Cadernos de Educação Escol Educação Escolar Indígena ar Indígena

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Cadernos de Educação Escol Educação Escolar Indígena ar Indígena
Cadernos de
Educação Escol
ar Indígena
Escolar
Uma publicação do
Programa de Educação Superior Indígena Intercultural
Editores / Organizadores
- Elias Januário
- Fernando Selleri Silva
- Taisir Mahmudo Karim
Consultor Antropológico
Luís Donisete Benzi Grupioni
Comissão Editorial
Adailton Alves da Silva - UNEMAT
Bruna Franchetto - UFRJ
Elias Januário - UNEMAT
Fernando Selleri Silva - UNEMAT
Filadelfo de Oliveira Neto - CEI/MT
Flavio Teles C. da Silva - UNEMAT
Francisca Novantino Paresi - OPRIMT
Luís Donisete Benzi Grupioni - USP/IEPÉ
Marcus Antonio Rezende Maia - UFRJ
Maria Aparecida Rezende - UFGD
Taisir Mahmudo Karim - UNEMAT
Cadernos de Educação Escolar Indígena
PROESI - v. 5, n. 1, 2007
Barra do Bugres - MT
As informações contidas nos artigos são de inteira responsabilidade de seus
respectivos autores.
PROGRAMA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR INDÍGENA INTERCULTURAL
Cadernos de
Educação Escol
ar Indígena
Escolar
Série Periódicos
Edição Comemorativa
Barra do Bugres - MT
2007
Catalogação: Cleide de Albuquerque Moreira
Bibliotecária/CRB 1100
Revisão: Lucimar Luisa Ferreira / Marinez Santina Nazzari
Revisão Final: Elias Januário
Consultor: Luís Donisete Benzi Grupioni
Projeto Gráfico/Diagramação: Fernando Selleri / Silvair Frazão
Fotos da capa: Acervo do PROESI
Fotógrafos: Banavita, Elias Januário, Fernando Lopes,
Joana Saira, Julio Cezar Paes
Dados internacionais de catalogação
Biblioteca “Curt Nimuendajú”
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA - PROESI.
Organizadores Elias Januário, Fernando Selleri Silva e Taisir
Mahmudo Karim. Barra do Bugres: UNEMAT, v. 5, n. 1, 2007.
ISSN 1677-0277
1. Educação Escolar Indígena I. Universidade do Estado de Mato Grosso II. Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso III. Coordenação-Geral de Documentação / FUNAI.
CDU 572.95 (81) : 37
UNEMAT - Universidade do Estado de Mato Grosso
Campus Universitário Dep. Estadual Rene Barbour
Educação Indígena - PROESI - Caixa Postal nº 92
78390-000 - Barra do Bugres/MT - Brasil
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www.unemat.br/indigena - [email protected]
SEDUC/MT - Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso
Superintendência de Formação Profissional
Travessa B, S/N - Centro Político Administrativo
78055-917 - Cuiabá/MT - Brasil
Telefone: (65) 3613-1021
SECITEC/MT - Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia de Mato Grosso
Rua 03, S/N, 3º piso - Centro Político e Administrativo
78050-970 - Cuiabá/MT - Brasil
Telefone: (65) 3613-0100
FUNAI - Fundação Nacional do Índio
CGE - Coordenação Geral de Educação
SEPS Q. 702/902 - Ed. Lex - 3º Andar
70390-025 - Brasília/DF - Brasil
Telefone: (61) 3313-3647
Sumário
Prefácio .................................................................................................... 7
Apresentação .......................................................................................... 9
Autonomia e Protagonismo Indígena nas Políticas Públicas ........ 11
Darci Secchi
Mediação: um desafio intercultural para os professoresmediadores wayanas ........................................................................... 21
Eliane Camargo
Desafios e Perspectivas na Educação Superior Indígena .............. 43
Elias Januário e Fernando Selleri Silva
Entre a aldeia e a cidade: notas da trajetória de uma vida ............. 51
Rozinete Zoizoquialo Amajunepá
A busca da autonomia no processo da educação escolar
indígena ................................................................................................. 5 7
Lucimar Luisa Ferreira e Adailton Alves da Silva
5
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Em Construção: a Escola Desejada .................................................... 65
Maria Aparecida Rezende
Arqueologia e educação escolar indígena na II Etapa dos Cursos
de Licenciatura (Turma 2005-2009) ................................................... 75
Luciano Pereira da Silva
“Karajá é um Bicho Traiçoeiro”: alguns estereótipos presentes em
nosso corpus ........................................................................................... 95
Maristela Sousa Torres
Metodologia de ensino de Física para a Formação de Professores
Indíos .................................................................................................... 113
Frederico Ayres e Anderson Rodrigues Lima Caíres
Corpo Humano e Saúde: uma Experiência na Formação de
Professores Indígenas ....................................................................... 119
Larissa Maria Scalon Lemos e Hébia Tiago de Paula
Formação de Professores Indígenas: uma Experiência de
Acompanhamento Pedagógico nas Aldeias ................................... 125
Adailton Alves da Silva, Hébia Tiago de Paula, Jurandina Barbosa Sales,
Lucimar Luisa Ferreira e Marinez Santina Nazzari
Entrevista com a estudante Maria Síria Rupê ................................ 141
Elias Januário
6
Prefácio
Com a publicação desta Edição Comemorativa dos 10 Anos
de Educação Escolar Superior Indígena em Mato Grosso (1997 – 2007)
e da existência do Conselho de Educação Escolar Indígena – CEI/MT,
estamos disponibilizando ao público e as comunidades indígenas
um material onde é possível conhecer episódios importantes da luta
pela consolidação da Educação Escolar indígena em Mato Grosso.
O início dessa trajetória vitoriosa começou antes mesmo de
1997, nas reuniões que aconteciam nas aldeias, nos embates na cidade
junto aos órgãos públicos e organizações não-governamentais, nos
seminários e encontros organizados para debater a oferta da educação
escolar indígena.
Em 1997 toda essa conjunção de ações e desejos materializouse na criação do Conselho de Educação Indígena – CEI/MT e na
Publicação do Decreto N. 1842 de 21 de novembro de 1997, do Governo
do estado de Mato Grosso, criando a Comissão Interinstitucional e
Paritária.
Difíceis mas vitoriosos foram os anos que se seguiram à criação
da Comissão. Reuniões extensas, conflitos de pensamentos, tensões
com a alteridade, abandono de alguns companheiros, entre outras
situações. Mas tivemos também situações importantes, verdadeiros
marcos na história da educação escolar indígena em nosso estado.
A conclusão do Projeto de Cursos de Licenciatura Específicos
para a Formação de Professores Indígenas e sua entrega oficial ao
Governo do Estado, a formatura dos professores do magistério – Projeto
Tucum, a abertura de novos projetos em nível médio, a realização do
vestibular indígena e o início da primeira turma de Licenciatura
Específica para a Formação de Professores Indígenas em julho de 2001,
que ficou conhecido como 3º Grau Indígena.
7
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Ao longo dos 05 anos que seguiram, foram publicados
materiais didáticos para as escolas indígenas, artigos com reflexões
sobre o processo em curso, realizadas conferências e abertas novas
turmas. Essas ações caminharam para a consolidação de políticas
públicas no estado de Mato Grosso, que estão a cada dia sendo
aprimoradas.
A mais recente conquista foi a transformação do Projeto de
Formação de Professores Indígenas em Programa de Educação
Superior Indígena Intercultural – PROESI, com o propósito de continuar
a execução dos cursos de Licenciatura e agora ampliar para
Bacharelado, Pós-Graduação Lato Sensu e Stricto Sensu, cursos de
formação continuada, acompanhamento de indígenas nos cursos
regulares e implementação de Museus Escola.
Os desafios continuam, e junto com eles o desejo também de
construir novas possibilidades, de trilhar por caminhos mais íngremes
e de fazer valer os direitos constitucionais e de cidadania aos povos
indígenas de nosso país.
Elias Januário
Coordenador Geral do PROESI
Francisca Navantino Paresi
Consultora e Representante Indígena no PROESI
8
Apresen
tação
Apresentação
É com satisfação que nos dirigimos aos leitores do Cadernos
de Educação Escolar Indígena para anunciar mais uma conquista dos
povos indígenas de Mato Grosso e de todas aquelas pessoas que estão
ligadas direta ou indiretamente com as questões indígenas: a criação
do Programa de Educação Superior Indígena Intercultural - PROESI.
Trata-se de um importante passo no sentido de fortalecer as ações
desenvolvidas pela UNEMAT em prol da consolidação da Educação
Superior Indígena no Estado de Mato Grosso.
O Programa de Educação Superior Indígena Intercultural da
UNEMAT tem por objetivo a implementação das políticas de educação
escolar indígena e a interculturalidade do Estado de Mato Grosso, por
meio da elaboração, execução, acompanhamento e avaliação das
modalidades desenvolvidas, bem como a execução dos cursos de
Licenciaturas Plenas e de Bacharelado, com vistas à formação em
serviço e continuada de professores e profissionais indígenas nas
comunidades indígenas; abertura de vagas nos cursos regulares de
Pós-Graduação Lato Sensu e Stricto Sensu; cursos de formação
continuada; acompanhamento de acadêmicos indígenas nos cursos
de graduação e administração do Museu Indígena a ser implantado.
Com essa abrangência o PROESI fortalece também as ações da
Universidade do Estado de Mato Grosso no sentido de estabelecer
uma política de Educação Escolar Indígena no seu interior, pois todas
as ações desenvolvidas para atender as comunidades indígenas no
Estado estarão inseridas nesse programa.
Juntamente com a comemoração dos 10 anos da Educação
Superior Indígena em Mato Grosso, comemoramos também o sétimo
aniversário do Projeto de Formação de Professores Indígenas – 3º Grau
Indígena, que iniciou suas atividades em 27 de setembro de 2000,
9
Cadernos de Educação Escolar Indígena
passando de agora em diante a integrar as ações do PROESI, com os
Cursos de Licenciatura Específica para a Formação de Professores
Indígenas. Nesse período muitas ações foram realizadas, tais como: o
ingresso de 200 cursistas em 2001 e mais 100 em 2005; o
desenvolvimento da Especialização Lato Sensu em Educação Escolar
Indígena; a constituição de um amplo acervo sobre a Educação Escolar
Indígena que reúne dados, documentos, trabalhos, fotos, livros, entre
outros; a publicação de 15 títulos dentre os quais se inclui este
periódico; a realização de eventos sobre questões indígenas em nível
local, regional e internacional como a Conferência Internacional sobre
Ensino Superior Indígena – CIESI 2004; a conclusão da primeira turma
que conferiu o grau de licenciado a 186 professores indígenas em 2006.
Tudo isso é motivo de orgulho e satisfação para todos que
contribuíram com essa iniciativa. Contudo, pretendemos continuar
ampliando essas ações. Para 2008 está prevista a entrada de mais 50
cursistas nos cursos de graduação e 50 no curso de Especialização em
Educação Escolar Indígena, além da criação do Museu Memória e
Identidade Indígena.
Neste quinto número do Cadernos de Educação Escolar
Indígena apresentamos uma coletânea de treze artigos, os quais relatam
experiências desenvolvidas no contexto dos cursos de Licenciatura
do Programa e experiências desenvolvidas no contexto de outros
cursos, contando com comunicações que envolvem temáticas como
autonomia, protagonismo, preconceito, currículo, fazer pedagógico,
desafios e perspectivas, enriquecendo ainda mais a discussão a qual
esta publicação se propõe a fomentar.
Adaiton Alves da Silva
Coordenador Pedagógico do PROESI
Fernando Selleri Silva
Coordenador Administrativo do PROESI
10
Autonomia e P
rotagonismo
Protagonismo
Indígena nas P
olíticas Públicas
Políticas
Darci Secchi*
Apresentação
A implantação de políticas públicas específicas voltadas para
segmentos afro-descendentes, índios e pobres, vem ocupando um lugar
de destaque no debate político e acadêmico contemporâneo.
No presente artigo pretendemos pontuar alguns aspectos
desse debate, com destaque para o movimento de autonomia e
protagonismo indígena1 que se consolida no âmbito das políticas públicas
dirigidas a essas sociedades.
Discutiremos inicialmente as noções de autonomia e de
protagonismo por considerá-las como palavras-chaves do debate acerca
das “políticas compensatórias” na atualidade.
O argumento que procuraremos desenvolver dirige-se no
sentido de considerá-las positivamente, desde que superada a matriz
conceitual que ordenou até aqui as relações entre o poder público e as
comunidades indígenas.
Doutor em Ciências Sociais pela PUC/SP, professor adjunto da Universidade
Federal de Mato Grosso - UFMT. Consultor nos Cursos de Licenciatura do PROESI.
*
1
Protagonismo indígena é entendido aqui com um duplo enfoque: enquanto uma
atitude de rompimento com as relações de tutela e submissão e, enquanto o exercício
qualificado de um papel de destaque nas relações interculturais.
11
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Será curioso constatar que nas últimas décadas essas relações
alteraram-se progressivamente, passando de uma situação de
desatenção ou de exclusão para uma atitude de inclusão tolerada,
depois solidária e, finalmente, para um contexto de diálogo qualificado
entre múltiplos protagonistas.
Essa mudança de atitude aponta para a superação das
denominadas políticas compensatórias e sugere a construção de relações
de autonomia e de protagonismo dos indígenas brasileiros que vivem
nas cidades, nos cerrados e nas florestas.
A noção de autonomia: dos gregos aos indíos
A palavra auto-onomia nasceu na Grécia Antiga e expressava
a faculdade, direito ou possibilidade de alguém atribuir-se o próprio
nome. Dizia respeito ao cidadão, apto a falar de si, a elaborar suas regras
de cidadania e a viver segundo elas nos três ambientes da polis (Casa,
Ágora e Eclésia).
Por oposição, trazia a idéia de hetero-onomia, condição daquele
que recebia de outrem os seus desígnios (princípios, leis, valores, língua
etc.) e a eles era abrigado a submeter-se. Tratava-se, portanto de uma
diferenciação entre seres: uns eram portadores de autonomia e
cidadania, outros tratados com heteronomia e escravidão.
Depois dos gregos, autonomia passou a ser entendida como a
“consciência explícita que somos nós que criamos nossas próprias leis e que,
portanto, podemos, também, muda-las” (CASTORIADIS, 1998: 104).
Encontraria o seu expoente em Descartes com a idéia da “experiência
absoluta” do homem que pensa e que, em sua existência, tem a
possibilidade de fazer escolhas, inclusive das leis que regerão a sua
conduta. Nessa perspectiva, a autonomia vinha associada
particularmente à reflexão, à busca da verdade, e à liberdade. A
dependência estaria localizada no objeto, isso é, no homem tecnificado
e incapaz de pensar, de exercer o cogito, de elevar a sua realidade, de
transcender. Tratava-se, portanto, de um ato de escolha: a pessoa
decidia-se por ser sujeito da sua vida ou por ser objetizada.
12
Autonomia e protagonismo indígena nas políticas públicas
A abordagem marxista, por seu turno, associou a autonomia
à possibilidade coletiva da liberdade. Porquanto, autonomia seria a “ação
de uma liberdade coletiva sobre outras liberdades”. A alienação se
expressaria pelas “condições de privação, como estrutura solidificada global,
material e institucional de economia, de poder e de ideologia, como indução,
mistificação, manipulação e violência”. Por isso, “nenhuma autonomia
individual pode superar esse estado de coisas, anular os efeitos sobre nossa
vida, da estrutura opressiva da sociedade na qual vivemos”.2
Mais recentemente, inúmeros autores associam a idéia de
autonomia à de soberania e de desenvolvimento econômico e
tecnológico. Nessa perspectiva, a autonomia expressaria a
possibilidade de uma população definir o seu próprio destino,
predominantemente sob a forma e nos limites de um estado nacional.
Seria sintetizada pela possibilidade do exercício efetivo dos direitos
individuais e coletivos de uma população no âmbito de uma nação,
pela capacidade competitiva do seu mercado e pelo poderio bélico de
cada nação ou de nações aliadas. A autonomia traria como elemento
referencial de oposição a noção de dependência, isso é, o não-exercício
pleno dos direitos e o cerceamento imposto por determinantes externos.
O mundo estaria dividido em dois grandes ‘blocos’: de um lado os
países centrais, desenvolvidos e ‘dominantes’ e, do outro, os países
periféricos e subdesenvolvidos, dominados ou dependentes. A mesma
dinâmica seria aplicada também no estabelecimento das relações
econômicas, culturais, étnicas e regionais no interior da mesma unidade
nacional.3
No campo da Antropologia, essa matriz conceitual subsidiou
grande parte dos trabalhos que tratam das relações entre os povos
indígenas e a sociedade nacional. Para ela, estaria posta uma situação
básica de conflito: de um lado os agentes “colonizadores” e de outro,
os “índios”. Dessa relação resultaria, uma fricção cinterétnica
(Oliveira,1976), diferentes graus de aculturação (Ribeiro 1978), uma
2
Castoriadis, 2000:131.
O Estado de Mato Grosso, por exemplo, embora situado no “coração do Brasil
Central” é considerado um estado periférico, atendido por universidades periféricas,
com desenvolvimento econômico e cultural periférica, etc. Até o próprio nome do
Estado sugere o lugar povoado por “índios” e onde a onça passeia, despreocupada,
pelas “corrutelas”...
3
13
Cadernos de Educação Escolar Indígena
situação de contato (Oliveira Filho,1988)4, uma situação colonial (Balandier,
1973), quando não, o extermínio físico e o desaparecimento de um dos
pólos – os índios. Em síntese: as sociedades indígenas teriam
estabelecido diferentes formas de contato com as “frentes de expansão”,
com o “entorno regional”, com a “sociedade nacional” e dela teria
resultado uma maior ou menor (normalmente menor) autonomia.
É nesse cenário de interesses opostos, de forças desiguais e de
resistências heróicas que as sociedades indígenas estão lutando pelos
seus direitos constitucionais, pelo direito de preservar a identidade e
a diferença, pelo direito de construir os seus projetos de futuro.
A perspectiva de tratar a autonomia como um direito a ser
concedido e reconhecido constitui um passo importante na análise
das relações entre os diferentes grupos de pertencimento que compõem
a sociedade brasileira atual. No entanto, ao nosso ver, estão sendo
desconsiderados dois problemas importantes.
O primeiro, consubstancia-se pela ausência de uma crítica
mais apurada sobre o direito de outorga. Aceita-se como legítimo que os
grupos sociais investidos de maior autonomia admitam, concedam,
reconheçam, tolerem, etc. alguns direitos aos que são ‘diferentes’ (leiase, desprovidos do poder de estabelecer seus direitos), e o fazem “dentro
de um marco nacional” previamente existente. Não se põe em questão
o presumido direito de outorgar direitos.
O segundo problema diz respeito ao império da lei, isso é, a
primazia da ordem jurídica sobre os demais aspectos da realidade
social e cultural. Aceita-se tacitamente que a existência de leis é
condição suficiente para assegurar as mudanças nas relações. Mas
como bem lembra o poeta Drummond , as leis não bastam; os lírios não
nascem das leis.
Protagonismo Indígena
A palavra protagonista também teve origem na Grécia Antiga e
é composta pelas raízes das palavras proto, que se traduz como “o
4
A idéia de dependência é substituída aqui pela noção de tutela.
14
Autonomia e protagonismo indígena nas políticas públicas
principal” e agonistes, que significa “lutador”. Naquele contexto
histórico, a designação de protagonista era atribuída ao principal lutador,
ao campeão, ao vencedor (por vezes agonizante) das lutas travadas
nas arenas.
Mais tarde, ainda na Grécia, a palavra protagonista passou a
ser utilizada também para designar o principal ator da tragédia, um
gênero literário muito apreciado pela população. Nas tragédias gregas
os atores protagonistas representavam os papéis de deuses, de heróis
ou de outros seres reverenciados, enquanto que os atores coadjuvantes
- os deuteragonistas, tritagonistas, pentagonistas - representavam
personagens históricos ou mitológicos de menor destaque.
Nos tempos atuais, a palavra foi amplamente utilizada no
teatro e no cinema e, mais recentemente, passou a designar também os
líderes e expoentes de diversas áreas do cotidiano social, político e
cultural. Assim, o rei Pelé é considerado protagonista nos esportes;
Paulo Freire, na educação e Tancredo Neves, na política. É assim
também que as atuais sociedades indígenas estão se organizando para
serem protagonistas, isso é, para serem os principais lutadores, atores e
expoentes da construção e da realização dos seus projetos societários.
Ao discutir o protagonismo indígena no contexto de relações
interculturais assimétricas (marcadas pela predominância da cultura
e da economia ocidental), é preciso definir estratégias que possam
reconfigurar a teia das relações historicamente existentes.
Trata-se de estabelecer um conjunto de medidas que venham
a viabilizar a presença e a participação indígena em todas as instâncias
decisórias e em todas as etapas de realização dos projetos de seus
interesses (levantamento das demandas, definição das políticas,
priorização e implementação das ações, avaliação dos resultados,
replicação e difusão das iniciativas exemplares, etc.). O objetivo é
ampliar a capacidade das sociedades indígenas exercerem o controle
real sobre as iniciativas de natureza econômica, política e cultural
incorporada ao seu cotidiano, em decorrência do convívio intercultural.
No que trata da educação escolar, o protagonismo indígena
pode ser expresso pela capacidade crescente dessas sociedades
exercerem o controle especialmente sobre as seguintes decisões: a)
sobre o acesso e gestão dos recursos externos disponibilizados por
15
Cadernos de Educação Escolar Indígena
meio da escola; b) acerca dos conteúdos e da organização curricular e;
c) sobre a política de formação dos seus professores.
Dessa perspectiva, a escola indígena adequada será aquela
que, incorporada à comunidade, lhe ensejará maior capacidade de
decisão sobre si e sobre os demais elementos culturais advindos do
convívio intersocietário.
O lugar dos índios nas politicas públicas
Nos últimos anos surgiram no Brasil diversas iniciativas de
políticas públicas consideradas inovadoras porque incluíram em seus
ideários (e em sua práxis) novos parâmetros que orientam as relações
entre o estado e as sociedades indígenas.
A história apontava até aqui a predominância do poder público
na definição das políticas a serem implementadas para os cidadãos.
Como forma de ilustrar essa predominância, faremos a seguir
uma breve retrospectiva das principais tipologias de ação que
caracterizaram as relações entre os agentes externos e comunidades
indígenas nos últimos 50 anos.
a) Período de exclusão indígena
Diz respeito ao período de vigência do Serviço de Proteção
aos Índios (SPI) e do início da atuação da Fundação Nacional do Índio
(FUNAI).
Nesse período as iniciativas voltadas para as comunidades
indígenas raramente contaram com o seu envolvimento.
A participação dos índios se dava marginalmente, como
observadores ou como prestadores de serviços em funções necessárias
para a implantação ou a manutenção das atividades dos postos
(trabalhadores braçais, cozinheiros, vaqueiros, etc.).
Tratavam-se apenas de ações localizadas em áreas indígenas com
o objetivo explícito de suplantar a diversidade cultural. Os índios
permaneciam fora do processo decisório e das políticas a eles dirigidas.
16
Autonomia e protagonismo indígena nas políticas públicas
b) Período de inclusão compulsória
Abrange o período que se estendeu dos anos de 1970 a meados
da década de 1980 e enquadra-se no conjunto das iniciativas oficiais
voltadas para a integração nacional e para o desenvolvimento do
Centro-Oeste e da Amazônia.
No interior desses Programas, as políticas públicas voltadas
para as sociedades indígenas atenderam a objetivos tais como captar
empréstimos externos, reduzir os conflitos com as frentes de ocupação
e amenizar os impactos decorrentes da redução dos territórios
indígenas. Serviram também como resposta à opinião pública
internacional que cobrava do governo brasileiro um tratamento mais
adequado às populações indígenas afetadas pelos programas de
desenvolvimento nacional e regionais.
Em alguns casos, a liberação de recursos estrangeiros foi
condicionada à implantação de políticas públicas em áreas indígenas;
em outros, limitou-se a ações mitigatórias para reduzir os danos
causados pela construção de rodovias, hidrelétricas e outras iniciativas
oficiais no interior ou no entorno das áreas indígenas.
Tratou-se, portanto, de políticas públicas voltadas para a
manutenção do órgão oficial e para a administração de conflitos entre
as frentes de ocupação e os índios.
c) Período de inclusão solidária
Consolidou-se na década de 1990 e se estende até os dias
atuais. Sua principal característica é a tentativa de inclusão das
sociedades indígenas no âmbito das políticas públicas voltadas às
“populações desassistidas”.
Pode ser interpretado como um conjunto de iniciativas de
caráter assistencial que supõem a participação indígena e que busca
“resgatar os valores étnicos, culturais e de cidadania”.
Os projetos educacionais estão associados a projetos similares
no campo da economia, da saúde e da segurança alimentar. Ancoramse nos direito constitucional de cidadania e destacam o “compromisso
moral que devemos ter com os nossos irmãos índios, com eles que são
os primeiros habitantes do Brasil”.
17
Cadernos de Educação Escolar Indígena
No intuito de buscar soluções estruturais para as necessidades
indígenas, o poder público e as agências financiadoras disponibilizam
equipes técnicas e recursos para atender às diversas demandas, desde
situações emergenciais de miséria extrema até projetos de
desenvolvimento de longo prazo.
Dentre os principais projetos destacam-se os de apoio à
demarcação e gestão territorial, educação escolar, capacitações e
fortalecimento institucional. Os projetos aprovados por “comitês”
tendem a ser implementados majoritariamente pelas comunidades
proponentes e são assessorados (solidariamente) por técnicos
vinculados às instituições “parceiras”.
Esse modelo de política pública representa um grande avanço
em relação aos períodos anteriores, porém ainda mantém a limitação
de ser concebido, elaborado e avaliado segundo os critérios das
agências financiadoras e/ou das equipes técnicas não-indígenas. São
políticas que contam apenas com a participação indígena.
d) Período de protagonismo indígena
Trata-se do período atual que se projeta para o futuro e que
tem o seu nascedouro no próprio movimento indígena e nas
instituições apoiadoras.
Concebe as políticas públicas como partes integrantes do
Plano de Vida de um povo ou de uma comunidade.
Considera os projetos educacionais e de desenvolvimento em
seus múltiplos aspectos e supõe a participação indígena em todas as
suas fases: definição das prioridades, elaboração, busca de
financiadores, planejamento e administração dos recursos e das ações,
acompanhamento, avaliação, registros.
É nesse sentido que a política de formação de professores
indígenas desenvolvida em Mato Grosso pode ser considerada um
avanço em relação às iniciativas anteriores. Ela propõe a autonomia e
o protagonismo indígena, reconhece a importância de manter o diálogo
entre todos os atores sociais e com todas as instâncias do poder público.
Não propõe um protagonismo excludente, mas aberto a todos os que
desejam cooperar com o movimento indígena na construção de uma
sociedade humana mais justa, fraterna e feliz.
18
Autonomia e protagonismo indígena nas políticas públicas
Conclusão
As noções de autonomia e de protagonismo indígena apontam
para o surgimento de uma nova concepção de política pública que
considera o cidadão (indígena ou não) um protagonista do seu Plano
de Vida e não apenas um cliente ou usuário dos serviços oferecidos
pelo Estado.
As políticas públicas dirigidas a grupos minoritários de
qualquer natureza devem ser concebidas, implementadas, avaliadas
e replicadas com a participação qualificada de todos os segmentos,
especialmente daqueles para os quais as ações se destinam.
O empenho do poder público em ampliar a participação
indígena nas políticas públicas em todas as fases do seu
desenvolvimento constitui-se na forma mais adequada para qualificála e possibilitar às comunidades o controle crescente sobre as demandas
advindas do convívio intersocietário.
Porquanto, cabe ao poder público, às instituições formadoras
e às comunidades - indígenas ou não - consolidar os caminhos da sua
autonomia por meio de medidas que promovam o protagonismo de
todos os atores e assegurem o diálogo intercultural.
Dessa forma, as políticas públicas específicas deixarão de ser
apenas ações emergenciais (ou compensatórias) de alcance duvidoso
e passarão a se constituir em espaços de liberdade, de autonomia e de
afirmação dos diferentes grupos que compõem o atual cenário sóciocultural brasileiro.
Bibliografia
BALANDIER, Georges. As dinâmicas sociais - sentido e poder. S. Paulo Rio de Janeiro: Difel, 1976.
BATALLA, Guillermo Bonfil. Pensar nuestra cultura. Ciudad de México:
Alianza Editorial, 1992.
19
Cadernos de Educação Escolar Indígena
BRÜSEKE, Franz J. A lógica da dependência. Belém: Editora Cejup, 1996.
CASTORIADIS, Cornelius. A autonomia em política – o indivíduo
privatizado. S. Paulo: Revista Margem nº 7, agosto de 1998.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. S. Paulo:
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MEC. Diretrizes para a política nacional de educação escolar indígena.
Cadernos de educação básica, série institucional, vol. 2. Brasília: MEC,
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OLIVEIRA FILHO João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios
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OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura social. S.
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SECCHI, Darci. Professor indígena: a formação docente como estratégia de
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Paulo: PEPGCS/PUC, 2002.
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para o magistério. Cuiabá: Secretaria de Estado de Educação, 1995.
UNEMAT. Projeto de formação de professores indígenas. Barra do Bugres:
Unemat, 2002.
20
Mediação: um desafio in
tercul
tural
intercul
tercultural
para os professores-mediadores
wayanas
Eliane Camargo*
Introdução
A Guiana Francesa, vizinha do Brasil, pertence à França, como
se fosse um de seus estados. É considerada um departamento
ultramarino1. A educação que se oferece a todos os indivíduos é a
educação nacional francesa. Todos os cidadãos recebem um mesmo
molde educacional indiferentemente. Isto é, se um grupo social de
língua e cultura diferente está presente no solo conquistado pela
França, ele deve seguir às normas da República. Entre elas, as normas
regidas e ditadas pelo Ministério da Educação Nacional. Todos vão
aprender, de forma caricatural ou não, que seus ancestrais foram os
gauleses. Assim, aprendem também os Wayanas: Nos ancêtres, les
Gaulois! É o que se pode encontrar no material didático empregado
nas escolas ditas do rio (les écoles du fleuve). Diferentemente do Brasil,
e de outros países americanos, como o Peru e o Equador, que têm
procurado construir uma política específica de educação para os
* Doutora em Lingüística, membro do CELIA (Centre d’Etudes de langues
indigènes d’Amérique, França).
Departamento, criado pela lei de 19 de março de 1946,estende-se do rio Oyapock
ao rio Maroni (na Guiana Francesa), fazendo fronteira com o Brasil do rio Oyapock
até o rio Jari. Com uma superfície de 86.504 km2, 96% da qual é coberta pela
floresta tropical.
1
21
Cadernos de Educação Escolar Indígena
índios, na Guiana o que se tem tentado é formar mediadores bilingües
e culturais, sem um real estatuto de professor. Eles seriam um tipo de
ponte entre o professor francês e os alunos autóctonos. O primeiro só
fala francês e deve aplicar as normas da educação regidas pelo
Ministério da Educação. Os segundos aprendem o francês ao chegarem
à escola, deparando-se com uma língua e um sistema de pensar e de
agir muito diferente do seu. O sistema educacional na Guiana parece
ir ao encontro dessa diversidade cultural e lingüística, tentando
desviar a rigidez da tecnocracia ministerial. A barreira existente seria,
porém, cravada pelos próprios participantes do programa que pensam
agir no bom sentido, aplicando, no fundo, as regras ditadas pelo sistema
tecnocrático.
