Cadernos de Educação Escol Educação Escolar Indígena ar Indígena
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Cadernos de Educação Escol Educação Escolar Indígena ar Indígena
Cadernos de Educação Escol ar Indígena Escolar Uma publicação do Programa de Educação Superior Indígena Intercultural Editores / Organizadores - Elias Januário - Fernando Selleri Silva - Taisir Mahmudo Karim Consultor Antropológico Luís Donisete Benzi Grupioni Comissão Editorial Adailton Alves da Silva - UNEMAT Bruna Franchetto - UFRJ Elias Januário - UNEMAT Fernando Selleri Silva - UNEMAT Filadelfo de Oliveira Neto - CEI/MT Flavio Teles C. da Silva - UNEMAT Francisca Novantino Paresi - OPRIMT Luís Donisete Benzi Grupioni - USP/IEPÉ Marcus Antonio Rezende Maia - UFRJ Maria Aparecida Rezende - UFGD Taisir Mahmudo Karim - UNEMAT Cadernos de Educação Escolar Indígena PROESI - v. 5, n. 1, 2007 Barra do Bugres - MT As informações contidas nos artigos são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores. PROGRAMA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR INDÍGENA INTERCULTURAL Cadernos de Educação Escol ar Indígena Escolar Série Periódicos Edição Comemorativa Barra do Bugres - MT 2007 Catalogação: Cleide de Albuquerque Moreira Bibliotecária/CRB 1100 Revisão: Lucimar Luisa Ferreira / Marinez Santina Nazzari Revisão Final: Elias Januário Consultor: Luís Donisete Benzi Grupioni Projeto Gráfico/Diagramação: Fernando Selleri / Silvair Frazão Fotos da capa: Acervo do PROESI Fotógrafos: Banavita, Elias Januário, Fernando Lopes, Joana Saira, Julio Cezar Paes Dados internacionais de catalogação Biblioteca “Curt Nimuendajú” CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA - PROESI. Organizadores Elias Januário, Fernando Selleri Silva e Taisir Mahmudo Karim. Barra do Bugres: UNEMAT, v. 5, n. 1, 2007. ISSN 1677-0277 1. Educação Escolar Indígena I. Universidade do Estado de Mato Grosso II. Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso III. Coordenação-Geral de Documentação / FUNAI. CDU 572.95 (81) : 37 UNEMAT - Universidade do Estado de Mato Grosso Campus Universitário Dep. Estadual Rene Barbour Educação Indígena - PROESI - Caixa Postal nº 92 78390-000 - Barra do Bugres/MT - Brasil Telefone: (65) 3361-1964 www.unemat.br/indigena - [email protected] SEDUC/MT - Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso Superintendência de Formação Profissional Travessa B, S/N - Centro Político Administrativo 78055-917 - Cuiabá/MT - Brasil Telefone: (65) 3613-1021 SECITEC/MT - Secretaria de Estado de Ciência e Tecnologia de Mato Grosso Rua 03, S/N, 3º piso - Centro Político e Administrativo 78050-970 - Cuiabá/MT - Brasil Telefone: (65) 3613-0100 FUNAI - Fundação Nacional do Índio CGE - Coordenação Geral de Educação SEPS Q. 702/902 - Ed. Lex - 3º Andar 70390-025 - Brasília/DF - Brasil Telefone: (61) 3313-3647 Sumário Prefácio .................................................................................................... 7 Apresentação .......................................................................................... 9 Autonomia e Protagonismo Indígena nas Políticas Públicas ........ 11 Darci Secchi Mediação: um desafio intercultural para os professoresmediadores wayanas ........................................................................... 21 Eliane Camargo Desafios e Perspectivas na Educação Superior Indígena .............. 43 Elias Januário e Fernando Selleri Silva Entre a aldeia e a cidade: notas da trajetória de uma vida ............. 51 Rozinete Zoizoquialo Amajunepá A busca da autonomia no processo da educação escolar indígena ................................................................................................. 5 7 Lucimar Luisa Ferreira e Adailton Alves da Silva 5 Cadernos de Educação Escolar Indígena Em Construção: a Escola Desejada .................................................... 65 Maria Aparecida Rezende Arqueologia e educação escolar indígena na II Etapa dos Cursos de Licenciatura (Turma 2005-2009) ................................................... 75 Luciano Pereira da Silva “Karajá é um Bicho Traiçoeiro”: alguns estereótipos presentes em nosso corpus ........................................................................................... 95 Maristela Sousa Torres Metodologia de ensino de Física para a Formação de Professores Indíos .................................................................................................... 113 Frederico Ayres e Anderson Rodrigues Lima Caíres Corpo Humano e Saúde: uma Experiência na Formação de Professores Indígenas ....................................................................... 119 Larissa Maria Scalon Lemos e Hébia Tiago de Paula Formação de Professores Indígenas: uma Experiência de Acompanhamento Pedagógico nas Aldeias ................................... 125 Adailton Alves da Silva, Hébia Tiago de Paula, Jurandina Barbosa Sales, Lucimar Luisa Ferreira e Marinez Santina Nazzari Entrevista com a estudante Maria Síria Rupê ................................ 141 Elias Januário 6 Prefácio Com a publicação desta Edição Comemorativa dos 10 Anos de Educação Escolar Superior Indígena em Mato Grosso (1997 – 2007) e da existência do Conselho de Educação Escolar Indígena – CEI/MT, estamos disponibilizando ao público e as comunidades indígenas um material onde é possível conhecer episódios importantes da luta pela consolidação da Educação Escolar indígena em Mato Grosso. O início dessa trajetória vitoriosa começou antes mesmo de 1997, nas reuniões que aconteciam nas aldeias, nos embates na cidade junto aos órgãos públicos e organizações não-governamentais, nos seminários e encontros organizados para debater a oferta da educação escolar indígena. Em 1997 toda essa conjunção de ações e desejos materializouse na criação do Conselho de Educação Indígena – CEI/MT e na Publicação do Decreto N. 1842 de 21 de novembro de 1997, do Governo do estado de Mato Grosso, criando a Comissão Interinstitucional e Paritária. Difíceis mas vitoriosos foram os anos que se seguiram à criação da Comissão. Reuniões extensas, conflitos de pensamentos, tensões com a alteridade, abandono de alguns companheiros, entre outras situações. Mas tivemos também situações importantes, verdadeiros marcos na história da educação escolar indígena em nosso estado. A conclusão do Projeto de Cursos de Licenciatura Específicos para a Formação de Professores Indígenas e sua entrega oficial ao Governo do Estado, a formatura dos professores do magistério – Projeto Tucum, a abertura de novos projetos em nível médio, a realização do vestibular indígena e o início da primeira turma de Licenciatura Específica para a Formação de Professores Indígenas em julho de 2001, que ficou conhecido como 3º Grau Indígena. 7 Cadernos de Educação Escolar Indígena Ao longo dos 05 anos que seguiram, foram publicados materiais didáticos para as escolas indígenas, artigos com reflexões sobre o processo em curso, realizadas conferências e abertas novas turmas. Essas ações caminharam para a consolidação de políticas públicas no estado de Mato Grosso, que estão a cada dia sendo aprimoradas. A mais recente conquista foi a transformação do Projeto de Formação de Professores Indígenas em Programa de Educação Superior Indígena Intercultural – PROESI, com o propósito de continuar a execução dos cursos de Licenciatura e agora ampliar para Bacharelado, Pós-Graduação Lato Sensu e Stricto Sensu, cursos de formação continuada, acompanhamento de indígenas nos cursos regulares e implementação de Museus Escola. Os desafios continuam, e junto com eles o desejo também de construir novas possibilidades, de trilhar por caminhos mais íngremes e de fazer valer os direitos constitucionais e de cidadania aos povos indígenas de nosso país. Elias Januário Coordenador Geral do PROESI Francisca Navantino Paresi Consultora e Representante Indígena no PROESI 8 Apresen tação Apresentação É com satisfação que nos dirigimos aos leitores do Cadernos de Educação Escolar Indígena para anunciar mais uma conquista dos povos indígenas de Mato Grosso e de todas aquelas pessoas que estão ligadas direta ou indiretamente com as questões indígenas: a criação do Programa de Educação Superior Indígena Intercultural - PROESI. Trata-se de um importante passo no sentido de fortalecer as ações desenvolvidas pela UNEMAT em prol da consolidação da Educação Superior Indígena no Estado de Mato Grosso. O Programa de Educação Superior Indígena Intercultural da UNEMAT tem por objetivo a implementação das políticas de educação escolar indígena e a interculturalidade do Estado de Mato Grosso, por meio da elaboração, execução, acompanhamento e avaliação das modalidades desenvolvidas, bem como a execução dos cursos de Licenciaturas Plenas e de Bacharelado, com vistas à formação em serviço e continuada de professores e profissionais indígenas nas comunidades indígenas; abertura de vagas nos cursos regulares de Pós-Graduação Lato Sensu e Stricto Sensu; cursos de formação continuada; acompanhamento de acadêmicos indígenas nos cursos de graduação e administração do Museu Indígena a ser implantado. Com essa abrangência o PROESI fortalece também as ações da Universidade do Estado de Mato Grosso no sentido de estabelecer uma política de Educação Escolar Indígena no seu interior, pois todas as ações desenvolvidas para atender as comunidades indígenas no Estado estarão inseridas nesse programa. Juntamente com a comemoração dos 10 anos da Educação Superior Indígena em Mato Grosso, comemoramos também o sétimo aniversário do Projeto de Formação de Professores Indígenas – 3º Grau Indígena, que iniciou suas atividades em 27 de setembro de 2000, 9 Cadernos de Educação Escolar Indígena passando de agora em diante a integrar as ações do PROESI, com os Cursos de Licenciatura Específica para a Formação de Professores Indígenas. Nesse período muitas ações foram realizadas, tais como: o ingresso de 200 cursistas em 2001 e mais 100 em 2005; o desenvolvimento da Especialização Lato Sensu em Educação Escolar Indígena; a constituição de um amplo acervo sobre a Educação Escolar Indígena que reúne dados, documentos, trabalhos, fotos, livros, entre outros; a publicação de 15 títulos dentre os quais se inclui este periódico; a realização de eventos sobre questões indígenas em nível local, regional e internacional como a Conferência Internacional sobre Ensino Superior Indígena – CIESI 2004; a conclusão da primeira turma que conferiu o grau de licenciado a 186 professores indígenas em 2006. Tudo isso é motivo de orgulho e satisfação para todos que contribuíram com essa iniciativa. Contudo, pretendemos continuar ampliando essas ações. Para 2008 está prevista a entrada de mais 50 cursistas nos cursos de graduação e 50 no curso de Especialização em Educação Escolar Indígena, além da criação do Museu Memória e Identidade Indígena. Neste quinto número do Cadernos de Educação Escolar Indígena apresentamos uma coletânea de treze artigos, os quais relatam experiências desenvolvidas no contexto dos cursos de Licenciatura do Programa e experiências desenvolvidas no contexto de outros cursos, contando com comunicações que envolvem temáticas como autonomia, protagonismo, preconceito, currículo, fazer pedagógico, desafios e perspectivas, enriquecendo ainda mais a discussão a qual esta publicação se propõe a fomentar. Adaiton Alves da Silva Coordenador Pedagógico do PROESI Fernando Selleri Silva Coordenador Administrativo do PROESI 10 Autonomia e P rotagonismo Protagonismo Indígena nas P olíticas Públicas Políticas Darci Secchi* Apresentação A implantação de políticas públicas específicas voltadas para segmentos afro-descendentes, índios e pobres, vem ocupando um lugar de destaque no debate político e acadêmico contemporâneo. No presente artigo pretendemos pontuar alguns aspectos desse debate, com destaque para o movimento de autonomia e protagonismo indígena1 que se consolida no âmbito das políticas públicas dirigidas a essas sociedades. Discutiremos inicialmente as noções de autonomia e de protagonismo por considerá-las como palavras-chaves do debate acerca das “políticas compensatórias” na atualidade. O argumento que procuraremos desenvolver dirige-se no sentido de considerá-las positivamente, desde que superada a matriz conceitual que ordenou até aqui as relações entre o poder público e as comunidades indígenas. Doutor em Ciências Sociais pela PUC/SP, professor adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso - UFMT. Consultor nos Cursos de Licenciatura do PROESI. * 1 Protagonismo indígena é entendido aqui com um duplo enfoque: enquanto uma atitude de rompimento com as relações de tutela e submissão e, enquanto o exercício qualificado de um papel de destaque nas relações interculturais. 11 Cadernos de Educação Escolar Indígena Será curioso constatar que nas últimas décadas essas relações alteraram-se progressivamente, passando de uma situação de desatenção ou de exclusão para uma atitude de inclusão tolerada, depois solidária e, finalmente, para um contexto de diálogo qualificado entre múltiplos protagonistas. Essa mudança de atitude aponta para a superação das denominadas políticas compensatórias e sugere a construção de relações de autonomia e de protagonismo dos indígenas brasileiros que vivem nas cidades, nos cerrados e nas florestas. A noção de autonomia: dos gregos aos indíos A palavra auto-onomia nasceu na Grécia Antiga e expressava a faculdade, direito ou possibilidade de alguém atribuir-se o próprio nome. Dizia respeito ao cidadão, apto a falar de si, a elaborar suas regras de cidadania e a viver segundo elas nos três ambientes da polis (Casa, Ágora e Eclésia). Por oposição, trazia a idéia de hetero-onomia, condição daquele que recebia de outrem os seus desígnios (princípios, leis, valores, língua etc.) e a eles era abrigado a submeter-se. Tratava-se, portanto de uma diferenciação entre seres: uns eram portadores de autonomia e cidadania, outros tratados com heteronomia e escravidão. Depois dos gregos, autonomia passou a ser entendida como a “consciência explícita que somos nós que criamos nossas próprias leis e que, portanto, podemos, também, muda-las” (CASTORIADIS, 1998: 104). Encontraria o seu expoente em Descartes com a idéia da “experiência absoluta” do homem que pensa e que, em sua existência, tem a possibilidade de fazer escolhas, inclusive das leis que regerão a sua conduta. Nessa perspectiva, a autonomia vinha associada particularmente à reflexão, à busca da verdade, e à liberdade. A dependência estaria localizada no objeto, isso é, no homem tecnificado e incapaz de pensar, de exercer o cogito, de elevar a sua realidade, de transcender. Tratava-se, portanto, de um ato de escolha: a pessoa decidia-se por ser sujeito da sua vida ou por ser objetizada. 12 Autonomia e protagonismo indígena nas políticas públicas A abordagem marxista, por seu turno, associou a autonomia à possibilidade coletiva da liberdade. Porquanto, autonomia seria a “ação de uma liberdade coletiva sobre outras liberdades”. A alienação se expressaria pelas “condições de privação, como estrutura solidificada global, material e institucional de economia, de poder e de ideologia, como indução, mistificação, manipulação e violência”. Por isso, “nenhuma autonomia individual pode superar esse estado de coisas, anular os efeitos sobre nossa vida, da estrutura opressiva da sociedade na qual vivemos”.2 Mais recentemente, inúmeros autores associam a idéia de autonomia à de soberania e de desenvolvimento econômico e tecnológico. Nessa perspectiva, a autonomia expressaria a possibilidade de uma população definir o seu próprio destino, predominantemente sob a forma e nos limites de um estado nacional. Seria sintetizada pela possibilidade do exercício efetivo dos direitos individuais e coletivos de uma população no âmbito de uma nação, pela capacidade competitiva do seu mercado e pelo poderio bélico de cada nação ou de nações aliadas. A autonomia traria como elemento referencial de oposição a noção de dependência, isso é, o não-exercício pleno dos direitos e o cerceamento imposto por determinantes externos. O mundo estaria dividido em dois grandes ‘blocos’: de um lado os países centrais, desenvolvidos e ‘dominantes’ e, do outro, os países periféricos e subdesenvolvidos, dominados ou dependentes. A mesma dinâmica seria aplicada também no estabelecimento das relações econômicas, culturais, étnicas e regionais no interior da mesma unidade nacional.3 No campo da Antropologia, essa matriz conceitual subsidiou grande parte dos trabalhos que tratam das relações entre os povos indígenas e a sociedade nacional. Para ela, estaria posta uma situação básica de conflito: de um lado os agentes “colonizadores” e de outro, os “índios”. Dessa relação resultaria, uma fricção cinterétnica (Oliveira,1976), diferentes graus de aculturação (Ribeiro 1978), uma 2 Castoriadis, 2000:131. O Estado de Mato Grosso, por exemplo, embora situado no “coração do Brasil Central” é considerado um estado periférico, atendido por universidades periféricas, com desenvolvimento econômico e cultural periférica, etc. Até o próprio nome do Estado sugere o lugar povoado por “índios” e onde a onça passeia, despreocupada, pelas “corrutelas”... 3 13 Cadernos de Educação Escolar Indígena situação de contato (Oliveira Filho,1988)4, uma situação colonial (Balandier, 1973), quando não, o extermínio físico e o desaparecimento de um dos pólos – os índios. Em síntese: as sociedades indígenas teriam estabelecido diferentes formas de contato com as “frentes de expansão”, com o “entorno regional”, com a “sociedade nacional” e dela teria resultado uma maior ou menor (normalmente menor) autonomia. É nesse cenário de interesses opostos, de forças desiguais e de resistências heróicas que as sociedades indígenas estão lutando pelos seus direitos constitucionais, pelo direito de preservar a identidade e a diferença, pelo direito de construir os seus projetos de futuro. A perspectiva de tratar a autonomia como um direito a ser concedido e reconhecido constitui um passo importante na análise das relações entre os diferentes grupos de pertencimento que compõem a sociedade brasileira atual. No entanto, ao nosso ver, estão sendo desconsiderados dois problemas importantes. O primeiro, consubstancia-se pela ausência de uma crítica mais apurada sobre o direito de outorga. Aceita-se como legítimo que os grupos sociais investidos de maior autonomia admitam, concedam, reconheçam, tolerem, etc. alguns direitos aos que são ‘diferentes’ (leiase, desprovidos do poder de estabelecer seus direitos), e o fazem “dentro de um marco nacional” previamente existente. Não se põe em questão o presumido direito de outorgar direitos. O segundo problema diz respeito ao império da lei, isso é, a primazia da ordem jurídica sobre os demais aspectos da realidade social e cultural. Aceita-se tacitamente que a existência de leis é condição suficiente para assegurar as mudanças nas relações. Mas como bem lembra o poeta Drummond , as leis não bastam; os lírios não nascem das leis. Protagonismo Indígena A palavra protagonista também teve origem na Grécia Antiga e é composta pelas raízes das palavras proto, que se traduz como “o 4 A idéia de dependência é substituída aqui pela noção de tutela. 14 Autonomia e protagonismo indígena nas políticas públicas principal” e agonistes, que significa “lutador”. Naquele contexto histórico, a designação de protagonista era atribuída ao principal lutador, ao campeão, ao vencedor (por vezes agonizante) das lutas travadas nas arenas. Mais tarde, ainda na Grécia, a palavra protagonista passou a ser utilizada também para designar o principal ator da tragédia, um gênero literário muito apreciado pela população. Nas tragédias gregas os atores protagonistas representavam os papéis de deuses, de heróis ou de outros seres reverenciados, enquanto que os atores coadjuvantes - os deuteragonistas, tritagonistas, pentagonistas - representavam personagens históricos ou mitológicos de menor destaque. Nos tempos atuais, a palavra foi amplamente utilizada no teatro e no cinema e, mais recentemente, passou a designar também os líderes e expoentes de diversas áreas do cotidiano social, político e cultural. Assim, o rei Pelé é considerado protagonista nos esportes; Paulo Freire, na educação e Tancredo Neves, na política. É assim também que as atuais sociedades indígenas estão se organizando para serem protagonistas, isso é, para serem os principais lutadores, atores e expoentes da construção e da realização dos seus projetos societários. Ao discutir o protagonismo indígena no contexto de relações interculturais assimétricas (marcadas pela predominância da cultura e da economia ocidental), é preciso definir estratégias que possam reconfigurar a teia das relações historicamente existentes. Trata-se de estabelecer um conjunto de medidas que venham a viabilizar a presença e a participação indígena em todas as instâncias decisórias e em todas as etapas de realização dos projetos de seus interesses (levantamento das demandas, definição das políticas, priorização e implementação das ações, avaliação dos resultados, replicação e difusão das iniciativas exemplares, etc.). O objetivo é ampliar a capacidade das sociedades indígenas exercerem o controle real sobre as iniciativas de natureza econômica, política e cultural incorporada ao seu cotidiano, em decorrência do convívio intercultural. No que trata da educação escolar, o protagonismo indígena pode ser expresso pela capacidade crescente dessas sociedades exercerem o controle especialmente sobre as seguintes decisões: a) sobre o acesso e gestão dos recursos externos disponibilizados por 15 Cadernos de Educação Escolar Indígena meio da escola; b) acerca dos conteúdos e da organização curricular e; c) sobre a política de formação dos seus professores. Dessa perspectiva, a escola indígena adequada será aquela que, incorporada à comunidade, lhe ensejará maior capacidade de decisão sobre si e sobre os demais elementos culturais advindos do convívio intersocietário. O lugar dos índios nas politicas públicas Nos últimos anos surgiram no Brasil diversas iniciativas de políticas públicas consideradas inovadoras porque incluíram em seus ideários (e em sua práxis) novos parâmetros que orientam as relações entre o estado e as sociedades indígenas. A história apontava até aqui a predominância do poder público na definição das políticas a serem implementadas para os cidadãos. Como forma de ilustrar essa predominância, faremos a seguir uma breve retrospectiva das principais tipologias de ação que caracterizaram as relações entre os agentes externos e comunidades indígenas nos últimos 50 anos. a) Período de exclusão indígena Diz respeito ao período de vigência do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e do início da atuação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Nesse período as iniciativas voltadas para as comunidades indígenas raramente contaram com o seu envolvimento. A participação dos índios se dava marginalmente, como observadores ou como prestadores de serviços em funções necessárias para a implantação ou a manutenção das atividades dos postos (trabalhadores braçais, cozinheiros, vaqueiros, etc.). Tratavam-se apenas de ações localizadas em áreas indígenas com o objetivo explícito de suplantar a diversidade cultural. Os índios permaneciam fora do processo decisório e das políticas a eles dirigidas. 16 Autonomia e protagonismo indígena nas políticas públicas b) Período de inclusão compulsória Abrange o período que se estendeu dos anos de 1970 a meados da década de 1980 e enquadra-se no conjunto das iniciativas oficiais voltadas para a integração nacional e para o desenvolvimento do Centro-Oeste e da Amazônia. No interior desses Programas, as políticas públicas voltadas para as sociedades indígenas atenderam a objetivos tais como captar empréstimos externos, reduzir os conflitos com as frentes de ocupação e amenizar os impactos decorrentes da redução dos territórios indígenas. Serviram também como resposta à opinião pública internacional que cobrava do governo brasileiro um tratamento mais adequado às populações indígenas afetadas pelos programas de desenvolvimento nacional e regionais. Em alguns casos, a liberação de recursos estrangeiros foi condicionada à implantação de políticas públicas em áreas indígenas; em outros, limitou-se a ações mitigatórias para reduzir os danos causados pela construção de rodovias, hidrelétricas e outras iniciativas oficiais no interior ou no entorno das áreas indígenas. Tratou-se, portanto, de políticas públicas voltadas para a manutenção do órgão oficial e para a administração de conflitos entre as frentes de ocupação e os índios. c) Período de inclusão solidária Consolidou-se na década de 1990 e se estende até os dias atuais. Sua principal característica é a tentativa de inclusão das sociedades indígenas no âmbito das políticas públicas voltadas às “populações desassistidas”. Pode ser interpretado como um conjunto de iniciativas de caráter assistencial que supõem a participação indígena e que busca “resgatar os valores étnicos, culturais e de cidadania”. Os projetos educacionais estão associados a projetos similares no campo da economia, da saúde e da segurança alimentar. Ancoramse nos direito constitucional de cidadania e destacam o “compromisso moral que devemos ter com os nossos irmãos índios, com eles que são os primeiros habitantes do Brasil”. 