tínheis vós proposto o pleito: ele respondeu em grosso, que o cono há de ser o vosso, Para que seja perfeito. Considerações finais No corpus analisado, rastreia-se uma prática discursiva em que o sujeito mulher negra/ preta/ crioula/ mulata é visto como criatura inferior, que põe o homem a perder; evidencia-se ainda aí um saber/ uma verdade de acordo com a qual é natural que ela – independente de ser escrava ou não - tenha relações com o patrão/senhor, sem nenhuma censura e mesmo demonstrando um apetite todo próprio, competindo-lhe, além do trabalho doméstico, a satisfação sexual do homem, uma vez que, no século XVII, à mulher branca – esta pura, indiferente às necessidades da carne – não cabia tal prática. Tudo isso era alimentado pela estrutura da época colonial, permanecendo no imaginário coletivo esses protótipos de sujeito mulher. Além do mais, observa-se, no que se refere à relação de poder entre homens e mulheres, que se engendraram hierarquias pautadas em uma escala em que há traços positivos – ser branco, fidalgo, católico, discreto, livre, homem - e negativos – não-branco, não católico, escravo, mulher. Referências MOITA LOPES, L. P. (Org). Discursos e identidades: discurso como espaço de construção de gênero, sexualidade, raça, idade e profissão na escola e na família. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2003. PÊCHEUX, Michel. Por uma análise automática do discurso. Campinas : Unicamp, 1990.