Território pluricultural e plurilíngüe
A população da Guiana Francesa é caracterizada por uma
grande diversidade lingüística. Esta é composta entre outros por
crioulos (40% da população), Negros Marrons (Aluku2, Ndjuka,
Saramaca, descendentes de escravos fugitivos), Hmong (população
asiática que ali vive desde 1977), ameríndios (de três famílias
lingüísticas distintas (arauaque, caribe e tupi-guarani), franceses da
metrópole (com menos de 15% da população). Uma forte imigração
latina (haitianos, peruanos, dominicanos), asiática (chineses,
indianos), e de países vizinhos (Brasil3 e Suriname) continua em pleno
crescimento. Por um lado, tal fluxo contribui à formação e à fortificação
dessa sociedade historicamente pluricultural e plurilíngüe. Por outro,
no que tange a educação, tal pluralidade representa um desafio à
educação nacional francesa, ainda conservadora e refratária às
mudanças, adaptações e necessidades sócioculturais de cada uma
das diferentes sociedades que compõem este departamento.
2
Conhecidos também por Boni, nome de um grande chefe guerreiro.
Nota-se que na escala de imigração, as populações haitiana e brasileira são as
mais importantes. O português do Brasil tornou-se uma das línguas correntes
nessa região, sobretudo em área aurífera.
3
22
Mediação: um desafio intercultural...
Nos últimos 20 anos, a escola, outrora presente nas principais
cidades do litoral, ocupadas sobretudo por franceses e crioulos, foi
espandida praticamente sob todo o departamento. Assim chegou a
escola no espaço ameríndio, hmong e negro marrom, num mundo
conceitual outro que o ocidental, este de lógica dita nacional.
O atual texto propõe uma apresentação e um resumo das
oficinas de língua wayana (caribe) que ministrei em Caiena, Guiana
Francesa, entre 2004 e 2005, dentro do Programa de Formação de
Mediadores Bilingües e Culturais. Exponho também a minha opinião
sobre a viabilidade de tal programa quando ele não é pensado junto
com o grupo para o qual ele é concebido4.
Mediação à prova da francesização de culturas autóctonas:
adapção sóciocultural e lingüística na contramão
Concebido por pesquisadores vinculados ao CELIA (CNRSIRD5) e educadores e pedagogos, em concerto com a Academia da
Guiana (representada pelo Rectorat, representação do Ministério da
Educação Nacional, pelo CASNAV6, e pelo IUFM7), uma formação à
mediação entre o programa da educação nacional (para todos, aplicado
sob todo departamento francês) e comunidades plurilíngües e
pluriculturais, visaria à capacitação de jovens locais que seriam
mediadores entre o professor e seu programa educacional e os alunos
de língua não francesa. Este mediador deveria servir de intermediário
entre dois sistemas lingüísticos distintos (o de sua comunidade e o
francês), promulgando somente a instalação do sistema escolar francês.
Que Denise Fajardo e Luis Donisete Grupioni recebam aqui um caloroso
agradecimento pelas trocas de idéias que mantivemos durante a redação deste
texto.
4
CNRS:Centro Nacional de Pesquisa Científica (Centre National de la Recherche
Scientifique) e IRD: Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (Institut de
Recherche pour le Développement).
5
Centres académiques pour la scolarisation des élèves nouvellement arrivés et des enfants du
voyage ‘Centros acadêmicos para a escolarização de alunos recentemente chegados
e de crianças de viagem’.
6
7
Instituto Universitário de Formação de Mestre.
23
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Para tal cargo, o bilingüismo francês-língua vernacular é uma condição
sine qua non. O mediador seria um tipo de «assistência-socorro» ao
professor primário francês. O primeiro deveria participar da
preparação das aulas do segundo, e intervir em língua vernacular nas
explicações dadas em francês. Função que justificaria plenamente o
título de «mediador». Este deveria fazer a ponte entre o professor
francês monolíngüe, trabalhando com alunos não franceses, em uma
área sociolingüisticamente diferente daquela de origem do ‘mestre’.
Houve casos em que essa relação de mediação pouco foi
respeitada pela instituição (direção da escola, ou mesmo pelos
professores). Muitos professores acreditaram que tal mediação poderia
ameaçar seus cargos, para os quais muitos tinham uma formação
universitária (dois anos de faculdade, com um formação no IUFM),
face a um mediador que mal conseguira concluir o 2° grau, sendo que
outros raros obtiveram o diploma! Muitos dos mediadores, sobretudo
os dotados e sensíveis à causa, se viram legados a fazer faxina ou
fotocópias… Isto é um reflexo da falta de esclarecimento dos objetivos
do programa e da função do mediador.
O Programa de mediação: um desafio para um sistema escolar
conservador
Um convênio firmado entre o Laboratório de Ciências Sociais
e de Lingüística do IRD com o Rectorat da Guiana deu início em 1998
ao Programa de Formação de Mediadores Bilingües e Culturais. Tal
programa objetivara paralelamente duas formações: uma dirigida aos
jovens bilingües, originários de seis grupos ameríndios, da sociedade
hmong e de três grupos negros marrons, e uma outra dirigida aos
mestres das escolas dessas áreas culturais. Com o primeiro grupo, este
trabalharia com lingüistas especialistas de cada uma das línguas
vernaculares ali representadas, e com o segundo grupo, objetivara-se
uma orientação à adaptação didática dos saberes distintos, a fim de se
pensar em um material didático apropriado à língua vernacular.
Porém, tal adaptação seguiria um modelo conceitual, pedagógico e
didático a partir do material francês existente e empregado. Posição
metodológica que se revela inflexível à diversidade!
24
Mediação: um desafio intercultural...
A falta de conhecimento antropológico dos formadores
(representantes de alto escalão ou não do mundo ministerial ou
acadêmico/científico) assim como falta de flexibilidade intelectual à
diferença sóciocultural contribui à realização de um trabalho ineficaz.
Já a pesquisa aplicada na área educacional bilingüe falha por não ter
uma equipe de reflexão homogênea em conhecimentos e em experiência
de campo. Tal handicap se segura nos moldes tradicionais de uma
escola nacional para todos. Penetrar no mundo do outro exige muito
tempo de experiência e de conhecimento; como não se tem tempo para
tal aquisição tampouco condições intelecto-emocionais, apoiar-se no
já existente facilita a tarefa, adaptando o modelo nacional com
pinceladas de cores locais a um pseudo-modelo de educação bilingüe.
Tal programa teria tudo para dar certo até mesmo pelo corpo
de lingüistas que dispõe, sendo que alguns deles são cientificamente
de grande calibre. Mas o que pesa intelectualmente de um lado da
balança, desiquilibra-se do outro pela falta de vivência com a realidade
do contato com um outro modo de pensar e de viver. A experiência
pessoal do campo é necessária e complementar com a literatura em
ciências sociais sobre as sociedades minoritárias das Guianas.
Infelizmente, na maior parte dos casos, um mesmo retrato pode ser
pintado: pessoas com boas intenções, porém não capacitadas o
suficiente ou não adaptadas a trabalhar com sociedades Outras.
Dentro deste programa, a língua vernacular pode ser
considerada o item que mais pontos conta. Os especialistas de cada
uma das línguas representadas devem, em princípio, seguir o
programa pré-estabelecido por educadores e pedagogos, tentando
adaptar o que é pensado em francês para o que se deveria pensar na
língua vernacular.
Os grupos minoritários participantes do programa e suas
características lingüísticas
As línguas minoritárias inscritas dentro deste projeto
pertencem à diferentes famílias lingüísticas, a saber:
25
Cadernos de Educação Escolar Indígena
(a) Asiática: Hmong (família miao8-yao)
(b) Crioulo: Aluku e Ndjuka (base lexical inglês)
(c) Ameríndia:
família arauaque: Palikur9
família caribe: Kali’na (ou Galibi) e Wayana10
família tupi-guarani: Teko (ou Emérillon) e
Wayampi.
Cinco dessas línguas são representadas por mais de um
mediador, sendo que o palikur, o teko e o wayampi contam com apenas
um representante.
Situemos rapidamente cada um desses três grupos, o que nos
permitirá ver a diversidade lingüística representada nesse programa.
Originário do Laos, os Hmongs têm uma longa história de
refúgio, escapando a diferentes tipos de perseguição. Em 1975, um
grupo fugido do comunismo chinês e reconhecido enquanto refugiado
pelo Alto Comissariado das Nações Unidas, o governo Francês
acolheu-o, instalando-os em 1977 na Guiana Francesa. Trata-se de
uma língua tonal (com 8 tons) e isolante, tendo as funções gramaticais
marcadas pela ordem das palavras. A ordem preferencial dos
argumentos é S(ujeito) O(bjeto) V(erbo).
Os Negros Marrons, também conhecidos sob o nome de
Buxinengues (Busi nenge)11, são grupos descendentes de escravos que
se revoltaram e escaparam das plantações antes da abolição da
escravidão no Suriname e na Guiana francesa. O aluku e o ndjuka
8
Designa literalmente ‘arroz cru’.
A língua arauaque (ou lokono) não entrou no programa por ter sido considerada
como em fase de extinsão, visto que a nova geração não pratica mais a língua de
origem. Impressão julgada errôneamente, pois de 18 a 22 de setembro de 2006,
realizou-se uma oficina de ‘escrita arauaque’ em Caiena, que contou com a
participação de vários membros dessa sociedade, sobretudo de jovens ávidos
pelo acesso à língua de origem.
9
A existência do grupo apalai (caribe) em território francês não é reconhecida pelo
governo francês.
10
São constituídos de seis grupos étnicos, a saber: os alucus, os ndjucas, os
saramacas, os paramacas, os kwintis e os matawais.
11
26
Mediação: um desafio intercultural...
apresentam dois tons (um alto e outro baixo). O aluku apresenta
alongamento vocálico: fo ‘quatro’ e foo ‘pássaro’. O verbo é precedido
por marcas de valor de aspecto-tempo e de modo.
O palikur (pahikwaki ou parikwaki) é um grupo arauaque
transfronteiriço, vivendo no Brasil e na Guiana Francesa.
Tipologicamente, o verbo recebe a marca de aspecto, mas não a de
tempo. Ele é flexionado somente pelo objeto. O sujeito aparece sob a
forma de um grupo nominal ou de um pronome autônomo.
O kali’na, conhecido em português sob o seu antigo nome,
Galibi, é o maior grupo ameríndio da Guiana Francesa. Ele é falado
em uma extensa faixa litorânea que vai do Brasil até a Venezuela.
Como todas as línguas caribes, o kali’na e o wayana apresentam uma
morfofonologia complexa.
Conhecido também sob o nome de émérillon, teko é o único
grupo ameríndio que se encontra somente na Guiana. Do ponto de
vista fonológico, a língua apresenta uma série de três consoantes
oclusivas prénasais; a sintaxe é do tipo acusativo, com verbos
transitivos e intransitivos.
A língua wayampi, falada no Brasil e na Guiana, apresenta
duas séries de marcas pessoais, sendo que uma dela, prende-se a nomes,
marcando o elemento possuidor e, também, prefixa-se a verbos
marcando ou o sujeito de um verbo intransitivo ou o objeto de um
verbo transitivo. Sintaxe comum com outras línguas da região, como o
emerillon, o kali’na e o wayana.
Membros desses diferentes grupos cohabitam, desde 1998, três
vezes ao ano durante os estágios de formação de uma semana,
realizados em Caiena (fevereiro/março, maio/junho e novembro).
Os Wayanas pertencem à família lingüística caribe, e ocupam
uma vasta zona fronteiriça entre o Brasil, a Guiana Francesa e o
Suriname. No Brasil, descendentes por linha paterna são
aproximadamente 300 indivíduos. Na Guiana francesa, eles são um
pouco menos de mil pessoas e outros 450 vivem no Suriname.
População que não atinge a taxa de 2 000 pessoas.
27
Cadernos de Educação Escolar Indígena
A formação lingüística dos mediadores: o caso do wayana
Participei de dois estágios de formação (1999, 2000), oficina
de língua caribe agrupava kali’na e wayana. Tratamos a morfologia
nominal, a construção do possessivo, a noção espacial e sua expressão
gramatical. Voltei a participar em 2004, responsável pela oficina de
língua wayana, durante a qual, somente esta língua era focalizada.
Vendo que em todos esses anos de experiência, os mediadores wayana
esqueciam o que aprendiam de um ano para outro, resolvi fazer um
trabalho experimental, propondo-lhes um prática diferente: a de
«trabalhar a língua, pensando na língua». Um mesmo tema, no caso
‘o sistema fonológico e a estrutura silábica’, seria tratado durante os
três estágios. Para isso uma metalinguagem intervia a fim de que os
conceitos técnico-lingüísticos pudessem ser discutidos e apreendidos
em wayana.
Se iríamos estudar a língua, pareceu-me necessário discutir
com os participantes o que é uma língua e falar da diversidade
lingüística. Os wayanas vivem numa área plurilingüe, em contato
permanente com línguas caribes (aparai, teko, tiriyo), aluku e sranan
tongo12, crioulo francês, francês e português13. Eles falam fluentemente
o aluku e muitos deles também o sranan tongo. As pessoas mais velhas,
vindas do Brasil, falam bem o português, e os mais jovens o francês.
Situação lingüística que merece uma apresentação sobre as línguas
faladas no mundo, sua repartição e sua tipologia. Ficaram surpresos
ao se darem conta de que outras línguas, faladas em zonas diversas
do globo, apresentam fatos lingüísticos iguais ou próximos a da deles.
Um outro ponto forte do debate foi o de perceberem que a relação entre
a palavra e a realidade designada é arbitrária, que o elo entre o
significante e o significado é cultural14. Termos relativos ao sistema de
12
Sranan tongo quer dizer ‘língua do Suriname’. Nesse crioulo à base inglêsa
reconhece-se o termo tongue ‘língua’ em inglês. Sranan significa Suriname.
Os wayanas estão em contato permanente com brasileiros garimpeiros seja no
garimpo, seja em Maripasoula (a cidade da região), seja no comércio para garimpo
estabelecido próximo às aldeias.
13
No âmbito da apresentação sobre a diversidade lingüística, fiz uma breve
introdução à lingüística.
14
28
Mediação: um desafio intercultural...
parentesco de vários grupos (sociedades da África, da América e do
Pacífico) serviram como ilustração.
A oficina wayana distingüia-se das demais não apenas no
programa de trabalho diferenciado, mas também pela carga horária
alterada. Pela manhã, a oficina de língua compartilhava com as demais
atividades do programa geral e pela tarde o trabalho concentrava-se
essencialmente na língua. Isto representava uma carga horária
importante consagrada ao estudo da língua15.
As oficinas de língua wayana
Três oficinas (novembro de 2004, março e junho de 2005)
privilegiaram um ‘despertar da língua vernacular para entender a
escrita do wayana’. Em colaboração com os quatros participantes
(Akama, Alexina, Kalanki e Louise), optamos por um trabalho de
‘reflexão da língua de origem’, de maneira a estudar o sistema
fonológico, as modificações fonéticas e suas regras de realização. O
objetivo de tal opção era a compreensão da grafia wayana e as regras
a serem adotadas, sobretudo àquelas referentes a certa anotações
fonéticas. Esta grafia, que segue o sistema fonológico, apresenta a letra
«h» que transcreve todas as realizações fonéticas modificando,
segundo o contexto de realização, o radical lexical. O fato de ter
abordado alguns dos aspectos da morfofonologia, que explicam os
fenômenos estudados, deu a possibilidade aos mediadores de
encontrarem o radical das palavras analizadas e de compreenderem
as mudanças fonéticas produzidas na fronteira morfêmica e/ou
fronteira lexêmica. Após discussões, os mediadores escolheram a letra
«h» somente quando este segmento pertence ao radical da palavra
como em: ahpe ‘mentira’, ahnep ‘amendoim’, tohwi ‘mandarina’, tohme
‘por que’, são alguns exemplos. O trabalho sobre a fonologia foi
fundamental para a compreensão da grafia a ser empregada no
material wayana.
Tal diferenciação teve ecos junto aos mediadores de outras sociedades que
pediram um mesmo tempo de trabalho com a língua deles nos estágios seguintes.
15
29
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Uma versão do mito fundador da relação de paz entre os
Aparais e os Wayanas, o Tulupele (ou ëlukë ‘lagarta’), conhecido como
o ‘mito da cobra grande’, serviu-nos de material de trabalho. A partir
deste texto, os mediadores puderam encontrar os diferentes segmentos
fônicos (consoantes e vogais) do wayana e algumas das realizações
morfofonológicas que lhes permitiram entender as regras de realização
das mudanças fonéticas decorrentes.
Paralelamente a este trabalho sobre a (morfo)fonologia do
wayana, este texto permitiu uma discussão sobre o conhecimento
coletivo da narrativa mítica e também de iniciar um trabalho sobre a
sintaxe de língua, como as palavras absolutas e as palavras relativas;
as construções verbalizadas também foram objeto de um primeiro
contato com o funcionamento da língua.
Como exercício de escrita, os mediadores produziram três
textos, cujos temas estavam ligados ao texto estudado. Em seguida,
corrigimos coletivamente a produção escrita. Este trabalho resultou
num debate interessante no qual discutimos:
- O estilo da escrita wayana: eliminar certos termos produtivos
no oral, como moloinë ‘então’, que acabam deixando o texto pesado
pelo emprego repetido;
- Certos tipos de categorização, como a discussão que ocorreu
sobre como classificar o tucano kijapok. Trataria-se de um pássaro
(tolopït) ou não (ikaimo ‘caça [de alguém]’)? Para alguns deles, não se
trata de um pássaro por ser comestível, para outros seria um pássaro
por botar ovos!;
- Como pontuar em wayana. A partir dessa discussão os
mediadores propuseram de traduzir em wayana a terminologia da
pontuação do francês.
Essas oficinas de língua eram intercaladas com atividades
previstas no programa. Uma delas, dentro do âmbito de atividades
coletivas, objetivava-se em mostrar as diferentes formas de saudações
na língua, o que permitiu mostrar sobretudo aos professores franceses
que nessas línguas não há termos para ‘bom dia, boa tarde, boa noite’,
ou ainda ‘obrigado’, mas que tais noções são expressas de outra forma.
Cada um dos grupos deveria apresentar um tipo de esquete perante os
professores franceses e organizadores do programa. Os Wayanas se
30
Mediação: um desafio intercultural...
recusam e receberam o meu apoio. Alguns dos organizadores se
manifestaram por não entender tal recusa e fizeram com que eles
apresentassem um mínimo de exemplos. Escolhemos assim os mais
elementares. Ora, em uma situação que aos nossos olhos parece simples,
não quer dizer que o seja para outros. Os Wayanas ao expressarem-se
em língua vernacular seguem regras de conduta que não se
generalizam a um simples: «oi, tudo bem?» ou ainda, «bom dia, como
vai você?». As saudações variam segundo a faixa etária, segundo o
grau de relação familiar (consangüíneo e/ou por aliança). Eles não
estavam querendo revelar esses níveis sóciolingüísticos por dizerem
que os brancos, de qualquer forma, nada entendem e que quando acham
que entendem algo, entendem mal. De todas as formas, diziam, os
brancos jamais farão o empenho de empregar corretamente tais normas.
Tal posição mostra que a diversidade cultural se faz presente nesta
área, mas que ela – pelo jeito – passa desapercebida e de forma
indiferente por membros da sociedade nacional.
O método de leitura natural, conceitualizada por Célestin
Freinet (em 1925) também foi exposto pelos organizadores, como opção
de interação entre o indivíduo e o grupo. Este método concentra-se
essencialmente na produção verbal da criança, que expressa o seu
meio ambiente. Assim, o professor coleta enunciados realizados pela
criança e a partir dele, desenvolve textos. Tal método, que dispensa os
manuais, permite ao professor trabalhar a expressão corporal e social
da criança, e do ponto de vista lingüístico a sílaba, por exemplo.
Mas como aplicar tal método, se o ‘mediador’ não aprendeu
nem a pensar na sua língua nem a entender o funcionamento desta?
Consequentemente, não sabe o que é uma sílaba. Como poderá em
língua vernacular aplicar tal método com as crianças, para que estas
possam desenvolver o aprendizado da leitura?
Essas poucas pinceladas mostram que apesar da boa vontade
presente nas atitudes dos organizadores; a questão essencial que é a
diversidade cultural e lingüística, com as quais eles se confrontam, é
vista somente sob um ângulo. Isto é, do ponto do vista do francês.
Estão conscientes do trabalho delicado que têm em mãos. O diálogo
com homólogos dos países latinoamericanos, que confrontam
problemas semelhantes, seria uma via de troca de conhecimentos que
poderia fortalecer argumentos plausíveis para que o programa tentasse
31
Cadernos de Educação Escolar Indígena
ser ouvido pelo sistema ministerial. Mas, parece que esse é o modo de
exercer a educação em todo os departamentos e territórios
ultramarinhos, todos caracterizados pela diversidade cultural e
lingüística. Pensam em trocar idéias com homólogos franco-franceses
da Nova Caledônia, no Pacífico, esquecendo que a diversidade cultural
e lingüística do Pacífico apresenta outra realidade que aquela da
Guiana, cuja realidade é areal com os países amazônicos, mesmo que
as sociedades nacionais latinas ou não sejam distintas. Esquecem de
ver que a escola é um instrumento externo ao mundo indígena e já que
ela, nesse período moderno da nossa sociedade, deve também estar
presente no mundo do Outro, que ao menos uma sensibilidade à
diferença seja aflorada. No Brasil, graças em parte às ações e
implicações de antropólogos, a escola indígena tomou um rumo
particular, voltado para o lado de dentro da sociedade indígena. Na
Guiana, infelizmente, poucos são os antropólogos e mesmo lingüistas
que estão de lado a lado com o grupo com o qual trabalham. Esse
‘mediador’ dessas sociedades se faz ausente, num território que é um
campo aberto a todas as disciplinas das ciências sociais e humanas. A
presença ativa deles seria um caminho fortalecedor ao diálogo com o
sistema educacional a fim de tentar oferecer novas opções, até mesmo
por respeito a essa diversidade reivindicada como rica em cultura e
em língua.
Usando a metalinguagem para apreender o funcionamento da
língua
Para que os mediadores pudessem entender o funcionamento
da língua de origem e entender um pouco a fala técnica dos ‘técnicos
da educação’, começamos a estudar os segmentos fônicos da língua.
As vogais (wajele tom) e as consoantes (konson tom), assim como todos
os ambientes de realização, foram analizados paralelamente com a
terminologia técnica. Para isso, o uso de uma metalinguagem (omi
isahkaimëtop) foi necessária a fim de que os locutores nativos pudessem
conceitualizar em suas línguas uma maneira de expressar em língua
sobre a língua. Das três oficinas, vários neologismos foram propostos,
o que permitiria ao locutor nativo se referir a uma linguagem técnica
utilizando a sua língua materna.
32
Mediação: um desafio intercultural...
O alfabeto wayana segue o sistema fonológico da língua,
estudado em 1972 por Walter Jakson16, com uma letra adicional, o agá,
h, para marcar algumas realizações fonéticas. O primeiro exercício de
metalinguagem que fizemos foi justamente com o termo alfabeto. Como
é que os mediadores apreendem em língua vernacular este termo? Eles
jamais haviam pensado nisso. Então, fizemos uma rápida
apresentação da história da escrita, passando pela dos fenícios, a dos
egípcios, dos chineses e a dos maias. Mostramos alguns exemplos da
escrita do francês medieval contrapondo-a a moderna, que mantém
muitas formas arcáicas. Após discussão, sugeriram duas construções
para designar alfabeto; os dois apresentam um mesmo radical verbal ïpka- ‘ler’:
plural).
a) tïtïpkahamo > t-ït-ïpka-hamo lit. ‘lerem-se’ (3pessoa-meio-lerb) tïtïpkahe sitïpkatëi lit. ‘o que se é lido, vamos lê-lo’
O termo atribuído à ‘escrita’ segue uma constante nas
diferentes línguas ameríndias; toma-se por base o radical lexical -milikque designa ‘grafismo’ tïmilikhem. Por extensão semântica, este termo
designará igualmente ‘exercício’. Porém este recebeu duas opções:
tïmilikhem e tïhem. O primeiro seria empregado em exercícios que
requeressem uma redação (letaksio17, ou ainda tïpohnephe18 tïmikhem).
O segundo seria empregado nos exercícios ligados à atividades lúdicas
e/ou coletivas. O exercício abaixo requer que a criança encontre nas
palavras fornecidas o som da letra ‘w’ e que ela a pinte no círculo
correspondente.
Anoptëk manale hapon kom «w» tïpanakmai ëjahe aptau (Pinte os
círculos correspondentes ao som ‘w’):
mawu
ëwutë
wewe
meu
||||
|||||
||||
| |
OOOO
O O
OOOO OOOOO
16
As regras de realização deste sistema foram elaboradas em seguida por Camargo,
1996. Tavares (2005) também apresenta um estudo sobre a fonologia do wayana.
17
Empréstimo do francês ‘rédaction’.
18
Significa literalmente ‘refletir sobre a escrita’.
33
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Ora, se usamos palavras da linguagem geométrica, deveríamos
encontrar equivalentes em wayana, assim os participantes
propuseram a seguinte léxico para figuras geométricas:
quadrado
manale hapon
redondo
mele man
retangular
tïpapakem
forma de batata waja man
Para ‘linha reta’ ou ‘travessão’ o neologismo encontrado foi
kupi man (‘comprido’)
Para as nossas atividades o conceito de exercício era
necessário, pois optamos por propor exercícios de leitura ou de jogos,
concebidos na língua. Se pensarmos em jogos, uma proposta de palavras
cruzadas poderia interessar as crianças, que em aprendizagem da
leitura, poderiam encaixar letras ou sílabas compondo palavras curtas.
Para se ter um termo que designa ‘palavras cruzadas’, a pergunta feita
aos participantes foi: «O que é que ‘tal jogo’ evoca para vocês?» Após
discussão em grupo, propuseram omi wëtop lit. ‘a caçada de palavras’.
Devo aqui salientar, que nas aldeias wayanas, muitos jovens têm como
lazer, fazer ‘caça palavras’. Neste caso, de uma eventual aplicação em
um manual escolar em wayana, o omi wëtop designaria tanto ‘caçapalavras’ como ‘palavras cruzadas’ ou ainda ‘preenche-palavras’.
Tais jogos são, muitas vezes, indicados por flechas em diferentes
direções, estas não deixaram de receber designações em wayana, a
saber:
flecha para cima 
hapë man
flecha para a direita 
hapo man
flecha para a esquerda 
hapo man pëweinano
flecha para baixo 
lomonano
Um desses exercícios seria um tipo de liprograma, que consiste
em omitir a utilização de uma das letras do alfabeto. A partir das
palavras fornecidas que estão incompletas, o aluno deveria formar
pares mínimos (konson, wajele hakëne tëweihamo), preenchendo o quadro
34
Mediação: um desafio intercultural...
abaixo com a letra, vogal ou consoante, que falta. A resposta está em
letra minúscula, indicada em itálico19.
k
a
M
o
h
O
L
O
L
O
L
P
O
i
L
a
j
M
O
P
U
P
U
t
A
L
A
L
O
e
L
U
W
A
i
S
i
A
m
U
W
o
e
K
ï
S
u
S
u
T
U
n
A
T
Ï
i
Para abordar o sistema fonológico, usamos como material de
base um texto transcrito em língua wayana, como mencionado acima.
Em seguida, cada participante deveria produzir um texto, aplicando
as regras de realização e se possível ilustrá-lo, pois em um manual de
aprendizagem a iconografia é um instrumento que se faz presente.
Uma vez mais, confrontamo-nos a mesma pergunta «O que evoca
apalavra ‘texto’ para um wayana?» Como resposta, os participantes
fizeram três propostas. A construção tïtïpkahame, empregada para
alfabeto e escrita, designaria ‘texto´ de forma genérica. Dois outros
termos distingüiriam o texto com ou sem iconografia: (a) imilikutpïtop
‘texto sem iconografia’, (b) tënehem ‘texto com iconografia’ (lit. ‘que se
tem visão’). A escolha de tais radicais lexicais -milik- ‘grafismo’ e -ene‘visão’ não me deixou indiferente à percepção que expressam. O texto
sem iconografia poderia ser visto como uma continuidade de traços,
ao passo que aquele com iconografia chamaria a atenção à visão. Uma
questão surgia sobre o ‘desenho’: ele não seria uma forma de traços?
Correspondência em português das palavras empregadas hololo, kololo ‘banco’,
tuma ‘molho’, tuna ‘água’, eluwa ‘homem’, aluwa ‘espelho’, amo ‘mão dele’, omo ‘mão’,
tala ‘oi (saudação entre pessoas de mesma idade)’, jala ‘jirau’, ekï ‘sua cria doméstica’, okï
‘sua bebida’, susu ‘peito, tórax’, sisi ‘sol’, pupu ‘pé’, pipi ‘irmão mais velho ou esposo
(termo vocativo).
19
35
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Pelo jeito não, ao menos se seguirmos a expressão dos locutores
wayanas, participantes destas oficinas. Parece que a compreensão do
texto se efetuaria por percepções distintas: a leitura de um texto
ilustrado seria guiada pela percepção visual oferecidos pelos
‘desenhos’, ao passo que a leitura de um texto comum, ao contrário,
não seria mais o visual o ponto culminante da percepção. Tal leitura
exigiria do leitor uma compreensão abstrata dos traços ali
representados. Tal distinção poderia levar-nos a refletir sobre a
composição de um texto para um wayana: «O que se busca em um
texto para a apredizagem?» Uma leitura que faria apelo à compreensão
de texto, exigindo do leitor uma abstração, ou uma leitura, ao menos
num primeiro momento, ilustrativa, em que seria guiada por desenhos?
Talvez para aprender a compor um texto, a segunda opção seria mais
prática e didática, o que mostraria que uma criança wayana estaria
mais próxima à composição de imagens para formar o seu texto, a
partir do qual ela poderia entrar no mundo dos traços gráficos, ou seja
da escrita. Mas, ao expressar essa interpretação, um dos participantes
reagiu fortemente, argumentando justamente o contrário, dizendo que
na sociedade wayana, as pessoas começam a entrar no mundo do
grafismo a partir dos dez anos, na pré-adolescência. E isto, antigamente,
visto que poucos praticam a arte do grafismo (corporal ou material
nas panelas de barro, por exemplo), requeria tempo para o aprendizado.
O interessante na discussão foi a idéia expressa pelo termo -ene- ‘visão’,
pois o grupo apreende o semantismo deste termo como maneira bem
mais pragmática que a minha, utilizando um ponto de vista
semiológico. Para o participante que me contradisse, a visão evocada
no termo refere-se ao material visual próximo da criança, ao que pode
ser palpável. Assim, o texto, ao seu ver, seria primeiro oral, explorando
situações extralingüísticas como a descrição de uma ida ao roçado,
recorrendo a objetos de uso em tal dia (mudas, instrumentos, cantos
para que a muda cresça bem). Para ele, este seria o significado expresso
no termo ‘visão’, no qual não se faz apelo à abstração, mas sim ao
concreto20.
* * *
Não tivemos tempo de discutir a fundo essa questão, que pareceu-me
fundamental para a elaboração de material didático.
20
36
Mediação: um desafio intercultural...
Visto que a meta era estudar a fonologia e a sílaba do wayana,
deixamos de lado toda essa discussão interessante sobre a
representação cognitiva de um wayana sobre um texto com ou sem
iconografia. Continuamos a usar uma metalinguagem para termos
necessários na produção de um texto, sobretudo se a leitura fosse fazer
parte do programa. Compuseram uma lista de termos de pontuação
de uso em um texto. A onomatopéia, tik, para designar ponto, foi muito
apreciada pelos participantes que se sentiram orgulhosos de estarem
propondo termos que lhes vinham naturalmente.
aspas
« », “ ” tëtapuhem
travessão
—
wïp (tïkai)
dois pontos
:
hakëne tik
ponto de exclamação
!
tupjan i (lit. ‘« i » invertido’)
ponto de interrogação
?
pana tik (lit. ‘ponta da orelha);
ponto de suspensão
…
tik tik tik
ponto e vírgula
;
tik wajak
ponto final
.
tik ; enahtop ; maka eitop21
trema
¨
tik tik
vírgula
,
wajak; imilikutpï petukwatop
Para a sílaba (silap), abordamos os oito diferentes tipos silábicos
do wayana:
V
i.po ‘ser aquático’ VC
s.kë ‘verme’
CV
lo ‘terra’
CVV
mëi ‘ele’
CVC
i.pok ‘bem’
CCV
më.klë ‘ele (do qual falamos)’
CCVV o.klai ‘coruja’
21
CCVC e.klot ‘nuvem’
Expressão utilizada nas narrativas, sobretudo para indicar o fim de uma idéia.