17 Cadernos de Educação Escolar Indígena No intuito de buscar soluções estruturais para as necessidades indígenas, o poder público e as agências financiadoras disponibilizam equipes técnicas e recursos para atender às diversas demandas, desde situações emergenciais de miséria extrema até projetos de desenvolvimento de longo prazo. Dentre os principais projetos destacam-se os de apoio à demarcação e gestão territorial, educação escolar, capacitações e fortalecimento institucional. Os projetos aprovados por “comitês” tendem a ser implementados majoritariamente pelas comunidades proponentes e são assessorados (solidariamente) por técnicos vinculados às instituições “parceiras”. Esse modelo de política pública representa um grande avanço em relação aos períodos anteriores, porém ainda mantém a limitação de ser concebido, elaborado e avaliado segundo os critérios das agências financiadoras e/ou das equipes técnicas não-indígenas. São políticas que contam apenas com a participação indígena. d) Período de protagonismo indígena Trata-se do período atual que se projeta para o futuro e que tem o seu nascedouro no próprio movimento indígena e nas instituições apoiadoras. Concebe as políticas públicas como partes integrantes do Plano de Vida de um povo ou de uma comunidade. Considera os projetos educacionais e de desenvolvimento em seus múltiplos aspectos e supõe a participação indígena em todas as suas fases: definição das prioridades, elaboração, busca de financiadores, planejamento e administração dos recursos e das ações, acompanhamento, avaliação, registros. É nesse sentido que a política de formação de professores indígenas desenvolvida em Mato Grosso pode ser considerada um avanço em relação às iniciativas anteriores. Ela propõe a autonomia e o protagonismo indígena, reconhece a importância de manter o diálogo entre todos os atores sociais e com todas as instâncias do poder público. Não propõe um protagonismo excludente, mas aberto a todos os que desejam cooperar com o movimento indígena na construção de uma sociedade humana mais justa, fraterna e feliz. 18 Autonomia e protagonismo indígena nas políticas públicas Conclusão As noções de autonomia e de protagonismo indígena apontam para o surgimento de uma nova concepção de política pública que considera o cidadão (indígena ou não) um protagonista do seu Plano de Vida e não apenas um cliente ou usuário dos serviços oferecidos pelo Estado. As políticas públicas dirigidas a grupos minoritários de qualquer natureza devem ser concebidas, implementadas, avaliadas e replicadas com a participação qualificada de todos os segmentos, especialmente daqueles para os quais as ações se destinam. O empenho do poder público em ampliar a participação indígena nas políticas públicas em todas as fases do seu desenvolvimento constitui-se na forma mais adequada para qualificála e possibilitar às comunidades o controle crescente sobre as demandas advindas do convívio intersocietário. Porquanto, cabe ao poder público, às instituições formadoras e às comunidades - indígenas ou não - consolidar os caminhos da sua autonomia por meio de medidas que promovam o protagonismo de todos os atores e assegurem o diálogo intercultural. Dessa forma, as políticas públicas específicas deixarão de ser apenas ações emergenciais (ou compensatórias) de alcance duvidoso e passarão a se constituir em espaços de liberdade, de autonomia e de afirmação dos diferentes grupos que compõem o atual cenário sóciocultural brasileiro. Bibliografia BALANDIER, Georges. As dinâmicas sociais - sentido e poder. S. Paulo Rio de Janeiro: Difel, 1976. BATALLA, Guillermo Bonfil. Pensar nuestra cultura. Ciudad de México: Alianza Editorial, 1992. 19 Cadernos de Educação Escolar Indígena BRÜSEKE, Franz J. A lógica da dependência. Belém: Editora Cejup, 1996. CASTORIADIS, Cornelius. A autonomia em política – o indivíduo privatizado. S. Paulo: Revista Margem nº 7, agosto de 1998. CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. S. Paulo: Paz e Terra, 2000. MEC. Diretrizes para a política nacional de educação escolar indígena. Cadernos de educação básica, série institucional, vol. 2. Brasília: MEC, 1993. OLIVEIRA FILHO João Pacheco de. Uma etnologia dos “índios misturados”: situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Rio de Janeiro: MANA, Vol. 4, nº 1, 1998. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura social. S. Paulo: Pioneira Editora, 1976. RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório. S. Paulo: Círculo do Livro, 1978. SECCHI, Darci. Professor indígena: a formação docente como estratégia de controle da educação escolar em Mato Grosso. Tese de Doutoramento, S. Paulo: PEPGCS/PUC, 2002. SEDUC. Projeto Tucum: programa de formação de professores indígenas para o magistério. Cuiabá: Secretaria de Estado de Educação, 1995. UNEMAT. Projeto de formação de professores indígenas. Barra do Bugres: Unemat, 2002. 20 Mediação: um desafio in tercul tural intercul tercultural para os professores-mediadores wayanas Eliane Camargo* Introdução A Guiana Francesa, vizinha do Brasil, pertence à França, como se fosse um de seus estados. É considerada um departamento ultramarino1. A educação que se oferece a todos os indivíduos é a educação nacional francesa. Todos os cidadãos recebem um mesmo molde educacional indiferentemente. Isto é, se um grupo social de língua e cultura diferente está presente no solo conquistado pela França, ele deve seguir às normas da República. Entre elas, as normas regidas e ditadas pelo Ministério da Educação Nacional. Todos vão aprender, de forma caricatural ou não, que seus ancestrais foram os gauleses. Assim, aprendem também os Wayanas: Nos ancêtres, les Gaulois! É o que se pode encontrar no material didático empregado nas escolas ditas do rio (les écoles du fleuve). Diferentemente do Brasil, e de outros países americanos, como o Peru e o Equador, que têm procurado construir uma política específica de educação para os * Doutora em Lingüística, membro do CELIA (Centre d’Etudes de langues indigènes d’Amérique, França). Departamento, criado pela lei de 19 de março de 1946,estende-se do rio Oyapock ao rio Maroni (na Guiana Francesa), fazendo fronteira com o Brasil do rio Oyapock até o rio Jari. Com uma superfície de 86.504 km2, 96% da qual é coberta pela floresta tropical. 1 21 Cadernos de Educação Escolar Indígena índios, na Guiana o que se tem tentado é formar mediadores bilingües e culturais, sem um real estatuto de professor. Eles seriam um tipo de ponte entre o professor francês e os alunos autóctonos. O primeiro só fala francês e deve aplicar as normas da educação regidas pelo Ministério da Educação. Os segundos aprendem o francês ao chegarem à escola, deparando-se com uma língua e um sistema de pensar e de agir muito diferente do seu. O sistema educacional na Guiana parece ir ao encontro dessa diversidade cultural e lingüística, tentando desviar a rigidez da tecnocracia ministerial. A barreira existente seria, porém, cravada pelos próprios participantes do programa que pensam agir no bom sentido, aplicando, no fundo, as regras ditadas pelo sistema tecnocrático. Território pluricultural e plurilíngüe A população da Guiana Francesa é caracterizada por uma grande diversidade lingüística. Esta é composta entre outros por crioulos (40% da população), Negros Marrons (Aluku2, Ndjuka, Saramaca, descendentes de escravos fugitivos), Hmong (população asiática que ali vive desde 1977), ameríndios (de três famílias lingüísticas distintas (arauaque, caribe e tupi-guarani), franceses da metrópole (com menos de 15% da população). Uma forte imigração latina (haitianos, peruanos, dominicanos), asiática (chineses, indianos), e de países vizinhos (Brasil3 e Suriname) continua em pleno crescimento. Por um lado, tal fluxo contribui à formação e à fortificação dessa sociedade historicamente pluricultural e plurilíngüe. Por outro, no que tange a educação, tal pluralidade representa um desafio à educação nacional francesa, ainda conservadora e refratária às mudanças, adaptações e necessidades sócioculturais de cada uma das diferentes sociedades que compõem este departamento. 2 Conhecidos também por Boni, nome de um grande chefe guerreiro. Nota-se que na escala de imigração, as populações haitiana e brasileira são as mais importantes. O português do Brasil tornou-se uma das línguas correntes nessa região, sobretudo em área aurífera. 3 22 Mediação: um desafio intercultural... Nos últimos 20 anos, a escola, outrora presente nas principais cidades do litoral, ocupadas sobretudo por franceses e crioulos, foi espandida praticamente sob todo o departamento. Assim chegou a escola no espaço ameríndio, hmong e negro marrom, num mundo conceitual outro que o ocidental, este de lógica dita nacional. O atual texto propõe uma apresentação e um resumo das oficinas de língua wayana (caribe) que ministrei em Caiena, Guiana Francesa, entre 2004 e 2005, dentro do Programa de Formação de Mediadores Bilingües e Culturais. Exponho também a minha opinião sobre a viabilidade de tal programa quando ele não é pensado junto com o grupo para o qual ele é concebido4. Mediação à prova da francesização de culturas autóctonas: adapção sóciocultural e lingüística na contramão Concebido por pesquisadores vinculados ao CELIA (CNRSIRD5) e educadores e pedagogos, em concerto com a Academia da Guiana (representada pelo Rectorat, representação do Ministério da Educação Nacional, pelo CASNAV6, e pelo IUFM7), uma formação à mediação entre o programa da educação nacional (para todos, aplicado sob todo departamento francês) e comunidades plurilíngües e pluriculturais, visaria à capacitação de jovens locais que seriam mediadores entre o professor e seu programa educacional e os alunos de língua não francesa. Este mediador deveria servir de intermediário entre dois sistemas lingüísticos distintos (o de sua comunidade e o francês), promulgando somente a instalação do sistema escolar francês. Que Denise Fajardo e Luis Donisete Grupioni recebam aqui um caloroso agradecimento pelas trocas de idéias que mantivemos durante a redação deste texto. 4 CNRS:Centro Nacional de Pesquisa Científica (Centre National de la Recherche Scientifique) e IRD: Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento (Institut de Recherche pour le Développement). 5 Centres académiques pour la scolarisation des élèves nouvellement arrivés et des enfants du voyage ‘Centros acadêmicos para a escolarização de alunos recentemente chegados e de crianças de viagem’. 6 7 Instituto Universitário de Formação de Mestre. 23 Cadernos de Educação Escolar Indígena Para tal cargo, o bilingüismo francês-língua vernacular é uma condição sine qua non. O mediador seria um tipo de «assistência-socorro» ao professor primário francês. O primeiro deveria participar da preparação das aulas do segundo, e intervir em língua vernacular nas explicações dadas em francês. Função que justificaria plenamente o título de «mediador». Este deveria fazer a ponte entre o professor francês monolíngüe, trabalhando com alunos não franceses, em uma área sociolingüisticamente diferente daquela de origem do ‘mestre’. Houve casos em que essa relação de mediação pouco foi respeitada pela instituição (direção da escola, ou mesmo pelos professores). Muitos professores acreditaram que tal mediação poderia ameaçar seus cargos, para os quais muitos tinham uma formação universitária (dois anos de faculdade, com um formação no IUFM), face a um mediador que mal conseguira concluir o 2° grau, sendo que outros raros obtiveram o diploma! Muitos dos mediadores, sobretudo os dotados e sensíveis à causa, se viram legados a fazer faxina ou fotocópias… Isto é um reflexo da falta de esclarecimento dos objetivos do programa e da função do mediador. O Programa de mediação: um desafio para um sistema escolar conservador Um convênio firmado entre o Laboratório de Ciências Sociais e de Lingüística do IRD com o Rectorat da Guiana deu início em 1998 ao Programa de Formação de Mediadores Bilingües e Culturais. Tal programa objetivara paralelamente duas formações: uma dirigida aos jovens bilingües, originários de seis grupos ameríndios, da sociedade hmong e de três grupos negros marrons, e uma outra dirigida aos mestres das escolas dessas áreas culturais. Com o primeiro grupo, este trabalharia com lingüistas especialistas de cada uma das línguas vernaculares ali representadas, e com o segundo grupo, objetivara-se uma orientação à adaptação didática dos saberes distintos, a fim de se pensar em um material didático apropriado à língua vernacular. Porém, tal adaptação seguiria um modelo conceitual, pedagógico e didático a partir do material francês existente e empregado. Posição metodológica que se revela inflexível à diversidade! 24 Mediação: um desafio intercultural... A falta de conhecimento antropológico dos formadores (representantes de alto escalão ou não do mundo ministerial ou acadêmico/científico) assim como falta de flexibilidade intelectual à diferença sóciocultural contribui à realização de um trabalho ineficaz. Já a pesquisa aplicada na área educacional bilingüe falha por não ter uma equipe de reflexão homogênea em conhecimentos e em experiência de campo. Tal handicap se segura nos moldes tradicionais de uma escola nacional para todos. Penetrar no mundo do outro exige muito tempo de experiência e de conhecimento; como não se tem tempo para tal aquisição tampouco condições intelecto-emocionais, apoiar-se no já existente facilita a tarefa, adaptando o modelo nacional com pinceladas de cores locais a um pseudo-modelo de educação bilingüe. Tal programa teria tudo para dar certo até mesmo pelo corpo de lingüistas que dispõe, sendo que alguns deles são cientificamente de grande calibre. Mas o que pesa intelectualmente de um lado da balança, desiquilibra-se do outro pela falta de vivência com a realidade do contato com um outro modo de pensar e de viver. A experiência pessoal do campo é necessária e complementar com a literatura em ciências sociais sobre as sociedades minoritárias das Guianas. Infelizmente, na maior parte dos casos, um mesmo retrato pode ser pintado: pessoas com boas intenções, porém não capacitadas o suficiente ou não adaptadas a trabalhar com sociedades Outras. Dentro deste programa, a língua vernacular pode ser considerada o item que mais pontos conta. Os especialistas de cada uma das línguas representadas devem, em princípio, seguir o programa pré-estabelecido por educadores e pedagogos, tentando adaptar o que é pensado em francês para o que se deveria pensar na língua vernacular. Os grupos minoritários participantes do programa e suas características lingüísticas As línguas minoritárias inscritas dentro deste projeto pertencem à diferentes famílias lingüísticas, a saber: 25 Cadernos de Educação Escolar Indígena (a) Asiática: Hmong (família miao8-yao) (b) Crioulo: Aluku e Ndjuka (base lexical inglês) (c) Ameríndia: família arauaque: Palikur9 família caribe: Kali’na (ou Galibi) e Wayana10 família tupi-guarani: Teko (ou Emérillon) e Wayampi. Cinco dessas línguas são representadas por mais de um mediador, sendo que o palikur, o teko e o wayampi contam com apenas um representante. Situemos rapidamente cada um desses três grupos, o que nos permitirá ver a diversidade lingüística representada nesse programa. Originário do Laos, os Hmongs têm uma longa história de refúgio, escapando a diferentes tipos de perseguição. Em 1975, um grupo fugido do comunismo chinês e reconhecido enquanto refugiado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas, o governo Francês acolheu-o, instalando-os em 1977 na Guiana Francesa. Trata-se de uma língua tonal (com 8 tons) e isolante, tendo as funções gramaticais marcadas pela ordem das palavras. A ordem preferencial dos argumentos é S(ujeito) O(bjeto) V(erbo). Os Negros Marrons, também conhecidos sob o nome de Buxinengues (Busi nenge)11, são grupos descendentes de escravos que se revoltaram e escaparam das plantações antes da abolição da escravidão no Suriname e na Guiana francesa. O aluku e o ndjuka 8 Designa literalmente ‘arroz cru’. A língua arauaque (ou lokono) não entrou no programa por ter sido considerada como em fase de extinsão, visto que a nova geração não pratica mais a língua de origem. Impressão julgada errôneamente, pois de 18 a 22 de setembro de 2006, realizou-se uma oficina de ‘escrita arauaque’ em Caiena, que contou com a participação de vários membros dessa sociedade, sobretudo de jovens ávidos pelo acesso à língua de origem. 9 A existência do grupo apalai (caribe) em território francês não é reconhecida pelo governo francês. 10 São constituídos de seis grupos étnicos, a saber: os alucus, os ndjucas, os saramacas, os paramacas, os kwintis e os matawais. 11 26 Mediação: um desafio intercultural... apresentam dois tons (um alto e outro baixo). O aluku apresenta alongamento vocálico: fo ‘quatro’ e foo ‘pássaro’. O verbo é precedido por marcas de valor de aspecto-tempo e de modo. O palikur (pahikwaki ou parikwaki) é um grupo arauaque transfronteiriço, vivendo no Brasil e na Guiana Francesa. Tipologicamente, o verbo recebe a marca de aspecto, mas não a de tempo. Ele é flexionado somente pelo objeto. O sujeito aparece sob a forma de um grupo nominal ou de um pronome autônomo. O kali’na, conhecido em português sob o seu antigo nome, Galibi, é o maior grupo ameríndio da Guiana Francesa. Ele é falado em uma extensa faixa litorânea que vai do Brasil até a Venezuela. Como todas as línguas caribes, o kali’na e o wayana apresentam uma morfofonologia complexa. Conhecido também sob o nome de émérillon, teko é o único grupo ameríndio que se encontra somente na Guiana. Do ponto de vista fonológico, a língua apresenta uma série de três consoantes oclusivas prénasais; a sintaxe é do tipo acusativo, com verbos transitivos e intransitivos. A língua wayampi, falada no Brasil e na Guiana, apresenta duas séries de marcas pessoais, sendo que uma dela, prende-se a nomes, marcando o elemento possuidor e, também, prefixa-se a verbos marcando ou o sujeito de um verbo intransitivo ou o objeto de um verbo transitivo. Sintaxe comum com outras línguas da região, como o emerillon, o kali’na e o wayana. Membros desses diferentes grupos cohabitam, desde 1998, três vezes ao ano durante os estágios de formação de uma semana, realizados em Caiena (fevereiro/março, maio/junho e novembro). Os Wayanas pertencem à família lingüística caribe, e ocupam uma vasta zona fronteiriça entre o Brasil, a Guiana Francesa e o Suriname. No Brasil, descendentes por linha paterna são aproximadamente 300 indivíduos. Na Guiana francesa, eles são um pouco menos de mil pessoas e outros 450 vivem no Suriname. População que não atinge a taxa de 2 000 pessoas. 27 Cadernos de Educação Escolar Indígena A formação lingüística dos mediadores: o caso do wayana Participei de dois estágios de formação (1999, 2000), oficina de língua caribe agrupava kali’na e wayana. Tratamos a morfologia nominal, a construção do possessivo, a noção espacial e sua expressão gramatical. Voltei a participar em 2004, responsável pela oficina de língua wayana, durante a qual, somente esta língua era focalizada. Vendo que em todos esses anos de experiência, os mediadores wayana esqueciam o que aprendiam de um ano para outro, resolvi fazer um trabalho experimental, propondo-lhes um prática diferente: a de «trabalhar a língua, pensando na língua». Um mesmo tema, no caso ‘o sistema fonológico e a estrutura silábica’, seria tratado durante os três estágios. Para isso uma metalinguagem intervia a fim de que os conceitos técnico-lingüísticos pudessem ser discutidos e apreendidos em wayana. Se iríamos estudar a língua, pareceu-me necessário discutir com os participantes o que é uma língua e falar da diversidade lingüística. Os wayanas vivem numa área plurilingüe, em contato permanente com línguas caribes (aparai, teko, tiriyo), aluku e sranan tongo12, crioulo francês, francês e português13. Eles falam fluentemente o aluku e muitos deles também o sranan tongo. As pessoas mais velhas, vindas do Brasil, falam bem o português, e os mais jovens o francês. Situação lingüística que merece uma apresentação sobre as línguas faladas no mundo, sua repartição e sua tipologia. Ficaram surpresos ao se darem conta de que outras línguas, faladas em zonas diversas do globo, apresentam fatos lingüísticos iguais ou próximos a da deles. Um outro ponto forte do debate foi o de perceberem que a relação entre a palavra e a realidade designada é arbitrária, que o elo entre o significante e o significado é cultural14. Termos relativos ao sistema de 12 Sranan tongo quer dizer ‘língua do Suriname’. Nesse crioulo à base inglêsa reconhece-se o termo tongue ‘língua’ em inglês. Sranan significa Suriname. Os wayanas estão em contato permanente com brasileiros garimpeiros seja no garimpo, seja em Maripasoula (a cidade da região), seja no comércio para garimpo estabelecido próximo às aldeias. 13 No âmbito da apresentação sobre a diversidade lingüística, fiz uma breve introdução à lingüística. 14 28 Mediação: um desafio intercultural... parentesco de vários grupos (sociedades da África, da América e do Pacífico) serviram como ilustração. A oficina wayana distingüia-se das demais não apenas no programa de trabalho diferenciado, mas também pela carga horária alterada. Pela manhã, a oficina de língua compartilhava com as demais atividades do programa geral e pela tarde o trabalho concentrava-se essencialmente na língua. Isto representava uma carga horária importante consagrada ao estudo da língua15. As oficinas de língua wayana Três oficinas (novembro de 2004, março e junho de 2005) privilegiaram um ‘despertar da língua vernacular para entender a escrita do wayana’. Em colaboração com os quatros participantes (Akama, Alexina, Kalanki e Louise), optamos por um trabalho de ‘reflexão da língua de origem’, de maneira a estudar o sistema fonológico, as modificações fonéticas e suas regras de realização. O objetivo de tal opção era a compreensão da grafia wayana e as regras a serem adotadas, sobretudo àquelas referentes a certa anotações fonéticas. Esta grafia, que segue o sistema fonológico, apresenta a letra «h» que transcreve todas as realizações fonéticas modificando, segundo o contexto de realização, o radical lexical. O fato de ter abordado alguns dos aspectos da morfofonologia, que explicam os fenômenos estudados, deu a possibilidade aos mediadores de encontrarem o radical das palavras analizadas e de compreenderem as mudanças fonéticas produzidas na fronteira morfêmica e/ou fronteira lexêmica. Após discussões, os mediadores escolheram a letra «h» somente quando este segmento pertence ao radical da palavra como em: ahpe ‘mentira’, ahnep ‘amendoim’, tohwi ‘mandarina’, tohme ‘por que’, são alguns exemplos. O trabalho sobre a fonologia foi fundamental para a compreensão da grafia a ser empregada no material wayana. Tal diferenciação teve ecos junto aos mediadores de outras sociedades que pediram um mesmo tempo de trabalho com a língua deles nos estágios seguintes. 