37
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Logo de início, os mediadores disseram que se tivessem de
pensar em um material didático para o aprendizado da leitura, eles
deveriam optar por palavras formadas por sílabas simples, ou seja V,
CV. Em seguida, compuseram o alfabeto da língua usando palavras
formadas por essas sílabas. Para as vogais, por exemplo, decidiram
representá-las em posição inicial absoluta de palavra de duas sílabas :
amo ‘moço’ (vocativo), ëti ‘o que (é) ?’, eku ‘flor’, ïpï ‘montanha’, itu
‘mata’, omi ‘palavra’, ulu ‘mandioca’. O mesmo fizeram para as 10
consoantes do alfabeto wayana.
Todas as posições ocupadas por vogais e consoantes em uma
palavra foram vistas. Devo ainda dizer que cada tópico era
acompanhado de exercícios para que resolvessem pensando na língua
vernacular.
A fonologia, interpretada por ëhepatop tïpanakmahem lit.
‘aprendizado do que se escuta’, foi vista de forma global : as vogais, as
consoantes e as diferentes regras de realização. Tal estudo foi
fundamental para se entender as regras de escrita, visto justamente
que se trata de uma língua de morfofonologia complexa.
O alfabeto wayana: restrições à escrita
O contato entre povos ameríndios das Guianas com os Negros
marrons (meikolo) é antigo, data de pelo menos 200 anos (Hurault).
Estes serviam de intermediários entre os europeus e descentes que
ansiavam por mercadoria dos “Indios”. A troca era material
industrializado (machado, faca, miçanga), contra cachorro adestrado
para caça, fio de algodão, rede, comida, etc… Desse contato, palavras
ficaram e muitas. O contato com o grupo aluku, mas também com
falantes do sranan tongo (língua nacional do Suriname) é constante, e
o número de palavras originárias dessas línguas crioulas à base
inglesa no wayana é importante, sobretudo palavras que expressam
conceitos recentes (dias da semana, meses, números, bens
manufaturados). A língua dispõe de empréstimos (tïwëlën omitom) não
apenas oriundos dos crioulos, mas também de outras línguas
indígenas (wayampi, apalai, tiriyo), como também do francês (para o
wayana da Guiana) e do português (para o wayana do Brasil).
38
Mediação: um desafio intercultural...
Junto com os mediadores, fizemos uma pequena seção sobre
as palavras do wayana que foram emprestadas de outras línguas, a
fim de verificar a realização fônica delas, para poder adequar o alfabeto
da língua.
Os participantes fizeram um rápido levantamento de palavras
que sabiam pertencer às outras línguas, como hului ‘surubim’ (do
wayãpi), maita ‘cabana construída para os participantes do ritual de
passagem, chamado maraké (tiriyó), mato ‘martelo’ (francês).
Surpreenderam ao saber que simisa ‘roupa, tanga’ e alakapuha
‘espingarda’ vêm do espanhol. No falar moderno do wayana, essas
palavras estão perfeitamente adaptadas ao sistema fonológico da
língua. Mas palavras recentes, às emprestadas das línguas crioulas
dos Negros Marrons ou ao francês, ainda não se adaptaram à fonologia
do wayana. Elas apresentam segmentos fônicos sonoros, como “b”,
“d”, “g”, “f”, não existentes em wayana. Se elas são pronunciadas
pela quase totalidade dos membros dessa sociedade caribe, seria
natural que tais segmentos entrassem no alfabeto da língua. Pois, os
mediadores recusaram determinantemente essa proposta,
argumentando que “essas palavras são para serem ditas, não para
serem escritas”. Daí, perguntei se tiverem de fazer uma listinha de
compras e que tivessem de comprar café (kofi), como é que iriam anotar
o ‘café’? Responderam tranquilamente que nunca fazem lista de
compras. Tudo bem, eles têm razão. Nunca os vi fazer uma lista de
compras. Mas, é incrível como não conseguem fazer uma abstração e
imaginar um contexto metalingüístico. No final, disseram: já temos
um alfabeto22 e não vamos pôr outras letras… Eles têm razão, de forma
inconsciente, até um certo ponto, porque historicamente as palavras
de empréstimos conhecem uma fase em que elas chegam a uma
determinada língua e são pronunciadas de forma mais próxima à sua
realização de origem. Com o passar do tempo, os sons vão se adaptando
até se encaixarem ao sistema fonológico. Só que tal fase é longa, e não
sei quanto tempo o wayana vai precisar esperar para escrever,
provavelmente, kopi para ‘café’!23
22
O alfabeto wayana é composto por 17 letras, 16 das quais representam fonemas :
a, e, ë, h, i, ï, j, k, l, m, n, o, p, s, t, u, w.
23
A partir de 2007, oficinas de dicionarização serão organizadas in loco com uma
equipe de wayanas. Vamos ver como é que esse grupo, que não tem nenhuma
ligação com a educação nacional, vai reagir perante esta situação de empréstimos
lingüísticos.
39
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Somente a primeira fase destas oficinas foi realizada. A
proposta era a de tentar pensar em wayana, com wayanas e para os
wayanas. Como resultado, notamos que na terceira oficina, todos os
mediadores estavam escrevendo a língua empregando as regras de
realização e sabiam explicar o porque das tais realizações. Isso foi
uma vitória, pois, de um lado, uma das responsabilidades desse grupo
é a de alfabetizar em wayana, e de outro, conseguimos alcançar o
objetivo desta primeira fase. Não pude continuar a monitorar esse
grupo, que, infelizmente, se viu obrigado a voltar à formação junto
com os Kali’na!
Se o objetivo de tal programa é a escola e a produção de material
didático, a proposta seria de pensar juntamente com mediadores a
maneira mais apropriada para se pensar uma escola adequada aos
moldes sócioculturais e lingüísticos do wayana. Tal pensamento
deveria ser em um primeiro momento junto com os mediadores e em
língua wayana, na qual eles se expressam de forma mais natural, na
qual as idéias se agenciam e se organizam de forma espontâneamente.
Cada vez que devem pensar em francês, sobre um assunto que lhes é
novo, as idéias saem sempre pela culatra. Isto é uma pena, pois passam
por pessoas que não sabem expressar o que querem! Nós, formadores,
exigimos muito desses mediadores que mal sabem qual é o papel que
eles devem desempenhar junto à escola, junto ao professor francês,
junto a nós formadores. Alguns expressam uma real preocupação
quanto a este papel. Outros não têm a menor idéia de que deveriam se
preocupar quanto a função sócio-educativa que deveriam exercer junto
à escola. Com isso, não conseguem nem dizer se, o que fazem ou que
são submetidos a fazer, é bom ou não. O sistema educacional, de um
lado, e o programa de formação, de outro, parece-me estarem na
contramão numa região pluricultural e plurilingüística, por se
recusarem a pensar a escola de outra forma, ou simplesmente de
acharem que a escola é uma solução de vida para essas sociedades. Se
será uma alternativa, eu não tenho muita certeza. Mas a imposição de
uma escola rígida fora dos conceitos pragmáticos da sociedade na
qual ela se impõe, com certeza é o caminho natural que outros grupos,
notadamente em solo francês, como com o bretão e o basco, por exemplo,
conheceram: é a via da francesização para que uma única língua, uma
única lógica seja possível em uma única república.
40
Mediação: um desafio intercultural...
Bibliografia
CAMARGO, E. Modernidade Mascarada.Ricardo Beto; Ricardo, Fany
(ed.). Povos Indígenas no Brasil (2001-2005), São Paulo: ISA, (2006), p.
384-386.
CAMARGO, E. Languages Situation : French Guiana.Brown, K.(ed.).
Encyclopedia of Language and Linguistics, 2.ed. Oxford : Elsevier,2006.
CAMARGO, E. Wajana omi miktop. Hakëne omi ukukne ëhepatop
panpila. Dossier de Formation des Médiateurs Bilingues Wayanas,
Relatório de atividades, CELIA(CNRS/IRD) – CASNAV – RECTORAT,
79p, (2005)
CAMARGO, E. Wayana. Langues de France Cerquiglini, B. (dir), Paris,
PUF, 281-283pp, (2003)
CAMARGO, E. Aspects de la phonologie du wayana. Amerindia 21,
Paris, AEA, pp. 115-136, (1996).
CERQUIGLINI, B. (dir). Les langues de France, Paris, PUF, (2003).
GOURY, L. (ed), 2001-02. Langues de Guyane, Amerindia 26/27, Paris,
AEA.
HURAULT, j.-m.Les Indiens Wayana de la Guyane Française. Structure
sociale e coutume familiale. Editions de l’ORSTOM, (1968).
JAKSON, W. A Wayana grammar. Languages of the Guianas Grimes, J. E
(ed), 47-77pp. Summer Institute of Linguistics, (1972).
PATTE, M.-Fr. Écrire la langue arawak, Relatório de atividades, 35
páginas, (2006).
41
Desafios e P
erspectiv
as na
Perspectiv
erspectivas
Educação Superior Indígena
Elias Januário*
Fernando Selleri Silva**
Apresentação
Nos últimos anos, vários países da América Latina têm
colocado em prática programas inovadores para a formação
intercultural de indígenas, perspectivados no reconhecimento da
diversidade e no fortalecimento das identidades indígenas.
No Brasil, o avanço alcançado no campo da legislação tem
possibilitado a implementação de políticas públicas de formação
escolar que defende o exercício da cidadania e oportuniza o
protagonismo dos índios brasileiros.
A autonomia dos povos indígenas começa a se tornar realidade
pelo viés da formação escolar, que permite o entendimento dos códigos
da sociedade envolvente e a ocupação dos espaços nas esferas do
poder federal, estadual e municipal como os Conselhos e Cargo de
Gestão.
* Dr. em Educação pela UFSCar, Docente do Deptº. de História e do PPGCA da
UNEMAT. Coordenador Geral do PROESI.
** Docente do Deptº. de Ciência da Computação da UNEMAT, em Barra do
Bugres. Coordenador Administrativo do PROESI.
43
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Esta comunicação é resultado das reflexões realizadas no
contexto da participação em seminários, congressos, etapas de
planejamento e discussões acerca da formação de professores em nível
superior em diversos estados brasileiros.
Tem como propósito reunir os principais aspectos que
possibilitem visualizar e compreender os desafios a serem enfrentados
na implementação e consolidação da formação intercultural em nível
superior para os povos indígenas, bem como apontar as perspectivas
e os avanços que se vislumbram nesse cenário do ensino superior
para índios.
Trata-se da sistematização de pontos recorrentes nas falas de
cursistas e lideranças indígenas, docentes de universidades,
consultores, gestores da área da educação escolar indígena, políticos,
intelectuais, indigenistas, enfim, de pessoas que de alguma forma tem
debatido e problematizado o acesso de índios aos cursos universitários.
Desafios
O Encontro de Universidades Interculturais e povos indígenas
da América Latina realizado no México (2007), promovido pelo
Programa Universitário Nacional e Multicultural (PUMC) da
Universidade Autônoma do México (UNAM), em parceria com o
PROEIB – Andes, para debater com os países da América Latina e
Caribe a formação superior para povos indígenas teve como foco a
multiculturalidade presentes nos países latinos e a necessidade que
seja problematizado com a sociedade não-índia essa diversidade.
Discutiu-se a necessidade de criar estratégias no âmbito das
Instituições de Ensino Superior para reverter esse quadro, que reflete
na dificuldade de acesso dos indígenas aos cursos superiores e na
consolidação de programas específicos para índios.
No Brasil, vários encontros realizados em diferentes estados
têm problematizado o acesso e a permanência de indígenas nos cursos
superiores (ver lista na Bibliografia), revelando uma expansão da
discussão acerca da formação intercultural nos diferentes níveis da
educação escolar. Desses seminários, reuniões, congressos e
44
Desafios e perspectivas na educação superior indígena
conferências alguns pontos convergem quando se trata dos desafios a
serem enfrentados na formação em nível superior. São esses pontos
que destaco a seguir:
- Existe um discurso generalizado acerca da importância da
educação intercultural, diferenciada e bilíngue, esse discurso tem
pouco respaldo na prática cotidiana das escolas indígenas, onde o
processo de ensino e aprendizagem continua em grande escala calcado
na reprodução do modelo do não-índio. Mesmo que se observe um
discurso politicamente correto na academia e nos órgãos oficiais sobre
o modelo de formação escolar para os índios, a sua efetivação na prática
tem demonstrado avanços em pequenas proporções. Superar essa
realidade é um desafio.
- Apesar da existência de um quadro de formadores nãoindígena qualificado academicamente, percebe-se dos formadores uma
dificuldade em “escutar” os povos indígenas, ou seja, dar visibilidade
a fala dos índios na formação, no processo de ensino e aprendizagem,
na construção de conhecimentos. Essa prática é resultado de uma
formação ocidental que prima pelo etnocentrismo, dificultando o
diálogo. Por outro lado, os índios têm limitações em se posicionarem,
em questionarem os docentes, não se sentem seguros para contestar. O
resultado desse quadro é a dificuldade de uma educação escolar
dialógica, que possibilite o exercício da interculturalidade como
referencial teórico e prático.
- Outro desafio é propor, no contexto dos programas de
formação, ações que conduzam ao aprimoramento e consolidação de
políticas lingüísticas e sócio-ambientais, como forma de garantir aos
povos indígenas uma flexibilização na estrutura do Estado que ainda
se mostra rígida. A formulação dessas políticas deve abranger a
qualificação do quadro de recursos humanos das Secretarias estaduais
e municipais, prioritariamente os setores envolvidos com a demanda
indígena.
- Ainda nos dias atuais, uma parcela considerável de
professores indígenas e suas comunidades desconhecem o arcabouço
jurídico que garantem a eles os direitos de cidadania. De modo
semelhante acontece com os gestores e técnicos da união, estados e
municípios, que obrigatoriamente deveriam conhecer as leis, mas
desconhecem. É necessário criar mecanismo para que todos tenham
45
Cadernos de Educação Escolar Indígena
acesso e entendam as leis referentes aos direitos dos povos indígenas.
Esse é mais um dos grandes desafios da formação superior indígena.
- Oportunizar que os índios já qualificados pelas IES, integrem
os quadros de docentes e gestores nos cursos de formação em nível
médio e superior que estão sendo ofertados pelas universidades e
centros de formação, configura-se em um enorme desafio. Essa prática
irá fortalecer a tão propalada participação dos povos indígenas nas
tomadas de decisões, que hoje se encontra muito na retórica, face à
prática hierárquica, tradicional e burocrática do sistema de ensino no
Brasil. Permanece como desafio a participação efetiva dos povos
indígenas na gestão educacional e no controle social da comunidade
sobre o processo pedagógico de escolarização de seus pares.
- Estabelecer programas de intercâmbio com países da América
Latina, que têm maior experiência com a presença de povos indígenas
nos diferentes cursos das IES torna-se imprescindível. As
universidades brasileiras mantêm um distanciamento das IES dos
países latinos, que nos últimos anos avançaram consideravelmente
nas reflexões acerca do acesso e permanências de indígenas em cursos
superiores. O inverso também é verdadeiro, pouco se sabe sobre os
projetos e programas desenvolvidos no Brasil pelos profissionais
envolvidos na educação escolar indígena. Dessa forma, o intercâmbio
de experiências entre as IES da América Latina mostra-se como um
processo a ser consolidado e de fundamental importância para o
fortalecimento de políticas públicas voltadas aos povos indígenas do
continente americano.
- A criação de dotações orçamentárias específicas para a
educação escolar indígena, com a alocação de recursos próprios para
a formação em nível superior, como uma política pública do Ministério
da Educação deve der tratado como prioridade na lista de desafios. O
modelo de editais que vem sendo usado no Brasil não garante uma
política, mas apenas ações pontuais. Paralelo a isso, também é
importante a consolidação de parcerias para a implementação
(financiamento e execução) de propostas de formação em nível superior
(MEC, SEDUC, FUNAI, SECITEC, CONSELHOS, ONGs,
SECRETARIAS MUNICIPAIS e ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS), além
das próprias universidade estarem incluindo em seu PPA, recursos
destinados aos cursos de licenciatura e bacharelado indígenas.
46
Desafios e perspectivas na educação superior indígena
- Estabelecer nos currículos dos cursos de formação de
professores em nível superior, discussões sobre as políticas
educacionais universalizantes (EJA, Educação Infantil, Ensino
Profissionalizante), elaboração de Projetos Políticos Pedagógicos (PPP)
para as escolas indígenas, além de fortalecer a discussão acerca do
processo de alfabetização em língua portuguesa e materna para as
crianças indígenas, são pontos da área pedagógica que ainda se
mostram desafios a serem conquistados.
Esses são alguns dos desafios que consideramos emergenciais
de serem pensados e problematizados, lembrando que os desafios se
modificam com o decorrer do processo, na medida em que as ações
vão sendo desenvolvidas. A cada etapa novos desafios surgem, nos
fazendo repensar e rediscutir a trajetória.
Avanços e perspectivas
Mesmo diante dos desafios assinalados nos itens anteriores,
é imperativo reconhecer que houve avanços na área da formação
escolar dos povos indígenas, em diferentes níveis, que aponta para
algumas perspectivas que destacaremos a seguir:
- Temos uma legislação consistente, avançada e de vanguarda,
que defende os direitos dos povos indígenas e, que se colocada em
prática numa amplitude maior e com mecanismos mais eficientes, pode
romper com a lentidão que se detecta no contexto da educação escolar
indígena.
- O fortalecimento do tripé escola-comunidade-professor, pode
possibilitar a organização de projetos de interesse coletivo na área da
sustentabilidade econômica, da educação básica, do entendimento da
legislação (saúde, educação e terra), entre outros.
- Vislumbram-se possibilidades de construção de projetos
políticos pedagógicos que levem em consideração as especificidades
culturais (tempo e espaço) de cada etnia, valorizando os
conhecimentos tradicionais, a língua materna, a discussão sistêmica
da escolarização e a produção de materiais didáticos nas línguas
indígenas.
47
Cadernos de Educação Escolar Indígena
- O acesso, permanência e a conclusão da formação de índios
em nível superior, abre canais de diálogos interculturais com a
sociedade envolvente, colocando em pauta a discussão da
revitalização de práticas e valores indígenas, possibilitando que jovens
e crianças tenham acesso a escolarização em suas próprias aldeias e
que a pesquisa faça parte do processo de ensino e aprendizagem da
educação escolar indígena.
- A abertura das universidades para o acesso dos povos
indígenas tem permitido que as demandas das etnias sejam discutidas
no âmbito da academia, que as IES reconheçam a multiculturalidade
existente no país, viabilizando o debate e a criação de processos
educacionais inovadores, além de possibilitar que os ameríndios
tenham novas experiências e acesso a espaços até então inacessíveis a
eles.
São visíveis os avanços e perspectivas no contexto da
Educação Superior Indígena. No entanto cabe as Instituições de Ensino
Superior promover o intercâmbio dessas experiências entre docentes
das IES que ofertam cursos para indígenas, na perspectiva de
qualificação dos seus quadros, da institucionalização de um diálogo
intercultural na academia e na implementação de novos cursos com
propostas pedagógicas e curriculares que levem em consideração o
contexto social, cultural e de futuro das diferentes etnias presentes no
Brasil.
* * *
Falar dos desafios e das perspectivas da formação de
professores índios em nível superior é abrir para o debate e a
problematização um campo novo que, aos poucos, vem consolidando
em todo o país.
Em junho de 2006 o Estado de Mato Grosso, por meio do Projeto
3º Grau Indígena, conferiu grau a 186 professores indígenas em três
cursos de licenciatura intercultural. Outros estados brasileiros também
iniciaram programas interculturais nas universidades estaduais e
federais para a habilitação de indígenas em nível superior.
Refletir acerca dessa formação que está sendo ofertada é
imprescindível, seja por meio de seminários, congressos, fóruns e
reuniões, de modo que possamos a cada encontro ir aprimorando os
48
Desafios e perspectivas na educação superior indígena
conceitos e metodologias que estão sendo utilizados nos cursos
voltados para a formação de professores indígenas, na perspectiva de
pavimentarmos o caminho e consolidarmos a Educação Superior
Indígena em todos os níveis em nosso país.
Bibliografia
I Conferência Internacional Sobre Ensino Superior Indígena, Barra do
Bugres, Mato Grosso, 2004.
56º Reunião da SBPC. Formação de Professores Indígenas, Cuiabá,
Mato Grosso, 2004.
Seminário de Educação – Política de Formação de Professores
Indígenas: Impasses e Perspectivas. Cuiabá, Mato Grosso, 2005.
I Conferência Estadual da Promoção da Igualdade Racial. Cuiabá,
Mato Grosso, 2005.
Etapas de Planejamento e Formação do Projeto 3º Grau Indígena, Barra
do Bugres, Mato Grosso, 2005.
Etapas de Planejamento e Formação do Projeto 3º Grau Indígena, Barra
do Bugres, Mato Grosso, 2006.
VII Seminário de Educação Superior Indígena de Roraima. Boa Vista,
Roraima, 2006.
Seminário de Educação Superior da Paraíba. Campina Grande,
Paraíba, 2006.
Semana dos Povos Indígenas. Cuiabá, Mato Grosso, 2006.
I Seminário de Afirmação dos Povos Chiquitano. Cáceres, Mato Grosso,
2006.
I Jornada Internacional de Educação e Movimentos Sociais – Educação
Escolar Indígena e Movimentos Sociais. Cuiabá, Mato Grosso, 2006.
I Congresso Nacional de Educação Superior Indígena. Porto Seguro,
Bahia, 2007.
49
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Reunião Ordinária do Conselho de Educação Escolar Indígena – CEI/
MT. Cuiabá, Mato Grosso, 2007.
Oficina de Intercâmbio – Licenciaturas Interculturais Indígenas:
Sistematizando Experiências. Brasília, MEC, 2007.
Encuentro de Universidades Interculturales e Indígenas de América
Latina: Seminário de Expertos. Tepoztlán, Morelos, México, 2007.
50
En
tre a al
deia e a cidade: notas da
Entre
aldeia
traje
tória de uma vida
trajetória
Rozinete Zoizoquialo Amajunepá*
Neste texto relato situações e momentos que considero
relevante em minha trajetória em direção a qualificação escolar.
Até 1987, na aldeia Umutina, não havia o ensino médio,
estudávamos só até a 4ª série. Para que pudéssemos continuar os
estudos tínhamos que sair da aldeia para a cidade. O que era muito
difícil, pois não tínhamos assistência da FUNAI ou da prefeitura de
Barra do Bugres. Isso só era possível para aqueles alunos que tinham
parentes morando na cidade.
Quando eu e mais quatro colegas terminamos a 4ª série nossos
pais desejavam que a gente continuasse estudando. Como a nossa
aldeia fica a 15 km da cidade, decidiram que iríamos até a cidade de
trator todos os dias para estudar, quando a gente não ia de trator,
íamos de barco ou a cavalo, de baixo de sol, chuva, frio, às vezes a
gente nem almoçava, porque sempre saímos muito cedo, mesmo assim
a gente sempre chegava atrasado, pois de barco ou trator era muito
demorado algumas vezes a gente perdia a primeira aula e os professores
não davam outra prova pra nós. No ano que começamos o estudo na
cidade, três de nós não conseguiram a aprovação, eu mesmo reprovei
em Matemática.
* Professora Umutina na Escola Julá Paré, na aldeia Umutina, município de Barra
do Bugres-MT. Estudante do Curso de Licenciatura do PROESI.
51
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Os professores não-índios não entendiam a nossa realidade,
o contexto no qual estamos inseridos até hoje muitos não entendem.
No ano seguinte continuamos tudo de novo de trator, de barco e a
cavalo. Às vezes a gente ia de carro, era mais rápido, mas quem tinha
que pagar o combustível do deslocamento eram nossos pais. Por fim
as coisas foram ficando difíceis, eu desisti e outros dois também, apenas
um continuou, prestou vestibular e hoje é professor de matemática na
aldeia.
Eu casei, tive três filhos e nunca perdi o interesse pelo estudo,
mas com filhos ficou mais difícil para mim. Quando meu filho mais
velho foi estudar na cidade resolvi continuar estudar novamente e
levava os outros dois filhos juntos comigo, um com seis anos e a menina
com três anos. Íamos todos os dias de ônibus da prefeitura que buscava
a gente na beira do rio, isso já no ano de 2000 fiz a matrícula em outro
colégio, comecei na 5ª série, na série que eu havia desistido, fiz
supletivo, em dois anos terminei o ensino fundamental nesta escola os
professores eram flexíveis, quando a gente perdia alguma prova, eles
passavam trabalho sobre os conteúdos da prova ou aplicavam outra.
Era tudo muito difícil, porque na época das águas, do período
de chuva, era muito complicado, são seis meses de enchente e a gente
precisava atravessar 5km todos os dias para pegar o ônibus,
atravessávamos de barco ou muito às vezes nadando mesmo, porque
nem sempre o barco passava, pois tinha lugares altos e baixos e nesse
período a estrada fica cheia de água no meu caso era mais difícil ainda
porque levava meus filhos, muitas vezes comigo e a gente tomava
chuva. Como o horário da aula era até 05:00 horas da tarde, na época
das águas a gente chegava em casa por volta das 08:00 horas da noite
todos os dias. Às vezes acontecia de não ter nenhum barco a nossa
disposição. Lembro-me que uma vez ficamos até 09:00 horas da noite
do outro lado do rio esperando alguém ir atravessar a gente, então os
meninos resolveram atravessar a nado e buscar o barco, éramos bem
uns trinta alunos do ensino fundamental e ensino médio. Neste dia o
rio estava cheio e com forte correnteza. Todas as noites chovia. Lembro
também que uma vez tinha uma cobra sucuri no meio do caminho, já
era noite, aí os colegas disseram “vamos passar todos de uma vez só e
correndo”, e foi o que fizemos. Às vezes sinto saudade dos colegas e
das aventuras que enfrentávamos juntos para estudar.
52
Entre a aldeia e a cidade...
No ano de 2002 já havia concluído o supletivo. Comecei então
o 1º ano do ensino médio. Estava muito feliz enfim terminaria os estudos
em 3 anos. Meus filhos continuavam junto comigo. No mês de setembro
de 2003, minha filha ficou muito doente pelo fato de ir todos os dias
comigo de baixo do sol quente e muita poeira. Lá na época da chuva
era água e lama e na época de seca e vento e poeira. Tive que deixar de
estudar para cuidar dela, ela estava muito frágil, tive medo de perdêla. Fiquei triste por ela e por mim, que ia perder o ano, estava começando
as avaliações do terceiro bimestre e faltavam algumas avaliações para
fazer, mas como já disse, os professores eram compreensíveis e sabiam
da minha dificuldade para estudar. Pediram atestado e repetiram as
minhas notas do 2º bimestre, que por sinal eram ótima. Fiquei setembro,
outubro e metade do mês de novembro fora da sala de aula, quando
voltei já havia começado as avaliações do 4º bimestre. Os professores
me passaram vários trabalhos sobre os conteúdos que eles haviam
passado e cada um deu apenas uma avaliação para mim. Tive que
estudar muito para conseguir a média e não ir para o provão (como
diziam na época). Chegava em casa, dava janta para as crianças e ia
estudar, teve dia que estudei até duas horas da manhã, porque tinha
marcado para outro dia três avaliações, Química, Matemática e Inglês.
O ano já estava terminando. Mesmo me matando de estudar para não
ir para o provão acabei ficando de Química e Matemática, pois tenho
dificuldade nessas matérias. Ficou marcado para 12 de janeiro de 2003
o provão. Como as aulas acabaram no dia 22 de dezembro de 2002,
nós que ficamos para recuperação tínhamos que ir duas vezes na
semana, pela manhã, lá na escola para aula de Matemática e Química.
No dia marcado da prova fomos com o ônibus da prefeitura que foi
buscar a gente até onde dava para ir de barco.
Quando chegamos na escola o professor nos disse que
tínhamos a tarde toda para fazermos a prova, ou seja, o provão, pois
eram matérias do ano todo. Eu estava um pouco nervosa, mas meus
colegas estavam torcendo por mim, o que me deu uma força tão grande,
fiz a prova e consegui bons resultados, fui aprovado e fiz a matrícula
no mesmo dia. Em 2003 começou toda rotina de novo, levantava às
06:00 horas da manhã arrumava as crianças para ir para escola, fazia
todo serviço da casa, lavava roupa quase todo dia, 09:00 horas da
manhã começava fazer o almoço com o material escolar do lado, às
vezes nem tinha tempo para almoçar. Além de fazer os deveres de
53
Cadernos de Educação Escolar Indígena
dona de casa, tinha meus deveres escolares, às 11:00 horas dava almoço
para as crianças, dava banho, trocava a roupa deles, arrumava seus
materiais de escola para levar porque lá na minha escola na hora do
intervalo eu os ajudava a fazer o dever de casa, ensinava a ler. Às
11:30 horas a gente tinha que estar no porto da balsa para pegar o
ônibus. Saía às 11:30 horas de casa e retornava às 06:00 horas da
tarde, isso no período da seca, porque nas águas era muito mais difícil,
saía mais cedo e chegava mais tarde e apesar de todos os contra-tempo
passei de ano sem precisar ir para o provão que não foi uma experiência
muito boa.
Em 2004 foi implantado o ensino médio na aldeia, eu e outros
colegas já íamos para 3º ano do ensino médio e houve uma grande
discussão. Nós éramos dez alunos do 3º ano e a gente não queria de
forma alguma estudar na aldeia, por um lado seria bom porque não
haveria, mas necessidade de ir e vir todos os dias, mas por outro lado
nós não concordávamos com o ensino diferenciado, conversa vai e
conversa vem, acabamos concordando, apenas três alunos
continuaram estudando na cidade por conta própria. Pois nos
achávamos que os professores da aldeia não tinham o que nos ensinar.
Então as aulas começaram e o ensino era totalmente diferente do ensino
da cidade, isso porque toda vida a gente estudou na cidade e lá nunca
estudamos coisas específicas nossas, ensino diferenciado, no começo
a gente questionava muito os professores, até que um certo dia o
Coordenador Pedagógico da escola nos reuniu e falou da importância
do ensino diferenciado.
Neste mesmo ano ia ter o vestibular para professores indígenas.
Resolvi prestar o vestibular por curiosidade, não esperava passar.
Felizmente tive sorte, passei entre os primeiros colocados. Fiquei feliz
por mais esta conquista. A implantação do ensino médio na aldeia,
com um projeto intercultural e diferenciado foi bom. Além de ensinar
um pouco mais sobre o próprio povo, facilitou muito o estudo. Não
precisamos mais ir para a cidade estudar e não temos tanto gasto
como tínhamos quando estudávamos na cidade, e as dificuldades são
menores. Hoje estou no 3º Grau Indígena e pretendo ir até o fim, quero
ser Socióloga e fazer um bom trabalho com meu povo.
54
Entre a aldeia e a cidade...
Essa é uma parte da minha trajetória pelo acesso e permanência
na escolarização. Quando terminar o curso superior, conto a vocês
como foi essa nova empreitada, que acredito, será também uma história
de sucesso. Até qualquer dia desses.
55
A busca da autonomia no processo
da educação escol
ar indígena
escolar
Lucimar Luisa Ferreira*
Adailton Alves da Silva**
Introdução
A Educação Escolar Indígena no Brasil, mesmo tendo sido
ferramenta através da qual o Estado desenvolveu, por muito tempo, a
sua política de integração, vem desempenhando um papel significativo
na luta dos povos pela garantia de seus direitos e na busca da
autonomia.
A escola que inicialmente foi proposta (“imposta”) pelo
Estado, tendo como objetivo central a integração das comunidades à
sociedade nacional através da evangelização, no decorrer dos tempos,
passa a significar e a exercer uma função muito distinta daquela inicial.
Num processo contínuo, as comunidades, apesar dos obstáculos, resignificam e somam os conhecimentos da escola aos seus
conhecimentos tradicionais. Aos processos educativos próprios das
sociedades indígenas veio somar-se a experiência escolar, com as várias formas
e modalidades que assumiu ao longo da história do contato entre índios e nãoíndios no Brasil (RCNEI, 1998:24).
Professora mestre em lingüística pela UNICAMP, Assessora Pedagógia na área
de Línguas, Artes e Literatura no PROESI.
*
Professor mestre em Educação Matemática pela UNESP, lotado no Departamento
de Matemática - UNEMAT – Campus de Barra do Bugres – MT. Coordenador
Pedagógico do PROESI.
**
57
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Assim, os povos indígenas, num movimento de apropriação
da educação escolar, passam, a partir de sua realidade, a construir e a
redefinir os seus rumos. Necessidade formada ‘pós-contato’, a escola tem
sido assumida progressivamente pelos índios em seu movimento pela
autodeterminação. (RCNEI, 1998:24)
Educação integracionista
O movimento de apropriação da educação escolar que
vislumbramos hoje, foi gestado no desenvolvimento do
integracionismo promovido pelo Estado. Após quatro séculos de extermínio
sistemático das populações indígenas, o Estado resolveu formular uma política
indigenista menos desumana, baseada nos ideais positivistas do começo do
século (FERREIRA, 2001: 74). Assim, por longos anos, a integração dos
povos indígenas à sociedade nacional foi suporte das políticas
educacionais indígenas do Estado.
Na época da colonização, a educação era feita numa
perspectiva eurocentrista, ou seja, o centro de tudo era a Europa. Nesse
contexto, a política de assimilação do índio à civilização cristã através
da evangelização foi a base do aniquilamento da diversidade
sóciocultural e da negação da identidade indígena. Essa política era
efetivada de diversas maneira: aldeamentos compulsórios e destruição
das instituições próprias (xamanismo, sistemas de parentesco,
organização social, etc). Nesse caso, o objetivo era catequizar e educar
para a incorporação ocidental e cristã, transformando os índios em
vassalos através da exploração da mão-de-obra, expandindo, com isso,
os domínios da Coroa Portuguesa. Os índios tiveram que habitar casas
distribuídas e organizadas conforme os ideais católicos, provocando
transformações na maneira como concebiam a si mesmos e o mundo. Aspectos
das cosmologias indígenas foram substituídas pela moral católica
(FERREIRA, 2001: 73). Nessas condições, o ensino era feito nos
internatos, com proibição do uso das línguas maternas.
58
Em busca da autonomia...
Educação integracionista e os seus limites
Segundo Ferreira (2001: 72), com o passar dos tempos, nas
primeiras décadas do século XX, influenciada pelo surgimento de
instituições governamentais (SPI, FUNAI) religiosas (SIL e outras
missões) a perspectiva integracionista sofreu mudanças, mas mesmo
assim, o desaparecimento das culturas indígenas era vista como
inevitável e a diversidade cultural era apenas um recurso para a
formação e desempenho do plano integracionista. A política dessa
fase continuava sendo a integração progressiva e harmoniosa à
comunhão nacional, havendo a homogeneização e a hegemonia de
uma língua e uma cultura, as nacionais, sendo a identidade indígena
vista como provisória. Os índios eram educados para o trabalho
agrícola e passava a ter um investimento na capacitação pedagógica.
Num sentido geral, garantia a sobrevivência física dos povos indígenas
e capacitava-os para o trabalho pedagógico, através da função de
monitores bilíngües. A integração dos índios à comunhão nacional
permaneceu por mais um longo período, balizando o trabalho nas
escolas das aldeias, já que a concepção continuava a ser a do
evolucinismo unilinear e o índio considerado numa forma genérica,
relativamente capaz.
Nessa conjuntura, a educação para o indígena era feita através
do ensino religioso e rural, passando a ser obrigatoriedade o uso das
línguas maternas nas escolas indígenas. A alfabetização na língua
materna era usada como estratégia para a integração, ou seja, o
bilingüismo de transição (língua materna como ponte para a
aprendizangem nas escolas). O Ensino bilingüe passava ser
instrumento civilizatório que pretendia tornar os índios leitores do
Evangelho traduzido em várias línguas.
Mas apesar de tudo, no decorrer do processo educativo foi
visto o desencadear de um movimento inverso ao que era previsto,
pois ao mesmo tempo que havia uma força integracionista que vinha
de fora (educação imposta pelo Estado e instituições religiosas), uma
outra força legítima vinda dos próprios grupos, nascia na ação dos
professores, líderes e organizações de apoio.
59
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Educação escolar: apropriação e redefinição
Com o passar do tempo, partir de 1960, surgem projetos
alternativos à política do Estado e, nesse caso, o propósito passa ser a
diferenciação de educação escolar indígena de educação indígena. A
política passa ter a atuação de ONGs e nisso surgem as alianças
políticas indigenistas diferenciadas de políticas indígenas. Esse foi
um momento marcado pelo delineamento de práticas alternativas à
política oficial.
A atuação das organizações não-governamentais pró-índio e
a respectiva articulação com o movimento indígena fizeram com que
se delineasse um política e uma prática indigenista paralela a oficial,
visando a defesa dos territórios indígenas, assistência à saúde e a
educação escolar. (FERREIRA, 2001: 87).
Nesse caso, o objetivo passa a ser a articulação com os
movimentos indígenas, construindo um currículo específico e
diferenciado, compatível com as concepções e filosofias educativas
dos povos indígenas. Dessa forma, o ensino busca integrar cultura e
educação, visando a compreensão da relação entre o processo cultural
vivido pelas comunidades e o chamado saber sistematizado universal.
Conforme Ferreira (2001: 95), no decorrer dessas práticas,
surgem as experiências de autorias em Educação Escolar Indígena e
também a criação de organizações indígenas que buscam autonomia
através das políticas públicas. A política de articulação indígena, que
prevê soluções coletivas para problemas comuns (território,
diversidade lingüística e cultural, assistência médica adequada e
processos educacionais específicos e diferenciados) se fortifica,
culminando na luta pelo reconhecimento da diversidade cultural na
legislação brasileira, em 1988. Nesse caso, o objetivo passa ser criar
uma nova política indigenista que investe na busca da autonomia,
através de projetos societários e a reafirmação da identidade. E, assim,
uma educação intercultural específica e diferenciada passa ser a
modalidade de ensino almejada.
60
Em busca da autonomia...
Todo o decorrer deste processo, desencadeia o vislumbramento
de uma nova concepção. A educação passa a ser a proposição do
conhecimento global por parte do educando a partir do local, ou seja,
a partir de um olhar da própria cultura. Nesse sentido, os
conhecimentos próprios dos povos recebem uma importante relevância
no processo de construção e consolidação da escola.
A soma de experiências adquiridas na educação escolar
indígena propicia pensar a escola na sua pluralidade, pois,
considerando a diversidade, a construção de cada escola passa ser
específica, atendendo aos interesses também específicos de cada povo.
O objetivo, nesse momento, é que a escola seja a intersecção entre os
saberes próprios das comunidades e os saberes da sociedade nacional.
A escola funciona como ferramenta de apoio para a compreensão do
que é próprio e do que vem de fora.
Esse movimento de apropriação, consolidação e re-significação
da escola por parte das comunidades, vem se desenvolvendo e sendo
efetivado de diversas maneiras: através do uso da língua materna nas
escolas, busca dos conhecimentos e práticas tradicionais dos povos
(que se materializa em calendários escolares adaptados às atividades
de cada comunidade), uso de materiais didáticos próprios e docência
de professores indígenas (membros de suas respectivas comunidades).
Nesse arcaboço, a Constituição de 1988 garante as conquistas dos
movimentos indígenas. A educação diferenciada, garantida por Lei,
valoriza a diversidade aceitando as várias línguas e reconhecendo os
saberes e as diferentes formas de compreensão da realidade dos povos
e, isso, propicia a renovação das experiências, já que propõe um
movimento recíproco entre conhecimentos específicos e universais.
Conclusão
Observando todo o processo de legitimação e fortalecimento
da escola indígena, pode-se dizer que o que tem marcado são as
conquistas nos diversos planos: jurídico, político e pedagógico. No
plano jurídico, temos o reconhecimento ao direito dos povos indígenas
à segurança sóciocultural e à valorização de sua língua, modos e
concepções; no político, o surgimento de associações locais e regionais
61
Cadernos de Educação Escolar Indígena
de professores índios, que realizam encontros de trabalho, discussão
e revisão crítica da situação educacional e social das comunidades
(contando com o apoio de pessoas ligados a ONGs e Universidades)
e, no pedagógico, cursos específicos de formação para professores
índios1 e a criação de escolas indígenas com um acelerado processo
de busca da autonomia, que já possui regimento, currículo e pedagogia
própria, definidas de acordo com as particularidades da situação local.
Como podemos ver, todas essas conquistas se articulam à
capacidade histórica que os povos indígenas no Brasil demonstram
no seu relacionamento com setores não-indígenas. Entre eles podemos
mencionar, por exemplo, a multiplicidade de atitudes em diferentes
comunidades indígenas, frente à escola como instituição. Assim, desde
as experiências das escolas indígenas do Parque Nacional do Xingu
(MT), da escola dos Tapirapé (MT), da experiência do Gersem L. dos
Santos como Secretário Municipal de Educação em São Gabriel da
Cachoeira (AM) e os demais cursos de formação e capacitação
espalhados pelo país, são fatores de referência a serem tomados como
exemplo de iniciativas transformadoras que buscam desenvolver o
respeito pelas escolas indígenas como espaço privilegiado de diálogo
e/ou de conflito entre conhecimento indígena e ocidental, entre política
pública e política das aldeias.
Por tudo que vimos, são notáveis as conquistas educacionais
dos povos indígenas no Brasil. Uma distância considerável separa a
escola rural missionária e catequética, da época da colonização, da
escola, com reconhecimento da sua especificidade, garantida por Lei,
de algumas regiões do país, na atualidade. Mas também, por outro
lado, se formos conferir in loco essas conquistas, é notório o quanto
ainda precisa ser conquistado, pois, apesar de termos muitas iniciativas
com sucesso, ainda há povos com poucas condições de discutir a
escola, já que suas maiores prioridades ainda são: terra, saúde e
alimentação. Assim, por esse e outros motivos, a educação escolar
indígena torna-se uma questão que ultrapassa o plano de ensino
aprendizagem e torna-se um campo privilegiado para as reflexões das
relações políticas entre segmentos diferenciados da sociedade.
1
Na esfera administativa do Estado de Mato Grosso, temos por exemplo, os
cursos de formação de professores Tucum (concluído), 3º Grau Indígena (em
andamento) e Haiyô (em andamento).
62
Em busca da autonomia...
Bibliografia
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. As leis e a Educação Indígena: Programa
Parâmetros em Ação de Educação Escolar Indígena: Ministério da Educação,
Secretaria de Educação Fundamental, Brasília, 2001.
FERREIRA, M. K. L. “A Educação Escolar Indígena: um diagnóstico
crítico da situação no Brasil”. In: Antropologia, Historia e Educação: A
Questão Indígena e a Educação. SILVA, Aracy Lopes da; FERREIRA,
Mariana K. L.et.al (Org.) São Paulo: Global, 2001.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Referencial Curricular Nacional para as
Escolas Indígenas. MEC/SEF, Brasília, 1998.
63
Em Construção: a Escol
a Desejada 1
Escola
Maria Aparecida Rezende*
Temos como propósito apresentar parte de um trabalho
desenvolvido junto ao povo Xavante das Terras Indígenas de Pimentel
Barbosa. De onde surgiu a idéia de uma educação diferenciada? Como
foi desenvolvido este Projeto?2 Esse trabalho foi realizado atavés das
Ciências Naturais para auxiliar na formação dos professores Xavante
de Pimentel Barbosa. Mas um conhecimento interligado aos saberes
dos velhos Xavante, bem como o conhecimento tradicional da
comunidade. O resultado parcial desse estudo foi a elaboração de um
livro como apoio pedagógico aos professores. Esse material foi fruto
de um ano e meio de pesquisa junto aos professores, lideranças e
também participação da comunidade. Assim, estando ainda em
construção, resta ao Projeto fazer a avaliação dos recursos didáticos
produzidos durante esse processo. É necessário que estes materiais
sejam úteis para a continuidade do ser e viver Xavante. Devem estar a
serviço do grande objetivo desta escola: a educação escolar como um
meio de afirmar sua identidade étnica e cultural.
* Mestre em Educação, docente da UFGD. Docente no PROESI na área de Ciências
Sociais.
Esse trabalho é assunto de parte da minha monografia de Especialização em
Teorias e Métodos da Antropologia, sob orientação do antropólogo Dr. Aderval
Costa Filho.
1
Projeto de Capacitação em Serviço de Professores Leigos para o CBA (Ciclo
Básico de Aprendizagem). Esse trabalho foi desenvolvido por um grupo de
professores tendo na coordenação a ONG – ARCA (Associação para Recuperação
e Conservação do Meio Ambiente) em parceria com a UNICEF. Na época nossa
pretensão era auxiliar na formação dos professores e não produzir trabalhos
acadêmicos.
2
65
Cadernos de Educação Escolar Indígena
A Escola desejada e a importancia das ciências naturais3
A intenção de ajudar os Xavante da Terra Indígena Pimentel
Barbosa a construir uma educação escolar diferenciada não foi uma
tarefa fácil. Era um desafio que o Projeto e seus membros teriam que
enfrentar. Além de integrar os conhecimentos “científicos” aos saberes
tradicionais Xavante, também teríamos que “preparar” os professores
e elaborar materiais didáticos em apenas um ano e meio de trabalho.
Nessa realização contamos com a participação efetiva das
comunidades e com o interesse dos professores. Assim, foi possível
desenvolver o trabalho com seriedade e compromisso com as
comunidades indígenas de ter o direito de uma educação que coloque
em evidência seus valores e não os de uma sociedade ocidental.
A fala de uma das lideranças em reunião no Warã4 evidencia
a reivindicação da educação escolar diferenciada. “o branco modificou
nossa vida e escola é coisa de branco não é de índio, mas nós queremos
uma escola para nós da Pimentel Barbosa. Uma escola que dê conta de
ajudar os nossos jovens a conhecer a nossa alimentação tradicional,
nossa cultura e também que ajude a não deixar nossas crianças morrer
de doença de branco”. Daí a importância das Ciências Naturais.
Ainda, que a equipe de assessores pedagógicos e coordenação do
trabalho de campo e geral, reunisse para planejar o trabalho de uma
forma integrada, quem decidia mesmo o que trabalhar era na verdade
a comunidade.
Quando chegávamos nas aldeias, eles colocavam os problemas
de saúde que estavam tendo, pois para eles a Ciências Naturais era
importante para trabalhar a saúde da comunidade e os costumes
antigos da comunidade. Os conteúdos desenvolvidos nessa disciplina
Escolhi essa disciplina por ter sido eu mesma a trabalhá-la com os professores e
também por ter sido autora responsável pelas propostas de atividades do livro de
Ciências Naturais em fase experimental. No ano de 2000, esse material deveria ter
sido experimentado pela comunidade para ser publicado, porém não houve
investimento financeiro para a assessoria pedagógica fazer o acompanhamento.
3
Local onde os homens reúnem-se para fazer o planejamento das atividades de
toda a comunidade e as tomadas de decisões do grupo.
4
66
Em construção: a escola desejada
não tiveram uma seqüência lógica, conforme os livros didáticos. Pois
dependia das necessidades das comunidades.
Para uma melhor compreensão desse trabalho será
imprescindível relatar um pouco do processo metodológico. As aulas
eram desenvolvidas com os professores nas aldeias, fazendo um rodízio
entre as três (Pimentel Barbosa, Tanguro e Caçula), variando de 07
(sete) a 10(dez) dias consecutivos. O trabalho era dividido com mais
uma disciplina em geral ou às vezes, com outras – Ciências Sociais,
Matemática ou Metodologia da Alfabetização.
Outro aspecto importante de ser ressaltado é em relação a
escolha dos professores das comunidades. Cada comunidade elegeu
seus professores de acordo com os valores e princípios de
responsabilidade e respeito da comunidade. Acontece que esses
professores tinham cursado apenas as duas primeiras séries do ensino
fundamental. Por esse motivo todos os conteúdos teriam que ser
trabalhados vagarosamente fazendo a ponte entre a pesquisa de campo
com a pesquisa bibliográfica.
Compreendia-se que esse trabalho era amparado pelos
RCNEIs. Em relação aos povos indígenas afirma que:
Eles têm o direito de decidirem seu destino, fazendo suas
escolhas, elaborando e administrando autonomamente seus projetos
de futuro. (...) Esse esforço de projetar uma nova educação escolar
indígena só será realmente concretizado com a participação direta
dos principais interessados – os povos indígenas através de suas
comunidades educativas. Essa participação efetiva, em todos os
momentos do processo, não deve ser um detalhe técnico ou formal,
mas sim a garantia de suas realização. A participação da comunidade
no processo pedagógico da escola, fundamentalmente na definição
dos objetivos, dos conteúdos curriculares e no exercício das práticas
metodológicas, assume papel necessário para a efetividade de uma
educação específica e diferenciada ( RCNEI, 1998: 23-24).
A demonstração de participação efetiva da comunidade fazse presente no primeiro momento da chegada a aldeia que era participar
da reunião no warã, geralmente no período noturno. Os dias seguintes
transcorriam normais, com pesquisas, aulas expositivas, entrevista
com a população, pois eles já sabiam o que ocorreria durante aqueles
67
Cadernos de Educação Escolar Indígena
dias. Pensando numa escola que se preocupava com a saúde e com a
vida, principalmente das crianças, um dos temas que se fez necessário
trabalhar foi o lixo.
Nas cidades vizinhas, Canarana e Ribeirão Cascalheira,
estavam ocorrendo vários registros de Dengue. Na aldeia, pneus velhos,
vasilhas jogadas, com água da chuva, podiam ser encontrados
facilmente. A professora de Ciências Sociais estava trabalhando as
mudanças de costumes dos Xavante. Ela saiu com os professores nos
arredores da aldeia para recolher tudo o que conseguiam carregar:
restos de materiais lixo. A pedagogia Freinet chama essa atividade de
“aula passeio”. Depois ela classificou os objetos encontrados em:
brinquedo, higiene, alimentação, etc,.
Aproveitando essa divisão, foi trabalhado pelas Ciências
Naturais a noção de lixo orgânico e inorgânico. Também foi muito
importante a construção dos conceitos desse tema conforme a
compreensão Xavante.
No momento seguinte, eles fizeram um outro passeio em volta
da aldeia, trazendo os lixos que encontraram e fazendo as classificações
de acordo com sua compreensão. Eles produziram um relatório
descrevendo as condições que encontraram o lixo no entorno das
aldeias. Encontraram pneus velhos cheios de água, litros de
refrigerantes estourados com água dentro, cabaças quebradas portando
restos de água, também vários arames enferrujados e pregos.
Foi iniciada a conversa sobre os perigos do lixo inorgânico e
as doenças que eles poderiam trazer para a aldeia. Fizemos um estudo
sobre a Dengue e o Tétano: As causas, conseqüências, sintomas, como
tratar e como evitar. Com o lixo orgânico foi trabalhado sua importância
para as plantações e construído uma compostagem orgânica ( processo
natural de quimificação por que passam os restos animais e vegetais
para transformarem-se em adubo orgânico).
Todo esse trabalho foi realizado de acordo com entrevistas
com os velhos da comunidade, pois alguns conceitos que não
conheciam e precisavam ser construídos, os professores não poderiam
decidir sozinhos. Um exemplo foi o caso do lixo orgânico e inorgânico.
Em reunião no Warã, os homens decidiram que, na língua Xavante
ficaria: “coisas que a terra come e coisas que a terra não come porque
68
Em construção: a escola desejada
faz mal a ela”. Durante a construção da compostagem notava-se a
curiosidade das crianças e a descrença dos adultos (homens e mulheres,
inclusive professores) sobre aquele trabalho. Eles não compreendiam
que todo aquele material fosse transformar em adubo orgânico, ou
melhor, como eles dizem “comida para as plantas”.
Do mesmo modo ocorreu com os materiais que eles carpiam
em volta da aldeia e colocavam fogo. Começamos a dizer que não
precisavam queimar, pois não fazia bem para a terra. Então iniciamos
o processo de montôos desses restos vegetais. Eles não acreditavam,
mas fizeram para ver. O resultado foi mais rápido do que a
compostagem. Depois de dois meses verificamos (com o olhar de toda
a comunidade) que realmente o lixo tinha se tornado terra “boa”. A
partir daquele dia era muito comum ver os velhos e as mulheres fazendo
montôos de capim. Não se viu o fogo subir em volta das aldeias, pelo
menos enquanto estávamos por lá.
No mês seguinte, estavam ocorrendo casos de disenteria. Todo
o planejamento foi modificado para trabalhar conforme a necessidade
da comunidade. Então foi discutido sobre as fezes que eram “lixo
orgânico”, mas que também, poderiam provocar doenças. Foi feito
todo um estudo sobre as verminoses: como se dá a transmissão, os
sintomas, como preveni-las e como curá-las. Foi preparado o soro
caseiro. Também trabalhamos a inclinação do solo para a água, para
perceberem como a enxurrada carregava com facilidade as fezes
depositadas às margens do córrego.
A questão da higiene é preocupante na aldeia, por isso a
discussão sobre o processo de transmissão da verminose foi muito
polêmica e até conflituosa para os professores e a própria comunidade
escolar. Tudo foi discutido na língua. Em um certo momento foi lançada
a grande questão: o que fazer? Xavante não gosta de sanitários. Qual
seria a alternativa? Encontraram-na. Disseram que a solução era
instruir as crianças a não fazerem suas necessidades próximo ao
córrego nem do lado em que o terreno era inclinado para o córrego.
Disseram que as outras medidas eram mais difíceis, como fazer soro
caseiro, ferver água e que isso era coisa de “warazu”(não índio).
Depois trabalhamos as questões da poluição e contaminação
do solo, da água e até do ar, provocada pelas grandes queimadas,
Também todas as doenças possíveis acarretadas pelas poluições
69
Cadernos de Educação Escolar Indígena
citadas. Enfim, toda a discussão deste tema foi parar na transmissão
de verminoses através dos alimentos e posteriormente, o estudo do
aparelho digestivo. Para desenvolver este estudo voltamos na
importância da higiene que se deve ter com os alimentos e também
como se deve mastigá-los para que tenhamos uma boa digestão que,
com essa medida, evitaremos várias doenças.
Para essa compreensão fez-se necessário utilizar: pilão, água
e arroz, para demonstrar como é feito o caminho do alimento desde a
entrada na boca até a sua eliminação através das fezes. Houve vários
questionamentos e surpresas. À medida que a experiência ia se
desenvolvendo, os professores discutiam a importância da mastigação
para a saúde dos Xavante.
Como pode-se perceber nenhum conteúdo foi forçado, todos
eles foram trabalhados em cima de problemáticas que a comunidade
estava vivenciando. Lentamente os professores iam se empenhando .
Os conteúdos e os objetivos a serviço da comunidade e não a serviço
de uma grade curricular formal e rigorosa.
A metodologia utilizada e os procedimentos pedagógicos
adotados tinham um propósito básico: buscar os caminhos mais
próximos, mais viáveis e mais fáceis de compreensão para atingir os
objetivos perseguidos.
Em todo esse processo foram construídos cartazes ilustrados,
textos informativos que foram afixados na sala de aula, realizadas
pesquisas de campo, através de entrevistas com as mães, velhos e
várias fontes bibliográficas sobre o assunto, algumas experiências para
entender o processo, enfim, interligar tudo isso com os saberes da
comunidade. Quais recursos ou medicamentos eram utilizados na
medicina tradicional com relação às enfermidades estudadas. O que
se tentou fazer foi um elo entre os dois saberes para resolver a
problemática das doenças causados pelas poluições, contaminação e
má digestão.
Além desta educação escolar os Xavante já têm sua educação
formalizada: os rituais, a casa de solteiro, na qual se processa a formação
dos homens para a sociedade Xavante, as formas de classificação social
e nominação ( masculina e feminina), os cantos, enfim, uma infinidade
de aspectos educacionais que exigem uma ação pedagógica organizada
70
Em construção: a escola desejada
e diferenciada. Todas essas formas fazem crescer o capital social do
povo Xavante de Pimentel Barbosa. Segundo Bourdieu:
O capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais
que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou
menos institucionalizadas de interconhecimento ou, em outros termos,
à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente
são dotados de propriedades comuns ( passíveis de serem percebidas
pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são
unidos por ligações permanentes e úteis ( Bourdieu, 1998:67).
São exatamente estas ligações permanentes e úteis que esses
grupos estão buscando para não perderem sua coesão e garantir a
reprodução de sua cultura tradicional e isso inclui tudo aquilo que é
habitual para eles. Os seus hábitos, conforme Luckman e Berger, 1998,
constituem-se numa institucionalização construída no curso da vida
social e da produção de conhecimento que faz com que o grupo fortaleça
sua identidade étnica e cultural.
O volume do capital social que um indivíduo possui depende
das relações que ele pode mobilizar, seja o capital cultural ou
simbólico. A união das pessoas e o valor cultural com que os Xavante
de Pimentel Barbosa vêm se mantendo desde o século XVIII é que
fazem com que eles sejam diferentes dos outros Xavante.
Por isso o pedido de uma escola diferenciada. Eles precisam e
necessitam a todo custo de preservar sua cultura. Brandão afirma:
“Educação é um dos meios de que os homens lançam mão para criar
guerreiros ou burocratas. e ajuda a pensar em tipos de homens. Mais
do que isso, ela ajuda a criá-los, através de passar de uns para os
outros o saber que os constitui e legitima (Brandão, 1995:11). Eles sabem
que a educação escolar é muito importante na educação do homem
branco, sabendo de sua força, eles sabiamente sentem que ela pode
ajudá-los na re-construção de suas tradições.
A antropóloga Edir Pina de Barros afirma essa necessidade
dos povos indígenas buscarem uma educação diferenciada:
“É nesse campo de comunicação, o da etnicidade, intensificada
pelo novo processo de mundialização, que a educação escolar
diferenciada assume, para os próprios povos indígena, importância
71
Cadernos de Educação Escolar Indígena
cada vez maior, fazendo-se presente, enquanto condição necessária,
em seus projetos de autodeterminação (Barros, 1997:30)
Do ponto de vista indígena, a educação escolar diferenciada é
vista como fonte de resistência e luta. O contato com uma cultura
mundializada é permanente. Onde se refugiar? Não há mais lugar. As
margens dos rios das Mortes e Araguaia já estão ocupadas, só resta a
esses grupos deixar sua vida semi-nômade, viver e lutar pelos seus
bens comuns: sua tradição, sua caça, sua pesca, sua coleta, enfim,
fortalecerem-se culturalmente.
Daí o porquê deste grupo querer uma escola diferenciada, uma
escola que ajude a preservar a sua cultura. A educação que se busca
não fazia parte de seus conhecimentos e práticas, mas após o contato
é inevitável. Para isso, os Xavante de Pimentel Barbosa a querem como
aliada de seus interesses, de seus conhecimentos, integrando-a como
instrumento de reprodução da sua cultura.
Enfim, pode se concluir que a construção da escola desejada
foi e é muito importante para as comunidade envolvidas. Através deste
elo entre os dois conhecimentos: Xavante e sociedade nacional sem
que um se sobreponha ao outro é que será possível ir construindo uma
escola formativa para auxiliar na melhoria de qualidade de vida dos
Xavante. Estando ainda em construção, resta ao Projeto fazer a
avaliação dos recursos didáticos produzidos durante esse processo.
Esse recurso avaliativo deve estar em consonância com o propósito da
escola diferenciada. É necessário que estes materiais sejam úteis para
a continuidade do ser e viver Xavante. Estes materiais devem estar a
serviço do grande objetivo desta escola: a educação escolar como um
meio de afirmar sua identidade étnica e cultural.
Bibliografia
BARROS, Edir Pina de . “Reflexões sobre escolar indígena na conjuntura
atual” In Urucum Jenipapo e Giz: Educação escolar indígena em debate.
Conselho de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso. Ed. Entrelinhas.
Cuiabá/MT 1997.
72
Em construção: a escola desejada
BERGER P. L. e LUCKMAN, T. A construção social da realidade.
Petrópolis/RJ: Vozes. 1998.
BOURDIEU, P. e PASSERON, J.C. A reprodução. Elementos para uma
teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves Ed. 1982.
BRANDÃO, C.R. O que é educação. Brasiliense, São Paulo, 1995.
PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS ( 1ª A 4ª SÉRIE)
Volume 4 – Ciências Naturais. Secretaria de ensino Fundamental,
Brasília, DF 1997.
Volume 8- Apresentação dos Temas Transversais e Ética. Secretaria
de ensino Fundamental, Brasília, DF 1997
Volume 9 – Meio ambiente e saúde. Secretaria de ensino Fundamental,
Brasília, DF - 1997.
RCNEI – Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas.
Min. da Educ. e do Desp. Sec. De Educ. Fundamental, Brasília, 1998.
73
Arqueol
ogia e educação escol
ar
Arqueologia
escolar
indígena na II Etapa dos Cursos de
Licenciatura (T
urma 2005-2009)
(Turma
Luciano Pereira da Silva*
O presente texto tem por interesse apresentar algumas questões
teóricas e metodológicas, assim como e especialmente, alguns
resultados sobre a disciplina de Arqueologia realizada entre 29/01 a
04/02/2006 com a turma de professores indígenas 2005-20091 do 3º
Grau Indígena. Chamo a atenção para o fato que este texto foi escrito
em especial, para os professores indígenas do 3º Grau Indígena.
A Arqueologia no Projeto 3º Grau Indígena
Em janeiro de 2002, realizei junto à turma 2001-2006 do 3º
Grau Indígena, uma oficina sobre Arqueologia, que se pautou em
apresentar os objetivos, o objeto e os métodos da arqueologia. Essa
atividade foi realizada com 200 professores indígenas de 23 etnias do
Estado de Mato Grosso e outras 14 de outros Estados da federação2.
*Professor do departamento de História da UNEMAT, campus de Cáceres,
Mestrando do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Grande
Dourados-MS, com centralização na área de Arqueologia. Docente no PROESI.
Aweti, Bakairi, Bororo, Chiquitano, Ikpeng, Irantxe, Kalapalo, Karajá, Kayabi,
Kuikuro, Nafukuá, Panará, Paresi, Rikbaktsa, Tapirapé, Suyá, Terêna, Umutina,
Waurá, Xavante, Yawalapiti, Zoró.
1
Umutina, Bororo, Xavante, Paresi, Irantxe, Bakairi, Tapirapé, Karajá, Rikbaktsa,
Nambikwara, Kayabi, Apiaká, Ikpeng, Mehinako, Kamaiurá, Juruna, Kuikuro,
75
2
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Como atividade, os professores indígenas responderam a
seguinte indagação: “Como a Arqueologia pode contribuir para o
conhecimento das sociedades indígenas”? Sobre essa questão, os
índios produziram textos individualmente. (ver Silva, 2005)
Outra ação realizada foi um grupo de trabalho (GT) realizado
por ocasião da “1ª Conferência Internacional de Ensino Superior
Indígena: construindo novos paradigmas na Educação” (CIESI, 2005).