15 29 Cadernos de Educação Escolar Indígena Uma versão do mito fundador da relação de paz entre os Aparais e os Wayanas, o Tulupele (ou ëlukë ‘lagarta’), conhecido como o ‘mito da cobra grande’, serviu-nos de material de trabalho. A partir deste texto, os mediadores puderam encontrar os diferentes segmentos fônicos (consoantes e vogais) do wayana e algumas das realizações morfofonológicas que lhes permitiram entender as regras de realização das mudanças fonéticas decorrentes. Paralelamente a este trabalho sobre a (morfo)fonologia do wayana, este texto permitiu uma discussão sobre o conhecimento coletivo da narrativa mítica e também de iniciar um trabalho sobre a sintaxe de língua, como as palavras absolutas e as palavras relativas; as construções verbalizadas também foram objeto de um primeiro contato com o funcionamento da língua. Como exercício de escrita, os mediadores produziram três textos, cujos temas estavam ligados ao texto estudado. Em seguida, corrigimos coletivamente a produção escrita. Este trabalho resultou num debate interessante no qual discutimos: - O estilo da escrita wayana: eliminar certos termos produtivos no oral, como moloinë ‘então’, que acabam deixando o texto pesado pelo emprego repetido; - Certos tipos de categorização, como a discussão que ocorreu sobre como classificar o tucano kijapok. Trataria-se de um pássaro (tolopït) ou não (ikaimo ‘caça [de alguém]’)? Para alguns deles, não se trata de um pássaro por ser comestível, para outros seria um pássaro por botar ovos!; - Como pontuar em wayana. A partir dessa discussão os mediadores propuseram de traduzir em wayana a terminologia da pontuação do francês. Essas oficinas de língua eram intercaladas com atividades previstas no programa. Uma delas, dentro do âmbito de atividades coletivas, objetivava-se em mostrar as diferentes formas de saudações na língua, o que permitiu mostrar sobretudo aos professores franceses que nessas línguas não há termos para ‘bom dia, boa tarde, boa noite’, ou ainda ‘obrigado’, mas que tais noções são expressas de outra forma. Cada um dos grupos deveria apresentar um tipo de esquete perante os professores franceses e organizadores do programa. Os Wayanas se 30 Mediação: um desafio intercultural... recusam e receberam o meu apoio. Alguns dos organizadores se manifestaram por não entender tal recusa e fizeram com que eles apresentassem um mínimo de exemplos. Escolhemos assim os mais elementares. Ora, em uma situação que aos nossos olhos parece simples, não quer dizer que o seja para outros. Os Wayanas ao expressarem-se em língua vernacular seguem regras de conduta que não se generalizam a um simples: «oi, tudo bem?» ou ainda, «bom dia, como vai você?». As saudações variam segundo a faixa etária, segundo o grau de relação familiar (consangüíneo e/ou por aliança). Eles não estavam querendo revelar esses níveis sóciolingüísticos por dizerem que os brancos, de qualquer forma, nada entendem e que quando acham que entendem algo, entendem mal. De todas as formas, diziam, os brancos jamais farão o empenho de empregar corretamente tais normas. Tal posição mostra que a diversidade cultural se faz presente nesta área, mas que ela – pelo jeito – passa desapercebida e de forma indiferente por membros da sociedade nacional. O método de leitura natural, conceitualizada por Célestin Freinet (em 1925) também foi exposto pelos organizadores, como opção de interação entre o indivíduo e o grupo. Este método concentra-se essencialmente na produção verbal da criança, que expressa o seu meio ambiente. Assim, o professor coleta enunciados realizados pela criança e a partir dele, desenvolve textos. Tal método, que dispensa os manuais, permite ao professor trabalhar a expressão corporal e social da criança, e do ponto de vista lingüístico a sílaba, por exemplo. Mas como aplicar tal método, se o ‘mediador’ não aprendeu nem a pensar na sua língua nem a entender o funcionamento desta? Consequentemente, não sabe o que é uma sílaba. Como poderá em língua vernacular aplicar tal método com as crianças, para que estas possam desenvolver o aprendizado da leitura? Essas poucas pinceladas mostram que apesar da boa vontade presente nas atitudes dos organizadores; a questão essencial que é a diversidade cultural e lingüística, com as quais eles se confrontam, é vista somente sob um ângulo. Isto é, do ponto do vista do francês. Estão conscientes do trabalho delicado que têm em mãos. O diálogo com homólogos dos países latinoamericanos, que confrontam problemas semelhantes, seria uma via de troca de conhecimentos que poderia fortalecer argumentos plausíveis para que o programa tentasse 31 Cadernos de Educação Escolar Indígena ser ouvido pelo sistema ministerial. Mas, parece que esse é o modo de exercer a educação em todo os departamentos e territórios ultramarinhos, todos caracterizados pela diversidade cultural e lingüística. Pensam em trocar idéias com homólogos franco-franceses da Nova Caledônia, no Pacífico, esquecendo que a diversidade cultural e lingüística do Pacífico apresenta outra realidade que aquela da Guiana, cuja realidade é areal com os países amazônicos, mesmo que as sociedades nacionais latinas ou não sejam distintas. Esquecem de ver que a escola é um instrumento externo ao mundo indígena e já que ela, nesse período moderno da nossa sociedade, deve também estar presente no mundo do Outro, que ao menos uma sensibilidade à diferença seja aflorada. No Brasil, graças em parte às ações e implicações de antropólogos, a escola indígena tomou um rumo particular, voltado para o lado de dentro da sociedade indígena. Na Guiana, infelizmente, poucos são os antropólogos e mesmo lingüistas que estão de lado a lado com o grupo com o qual trabalham. Esse ‘mediador’ dessas sociedades se faz ausente, num território que é um campo aberto a todas as disciplinas das ciências sociais e humanas. A presença ativa deles seria um caminho fortalecedor ao diálogo com o sistema educacional a fim de tentar oferecer novas opções, até mesmo por respeito a essa diversidade reivindicada como rica em cultura e em língua. Usando a metalinguagem para apreender o funcionamento da língua Para que os mediadores pudessem entender o funcionamento da língua de origem e entender um pouco a fala técnica dos ‘técnicos da educação’, começamos a estudar os segmentos fônicos da língua. As vogais (wajele tom) e as consoantes (konson tom), assim como todos os ambientes de realização, foram analizados paralelamente com a terminologia técnica. Para isso, o uso de uma metalinguagem (omi isahkaimëtop) foi necessária a fim de que os locutores nativos pudessem conceitualizar em suas línguas uma maneira de expressar em língua sobre a língua. Das três oficinas, vários neologismos foram propostos, o que permitiria ao locutor nativo se referir a uma linguagem técnica utilizando a sua língua materna. 32 Mediação: um desafio intercultural... O alfabeto wayana segue o sistema fonológico da língua, estudado em 1972 por Walter Jakson16, com uma letra adicional, o agá, h, para marcar algumas realizações fonéticas. O primeiro exercício de metalinguagem que fizemos foi justamente com o termo alfabeto. Como é que os mediadores apreendem em língua vernacular este termo? Eles jamais haviam pensado nisso. Então, fizemos uma rápida apresentação da história da escrita, passando pela dos fenícios, a dos egípcios, dos chineses e a dos maias. Mostramos alguns exemplos da escrita do francês medieval contrapondo-a a moderna, que mantém muitas formas arcáicas. Após discussão, sugeriram duas construções para designar alfabeto; os dois apresentam um mesmo radical verbal ïpka- ‘ler’: plural). a) tïtïpkahamo > t-ït-ïpka-hamo lit. ‘lerem-se’ (3pessoa-meio-lerb) tïtïpkahe sitïpkatëi lit. ‘o que se é lido, vamos lê-lo’ O termo atribuído à ‘escrita’ segue uma constante nas diferentes línguas ameríndias; toma-se por base o radical lexical -milikque designa ‘grafismo’ tïmilikhem. Por extensão semântica, este termo designará igualmente ‘exercício’. Porém este recebeu duas opções: tïmilikhem e tïhem. O primeiro seria empregado em exercícios que requeressem uma redação (letaksio17, ou ainda tïpohnephe18 tïmikhem). O segundo seria empregado nos exercícios ligados à atividades lúdicas e/ou coletivas. O exercício abaixo requer que a criança encontre nas palavras fornecidas o som da letra ‘w’ e que ela a pinte no círculo correspondente. Anoptëk manale hapon kom «w» tïpanakmai ëjahe aptau (Pinte os círculos correspondentes ao som ‘w’): mawu ëwutë wewe meu |||| ||||| |||| | | OOOO O O OOOO OOOOO 16 As regras de realização deste sistema foram elaboradas em seguida por Camargo, 1996. Tavares (2005) também apresenta um estudo sobre a fonologia do wayana. 17 Empréstimo do francês ‘rédaction’. 18 Significa literalmente ‘refletir sobre a escrita’. 33 Cadernos de Educação Escolar Indígena Ora, se usamos palavras da linguagem geométrica, deveríamos encontrar equivalentes em wayana, assim os participantes propuseram a seguinte léxico para figuras geométricas: quadrado manale hapon redondo mele man retangular tïpapakem forma de batata waja man Para ‘linha reta’ ou ‘travessão’ o neologismo encontrado foi kupi man (‘comprido’) Para as nossas atividades o conceito de exercício era necessário, pois optamos por propor exercícios de leitura ou de jogos, concebidos na língua. Se pensarmos em jogos, uma proposta de palavras cruzadas poderia interessar as crianças, que em aprendizagem da leitura, poderiam encaixar letras ou sílabas compondo palavras curtas. Para se ter um termo que designa ‘palavras cruzadas’, a pergunta feita aos participantes foi: «O que é que ‘tal jogo’ evoca para vocês?» Após discussão em grupo, propuseram omi wëtop lit. ‘a caçada de palavras’. Devo aqui salientar, que nas aldeias wayanas, muitos jovens têm como lazer, fazer ‘caça palavras’. Neste caso, de uma eventual aplicação em um manual escolar em wayana, o omi wëtop designaria tanto ‘caçapalavras’ como ‘palavras cruzadas’ ou ainda ‘preenche-palavras’. Tais jogos são, muitas vezes, indicados por flechas em diferentes direções, estas não deixaram de receber designações em wayana, a saber: flecha para cima hapë man flecha para a direita hapo man flecha para a esquerda hapo man pëweinano flecha para baixo lomonano Um desses exercícios seria um tipo de liprograma, que consiste em omitir a utilização de uma das letras do alfabeto. A partir das palavras fornecidas que estão incompletas, o aluno deveria formar pares mínimos (konson, wajele hakëne tëweihamo), preenchendo o quadro 34 Mediação: um desafio intercultural... abaixo com a letra, vogal ou consoante, que falta. A resposta está em letra minúscula, indicada em itálico19. k a M o h O L O L O L P O i L a j M O P U P U t A L A L O e L U W A i S i A m U W o e K ï S u S u T U n A T Ï i Para abordar o sistema fonológico, usamos como material de base um texto transcrito em língua wayana, como mencionado acima. Em seguida, cada participante deveria produzir um texto, aplicando as regras de realização e se possível ilustrá-lo, pois em um manual de aprendizagem a iconografia é um instrumento que se faz presente. Uma vez mais, confrontamo-nos a mesma pergunta «O que evoca apalavra ‘texto’ para um wayana?» Como resposta, os participantes fizeram três propostas. A construção tïtïpkahame, empregada para alfabeto e escrita, designaria ‘texto´ de forma genérica. Dois outros termos distingüiriam o texto com ou sem iconografia: (a) imilikutpïtop ‘texto sem iconografia’, (b) tënehem ‘texto com iconografia’ (lit. ‘que se tem visão’). A escolha de tais radicais lexicais -milik- ‘grafismo’ e -ene‘visão’ não me deixou indiferente à percepção que expressam. O texto sem iconografia poderia ser visto como uma continuidade de traços, ao passo que aquele com iconografia chamaria a atenção à visão. Uma questão surgia sobre o ‘desenho’: ele não seria uma forma de traços? Correspondência em português das palavras empregadas hololo, kololo ‘banco’, tuma ‘molho’, tuna ‘água’, eluwa ‘homem’, aluwa ‘espelho’, amo ‘mão dele’, omo ‘mão’, tala ‘oi (saudação entre pessoas de mesma idade)’, jala ‘jirau’, ekï ‘sua cria doméstica’, okï ‘sua bebida’, susu ‘peito, tórax’, sisi ‘sol’, pupu ‘pé’, pipi ‘irmão mais velho ou esposo (termo vocativo). 19 35 Cadernos de Educação Escolar Indígena Pelo jeito não, ao menos se seguirmos a expressão dos locutores wayanas, participantes destas oficinas. Parece que a compreensão do texto se efetuaria por percepções distintas: a leitura de um texto ilustrado seria guiada pela percepção visual oferecidos pelos ‘desenhos’, ao passo que a leitura de um texto comum, ao contrário, não seria mais o visual o ponto culminante da percepção. Tal leitura exigiria do leitor uma compreensão abstrata dos traços ali representados. Tal distinção poderia levar-nos a refletir sobre a composição de um texto para um wayana: «O que se busca em um texto para a apredizagem?» Uma leitura que faria apelo à compreensão de texto, exigindo do leitor uma abstração, ou uma leitura, ao menos num primeiro momento, ilustrativa, em que seria guiada por desenhos? Talvez para aprender a compor um texto, a segunda opção seria mais prática e didática, o que mostraria que uma criança wayana estaria mais próxima à composição de imagens para formar o seu texto, a partir do qual ela poderia entrar no mundo dos traços gráficos, ou seja da escrita. Mas, ao expressar essa interpretação, um dos participantes reagiu fortemente, argumentando justamente o contrário, dizendo que na sociedade wayana, as pessoas começam a entrar no mundo do grafismo a partir dos dez anos, na pré-adolescência. E isto, antigamente, visto que poucos praticam a arte do grafismo (corporal ou material nas panelas de barro, por exemplo), requeria tempo para o aprendizado. O interessante na discussão foi a idéia expressa pelo termo -ene- ‘visão’, pois o grupo apreende o semantismo deste termo como maneira bem mais pragmática que a minha, utilizando um ponto de vista semiológico. Para o participante que me contradisse, a visão evocada no termo refere-se ao material visual próximo da criança, ao que pode ser palpável. Assim, o texto, ao seu ver, seria primeiro oral, explorando situações extralingüísticas como a descrição de uma ida ao roçado, recorrendo a objetos de uso em tal dia (mudas, instrumentos, cantos para que a muda cresça bem). Para ele, este seria o significado expresso no termo ‘visão’, no qual não se faz apelo à abstração, mas sim ao concreto20. * * * Não tivemos tempo de discutir a fundo essa questão, que pareceu-me fundamental para a elaboração de material didático. 20 36 Mediação: um desafio intercultural... Visto que a meta era estudar a fonologia e a sílaba do wayana, deixamos de lado toda essa discussão interessante sobre a representação cognitiva de um wayana sobre um texto com ou sem iconografia. Continuamos a usar uma metalinguagem para termos necessários na produção de um texto, sobretudo se a leitura fosse fazer parte do programa. Compuseram uma lista de termos de pontuação de uso em um texto. A onomatopéia, tik, para designar ponto, foi muito apreciada pelos participantes que se sentiram orgulhosos de estarem propondo termos que lhes vinham naturalmente. aspas « », “ ” tëtapuhem travessão — wïp (tïkai) dois pontos : hakëne tik ponto de exclamação ! tupjan i (lit. ‘« i » invertido’) ponto de interrogação ? pana tik (lit. ‘ponta da orelha); ponto de suspensão … tik tik tik ponto e vírgula ; tik wajak ponto final . tik ; enahtop ; maka eitop21 trema ¨ tik tik vírgula , wajak; imilikutpï petukwatop Para a sílaba (silap), abordamos os oito diferentes tipos silábicos do wayana: V i.po ‘ser aquático’ VC s.kë ‘verme’ CV lo ‘terra’ CVV mëi ‘ele’ CVC i.pok ‘bem’ CCV më.klë ‘ele (do qual falamos)’ CCVV o.klai ‘coruja’ 21 CCVC e.klot ‘nuvem’ Expressão utilizada nas narrativas, sobretudo para indicar o fim de uma idéia. 37 Cadernos de Educação Escolar Indígena Logo de início, os mediadores disseram que se tivessem de pensar em um material didático para o aprendizado da leitura, eles deveriam optar por palavras formadas por sílabas simples, ou seja V, CV. Em seguida, compuseram o alfabeto da língua usando palavras formadas por essas sílabas. Para as vogais, por exemplo, decidiram representá-las em posição inicial absoluta de palavra de duas sílabas : amo ‘moço’ (vocativo), ëti ‘o que (é) ?’, eku ‘flor’, ïpï ‘montanha’, itu ‘mata’, omi ‘palavra’, ulu ‘mandioca’. O mesmo fizeram para as 10 consoantes do alfabeto wayana. Todas as posições ocupadas por vogais e consoantes em uma palavra foram vistas. Devo ainda dizer que cada tópico era acompanhado de exercícios para que resolvessem pensando na língua vernacular. A fonologia, interpretada por ëhepatop tïpanakmahem lit. ‘aprendizado do que se escuta’, foi vista de forma global : as vogais, as consoantes e as diferentes regras de realização. Tal estudo foi fundamental para se entender as regras de escrita, visto justamente que se trata de uma língua de morfofonologia complexa. O alfabeto wayana: restrições à escrita O contato entre povos ameríndios das Guianas com os Negros marrons (meikolo) é antigo, data de pelo menos 200 anos (Hurault). Estes serviam de intermediários entre os europeus e descentes que ansiavam por mercadoria dos “Indios”. A troca era material industrializado (machado, faca, miçanga), contra cachorro adestrado para caça, fio de algodão, rede, comida, etc… Desse contato, palavras ficaram e muitas. O contato com o grupo aluku, mas também com falantes do sranan tongo (língua nacional do Suriname) é constante, e o número de palavras originárias dessas línguas crioulas à base inglesa no wayana é importante, sobretudo palavras que expressam conceitos recentes (dias da semana, meses, números, bens manufaturados). A língua dispõe de empréstimos (tïwëlën omitom) não apenas oriundos dos crioulos, mas também de outras línguas indígenas (wayampi, apalai, tiriyo), como também do francês (para o wayana da Guiana) e do português (para o wayana do Brasil). 38 Mediação: um desafio intercultural... Junto com os mediadores, fizemos uma pequena seção sobre as palavras do wayana que foram emprestadas de outras línguas, a fim de verificar a realização fônica delas, para poder adequar o alfabeto da língua. Os participantes fizeram um rápido levantamento de palavras que sabiam pertencer às outras línguas, como hului ‘surubim’ (do wayãpi), maita ‘cabana construída para os participantes do ritual de passagem, chamado maraké (tiriyó), mato ‘martelo’ (francês). Surpreenderam ao saber que simisa ‘roupa, tanga’ e alakapuha ‘espingarda’ vêm do espanhol. No falar moderno do wayana, essas palavras estão perfeitamente adaptadas ao sistema fonológico da língua. Mas palavras recentes, às emprestadas das línguas crioulas dos Negros Marrons ou ao francês, ainda não se adaptaram à fonologia do wayana. Elas apresentam segmentos fônicos sonoros, como “b”, “d”, “g”, “f”, não existentes em wayana. Se elas são pronunciadas pela quase totalidade dos membros dessa sociedade caribe, seria natural que tais segmentos entrassem no alfabeto da língua. Pois, os mediadores recusaram determinantemente essa proposta, argumentando que “essas palavras são para serem ditas, não para serem escritas”. Daí, perguntei se tiverem de fazer uma listinha de compras e que tivessem de comprar café (kofi), como é que iriam anotar o ‘café’? Responderam tranquilamente que nunca fazem lista de compras. Tudo bem, eles têm razão. Nunca os vi fazer uma lista de compras. Mas, é incrível como não conseguem fazer uma abstração e imaginar um contexto metalingüístico. No final, disseram: já temos um alfabeto22 e não vamos pôr outras letras… Eles têm razão, de forma inconsciente, até um certo ponto, porque historicamente as palavras de empréstimos conhecem uma fase em que elas chegam a uma determinada língua e são pronunciadas de forma mais próxima à sua realização de origem. Com o passar do tempo, os sons vão se adaptando até se encaixarem ao sistema fonológico. Só que tal fase é longa, e não sei quanto tempo o wayana vai precisar esperar para escrever, provavelmente, kopi para ‘café’!23 22 O alfabeto wayana é composto por 17 letras, 16 das quais representam fonemas : a, e, ë, h, i, ï, j, k, l, m, n, o, p, s, t, u, w. 23 A partir de 2007, oficinas de dicionarização serão organizadas in loco com uma equipe de wayanas. Vamos ver como é que esse grupo, que não tem nenhuma ligação com a educação nacional, vai reagir perante esta situação de empréstimos lingüísticos. 39 Cadernos de Educação Escolar Indígena Somente a primeira fase destas oficinas foi realizada. A proposta era a de tentar pensar em wayana, com wayanas e para os wayanas. Como resultado, notamos que na terceira oficina, todos os mediadores estavam escrevendo a língua empregando as regras de realização e sabiam explicar o porque das tais realizações. Isso foi uma vitória, pois, de um lado, uma das responsabilidades desse grupo é a de alfabetizar em wayana, e de outro, conseguimos alcançar o objetivo desta primeira fase. Não pude continuar a monitorar esse grupo, que, infelizmente, se viu obrigado a voltar à formação junto com os Kali’na! Se o objetivo de tal programa é a escola e a produção de material didático, a proposta seria de pensar juntamente com mediadores a maneira mais apropriada para se pensar uma escola adequada aos moldes sócioculturais e lingüísticos do wayana. Tal pensamento deveria ser em um primeiro momento junto com os mediadores e em língua wayana, na qual eles se expressam de forma mais natural, na qual as idéias se agenciam e se organizam de forma espontâneamente. Cada vez que devem pensar em francês, sobre um assunto que lhes é novo, as idéias saem sempre pela culatra. Isto é uma pena, pois passam por pessoas que não sabem expressar o que querem! Nós, formadores, exigimos muito desses mediadores que mal sabem qual é o papel que eles devem desempenhar junto à escola, junto ao professor francês, junto a nós formadores. Alguns expressam uma real preocupação quanto a este papel. Outros não têm a menor idéia de que deveriam se preocupar quanto a função sócio-educativa que deveriam exercer junto à escola. Com isso, não conseguem nem dizer se, o que fazem ou que são submetidos a fazer, é bom ou não. O sistema educacional, de um lado, e o programa de formação, de outro, parece-me estarem na contramão numa região pluricultural e plurilingüística, por se recusarem a pensar a escola de outra forma, ou simplesmente de acharem que a escola é uma solução de vida para essas sociedades. Se será uma alternativa, eu não tenho muita certeza. Mas a imposição de uma escola rígida fora dos conceitos pragmáticos da sociedade na qual ela se impõe, com certeza é o caminho natural que outros grupos, notadamente em solo francês, como com o bretão e o basco, por exemplo, conheceram: é a via da francesização para que uma única língua, uma única lógica seja possível em uma única república. 40 Mediação: um desafio intercultural... Bibliografia CAMARGO, E. Modernidade Mascarada.Ricardo Beto; Ricardo, Fany (ed.). Povos Indígenas no Brasil (2001-2005), São Paulo: ISA, (2006), p. 384-386. CAMARGO, E. Languages Situation : French Guiana.Brown, K.(ed.). Encyclopedia of Language and Linguistics, 2.ed. Oxford : Elsevier,2006. CAMARGO, E. Wajana omi miktop. Hakëne omi ukukne ëhepatop panpila. Dossier de Formation des Médiateurs Bilingues Wayanas, Relatório de atividades, CELIA(CNRS/IRD) – CASNAV – RECTORAT, 79p, (2005) CAMARGO, E. Wayana. Langues de France Cerquiglini, B. (dir), Paris, PUF, 281-283pp, (2003) CAMARGO, E. Aspects de la phonologie du wayana. Amerindia 21, Paris, AEA, pp. 115-136, (1996). CERQUIGLINI, B. (dir). Les langues de France, Paris, PUF, (2003). GOURY, L. (ed), 2001-02. Langues de Guyane, Amerindia 26/27, Paris, AEA. HURAULT, j.-m.Les Indiens Wayana de la Guyane Française. Structure sociale e coutume familiale. Editions de l’ORSTOM, (1968). JAKSON, W. A Wayana grammar. Languages of the Guianas Grimes, J. E (ed), 47-77pp. Summer Institute of Linguistics, (1972). PATTE, M.-Fr. Écrire la langue arawak, Relatório de atividades, 35 páginas, (2006). 41 Desafios e P erspectiv as na Perspectiv erspectivas Educação Superior Indígena Elias Januário* Fernando Selleri Silva** Apresentação Nos últimos anos, vários países da América Latina têm colocado em prática programas inovadores para a formação intercultural de indígenas, perspectivados no reconhecimento da diversidade e no fortalecimento das identidades indígenas. No Brasil, o avanço alcançado no campo da legislação tem possibilitado a implementação de políticas públicas de formação escolar que defende o exercício da cidadania e oportuniza o protagonismo dos índios brasileiros. A autonomia dos povos indígenas começa a se tornar realidade pelo viés da formação escolar, que permite o entendimento dos códigos da sociedade envolvente e a ocupação dos espaços nas esferas do poder federal, estadual e municipal como os Conselhos e Cargo de Gestão. * Dr. em Educação pela UFSCar, Docente do Deptº. de História e do PPGCA da UNEMAT. Coordenador Geral do PROESI. ** Docente do Deptº. de Ciência da Computação da UNEMAT, em Barra do Bugres. Coordenador Administrativo do PROESI. 