O GT teve por título “Arqueologia, História e Arquitetura Indígena”, e
as recomendações foram as seguintes:
1. “O reconhecer a estreita relação entre essas áreas do
conhecimento;
2. Considerar a diversidade dos processos históricos e sociais
na construção das bases curriculares dos processos de formação e
Educação Escolar Indígena nas áreas do GT;
3. Questionar as interpretações produzidas pelos
historiadores dos índios acerca da História Indígena, levando em conta
as idéias dos pensadores e historiadores índios;
4. Indagar sobre os modelos de arquitetura produzidos pelos
não índios implantados nas aldeias, como escolas e unidades
sanitárias, sem observar as especificidades de cada etnia;
5. Considerar a arqueologia como “fonte e documento”
instrumental para o estudo e levantamento histórico-cultural de
aspectos relacionados à arquitetura e a história indígena, de forma a
contribuir para o fortalecimento e valorização da identidade indígena
de cada etnia;
6. Dar visibilidade na educação escolar indígena às áreas da
Arqueologia, Arquitetura e História”. (Silva; Portocarrero; Galvão, 2005:
198)
Nesse contexto houve a proposta, por parte da coordenação
do 3º Grau Indígena, para se realizar com a turma 2005-2009 a
Kalapalo, Matipu, Trumai, Suyá, Munduruku, Kaxinawá (AC), Manchineri (AC),
Wassu Cocal (AL), Baniwa (AM), Tikuna (AM), Baré (AM), Pataxó (BA), Tuxá
(BA), Tapeba (CE), Tupinikim (ES), Potiguara (PB), Tukano (AM), Kaingang (RS
e SC) e Terena (MS)
76
Arqueologia e educação escolar indígena...
disciplina “Arqueologia e Habitação Indígena”, que foi realizada em
janeiro e julho de 2006. Por mim foi ministrada a área de Arqueologia
e pela arquiteta Josiani Galvão a parte de Habitação Indígena.
Breve observação sobre a teoria arqueológica no contexto do curso
A Arqueologia, assim como a História, em suas interpretações
sobre as sociedades do passado e também do presente, tem como ponto
de partida preocupações do presente e os contextos sociais aos quais
estão inseridos os pesquisadores. Na situação atual, de afirmação de
um grande número de grupos sociais (negros, índios, mulheres,
imigrantes, migrantes entre vários outros), torna-se necessário
reconstruir a imagem de diferentes grupos sociais, a partir da inserção
de grupos de indivíduos, em suas manifestações sociais, culturais e
políticas, que estiveram ocultos, excluídos, mascarados,
marginalizados e silenciados ao longo da história.
Na arqueologia internacional, os direitos humanos vêm sendo
amplamente discutidos. Pautados na defesa das minorias e no
questionamento da visão ocidental hegemônica é que se funda o
Primeiro Congresso Mundial de Arqueologia (WAC 1), em 1986. Esse
contexto abre a produção científica às vozes dos excluídos em torno
das relações de poder no interior da disciplina e dos conflitos
econômicos e políticos (FUNARI et. , 1999).
É importante considerar também a atenção existente em relação
a questões como: a ética, o caráter público da arqueologia, gênero, a
participação de povos e organizações indígenas (FUNARI et al,
NEVES, PODGORNY 1999).
Esse é o fundo teórico que refletiu, pautou e orientou a
disciplina de Arqueologia em janeiro e julho de 2006.
Questões de orientação metodológica do curso
Sobre a execução do curso em sala, em um primeiro instante
foi feita a apresentação dos aspectos teóricos sobre a disciplina,
77
Cadernos de Educação Escolar Indígena
chamando atenção das possibilidades para: a prática e o exercício de
interlocução 3 (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000); produção de
conhecimento científico a ser realizado pelos professores indígenas
via prática da pesquisa; teoria arqueológica que vem sendo discutida
no âmbito internacional; o papel que os professores indígenas podem
ter enquanto produtores de conhecimento; a necessidade de levantar
aspectos relacionados à produção do registro arqueológico e da cultura
material entre as populações indígenas presentes.
Outra situação discutida no momento introdutório do curso
se referiu a aspectos conceituais relacionados à Antropologia Histórica.
Nesse sentido, a idéia de cultura que procurou ser pensada estuda as
sociedades em um processo dinâmico, ligado aos seus aspectos
históricos e sociais. Essa perspectiva é pensada por Pacheco de Oliveira
(2001), que chama atenção para questões como: 1) a idéia crítica em
relação ao conceito de “aculturação”, que é impreciso e sem valor
operativo e analítico; 2) da infundada e perigosa idéia de autenticidade
de culturas. Objetivamente se procurou um campo de análise “[...] que
fuja de uma idealização do passado e de uma pureza original, da
naturalização da situação colonial e ainda de uma etnologia das
perdas culturais (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999: 118).
Em um segundo momento, foram feitas colocações relativas à
definição e à conceituação do que é a arqueologia, seus objetivos, objeto
e metodologias, refletindo o diálogo que deve estabelecer com a história
e a antropologia. E compreender a Arqueologia como uma disciplina
das ciências humanas, e que utiliza outras áreas do conhecimento,
como das ciências naturais, exatas e da linguagem em suas análises.
Desenvolvidos esses pontos, iniciou-se um processo de
pontuar a etnoarqueologia, especialmente no contexto brasileiro. Sendo
importante acentuar que, no Brasil é bastante interessante e possível
construir uma história indígena que permita uma reflexão mais
Essa prática possibilita a maior chance de se criar um campo de interlocução, por
minimizar o autoritarismo que existe nas pesquisas, mesmo aquelas que se diaem
mais neutras e objetivas. Com o exercício da interlocução se cria um espaço e uma
“relação dialógica”, em que o confronto entre culturas pode ser transformado em
“encontro etnográfico” com a “fusão de horizontes” e um “diálogo entre iguais”
(Cardoso de Oliveira, 2000: 23-24)
3
78
Arqueologia e educação escolar indígena...
aprofundada sobre as regiões que apresentam uma continuidade
cultural e diferentes processos históricos (LANDA, 2005).
A metodologia adotada para o curso foi a da prática da
pesquisa sobre aspectos da produção da cultura material nas
comunidades em que os professores indígenas estão inseridos. Foram
ressaltadas questões como: os aspectos simbólicos e sociais na
materialidade em diferentes culturas; a produção, o uso e o descarte
de materiais que se relacionam às variáveis ecológicas; as escolhas
culturais e sociais na elaboração, na utilização e no abandono de
produtos materiais; a distribuição espacial e o uso do espaço; os
sistemas de assentamento e a cronologia; áreas de atividade intra e
inter-sítios (LANDA, 2005).
Sobre as atividades desenvolvidas no curso
A carga horária integral do curso foi de 48 horas-aula, sendo
dividida pelas duas áreas de conhecimento, Arqueologia e Habitação
Indígena, portanto, 24 horas para a disciplina de Arqueologia. Essa
área teve como objetivo apresentar, discutir e enfocar questões
relacionadas à produção de um conhecimento específico e diferenciado
sobre o registro arqueológico e a cultura material, a saber, o
conhecimento indígena.
Esse tipo de interesse e conhecimento gerado, por parte dos
próprios indígenas, pode ser também caracterizado como “ciência
indígena”. Nesse sentido, habilita a arqueologia a contribuir para
discussões em torno da concepção, da formação e da consolidação
desse termo, “ciência indígena”. Esse foi um dos norteadores da
disciplina, discutir a inserção intelectual indígena no discurso
científico da arqueologia.
O curso teve a perspectiva de fornecer alguns elementos
técnicos e científicos para o estudo de aspectos culturais relacionados
à produção do registro arqueológico do passado e do presente. Tornase importante considerar as seguintes intenções: 1) realizar o registro
da cultura material produzida; 2) levantar e registrar técnicas de
produção; 3) discutir os aspectos simbólicos e sociais da cultura
79
Cadernos de Educação Escolar Indígena
material; 4) polemizar sobre a questão da desterritorialização e de
seus efeitos sobre a organização espacial e a cultura material,
procurando entender as continuidades e descontinuidades no
processo de interação entre as sociedades indígenas e a não-indígena.
As atividades de pesquisa que foram desenvolvidas pelos
professores indígenas objetivaram: levantar aspectos sobre a produção
do registro arqueológico no espaço doméstico (equipamentos
domésticos e de trabalho); a organização espacial da aldeia/terra
indígena, considerando a roça, a horta (quando houver), as árvores
frutíferas, a mata/cerrado e os locais onde estão as plantas medicinais.
Sobre esses pontos, durante a explanação, foram colocadas
questões como: divisão sexual do trabalho; os locais para o cultivo da
terra, o que é plantado; motivações sociais e organização; estruturas
físicas montadas e dimensões; ambientes onde estão localizadas e
onde são encontradas; o conhecimento e o domínio existente sobre o
ambiente; e os espaços significativos/simbólicos e representativos.
Nesse contexto de produção de conhecimento por parte dos
professores indígenas foram produzidos os seguintes materiais e
tabelas: a) Tabela 1 - Tralha doméstica e de trabalho; b) Tabela 2 - Lista
de fauna utilizada na confecção de artefatos; c) Tabela 3 - Lista de flora
utilizada na confecção de artefatos; d) Tabela 4 - Lista de artefatos de
uso ritual; e) Produção de texto – Como é a organização espacial da
sua comunidade, aldeia, povo; f) Produção de texto – Qual foi o impacto
do processo de desterritorialização na produção da cultura material
em sua comunidade.
80
Arqueologia e educação escolar indígena...
Tabela 1: Tralha doméstica e de trabalho (Modelo de tabela existente no
capítulo, “Equipamento doméstico e de trabalho”, de Lúcia Hussak Van
Velthem, contido na obra Suma Etnológica Brasileira-Tecnologia Indígena
Nome em
Português
Nome em
língua
indígena
Confecção
(M/F)
Uso
(M/F)
Matériaprima
utilizada
Observações
1) Utensílios
para transporte
2) Utensílios
para o preparo
de alimentos
3) Utensílios
para servir e
armazenar
alimentos
4) Utensílios
para conforto
pessoal
5) Utensílios
para limpeza
6) Implementos
para o preparo
de artefatos
Tabela 2: Lista de fauna utilizada na confecção de artefatos
Nome
português
Nome em
língua
indígena
Nome
português
Nome
em
língua
indígena
Utilização para
confecção de que
artefato/parte
utilizada
Risco de
escassez
Observações sobre o artefato e
sua importância (o simbólico, o
histórico, o cultural e a técnica)
Tabela 3: Lista de artefatos de uso ritual
Fitofisionomia
Utilização
para
confecção
de
artefato
Risco
de
escassez
Observações sobre o
artefato e sua
importância (o simbólico,
o histórico, o cultural e a
técnica)
Tabela 4: Lista de flora utilizada na confecção de artefatos
Nome
português
Nome em língua
indígena
Matéria prima
utilizada
Qual é o significado do
artefato
81
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Tabela 5: Lista de outras matérias primas utilizadas na confecção de
artefatos
Nome
português
Nome em
língua
indígena
Utilização para
confecção de
artefato/parte
utilizada
Risco de
escassez
Observações sobre o artefato e
sua importância (o simbólico,
o histórico, o cultural e a
técnica)
As atividades, durante a Etapa Presencial de janeiro, foram
todas realizadas em grupo, assim como as apresentações, já que, após
o desenvolvimento das pesquisas e atividades, aos professores índios
cabia a tarefa de apresentar o que haviam feito. Os trabalhos foram
realizados por tronco lingüístico, etnia ou por terra indígena, ficando
a critério dos professores cursistas a escolha do grupo.
Em relação à Etapa Intermediária (momento em que os
professores cursistas desenvolvem atividades entre as duas etapas
presenciais, de janeiro e julho), levando em consideração, em alguns
casos, o desconhecimento dos cursistas sobre aspectos relativos às
pesquisas solicitadas, algumas atividades foram propostas. Foi
solicitado que eles fizessem a revisão e a ampliação das pesquisas
efetivadas durante a Etapa Presencial de janeiro.
Outro ponto referente às atividades da Etapa Intermediária
foi à solicitação de novas pesquisas sobre os seguintes temas: a)
cerâmica; b) armas; c) armadilhas; d) pilão e mão-de-pilão; e) resíduos
sólidos; f) barcos; g) produção da cultura material feita para ou pelas
crianças. Há de se considerar que pontos e orientações técnicas e
culturais sobre cerâmica, armas e armadilhas estão contidos na
“apostila” deixada para os cursistas, na verdade, resumos fiéis sobre
alguns desses ítens contidos na obra Suma Etnológica Brasileira Tecnologia Indígena (Lima, 1987; Chiara, 1987). Além disso foi
realizada uma apresentação sobre os temas em sala de aula. Sobre os
demais temas houve a exposição em sala de aula durante a orientação
dessas atividades (Landa, 2005; Polits, 1999).
Para o desenvolvimento das atividades da Etapa Intermediária,
os professores indígenas contariam com a participação e a colaboração
da comunidade.
82
Arqueologia e educação escolar indígena...
Vale salientar que, para a realização das pesquisas nas aldeias,
houve a orientação para que elas fossem efetivadas a partir da
oralidade. Foi ressaltado também que atividades de tentativas de
escavação em sítios arqueológicos, sem um planejamento, recursos,
acompanhamentos técnicos e a regularização da pesquisa junto às
instituições responsáveis, como o IPHAN (Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional), podem ser prejudiciais e maléficas ao
sítio arqueológico.
Receptividade, interesses e percepções dos professores indígenas
Agora serão apresentados alguns pontos que refletem o que
os professores indígenas acharam da disciplina de Arqueologia, ou
seja, a percepção que tiveram sobre o curso de janeiro/fevereiro de
2006.
As colocações dos professores indígenas partiram de três
perguntas, que ao final de cada uma das disciplinas, foram
encaminhadas pela coordenação do 3º Grau Indígena para serem
respondidas pelos professores indígenas cursistas.
As três questões respondidas sobre a disciplina de
Arqueologia permitem analisar: a participação do discente na
disciplina, o grau de interesse, o que mais o interessou na área de
conhecimento, a necessidade de aprofundamento em algum dos temas
apresentados e a atividade docente, entre outras questões.
As perguntas foram as seguintes:
1) Como você avalia a sua participação nas aulas de
Arqueologia e Habitação Indígena?
2) Dos conteúdos trabalhados no componente curricular
Arqueologia e Habitação Indígena, quais você gostaria de aprofundar
na próxima etapa?
3) O que mais chamou a sua atenção nas aulas de Arqueologia
e Habitação Indígena?
83
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Trata-se de perguntas abertas e subjetivas, portanto as
respostas assim o são também, e apresentam uma grande variedade
de interesses e objetivos sobre a disciplina.
Os dados foram quantificados em forma de tabela, sobre as
quais estão apontadas as referências dos discentes, considerando que
em cada uma das perguntas o discente pode ter se referido a mais de
uma questão, interesse, crítica ou apontamento. Os dados tabulados e
quantificados abaixo indicam o número de professores indígenas que
fizeram cada uma das colocações.
1 - Como você avalia sua participação nas aulas de arqueologia
e habitações indígenas?
Colocações dos professores indígenas cursistas
1. Novos e variados conhecimentos
2. Valorização e conhecimento do passado, história, cultura,
costume.
3. Intercâmbio e debate.
4. Trabalho docente (clareza, metodologia).
5. Produção de pesquisa: desenhos, mapas, textos e tabelas.
6. Socialização e envolvimento da comunidade; busca de
conhecimento do passado.
7. Trabalho em grupo.
8. Materiais e fontes arqueológicas.
9. Desterritorialização.
10. Conteúdos.
11. Cultura material como comportamento humano,
manifestação física do homem, diversidade das relações
sociais e organizações.
12. Variedades de materiais e diversidade cultural.
13. Resgate e revitalização do que foi deixado.
14. Interdisciplinaridade.
15. Teoria e método científico (dados e proposições, pósprocessualismo).
16. Fases da Arqueologia.
17. Demonstrar situação atual.
18. Realizar o registro da cultura material.
19. Relação Arqueologia e Habitação Indígena.
20. Poder perguntar.
84
Nº de professores
indígenas que
fizeram
20
11
10
10
08
07
06
06
05
04
04
04
03
02
02
02
02
02
02
02
Arqueologia e educação escolar indígena...
21. Tempo escasso da disciplina.
22. Estudo do antigo.
23. Economia Indígena.
24. Para realizar um trabalho efetivo na escola.
25. Origens da agricultura, sociedades complexas, cultura e
comportamento.
26. Denominações e novas palavras.
27. A identificação de locais e sítios arqueológicos.
28. A não subordinação da Arqueologia em relação as
outras disciplinas.
29. O caráter ideológico da Arqueologia.
30. Excesso de teoria.
31. Como é feita a pesquisa.
32. Similaridade da produção de cerâmica entre diferentes
grupos.
33. Cultura material e festas culturais.
34. Artes dos povos do passado.
35. Antropologia física.
36. Não ter que estudar Arqueologia com teoria.
37. Importância para quando se formar arqueólogo.
38. Etnoarqueologia.
39. Técnicas, pesquisa e levantamentos (estratigrafia, solos).
40. Muita pesquisa docente.
41. Não é só o estudo do passado, mas também o presente.
42. Comparação do antigo com o atual.
43. Resgate ambiental e cultural.
44. Recordação e saudade.
45. Sítio arqueológico como um lugar significativo.
46. Reconhecer a realidade da comunidade.
47. Conhecimento para questões indígenas no geral.
01
01
01
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01
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01
01
01
01
01
01
2 - Dos conteúdos trabalhados no componente curricular
Arqueologia e Habitação Indígena, quais que você gostaria de
aprofundar na próxima etapa?
Colocações dos professores indígenas cursistas
1. Desterritorialização.
2. Procedimento em laboratório, classificação, pesquisa e
trabalho do arqueólogo, avaliação do trabalho do
arqueólogo.
3. Organização Espacial.
Nº de professores
indígenas que
fizeram
12
11
08
85
Cadernos de Educação Escolar Indígena
4. Conhecimento que é passado de geração para geração,
reconhecer ancestrais.
5. Especificar os materiais arqueológicos utilizados.
6. Ecofatos e biofatos.
7. Que seja realizada aula de campo e observações emic.
8. Fases da Arqueologia: diversidade ocidental clássica.
9. Datação.
10. Etnoarqueologia.
11. Osteoarqueologia.
12. Trabalho com alunos na escola.
13. Conhecimento para revitalização e retorno na
comunidade.
14. Sítio arqueológico.
15. Interdisciplinaridade: Arqueologia-HistóriaAntropologia.
16. Diversidade dos temas e tipologia.
17. Socialização de conhecimento com a comunidade.
18. Materiais arqueológicos: passado, presente e modernos.
19. Não misturar as disciplinas: Arqueologia e Habitação
Indígena.
20. Tabela de artefatos rituais.
21. Arqueoastronomia.
22. Sítios arqueológicos do Brasil.
23. Arqueologia de outros povos e etnias.
24. Origem da cultura complexa; cultura e comportamento.
25. Como saber território em um determinado período.
26. Sistema social, modelos.
27. Nova natureza dos projetos arqueológicos: Arqueologia
acadêmica, de contrato e pública.
28. A cultura material e o simbólico.
29. Fazer comparações.
30. Como identificar e atribuir etnia a um artefato cerâmico.
31. Alteridade e valor cultural.
32. Matérias primas.
33. Subsistência e dieta.
34. Como era feita a panela de comida nos antepassados.
35. Armadilhas e sua classificação.
36. Conhecer o mito pela Arqueologia.
37. Realização de seminários.
38. Trabalho em grupo por tronco.
39. Conhecer cultura material na língua do outro parente.
40. Estudar mais teoria..
41. Estudo do passado humano.
42. Significado da palavra polissemia.
86
07
06
06
06
06
06
04
03
03
03
03
03
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02
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Arqueologia e educação escolar indígena...
43. As primeiras artes.
44. Mais tempo para disciplina.
45. Tabela de flora e fauna.
46. Importância para nós professores índios.
47. Apoio dos mais velhos.
48. Zooarqueologia; arqueobotânica.
49. Relação com a saúde, produção e organização espacial
da comunidade.
50. Porque tem sítio arqueológico na minha aldeia.
51. Arqueologia do presente.
01
01
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3 - O que mais chamou a sua atenção nas aulas de Arqueologia
e Habitação Indígena?
Colocações dos professores indígenas cursistas
1. Intercâmbio: explicação professor aluno; contar história
da nossa vida; debates.
2. Desterritorialização.
3. Produção de textos, desenhos e tabelas.
4. Organização espacial.
5. Resgate, revitalização e preservação cultural.
6. Materiais arqueológicos.
7. Bagagem para aplicação em sala de aula; aula
diferenciada; método de ensino; melhoria cultural.
8. Biofato.
9. Para socializar e aplicar o conhecimento na aldeia.
10. Levantamentos e pesquisa de campo.
11. Ecofato.
12. Arqueologia e anexos funerários.
13. Diversidade cultural.
14. Interdisciplinaridade.
15. Datação.
16. Etnoarqueologia: diferentes historicidades e
levantamentos; continuidade cultural.
17. Aquilo que desaparece e resiste ao tempo
18. Divisão social do trabalho.
19. Estudo do antigo e do presente também.
20. Comparação passado-presente.
21. Lingüística-Arqueologia.
22. Conhecer a história.
23. Arqueologia – oralidade.
Nº de professores
indígenas que
fizeram
16
13
11
09
07
07
06
06
06
05
04
04
03
03
03
03
03
02
02
02
02
02
02
87
Cadernos de Educação Escolar Indígena
24. Não se rouba ou carrega; proteção de sítios para a
pesquisa.
25. Pesquisas da etapa intermediária.
26. Trabalho em grupo por tronco ou família lingüística.
27. Matéria prima para artefato.
28. Similaridade das palavras Arqueologia e Antropologia.
29. Definição de Arqueologia.
30. Pesquisa junto aos mais velhos.
31. Arqueologia e oralidade.
32. Novos conhecimentos.
33. Saudades.
34. Os mais jovens complementarem a pesquisa.
35. Realizar o registro.
36. Cosmovisão – Arqueologia.
37. Pintura rupestre.
38. Número reduzido de arqueólogos no Brasil.
39. Lugares significativos.
40. Trata a comunidade também, não é só escavação.
41. Primeiros homens.
42. Estudo do passado e antepassados.
43. Apoio aos professores continuarem a aprender e ensinar
sobre os povos indígenas do Brasil.
44. Trocas culturais.
45. Falta de diálogo entre a Arqueologia e a Antropologia.
46. Procedimentos legais para pesquisa em uma aldeia.
47. Arqueologia brasileira.
48. Arqueologia no mundo.
49. História da Arqueologia, teoria, questões, debates,
abordagem científica.
02
02
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01
01
Pode-se verificar o grande número de colocações feitas pelos
professores indígenas, valendo ressaltar questões como processos de
desterritorialização, idéias e concepções sobre a arqueologia, a
metodologia do curso, a possibilidade da comunidade participar das
pesquisas e as atividades realizadas durante o curso.
Ações continuadas na Arqueologia Pública e o 3º Grau Indígena
Uma das questões importantes a considerar sobre a disciplina
de Arqueologia no Projeto 3º Grau Indígena, é que ela tem propiciado
88
Arqueologia e educação escolar indígena...
a continuidade na orientação e no levantamento de questões a serem
pensadas pelos professores indígenas.
Acredito que foi reavivada ou despertada, ao considerar as
colocações e os posicionamentos dos professores índios durante os
cursos, uma série de reflexões sobre a forma como a cultura material
pode ser refletida no interior da comunidade. Esse tipo de pensamento
pode levar a questionamentos sobre idéias e concepções de patrimônio
histórico e sua relação com processos de educação escolar.
Foram apresentados neste texto alguns aspectos norteadores
para o desenvolvimento do curso de janeiro, assim como propostas de
atividades a serem realizadas durante a Etapa Intermediária. E também,
e principalmente, a leitura que os professores indígenas tiveram sobre
a disciplina de janeiro.
A disciplina de julho/2006 teve como propósito realizar uma
avaliação sobre a recepção e a percepção que os professore indígenas
tiveram sobre as atividades de pesquisa realizadas durante a
intermediária. Outro tema que foi abordado nessa etapa foi o Patrimônio
Histórico Urbano. E ainda uma discussão sobre pinturas rupestres que
pautou-se em realizar um exercício de significações para figuras
rupestres que estavam contidas na “apostila” (PROUS, 1992; 1991).
Sobre as atividades da Etapa Intermediária, entre janeiro e
julho, foram colocadas as seguintes questões para serem respondidas
e apresentadas oralmente: 1) Como foi a metodologia de pesquisa na
aldeia (onde foi feita a pesquisa, com quem e o por quê) ? 2) O que a
comunidade achou da pesquisa e sua importância? 3) O que você
achou da pesquisa e sua importância? 4) Antes do curso de
“Arqueologia” você já tinha ouvido falar em Arqueologia? Onde e o
quê? 5) Para você o que é Arqueologia? 6) Qual é a importância da
arqueologia para comunidade?
As respostas indicam questões como: espaços e
formas de socialização do conhecimento; organização e estruturação,
ou seja, uma metodologia de pesquisa em terra indígena feita pelos
próprios índios; esse tipo de atividade como uma face da universidade
“branca”; a necessidade do retorno desse tipo de conhecimento e
pesquisa para as próprias aldeias; a concepção indígena sobre
Arqueologia.
89
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Foi possível deixar atividades referentes à Arqueologia para
serem desenvolvidas durante a Etapa Intermediária, entre agosto/
2006 e janeiro/2007. As questões são as seguintes:
Atividade 1 – Essa atividade pode ser respondida por você ou
por pessoas da comunidade. Escreva se possível o nome do museu ou
instituição de pesquisa que é conhecida:
a) O que você acha dos museus e qual é a sua importância?
b) O que você pensa sobre o uso da cultura material em
atividades de museus e instituições de pesquisa?
c) Fale sobre o que você acha das atividades de pesquisas
arqueológicas e coleções de materiais arqueológicos de povos indígenas
extintos e vivos realizadas por museus e instituições de pesquisa.
d) Como você acha que pode ser a relação entre a sociedade
indígena, os museus e as instituições de pesquisa? Diga de que forma
os povos indígenas podem contribuir nas atividades desses locais,
assim como qual pode ser a contribuição dessas instituições em relação
às questões indígenas.
Atividade 2 – Faça o registro das figuras rupestres existentes
na sua terra indígena, ou que sejam conhecidas por pessoas da sua
comunidade. Fale sobre o significado.
Atividade 3 – Qual seria o nome dado a Arqueologia na sua
língua indígena? Explique por que e o que significa.
É importante assinalar a continuidade de atividades
relacionadas a Arqueologia nessa Licenciatura. A disciplina permite
perceber posições e interesses, que são continuamente refletidos e
aplicados pelos professores indígenas em seu cotidiano e na sua
prática na aldeia e na escola. Assim como existe a relação e a expressão
da comunidade sobre as ações e percepções do professor indígena.
Refletir questões e orientar, a partir da disciplina, a produção
de conhecimento indígena há quase um ano, certamente já trás
importantes resultados e desdobramentos para os professores
indígenas e também para a comunidade.
90
Arqueologia e educação escolar indígena...
Conclusão
Talvez seja possível afirmar, que os professores indígenas
tiveram um contato estreito sobre alguns aspectos da pesquisa
arqueológica e o mundo de suas interpretações.
Algumas das etapas sobre a pesquisa arqueológica não foi
ainda possível de ser realizada, como participação em escavação
arqueológica (mesmo em sítio simulado) e a etapa de laboratório. São
questões do método arqueológico importantes de serem conhecidas e
refletidas por eles, mas que apresentam algumas limitações, entretanto
são certamente possíveis de serem pensadas e planejadas.
Mas é importante falar que a arqueologia certamente não se
reduz apenas a escavação arqueológica, mas sim, a escavação
configura-se numa etapa da pesquisa. Entretanto, pode-se falar que
um círculo de atividades e consultas foi fechado: aquele que pensa a
produção da cultura material realizada pelos professores indígenas;
um diagnóstico sobre a importância da Arqueologia para as pessoas
que estiveram de alguma forma envolvidas nas pesquisas; um
levantamento de conceitos e definições sobre a arqueologia.
Por outro lado, as atividades propostas em julho/2006 a serem
desenvolvidas na Etapa Intermediária permitirão observar: questões
referentes a compreensão que diferentes indígenas têm sobre a cultura
material indígena que é pesquisada e expostas em museus e instituições
de pesquisa; como pode ser a interação entre sociedades indígenas e
essas instituições; e também uma pesquisa de interpretação de figuras
rupestres.
Portanto, é possível dizer que foi pensado: a produção do
registro arqueológico; o caráter público da Arqueologia; uma
metodologia de pesquisa nessa área considerando a especificidade de
trabalhar com professores indígenas.
Em termos conceituais, as questões discutidas se referem
também a dois temas principais: educação e patrimônio. Pois se trata
de um curso voltado ao estudo da arqueologia e produção do registro
arqueológico que é desenvolvido com professores indígenas. Discuti
91
Cadernos de Educação Escolar Indígena
pontos relacionados a concepções sobre o que é a arqueologia, o
significado de patrimônio, cultural material e arqueologia para esses
professores, quais seus interesses e qual a importância desse tipo de
conhecimento, ou seja, suas percepções sobre arqueologia, patrimônio
e educação.
Esse texto é parte dos resultados de um curso que teve por
objetivo primordial, contribuir para que os olhos dos professores
indígenas se dirigissem para a cultura material.
Bibliografia
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escrever. O trabalho do antropólogo. São Paulo: EDUSP, 2000.
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questões e debates. Revista do MAE. São Paulo, USP, Anais da I Reunião
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Suma Etnológica Brasileira – Tecnologia Indígena. Vozes. Petrópolis.
1987,Vozes.
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92
Arqueologia e educação escolar indígena...
PACHECO DE OLIVEIRA, João. A problemática dos “índios misturados”
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& Entrando e saindo da “mistura” os índios nos censos nacionais. Ensaios
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RATHZ, Philip. O que é Arqueologia? Convite à Arqueologia. Rio de
Janeiro: Imago Ed., 1989.
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RIBEIRO, Darcy (editor). Suma Etnológica Brasileira – Tecnologia
Indígena. Petrópolis. 1987.Vozes.
93
“Karajá é um Bicho T
raiçoeiro”:
Traiçoeiro”:
al
guns estereótipos presen
tes em
alguns
presentes
nosso corpus
Maristela Sousa Torres*
O presente trabalho é parte da pesquisa realizada no contexto
da elaboração dissertação de mestrado, cujo propósito deste estudo
consistiu em compreender as relações interétnicas entre alunos Iny
Mahadu1 e a comunidade escolar de três municípios na região do
Araguaia, analisando assim, através das vozes e atitudes dos sujeitos
envolvidos neste processo, como a escola tem se posicionado diante
das recomendações e diretrizes das leis da educação que propõem a
incorporação do interculturalismo como parte integrante aos currículos
escolares, e como um meio de valorização da diversidade étnicocultural e, dessa maneira, promover a eliminação das desigualdades
raciais.
“(...) Quando as pessoas chegam ao posto e tem Karajá, eles
também falam: Aqui no posto tem mais índio do que gente”. (Aluna
não indígena – São Felix do Araguaia).
Segundo Goffman (1978, p.11), estigma é um termo criado
pelos gregos para se referirem a sinais corporais com os quais se
procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau, sobre
status moral de quem os apresentava. Estes sinais eram feitos através
Maristela Sousa Torres é doutoranda em Antropologia pelo Programa de Ciências
Sociais da PUC/SP. E-mail: [email protected]
*
Iny é a auto-denominação do Povo Karajá, Iny se refere à forma singular da autodenominação e Iny Mahadu a forma plural. O povo Karajá vive na região do
Araguaia, nos Estados de Mato Grosso e Tocantins.