43 Cadernos de Educação Escolar Indígena Esta comunicação é resultado das reflexões realizadas no contexto da participação em seminários, congressos, etapas de planejamento e discussões acerca da formação de professores em nível superior em diversos estados brasileiros. Tem como propósito reunir os principais aspectos que possibilitem visualizar e compreender os desafios a serem enfrentados na implementação e consolidação da formação intercultural em nível superior para os povos indígenas, bem como apontar as perspectivas e os avanços que se vislumbram nesse cenário do ensino superior para índios. Trata-se da sistematização de pontos recorrentes nas falas de cursistas e lideranças indígenas, docentes de universidades, consultores, gestores da área da educação escolar indígena, políticos, intelectuais, indigenistas, enfim, de pessoas que de alguma forma tem debatido e problematizado o acesso de índios aos cursos universitários. Desafios O Encontro de Universidades Interculturais e povos indígenas da América Latina realizado no México (2007), promovido pelo Programa Universitário Nacional e Multicultural (PUMC) da Universidade Autônoma do México (UNAM), em parceria com o PROEIB – Andes, para debater com os países da América Latina e Caribe a formação superior para povos indígenas teve como foco a multiculturalidade presentes nos países latinos e a necessidade que seja problematizado com a sociedade não-índia essa diversidade. Discutiu-se a necessidade de criar estratégias no âmbito das Instituições de Ensino Superior para reverter esse quadro, que reflete na dificuldade de acesso dos indígenas aos cursos superiores e na consolidação de programas específicos para índios. No Brasil, vários encontros realizados em diferentes estados têm problematizado o acesso e a permanência de indígenas nos cursos superiores (ver lista na Bibliografia), revelando uma expansão da discussão acerca da formação intercultural nos diferentes níveis da educação escolar. Desses seminários, reuniões, congressos e 44 Desafios e perspectivas na educação superior indígena conferências alguns pontos convergem quando se trata dos desafios a serem enfrentados na formação em nível superior. São esses pontos que destaco a seguir: - Existe um discurso generalizado acerca da importância da educação intercultural, diferenciada e bilíngue, esse discurso tem pouco respaldo na prática cotidiana das escolas indígenas, onde o processo de ensino e aprendizagem continua em grande escala calcado na reprodução do modelo do não-índio. Mesmo que se observe um discurso politicamente correto na academia e nos órgãos oficiais sobre o modelo de formação escolar para os índios, a sua efetivação na prática tem demonstrado avanços em pequenas proporções. Superar essa realidade é um desafio. - Apesar da existência de um quadro de formadores nãoindígena qualificado academicamente, percebe-se dos formadores uma dificuldade em “escutar” os povos indígenas, ou seja, dar visibilidade a fala dos índios na formação, no processo de ensino e aprendizagem, na construção de conhecimentos. Essa prática é resultado de uma formação ocidental que prima pelo etnocentrismo, dificultando o diálogo. Por outro lado, os índios têm limitações em se posicionarem, em questionarem os docentes, não se sentem seguros para contestar. O resultado desse quadro é a dificuldade de uma educação escolar dialógica, que possibilite o exercício da interculturalidade como referencial teórico e prático. - Outro desafio é propor, no contexto dos programas de formação, ações que conduzam ao aprimoramento e consolidação de políticas lingüísticas e sócio-ambientais, como forma de garantir aos povos indígenas uma flexibilização na estrutura do Estado que ainda se mostra rígida. A formulação dessas políticas deve abranger a qualificação do quadro de recursos humanos das Secretarias estaduais e municipais, prioritariamente os setores envolvidos com a demanda indígena. - Ainda nos dias atuais, uma parcela considerável de professores indígenas e suas comunidades desconhecem o arcabouço jurídico que garantem a eles os direitos de cidadania. De modo semelhante acontece com os gestores e técnicos da união, estados e municípios, que obrigatoriamente deveriam conhecer as leis, mas desconhecem. É necessário criar mecanismo para que todos tenham 45 Cadernos de Educação Escolar Indígena acesso e entendam as leis referentes aos direitos dos povos indígenas. Esse é mais um dos grandes desafios da formação superior indígena. - Oportunizar que os índios já qualificados pelas IES, integrem os quadros de docentes e gestores nos cursos de formação em nível médio e superior que estão sendo ofertados pelas universidades e centros de formação, configura-se em um enorme desafio. Essa prática irá fortalecer a tão propalada participação dos povos indígenas nas tomadas de decisões, que hoje se encontra muito na retórica, face à prática hierárquica, tradicional e burocrática do sistema de ensino no Brasil. Permanece como desafio a participação efetiva dos povos indígenas na gestão educacional e no controle social da comunidade sobre o processo pedagógico de escolarização de seus pares. - Estabelecer programas de intercâmbio com países da América Latina, que têm maior experiência com a presença de povos indígenas nos diferentes cursos das IES torna-se imprescindível. As universidades brasileiras mantêm um distanciamento das IES dos países latinos, que nos últimos anos avançaram consideravelmente nas reflexões acerca do acesso e permanências de indígenas em cursos superiores. O inverso também é verdadeiro, pouco se sabe sobre os projetos e programas desenvolvidos no Brasil pelos profissionais envolvidos na educação escolar indígena. Dessa forma, o intercâmbio de experiências entre as IES da América Latina mostra-se como um processo a ser consolidado e de fundamental importância para o fortalecimento de políticas públicas voltadas aos povos indígenas do continente americano. - A criação de dotações orçamentárias específicas para a educação escolar indígena, com a alocação de recursos próprios para a formação em nível superior, como uma política pública do Ministério da Educação deve der tratado como prioridade na lista de desafios. O modelo de editais que vem sendo usado no Brasil não garante uma política, mas apenas ações pontuais. Paralelo a isso, também é importante a consolidação de parcerias para a implementação (financiamento e execução) de propostas de formação em nível superior (MEC, SEDUC, FUNAI, SECITEC, CONSELHOS, ONGs, SECRETARIAS MUNICIPAIS e ORGANIZAÇÕES INDÍGENAS), além das próprias universidade estarem incluindo em seu PPA, recursos destinados aos cursos de licenciatura e bacharelado indígenas. 46 Desafios e perspectivas na educação superior indígena - Estabelecer nos currículos dos cursos de formação de professores em nível superior, discussões sobre as políticas educacionais universalizantes (EJA, Educação Infantil, Ensino Profissionalizante), elaboração de Projetos Políticos Pedagógicos (PPP) para as escolas indígenas, além de fortalecer a discussão acerca do processo de alfabetização em língua portuguesa e materna para as crianças indígenas, são pontos da área pedagógica que ainda se mostram desafios a serem conquistados. Esses são alguns dos desafios que consideramos emergenciais de serem pensados e problematizados, lembrando que os desafios se modificam com o decorrer do processo, na medida em que as ações vão sendo desenvolvidas. A cada etapa novos desafios surgem, nos fazendo repensar e rediscutir a trajetória. Avanços e perspectivas Mesmo diante dos desafios assinalados nos itens anteriores, é imperativo reconhecer que houve avanços na área da formação escolar dos povos indígenas, em diferentes níveis, que aponta para algumas perspectivas que destacaremos a seguir: - Temos uma legislação consistente, avançada e de vanguarda, que defende os direitos dos povos indígenas e, que se colocada em prática numa amplitude maior e com mecanismos mais eficientes, pode romper com a lentidão que se detecta no contexto da educação escolar indígena. - O fortalecimento do tripé escola-comunidade-professor, pode possibilitar a organização de projetos de interesse coletivo na área da sustentabilidade econômica, da educação básica, do entendimento da legislação (saúde, educação e terra), entre outros. - Vislumbram-se possibilidades de construção de projetos políticos pedagógicos que levem em consideração as especificidades culturais (tempo e espaço) de cada etnia, valorizando os conhecimentos tradicionais, a língua materna, a discussão sistêmica da escolarização e a produção de materiais didáticos nas línguas indígenas. 47 Cadernos de Educação Escolar Indígena - O acesso, permanência e a conclusão da formação de índios em nível superior, abre canais de diálogos interculturais com a sociedade envolvente, colocando em pauta a discussão da revitalização de práticas e valores indígenas, possibilitando que jovens e crianças tenham acesso a escolarização em suas próprias aldeias e que a pesquisa faça parte do processo de ensino e aprendizagem da educação escolar indígena. - A abertura das universidades para o acesso dos povos indígenas tem permitido que as demandas das etnias sejam discutidas no âmbito da academia, que as IES reconheçam a multiculturalidade existente no país, viabilizando o debate e a criação de processos educacionais inovadores, além de possibilitar que os ameríndios tenham novas experiências e acesso a espaços até então inacessíveis a eles. São visíveis os avanços e perspectivas no contexto da Educação Superior Indígena. No entanto cabe as Instituições de Ensino Superior promover o intercâmbio dessas experiências entre docentes das IES que ofertam cursos para indígenas, na perspectiva de qualificação dos seus quadros, da institucionalização de um diálogo intercultural na academia e na implementação de novos cursos com propostas pedagógicas e curriculares que levem em consideração o contexto social, cultural e de futuro das diferentes etnias presentes no Brasil. * * * Falar dos desafios e das perspectivas da formação de professores índios em nível superior é abrir para o debate e a problematização um campo novo que, aos poucos, vem consolidando em todo o país. Em junho de 2006 o Estado de Mato Grosso, por meio do Projeto 3º Grau Indígena, conferiu grau a 186 professores indígenas em três cursos de licenciatura intercultural. Outros estados brasileiros também iniciaram programas interculturais nas universidades estaduais e federais para a habilitação de indígenas em nível superior. Refletir acerca dessa formação que está sendo ofertada é imprescindível, seja por meio de seminários, congressos, fóruns e reuniões, de modo que possamos a cada encontro ir aprimorando os 48 Desafios e perspectivas na educação superior indígena conceitos e metodologias que estão sendo utilizados nos cursos voltados para a formação de professores indígenas, na perspectiva de pavimentarmos o caminho e consolidarmos a Educação Superior Indígena em todos os níveis em nosso país. Bibliografia I Conferência Internacional Sobre Ensino Superior Indígena, Barra do Bugres, Mato Grosso, 2004. 56º Reunião da SBPC. Formação de Professores Indígenas, Cuiabá, Mato Grosso, 2004. Seminário de Educação – Política de Formação de Professores Indígenas: Impasses e Perspectivas. Cuiabá, Mato Grosso, 2005. I Conferência Estadual da Promoção da Igualdade Racial. Cuiabá, Mato Grosso, 2005. Etapas de Planejamento e Formação do Projeto 3º Grau Indígena, Barra do Bugres, Mato Grosso, 2005. Etapas de Planejamento e Formação do Projeto 3º Grau Indígena, Barra do Bugres, Mato Grosso, 2006. VII Seminário de Educação Superior Indígena de Roraima. Boa Vista, Roraima, 2006. Seminário de Educação Superior da Paraíba. Campina Grande, Paraíba, 2006. Semana dos Povos Indígenas. Cuiabá, Mato Grosso, 2006. I Seminário de Afirmação dos Povos Chiquitano. Cáceres, Mato Grosso, 2006. I Jornada Internacional de Educação e Movimentos Sociais – Educação Escolar Indígena e Movimentos Sociais. Cuiabá, Mato Grosso, 2006. I Congresso Nacional de Educação Superior Indígena. Porto Seguro, Bahia, 2007. 49 Cadernos de Educação Escolar Indígena Reunião Ordinária do Conselho de Educação Escolar Indígena – CEI/ MT. Cuiabá, Mato Grosso, 2007. Oficina de Intercâmbio – Licenciaturas Interculturais Indígenas: Sistematizando Experiências. Brasília, MEC, 2007. Encuentro de Universidades Interculturales e Indígenas de América Latina: Seminário de Expertos. Tepoztlán, Morelos, México, 2007. 50 En tre a al deia e a cidade: notas da Entre aldeia traje tória de uma vida trajetória Rozinete Zoizoquialo Amajunepá* Neste texto relato situações e momentos que considero relevante em minha trajetória em direção a qualificação escolar. Até 1987, na aldeia Umutina, não havia o ensino médio, estudávamos só até a 4ª série. Para que pudéssemos continuar os estudos tínhamos que sair da aldeia para a cidade. O que era muito difícil, pois não tínhamos assistência da FUNAI ou da prefeitura de Barra do Bugres. Isso só era possível para aqueles alunos que tinham parentes morando na cidade. Quando eu e mais quatro colegas terminamos a 4ª série nossos pais desejavam que a gente continuasse estudando. Como a nossa aldeia fica a 15 km da cidade, decidiram que iríamos até a cidade de trator todos os dias para estudar, quando a gente não ia de trator, íamos de barco ou a cavalo, de baixo de sol, chuva, frio, às vezes a gente nem almoçava, porque sempre saímos muito cedo, mesmo assim a gente sempre chegava atrasado, pois de barco ou trator era muito demorado algumas vezes a gente perdia a primeira aula e os professores não davam outra prova pra nós. No ano que começamos o estudo na cidade, três de nós não conseguiram a aprovação, eu mesmo reprovei em Matemática. * Professora Umutina na Escola Julá Paré, na aldeia Umutina, município de Barra do Bugres-MT. Estudante do Curso de Licenciatura do PROESI. 51 Cadernos de Educação Escolar Indígena Os professores não-índios não entendiam a nossa realidade, o contexto no qual estamos inseridos até hoje muitos não entendem. No ano seguinte continuamos tudo de novo de trator, de barco e a cavalo. Às vezes a gente ia de carro, era mais rápido, mas quem tinha que pagar o combustível do deslocamento eram nossos pais. Por fim as coisas foram ficando difíceis, eu desisti e outros dois também, apenas um continuou, prestou vestibular e hoje é professor de matemática na aldeia. Eu casei, tive três filhos e nunca perdi o interesse pelo estudo, mas com filhos ficou mais difícil para mim. Quando meu filho mais velho foi estudar na cidade resolvi continuar estudar novamente e levava os outros dois filhos juntos comigo, um com seis anos e a menina com três anos. Íamos todos os dias de ônibus da prefeitura que buscava a gente na beira do rio, isso já no ano de 2000 fiz a matrícula em outro colégio, comecei na 5ª série, na série que eu havia desistido, fiz supletivo, em dois anos terminei o ensino fundamental nesta escola os professores eram flexíveis, quando a gente perdia alguma prova, eles passavam trabalho sobre os conteúdos da prova ou aplicavam outra. Era tudo muito difícil, porque na época das águas, do período de chuva, era muito complicado, são seis meses de enchente e a gente precisava atravessar 5km todos os dias para pegar o ônibus, atravessávamos de barco ou muito às vezes nadando mesmo, porque nem sempre o barco passava, pois tinha lugares altos e baixos e nesse período a estrada fica cheia de água no meu caso era mais difícil ainda porque levava meus filhos, muitas vezes comigo e a gente tomava chuva. Como o horário da aula era até 05:00 horas da tarde, na época das águas a gente chegava em casa por volta das 08:00 horas da noite todos os dias. Às vezes acontecia de não ter nenhum barco a nossa disposição. Lembro-me que uma vez ficamos até 09:00 horas da noite do outro lado do rio esperando alguém ir atravessar a gente, então os meninos resolveram atravessar a nado e buscar o barco, éramos bem uns trinta alunos do ensino fundamental e ensino médio. Neste dia o rio estava cheio e com forte correnteza. Todas as noites chovia. Lembro também que uma vez tinha uma cobra sucuri no meio do caminho, já era noite, aí os colegas disseram “vamos passar todos de uma vez só e correndo”, e foi o que fizemos. Às vezes sinto saudade dos colegas e das aventuras que enfrentávamos juntos para estudar. 52 Entre a aldeia e a cidade... No ano de 2002 já havia concluído o supletivo. Comecei então o 1º ano do ensino médio. Estava muito feliz enfim terminaria os estudos em 3 anos. Meus filhos continuavam junto comigo. No mês de setembro de 2003, minha filha ficou muito doente pelo fato de ir todos os dias comigo de baixo do sol quente e muita poeira. Lá na época da chuva era água e lama e na época de seca e vento e poeira. Tive que deixar de estudar para cuidar dela, ela estava muito frágil, tive medo de perdêla. Fiquei triste por ela e por mim, que ia perder o ano, estava começando as avaliações do terceiro bimestre e faltavam algumas avaliações para fazer, mas como já disse, os professores eram compreensíveis e sabiam da minha dificuldade para estudar. Pediram atestado e repetiram as minhas notas do 2º bimestre, que por sinal eram ótima. Fiquei setembro, outubro e metade do mês de novembro fora da sala de aula, quando voltei já havia começado as avaliações do 4º bimestre. Os professores me passaram vários trabalhos sobre os conteúdos que eles haviam passado e cada um deu apenas uma avaliação para mim. Tive que estudar muito para conseguir a média e não ir para o provão (como diziam na época). Chegava em casa, dava janta para as crianças e ia estudar, teve dia que estudei até duas horas da manhã, porque tinha marcado para outro dia três avaliações, Química, Matemática e Inglês. O ano já estava terminando. Mesmo me matando de estudar para não ir para o provão acabei ficando de Química e Matemática, pois tenho dificuldade nessas matérias. Ficou marcado para 12 de janeiro de 2003 o provão. Como as aulas acabaram no dia 22 de dezembro de 2002, nós que ficamos para recuperação tínhamos que ir duas vezes na semana, pela manhã, lá na escola para aula de Matemática e Química. No dia marcado da prova fomos com o ônibus da prefeitura que foi buscar a gente até onde dava para ir de barco. Quando chegamos na escola o professor nos disse que tínhamos a tarde toda para fazermos a prova, ou seja, o provão, pois eram matérias do ano todo. Eu estava um pouco nervosa, mas meus colegas estavam torcendo por mim, o que me deu uma força tão grande, fiz a prova e consegui bons resultados, fui aprovado e fiz a matrícula no mesmo dia. Em 2003 começou toda rotina de novo, levantava às 06:00 horas da manhã arrumava as crianças para ir para escola, fazia todo serviço da casa, lavava roupa quase todo dia, 09:00 horas da manhã começava fazer o almoço com o material escolar do lado, às vezes nem tinha tempo para almoçar. Além de fazer os deveres de 53 Cadernos de Educação Escolar Indígena dona de casa, tinha meus deveres escolares, às 11:00 horas dava almoço para as crianças, dava banho, trocava a roupa deles, arrumava seus materiais de escola para levar porque lá na minha escola na hora do intervalo eu os ajudava a fazer o dever de casa, ensinava a ler. Às 11:30 horas a gente tinha que estar no porto da balsa para pegar o ônibus. Saía às 11:30 horas de casa e retornava às 06:00 horas da tarde, isso no período da seca, porque nas águas era muito mais difícil, saía mais cedo e chegava mais tarde e apesar de todos os contra-tempo passei de ano sem precisar ir para o provão que não foi uma experiência muito boa. Em 2004 foi implantado o ensino médio na aldeia, eu e outros colegas já íamos para 3º ano do ensino médio e houve uma grande discussão. Nós éramos dez alunos do 3º ano e a gente não queria de forma alguma estudar na aldeia, por um lado seria bom porque não haveria, mas necessidade de ir e vir todos os dias, mas por outro lado nós não concordávamos com o ensino diferenciado, conversa vai e conversa vem, acabamos concordando, apenas três alunos continuaram estudando na cidade por conta própria. Pois nos achávamos que os professores da aldeia não tinham o que nos ensinar. Então as aulas começaram e o ensino era totalmente diferente do ensino da cidade, isso porque toda vida a gente estudou na cidade e lá nunca estudamos coisas específicas nossas, ensino diferenciado, no começo a gente questionava muito os professores, até que um certo dia o Coordenador Pedagógico da escola nos reuniu e falou da importância do ensino diferenciado. Neste mesmo ano ia ter o vestibular para professores indígenas. Resolvi prestar o vestibular por curiosidade, não esperava passar. Felizmente tive sorte, passei entre os primeiros colocados. Fiquei feliz por mais esta conquista. A implantação do ensino médio na aldeia, com um projeto intercultural e diferenciado foi bom. Além de ensinar um pouco mais sobre o próprio povo, facilitou muito o estudo. Não precisamos mais ir para a cidade estudar e não temos tanto gasto como tínhamos quando estudávamos na cidade, e as dificuldades são menores. Hoje estou no 3º Grau Indígena e pretendo ir até o fim, quero ser Socióloga e fazer um bom trabalho com meu povo. 54 Entre a aldeia e a cidade... Essa é uma parte da minha trajetória pelo acesso e permanência na escolarização. Quando terminar o curso superior, conto a vocês como foi essa nova empreitada, que acredito, será também uma história de sucesso. Até qualquer dia desses. 55 A busca da autonomia no processo da educação escol ar indígena escolar Lucimar Luisa Ferreira* Adailton Alves da Silva** Introdução A Educação Escolar Indígena no Brasil, mesmo tendo sido ferramenta através da qual o Estado desenvolveu, por muito tempo, a sua política de integração, vem desempenhando um papel significativo na luta dos povos pela garantia de seus direitos e na busca da autonomia. A escola que inicialmente foi proposta (“imposta”) pelo Estado, tendo como objetivo central a integração das comunidades à sociedade nacional através da evangelização, no decorrer dos tempos, passa a significar e a exercer uma função muito distinta daquela inicial. Num processo contínuo, as comunidades, apesar dos obstáculos, resignificam e somam os conhecimentos da escola aos seus conhecimentos tradicionais. Aos processos educativos próprios das sociedades indígenas veio somar-se a experiência escolar, com as várias formas e modalidades que assumiu ao longo da história do contato entre índios e nãoíndios no Brasil (RCNEI, 1998:24). Professora mestre em lingüística pela UNICAMP, Assessora Pedagógia na área de Línguas, Artes e Literatura no PROESI. * Professor mestre em Educação Matemática pela UNESP, lotado no Departamento de Matemática - UNEMAT – Campus de Barra do Bugres – MT. Coordenador Pedagógico do PROESI. ** 57 Cadernos de Educação Escolar Indígena Assim, os povos indígenas, num movimento de apropriação da educação escolar, passam, a partir de sua realidade, a construir e a redefinir os seus rumos. Necessidade formada ‘pós-contato’, a escola tem sido assumida progressivamente pelos índios em seu movimento pela autodeterminação. (RCNEI, 1998:24) Educação integracionista O movimento de apropriação da educação escolar que vislumbramos hoje, foi gestado no desenvolvimento do integracionismo promovido pelo Estado. Após quatro séculos de extermínio sistemático das populações indígenas, o Estado resolveu formular uma política indigenista menos desumana, baseada nos ideais positivistas do começo do século (FERREIRA, 2001: 74). Assim, por longos anos, a integração dos povos indígenas à sociedade nacional foi suporte das políticas educacionais indígenas do Estado. Na época da colonização, a educação era feita numa perspectiva eurocentrista, ou seja, o centro de tudo era a Europa. Nesse contexto, a política de assimilação do índio à civilização cristã através da evangelização foi a base do aniquilamento da diversidade sóciocultural e da negação da identidade indígena. Essa política era efetivada de diversas maneira: aldeamentos compulsórios e destruição das instituições próprias (xamanismo, sistemas de parentesco, organização social, etc). Nesse caso, o objetivo era catequizar e educar para a incorporação ocidental e cristã, transformando os índios em vassalos através da exploração da mão-de-obra, expandindo, com isso, os domínios da Coroa Portuguesa. Os índios tiveram que habitar casas distribuídas e organizadas conforme os ideais católicos, provocando transformações na maneira como concebiam a si mesmos e o mundo. Aspectos das cosmologias indígenas foram substituídas pela moral católica (FERREIRA, 2001: 73). Nessas condições, o ensino era feito nos internatos, com proibição do uso das línguas maternas. 58 Em busca da autonomia... Educação integracionista e os seus limites Segundo Ferreira (2001: 72), com o passar dos tempos, nas primeiras décadas do século XX, influenciada pelo surgimento de instituições governamentais (SPI, FUNAI) religiosas (SIL e outras missões) a perspectiva integracionista sofreu mudanças, mas mesmo assim, o desaparecimento das culturas indígenas era vista como inevitável e a diversidade cultural era apenas um recurso para a formação e desempenho do plano integracionista. A política dessa fase continuava sendo a integração progressiva e harmoniosa à comunhão nacional, havendo a homogeneização e a hegemonia de uma língua e uma cultura, as nacionais, sendo a identidade indígena vista como provisória. Os índios eram educados para o trabalho agrícola e passava a ter um investimento na capacitação pedagógica. Num sentido geral, garantia a sobrevivência física dos povos indígenas e capacitava-os para o trabalho pedagógico, através da função de monitores bilíngües. A integração dos índios à comunhão nacional permaneceu por mais um longo período, balizando o trabalho nas escolas das aldeias, já que a concepção continuava a ser a do evolucinismo unilinear e o índio considerado numa forma genérica, relativamente capaz. Nessa conjuntura, a educação para o indígena era feita através do ensino religioso e rural, passando a ser obrigatoriedade o uso das línguas maternas nas escolas indígenas. A alfabetização na língua materna era usada como estratégia para a integração, ou seja, o bilingüismo de transição (língua materna como ponte para a aprendizangem nas escolas). O Ensino bilingüe passava ser instrumento civilizatório que pretendia tornar os índios leitores do Evangelho traduzido em várias línguas. Mas apesar de tudo, no decorrer do processo educativo foi visto o desencadear de um movimento inverso ao que era previsto, pois ao mesmo tempo que havia uma força integracionista que vinha de fora (educação imposta pelo Estado e instituições religiosas), uma outra força legítima vinda dos próprios grupos, nascia na ação dos professores, líderes e organizações de apoio. 59 Cadernos de Educação Escolar Indígena Educação escolar: apropriação e redefinição Com o passar do tempo, partir de 1960, surgem projetos alternativos à política do Estado e, nesse caso, o propósito passa ser a diferenciação de educação escolar indígena de educação indígena. A política passa ter a atuação de ONGs e nisso surgem as alianças políticas indigenistas diferenciadas de políticas indígenas. Esse foi um momento marcado pelo delineamento de práticas alternativas à política oficial. A atuação das organizações não-governamentais pró-índio e a respectiva articulação com o movimento indígena fizeram com que se delineasse um política e uma prática indigenista paralela a oficial, visando a defesa dos territórios indígenas, assistência à saúde e a educação escolar. (FERREIRA, 2001: 87). Nesse caso, o objetivo passa a ser a articulação com os movimentos indígenas, construindo um currículo específico e diferenciado, compatível com as concepções e filosofias educativas dos povos indígenas. Dessa forma, o ensino busca integrar cultura e educação, visando a compreensão da relação entre o processo cultural vivido pelas comunidades e o chamado saber sistematizado universal. Conforme Ferreira (2001: 95), no decorrer dessas práticas, surgem as experiências de autorias em Educação Escolar Indígena e também a criação de organizações indígenas que buscam autonomia através das políticas públicas. A política de articulação indígena, que prevê soluções coletivas para problemas comuns (território, diversidade lingüística e cultural, assistência médica adequada e processos educacionais específicos e diferenciados) se fortifica, culminando na luta pelo reconhecimento da diversidade cultural na legislação brasileira, em 1988. Nesse caso, o objetivo passa ser criar uma nova política indigenista que investe na busca da autonomia, através de projetos societários e a reafirmação da identidade. E, assim, uma educação intercultural específica e diferenciada passa ser a modalidade de ensino almejada. 60 Em busca da autonomia... Todo o decorrer deste processo, desencadeia o vislumbramento de uma nova concepção. A educação passa a ser a proposição do conhecimento global por parte do educando a partir do local, ou seja, a partir de um olhar da própria cultura. Nesse sentido, os conhecimentos próprios dos povos recebem uma importante relevância no processo de construção e consolidação da escola. A soma de experiências adquiridas na educação escolar indígena propicia pensar a escola na sua pluralidade, pois, considerando a diversidade, a construção de cada escola passa ser específica, atendendo aos interesses também específicos de cada povo. O objetivo, nesse momento, é que a escola seja a intersecção entre os saberes próprios das comunidades e os saberes da sociedade nacional. A escola funciona como ferramenta de apoio para a compreensão do que é próprio e do que vem de fora. Esse movimento de apropriação, consolidação e re-significação da escola por parte das comunidades, vem se desenvolvendo e sendo efetivado de diversas maneiras: através do uso da língua materna nas escolas, busca dos conhecimentos e práticas tradicionais dos povos (que se materializa em calendários escolares adaptados às atividades de cada comunidade), uso de materiais didáticos próprios e docência de professores indígenas (membros de suas respectivas comunidades). Nesse arcaboço, a Constituição de 1988 garante as conquistas dos movimentos indígenas. A educação diferenciada, garantida por Lei, valoriza a diversidade aceitando as várias línguas e reconhecendo os saberes e as diferentes formas de compreensão da realidade dos povos e, isso, propicia a renovação das experiências, já que propõe um movimento recíproco entre conhecimentos específicos e universais. Conclusão Observando todo o processo de legitimação e fortalecimento da escola indígena, pode-se dizer que o que tem marcado são as conquistas nos diversos planos: jurídico, político e pedagógico. No plano jurídico, temos o reconhecimento ao direito dos povos indígenas à segurança sóciocultural e à valorização de sua língua, modos e concepções; no político, o surgimento de associações locais e regionais 61 Cadernos de Educação Escolar Indígena de professores índios, que realizam encontros de trabalho, discussão e revisão crítica da situação educacional e social das comunidades (contando com o apoio de pessoas ligados a ONGs e Universidades) e, no pedagógico, cursos específicos de formação para professores índios1 e a criação de escolas indígenas com um acelerado processo de busca da autonomia, que já possui regimento, currículo e pedagogia própria, definidas de acordo com as particularidades da situação local. Como podemos ver, todas essas conquistas se articulam à capacidade histórica que os povos indígenas no Brasil demonstram no seu relacionamento com setores não-indígenas. Entre eles podemos mencionar, por exemplo, a multiplicidade de atitudes em diferentes comunidades indígenas, frente à escola como instituição. Assim, desde as experiências das escolas indígenas do Parque Nacional do Xingu (MT), da escola dos Tapirapé (MT), da experiência do Gersem L. dos Santos como Secretário Municipal de Educação em São Gabriel da Cachoeira (AM) e os demais cursos de formação e capacitação espalhados pelo país, são fatores de referência a serem tomados como exemplo de iniciativas transformadoras que buscam desenvolver o respeito pelas escolas indígenas como espaço privilegiado de diálogo e/ou de conflito entre conhecimento indígena e ocidental, entre política pública e política das aldeias. Por tudo que vimos, são notáveis as conquistas educacionais dos povos indígenas no Brasil. Uma distância considerável separa a escola rural missionária e catequética, da época da colonização, da escola, com reconhecimento da sua especificidade, garantida por Lei, de algumas regiões do país, na atualidade. Mas também, por outro lado, se formos conferir in loco essas conquistas, é notório o quanto ainda precisa ser conquistado, pois, apesar de termos muitas iniciativas com sucesso, ainda há povos com poucas condições de discutir a escola, já que suas maiores prioridades ainda são: terra, saúde e alimentação. Assim, por esse e outros motivos, a educação escolar indígena torna-se uma questão que ultrapassa o plano de ensino aprendizagem e torna-se um campo privilegiado para as reflexões das relações políticas entre segmentos diferenciados da sociedade. 1 Na esfera administativa do Estado de Mato Grosso, temos por exemplo, os cursos de formação de professores Tucum (concluído), 3º Grau Indígena (em andamento) e Haiyô (em andamento). 62 Em busca da autonomia... Bibliografia GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. As leis e a Educação Indígena: Programa Parâmetros em Ação de Educação Escolar Indígena: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, Brasília, 2001. FERREIRA, M. K. L. “A Educação Escolar Indígena: um diagnóstico crítico da situação no Brasil”. In: Antropologia, Historia e Educação: A Questão Indígena e a Educação. SILVA, Aracy Lopes da; FERREIRA, Mariana K. L.et.al (Org.) São Paulo: Global, 2001. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. MEC/SEF, Brasília, 1998. 63 Em Construção: a Escol a Desejada 1 Escola Maria Aparecida Rezende* Temos como propósito apresentar parte de um trabalho desenvolvido junto ao povo Xavante das Terras Indígenas de Pimentel Barbosa. De onde surgiu a idéia de uma educação diferenciada? Como foi desenvolvido este Projeto?2 Esse trabalho foi realizado atavés das Ciências Naturais para auxiliar na formação dos professores Xavante de Pimentel Barbosa. Mas um conhecimento interligado aos saberes dos velhos Xavante, bem como o conhecimento tradicional da comunidade. O resultado parcial desse estudo foi a elaboração de um livro como apoio pedagógico aos professores. Esse material foi fruto de um ano e meio de pesquisa junto aos professores, lideranças e também participação da comunidade. Assim, estando ainda em construção, resta ao Projeto fazer a avaliação dos recursos didáticos produzidos durante esse processo. É necessário que estes materiais sejam úteis para a continuidade do ser e viver Xavante. Devem estar a serviço do grande objetivo desta escola: a educação escolar como um meio de afirmar sua identidade étnica e cultural. * Mestre em Educação, docente da UFGD. Docente no PROESI na área de Ciências Sociais. Esse trabalho é assunto de parte da minha monografia de Especialização em Teorias e Métodos da Antropologia, sob orientação do antropólogo Dr. Aderval Costa Filho. 1 Projeto de Capacitação em Serviço de Professores Leigos para o CBA (Ciclo Básico de Aprendizagem). Esse trabalho foi desenvolvido por um grupo de professores tendo na coordenação a ONG – ARCA (Associação para Recuperação e Conservação do Meio Ambiente) em parceria com a UNICEF. Na época nossa pretensão era auxiliar na formação dos professores e não produzir trabalhos acadêmicos. 2 65 Cadernos de Educação Escolar Indígena A Escola desejada e a importancia das ciências naturais3 A intenção de ajudar os Xavante da Terra Indígena Pimentel Barbosa a construir uma educação escolar diferenciada não foi uma tarefa fácil. Era um desafio que o Projeto e seus membros teriam que enfrentar. Além de integrar os conhecimentos “científicos” aos saberes tradicionais Xavante, também teríamos que “preparar” os professores e elaborar materiais didáticos em apenas um ano e meio de trabalho. Nessa realização contamos com a participação efetiva das comunidades e com o interesse dos professores. Assim, foi possível desenvolver o trabalho com seriedade e compromisso com as comunidades indígenas de ter o direito de uma educação que coloque em evidência seus valores e não os de uma sociedade ocidental. A fala de uma das lideranças em reunião no Warã4 evidencia a reivindicação da educação escolar diferenciada. “o branco modificou nossa vida e escola é coisa de branco não é de índio, mas nós queremos uma escola para nós da Pimentel Barbosa. Uma escola que dê conta de ajudar os nossos jovens a conhecer a nossa alimentação tradicional, nossa cultura e também que ajude a não deixar nossas crianças morrer de doença de branco”. Daí a importância das Ciências Naturais. Ainda, que a equipe de assessores pedagógicos e coordenação do trabalho de campo e geral, reunisse para planejar o trabalho de uma forma integrada, quem decidia mesmo o que trabalhar era na verdade a comunidade. Quando chegávamos nas aldeias, eles colocavam os problemas de saúde que estavam tendo, pois para eles a Ciências Naturais era importante para trabalhar a saúde da comunidade e os costumes antigos da comunidade. Os conteúdos desenvolvidos nessa disciplina Escolhi essa disciplina por ter sido eu mesma a trabalhá-la com os professores e também por ter sido autora responsável pelas propostas de atividades do livro de Ciências Naturais em fase experimental. No ano de 2000, esse material deveria ter sido experimentado pela comunidade para ser publicado, porém não houve investimento financeiro para a assessoria pedagógica fazer o acompanhamento. 3 Local onde os homens reúnem-se para fazer o planejamento das atividades de toda a comunidade e as tomadas de decisões do grupo. 4 66 Em construção: a escola desejada não tiveram uma seqüência lógica, conforme os livros didáticos. Pois dependia das necessidades das comunidades. Para uma melhor compreensão desse trabalho será imprescindível relatar um pouco do processo metodológico. As aulas eram desenvolvidas com os professores nas aldeias, fazendo um rodízio entre as três (Pimentel Barbosa, Tanguro e Caçula), variando de 07 (sete) a 10(dez) dias consecutivos. O trabalho era dividido com mais uma disciplina em geral ou às vezes, com outras – Ciências Sociais, Matemática ou Metodologia da Alfabetização. Outro aspecto importante de ser ressaltado é em relação a escolha dos professores das comunidades. Cada comunidade elegeu seus professores de acordo com os valores e princípios de responsabilidade e respeito da comunidade. Acontece que esses professores tinham cursado apenas as duas primeiras séries do ensino fundamental. Por esse motivo todos os conteúdos teriam que ser trabalhados vagarosamente fazendo a ponte entre a pesquisa de campo com a pesquisa bibliográfica. Compreendia-se que esse trabalho era amparado pelos RCNEIs. Em relação aos povos indígenas afirma que: Eles têm o direito de decidirem seu destino, fazendo suas escolhas, elaborando e administrando autonomamente seus projetos de futuro. (...) Esse esforço de projetar uma nova educação escolar indígena só será realmente concretizado com a participação direta dos principais interessados – os povos indígenas através de suas comunidades educativas. Essa participação efetiva, em todos os momentos do processo, não deve ser um detalhe técnico ou formal, mas sim a garantia de suas realização. A participação da comunidade no processo pedagógico da escola, fundamentalmente na definição dos objetivos, dos conteúdos curriculares e no exercício das práticas metodológicas, assume papel necessário para a efetividade de uma educação específica e diferenciada ( RCNEI, 1998: 23-24). A demonstração de participação efetiva da comunidade fazse presente no primeiro momento da chegada a aldeia que era participar da reunião no warã, geralmente no período noturno. Os dias seguintes transcorriam normais, com pesquisas, aulas expositivas, entrevista com a população, pois eles já sabiam o que ocorreria durante aqueles 67 Cadernos de Educação Escolar Indígena dias. Pensando numa escola que se preocupava com a saúde e com a vida, principalmente das crianças, um dos temas que se fez necessário trabalhar foi o lixo. Nas cidades vizinhas, Canarana e Ribeirão Cascalheira, estavam ocorrendo vários registros de Dengue. Na aldeia, pneus velhos, vasilhas jogadas, com água da chuva, podiam ser encontrados facilmente. A professora de Ciências Sociais estava trabalhando as mudanças de costumes dos Xavante. Ela saiu com os professores nos arredores da aldeia para recolher tudo o que conseguiam carregar: restos de materiais lixo. A pedagogia Freinet chama essa atividade de “aula passeio”. Depois ela classificou os objetos encontrados em: brinquedo, higiene, alimentação, etc,. Aproveitando essa divisão, foi trabalhado pelas Ciências Naturais a noção de lixo orgânico e inorgânico. Também foi muito importante a construção dos conceitos desse tema conforme a compreensão Xavante. No momento seguinte, eles fizeram um outro passeio em volta da aldeia, trazendo os lixos que encontraram e fazendo as classificações de acordo com sua compreensão. Eles produziram um relatório descrevendo as condições que encontraram o lixo no entorno das aldeias. Encontraram pneus velhos cheios de água, litros de refrigerantes estourados com água dentro, cabaças quebradas portando restos de água, também vários arames enferrujados e pregos. Foi iniciada a conversa sobre os perigos do lixo inorgânico e as doenças que eles poderiam trazer para a aldeia. Fizemos um estudo sobre a Dengue e o Tétano: As causas, conseqüências, sintomas, como tratar e como evitar. Com o lixo orgânico foi trabalhado sua importância para as plantações e construído uma compostagem orgânica ( processo natural de quimificação por que passam os restos animais e vegetais para transformarem-se em adubo orgânico). Todo esse trabalho foi realizado de acordo com entrevistas com os velhos da comunidade, pois alguns conceitos que não conheciam e precisavam ser construídos, os professores não poderiam decidir sozinhos. Um exemplo foi o caso do lixo orgânico e inorgânico. Em reunião no Warã, os homens decidiram que, na língua Xavante ficaria: “coisas que a terra come e coisas que a terra não come porque 68 Em construção: a escola desejada faz mal a ela”. Durante a construção da compostagem notava-se a curiosidade das crianças e a descrença dos adultos (homens e mulheres, inclusive professores) sobre aquele trabalho. Eles não compreendiam que todo aquele material fosse transformar em adubo orgânico, ou melhor, como eles dizem “comida para as plantas”. Do mesmo modo ocorreu com os materiais que eles carpiam em volta da aldeia e colocavam fogo. Começamos a dizer que não precisavam queimar, pois não fazia bem para a terra. Então iniciamos o processo de montôos desses restos vegetais. Eles não acreditavam, mas fizeram para ver. O resultado foi mais rápido do que a compostagem. Depois de dois meses verificamos (com o olhar de toda a comunidade) que realmente o lixo tinha se tornado terra “boa”. A partir daquele dia era muito comum ver os velhos e as mulheres fazendo montôos de capim. Não se viu o fogo subir em volta das aldeias, pelo menos enquanto estávamos por lá. No mês seguinte, estavam ocorrendo casos de disenteria. Todo o planejamento foi modificado para trabalhar conforme a necessidade da comunidade. Então foi discutido sobre as fezes que eram “lixo orgânico”, mas que também, poderiam provocar doenças. Foi feito todo um estudo sobre as verminoses: como se dá a transmissão, os sintomas, como preveni-las e como curá-las. Foi preparado o soro caseiro. Também trabalhamos a inclinação do solo para a água, para perceberem como a enxurrada carregava com facilidade as fezes depositadas às margens do córrego. A questão da higiene é preocupante na aldeia, por isso a discussão sobre o processo de transmissão da verminose foi muito polêmica e até conflituosa para os professores e a própria comunidade escolar. Tudo foi discutido na língua. Em um certo momento foi lançada a grande questão: o que fazer? Xavante não gosta de sanitários. Qual seria a alternativa? Encontraram-na. Disseram que a solução era instruir as crianças a não fazerem suas necessidades próximo ao córrego nem do lado em que o terreno era inclinado para o córrego. Disseram que as outras medidas eram mais difíceis, como fazer soro caseiro, ferver água e que isso era coisa de “warazu”(não índio). Depois trabalhamos as questões da poluição e contaminação do solo, da água e até do ar, provocada pelas grandes queimadas, Também todas as doenças possíveis acarretadas pelas poluições 69 Cadernos de Educação Escolar Indígena citadas. Enfim, toda a discussão deste tema foi parar na transmissão de verminoses através dos alimentos e posteriormente, o estudo do aparelho digestivo. Para desenvolver este estudo voltamos na importância da higiene que se deve ter com os alimentos e também como se deve mastigá-los para que tenhamos uma boa digestão que, com essa medida, evitaremos várias doenças. Para essa compreensão fez-se necessário utilizar: pilão, água e arroz, para demonstrar como é feito o caminho do alimento desde a entrada na boca até a sua eliminação através das fezes. Houve vários questionamentos e surpresas. À medida que a experiência ia se desenvolvendo, os professores discutiam a importância da mastigação para a saúde dos Xavante. Como pode-se perceber nenhum conteúdo foi forçado, todos eles foram trabalhados em cima de problemáticas que a comunidade estava vivenciando. Lentamente os professores iam se empenhando . Os conteúdos e os objetivos a serviço da comunidade e não a serviço de uma grade curricular formal e rigorosa. A metodologia utilizada e os procedimentos pedagógicos adotados tinham um propósito básico: buscar os caminhos mais próximos, mais viáveis e mais fáceis de compreensão para atingir os objetivos perseguidos. Em todo esse processo foram construídos cartazes ilustrados, textos informativos que foram afixados na sala de aula, realizadas pesquisas de campo, através de entrevistas com as mães, velhos e várias fontes bibliográficas sobre o assunto, algumas experiências para entender o processo, enfim, interligar tudo isso com os saberes da comunidade. Quais recursos ou medicamentos eram utilizados na medicina tradicional com relação às enfermidades estudadas. O que se tentou fazer foi um elo entre os dois saberes para resolver a problemática das doenças causados pelas poluições, contaminação e má digestão. Além desta educação escolar os Xavante já têm sua educação formalizada: os rituais, a casa de solteiro, na qual se processa a formação dos homens para a sociedade Xavante, as formas de classificação social e nominação ( masculina e feminina), os cantos, enfim, uma infinidade de aspectos educacionais que exigem uma ação pedagógica organizada 70 Em construção: a escola desejada e diferenciada. Todas essas formas fazem crescer o capital social do povo Xavante de Pimentel Barbosa. Segundo Bourdieu: O capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns ( passíveis de serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos), mas também são unidos por ligações permanentes e úteis ( Bourdieu, 1998:67). São exatamente estas ligações permanentes e úteis que esses grupos estão buscando para não perderem sua coesão e garantir a reprodução de sua cultura tradicional e isso inclui tudo aquilo que é habitual para eles. Os seus hábitos, conforme Luckman e Berger, 1998, constituem-se numa institucionalização construída no curso da vida social e da produção de conhecimento que faz com que o grupo fortaleça sua identidade étnica e cultural. O volume do capital social que um indivíduo possui depende das relações que ele pode mobilizar, seja o capital cultural ou simbólico. A união das pessoas e o valor cultural com que os Xavante de Pimentel Barbosa vêm se mantendo desde o século XVIII é que fazem com que eles sejam diferentes dos outros Xavante. Por isso o pedido de uma escola diferenciada. Eles precisam e necessitam a todo custo de preservar sua cultura. Brandão afirma: “Educação é um dos meios de que os homens lançam mão para criar guerreiros ou burocratas. e ajuda a pensar em tipos de homens. Mais do que isso, ela ajuda a criá-los, através de passar de uns para os outros o saber que os constitui e legitima (Brandão, 1995:11). Eles sabem que a educação escolar é muito importante na educação do homem branco, sabendo de sua força, eles sabiamente sentem que ela pode ajudá-los na re-construção de suas tradições. A antropóloga Edir Pina de Barros afirma essa necessidade dos povos indígenas buscarem uma educação diferenciada: “É nesse campo de comunicação, o da etnicidade, intensificada pelo novo processo de mundialização, que a educação escolar diferenciada assume, para os próprios povos indígena, importância 71 Cadernos de Educação Escolar Indígena cada vez maior, fazendo-se presente, enquanto condição necessária, em seus projetos de autodeterminação (Barros, 1997:30) Do ponto de vista indígena, a educação escolar diferenciada é vista como fonte de resistência e luta. O contato com uma cultura mundializada é permanente. Onde se refugiar? Não há mais lugar. As margens dos rios das Mortes e Araguaia já estão ocupadas, só resta a esses grupos deixar sua vida semi-nômade, viver e lutar pelos seus bens comuns: sua tradição, sua caça, sua pesca, sua coleta, enfim, fortalecerem-se culturalmente. Daí o porquê deste grupo querer uma escola diferenciada, uma escola que ajude a preservar a sua cultura. A educação que se busca não fazia parte de seus conhecimentos e práticas, mas após o contato é inevitável. Para isso, os Xavante de Pimentel Barbosa a querem como aliada de seus interesses, de seus conhecimentos, integrando-a como instrumento de reprodução da sua cultura. Enfim, pode se concluir que a construção da escola desejada foi e é muito importante para as comunidade envolvidas. Através deste elo entre os dois conhecimentos: Xavante e sociedade nacional sem que um se sobreponha ao outro é que será possível ir construindo uma escola formativa para auxiliar na melhoria de qualidade de vida dos Xavante. Estando ainda em construção, resta ao Projeto fazer a avaliação dos recursos didáticos produzidos durante esse processo. Esse recurso avaliativo deve estar em consonância com o propósito da escola diferenciada. É necessário que estes materiais sejam úteis para a continuidade do ser e viver Xavante. Estes materiais devem estar a serviço do grande objetivo desta escola: a educação escolar como um meio de afirmar sua identidade étnica e cultural. Bibliografia BARROS, Edir Pina de . “Reflexões sobre escolar indígena na conjuntura atual” In Urucum Jenipapo e Giz: Educação escolar indígena em debate. Conselho de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso. Ed. Entrelinhas. Cuiabá/MT 1997. 72 Em construção: a escola desejada BERGER P. L. e LUCKMAN, T. A construção social da realidade. Petrópolis/RJ: Vozes. 1998. BOURDIEU, P. e PASSERON, J.C. A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves Ed. 1982. BRANDÃO, C.R. O que é educação. Brasiliense, São Paulo, 1995. PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS ( 1ª A 4ª SÉRIE) Volume 4 – Ciências Naturais. Secretaria de ensino Fundamental, Brasília, DF 1997. Volume 8- Apresentação dos Temas Transversais e Ética. Secretaria de ensino Fundamental, Brasília, DF 1997 Volume 9 – Meio ambiente e saúde. Secretaria de ensino Fundamental, Brasília, DF - 1997. RCNEI – Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Min. da Educ. e do Desp. Sec. De Educ. Fundamental, Brasília, 1998. 