1
95
Cadernos de Educação Escolar Indígena
de queimaduras ou cortes os quais serviam para identificar que o
portador era um escravo, um criminoso ou um traidor, assim, uma
pessoa marcada era considerada poluída e, portanto, deveria ser
evitada em público.
Para o autor, hoje em dia o termo é mais aplicado ao se referir
a desgraça de uma pessoa, com a finalidade de transmitir um atributo
depreciativo, portanto, o estigma é um tipo especial de relação entre
atributo e estereótipo.
Desse modo, Goffman (1978 p.14) menciona três tipos
diferentes de estigma. O primeiro como sendo as abominações do corpo,
ou seja, as deformidades físicas. O segundo, as culpas de caráter
individual, denominadas como: fraquezas, paixões tirânicas, crenças
falsas e rígidas, desonestidade, distúrbio mental, prisões, vícios
alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio,
comportamento político radical. E, finalmente, os estigmas tribais de
raça, nação e religião, estes podem ser transmitidos através de
linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família.
Assim, por definição, acredita-se que alguém com um estigma não seja
completamente humano (esta seria uma das razões de não considerar
os Iny como humanos?) e, com base nisso, utilizam-se as mais variadas
formas de discriminação através de estigmas específicos como:
aleijado, bastardo, retardado, prostituta, “índio” e muitos outros que
são utilizados como fonte de metáforas e representação, dos quais
muitas vezes são citados sem mesmo a pessoa pensar no seu
significado.
Dessa maneira, o autor conclui que o estigma envolve não
somente um conjunto de indivíduos que podem ser divididos em
duas categorias: a de estigmatizados e a de normais, como também um
processo social de dois papéis, no qual cada indivíduo participa de
ambos, em alguma fase da vida. Para ele o normal e o estigmatizado
não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações
sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não
cumpridas. Como no processo de estigmatização o que está em jogo
são os papéis em interação e não os indivíduos, em muitos casos,
aquele que é estigmatizado, em outros momentos pode utilizar-se de
preconceito, estigmatizando pessoas em outros aspectos (GOFFMAN,
1978, p. 148-149).
96
“Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos...
Segundo Elias e Scotson (1990), os elementos que levaram o
grupo dos estabelecidos estigmatizarem o grupo dos outsiders,
consistiram apenas no fato dos estabelecidos permanecerem no
povoado desde longa data e os outsiders eram, no entanto os mais
novos dos residentes. Não havia diferença de nacionalidade,
ascendência étnica, “cor” ou “raça”, entre os residentes das duas áreas,
e eles tampouco diferiam quanto a sua classe social. As duas eram de
trabalhadores.
Conforme Elias e Scotson (1990), os termos utilizados por um
grupo, para estigmatizar outro, muda de acordo com as características
sociais e as tradições de cada grupo, eles são utilizados dependendo
dos sentidos atribuídos para ferir o outro grupo. Segundo os autores o
próprio nome do grupo pode ser utilizado como um estigma,
implicando assim, para os ouvidos do outro um efeito de sentido de
inferioridade e desonra. Dessa forma, a estigmatização pode surtir um
efeito paralisante nos grupos de menor poder.
Concordamos com Elias e Scotson, quando eles colocam que
o próprio nome do grupo é utilizado como forma de estigmatizaçâo,
uma vez que o termo “Karajá” é muito utilizado pelos moradores locais,
com sentido de estigmatização. Talvez por isso, eles preferem ser
chamados Iny, sua autodenominação, por não soar com esse peso
pejorativo, como meio de discriminar. O próprio termo “índio” carrega
esse sentido discriminatório, uma vez que generaliza, atribuindo para
todos os povos indígenas, um sentido único. Desse modo, cada povo
faz questão de ser chamado como se autodenomina, o que pode ser
uma maneira de se afirmar enquanto identidades próprias conforme
observa Meliá:
“A autodenominação de muitos povos indígenas reflete
claramente que eles se consideram a verdadeira expressão da natureza
humana, que eles são “a gente”, ideal de toda a educação. Os Guarani
se autodenominam AVA (homem adulto), ou MBYÁ (gente), e ainda
com outros nomes, conforme as parcialidades e subgrupos étnicos. Os
Paresi se autodenominam HALITI (pessoa humana). Os Iranxe, Myky
(gente). Os Xavante, AWE (povo autêntico). Os Bororo, BOE (gente), Os
Karajá Iny (gente)” (MELIÁ, 1997, p. 12).
Ainda, somado ao peso do estereótipo do termo “Karajá”, eles
têm que conviver com uma gama de outros estereótipos, dos quais
97
Cadernos de Educação Escolar Indígena
ficaram evidentes nas nossas entrevistas alguns deles: Karajá não é
gente, Karajá é bicho, Karajá é traiçoeiro, Karajá não é brasileiro
legítimo, Karajá não trabalha, Karajá é preguiçoso, Karajá não faz roça,
Karajá não precisa de terra, Karajá é besta, Karajá não sabe falar
português, Karajá é fedido, Karajá é bebedor de pinga, Karajá come
comida que não presta, Karajá come piolho, Karajá é burro só tem
piolho na cabeça, Karajá é do mato, Karajá é traficante, Karajá é
destruidor da natureza.
Marilena Chauí (1985, p.56), atribui toda esta gama de
estereótipos que existem sobre os povos indígenas, a uma sociedade
onde a luta de classe é identificada apenas com os momentos de
confronto direto entre as classes.De acordo com Chauí, os
estereótipos com relação aos negros também não são muito diferentes,
uma vez que os negros são considerados infantis, ignorantes, raça
inferior e perigosa, assim definidos por muitos: “Um negro parado é
suspeito; correndo, é culpado”.
“O próprio termo Karajá, parece que essa palavra “Karajá” já
tem peso, já tem uma discriminação. Qualquer coisa de errado que
acontece já falam: Ah! Esse Karajá né, esse índio. Usa muito o termo
“índio” como um deboche, como povo inferior, eles tratam como povo
inferior por que eles têm algumas dificuldades, realmente com poucas
exceções, da escrita com a língua portuguesa eles têm algumas
dificuldades, então os demais falam: Esse índio não sabe ler não, só ler
na língua deles, a não sei o que, faz deboche, assim, é uma forma de
preconceito que eles enfrentam. Mas nós temos um “volume” de índio
inteligente, índio inteligente no ensino médio. No 2º ano B, o melhor
aluno da sala é um Karajá, é aquele que tira dez em tudo, lê bem, tem
uma grafia muito boa. Não sei a história dele, não conheço a história
deles, mas, é um ótimo aluno”.(Professor – Luciara)
A fala desse professor demonstra esse peso discriminatório e
essa generalização que acontece com os Iny Mahadu e com os povos
indígenas de maneira geral. Ele inicia sua fala, relatando que há essa
discriminação contra os Karajá, colocando-se de fora desse processo
discriminatório, no entanto, ao afirmar que existe Karajá inteligente,
ele se inclui nesse grupo dos discriminadores, quando afirma: “Mas
nós temos um “volume” de índios inteligentes”. Desse modo, nos
parece que coloca o índio na mesma condição de objetos, ele não se
98
“Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos...
refere a pessoas, mas sim a coisas. Coloca-se também na mesma
condição dos demais, uma vez que não conhece a história do aluno, e
não houve o menor esforço para conhecê-la.
Para termos uma noção de como estes estereótipos são
construídos, colocaremos alguns deles, presentes em nosso corpus:
“Eles diziam que eu era besta, diziam que era sujo, era assim,
não sabia fazer nada, não sabia arrumar as coisas, não sabia falar
português”. (Ex-aluna Karajá – São Félix).
Elias e Scotson (idem, pg. 29), afirma que os grupos
estabelecidos que dispõem de uma grande margem de poder, tendem
a vivenciar seus grupos outsiders não apenas como desordeiros que
desrespeitam as leis e as normas, mas também como não sendo
particularmente limpos. Há, segundo ele, um medo por parte dos
estabelecidos de que o contato com os membros do outro grupo
contamina e, que esta contaminação, se daria pela anomia e pela
sujeira.
“Eles falam também da nossa comida, que comemos comida
nojenta, que nós comemos macaco, comemos camaleão, que a nossa
comida não é igual a comida de gente. Também falam que karajá é
desorganizado, só presta para beber pinga, que moramos na aldeia,
que a aldeia é suja, que a aldeia é nojenta, que índio não pode estudar
na cidade porque índio é do mato, que índio tem que morar é no
mato”.(Ex-aluno e professor – Aléia Majterytawa).
Mais uma vez percebe-se a imposição de valores da cultura
ocidental aos Iny Mahadu, onde parte-se do princípio que a comida
boa é a da sociedade dominante, que a comida do Iny é uma comida
nojenta, que não é igual à comida de gente. Desse modo, comparandoos com animais, como não sendo gente, considerando assim, que
somente a comida da sociedade dominante é comida de gente. O fato
dos Iny comerem sentados no chão, e muitas vezes todos em uma
mesma vasilha, é considerado pelos moradores da sociedade local
como sendo falta de higiene.
99
Foto: Maristela Torres
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Figura 1: Família comendo peixe
Novamente, segundo Elias e Scotson, quase em toda parte, os
membros dos grupos estabelecidos orgulham-se de serem mais limpos,
no sentido literal e figurado, de terem a comida melhor que a comida
dos outros.
A visão de que os Iny Mahadu são sujos, são sem higiene, é uma
visão bastante estereotipada, há que se perguntar sobre o que é estar
limpo, o que é ter higiene e ainda, que conceito de higiene está sendo
utilizado. Para encontrar a resposta basta considerar que os Iny é um
povo que habita sempre às margens do rio Araguaia, ou seus lagos
adjacentes, e tem como costume diário tomar vários banhos por dia.
Faz parte do seu hábito, todo dia, ao acordar, a primeira coisa
que fazem é tomar banho de rio. O banho passa a ser também uma
atividade de lazer. É costume nas aldeias, diariamente, as pessoas
passarem horas no rio, tomando banho, nadando, brincando. As
brincadeiras das crianças geralmente são no rio. Uma criança Iny,
desde pequena já aprende a nadar. As mulheres passam várias horas
diárias no rio, lavando vasilhas, roupas, limpando peixe ou realizando
outras atividades domésticas.
100
Foto: Maristela Torres
“Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos...
Figura 2: Criança Iny no Rio Araguaia
Vale destacar ainda que tradicionalmente, na época da seca,
os Iny Mahadu passam meses com a família nas praias do Araguaia,
que se pode considerar um local muito limpo.
Temos que levar em conta também, nessa relação, a concepção
de “casa suja”. Falar que uma casa de Iny é “suja”, é não ter a
sensibilidade cultural de entender que cascas, pedaços de madeira,
palhas de buriti, sementes de tucum e outros materiais utilizados na
fabricação de artesanatos não são lixo.
Há ainda, na relação dos moradores locais com os Iny
Mahadu, o preconceito de que o contato com eles, por menor que seja,
é fator de transmissão de doenças. Como podemos observar na fala
desta aluna:
“Geralmente, as pessoas não gostam de almoçar perto deles,
porque fala que tá fedendo, fala que tá contaminado. Sentem um pouco
de nojo, fala que vai pegar doença”.(Aluna – São Felix do Araguaia)
A fala dessa aluna evidencia uma questão bastante complexa
na relação da sociedade local com os Iny, que é a questão do “medo”
101
Cadernos de Educação Escolar Indígena
de pegarem doenças através do contato com eles. Por diversas vezes
nos deparamos diante de situações em que pessoas Iny pediram água
na casa de moradores das cidades e estes, após o Iny tomar a água,
jogaram o copo no lixo. Segundo eles, o copo estava contaminado e
iria transmitir doenças, dentre outras a tuberculose. Isso acontece
também com colheres, às vezes dão comida para um Iny e depois jogam
a colher fora. Observa-se que tais atitudes vão sendo passadas de pais
para filhos. Segundo Elias e Scotson, isso acontece em outros locais.
“Na escola eles falam assim, que Karajá é bebedor de pinga,
então é por isso que não trabalha, que não faz roça, que vem na cidade
vender peixe e compra só pinga, não compra nada pra casa”. (Exaluno e Auxiliar de Enfermagem Iny – Aldeia Itxalá).
Conforme colocou este jovem Iny que trabalha como Auxiliar
de Enfermagem em sua aldeia, ouviu na escola que Iny é bebedor de
pinga, que não trabalha, que gasta todo o dinheiro da venda do peixe
comprando pinga. Isto mostra a generalização e o desconhecimento
dessas pessoas, das formas de vida dos Iny Mahadu. Primeiro, para
eles a atividade da pesca e da venda do peixe não é trabalho; segundo,
todo Iny gasta seu dinheiro comprando pinga.
“Falam assim: Você está trabalhando, mas no final da semana
eu acho, eu aposto que você vai gastar todo esse dinheiro é só em
cachaça. Você deve ter família, alguma coisa assim, mas ao invés de
você comprar alguma coisa, vai comprar é cachaça e outras coisas que
não, que não presta né. Então na minha opinião eu acho que eles não
deveriam falar isso né, deveria conhecer as suas coisas como nós
conhecemos a nossa cultura. Eles deviam falar pra os filhos deles né,
aconselhar, falar eles não fazerem coisas erradas, não comprar coisas
ruins, gastar o dinheiro com outras coisas né. Não ficar falando assim
só pra nós né, jogando tudo isso na cara do índio, eu acho que assim
é uma descriminação muito grande”.(Ex-aluno e Professor Iny - Aldeia
Kherawa).
Neste caso, o morador local admitiu que o Iny estava
realizando um trabalho e que esse deveria possuir uma família ou
“alguma coisa assim”. No entanto, não deixa de se referir com
preconceito, através do estereótipo e da generalização, quando afirma
ter certeza que este vai gastar o dinheiro com “pinga”.
102
“Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos...
“O branco2 fala que eles comem piolho, que eles vivem bebendo
pinga, que eles são preguiçosos. Essas coisas que todos nós já sabemos.
Eles são pessoas que têm uma... , que não pensam, tem terra. Pra que
terra pro índio, pra que eles precisam de terra, bom é uma questão
cultural mesmo”.(Professor – São Félix do Araguaia)
Na fala desse professor ele admite que os estereótipos
mencionados anteriormente pelos Karajá são evidentes, acrescenta
ainda que Karajá come piolho, é preguiçoso e não precisa de terra.
No caso do estudo realizado por Elias e Scotson, observa-se
que os estabelecidos consideram normal a exclusão dos outsiders e
estes também acabaram, depois de algum tempo, aceitando tal
condição.
Sobre esta questão, por parte dos Iny Mahadu há uma grande
diferença. Eles jamais aceitam a condição de inferiores, como podemos
observar nestas falas:
“Olha, uma vez tinha uns três caras falando perto de mim e
gozando, índio é preguiçoso, índio não trabalha, índio não precisa de
terra. (muita gente fala que índio não precisa de terra). Aí eu chamei
para sentar comigo, ele veio, eu comecei a falar: “Você tem quantos
anos que mora aqui?” Ele falou: “tem 28 anos que eu moro aqui”. Eu
falei para ele: “Você mora aqui há tanto tempo e nunca aprendeu nada
sobre a história dos índios?” Falei da bebida, perguntei pra ele. “Você
já me viu bebendo aqui?” Ele falou: “Não”. “Então por que você está
falando que índio é bêbado?” Eu perguntei pra ele. “Todo branco é
trabalhador?” Ele falou: “Não”. Então,” eu falei por que você está
falando que só índio é que é preguiçoso? Você já foi na aldeia conhecer
como é a vida dos índios, como é o nosso trabalho?” Ele falou “Não”.
“Então por que você está falando que nós não trabalhamos?” Perguntei
também pra ele: “Você sabe falar a nossa língua?” Ele falou “Não”.
Então eu disse: “Pois é eu estou falando a sua língua, eu estou
entendendo como é que você fala. Então como é que você pode falar
que índio é burro? que índio não sabe nada? Ele levantou e foi
embora”.(Ex-aluno e professor Iny – Aldeia Majterytawa).
2
Branco é um termo utilizado para designar o não-índio
103
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Na fala desse professor observa-se que ele não aceita a
condição de ser discriminado e a maneira de reagir contra isto é através
do diálogo. Ele chama a pessoa para conversar e procura mostrar para
ela que é necessário conhecer melhor o outro, (para que tenha uma
outra visão sobre ele) para poder falar dele.
“Estudar é importante porque é uma questão de sobrevivência
dos povos. Eu preciso estudar pra aprender a me defender dos ataques,
temos muitos ataques fora do nosso costume. Então, é importante o
Karajá estudar pra ele ter a real situação que a comunidade tem, por
exemplo, a língua, o costume e, a partir do momento que o indivíduo
indígena estuda, ele tem uma noção assim geral da situação do mundo
global, mas aí volta a questão indígena que pra ele é interessante, pra
ele é interessante até pra ele poder lutar, defender os direitos indígenas
e tudo isso é válido pra nós”.(Advogado e chefe de posto Iny - Aldeia
Krehawa).
Neste caso, há a questão de que é importante estudar para
poder se apropriar de maneiras de defesa contra os ataques da
sociedade dominante. Talvez pelo fato dele ser formado em direito, ele
dê tanta importância para esta questão, como podemos identificar
neste outro depoimento.
“Olha, a gente precisa ter em mente que nós índios temos
direitos, assim, como cidadão brasileiro nós temos. Então uma coisa
que falta mesmo é o respeito ao direito nosso, eu tenho que respeitar,
respeito. Mas eles faltam com respeito, com relação ao nosso direito, e
isso tem que ser colocado na escola. Nós temos direitos a isso e a
aquilo. Isso deve ser falado na escola pros alunos. Isso deve fazer
parte do programa da escola. Então, o cidadão luciarense, que é o
nosso caso aqui, vai saber qual é o nosso direito. Então, enquanto não
acontecer isso, sempre vai ser essa história, nós respeitando o direito
de lá e eles desrespeitando nossos direitos. Então, fica difícil pra nós.
Então, têm que começar um trabalho no sentido de esclarecer, colocar
às claras quais são os direitos nossos e os deles”.(Advogado e Chefe
de Posto – Aldeia Krehawa)
Enfim, com este estudo, ficou demonstrado que o preconceito
não é inato, que o estereótipo é um produto cultural e, para que ele
exista, é necessário que os indivíduos se apropriem dele, mais do que
104
“Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos...
isso, é necessário que esses indivíduos desenvolvam uma estrutura
psíquica para que estes sejam incorporados.
Podemos observar esta questão na maneira em que o
preconceito se dá na região do Araguaia, onde há um processo de
transmissão da imagem negativa dos Karajá, que vai sendo transmitida
de pai para filho:
“Na rua você ouve: “Povo preguiçoso, povo que ganha
dinheiro do governo a toa, (ou seja, sem trabalhar)”, Na rua você ouve
as maiores barbaridades. “Índio só sabe tomar cachaça, índio tem
muita terra e não faz nada”, é coisa um absurdo, é muito presente
assim esse ódio, é um ódio assim muito aparente. Os filhos dessas
pessoas estudam aqui, é a mesma coisa, aí passa isso pros filhos. Pra
você ter uma idéia, no começo do ano, que eu comecei trabalhar aqui
devia ter uns 20 Karajá matriculados a noite, hoje deve ter uns três
estudando”.(Professor – Luciara).
Neste caso, os alunos aprendem com os pais toda uma série
de estereótipos, e passa também a odiá-los como os pais e, na escola,
explicitam esses estereótipos descriminando e passando para outros
alunos.
“Lá em São Félix, um dia, eu estava passando, aí uma criança,
uma garotinha, ela me enxergou e começou a bater na boca com a mão
fazendo um barulho com a mão. Fazendo um barulho assim: Uuuu...
Uuuu... Uuuuu... Aí ela parou e perguntou pra mim: “Ô você é índio?”
Eu falei “sou Karajá”, aí ela falou: “Hei índo você tá vindo de onde é
do mato?” Eu falei: “Eu tou vindo da minha casa”. Aí ela falou: “Ah!
Você tá vindo da aldeia num é? Minha mãe falou que a aldeia é lá no
mato. Você tá vindo do mato”. Aí tem os pais também que falam para
as crianças, para amedrontarem as crianças. Não chora, ou não faz
isso porque se não Karajá vem te pegar (...) Então as crianças vão
crescendo com esse medo da gente, com esse medo do índio. Os pais
não ensinam que somos seres humanos como eles”.(...).(Ex-aluno e
Professor Iny– Aldeia Majteritawa).
Os meios de comunicação muitas vezes também contribuem
para a propagação dessa imagem negativa dos povos indígenas, como
podemos observar neste relato.
105
Cadernos de Educação Escolar Indígena
“(...) Assim, muita gente tem a imagem do índio que é passada
através da televisão, que o índio não sabe de nada, que índio não sabe
conversar, que índio não entende nada. Isso acontece devido à imagem
que a televisão passa, que é uma realidade diferente da nossa, por
exemplo, aquele personagem “Uga-Uga”, da televisão”.(Ex-aluno e
Professor Iny– Aldeia Majteritawa)
Luciana Jaccoud e Nathalie Beghin, em “Desigualdades
Raciais no Brasil” (2002), consideram que a reprodução de estereótipos
e preconceitos raciais legitima os procedimentos discriminatórios.
Assim, para elas, a desigualdade racial surge como fruto de um
processo complexo, no qual se pode identificar a ação de diversos
fenômenos como: o racismo, o preconceito racial e a discriminação
racial.
Tentando diferenciar racismo e preconceito racial de
discriminação racial, as autoras buscam Hélio Santos, o qual conceitua
o racismo e o preconceito como maneiras de ver certas pessoas ou
grupos raciais, enquanto que a discriminação racial, para ele, é definida
como uma ação, uma manifestação ou um comportamento que
prejudica certa pessoa ou grupo de pessoas em decorrência de sua
raça ou cor.
“Uma vez também eu estava com o meu cunhado, o Ronaldo.
Nós estávamos na fila da escola para a merenda, ele estava de cocar3.
Aí veio um menino e falou para ele. Olha, é índio. Aí o garoto pegou no
braço do Ronaldo e apertou, aí ele falou para o amigo dele: Olha ele
também tem osso igual a gente”. “Só que hoje em dia eu nunca mais
fiquei calado, nunca mais deixei passar em branco, quando alguém se
dirige a mim com discriminação agora eu falo”. (Professor – Aldeia
Majterytawa).
É lamentável pensarmos que as crianças estão crescendo com
essa visão de que os povos indígenas não são seres humanos.
Acreditamos que não somente a escola, mas a sociedade como um
todo tem essa grande tarefa de trabalhar para que as questões das
diferenças culturais sejam vistas como um processo enriquecedor das
relações sociais. Concordamos com Martins, quando ele coloca a idéia
3
Uma forma de capacete, de pena, que é utilizado na cabeça.
106
“Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos...
de que, para se tornarem humanos, os povos indígenas têm que ser
batizados vem sendo passada desde a chegada dos europeus. Em
função disso, muitos povos tiveram e ainda têm suas culturas negadas
e dizimadas por religiosos e missionários que acreditavam e acreditam
que, dessa forma, os índios se tornam dignos de salvação e, desse
modo, reforçam a noção de que os indígenas, que não são batizados
não são humanos. Assim, o batismo foi e continua sendo como uma
espécie de passaporte para os povos indígenas se tornarem humanos
(MARTINS, 1993)
Desse modo, quando o racista ou o preconceituoso externaliza
sua atitude, transformado em manifestação, ocorre a discriminação.
Ainda, para Santos (apud Jaccoud e Beghin) o racismo parte do
pressuposto da superioridade de um componente racial sobre outro,
bem como da crença de que um determinado grupo possui defeitos de
ordem moral e intelectual que lhe são próprios. O preconceito racial,
no entanto, limita-se à construção de uma idéia negativa sobre alguém,
produzida a partir de uma comparação realizada com o padrão que é
próprio ao grupo que julga. (HÉLIO SANTOS, apud JACCOUD e
BEGHIN, 2002, p. 38).
O Comitê Nacional que preparou o relatório apresentado pelo
Brasil, na conferência de Durban, definiu o preconceito e a
discriminação como uma predisposição negativa dirigida a pessoas,
grupos de pessoas ou instituições sociais.
Por sua vez, Hélio Santos traz uma importante contribuição
sobre esta questão. Para ele, “em seu sentido estrito, preconceito consiste
em uma construção mental ou afetiva, uma idéia preconcebida sobre
uma pessoa ou grupo de pessoas”. Discriminação, no entanto, é
“qualquer distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito
anular ou destruir a igualdade de oportunidade e tratamento”. Desse
modo, existe discriminação “sempre que uma pessoa seja impedida
de exercer um direito por motivos injustificados, arbitrários, racistas,
não podendo usufruir as mesmas oportunidades e o mesmo tratamento
de que gozam outras pessoas, em função da raça, sexo, idade ou
qualquer outro critério arbitrário” (SANTOS, apud JACCOUD e
BERHIN, 2002, p, 39).
Para Jaccoud e Beghin, preconceito racial é entendido como
as predisposições negativas em face de um indivíduo, grupo ou
107
Cadernos de Educação Escolar Indígena
instituições, que sejam centradas em generalizações estigmatizantes
sobre a raça a que é identificado.
Nessa concepção, discriminação racial é definida como toda
e qualquer distinção, exclusão ou preferência racial que tenha por
efeito anular a igualdade de oportunidades e tratamento entre as
pessoas ou grupos. Elas apontam para a distinção entre dois tipos de
discriminação racial, a direta e a indireta.
A discriminação racial direta consiste naquela derivada de
atos concretos de discriminação, em que o discriminado é excluído
expressamente em razão de sua cor ou raça. A indireta, no entanto,
consiste “naquela que redunda em uma desigualdade não oriunda de
atos concretos ou de manifestação expressa de discriminação por parte
de quem quer que seja, mas de práticas administrativas, empresariais
ou de políticas públicas aparentemente neutras, porém dotadas de
grande potencial discriminatório”.
Para elas, a discriminação indireta tem sido entendida como
sendo a maneira mais perversa de discriminar, uma vez que ela se
alimenta de estereótipos arraigados e considerados legítimos e se
exercem sobre o manto de práticas administrativas ou institucionais.
Assim, esse tipo de discriminação de caráter dissimulado, também
chamado de discriminação “invisível”, torna-se expresso nitidamente
por meio de indicadores de desigualdade entre grupos.
Vale ressaltar que nesta pesquisa observou-se estes dois tipos
de discriminação, porém, a predominância maior foi da discriminação
direta, como se pode observar nas falas colocadas anteriormente e
conforme podemos perceber nesta fala:
“Depois que eu entrei na política, teve uma palestra e um
aluno disse que índio é tão burro que só tem piolho na cabeça. Disse
que o índio não é interessado, que vão para a escola só para prejudicar
e não assume a sua responsabilidade como aluno”.(Ex-aluna, Auxiliar
de Enfermagem e Vereadora Iny – Aldeia Krehawa).
Segundo Bhabha (1998), o estereótipo é a principal estratégia
discursiva do colonizador como forma de conhecimento e identificação
que vacila entre o que está sempre “no lugar” já conhecido e algo que
deve ser sistematicamente repetido. Para ele, reconhecer o estereótipo
como um modo ambivalente de conhecimento e poder exige uma
108
“Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos...
postura teórica e política que desafia os modos funcionalistas, de
conhecer a relação entre o discurso e a política.
Assim, o discurso do colonizador tem como meta apresentar
o colonizado como uma população do tipo degenerado, tomando por
base a sua origem racial, isso, para justificar a conquista e estabelecer
sistemas de administração e instrução.
Assim, para ele, o estereótipo é uma falsa representação de
uma realidade, portanto, uma simplificação porque é uma forma presa,
fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença, que a negação
através do outro permite, constitui um problema para a representação
do sujeito em significação de relações psíquicas e sociais.
Desse modo, um repertório de posições conflituosas constitui
o sujeito do discurso colonial. A tomada de qualquer posição e, esta
tomada de posição fornece uma “identidade” colonial que é encenada
como fantasias de originalidade e origem, diante e no espaço da ruptura.
O estereótipo exige para uma significação bem sucedida, uma cadeia
contínua e repetitiva de outros estereótipos. Assim, o processo pelo
qual o “mascaramento” metafórico é inscrito em uma falta que deve
ser ocultada, dá ao estereótipo sua fixidez e sua qualidade
fantasmática – sempre as mesmas histórias sobre a animalidade do
negro e a preguiça do índio que são repetidas de maneira e aterrorizante
de modo diferente a cada vez, (BHABHA op. Cit., p.120).
Para Abbot (Apud BHABHA, 1998, p.123), o que autoriza a
discriminação é a oclusão da pré-construção ou montante da diferença.
Para ele essa representação da produção faz com que o reconhecimento
da diferença seja obtido em uma inocência, enquanto ‘natureza’, assim,
o reconhecimento é projetado como reconhecimento primário, efeito
espontâneo da evidência do visível.
Conforme Bhabha (1998) este é o tipo de reconhecimento
espontâneo e visível, que é atribuído ao estereótipo. A diferença do
objeto de discriminação é ao mesmo tempo visível e natural – cor como
signo cultural/político de inferioridade. Para ele os efeitos
discriminatórios do discurso do colonialismo cultural, não se referem
unicamente a uma “pessoa”, ou a uma luta de poder dialético entre o
eu e o outro, ou a uma discriminação entre a cultura-mãe e as culturas
alienígenas, produzidas através do estágio da recusa, assim, o
109
Cadernos de Educação Escolar Indígena
referencial da discriminação é sempre um processo de cisão como
condição de sujeito, isso significa, uma discriminação entre a culturamãe e seus bastardos, o eu e seus duplos, onde o traço do que é recusado
não é reprimido, mas sim repetido como algo diferente, consistindo
assim numa mutação, um hibridismo.
Ainda segundo (Foucault 1998, apud SOUZA e GALLO), o
racismo de Estado consiste numa forma de regulamentação que está
além do poder disciplinar, mas, como um meio de apagamento das
diferenças. Para ele a primeira função do racismo é fragmentar, fazer
censuras. Em segundo lugar, exercita e dissemina o ódio entre as raças,
sobretudo o ódio pelo inferior, ódio esse, que segundo Foucault, fundase no medo do outro, que passa a vê-lo como uma ameaça.
“(...) Agora eles ficam aqui na cidade. Isso tinha que ter uma
lei para proibir esses bichos de ficar assim, no meio da gente. Proibir
de ficar na escola junto com os filhos da gente. Eu acho isso muito
errado, do jeito que esses bichos são traiçoeiros, não podia ficar assim,
no meio da gente, ainda mais na escola junto com os filhos da gente,
ainda mais de noite. Eu tenho muito medo desses bichos. Eu mesmo
não concordo desses bichos estudarem com os meus filhos. Karajá é
um bicho traiçoeiro. Mas do jeito assim que eles têm proteção do
governo, não acontece nada com eles. Eles podem fazer uma coisa
ruim com um filho da gente que não acontece nada com eles”.(Pai de
aluno – São Félix do Araguaia).
Diante desse quadro, percebe-se o ódio que existe na fala
desse pai de aluno, para com os Iny, é um ódio que chega a
descaracterizá-los enquanto seres humanos, colocando, sempre em
sua fala, em condição de “bichos”, perigosos tanto quanto os animais.
Em uma única vez ele fez referência ao termo Iny, mas, no entanto,
para reafirmar que “Iny é um bicho traiçoeiro” colocando desta forma,
um peso ainda maior para a animalidade dos alunos indígenas.
Percebe-se também nesta fala que esse ódio advém da maneira
estereotipada em que os povos indígenas são tratados pelo governo.
Quando ele afirma: “Mas do jeito assim que eles têm proteção do
governo, não acontece nada com eles. Eles podem fazer uma coisa
ruim com um filho da gente que não acontece nada com eles”. Isto
reforça um mito que existe na região, de que os povos indígenas têm
110
“Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos...
proteção do governo, que não trabalham porque o governo dá tudo.