73 Arqueol ogia e educação escol ar Arqueologia escolar indígena na II Etapa dos Cursos de Licenciatura (T urma 2005-2009) (Turma Luciano Pereira da Silva* O presente texto tem por interesse apresentar algumas questões teóricas e metodológicas, assim como e especialmente, alguns resultados sobre a disciplina de Arqueologia realizada entre 29/01 a 04/02/2006 com a turma de professores indígenas 2005-20091 do 3º Grau Indígena. Chamo a atenção para o fato que este texto foi escrito em especial, para os professores indígenas do 3º Grau Indígena. A Arqueologia no Projeto 3º Grau Indígena Em janeiro de 2002, realizei junto à turma 2001-2006 do 3º Grau Indígena, uma oficina sobre Arqueologia, que se pautou em apresentar os objetivos, o objeto e os métodos da arqueologia. Essa atividade foi realizada com 200 professores indígenas de 23 etnias do Estado de Mato Grosso e outras 14 de outros Estados da federação2. *Professor do departamento de História da UNEMAT, campus de Cáceres, Mestrando do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Grande Dourados-MS, com centralização na área de Arqueologia. Docente no PROESI. Aweti, Bakairi, Bororo, Chiquitano, Ikpeng, Irantxe, Kalapalo, Karajá, Kayabi, Kuikuro, Nafukuá, Panará, Paresi, Rikbaktsa, Tapirapé, Suyá, Terêna, Umutina, Waurá, Xavante, Yawalapiti, Zoró. 1 Umutina, Bororo, Xavante, Paresi, Irantxe, Bakairi, Tapirapé, Karajá, Rikbaktsa, Nambikwara, Kayabi, Apiaká, Ikpeng, Mehinako, Kamaiurá, Juruna, Kuikuro, 75 2 Cadernos de Educação Escolar Indígena Como atividade, os professores indígenas responderam a seguinte indagação: “Como a Arqueologia pode contribuir para o conhecimento das sociedades indígenas”? Sobre essa questão, os índios produziram textos individualmente. (ver Silva, 2005) Outra ação realizada foi um grupo de trabalho (GT) realizado por ocasião da “1ª Conferência Internacional de Ensino Superior Indígena: construindo novos paradigmas na Educação” (CIESI, 2005). O GT teve por título “Arqueologia, História e Arquitetura Indígena”, e as recomendações foram as seguintes: 1. “O reconhecer a estreita relação entre essas áreas do conhecimento; 2. Considerar a diversidade dos processos históricos e sociais na construção das bases curriculares dos processos de formação e Educação Escolar Indígena nas áreas do GT; 3. Questionar as interpretações produzidas pelos historiadores dos índios acerca da História Indígena, levando em conta as idéias dos pensadores e historiadores índios; 4. Indagar sobre os modelos de arquitetura produzidos pelos não índios implantados nas aldeias, como escolas e unidades sanitárias, sem observar as especificidades de cada etnia; 5. Considerar a arqueologia como “fonte e documento” instrumental para o estudo e levantamento histórico-cultural de aspectos relacionados à arquitetura e a história indígena, de forma a contribuir para o fortalecimento e valorização da identidade indígena de cada etnia; 6. Dar visibilidade na educação escolar indígena às áreas da Arqueologia, Arquitetura e História”. (Silva; Portocarrero; Galvão, 2005: 198) Nesse contexto houve a proposta, por parte da coordenação do 3º Grau Indígena, para se realizar com a turma 2005-2009 a Kalapalo, Matipu, Trumai, Suyá, Munduruku, Kaxinawá (AC), Manchineri (AC), Wassu Cocal (AL), Baniwa (AM), Tikuna (AM), Baré (AM), Pataxó (BA), Tuxá (BA), Tapeba (CE), Tupinikim (ES), Potiguara (PB), Tukano (AM), Kaingang (RS e SC) e Terena (MS) 76 Arqueologia e educação escolar indígena... disciplina “Arqueologia e Habitação Indígena”, que foi realizada em janeiro e julho de 2006. Por mim foi ministrada a área de Arqueologia e pela arquiteta Josiani Galvão a parte de Habitação Indígena. Breve observação sobre a teoria arqueológica no contexto do curso A Arqueologia, assim como a História, em suas interpretações sobre as sociedades do passado e também do presente, tem como ponto de partida preocupações do presente e os contextos sociais aos quais estão inseridos os pesquisadores. Na situação atual, de afirmação de um grande número de grupos sociais (negros, índios, mulheres, imigrantes, migrantes entre vários outros), torna-se necessário reconstruir a imagem de diferentes grupos sociais, a partir da inserção de grupos de indivíduos, em suas manifestações sociais, culturais e políticas, que estiveram ocultos, excluídos, mascarados, marginalizados e silenciados ao longo da história. Na arqueologia internacional, os direitos humanos vêm sendo amplamente discutidos. Pautados na defesa das minorias e no questionamento da visão ocidental hegemônica é que se funda o Primeiro Congresso Mundial de Arqueologia (WAC 1), em 1986. Esse contexto abre a produção científica às vozes dos excluídos em torno das relações de poder no interior da disciplina e dos conflitos econômicos e políticos (FUNARI et. , 1999). É importante considerar também a atenção existente em relação a questões como: a ética, o caráter público da arqueologia, gênero, a participação de povos e organizações indígenas (FUNARI et al, NEVES, PODGORNY 1999). Esse é o fundo teórico que refletiu, pautou e orientou a disciplina de Arqueologia em janeiro e julho de 2006. Questões de orientação metodológica do curso Sobre a execução do curso em sala, em um primeiro instante foi feita a apresentação dos aspectos teóricos sobre a disciplina, 77 Cadernos de Educação Escolar Indígena chamando atenção das possibilidades para: a prática e o exercício de interlocução 3 (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000); produção de conhecimento científico a ser realizado pelos professores indígenas via prática da pesquisa; teoria arqueológica que vem sendo discutida no âmbito internacional; o papel que os professores indígenas podem ter enquanto produtores de conhecimento; a necessidade de levantar aspectos relacionados à produção do registro arqueológico e da cultura material entre as populações indígenas presentes. Outra situação discutida no momento introdutório do curso se referiu a aspectos conceituais relacionados à Antropologia Histórica. Nesse sentido, a idéia de cultura que procurou ser pensada estuda as sociedades em um processo dinâmico, ligado aos seus aspectos históricos e sociais. Essa perspectiva é pensada por Pacheco de Oliveira (2001), que chama atenção para questões como: 1) a idéia crítica em relação ao conceito de “aculturação”, que é impreciso e sem valor operativo e analítico; 2) da infundada e perigosa idéia de autenticidade de culturas. Objetivamente se procurou um campo de análise “[...] que fuja de uma idealização do passado e de uma pureza original, da naturalização da situação colonial e ainda de uma etnologia das perdas culturais (PACHECO DE OLIVEIRA, 1999: 118). Em um segundo momento, foram feitas colocações relativas à definição e à conceituação do que é a arqueologia, seus objetivos, objeto e metodologias, refletindo o diálogo que deve estabelecer com a história e a antropologia. E compreender a Arqueologia como uma disciplina das ciências humanas, e que utiliza outras áreas do conhecimento, como das ciências naturais, exatas e da linguagem em suas análises. Desenvolvidos esses pontos, iniciou-se um processo de pontuar a etnoarqueologia, especialmente no contexto brasileiro. Sendo importante acentuar que, no Brasil é bastante interessante e possível construir uma história indígena que permita uma reflexão mais Essa prática possibilita a maior chance de se criar um campo de interlocução, por minimizar o autoritarismo que existe nas pesquisas, mesmo aquelas que se diaem mais neutras e objetivas. Com o exercício da interlocução se cria um espaço e uma “relação dialógica”, em que o confronto entre culturas pode ser transformado em “encontro etnográfico” com a “fusão de horizontes” e um “diálogo entre iguais” (Cardoso de Oliveira, 2000: 23-24) 3 78 Arqueologia e educação escolar indígena... aprofundada sobre as regiões que apresentam uma continuidade cultural e diferentes processos históricos (LANDA, 2005). A metodologia adotada para o curso foi a da prática da pesquisa sobre aspectos da produção da cultura material nas comunidades em que os professores indígenas estão inseridos. Foram ressaltadas questões como: os aspectos simbólicos e sociais na materialidade em diferentes culturas; a produção, o uso e o descarte de materiais que se relacionam às variáveis ecológicas; as escolhas culturais e sociais na elaboração, na utilização e no abandono de produtos materiais; a distribuição espacial e o uso do espaço; os sistemas de assentamento e a cronologia; áreas de atividade intra e inter-sítios (LANDA, 2005). Sobre as atividades desenvolvidas no curso A carga horária integral do curso foi de 48 horas-aula, sendo dividida pelas duas áreas de conhecimento, Arqueologia e Habitação Indígena, portanto, 24 horas para a disciplina de Arqueologia. Essa área teve como objetivo apresentar, discutir e enfocar questões relacionadas à produção de um conhecimento específico e diferenciado sobre o registro arqueológico e a cultura material, a saber, o conhecimento indígena. Esse tipo de interesse e conhecimento gerado, por parte dos próprios indígenas, pode ser também caracterizado como “ciência indígena”. Nesse sentido, habilita a arqueologia a contribuir para discussões em torno da concepção, da formação e da consolidação desse termo, “ciência indígena”. Esse foi um dos norteadores da disciplina, discutir a inserção intelectual indígena no discurso científico da arqueologia. O curso teve a perspectiva de fornecer alguns elementos técnicos e científicos para o estudo de aspectos culturais relacionados à produção do registro arqueológico do passado e do presente. Tornase importante considerar as seguintes intenções: 1) realizar o registro da cultura material produzida; 2) levantar e registrar técnicas de produção; 3) discutir os aspectos simbólicos e sociais da cultura 79 Cadernos de Educação Escolar Indígena material; 4) polemizar sobre a questão da desterritorialização e de seus efeitos sobre a organização espacial e a cultura material, procurando entender as continuidades e descontinuidades no processo de interação entre as sociedades indígenas e a não-indígena. As atividades de pesquisa que foram desenvolvidas pelos professores indígenas objetivaram: levantar aspectos sobre a produção do registro arqueológico no espaço doméstico (equipamentos domésticos e de trabalho); a organização espacial da aldeia/terra indígena, considerando a roça, a horta (quando houver), as árvores frutíferas, a mata/cerrado e os locais onde estão as plantas medicinais. Sobre esses pontos, durante a explanação, foram colocadas questões como: divisão sexual do trabalho; os locais para o cultivo da terra, o que é plantado; motivações sociais e organização; estruturas físicas montadas e dimensões; ambientes onde estão localizadas e onde são encontradas; o conhecimento e o domínio existente sobre o ambiente; e os espaços significativos/simbólicos e representativos. Nesse contexto de produção de conhecimento por parte dos professores indígenas foram produzidos os seguintes materiais e tabelas: a) Tabela 1 - Tralha doméstica e de trabalho; b) Tabela 2 - Lista de fauna utilizada na confecção de artefatos; c) Tabela 3 - Lista de flora utilizada na confecção de artefatos; d) Tabela 4 - Lista de artefatos de uso ritual; e) Produção de texto – Como é a organização espacial da sua comunidade, aldeia, povo; f) Produção de texto – Qual foi o impacto do processo de desterritorialização na produção da cultura material em sua comunidade. 80 Arqueologia e educação escolar indígena... Tabela 1: Tralha doméstica e de trabalho (Modelo de tabela existente no capítulo, “Equipamento doméstico e de trabalho”, de Lúcia Hussak Van Velthem, contido na obra Suma Etnológica Brasileira-Tecnologia Indígena Nome em Português Nome em língua indígena Confecção (M/F) Uso (M/F) Matériaprima utilizada Observações 1) Utensílios para transporte 2) Utensílios para o preparo de alimentos 3) Utensílios para servir e armazenar alimentos 4) Utensílios para conforto pessoal 5) Utensílios para limpeza 6) Implementos para o preparo de artefatos Tabela 2: Lista de fauna utilizada na confecção de artefatos Nome português Nome em língua indígena Nome português Nome em língua indígena Utilização para confecção de que artefato/parte utilizada Risco de escassez Observações sobre o artefato e sua importância (o simbólico, o histórico, o cultural e a técnica) Tabela 3: Lista de artefatos de uso ritual Fitofisionomia Utilização para confecção de artefato Risco de escassez Observações sobre o artefato e sua importância (o simbólico, o histórico, o cultural e a técnica) Tabela 4: Lista de flora utilizada na confecção de artefatos Nome português Nome em língua indígena Matéria prima utilizada Qual é o significado do artefato 81 Cadernos de Educação Escolar Indígena Tabela 5: Lista de outras matérias primas utilizadas na confecção de artefatos Nome português Nome em língua indígena Utilização para confecção de artefato/parte utilizada Risco de escassez Observações sobre o artefato e sua importância (o simbólico, o histórico, o cultural e a técnica) As atividades, durante a Etapa Presencial de janeiro, foram todas realizadas em grupo, assim como as apresentações, já que, após o desenvolvimento das pesquisas e atividades, aos professores índios cabia a tarefa de apresentar o que haviam feito. Os trabalhos foram realizados por tronco lingüístico, etnia ou por terra indígena, ficando a critério dos professores cursistas a escolha do grupo. Em relação à Etapa Intermediária (momento em que os professores cursistas desenvolvem atividades entre as duas etapas presenciais, de janeiro e julho), levando em consideração, em alguns casos, o desconhecimento dos cursistas sobre aspectos relativos às pesquisas solicitadas, algumas atividades foram propostas. Foi solicitado que eles fizessem a revisão e a ampliação das pesquisas efetivadas durante a Etapa Presencial de janeiro. Outro ponto referente às atividades da Etapa Intermediária foi à solicitação de novas pesquisas sobre os seguintes temas: a) cerâmica; b) armas; c) armadilhas; d) pilão e mão-de-pilão; e) resíduos sólidos; f) barcos; g) produção da cultura material feita para ou pelas crianças. Há de se considerar que pontos e orientações técnicas e culturais sobre cerâmica, armas e armadilhas estão contidos na “apostila” deixada para os cursistas, na verdade, resumos fiéis sobre alguns desses ítens contidos na obra Suma Etnológica Brasileira Tecnologia Indígena (Lima, 1987; Chiara, 1987). Além disso foi realizada uma apresentação sobre os temas em sala de aula. Sobre os demais temas houve a exposição em sala de aula durante a orientação dessas atividades (Landa, 2005; Polits, 1999). Para o desenvolvimento das atividades da Etapa Intermediária, os professores indígenas contariam com a participação e a colaboração da comunidade. 82 Arqueologia e educação escolar indígena... Vale salientar que, para a realização das pesquisas nas aldeias, houve a orientação para que elas fossem efetivadas a partir da oralidade. Foi ressaltado também que atividades de tentativas de escavação em sítios arqueológicos, sem um planejamento, recursos, acompanhamentos técnicos e a regularização da pesquisa junto às instituições responsáveis, como o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), podem ser prejudiciais e maléficas ao sítio arqueológico. Receptividade, interesses e percepções dos professores indígenas Agora serão apresentados alguns pontos que refletem o que os professores indígenas acharam da disciplina de Arqueologia, ou seja, a percepção que tiveram sobre o curso de janeiro/fevereiro de 2006. As colocações dos professores indígenas partiram de três perguntas, que ao final de cada uma das disciplinas, foram encaminhadas pela coordenação do 3º Grau Indígena para serem respondidas pelos professores indígenas cursistas. As três questões respondidas sobre a disciplina de Arqueologia permitem analisar: a participação do discente na disciplina, o grau de interesse, o que mais o interessou na área de conhecimento, a necessidade de aprofundamento em algum dos temas apresentados e a atividade docente, entre outras questões. As perguntas foram as seguintes: 1) Como você avalia a sua participação nas aulas de Arqueologia e Habitação Indígena? 2) Dos conteúdos trabalhados no componente curricular Arqueologia e Habitação Indígena, quais você gostaria de aprofundar na próxima etapa? 3) O que mais chamou a sua atenção nas aulas de Arqueologia e Habitação Indígena? 83 Cadernos de Educação Escolar Indígena Trata-se de perguntas abertas e subjetivas, portanto as respostas assim o são também, e apresentam uma grande variedade de interesses e objetivos sobre a disciplina. Os dados foram quantificados em forma de tabela, sobre as quais estão apontadas as referências dos discentes, considerando que em cada uma das perguntas o discente pode ter se referido a mais de uma questão, interesse, crítica ou apontamento. Os dados tabulados e quantificados abaixo indicam o número de professores indígenas que fizeram cada uma das colocações. 1 - Como você avalia sua participação nas aulas de arqueologia e habitações indígenas? Colocações dos professores indígenas cursistas 1. Novos e variados conhecimentos 2. Valorização e conhecimento do passado, história, cultura, costume. 3. Intercâmbio e debate. 4. Trabalho docente (clareza, metodologia). 5. Produção de pesquisa: desenhos, mapas, textos e tabelas. 6. Socialização e envolvimento da comunidade; busca de conhecimento do passado. 7. Trabalho em grupo. 8. Materiais e fontes arqueológicas. 9. Desterritorialização. 10. Conteúdos. 11. Cultura material como comportamento humano, manifestação física do homem, diversidade das relações sociais e organizações. 12. Variedades de materiais e diversidade cultural. 13. Resgate e revitalização do que foi deixado. 14. Interdisciplinaridade. 15. Teoria e método científico (dados e proposições, pósprocessualismo). 16. Fases da Arqueologia. 17. Demonstrar situação atual. 18. Realizar o registro da cultura material. 19. Relação Arqueologia e Habitação Indígena. 20. Poder perguntar. 84 Nº de professores indígenas que fizeram 20 11 10 10 08 07 06 06 05 04 04 04 03 02 02 02 02 02 02 02 Arqueologia e educação escolar indígena... 21. Tempo escasso da disciplina. 22. Estudo do antigo. 23. Economia Indígena. 24. Para realizar um trabalho efetivo na escola. 25. Origens da agricultura, sociedades complexas, cultura e comportamento. 26. Denominações e novas palavras. 27. A identificação de locais e sítios arqueológicos. 28. A não subordinação da Arqueologia em relação as outras disciplinas. 29. O caráter ideológico da Arqueologia. 30. Excesso de teoria. 31. Como é feita a pesquisa. 32. Similaridade da produção de cerâmica entre diferentes grupos. 33. Cultura material e festas culturais. 34. Artes dos povos do passado. 35. Antropologia física. 36. Não ter que estudar Arqueologia com teoria. 37. Importância para quando se formar arqueólogo. 38. Etnoarqueologia. 39. Técnicas, pesquisa e levantamentos (estratigrafia, solos). 40. Muita pesquisa docente. 41. Não é só o estudo do passado, mas também o presente. 42. Comparação do antigo com o atual. 43. Resgate ambiental e cultural. 44. Recordação e saudade. 45. Sítio arqueológico como um lugar significativo. 46. Reconhecer a realidade da comunidade. 47. Conhecimento para questões indígenas no geral. 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 2 - Dos conteúdos trabalhados no componente curricular Arqueologia e Habitação Indígena, quais que você gostaria de aprofundar na próxima etapa? Colocações dos professores indígenas cursistas 1. Desterritorialização. 2. Procedimento em laboratório, classificação, pesquisa e trabalho do arqueólogo, avaliação do trabalho do arqueólogo. 3. Organização Espacial. Nº de professores indígenas que fizeram 12 11 08 85 Cadernos de Educação Escolar Indígena 4. Conhecimento que é passado de geração para geração, reconhecer ancestrais. 5. Especificar os materiais arqueológicos utilizados. 6. Ecofatos e biofatos. 7. Que seja realizada aula de campo e observações emic. 8. Fases da Arqueologia: diversidade ocidental clássica. 9. Datação. 10. Etnoarqueologia. 11. Osteoarqueologia. 12. Trabalho com alunos na escola. 13. Conhecimento para revitalização e retorno na comunidade. 14. Sítio arqueológico. 15. Interdisciplinaridade: Arqueologia-HistóriaAntropologia. 16. Diversidade dos temas e tipologia. 17. Socialização de conhecimento com a comunidade. 18. Materiais arqueológicos: passado, presente e modernos. 19. Não misturar as disciplinas: Arqueologia e Habitação Indígena. 20. Tabela de artefatos rituais. 21. Arqueoastronomia. 22. Sítios arqueológicos do Brasil. 23. Arqueologia de outros povos e etnias. 24. Origem da cultura complexa; cultura e comportamento. 25. Como saber território em um determinado período. 26. Sistema social, modelos. 27. Nova natureza dos projetos arqueológicos: Arqueologia acadêmica, de contrato e pública. 28. A cultura material e o simbólico. 29. Fazer comparações. 30. Como identificar e atribuir etnia a um artefato cerâmico. 31. Alteridade e valor cultural. 32. Matérias primas. 33. Subsistência e dieta. 34. Como era feita a panela de comida nos antepassados. 35. Armadilhas e sua classificação. 36. Conhecer o mito pela Arqueologia. 37. Realização de seminários. 38. Trabalho em grupo por tronco. 39. Conhecer cultura material na língua do outro parente. 40. Estudar mais teoria.. 41. Estudo do passado humano. 42. Significado da palavra polissemia. 86 07 06 06 06 06 06 04 03 03 03 03 03 03 02 02 02 02 02 02 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 Arqueologia e educação escolar indígena... 43. As primeiras artes. 44. Mais tempo para disciplina. 45. Tabela de flora e fauna. 46. Importância para nós professores índios. 47. Apoio dos mais velhos. 48. Zooarqueologia; arqueobotânica. 49. Relação com a saúde, produção e organização espacial da comunidade. 50. Porque tem sítio arqueológico na minha aldeia. 51. Arqueologia do presente. 01 01 01 01 01 01 01 01 01 3 - O que mais chamou a sua atenção nas aulas de Arqueologia e Habitação Indígena? Colocações dos professores indígenas cursistas 1. Intercâmbio: explicação professor aluno; contar história da nossa vida; debates. 2. Desterritorialização. 3. Produção de textos, desenhos e tabelas. 4. Organização espacial. 5. Resgate, revitalização e preservação cultural. 6. Materiais arqueológicos. 7. Bagagem para aplicação em sala de aula; aula diferenciada; método de ensino; melhoria cultural. 8. Biofato. 9. Para socializar e aplicar o conhecimento na aldeia. 10. Levantamentos e pesquisa de campo. 11. Ecofato. 12. Arqueologia e anexos funerários. 13. Diversidade cultural. 14. Interdisciplinaridade. 15. Datação. 16. Etnoarqueologia: diferentes historicidades e levantamentos; continuidade cultural. 17. Aquilo que desaparece e resiste ao tempo 18. Divisão social do trabalho. 19. Estudo do antigo e do presente também. 20. Comparação passado-presente. 21. Lingüística-Arqueologia. 22. Conhecer a história. 23. Arqueologia – oralidade. Nº de professores indígenas que fizeram 16 13 11 09 07 07 06 06 06 05 04 04 03 03 03 03 03 02 02 02 02 02 02 87 Cadernos de Educação Escolar Indígena 24. Não se rouba ou carrega; proteção de sítios para a pesquisa. 25. Pesquisas da etapa intermediária. 26. Trabalho em grupo por tronco ou família lingüística. 27. Matéria prima para artefato. 28. Similaridade das palavras Arqueologia e Antropologia. 29. Definição de Arqueologia. 30. Pesquisa junto aos mais velhos. 31. Arqueologia e oralidade. 32. Novos conhecimentos. 33. Saudades. 34. Os mais jovens complementarem a pesquisa. 35. Realizar o registro. 36. Cosmovisão – Arqueologia. 37. Pintura rupestre. 38. Número reduzido de arqueólogos no Brasil. 39. Lugares significativos. 40. Trata a comunidade também, não é só escavação. 41. Primeiros homens. 42. Estudo do passado e antepassados. 43. Apoio aos professores continuarem a aprender e ensinar sobre os povos indígenas do Brasil. 44. Trocas culturais. 45. Falta de diálogo entre a Arqueologia e a Antropologia. 46. Procedimentos legais para pesquisa em uma aldeia. 47. Arqueologia brasileira. 48. Arqueologia no mundo. 49. História da Arqueologia, teoria, questões, debates, abordagem científica. 02 02 02 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 01 Pode-se verificar o grande número de colocações feitas pelos professores indígenas, valendo ressaltar questões como processos de desterritorialização, idéias e concepções sobre a arqueologia, a metodologia do curso, a possibilidade da comunidade participar das pesquisas e as atividades realizadas durante o curso. Ações continuadas na Arqueologia Pública e o 3º Grau Indígena Uma das questões importantes a considerar sobre a disciplina de Arqueologia no Projeto 3º Grau Indígena, é que ela tem propiciado 88 Arqueologia e educação escolar indígena... a continuidade na orientação e no levantamento de questões a serem pensadas pelos professores indígenas. Acredito que foi reavivada ou despertada, ao considerar as colocações e os posicionamentos dos professores índios durante os cursos, uma série de reflexões sobre a forma como a cultura material pode ser refletida no interior da comunidade. Esse tipo de pensamento pode levar a questionamentos sobre idéias e concepções de patrimônio histórico e sua relação com processos de educação escolar. Foram apresentados neste texto alguns aspectos norteadores para o desenvolvimento do curso de janeiro, assim como propostas de atividades a serem realizadas durante a Etapa Intermediária. E também, e principalmente, a leitura que os professores indígenas tiveram sobre a disciplina de janeiro. A disciplina de julho/2006 teve como propósito realizar uma avaliação sobre a recepção e a percepção que os professore indígenas tiveram sobre as atividades de pesquisa realizadas durante a intermediária. Outro tema que foi abordado nessa etapa foi o Patrimônio Histórico Urbano. E ainda uma discussão sobre pinturas rupestres que pautou-se em realizar um exercício de significações para figuras rupestres que estavam contidas na “apostila” (PROUS, 1992; 1991). Sobre as atividades da Etapa Intermediária, entre janeiro e julho, foram colocadas as seguintes questões para serem respondidas e apresentadas oralmente: 1) Como foi a metodologia de pesquisa na aldeia (onde foi feita a pesquisa, com quem e o por quê) ? 2) O que a comunidade achou da pesquisa e sua importância? 3) O que você achou da pesquisa e sua importância? 4) Antes do curso de “Arqueologia” você já tinha ouvido falar em Arqueologia? Onde e o quê? 5) Para você o que é Arqueologia? 6) Qual é a importância da arqueologia para comunidade? As respostas indicam questões como: espaços e formas de socialização do conhecimento; organização e estruturação, ou seja, uma metodologia de pesquisa em terra indígena feita pelos próprios índios; esse tipo de atividade como uma face da universidade “branca”; a necessidade do retorno desse tipo de conhecimento e pesquisa para as próprias aldeias; a concepção indígena sobre Arqueologia. 