Como se pode constatar neste outro fragmento:
“(...) Agora eles andam muito, vão pra Barra do Garças, vão
pra Goiânia. Eles vivem andando. Tinha assim, que ter uma condução
própria só pra eles andarem porque agora esses bichos deram pra só
quere tá viajando, isso tinha que ser proibído, mas viajam assim, no
meio de nós. Também eles não pagam passagens por isso só querem
viver viajando. O governo dá dinheiro”. (Neste ponto da entrevista fiz
uma interferência perguntando: “O governo dá dinheiro pra eles? O
nosso pergunto? Como é mesmo o seu nome?” Respondi:” Maristela”.
Ele prosseguiu). “Olha Maristela aqui é assim, quando um bicho desse
nasce já começa receber um salário do governo, e continua recebendo
a vida toda, por isso que eles tão aumentando desse tanto”.(Pai de
Aluno – São Félix).
É muito comum se ouvir, não só na região do Araguaia, mas
também em outras localidades, que os povos indígenas podem viajar
sem pagarem passagens, que recebem salários desde que nascem e
que continuam recebendo do governo um salário pelo resto da vida.
Acreditamos que os salários aos quais se referem que as crianças
recebem seja o auxilio maternidade. Estas pessoas esquecem ou não
sabem que este auxílio toda mulher gestante tem direito a receber
somente durante os primeiros quatro meses da criança. Este é um direito
assegurado por lei. E mesmo este auxílio, na maioria das vezes, as
mulheres indígenas não recebem.
Usar esse discurso de que os povos indígenas recebem dinheiro
e outros benefícios do governo, acreditamos que seja uma maneira de
disseminar o ódio e o preconceito contra eles, e assim, justificar as
mais variadas formas de discriminação, massacres e extermínio.
Bibliografia
BHABHA, Romi K.. O Local da Cultura. Belo Horizonte-MG: Ed. UFMG,
1998.
CHAUI, Marilena. Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular
no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
111
Cadernos de Educação Escolar Indígena
ELIAS, Norbert e Scotson, John L.. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de
Janeiro-RJ: Jorge Zahar, 1990.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
GOFFMAN, Erving. Estigma Notas sobre a Manipulação da Identidade
Detereorada. Zahar Editores, 1978.
HALL, Struart, A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro:
DP&A, 2002.
JACCOUD, Luciana de Barros e Nathalie Beghin. Desigualdades raciais
no Brasil: um balanço da intervenção governamental. Brasília: Ipea, 2002.
MARTINS, José de Souza. A Chegada do Estranho. São Paulo: Hucitec,
1993.
MELIÀ, Bartolomeu. Educação indígena e alfabetização. São Paulo: Loyola,
1979.
112
Me
todol
ogia de ensino de Física
Metodol
todologia
para a Formação de P
rofessores
Professores
Indíos
Frederico Ayres*
Anderson Rodrigues Lima Caires**
Resumo
Várias são as metodologias que poderiam ser empregadas para
a disciplina de Física oferecida aos estudantes do 3º Grau Indígena da
Universidade do Estado de Mato Grosso. As discussões geradas antes
da etapa presencial levaram os docentes de Física a optarem por um
método no qual seriam mescladas aulas teóricas e práticas, sendo que
nas teóricas seriam apresentadas todas demonstrações matemáticas
necessárias para o melhor desenvolvimento acadêmico. O resultado
foi surpreendente, uma vez que houve aceitação pelo método por todos
os estudantes. Mesmo aqueles contrários aos métodos matemáticos se
mostraram, no final da etapa, familiarizados com os desenvolvimentos
matemáticos empregados. Esse trabalho visa apresentar as discussões
e os métodos empregados para as aulas de Física, bem como apresentar
os resultados, do ponto de vista tanto dos docentes da disciplina,
como dos estudantes, através de seus relatos.
Doutor em Física pela USP, professor do Depto. de Matemática, Instituto de
Ciências Exatas e Naturais, Campus de Rondonópolis, UFMT. Docente na área de
Ciências Matemáticas e da Natureza no PROESI.
*
Doutor em Física pela USP, professor do Grupo de Óptica Aplicada, Faculdade
de Ciências Exatas e Tecnológicas, UF GD. Docente na área de Ciências Matemáticas
e da Natureza no PROESI.
113
**
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Introdução
Na primeira parte desse trabalho serão descritas as
metodologias empregadas para o ensino de Física para a turma
específica, voltada para Ciências da Natureza, do 3º Grau Indígena
da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), campus de
Barra do Bugres. Serão discutidas todas as etapas do planejamento
até o momento em que as aulas se iniciaram. Então, serão abordadas
as experiências didáticas e será feita uma comparação entre o que
planejamos e o que apresentamos, de fato.
A experiência de aulas para o Terceiro Grau Indígena é algo
recente no Brasil (LIMA, 2002; JANUÁRIO, 2002) e a primeira turma
colou grau em julho de 2006. Portanto, os artigos voltados para o ensino
de Ciências para o povo indígena ainda é bastante escasso. Esse
trabalho tem como um de seus objetivos auxiliar no processo de
consolidação do ensino de Física para os estudantes indígenas que
almejam a graduação no projeto do 3º Grau Indígena.
Será discutido, a seguir, qual o melhor método a ser empregado:
o método que utiliza os conhecimentos culturais de cada povo indígena
ou o método tradicional aplicado nas Universidades. Esse tema já
gerou bastante discussão durante o processo de planejamento
pedagógico e, aqui, apresentaremos os métodos empregados, de fato, e
os resultados atingidos.
Resultados
Nesse tópico, serão apresentadas as principais discussões
durante o planejamento pedagógico e durante a etapa presencial.
114
Metodologia de ensino de Física...
I. Metodologia
O planejamento pedagógico do curso de Física contou, em
sua primeira fase, com professores de outras áreas, como Química e
Biologia, bem como com representantes das comunidades indígenas.
Nessas discussões, foram abordados temas relacionados à
melhor metodologia aplicada às disciplinas. Não houve consenso,
embora houvesse uma maioria defendendo aulas que não fugissem às
culturas indígenas. No entanto, a dúvida principal era como trabalhar
os fenômenos da Natureza, sem utilizar os conceitos já consagrados
pela Ciência. Com isso, uma das propostas foi fornecer os conceitos de
Física sem interferir em suas culturas.
Por outro lado, a apresentação dos conceitos de Física dentro
dos padrões estabelecidos seria uma forma de inserí-los nas tradições
da Ciência, além de não dar margem para a discriminação. Portanto,
nós, os responsáveis pela disciplina de Física, chegamos à conclusão
que o melhor método seria apresentar os conceitos de Física a partir
das teorias já consagradas pela Ciência, de maneira alternativa (GREF,
1990; HAMBURGER, 2004), e não utilizar as culturas indígenas como
base para o ensino de Física. Mesmo porque, a turma era extremamente
heterogênea e, ao nos apoiarmos em conhecimentos de uma etnia, as
outras poderiam ser discriminadas nesse processo.
Entretanto, apesar de definirmos uma abordagem mais
próxima das técnicas didáticas tradicionais utilizadas nos cursos
universitários, ficou claro que uma simples transposição das mesmas
não atenderia as nossas necessidades.
II. Etapa presencial
Durante essa etapa, as aulas foram divididas em teóricas e
práticas. As aulas teóricas de Física para essa etapa do curso foram
voltadas para o desenvolvimento do pensamento científico e para a
discussão das idéias da Física, principalmente a Física Clássica.
115
Cadernos de Educação Escolar Indígena
O objetivo não foi a incorporação da cultura científica ocidental
às culturas indígenas, mas levar o conhecimento da Ciência,
relacionada à Física, aos povos indígenas.
Para atingir os objetivos, durante as aulas teóricas havia o
estímulo à discussão sobre o assunto a ser abordado, onde os
estudantes opinavam, através de seus conhecimentos adquiridos
anteriormente. Após seus depoimentos, eram apresentados os conceitos
dentro da Ciência Ocidental, inclusive com as demonstrações
matemáticas e aplicações através de exemplos. Os estudantes, então,
eram estimulados a resolver alguns problemas, em grupo, onde havia
o incentivo à discussão antes de chegarem a alguma conclusão, sempre
buscando mesclar os seus conhecimentos prévios e os conhecimentos
adquiridos nessa etapa.
Num segundo momento, os estudantes eram estimulados A
desenvolver os conceitos abordados em sala através de práticas
(GASPAR, 2001; HAMBURGER, 2004), no qual eram utilizados
experimentos com materiais do cotidiano, de fácil aquisição, tais como
garrafas de plástico, cordas, galhos de árvores, relógios, entre outros.
Após o estudo dentro da aula prática, os estudantes voltavam
para a sala de aula, onde eram estimulados a discutir os conceitos
abordados na aula prática, utilizando os conhecimentos adquiridos
nas aulas teóricas.
Com essas discussões, os estudantes abordavam os conceitos
através de vários métodos diferentes.
É importante ressaltar que apesar do desenvolvimento dos
temas sem a necessidade de conhecimentos étnicos, sempre deixamos
espaços abertos para os acadêmicos explicarem os fenômenos
abordados a partir do conhecimento de seu povo, se julgasse necessário.
Conclusão
A divisão das aulas em três momentos (fundamentação
teórica, prática experimental e consolidação da teoria) mostrou-se
bastante eficaz. Dessa maneira, os acadêmicos absorviam
116
Metodologia de ensino de Física...
gradativamente o conhecimento. No primeiro momento, sempre havia
uma certa resistência aos novos conceitos por parte dos discentes. No
entanto, essa resistência inicial começava a desaparecer no segundo
momento, à medida que os experimentos eram realizados, pois os
experimentos revelavam como a natureza realmente se comporta,
independente do conhecimento prévio de cada etnia. No terceiro
momento, já despidos das dúvidas da veracidade dos temas abordados,
os acadêmicos se concentravam em entender melhor os fenômenos,
tanto conceitualmente quanto matematicamente.
No último dia da etapa presencial, solicitamos aos estudantes
um relatório sobre as aulas de Física. A maioria dos estudantes relatou
a importância da metodologia empregada. A divisão em aulas teóricas
e práticas, com uma discussão anterior e uma posterior à apresentação
dos conceitos pelos professores, foram de grande valor.
Os tópicos mais citados nesses relatórios foram a Cinemática
e a Hidrostática.Dentro da cinemática, houve vários relatos sobre a
medida de espaço e de tempo e a determinação da velocidade média
através dessas medidas.
Dentro da Hidrostática, houve relatos sobre o motivo de
alguns corpos flutuarem na água, enquanto outros afundam.
Essas foram as mais marcantes. No entanto, vários estudantes
ficaram surpresos com a experiência de queda dos corpos, na qual
observaram que corpos lançados ao mesmo tempo, quando livres da
influência do ar, chegam ao mesmo tempo no solo, mesmo sendo de
materiais diferentes.
Alguns citaram, também, as experiências com roldanas, onde
foram trabalhados os conceitos de Dinâmica.
Com base em seus relatórios e nas discussões entre a equipe
de docentes, pode-se dizer que a metodologia empregada está longe
da ideal. No entanto, embora os estudantes tenham citado mais as
aulas práticas, as aulas teóricas com demonstrações matemáticas e
discussões dos conceitos foram de muito valor.
Em momento algum houve a pretensão de substituir a Cultura
Indígena pela Ciência Ocidental. Porém, ficou claro que o contato com
as idéias da Física Clássica dentro da abordagem aplicada nessa etapa
117
Cadernos de Educação Escolar Indígena
de estudos presenciais foi completamente aceito por todas as etnias
que compunham o quadro discente.
Não é uma questão de imposição de uma cultura, mas sim de
apresentar a Ciência como aceita hoje, não importa a etnia. A maioria
dos estudantes que compuseram esse grupo estão aptos a se
aprofundar na Ciência e até mesmo acrescentar conceitos, uma vez
que ainda não trazem os paradigmas próprios da cultura ocidental.
Bibliografia
LIMA, M. S. Educação Indígena Tupinikim e Guarani. 20 Experiências de
Gestão Pública e Cidadania. Hélio Batista Barboza e Peter Spink (orgs.),
2002.
JANUÁRIO, E.R.S. Terceiro Grau Indígena: cursos de licenciatura específicos
para a formação de professores indígenas. Educação Escolar Indígena,
Marilda Almeida Marfan (org.). 2002, Vol. 4.
GREF: Grupo de Reelaboração do Ensino de Física. Física 1: Mecânica.
EDUSP, 1990.
GREF: Grupo de Reelaboração do Ensino de Física. Física 2: Física
Térmica e Óptica. EDUSP, 1990.
GREF: Grupo de Reelaboração do Ensino de Física. Física 3:
Eletromagnetismo. EDUSP, 1990.
HAMBURGER, E.W. Telecurso 2000: Física. Volumes 1 e 2. Editora
Gráfica e Editora Posigraf S.A., 2004.
GASPAR, A. Física. vol. 1, 2 e 3. Editora Ática, 2001.
118
Corpo Humano e Saúde: uma
Experiência na Formação de
Professores Indígenas
Larissa Maria Scalon Lemos*
Hébia Tiago de Paula**
Que significado e importância tem o corpo humano para seu
povo? Essa é uma daquelas muitas questões que nos parecem tão
óbvias, mas às quais encontramos dificuldades na formulação de uma
resposta rápida e concisa.
Foi com esta pergunta que iniciamos os trabalhos da IV Etapa
de Estudos Presenciais do Terceiro Grau Indígena, em julho de 2006.
Iríamos trabalhar com 100 acadêmicos indígenas, o conteúdo de
Ciências: O Corpo Humano. Os livros didáticos atuais abordam o
conteúdo no aspecto anatômico-fisiológico, obviamente, em nível de
conhecimento correspondente com a série em que é trabalhado. Trazem
ainda, uma abordagem voltada à saúde, aos possíveis distúrbios e
problemas de cada um dos sistemas orgânicos, suas causas e modo de
prevenção, subsidiando o trabalho de educação em saúde na formação
dos alunos. E esse foi também o enfoque do nosso trabalho nesta etapa.
O corpo é inerente à nossa existência, e a partir dele nos
relacionamos com o mundo exterior. Ele tem sua importância biológica,
Especialista em Farmacologia, professora do Depto. de Enfermagem da UNEMAT
- campus de Cáceres. Docente na área de Ciências Matemáticas e da Natureza no
PROESI.
*
**
Bióloga, Assessora Pedagógia da área de Ciências Matemáticas e da Natureza
no PROESI.
119
Cadernos de Educação Escolar Indígena
em termos de sobrevivência, mas possui também uma importância
cultural incontestável, em todos os povos, em especial para os povos
indígenas.
A cultura dos povos indígenas se manifesta de formas
diversas. O modo com que trabalham os materiais da natureza como:
penas, sementes, madeiras, fibras, etc, na manufatura de adornos,
utensílios, moradias, flechas e tantos outros, reflete os costumes de
cada comunidade, de cada etnia. Mas o ápice da manifestação cultural
indígena está, inegavelmente, relacionado ao corpo, que é escarificado,
pintado, perfurado e marcado, sem contar a forte presença das danças
e rituais onde o corpo é um dos elementos de linguagem.
O antropólogo Darcy Ribeiro escreveu que o corpo humano é
“a tela onde os índios mais pintam e aquela que pintam com mais
primor”. Há registro na história de um diálogo real que teria acontecido
no século XVIII: “Por quê você pinta seu corpo?” - perguntou um
missionário europeu a um índio. “E você ? Por quê não se pinta ? Quer se
parecer com os bichos ?” - respondeu o índio. Seja para demarcar sua
identidade na sociedade, demonstrar sentimentos de pesar ou alegria,
combates e rituais, ou simplesmente para embelezar-se ou diferenciarse dos demais seres da natureza, o fato é que o corpo está
intrinsecamente ligado à cultura indígena.
Nessa perspectiva, esperávamos uma riqueza de diversidade
nas respostas dos acadêmicos à nossa pergunta inicial: Que significado
e importância tem o corpo humano para seu povo? Mas o que pudemos
perceber é que a maioria expressiva destas respostas não abordava
nem o aspecto cultural, nem o religioso da relação com o corpo. Talvez,
inconscientemente influenciados pelo fato de estarem numa aula de
Biologia, os acadêmicos abordaram quase exclusivamente os aspectos
biológicos do corpo humano: os movimentos, a reprodução, a
percepção, o raciocínio.
“O nosso corpo é muito importante para fazer o trabalho no
dia-a-dia. Como por exemplo, os nossos braços servem para abraçar
as pessoas, nossas mãos servem para mexer as coisas, nossas pernas
servem para andar no trabalho ou para outro lugar no mundo, nossas
línguas servem para falar e cantar, os nossos olhos servem para olhar
as coisas, nossas cabeças servem para pensar e servem para fazer o
120
Corpo humano e saúde...
plano de seu trabalho, o nariz serve para respirar e nosso coração
serve para funcionar o nosso corpo em geral. Tudo isso faz parte do
corpo que temos e é muito importante para nós.” (João Wéréhité Rãirãté
- Xavante)
Um outro aspecto bastante presente nos textos foi a
consciência de que o cuidado com o corpo na prevenção da saúde é
fator primordial quando se fala de corpo humano, e algumas vezes
vem acompanhado de uma crítica quanto a mudança dos costumes,
principalmente em relação à alimentação, o que vem acarretando
aumento na incidência de doenças entre os povos indígenas.
“Antes do contato com o homem branco, alimentávamos de
alimentos naturais, não comíamos sal, óleo, açúcar, etc. Hoje em dia já
consumimos comidas industrializadas da cidade e com isso passamos
a ter problemas de saúde, tais como: obesidade, diabetes, perda precoce
de dentes e outras doenças. Muitos povos adquiriram vícios que hoje
prejudicam a saúde indígena, como o álcoolismo e o tabagismo.” (Loike
Kalapalo)
O resultado dessa atividade, para nós inesperado, foi na
verdade bastante positivo, considerando que o objetivo a que nos
propúnhamos, era trabalhar os aspectos anatômico-fisiológicos e a
educação em saúde, enfoque correspondente ao colocado por eles nos
textos. Pudemos também perceber, com a atividade seguinte, desenhar
a constituição interna do corpo humano com base apenas no seu
conhecimento, sem nenhum tipo de consulta, que os acadêmicos
possuíam boas noções do arranjo anatômico dos órgãos e do esqueleto
humanos, bem como da sua fisiologia, o que facilitou sobremaneira os
trabalhos.
Não só em virtude das questões colocadas no seu projeto
inicial, mas também pela necessidade evidenciada pelos acadêmicos,
o 3º Grau Indígena sempre norteou os trabalhos dos docentes no sentido
de incorporar nos cursos o conhecimento étnico, garantindo a vivência
da interculturalidade, como também o enfoque na instrumentalização
didática aos futuros professores, para que sejam capazes de executar
seus trabalhos nas escolas indígenas, alicerçados na sua própria
realidade, ampliando, assim, os horizontes do conhecimento dos seus
alunos, mas, sobretudo, respeitando sua cultura.
121
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Com essas diretrizes, norteamos nosso trabalho. Apesar de
toda a carga cultural presente na relação com o corpo humano,
abordaríamos o aspecto biológico, mas sempre suscitando outras
conotações a partir dos próprios acadêmicos. Tínhamos o objetivo de
que eles conseguissem vincular o conteúdo discutido à sua realidade,
forma pela qual acreditamos que o conhecimento é realmente
construído. Sucederam-se momentos de exposição de conteúdo,
atividades práticas, lúdicas, pesquisa bibliográfica e apresentação de
aula simulada pelos alunos.
O interesse dos acadêmicos pelo assunto “corpo humano” foi
muito grande, como já fora observado em turmas anteriores, o que não
foi diferente nessa atual. Mostraram-se participativos, com
questionamentos e colocações constantes, o que gerou um trabalho
interessante e enriquecedor, considerando a diversidade etnocultural
presente. “A pedagogia indígena deve ser resultado da vivência, da
reflexão dos próprios professores, da troca de experiências, da
construção coletiva, da presença de anciãos e das relações
socioculturais presentes em cada etnia” (JANUÁRIO, 2004).
Trabalhando nessa perspectiva foi que alcançamos os objetivos
propostos.
Cabe aqui um destaque ao sistema reprodutor humano, fonte
de dúvidas e perguntas intermináveis, não fosse o som da campainha
sinalizando o final das atividades. Talvez por abranger a sexualidade,
a geração de descendentes, as doenças sexualmente transmissíveis de
incidência crescente entre as comunidades indígenas; o fato é que esse
tema é, visivelmente, o ápice do interesse em se tratando de corpo
humano. As dúvidas mais freqüentes são relacionadas à menstruação
e gravidez múltipla. Surgiram também questões sobre clones e células
tronco, temas em evidência na mídia na atualidade e ainda tão
controversos no aspecto ético-científico para os não-índios.
A sexualidade humana é uma construção cultural, ao contrário
dos animais onde é determinada apenas pelo instinto. Os seres
masculino e feminino diferem muito entre as diferentes culturas,
podendo até mesmo se modificar ao longo do tempo dentro de uma
mesma cultura. Apesar da idéia de que os povos indígenas são livres
quanto a sua sexualidade, grande parte pela influência da forma como
a história da colonização aborda, ou mesmo pelo fato de andarem nus
122
Corpo humano e saúde...
ou seminus, o que se vê na realidade, é que cada cultura impõe regras
rígidas ao aspecto sexual.
Nessa perspectiva, gerou-se discussões bastante interessantes,
principalmente quando o assunto abordado foi a prevenção de doenças
sexualmente transmissíveis. As DSTs são um problema relativamente
recente nas comunidades indígenas e que possuem métodos
preventivos que muitas vezes vão de encontro aos costumes enraizados
de uma cultura, gerando conflitos. Ao se referir à saúde das populações
indígenas, Conklin (1994), diz: “O grau de receptividade à medicina
ocidental depende destes conceitos e das práticas estranhas não serem
antagônicas às noções sobre o corpo humano, sobre causa e prevenção
das doenças e às relações sociais que cercam a doença. O fornecimento
de serviços médicos será insuficiente para garantir um sistema de
saúde eficaz caso não sejam equacionados os conflitos e equívocos
existentes entre os conceitos ocidentais e indígenas de saúde e doença.”
A troca de experiências entre os acadêmicos, nesse sentido, foi de
grande riqueza, proporcionando momentos reflexivos quanto às
mudanças dos costumes e suas implicações na saúde das
comunidades indígenas.
Todo trabalho onde a diversidade cultural se faz presente,
traz resultados engrandecedores, desde que se deixem à margem os
conflitos e o etnocentrismo, desde que haja uma abertura ao diferente,
um respeito à crença alheia. Não importa se estamos ali como aluno
ou como professor, o aprendizado é bilateral, como diz Bazin (2005).
“Ser professor é saber aprender descobrindo junto com os outros
professores não é para trazer coisas de fora; é para ajudar a mergulhar,
conscientemente, dentro da cultura da comunidade, registrá-la e
reforçá-la.”
Apesar de tantas outras vezes ter trabalhado o tema corpo
humano, essa IV Etapa do 3º Grau Indígena proporcionou um resultado
marcante, pela interculturalidade, pelas riqueza das discussões que
acabam por nos levar à reflexão das nossas próprias crenças, das
nossas condutas e das implicações na vida da nossa sociedade.
Só a leitura e correção dos textos elaborados pelos acadêmicos
já nos permite mergulhar na riqueza cultural dos povos indígenas.
123
Cadernos de Educação Escolar Indígena
“O meu corpo é uma criação divina. Fui formado com muita
atenção e dedicação. Cada membro com um trabalho a executar. Não
fui formado por coincidência, mas com tal precisão, que o homem
ainda não conseguiu imitar. Somente com corpo, sem auxílio do
espírito, seria impossível alcançarmos a harmonia entre nós mesmos
para com a natureza. Somos parte da natureza; nascemos, crescemos,
vivemos e morremos. Nós vivemos para a natureza, a natureza vive
pra nós. E assim, geração vem, geração vai, tudo volta ao começo.”
(Antonino Reginaldo Jorge – Terena)
Bibliografia
BAZIN, M. Ensinar Matemática e Ciências Indígenas. Instituto de
Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística, Florianópolis,
2005. Disponível em: http://www.ipol.org.br/ler.php?cod=240.
Acesso em 15/10/2006.
Iandé Arte com História. Grafismos Indígenas . Disponível em: http://
www.iande.art.br. Acesso em 14/10/2006
INSTITUTO SÓCIO AMBIENTAL. Povos Indígenas no Brasil. Artes.
Disponível em: http://socioambiental.org/pib/english/portugues/
comovivem/artes.shtm. Acesso em 14/10/2006.
JANUÁRIO, E. R. S. A construção do currículo no 3º Grau Indígena: a
etapa de estudo presencial. Cadernos de Educação Escolar Indígena – 3º
Grau Indígena. Barra do Bugres: Unemat, 2004. v. 3, n. 1. p 51.
PAULA, E.D. A interculturalidade no cotidiano de uma escola
indígena. Caderno CEDES, Campinas, v. 19, n. 49, 1999. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010132621999000200007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 16/10/2006.
PY-DANIEL, V. & SOUZA, F. S. O Sistema Brasileiro de Atendimento à
Saúde Indígena e algumas de suas Implicações na Cultura Yanomami.
Disponível em: http:// nerua.inpa.gov.br/NERUA/23.htm. Acesso
em 15/10/2006.
124
Formação de Professores Indígenas:
uma Experiência de Acompanhamento
Pedagógico nas Aldeias
Adailton A. da Silva*
Hébia T. de Paula**
Jurandina B. Sales***
Lucimar L. Ferreira****
Marinez S. Nazzari*****
Introdução
A Formação de Professores Indígenas oferecida por meio de
cursos de licenciatura nas áreas de Línguas, Artes e Literaturas;
Ciências Sociais e Ciências Matemática e da Natureza, da UNEMAT Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus de Barra do Bugres,
é uma experiência fruto de um longo processo de mobilização/
reivindicação dos povos indígenas de Mato Grosso que se tornou
Coordenador Pedagógico do Programa de Educação Superior Indígena
Intercultural. Mestre em Educação Matemática.
*
Assessora Pedagógica do Programa de Educação Superior Indígena Intercultural.
Graduada em Biologia.
**
Professora de Matemática no Ensino Médio. Docente do Programa de Educação
Superior Indígena Intercultural. Especialista em História da Matemática.
***
Assessora Pedagógica do Programa de Educação Superior Indígena Intercultural.
Mestre em Lingüística.
****
*****
Assessora Pedagógica do Programa de Educação Superior Indígena Intercultural.
Mestre em Lingüística.
125
Cadernos de Educação Escolar Indígena
realidade em 2001. O Projeto de Formação de Professores, conhecido
como 3° Grau Indígena, que a partir de setembro de 2007 passou para
a condição de Programa1, já disponibilizou trezentas (300) vagas para
formação de professores indígenas de quarenta e quatro (44) etnias,
sendo trinta (30) do Estado de Mato Grosso e quatorze (14) de outros
Estados do país e prevê para o final de 2007 a abertura de mais uma
turma, com a seleção de 50 professores indígenas do estado de Mato
Grosso.
Em 2006 o Projeto formou a primeira turma, 186 professores,
dos 200 ingressantes em 2001 e para 2009 está prevista a formatura de
mais cem (100) professores que iniciaram o curso em 2005.
Os cursos têm como objetivo principal a formação em serviço
e continuada de professores indígenas, oferecendo-lhes condições
necessárias para condução do processo político-pedagógico das
escolas indígenas nas aldeias. Em conformidade com o Art. 6° da
Resolução CEB n°. 03, de 10 de novembro de 1999, que garante:
Art. 6º A formação dos professores das escolas indígenas será
específica, orientar-se-á pelas Diretrizes Curriculares Nacionais e será
desenvolvida no âmbito das instituições formadoras de professores.
Parágrafo único. Será garantida aos professores indígenas a sua
formação em serviço e, quando for o caso, concomitantemente com a sua própria
escolarização.
Considerando essa especificidade, os cursos são estruturados
em duas modalidades letivas: Etapa de Estudos Presenciais (Etapa
Intensiva), que acontece nos meses de janeiro/fevereiro e julho/agosto;
e Etapa de Estudos Cooperados de Ensino e Pesquisa (Etapa
Intermediária), realizada nos períodos de março a junho e de setembro
a dezembro.
A Etapa Intermediária2 é o período em que, concomitantemente
ao seu trabalho docente nas escolas das aldeias, os professores/
1
Programa de Educação Superior Indígena Intercultural - PROESI.
Cf. JANUÁRIO, Elias. Formação de Professores Indígenas em serviço: a Etapa de
Estudos Cooperados de Ensino e Pesquisa – Intermediária. In: Cadernos de Educação
Escolar Indígena. Projeto de Formação de Professores Indígenas/ 3º Grau
Indígena, Barra do Bugres – MT: UNEMAT, 2003. p. 56-65. v. 2, nº. 1.
2
126
Formação de professores indígenas...
acadêmicos fazem reflexões, estudos, leituras, relatos e desenvolvem
pesquisas, buscando ampliar a sua compreensão sobre assuntos que
envolvem conhecimentos acadêmicos e conhecimentos particulares
das culturas. Nesse período de retomada dos conteúdos vistos na
Etapa Intensiva, execução do Estágio e realização das pesquisas do
TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), os alunos recebem
acompanhamento docente da equipe pedagógica do Projeto 3,
atendimento este que busca articular as atividades de formação com a
realidade de cada escola e comunidade.
Nessa perspectiva, os encontros nas aldeias, durante a Etapa
Intermediária, assume um papel muito importante dentro do processo
de formação, pois além de possibilitar à equipe docente detectar
especificidades de cada escola e dificuldades de cada professor,
possibilita a definição do perfil pedagógico das Etapas Intensivas
subseqüentes.
O nosso trabalho trata-se de uma experiência de
acompanhamento pedagógico nas aldeias, desenvolvida com a turma
2005/1, na V Etapa de Estudos Cooperados de Ensino e Pesquisa
(Etapa Intermediária), no primeiro semestre de 2007.
A experiência, que tinha como objetivo geral a formação
político-pedagógica dos acadêmicos/professores, foi realizada em
forma de oficinas, em diferentes regiões do Mato Grosso. Cinco pólos
foram formados para a execução do trabalho: Aldeia Itxalá4, Aldeia
Pakuera5, Aldeia Umutina6, Aldeia Sangradouro7 e Aldeia São Marcos8,
A equipe é composta por três Assessoras Pedagógicas (uma para cada área de
conhecimento) e um Coordenador Pedagógico.
3
A aldeia Itxalá (Karajá) está localizada no município de Santa Terezinha-MT.
Nesse Pólo foram atendidos os acadêmico(a)s das etnias Tapirapé e Karajá
4
A aldeia Pakuera (Bakairi) está localizada no município de Paranatinga-MT.
Nesse Pólo foram atendidos os acadêmicos das etnias Bakairi e Xavante.
5
A aldeia Umutina (vários povos) está localizada no município de Barra do
Bugres-MT. Nesse Pólo foram atendidos os acadêmico(a)s das etnias Umutina,
Zoró, Panará, Paresi, Bororo, Irantxe, Chiquitano, Rikbaktsa, Terêna.
6
7
A aldeia Sangradouro (Xavante) está localizada no município de Primavera do
Leste-MT. Nesse Pólo foram atendidos os acadêmicos da etnia Xavante.
A aldeia São Marco (Xavante) está localizada nos municípios de General CarneiroMT e Barra do Garças-MT. Nesse Pólo foram atendidos os acadêmicos da etnia
Xavante.
8
127
Cadernos de Educação Escolar Indígena
considerando a distribuição geográfica das etnias atendidas pelos
cursos.
Nessas oficinas, que tiveram a duração de uma semana, fezse o acompanhamento das pesquisas e atividades das disciplinas
(Literatura, Políticas Lingüísticas, Física, Metodologia de Pesquisas e
Sociologia) encaminhadas para Etapa Intermediária, um estudo sobre
fundamentos legais da educação escolar indígena, reflexões sobre a
prática na sala de aula nas escolas das aldeias, incluindo o Estágio e
a orientação dos TCCs (Trabalhos de Conclusão de Curso).
Oficinas pedagógicas
O bloco de atividades planejadas para a Etapa Intermediária,
com uma seqüência didática de acordo com as necessidades do grupo
a ser atendido, é que denominamos de Oficinas Pedagógicas. Essas
Oficinas (atendimentos nos grupos organizados por pólos) foram
pensadas e propostas a partir das características e das condições
geográficas e logísticas da realização das atividades pedagógicas
dentro do Programa de formação.
O trabalho desenvolvido em pólos foi proposto, buscando
aproximar o trabalho acadêmico da Universidade com a realidade
das comunidades nas aldeias, garantindo a participação da
comunidade e melhor aproveitamento tanto dos cursistas quanto da
equipe docente que acompanha pedagogicamente os cursos.
Atividades desenvolvidas nas oficinas
Embora o trabalho em cada pólo tenha sido realizado
respeitando as particularidades e a rotina das escolas e das
comunidades, as atividades propostas foram comuns, tendo em vista
o objetivo geral da Etapa Intermediária. Em todos os grupos, as Oficinas
foram iniciadas com uma apresentação da proposta de trabalho
planejada pela equipe e uma conversa com os acadêmicos sobre a
organização do atendimento pedagógico em pólos. Nessas conversas
128
Formação de professores indígenas...
foram expostos os objetivos e os principais encaminhamentos do
trabalho.
Acompanhamento das pesquisas e atividades da Etapa
Intermediária
Organizados como estão, os cursos têm uma concentração de
conteúdos das diferentes disciplinas nas Etapas Intensivas e um
espaço de tempo maior na Intermediária para a revisão e a ampliação
dos assuntos tratados. Os trabalhos são encaminhados pelos
respectivos professores das áreas e orientados pelos docentes da equipe
pedagógica.
Como estratégia de orientação das tarefas das diferentes
disciplinas, realizou-se a leitura das atividades propostas pelos
professores das respectivas áreas. Dessa forma, foi possível tirar as
dúvidas daqueles alunos que ainda não tinham iniciado os trabalhos.
Nas leituras das atividades das disciplinas que envolviam
pesquisas/entrevistas com os mais velhos surgiram questionamentos
a respeito de como elas devem ser encaminhadas. Discutiu-se no grupo
que ao realizar uma entrevista os acadêmicos devem ter a sensibilidade
de transpor os questionamentos de acordo com a linguagem e o
conhecimento/realidade de cada povo, uma vez que os questionários
trazem uma linguagem acadêmica que muitas vezes não é
compreendida pelos entrevistados (anciãos, pajés, caciques, etc.).
Dentre as atividades discutidas algumas delas foram
realizadas em sala, retomando conceitos e estabelecendo etapas de
desenvolvimento.
Fundamentos legais da educação escolar indígena
Com relação aos fundamentos legais da educação escolar
indígena, foram trabalhados dois textos: um do RCNEI “Fundamentos
Gerais da Educação Escolar Indígena” e a “Resolução 03/99 da
Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação”.
129
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Como o objetivo era discutir os textos legais, propiciando reflexão sobre
pensar a inter-relação entre as leis que amparam a educação escolar
indígena, o funcionamento administrativo das escolas indígenas e o
fazer pedagógico do professor nas escolas, a metodologia de trabalho
adotada foi a leitura oral no grande grupo e a discussões dos pontos
principais.
No texto do RCNEI (Referencial Curricular Nacional para as
Escolas Indígenas) foram discutidos os conceitos: multiculturalidade,
pluralidade, diversidade, autodeterminação, comunidade educativa
indígena, educação e conhecimentos indígenas e educação
intercultural, comunitária, específica e diferenciada. Durante a leitura
do texto surgiram dúvidas no que diz respeito à educação específica e
diferenciada. Ao esclarecer essas dúvidas os professores de equipe
pedagógica ressaltaram a importância da participação da comunidade
no planejamento pedagógico da escola.
Na leitura da Resolução 03/99 a reflexão foi também sobre o
conceito de escola indígena, os critérios para que seja assim
considerada e goze deste status; os aspectos diferenciados e específicos
dessa instituição; o papel da comunidade na educação escolar
indígena; o processo de formação dos professores incluindo
estruturação da sua carreira; as competências para legislar sobre esse
segmento da educação e a manutenção e administração da educação
escolar indígena. Toda a leitura foi permeada por discussões sobre o
que garante a legislação e o que de fato vem sendo implementado pela
Secretaria de Estado de Educação de MT e pelos municípios onde as
aldeias estão localizadas.
Acompanhamento do Estágio
Como os cursos de Licenciatura trabalham com acadêmicos
que já são professores, o Estágio é realizado no dia-a-dia da sala de
aula e registrado em forma de memória. Esses registros são lidos e
usados pelos professores da equipe pedagógica para a preparação
das atividades e intervenções pedagógicas realizadas no processo de
formação.
130
Formação de professores indígenas...
No acompanhamento do Estágio nestas Oficinas da V Etapa
Intermediária, foi proposta uma estratégia de sorteio de três alunos em
cada pólo, a fim de que cada um fizesse uma exposição oral de uma
aula registrada no caderno de estágio. A proposta era apresentar a
aula (simulando-a ou relatando-a) para que a turma pudesse fazer
uma reflexão sobre o fazer pedagógico do professor, considerando a
sua prática, postura e encaminhamentos didáticos. Apesar de ter sido
sugerida a estratégia do sorteio, vários alunos se dispuseram a fazer a
apresentação, alegando a vantagem de aprender mais com as sugestões
e, com isso, melhorar a sua segurança no trabalho docente.
No desenrolar da atividade, pudemos perceber que os
acadêmicos que apresentaram as suas aulas tiveram rendimentos
muito diferenciados e os assuntos tratados foram vários: cuidado com
o lixo, alimentação e saúde, preservação ambiental, data comemorativa
“Dia da árvore”, variação lingüística, produção de textos (verbal e
não-verbal), ensino de língua materna (neste caso língua indígena),
ensino de operações matemáticas fundamentais e trigonometria,
sistema de numeração, movimento dos astros. Foi importante também
a discussão que se estabeleceu (suscitada pelas dúvidas dos alunos)
sobre a melhor forma de se organizar os registros no caderno de estágio.
Ressaltou-se que o registro deve ser reflexivo, qualitativo e que não é
necessário anotar todos os exercícios desenvolvidos nas aulas.
Estudo e reflexão sobre a prática na sala de aula
Buscando provocar uma reflexão sobre as práticas
pedagógicas dos acadêmicos, foi proposta uma atividade de leitura
de matérias da “Revista Nova Escola”, discussão em duplas e
apresentação em plenária. A proposta era que cada dupla lesse um
texto e tentasse fazer relações com a sua própria prática, imaginando
formas variadas de tratar os assuntos, sem desconsiderar a realidade
das escolas indígenas, o contexto das comunidades e os conhecimentos
culturais de cada povo.
Surpreendeu a equipe a aceitação da atividade e o afinco com
que os acadêmicos a desenvolveram, demonstrando a necessidade de
ampliação da discussão dos assuntos pedagógicos nos cursos de
131
Cadernos de Educação Escolar Indígena
licenciatura. Essa atividade despertou também o interesse dos
acadêmicos pela leitura das revistas “Nova Escola”, pois
consideraram o material muito rico para ser explorado em sala de
aula, o que não acontecia anteriormente, mesmo os professores/
cursistas tendo assinatura da revista nas suas escolas. Nessa atividade,
os assuntos discutidos também foram variados: planejamento,
investigação das dificuldades encontradas em sala de aula,
multidisciplinaridade, ensino de leitura, produção de texto, ensino de
geografia, discussão e reflexão sobre a educação, ensino de ciências,
educação ambiental.
Orientação do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso)
Os acadêmicos das três licenciaturas desenvolvem na etapa
específica dos cursos uma investigação TCC (Trabalho de Conclusão
de Curso). Nessa V Etapa Intermediária, os professores iniciaram a
elaboração dos seus pré-projetos de pesquisa e, diante disso, foi
proposta uma orientação individualizada a partir das primeiras idéias
do projeto. As orientações ocorreram no sentido de auxiliá-los na
escolha de um tema correspondente à área de formação escolhida9 e
de acordo com as necessidades e interesses de sua comunidade.
Como se percebe, essa fase da formação pode ser entendida
como um momento de negociação10. Negociação no sentido de
considerar tudo que o acadêmico já construiu até o momento através
de leituras e discussão sobre exeqüibilidade da pesquisa, buscando
A escolha de uma das três áreas oferecidas no programa ocorre em função do
interesse do acadêmico, das necessidades da comunidade e da orientação da
equipe pedagógica do Programa. Para isso é discutido entre os acadêmicos e
comunidade quem se especializará em cada uma dessas áreas, pois sabem que
para criar, autorizar e reconhecer uma escola estadual ou municipal é necessário
pelo menos um professor com formação específica nas áreas de Línguas, Artes e
Literatura; Ciências Matemática e da Natureza; e Ciências Sociais.
9
O acadêmico ao ingressar no Programa de Educação Superior Indígena e
Intercultural cursará três anos de formação geral e, somente nos últimos dois anos
da formação cursará a parte específica da área escolhida. Concluindo essas duas
partes, estarão habilitados a ministrarem disciplinas do 6º ao 9º ano do ensino
fundamental e as disciplinas do ensino médio da sua área de formação.
10
132
Formação de professores indígenas...
ampliar os conhecimentos na sua área de formação através do acesso
a bibliografias específicas.
Durante a orientação individualizada foi possível também
diagnosticar o estágio de desenvolvimento da pesquisa de cada
acadêmico, facilitando assim, a indicação de bibliografias para
fundamentar o trabalho.
Particularidades das oficinas nos diferentes pólos
Mesmo tendo um encaminhamento comum, cada Oficina teve
um andamento particular, conforme as peculiaridades de cada grupo.
Na aldeia Pakuera a participação de cem por cento dos
acadêmicos em todas as atividades desenvolvidas, a presença
constante de egressos do programa na busca de informações sobre
aspectos pedagógicos e profissionais, a visita das lideranças locais,
acompanhando a Oficina, demonstrou o entrosamento da
comunidade com a escola e a preocupação desta com a formação dos
professores.
Apesar da Oficina ser realizada em um único local, na aldeia
Pakuera houve uma participação das aldeias vizinhas solicitando a
presença da equipe para discutir questões relacionadas à escola, como
por exemplo, o conceito de Escola Indígena encontrado nos textos da
legislação da Educação Escolar Indígena. O motivo da solicitação se
deu pela circunstância de ser um assunto que carecia de
esclarecimentos para fundamentar a reivindicação de tais direitos junto
à Secretaria Municipal de Educação de Paranatinga - MT.
Já no pólo de Itxalá questões como o acúmulo de lixo nas
proximidades da escola e as dificuldades dos professores em alguns
conteúdos de matemática e ciências (demonstrados na apresentação
de Estágio e práticas de ensino) fizeram com que a equipe pedagógica
desenvolvesse atividades e discussões relacionadas à educação
ambiental e reflexões sobre os conteúdos nos quais os professores
demonstraram dificuldades. Diante das expectativas do grupo e da
preocupação da equipe com relação a sensibilização da comunidade
com o acúmulo lixo, o problema foi abordado através de uma palestra
133
Cadernos de Educação Escolar Indígena
seguida de discussão/reflexão de como cada comunidade,
representada pelos acadêmicos, tem encarado esta problemática. A
partir das reflexões foram sugeridas diferentes formas de manejo do
lixo adequadas a cada realidade.
Na aldeia Umutina, que foi reunido um maior número de etnias,
a comunidade, através da escola e suas lideranças, fez apresentações
culturais na abertura e no fechamento da Oficina. Ao término das
atividades a comunidade serviu chicha11 aos acadêmicos, professores
e visitantes, demonstrando o contentamento com a troca de experiências
e a realização do trabalho.
Durante a Oficina desse pólo, o que despertou maior interesse
dos acadêmicos foram as discussões sobre temas relacionados à
legislação da Educação Escolar Indígena, já que para muitos, os direitos
conquistados e expressos na legislação ainda não são totalmente
conhecidos, como por exemplo, o que está garantindo na Resolução
03/99.
No Pólo de São Marcos o aspecto da participação das
lideranças também foi marcante e de uma forma bem particular.
Respeitando a pedagogia Xavante12, as lideranças chegaram à sala de
aula sem chamar muita atenção e depois de um determinado tempo
em silêncio se manifestaram, solicitando a palavra. Esse fato foi muito
importante nesse pólo, pois fez com que a participação e assiduidade
dos alunos melhorassem significativamente.
Já com relação aos temas discutidos, em São Marcos, o que foi
solicitado e contou com maior dedicação dos acadêmicos, foi a
discussão sobre os passos da elaboração de um projeto de pesquisa e
a conversa sobre TCC. Nesse pólo, o trabalho com as revistas “Nova
Escola” também foi uma atividade que despertou o interesse dos
11
Bebida típica do povo Umutina.
Na pedagogia Xavante, na maioria dos casos, a aprendizagem acontece através
da observação e do silêncio. As pessoas mais novas aprendem a ser Xavante entre
os Xavante observando, em silencio, os mais velhos no seu dia-a-dia. O ensino
também pode ocorrer através do silêncio ou do discurso formal. Esse discurso que
é pronunciado do centro do círculo, conforme a sua maneira de ver e/ou conceber
os diferentes assuntos, no nosso caso, a importância de todos participarem das
oficinas com muita dedicação.
12
134
Formação de professores indígenas...
alunos, chegando a ponto de alguns transcreverem atividades que
lhes interessavam para trabalhar em suas respectivas salas de aula.
Em Sangradouro, as atividades de discussão pedagógica e
trabalho na sala de aula foram as que mais chamaram a atenção dos
acadêmicos. Durante essas atividades os acadêmicos demonstraram
bastante interesse pelo o planejamento de suas atividades como
professores e perceberam a importância da utilização de materiais
pedagógicos, além do livro didático, para o planejamento e
desenvolvimento de suas aulas.
Um ponto marcante foi a participação das mulheres que
tradicionalmente e por influência cultural se expõe menos nos debates
e apresentações em sala de aula. Na atividade realizada com a revista
“Nova Escola”, elas foram dinâmicas na apresentação de suas
reportagens, na transposição dos temas tratados pelas matérias para
a realidade em sala de aula.
Por fim, um aspecto que ficou notório em todos os pólos foi a
expectativa da comunidade com a realização aos trabalhos. Todos
esperaram com grande entusiasmo e curiosidade a chegada da equipe
nas áreas. De acordo com esse fato, percebe-se que a realização das
Oficinas nas aldeias, além de ser importante no processo de formação
dos acadêmicos, é também um fator que proporciona fortalecimento
político da Universidade, das comunidades anfitriãs e de todos os
envolvidos.
Avaliação
O Programa de Educação Superior Indígena Intercultural –
PROESI - prevê três níveis de avaliação, sendo: o primeiro nível a
avaliação do Programa no âmbito da formação (avaliação externa), o
segundo nível, a avaliação dos cursos no âmbito da escola, impacto
dos cursos no cotidiano escolar e, por último, o terceiro nível, avaliação
dos cursistas no âmbito do curso e da sua formação como professor.
Considerando o terceiro nível, o das avaliações dos
acadêmicos, a realização das Oficinas Pedagógicas em pólos
proporcionou uma experiência enriquecedora, considerando o
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Cadernos de Educação Escolar Indígena
contexto da aldeia e a proximidade professor/aluno. Ao final de cada
Oficina, foi solicitada aos acadêmicos uma avaliação escrita sobre o
encontro. Eles deveriam falar sobre suas expectativas,
desenvolvimento pessoal e alcance de objetivos. Nesse aspecto, deveria
falar também sobre a forma como as atividades foram conduzidas e,
por fim, fazer críticas e sugestões ao trabalho da equipe. Foi pedido
ainda que avaliassem a importância da Oficina dentro do curso.
Diante do que se pretende nas licenciaturas, uma avaliação
como essa, feita pelos acadêmicos, é fundamental para o
aprimoramento das atividades oferecidas, uma vez que a estrutura
curricular dos cursos possibilita mobilidade para as adequações, tendo
em vista o êxito no processo de ensino-aprendizagem dos professores
em formação.
Pelo que foi observado no desenvolvimento das atividades,
participação dos acadêmicos e avaliações escritas, o trabalho alcançou
a sua meta principal que era, além de desenvolver as atividades de
ensino-aprendizagem, possibilitar reflexões sobre a construção da
escola indígena, considerando as particularidades e a abrangência
das questões pedagógicas, culturais, legais e políticas envolvidas.
Considerações finais
A partir do trabalho desenvolvido, observamos que o
acompanhamento individual dos acadêmicos, a participação das
lideranças, a realidade das escolas das aldeias e o desenvolvimento
da pesquisa são alguns pontos que merecem ser ressaltados.
Com essa experiência de acompanhamento dos acadêmicos
nas suas respectivas comunidade e/ou escolas, pode-se dizer que
conhecer cada aluno indígena matriculado nos cursos de licenciatura
específicos para formação de professores indígenas no seu contexto
social/político é fundamental, pois, às vezes, o fato do aluno se
manifestar pouco durante as aulas da Etapa Intensiva não significa
que o mesmo não esteja acompanhando o processo, mas sim, pode
estar tendo dificuldades de se expressar em público ou até mesmo,
pode estar respeitando alguma norma interna da sua cultura. Esse
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Formação de professores indígenas...
aspecto muitas vezes só é percebido quando os alunos estão na sua
comunidade ou em pequenos grupos durante as Oficinas Pedagógicas
desenvolvidas em suas respectivas áreas. Se isso não for considerado,
a condução do processo pedagógico dos cursos oferecidos pode ser
prejudicada.
Nessa mesma perspectiva, podemos destacar ainda nessa
experiência, a importância das lideranças no desenvolvimento do
trabalho, tanto com relação ao apoio logístico quanto nos aspectos
pedagógicos/disciplinares. Isso porque a simples presença de um líder
nas oficinas, transforma o ambiente e fortalece ainda mais o espaço de
ensino/aprendizagem quando essas pessoas expõem aos acadêmicos
as suas experiências ou até mesmo dificuldades encontradas em
tempos passados com relação à formação de professores indígenas. A
consciência desse histórico de dificuldades da Educação Escolar, na
maioria dos casos, desencadeia nos acadêmicos uma atitude de
responsabilidade com relação ao processo de educação atual e isso é
primordial para o andamento dos trabalhos.
Além de tudo, nesse convívio é possível perceber as
dificuldades que os professores enfrentam na realização das suas
atividades dentro das escolas em suas comunidades e, a partir daí,
pode-se sugerir e montar estratégias pedagógicas mais adequadas para
atendê-los nos diferentes contextos.
De maneira geral podemos dizer que essa experiência nos
permitiu perceber muitas particularidades da temática “formação dos
professores indígenas”. Dentre estas, alguns aspectos que ainda
precisam de um maior destaque dentro da proposta de trabalho do
próprio curso, tais como: a importância do planejamento das atividades
escolares e a adequação da prática de ensino à realidade da clientela.
Devido ao fato de que só recentemente a legislação brasileira
possibilitou a autonomia dos povos indígenas na condução de suas
escolas, a prática pedagógica é ainda algo novo para muitos, planejar
ainda parece ser desnecessário. Mas essa falta de planejamento, de
certa forma, tem reflexo no desempenho do processo de ensino/
aprendizagem.
A adequação da prática pedagógica com a realidade de cada
escola, cada turma, é um fator que precisa ser melhor trabalhado com
os acadêmicos, pois nem sempre o que eles aprenderam na sua vida
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Cadernos de Educação Escolar Indígena
de estudante universitário, é compatível com a forma de ensino/
aprendizagem estabelecida culturalmente. Ou seja, a forma que se
ensina e se aprende na cultura fica muito distante daquela maneira
que estão aprendendo na escola formal. Mas tudo isso, talvez possa
ser contemplado se levarmos em consideração o ensino-aprendizagem
na perspectiva da pesquisa.
Podemos perceber que numa modalidade de curso como essa,
a pesquisa precisa ser proposta e conduzida, ou seja, exercitada, pois
acreditamos que a perspectiva da investigação seja a trilha a ser
percorrida na formação de professores, sejam licenciaturas específicas
ou não. Sendo assim, acreditamos que discutir/refletir as questões da
investigação possa oferecer condições para desenvolver os trabalhos
nas comunidades de forma mais adequada e crítica.
Bibliografia
CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA – Projeto de
Formação de Professores Indígenas / 3º Grau Indígena, Barra do Bugres:
UNEMAT, v. 3, nº 1, 2004.
CADERNOS de planejamento: que escola que queremos? In: Revista
Nova escola. São Paulo: Editora Abril, nº 158, p. 35-45, dezembro de
2002.
GRUPIONI, Luiz Donisete B. (Org.) Formação de Professores Indígenas:
repensando trajetórias.Ministério da Educação, Secretaria da Educação
Continuada,Alfabetização e Diversidade.Brasília, 2006
MINISTÉRIO da educação. Programa Parâmetros em ação: as leis e a
educação escolar indígena. Brasília: Mec, 2002.
MINISTÉRIO da educação. Programa Parâmetros em ação: quem são,
quantos são, onde estão os povos indígenas e suas escolas no Brasil. Brasília:
Mec, 2002.
SECRETARIA de Educação Fundamental. Referenciais Para a Formação
de professores Indígenas. Brasília: Mec, 2002.
138
Formação de professores indígenas...
SECRETARIA DE Ensino Fundamental. Referencial Curricular Nacional
para as Escolas Indígenas – RCNEI. Brasília: Mec/SEF, 1998.
SILVA, Araci Lopes da & FERREIRA, Marina K. Leal. Práticas
Pedagógicas na Escola indígena. São Paulo: Editora Global, 2001.
SILVA, Araci Lopes da. A Questão Indígena na Sala de Aula: subsídios
para professores de 1º e 2º graus. São Paulo: Brasiliense, 1987.
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En
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Síria Rupê
Elias Januário*
Maria Síria Rupê**
Elias Januário: Maria Síria, onde você nasceu e como foi a sua infância?
Maria Síria: Vou me apresentar. Meu nome é Maria Síria Rupê, moro
na aldeia Fazendinha, sou da etnia Chiquitano. Os Chiquitano
possuem duas aldeias, Acorizal e Fazendinha, eu nasci na Fazendinha,
fiquei lá até os treze anos, onde estudei do primário até a quarta série,
na Escola General Ozório, no quartel, que seguia o regime militar. As
crianças daquela época iam para a escola aos sete anos, eram
obrigadas, se não fossem os pais eram castigados, por isso os pais
levavam a gente. Tinha aula de manhã e à tarde. À tarde a gente sempre
fazia aula de educação física, e sempre os professores eram só os
militares ou suas esposas, que alfabetizavam e educavam a gente, dali
começou a minha perda de tudo, da minha língua, de tudo porque a
gente não podia falar a língua, a partir do momento que entravamos
no quartel já era regime de branco, não podia mais falar na língua,
dançar, tudo era cortado, era um regime sério, a gente estudava desde
pequeno, era senhor, senhora. Éramos tratados como militares,
limpávamos o pátio, tinha as horas de recreação, cantar o hino nacional.
A minha infância então foi passada entre o quartel e a aldeia.
* Dr. em Educação pela UFSCar, Docente do Deptº. de História e do PPGCA da
UNEMAT. Coordenador Geral do PROESI.
** Professora Chiquitano na aldeia Fazendinha, município de Porto Esperidião.
Estudante dos Cursos de Licenciatura do PROESI.
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Cadernos de Educação Escolar Indígena
Elias Januário: Onde você fez os seus estudos secundários?
Maria Síria: Até os treze anos, como eu disse, estudei lá no quartel,
assim que terminei fui para a cidade, porque meu pai sempre achou
que a gente tinha que estudar, mas não sabia como que tinha que ser.
A minha irmã já tinha ido pra cidade e casado com um policial, aí eu
fui pra lá, estudei na escola em Cáceres, na Escola Esperidião Marques,
onde fiz o Ensino Fundamental e depois o Ensino Médio na Escola
Milton Marquês Curvo, onde terminei todo o meu estudo.
Elias Januário: Gostaria que você falasse um pouco da questão dos
Chiquitano no Brasil?
Maria Síria: Bom, a questão dos Chiquitano no Brasil iniciou em 2004,
quando o povo começou a lutar pela terra, porque antes a gente não
sabia se éramos índios. Estou falando do Portal do Encantado, que é a
nossa terra, onde está na demarcação, que fica no município de Porto
Esperidião, mas os Chiquitano no Brasil vem desde Cuiabá, passa
pela região de Vila Bela e continua mais pra frente. A nossa luta, no
Brasil, agora que teve visibilidade por causa da terra, aí que fizeram o
estudo da terra, porque eles queriam mandar meus pais embora, toda
a minha família, cobravam o pasto e as casas, não deixavam mais eles
fazerem as casas, não deixavam mais eles plantarem, chegou ao ponto
que os Chiquitano que criavam animais estavam pagando por cabeça
de gado, cobravam um real. Você imagina a pessoa que não tem, que já
trabalha para sustentar a família, ainda ter que pagar aluguel do mato,
pagar o lugar onde for fazer a roça, ter que pagar tanta coisa com o
salário miserável que os fazendeiros pagavam pra eles, que paga até
hoje, você imagina a diária que são dez reais, trabalhar para pagar
tudo isso. Dessa forma, começou a luta do povo Chiquitano em requerer
a sua terra. Procuramos a FUNAI, antes disso meu pai mandou uma
carta para Brasília, por meio de um funcionário da FUNAI, que esteve
antes lá. Foi a partir do momento que eles tiveram necessidade, no
momento que falaram que nós iríamos ser despejados, que começou o
conflito dos Chiquitano no Brasil, que hoje está sendo reconhecido,
mas com muito preconceito dos fazendeiros, eu mesma sofri muito
preconceito no quartel, foi até boa essa questão do quartel querer
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Entrevista com a acadêmica Maria Síria Rupê
pressionar os índios de lá. Isso ajudou para que a gente fosse
reconhecido no Brasil, até aquele momento a gente era conhecido como
Bugre que eles falavam, e eu não gosto de ser chamada de Bugre, porque
Bugre é uma pessoa sem identidade. Falavam que eu era Bugre. Até na
escola quando estudava em Cáceres, as pessoas ficavam falando se eu
era índia, japonesa, o que eu era, ficavam falando que eu era Boliviana.
Diziam que Boliviana eu não era porque tinha nascido no Brasil, com
essa demarcação, com tudo isso que foi acontecendo, hoje fico feliz em
saber quem eu sou e sei da minha identidade, e assim os Chiquitano
também, todos estão lutando para ter o reconhecimento da identidade
do nosso povo no Brasil, infelizmente tem muitos que têm vergonha de
dizer que é um Chiquitano, têm medo dos fazendeiros.
Elias Januário: Como você mesma falou, existem pessoas que ainda
têm vergonha de dizer que é um Chiquitano, de dizer que é índio,
então gostaria de saber quais os preconceitos e as dificuldades
enfrentadas nesta busca da afirmação da identidade por vocês e
principalmente por você?
Maria Síria: Pra mim a dificuldade ainda é muito grande,
principalmente quando vou na cidade, agora tenho muita dificuldade
de entrar nos lugares onde eu entrava, por que as pessoas já sabem
dos Chiquitano, e começam a falar que a gente está nessa luta, sem
saber realmente o que é Chiquitano. As pessoas ficam querendo
manipular, querendo comprar a gente. Lá no município teve um
vereador que chegou a me perguntar se eu iria voltar a andar pelada
novamente, se iria cozinhar no chão, dormir no chão. São pessoas que
não têm conhecimento da cultura indígena, o que é uma língua
indígena, então têm muito preconceito. Dizem que índio tem que andar
fantasiado, cadê seu cocar? Cadê a sua pintura? Que índio tem que
andar só assim. Isso nos humilha e ofende. Essas pessoas que falam
não tem conhecimento da cultura indígena, qual a importância da
cultura. Isso dificulta os demais Chiquitano a estar assumindo como
índio, de dizer que é índio, que a sua identidade é essa. Eles têm
dificuldades de enfrentar as pessoas que falam que a gente só come
bicho, mato e raízes. Lá no município os fazendeiros e os vereadores
atormentam muito os jovens, dizendo que isso que eles estão fazendo
não vai ter futuro nenhum, eles falam que ensino diferenciado é esse?
143
Cadernos de Educação Escolar Indígena
Que eles não conhecem nenhum ensino diferenciado indígena, então
para a juventude fica muito difícil e para os mais velhos também,
porque tem os mais velhos que ainda não se aceitam, sabe fazer os
potes, as panelas, fala na língua, mas perante a sociedade não-índia
eles falam que não são índios, ficam se escondendo para não serem
perturbados, para não serem discriminados.
Elias Januário: No início você falou da sua educação, da sua infância,
onde você nasceu, falou da sua escola que era em regime militar, e
hoje, como é a escola na sua aldeia?
Maria Síria: A escola na minha aldeia é do Estado e tem ensino
diferenciado. Antes quando eu estudava o regime era do quartel, eles
que implantaram a escola e éramos educados da maneira deles, agora
é do município, a escola é totalmente diferente. Avaliamos que com o
ensino diferenciado está bem melhor do que antes, agora só os índios
estão trabalhando. Estamos valorizando tudo que foi perdido. A
cultura, a música e o artesanato os jovens estão aprendendo novamente,
estamos orientando que não podemos ter vergonha do que somos. É
uma escola que tem liberdade pra tudo, tudo que eu não tive, tem
liberdade pra falar, tem a liberdade de falar com o professor, tem a
liberdade de perguntar, coisa que na minha educação eu tinha que
acatar tudo que era dito pelo professor, “sim senhor e sim senhora”, e
se não falasse a tabuada, por exemplo, levava palmatória, ficava de
castigo. Hoje na escola indígena é mais tranqüilo e feliz. Aprendemos
de verdade.
Elias Januário: Estão trabalhado a questão da identidade na escola?
Maria Síria: Trabalhamos, na nossa escola principalmente, neste
momento a questão da identidade é assunto em todas as disciplinas,
estamos trabalhando justamente aquilo que lhe falei, que eles têm
vergonha, têm dificuldade de ir ao mercado, que as pessoas começam
a falar, a gente vai orientando como eles devem responder a essas
pessoas que estão humilhando, para que eles possam sair e não ficar
chateados. No começo da escola, em 2004, eles tinham vergonha,
ficavam acanhados de dizer que eram índios. A pedido da comunidade
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Entrevista com a acadêmica Maria Síria Rupê
começamos a trabalhar nessa orientação, para não ter desavença entre
eles, porque lá já tem essa mistura de branco com índio.
Elias Januário: Sabendo que você nasceu na aldeia, foi alfabetizada
num regime militar, na cidade concluiu o ensino fundamental e médio,
o que significa hoje para você estar cursando o 3º Grau Indígena na
UNEMAT?
Maria Síria: É muito importante pra mim, porque eu deixei tudo que
tinha na cidade, larguei casa, marido que não quis vir comigo, ele é
branco, não quis ir para a aldeia, porque ele não ia deixar seu serviço
pra ir para a aldeia. Eu fui pra lá justamente porque o povo Chiquitano
precisava ter esta escola na aldeia, e entre as pessoas que foram
indicadas eu fui uma das escolhidas. Estar cursando o 3º Grau
Indígena contribui para ampliar meus conhecimentos e incentivar a
minha carreira de educadora.
Elias Januário: Muito obrigado Maria Síria e boa sorte na sua luta e na
sua formação acadêmica.
Maria Síria: Fico feliz pela oportunidade de falar e divulgar a nossa
luta, a trajetória do povo Chiquitano no Brasil. Obrigada também.
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