89 Cadernos de Educação Escolar Indígena Foi possível deixar atividades referentes à Arqueologia para serem desenvolvidas durante a Etapa Intermediária, entre agosto/ 2006 e janeiro/2007. As questões são as seguintes: Atividade 1 – Essa atividade pode ser respondida por você ou por pessoas da comunidade. Escreva se possível o nome do museu ou instituição de pesquisa que é conhecida: a) O que você acha dos museus e qual é a sua importância? b) O que você pensa sobre o uso da cultura material em atividades de museus e instituições de pesquisa? c) Fale sobre o que você acha das atividades de pesquisas arqueológicas e coleções de materiais arqueológicos de povos indígenas extintos e vivos realizadas por museus e instituições de pesquisa. d) Como você acha que pode ser a relação entre a sociedade indígena, os museus e as instituições de pesquisa? Diga de que forma os povos indígenas podem contribuir nas atividades desses locais, assim como qual pode ser a contribuição dessas instituições em relação às questões indígenas. Atividade 2 – Faça o registro das figuras rupestres existentes na sua terra indígena, ou que sejam conhecidas por pessoas da sua comunidade. Fale sobre o significado. Atividade 3 – Qual seria o nome dado a Arqueologia na sua língua indígena? Explique por que e o que significa. É importante assinalar a continuidade de atividades relacionadas a Arqueologia nessa Licenciatura. A disciplina permite perceber posições e interesses, que são continuamente refletidos e aplicados pelos professores indígenas em seu cotidiano e na sua prática na aldeia e na escola. Assim como existe a relação e a expressão da comunidade sobre as ações e percepções do professor indígena. Refletir questões e orientar, a partir da disciplina, a produção de conhecimento indígena há quase um ano, certamente já trás importantes resultados e desdobramentos para os professores indígenas e também para a comunidade. 90 Arqueologia e educação escolar indígena... Conclusão Talvez seja possível afirmar, que os professores indígenas tiveram um contato estreito sobre alguns aspectos da pesquisa arqueológica e o mundo de suas interpretações. Algumas das etapas sobre a pesquisa arqueológica não foi ainda possível de ser realizada, como participação em escavação arqueológica (mesmo em sítio simulado) e a etapa de laboratório. São questões do método arqueológico importantes de serem conhecidas e refletidas por eles, mas que apresentam algumas limitações, entretanto são certamente possíveis de serem pensadas e planejadas. Mas é importante falar que a arqueologia certamente não se reduz apenas a escavação arqueológica, mas sim, a escavação configura-se numa etapa da pesquisa. Entretanto, pode-se falar que um círculo de atividades e consultas foi fechado: aquele que pensa a produção da cultura material realizada pelos professores indígenas; um diagnóstico sobre a importância da Arqueologia para as pessoas que estiveram de alguma forma envolvidas nas pesquisas; um levantamento de conceitos e definições sobre a arqueologia. Por outro lado, as atividades propostas em julho/2006 a serem desenvolvidas na Etapa Intermediária permitirão observar: questões referentes a compreensão que diferentes indígenas têm sobre a cultura material indígena que é pesquisada e expostas em museus e instituições de pesquisa; como pode ser a interação entre sociedades indígenas e essas instituições; e também uma pesquisa de interpretação de figuras rupestres. Portanto, é possível dizer que foi pensado: a produção do registro arqueológico; o caráter público da Arqueologia; uma metodologia de pesquisa nessa área considerando a especificidade de trabalhar com professores indígenas. Em termos conceituais, as questões discutidas se referem também a dois temas principais: educação e patrimônio. Pois se trata de um curso voltado ao estudo da arqueologia e produção do registro arqueológico que é desenvolvido com professores indígenas. Discuti 91 Cadernos de Educação Escolar Indígena pontos relacionados a concepções sobre o que é a arqueologia, o significado de patrimônio, cultural material e arqueologia para esses professores, quais seus interesses e qual a importância desse tipo de conhecimento, ou seja, suas percepções sobre arqueologia, patrimônio e educação. Esse texto é parte dos resultados de um curso que teve por objetivo primordial, contribuir para que os olhos dos professores indígenas se dirigissem para a cultura material. Bibliografia CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. O trabalho do antropólogo. São Paulo: EDUSP, 2000. CHIARA, Vilma. Armas: bases para uma classificação. In Suma Etnológica Brasileira – Tecnologia Indígena. In RIBEIRO, Darcy (editor). Suma Etnológica Brasileira – Tecnologia Indígena. Editoras Vozes. Petrópolis. 1987. COOPER, John M. Armadilhas. In RIBEIRO, Darcy (editor). Suma Etnológica Brasileira – Tecnologia Indígena. Editora Vozes. 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A problemática dos “índios misturados” e os limites dos estudos americanistas: um encontro entre antropologia e história & Entrando e saindo da “mistura” os índios nos censos nacionais. Ensaios em Antropologia Histórica, 1999, Rio de Janeiro: 99-151. RATHZ, Philip. O que é Arqueologia? Convite à Arqueologia. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1989. SILVA, Luciano P. Arqueologia, Educação indígena e desenvolvimento. Cadernos de Educação Escolar Indígena- 3º Grau Indígena. Barra do Bugres: UNEMAT, n. 1, 2005: 69-80,v. 4. SILVA, Luciano P. PORTOCARRERO, José A. GALVÃO, Josiani. História, Arqueologia e Arquitetura na educação escolar indígena. In I Conferência sobre ensino superior indígena: cosntruindo novos paradigmas na educação. Barra do Bugres: UNEMAT, 2005: 195-198. VAN VELTHEM, Lúcia H. Equipamento doméstico e de trabalho. In RIBEIRO, Darcy (editor). Suma Etnológica Brasileira – Tecnologia Indígena. Petrópolis. 1987.Vozes. 93 “Karajá é um Bicho T raiçoeiro”: Traiçoeiro”: al guns estereótipos presen tes em alguns presentes nosso corpus Maristela Sousa Torres* O presente trabalho é parte da pesquisa realizada no contexto da elaboração dissertação de mestrado, cujo propósito deste estudo consistiu em compreender as relações interétnicas entre alunos Iny Mahadu1 e a comunidade escolar de três municípios na região do Araguaia, analisando assim, através das vozes e atitudes dos sujeitos envolvidos neste processo, como a escola tem se posicionado diante das recomendações e diretrizes das leis da educação que propõem a incorporação do interculturalismo como parte integrante aos currículos escolares, e como um meio de valorização da diversidade étnicocultural e, dessa maneira, promover a eliminação das desigualdades raciais. “(...) Quando as pessoas chegam ao posto e tem Karajá, eles também falam: Aqui no posto tem mais índio do que gente”. (Aluna não indígena – São Felix do Araguaia). Segundo Goffman (1978, p.11), estigma é um termo criado pelos gregos para se referirem a sinais corporais com os quais se procurava evidenciar alguma coisa de extraordinário ou mau, sobre status moral de quem os apresentava. Estes sinais eram feitos através Maristela Sousa Torres é doutoranda em Antropologia pelo Programa de Ciências Sociais da PUC/SP. E-mail: [email protected] * Iny é a auto-denominação do Povo Karajá, Iny se refere à forma singular da autodenominação e Iny Mahadu a forma plural. O povo Karajá vive na região do Araguaia, nos Estados de Mato Grosso e Tocantins. 1 95 Cadernos de Educação Escolar Indígena de queimaduras ou cortes os quais serviam para identificar que o portador era um escravo, um criminoso ou um traidor, assim, uma pessoa marcada era considerada poluída e, portanto, deveria ser evitada em público. Para o autor, hoje em dia o termo é mais aplicado ao se referir a desgraça de uma pessoa, com a finalidade de transmitir um atributo depreciativo, portanto, o estigma é um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo. Desse modo, Goffman (1978 p.14) menciona três tipos diferentes de estigma. O primeiro como sendo as abominações do corpo, ou seja, as deformidades físicas. O segundo, as culpas de caráter individual, denominadas como: fraquezas, paixões tirânicas, crenças falsas e rígidas, desonestidade, distúrbio mental, prisões, vícios alcoolismo, homossexualismo, desemprego, tentativas de suicídio, comportamento político radical. E, finalmente, os estigmas tribais de raça, nação e religião, estes podem ser transmitidos através de linhagem e contaminar por igual todos os membros de uma família. Assim, por definição, acredita-se que alguém com um estigma não seja completamente humano (esta seria uma das razões de não considerar os Iny como humanos?) e, com base nisso, utilizam-se as mais variadas formas de discriminação através de estigmas específicos como: aleijado, bastardo, retardado, prostituta, “índio” e muitos outros que são utilizados como fonte de metáforas e representação, dos quais muitas vezes são citados sem mesmo a pessoa pensar no seu significado. Dessa maneira, o autor conclui que o estigma envolve não somente um conjunto de indivíduos que podem ser divididos em duas categorias: a de estigmatizados e a de normais, como também um processo social de dois papéis, no qual cada indivíduo participa de ambos, em alguma fase da vida. Para ele o normal e o estigmatizado não são pessoas, e sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos, em virtude de normas não cumpridas. Como no processo de estigmatização o que está em jogo são os papéis em interação e não os indivíduos, em muitos casos, aquele que é estigmatizado, em outros momentos pode utilizar-se de preconceito, estigmatizando pessoas em outros aspectos (GOFFMAN, 1978, p. 148-149). 96 “Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos... Segundo Elias e Scotson (1990), os elementos que levaram o grupo dos estabelecidos estigmatizarem o grupo dos outsiders, consistiram apenas no fato dos estabelecidos permanecerem no povoado desde longa data e os outsiders eram, no entanto os mais novos dos residentes. Não havia diferença de nacionalidade, ascendência étnica, “cor” ou “raça”, entre os residentes das duas áreas, e eles tampouco diferiam quanto a sua classe social. As duas eram de trabalhadores. Conforme Elias e Scotson (1990), os termos utilizados por um grupo, para estigmatizar outro, muda de acordo com as características sociais e as tradições de cada grupo, eles são utilizados dependendo dos sentidos atribuídos para ferir o outro grupo. Segundo os autores o próprio nome do grupo pode ser utilizado como um estigma, implicando assim, para os ouvidos do outro um efeito de sentido de inferioridade e desonra. Dessa forma, a estigmatização pode surtir um efeito paralisante nos grupos de menor poder. Concordamos com Elias e Scotson, quando eles colocam que o próprio nome do grupo é utilizado como forma de estigmatizaçâo, uma vez que o termo “Karajá” é muito utilizado pelos moradores locais, com sentido de estigmatização. Talvez por isso, eles preferem ser chamados Iny, sua autodenominação, por não soar com esse peso pejorativo, como meio de discriminar. O próprio termo “índio” carrega esse sentido discriminatório, uma vez que generaliza, atribuindo para todos os povos indígenas, um sentido único. Desse modo, cada povo faz questão de ser chamado como se autodenomina, o que pode ser uma maneira de se afirmar enquanto identidades próprias conforme observa Meliá: “A autodenominação de muitos povos indígenas reflete claramente que eles se consideram a verdadeira expressão da natureza humana, que eles são “a gente”, ideal de toda a educação. Os Guarani se autodenominam AVA (homem adulto), ou MBYÁ (gente), e ainda com outros nomes, conforme as parcialidades e subgrupos étnicos. Os Paresi se autodenominam HALITI (pessoa humana). Os Iranxe, Myky (gente). Os Xavante, AWE (povo autêntico). Os Bororo, BOE (gente), Os Karajá Iny (gente)” (MELIÁ, 1997, p. 12). Ainda, somado ao peso do estereótipo do termo “Karajá”, eles têm que conviver com uma gama de outros estereótipos, dos quais 97 Cadernos de Educação Escolar Indígena ficaram evidentes nas nossas entrevistas alguns deles: Karajá não é gente, Karajá é bicho, Karajá é traiçoeiro, Karajá não é brasileiro legítimo, Karajá não trabalha, Karajá é preguiçoso, Karajá não faz roça, Karajá não precisa de terra, Karajá é besta, Karajá não sabe falar português, Karajá é fedido, Karajá é bebedor de pinga, Karajá come comida que não presta, Karajá come piolho, Karajá é burro só tem piolho na cabeça, Karajá é do mato, Karajá é traficante, Karajá é destruidor da natureza. Marilena Chauí (1985, p.56), atribui toda esta gama de estereótipos que existem sobre os povos indígenas, a uma sociedade onde a luta de classe é identificada apenas com os momentos de confronto direto entre as classes.De acordo com Chauí, os estereótipos com relação aos negros também não são muito diferentes, uma vez que os negros são considerados infantis, ignorantes, raça inferior e perigosa, assim definidos por muitos: “Um negro parado é suspeito; correndo, é culpado”. “O próprio termo Karajá, parece que essa palavra “Karajá” já tem peso, já tem uma discriminação. Qualquer coisa de errado que acontece já falam: Ah! Esse Karajá né, esse índio. Usa muito o termo “índio” como um deboche, como povo inferior, eles tratam como povo inferior por que eles têm algumas dificuldades, realmente com poucas exceções, da escrita com a língua portuguesa eles têm algumas dificuldades, então os demais falam: Esse índio não sabe ler não, só ler na língua deles, a não sei o que, faz deboche, assim, é uma forma de preconceito que eles enfrentam. Mas nós temos um “volume” de índio inteligente, índio inteligente no ensino médio. No 2º ano B, o melhor aluno da sala é um Karajá, é aquele que tira dez em tudo, lê bem, tem uma grafia muito boa. Não sei a história dele, não conheço a história deles, mas, é um ótimo aluno”.(Professor – Luciara) A fala desse professor demonstra esse peso discriminatório e essa generalização que acontece com os Iny Mahadu e com os povos indígenas de maneira geral. Ele inicia sua fala, relatando que há essa discriminação contra os Karajá, colocando-se de fora desse processo discriminatório, no entanto, ao afirmar que existe Karajá inteligente, ele se inclui nesse grupo dos discriminadores, quando afirma: “Mas nós temos um “volume” de índios inteligentes”. Desse modo, nos parece que coloca o índio na mesma condição de objetos, ele não se 98 “Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos... refere a pessoas, mas sim a coisas. Coloca-se também na mesma condição dos demais, uma vez que não conhece a história do aluno, e não houve o menor esforço para conhecê-la. Para termos uma noção de como estes estereótipos são construídos, colocaremos alguns deles, presentes em nosso corpus: “Eles diziam que eu era besta, diziam que era sujo, era assim, não sabia fazer nada, não sabia arrumar as coisas, não sabia falar português”. (Ex-aluna Karajá – São Félix). Elias e Scotson (idem, pg. 29), afirma que os grupos estabelecidos que dispõem de uma grande margem de poder, tendem a vivenciar seus grupos outsiders não apenas como desordeiros que desrespeitam as leis e as normas, mas também como não sendo particularmente limpos. Há, segundo ele, um medo por parte dos estabelecidos de que o contato com os membros do outro grupo contamina e, que esta contaminação, se daria pela anomia e pela sujeira. “Eles falam também da nossa comida, que comemos comida nojenta, que nós comemos macaco, comemos camaleão, que a nossa comida não é igual a comida de gente. Também falam que karajá é desorganizado, só presta para beber pinga, que moramos na aldeia, que a aldeia é suja, que a aldeia é nojenta, que índio não pode estudar na cidade porque índio é do mato, que índio tem que morar é no mato”.(Ex-aluno e professor – Aléia Majterytawa). Mais uma vez percebe-se a imposição de valores da cultura ocidental aos Iny Mahadu, onde parte-se do princípio que a comida boa é a da sociedade dominante, que a comida do Iny é uma comida nojenta, que não é igual à comida de gente. Desse modo, comparandoos com animais, como não sendo gente, considerando assim, que somente a comida da sociedade dominante é comida de gente. O fato dos Iny comerem sentados no chão, e muitas vezes todos em uma mesma vasilha, é considerado pelos moradores da sociedade local como sendo falta de higiene. 99 Foto: Maristela Torres Cadernos de Educação Escolar Indígena Figura 1: Família comendo peixe Novamente, segundo Elias e Scotson, quase em toda parte, os membros dos grupos estabelecidos orgulham-se de serem mais limpos, no sentido literal e figurado, de terem a comida melhor que a comida dos outros. A visão de que os Iny Mahadu são sujos, são sem higiene, é uma visão bastante estereotipada, há que se perguntar sobre o que é estar limpo, o que é ter higiene e ainda, que conceito de higiene está sendo utilizado. Para encontrar a resposta basta considerar que os Iny é um povo que habita sempre às margens do rio Araguaia, ou seus lagos adjacentes, e tem como costume diário tomar vários banhos por dia. Faz parte do seu hábito, todo dia, ao acordar, a primeira coisa que fazem é tomar banho de rio. O banho passa a ser também uma atividade de lazer. É costume nas aldeias, diariamente, as pessoas passarem horas no rio, tomando banho, nadando, brincando. As brincadeiras das crianças geralmente são no rio. Uma criança Iny, desde pequena já aprende a nadar. As mulheres passam várias horas diárias no rio, lavando vasilhas, roupas, limpando peixe ou realizando outras atividades domésticas. 100 Foto: Maristela Torres “Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos... Figura 2: Criança Iny no Rio Araguaia Vale destacar ainda que tradicionalmente, na época da seca, os Iny Mahadu passam meses com a família nas praias do Araguaia, que se pode considerar um local muito limpo. Temos que levar em conta também, nessa relação, a concepção de “casa suja”. Falar que uma casa de Iny é “suja”, é não ter a sensibilidade cultural de entender que cascas, pedaços de madeira, palhas de buriti, sementes de tucum e outros materiais utilizados na fabricação de artesanatos não são lixo. Há ainda, na relação dos moradores locais com os Iny Mahadu, o preconceito de que o contato com eles, por menor que seja, é fator de transmissão de doenças. Como podemos observar na fala desta aluna: “Geralmente, as pessoas não gostam de almoçar perto deles, porque fala que tá fedendo, fala que tá contaminado. Sentem um pouco de nojo, fala que vai pegar doença”.(Aluna – São Felix do Araguaia) A fala dessa aluna evidencia uma questão bastante complexa na relação da sociedade local com os Iny, que é a questão do “medo” 101 Cadernos de Educação Escolar Indígena de pegarem doenças através do contato com eles. Por diversas vezes nos deparamos diante de situações em que pessoas Iny pediram água na casa de moradores das cidades e estes, após o Iny tomar a água, jogaram o copo no lixo. Segundo eles, o copo estava contaminado e iria transmitir doenças, dentre outras a tuberculose. Isso acontece também com colheres, às vezes dão comida para um Iny e depois jogam a colher fora. Observa-se que tais atitudes vão sendo passadas de pais para filhos. Segundo Elias e Scotson, isso acontece em outros locais. “Na escola eles falam assim, que Karajá é bebedor de pinga, então é por isso que não trabalha, que não faz roça, que vem na cidade vender peixe e compra só pinga, não compra nada pra casa”. (Exaluno e Auxiliar de Enfermagem Iny – Aldeia Itxalá). Conforme colocou este jovem Iny que trabalha como Auxiliar de Enfermagem em sua aldeia, ouviu na escola que Iny é bebedor de pinga, que não trabalha, que gasta todo o dinheiro da venda do peixe comprando pinga. Isto mostra a generalização e o desconhecimento dessas pessoas, das formas de vida dos Iny Mahadu. Primeiro, para eles a atividade da pesca e da venda do peixe não é trabalho; segundo, todo Iny gasta seu dinheiro comprando pinga. “Falam assim: Você está trabalhando, mas no final da semana eu acho, eu aposto que você vai gastar todo esse dinheiro é só em cachaça. Você deve ter família, alguma coisa assim, mas ao invés de você comprar alguma coisa, vai comprar é cachaça e outras coisas que não, que não presta né. Então na minha opinião eu acho que eles não deveriam falar isso né, deveria conhecer as suas coisas como nós conhecemos a nossa cultura. Eles deviam falar pra os filhos deles né, aconselhar, falar eles não fazerem coisas erradas, não comprar coisas ruins, gastar o dinheiro com outras coisas né. Não ficar falando assim só pra nós né, jogando tudo isso na cara do índio, eu acho que assim é uma descriminação muito grande”.(Ex-aluno e Professor Iny - Aldeia Kherawa). Neste caso, o morador local admitiu que o Iny estava realizando um trabalho e que esse deveria possuir uma família ou “alguma coisa assim”. No entanto, não deixa de se referir com preconceito, através do estereótipo e da generalização, quando afirma ter certeza que este vai gastar o dinheiro com “pinga”. 102 “Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos... “O branco2 fala que eles comem piolho, que eles vivem bebendo pinga, que eles são preguiçosos. Essas coisas que todos nós já sabemos. Eles são pessoas que têm uma... , que não pensam, tem terra. Pra que terra pro índio, pra que eles precisam de terra, bom é uma questão cultural mesmo”.(Professor – São Félix do Araguaia) Na fala desse professor ele admite que os estereótipos mencionados anteriormente pelos Karajá são evidentes, acrescenta ainda que Karajá come piolho, é preguiçoso e não precisa de terra. No caso do estudo realizado por Elias e Scotson, observa-se que os estabelecidos consideram normal a exclusão dos outsiders e estes também acabaram, depois de algum tempo, aceitando tal condição. Sobre esta questão, por parte dos Iny Mahadu há uma grande diferença. Eles jamais aceitam a condição de inferiores, como podemos observar nestas falas: “Olha, uma vez tinha uns três caras falando perto de mim e gozando, índio é preguiçoso, índio não trabalha, índio não precisa de terra. (muita gente fala que índio não precisa de terra). Aí eu chamei para sentar comigo, ele veio, eu comecei a falar: “Você tem quantos anos que mora aqui?” Ele falou: “tem 28 anos que eu moro aqui”. Eu falei para ele: “Você mora aqui há tanto tempo e nunca aprendeu nada sobre a história dos índios?” Falei da bebida, perguntei pra ele. “Você já me viu bebendo aqui?” Ele falou: “Não”. “Então por que você está falando que índio é bêbado?” Eu perguntei pra ele. “Todo branco é trabalhador?” Ele falou: “Não”. Então,” eu falei por que você está falando que só índio é que é preguiçoso? Você já foi na aldeia conhecer como é a vida dos índios, como é o nosso trabalho?” Ele falou “Não”. “Então por que você está falando que nós não trabalhamos?” Perguntei também pra ele: “Você sabe falar a nossa língua?” Ele falou “Não”. Então eu disse: “Pois é eu estou falando a sua língua, eu estou entendendo como é que você fala. Então como é que você pode falar que índio é burro? que índio não sabe nada? Ele levantou e foi embora”.(Ex-aluno e professor Iny – Aldeia Majterytawa). 2 Branco é um termo utilizado para designar o não-índio 103 Cadernos de Educação Escolar Indígena Na fala desse professor observa-se que ele não aceita a condição de ser discriminado e a maneira de reagir contra isto é através do diálogo. Ele chama a pessoa para conversar e procura mostrar para ela que é necessário conhecer melhor o outro, (para que tenha uma outra visão sobre ele) para poder falar dele. “Estudar é importante porque é uma questão de sobrevivência dos povos. Eu preciso estudar pra aprender a me defender dos ataques, temos muitos ataques fora do nosso costume. Então, é importante o Karajá estudar pra ele ter a real situação que a comunidade tem, por exemplo, a língua, o costume e, a partir do momento que o indivíduo indígena estuda, ele tem uma noção assim geral da situação do mundo global, mas aí volta a questão indígena que pra ele é interessante, pra ele é interessante até pra ele poder lutar, defender os direitos indígenas e tudo isso é válido pra nós”.(Advogado e chefe de posto Iny - Aldeia Krehawa). Neste caso, há a questão de que é importante estudar para poder se apropriar de maneiras de defesa contra os ataques da sociedade dominante. Talvez pelo fato dele ser formado em direito, ele dê tanta importância para esta questão, como podemos identificar neste outro depoimento. “Olha, a gente precisa ter em mente que nós índios temos direitos, assim, como cidadão brasileiro nós temos. Então uma coisa que falta mesmo é o respeito ao direito nosso, eu tenho que respeitar, respeito. Mas eles faltam com respeito, com relação ao nosso direito, e isso tem que ser colocado na escola. Nós temos direitos a isso e a aquilo. Isso deve ser falado na escola pros alunos. Isso deve fazer parte do programa da escola. Então, o cidadão luciarense, que é o nosso caso aqui, vai saber qual é o nosso direito. Então, enquanto não acontecer isso, sempre vai ser essa história, nós respeitando o direito de lá e eles desrespeitando nossos direitos. Então, fica difícil pra nós. Então, têm que começar um trabalho no sentido de esclarecer, colocar às claras quais são os direitos nossos e os deles”.(Advogado e Chefe de Posto – Aldeia Krehawa) Enfim, com este estudo, ficou demonstrado que o preconceito não é inato, que o estereótipo é um produto cultural e, para que ele exista, é necessário que os indivíduos se apropriem dele, mais do que 104 “Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos... isso, é necessário que esses indivíduos desenvolvam uma estrutura psíquica para que estes sejam incorporados. Podemos observar esta questão na maneira em que o preconceito se dá na região do Araguaia, onde há um processo de transmissão da imagem negativa dos Karajá, que vai sendo transmitida de pai para filho: “Na rua você ouve: “Povo preguiçoso, povo que ganha dinheiro do governo a toa, (ou seja, sem trabalhar)”, Na rua você ouve as maiores barbaridades. “Índio só sabe tomar cachaça, índio tem muita terra e não faz nada”, é coisa um absurdo, é muito presente assim esse ódio, é um ódio assim muito aparente. Os filhos dessas pessoas estudam aqui, é a mesma coisa, aí passa isso pros filhos. Pra você ter uma idéia, no começo do ano, que eu comecei trabalhar aqui devia ter uns 20 Karajá matriculados a noite, hoje deve ter uns três estudando”.(Professor – Luciara). Neste caso, os alunos aprendem com os pais toda uma série de estereótipos, e passa também a odiá-los como os pais e, na escola, explicitam esses estereótipos descriminando e passando para outros alunos. “Lá em São Félix, um dia, eu estava passando, aí uma criança, uma garotinha, ela me enxergou e começou a bater na boca com a mão fazendo um barulho com a mão. Fazendo um barulho assim: Uuuu... Uuuu... Uuuuu... Aí ela parou e perguntou pra mim: “Ô você é índio?” Eu falei “sou Karajá”, aí ela falou: “Hei índo você tá vindo de onde é do mato?” Eu falei: “Eu tou vindo da minha casa”. Aí ela falou: “Ah! Você tá vindo da aldeia num é? Minha mãe falou que a aldeia é lá no mato. Você tá vindo do mato”. Aí tem os pais também que falam para as crianças, para amedrontarem as crianças. Não chora, ou não faz isso porque se não Karajá vem te pegar (...) Então as crianças vão crescendo com esse medo da gente, com esse medo do índio. Os pais não ensinam que somos seres humanos como eles”.(...).(Ex-aluno e Professor Iny– Aldeia Majteritawa). Os meios de comunicação muitas vezes também contribuem para a propagação dessa imagem negativa dos povos indígenas, como podemos observar neste relato. 105 Cadernos de Educação Escolar Indígena “(...) Assim, muita gente tem a imagem do índio que é passada através da televisão, que o índio não sabe de nada, que índio não sabe conversar, que índio não entende nada. Isso acontece devido à imagem que a televisão passa, que é uma realidade diferente da nossa, por exemplo, aquele personagem “Uga-Uga”, da televisão”.(Ex-aluno e Professor Iny– Aldeia Majteritawa) Luciana Jaccoud e Nathalie Beghin, em “Desigualdades Raciais no Brasil” (2002), consideram que a reprodução de estereótipos e preconceitos raciais legitima os procedimentos discriminatórios. Assim, para elas, a desigualdade racial surge como fruto de um processo complexo, no qual se pode identificar a ação de diversos fenômenos como: o racismo, o preconceito racial e a discriminação racial. Tentando diferenciar racismo e preconceito racial de discriminação racial, as autoras buscam Hélio Santos, o qual conceitua o racismo e o preconceito como maneiras de ver certas pessoas ou grupos raciais, enquanto que a discriminação racial, para ele, é definida como uma ação, uma manifestação ou um comportamento que prejudica certa pessoa ou grupo de pessoas em decorrência de sua raça ou cor. “Uma vez também eu estava com o meu cunhado, o Ronaldo. Nós estávamos na fila da escola para a merenda, ele estava de cocar3. Aí veio um menino e falou para ele. Olha, é índio. Aí o garoto pegou no braço do Ronaldo e apertou, aí ele falou para o amigo dele: Olha ele também tem osso igual a gente”. “Só que hoje em dia eu nunca mais fiquei calado, nunca mais deixei passar em branco, quando alguém se dirige a mim com discriminação agora eu falo”. (Professor – Aldeia Majterytawa). É lamentável pensarmos que as crianças estão crescendo com essa visão de que os povos indígenas não são seres humanos. Acreditamos que não somente a escola, mas a sociedade como um todo tem essa grande tarefa de trabalhar para que as questões das diferenças culturais sejam vistas como um processo enriquecedor das relações sociais. Concordamos com Martins, quando ele coloca a idéia 3 Uma forma de capacete, de pena, que é utilizado na cabeça. 106 “Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos... de que, para se tornarem humanos, os povos indígenas têm que ser batizados vem sendo passada desde a chegada dos europeus. Em função disso, muitos povos tiveram e ainda têm suas culturas negadas e dizimadas por religiosos e missionários que acreditavam e acreditam que, dessa forma, os índios se tornam dignos de salvação e, desse modo, reforçam a noção de que os indígenas, que não são batizados não são humanos. Assim, o batismo foi e continua sendo como uma espécie de passaporte para os povos indígenas se tornarem humanos (MARTINS, 1993) Desse modo, quando o racista ou o preconceituoso externaliza sua atitude, transformado em manifestação, ocorre a discriminação. Ainda, para Santos (apud Jaccoud e Beghin) o racismo parte do pressuposto da superioridade de um componente racial sobre outro, bem como da crença de que um determinado grupo possui defeitos de ordem moral e intelectual que lhe são próprios. O preconceito racial, no entanto, limita-se à construção de uma idéia negativa sobre alguém, produzida a partir de uma comparação realizada com o padrão que é próprio ao grupo que julga. (HÉLIO SANTOS, apud JACCOUD e BEGHIN, 2002, p. 38). O Comitê Nacional que preparou o relatório apresentado pelo Brasil, na conferência de Durban, definiu o preconceito e a discriminação como uma predisposição negativa dirigida a pessoas, grupos de pessoas ou instituições sociais. Por sua vez, Hélio Santos traz uma importante contribuição sobre esta questão. Para ele, “em seu sentido estrito, preconceito consiste em uma construção mental ou afetiva, uma idéia preconcebida sobre uma pessoa ou grupo de pessoas”. Discriminação, no entanto, é “qualquer distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito anular ou destruir a igualdade de oportunidade e tratamento”. Desse modo, existe discriminação “sempre que uma pessoa seja impedida de exercer um direito por motivos injustificados, arbitrários, racistas, não podendo usufruir as mesmas oportunidades e o mesmo tratamento de que gozam outras pessoas, em função da raça, sexo, idade ou qualquer outro critério arbitrário” (SANTOS, apud JACCOUD e BERHIN, 2002, p, 39). Para Jaccoud e Beghin, preconceito racial é entendido como as predisposições negativas em face de um indivíduo, grupo ou 107 Cadernos de Educação Escolar Indígena instituições, que sejam centradas em generalizações estigmatizantes sobre a raça a que é identificado. Nessa concepção, discriminação racial é definida como toda e qualquer distinção, exclusão ou preferência racial que tenha por efeito anular a igualdade de oportunidades e tratamento entre as pessoas ou grupos. Elas apontam para a distinção entre dois tipos de discriminação racial, a direta e a indireta. A discriminação racial direta consiste naquela derivada de atos concretos de discriminação, em que o discriminado é excluído expressamente em razão de sua cor ou raça. A indireta, no entanto, consiste “naquela que redunda em uma desigualdade não oriunda de atos concretos ou de manifestação expressa de discriminação por parte de quem quer que seja, mas de práticas administrativas, empresariais ou de políticas públicas aparentemente neutras, porém dotadas de grande potencial discriminatório”. Para elas, a discriminação indireta tem sido entendida como sendo a maneira mais perversa de discriminar, uma vez que ela se alimenta de estereótipos arraigados e considerados legítimos e se exercem sobre o manto de práticas administrativas ou institucionais. Assim, esse tipo de discriminação de caráter dissimulado, também chamado de discriminação “invisível”, torna-se expresso nitidamente por meio de indicadores de desigualdade entre grupos. Vale ressaltar que nesta pesquisa observou-se estes dois tipos de discriminação, porém, a predominância maior foi da discriminação direta, como se pode observar nas falas colocadas anteriormente e conforme podemos perceber nesta fala: “Depois que eu entrei na política, teve uma palestra e um aluno disse que índio é tão burro que só tem piolho na cabeça. Disse que o índio não é interessado, que vão para a escola só para prejudicar e não assume a sua responsabilidade como aluno”.(Ex-aluna, Auxiliar de Enfermagem e Vereadora Iny – Aldeia Krehawa). Segundo Bhabha (1998), o estereótipo é a principal estratégia discursiva do colonizador como forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre “no lugar” já conhecido e algo que deve ser sistematicamente repetido. Para ele, reconhecer o estereótipo como um modo ambivalente de conhecimento e poder exige uma 108 “Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos... postura teórica e política que desafia os modos funcionalistas, de conhecer a relação entre o discurso e a política. Assim, o discurso do colonizador tem como meta apresentar o colonizado como uma população do tipo degenerado, tomando por base a sua origem racial, isso, para justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução. Assim, para ele, o estereótipo é uma falsa representação de uma realidade, portanto, uma simplificação porque é uma forma presa, fixa, de representação que, ao negar o jogo da diferença, que a negação através do outro permite, constitui um problema para a representação do sujeito em significação de relações psíquicas e sociais. Desse modo, um repertório de posições conflituosas constitui o sujeito do discurso colonial. A tomada de qualquer posição e, esta tomada de posição fornece uma “identidade” colonial que é encenada como fantasias de originalidade e origem, diante e no espaço da ruptura. O estereótipo exige para uma significação bem sucedida, uma cadeia contínua e repetitiva de outros estereótipos. Assim, o processo pelo qual o “mascaramento” metafórico é inscrito em uma falta que deve ser ocultada, dá ao estereótipo sua fixidez e sua qualidade fantasmática – sempre as mesmas histórias sobre a animalidade do negro e a preguiça do índio que são repetidas de maneira e aterrorizante de modo diferente a cada vez, (BHABHA op. Cit., p.120). Para Abbot (Apud BHABHA, 1998, p.123), o que autoriza a discriminação é a oclusão da pré-construção ou montante da diferença. Para ele essa representação da produção faz com que o reconhecimento da diferença seja obtido em uma inocência, enquanto ‘natureza’, assim, o reconhecimento é projetado como reconhecimento primário, efeito espontâneo da evidência do visível. Conforme Bhabha (1998) este é o tipo de reconhecimento espontâneo e visível, que é atribuído ao estereótipo. A diferença do objeto de discriminação é ao mesmo tempo visível e natural – cor como signo cultural/político de inferioridade. Para ele os efeitos discriminatórios do discurso do colonialismo cultural, não se referem unicamente a uma “pessoa”, ou a uma luta de poder dialético entre o eu e o outro, ou a uma discriminação entre a cultura-mãe e as culturas alienígenas, produzidas através do estágio da recusa, assim, o 109 Cadernos de Educação Escolar Indígena referencial da discriminação é sempre um processo de cisão como condição de sujeito, isso significa, uma discriminação entre a culturamãe e seus bastardos, o eu e seus duplos, onde o traço do que é recusado não é reprimido, mas sim repetido como algo diferente, consistindo assim numa mutação, um hibridismo. Ainda segundo (Foucault 1998, apud SOUZA e GALLO), o racismo de Estado consiste numa forma de regulamentação que está além do poder disciplinar, mas, como um meio de apagamento das diferenças. Para ele a primeira função do racismo é fragmentar, fazer censuras. Em segundo lugar, exercita e dissemina o ódio entre as raças, sobretudo o ódio pelo inferior, ódio esse, que segundo Foucault, fundase no medo do outro, que passa a vê-lo como uma ameaça. “(...) Agora eles ficam aqui na cidade. Isso tinha que ter uma lei para proibir esses bichos de ficar assim, no meio da gente. Proibir de ficar na escola junto com os filhos da gente. Eu acho isso muito errado, do jeito que esses bichos são traiçoeiros, não podia ficar assim, no meio da gente, ainda mais na escola junto com os filhos da gente, ainda mais de noite. Eu tenho muito medo desses bichos. Eu mesmo não concordo desses bichos estudarem com os meus filhos. Karajá é um bicho traiçoeiro. Mas do jeito assim que eles têm proteção do governo, não acontece nada com eles. Eles podem fazer uma coisa ruim com um filho da gente que não acontece nada com eles”.(Pai de aluno – São Félix do Araguaia). Diante desse quadro, percebe-se o ódio que existe na fala desse pai de aluno, para com os Iny, é um ódio que chega a descaracterizá-los enquanto seres humanos, colocando, sempre em sua fala, em condição de “bichos”, perigosos tanto quanto os animais. Em uma única vez ele fez referência ao termo Iny, mas, no entanto, para reafirmar que “Iny é um bicho traiçoeiro” colocando desta forma, um peso ainda maior para a animalidade dos alunos indígenas. Percebe-se também nesta fala que esse ódio advém da maneira estereotipada em que os povos indígenas são tratados pelo governo. Quando ele afirma: “Mas do jeito assim que eles têm proteção do governo, não acontece nada com eles. Eles podem fazer uma coisa ruim com um filho da gente que não acontece nada com eles”. Isto reforça um mito que existe na região, de que os povos indígenas têm 110 “Karajá é um bicho traiçoeiro”: alguns estereótipos... proteção do governo, que não trabalham porque o governo dá tudo. Como se pode constatar neste outro fragmento: “(...) Agora eles andam muito, vão pra Barra do Garças, vão pra Goiânia. Eles vivem andando. Tinha assim, que ter uma condução própria só pra eles andarem porque agora esses bichos deram pra só quere tá viajando, isso tinha que ser proibído, mas viajam assim, no meio de nós. Também eles não pagam passagens por isso só querem viver viajando. O governo dá dinheiro”. (Neste ponto da entrevista fiz uma interferência perguntando: “O governo dá dinheiro pra eles? O nosso pergunto? Como é mesmo o seu nome?” Respondi:” Maristela”. Ele prosseguiu). “Olha Maristela aqui é assim, quando um bicho desse nasce já começa receber um salário do governo, e continua recebendo a vida toda, por isso que eles tão aumentando desse tanto”.(Pai de Aluno – São Félix). É muito comum se ouvir, não só na região do Araguaia, mas também em outras localidades, que os povos indígenas podem viajar sem pagarem passagens, que recebem salários desde que nascem e que continuam recebendo do governo um salário pelo resto da vida. Acreditamos que os salários aos quais se referem que as crianças recebem seja o auxilio maternidade. Estas pessoas esquecem ou não sabem que este auxílio toda mulher gestante tem direito a receber somente durante os primeiros quatro meses da criança. Este é um direito assegurado por lei. E mesmo este auxílio, na maioria das vezes, as mulheres indígenas não recebem. Usar esse discurso de que os povos indígenas recebem dinheiro e outros benefícios do governo, acreditamos que seja uma maneira de disseminar o ódio e o preconceito contra eles, e assim, justificar as mais variadas formas de discriminação, massacres e extermínio. Bibliografia BHABHA, Romi K.. O Local da Cultura. Belo Horizonte-MG: Ed. UFMG, 1998. CHAUI, Marilena. Conformismo e Resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. 111 Cadernos de Educação Escolar Indígena ELIAS, Norbert e Scotson, John L.. Os Estabelecidos e os Outsiders. Rio de Janeiro-RJ: Jorge Zahar, 1990. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998. GOFFMAN, Erving. Estigma Notas sobre a Manipulação da Identidade Detereorada. Zahar Editores, 1978. HALL, Struart, A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. JACCOUD, Luciana de Barros e Nathalie Beghin. Desigualdades raciais no Brasil: um balanço da intervenção governamental. Brasília: Ipea, 2002. MARTINS, José de Souza. A Chegada do Estranho. São Paulo: Hucitec, 1993. MELIÀ, Bartolomeu. Educação indígena e alfabetização. São Paulo: Loyola, 1979. 112 Me todol ogia de ensino de Física Metodol todologia para a Formação de P rofessores Professores Indíos Frederico Ayres* Anderson Rodrigues Lima Caires** Resumo Várias são as metodologias que poderiam ser empregadas para a disciplina de Física oferecida aos estudantes do 3º Grau Indígena da Universidade do Estado de Mato Grosso. As discussões geradas antes da etapa presencial levaram os docentes de Física a optarem por um método no qual seriam mescladas aulas teóricas e práticas, sendo que nas teóricas seriam apresentadas todas demonstrações matemáticas necessárias para o melhor desenvolvimento acadêmico. O resultado foi surpreendente, uma vez que houve aceitação pelo método por todos os estudantes. Mesmo aqueles contrários aos métodos matemáticos se mostraram, no final da etapa, familiarizados com os desenvolvimentos matemáticos empregados. Esse trabalho visa apresentar as discussões e os métodos empregados para as aulas de Física, bem como apresentar os resultados, do ponto de vista tanto dos docentes da disciplina, como dos estudantes, através de seus relatos. Doutor em Física pela USP, professor do Depto. de Matemática, Instituto de Ciências Exatas e Naturais, Campus de Rondonópolis, UFMT. Docente na área de Ciências Matemáticas e da Natureza no PROESI. * Doutor em Física pela USP, professor do Grupo de Óptica Aplicada, Faculdade de Ciências Exatas e Tecnológicas, UF GD. Docente na área de Ciências Matemáticas e da Natureza no PROESI. 113 ** Cadernos de Educação Escolar Indígena Introdução Na primeira parte desse trabalho serão descritas as metodologias empregadas para o ensino de Física para a turma específica, voltada para Ciências da Natureza, do 3º Grau Indígena da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), campus de Barra do Bugres. Serão discutidas todas as etapas do planejamento até o momento em que as aulas se iniciaram. Então, serão abordadas as experiências didáticas e será feita uma comparação entre o que planejamos e o que apresentamos, de fato. A experiência de aulas para o Terceiro Grau Indígena é algo recente no Brasil (LIMA, 2002; JANUÁRIO, 2002) e a primeira turma colou grau em julho de 2006. Portanto, os artigos voltados para o ensino de Ciências para o povo indígena ainda é bastante escasso. Esse trabalho tem como um de seus objetivos auxiliar no processo de consolidação do ensino de Física para os estudantes indígenas que almejam a graduação no projeto do 3º Grau Indígena. Será discutido, a seguir, qual o melhor método a ser empregado: o método que utiliza os conhecimentos culturais de cada povo indígena ou o método tradicional aplicado nas Universidades. Esse tema já gerou bastante discussão durante o processo de planejamento pedagógico e, aqui, apresentaremos os métodos empregados, de fato, e os resultados atingidos. Resultados Nesse tópico, serão apresentadas as principais discussões durante o planejamento pedagógico e durante a etapa presencial. 114 Metodologia de ensino de Física... I. Metodologia O planejamento pedagógico do curso de Física contou, em sua primeira fase, com professores de outras áreas, como Química e Biologia, bem como com representantes das comunidades indígenas. Nessas discussões, foram abordados temas relacionados à melhor metodologia aplicada às disciplinas. Não houve consenso, embora houvesse uma maioria defendendo aulas que não fugissem às culturas indígenas. No entanto, a dúvida principal era como trabalhar os fenômenos da Natureza, sem utilizar os conceitos já consagrados pela Ciência. Com isso, uma das propostas foi fornecer os conceitos de Física sem interferir em suas culturas. Por outro lado, a apresentação dos conceitos de Física dentro dos padrões estabelecidos seria uma forma de inserí-los nas tradições da Ciência, além de não dar margem para a discriminação. Portanto, nós, os responsáveis pela disciplina de Física, chegamos à conclusão que o melhor método seria apresentar os conceitos de Física a partir das teorias já consagradas pela Ciência, de maneira alternativa (GREF, 1990; HAMBURGER, 2004), e não utilizar as culturas indígenas como base para o ensino de Física. Mesmo porque, a turma era extremamente heterogênea e, ao nos apoiarmos em conhecimentos de uma etnia, as outras poderiam ser discriminadas nesse processo. Entretanto, apesar de definirmos uma abordagem mais próxima das técnicas didáticas tradicionais utilizadas nos cursos universitários, ficou claro que uma simples transposição das mesmas não atenderia as nossas necessidades. II. Etapa presencial Durante essa etapa, as aulas foram divididas em teóricas e práticas. As aulas teóricas de Física para essa etapa do curso foram voltadas para o desenvolvimento do pensamento científico e para a discussão das idéias da Física, principalmente a Física Clássica. 115 Cadernos de Educação Escolar Indígena O objetivo não foi a incorporação da cultura científica ocidental às culturas indígenas, mas levar o conhecimento da Ciência, relacionada à Física, aos povos indígenas. Para atingir os objetivos, durante as aulas teóricas havia o estímulo à discussão sobre o assunto a ser abordado, onde os estudantes opinavam, através de seus conhecimentos adquiridos anteriormente. Após seus depoimentos, eram apresentados os conceitos dentro da Ciência Ocidental, inclusive com as demonstrações matemáticas e aplicações através de exemplos. Os estudantes, então, eram estimulados a resolver alguns problemas, em grupo, onde havia o incentivo à discussão antes de chegarem a alguma conclusão, sempre buscando mesclar os seus conhecimentos prévios e os conhecimentos adquiridos nessa etapa. Num segundo momento, os estudantes eram estimulados A desenvolver os conceitos abordados em sala através de práticas (GASPAR, 2001; HAMBURGER, 2004), no qual eram utilizados experimentos com materiais do cotidiano, de fácil aquisição, tais como garrafas de plástico, cordas, galhos de árvores, relógios, entre outros. Após o estudo dentro da aula prática, os estudantes voltavam para a sala de aula, onde eram estimulados a discutir os conceitos abordados na aula prática, utilizando os conhecimentos adquiridos nas aulas teóricas. Com essas discussões, os estudantes abordavam os conceitos através de vários métodos diferentes. É importante ressaltar que apesar do desenvolvimento dos temas sem a necessidade de conhecimentos étnicos, sempre deixamos espaços abertos para os acadêmicos explicarem os fenômenos abordados a partir do conhecimento de seu povo, se julgasse necessário. Conclusão A divisão das aulas em três momentos (fundamentação teórica, prática experimental e consolidação da teoria) mostrou-se bastante eficaz. Dessa maneira, os acadêmicos absorviam 116 Metodologia de ensino de Física... gradativamente o conhecimento. No primeiro momento, sempre havia uma certa resistência aos novos conceitos por parte dos discentes. No entanto, essa resistência inicial começava a desaparecer no segundo momento, à medida que os experimentos eram realizados, pois os experimentos revelavam como a natureza realmente se comporta, independente do conhecimento prévio de cada etnia. No terceiro momento, já despidos das dúvidas da veracidade dos temas abordados, os acadêmicos se concentravam em entender melhor os fenômenos, tanto conceitualmente quanto matematicamente. No último dia da etapa presencial, solicitamos aos estudantes um relatório sobre as aulas de Física. A maioria dos estudantes relatou a importância da metodologia empregada. A divisão em aulas teóricas e práticas, com uma discussão anterior e uma posterior à apresentação dos conceitos pelos professores, foram de grande valor. Os tópicos mais citados nesses relatórios foram a Cinemática e a Hidrostática.Dentro da cinemática, houve vários relatos sobre a medida de espaço e de tempo e a determinação da velocidade média através dessas medidas. Dentro da Hidrostática, houve relatos sobre o motivo de alguns corpos flutuarem na água, enquanto outros afundam. Essas foram as mais marcantes. No entanto, vários estudantes ficaram surpresos com a experiência de queda dos corpos, na qual observaram que corpos lançados ao mesmo tempo, quando livres da influência do ar, chegam ao mesmo tempo no solo, mesmo sendo de materiais diferentes. Alguns citaram, também, as experiências com roldanas, onde foram trabalhados os conceitos de Dinâmica. Com base em seus relatórios e nas discussões entre a equipe de docentes, pode-se dizer que a metodologia empregada está longe da ideal. No entanto, embora os estudantes tenham citado mais as aulas práticas, as aulas teóricas com demonstrações matemáticas e discussões dos conceitos foram de muito valor. Em momento algum houve a pretensão de substituir a Cultura Indígena pela Ciência Ocidental. Porém, ficou claro que o contato com as idéias da Física Clássica dentro da abordagem aplicada nessa etapa 117 Cadernos de Educação Escolar Indígena de estudos presenciais foi completamente aceito por todas as etnias que compunham o quadro discente. Não é uma questão de imposição de uma cultura, mas sim de apresentar a Ciência como aceita hoje, não importa a etnia. A maioria dos estudantes que compuseram esse grupo estão aptos a se aprofundar na Ciência e até mesmo acrescentar conceitos, uma vez que ainda não trazem os paradigmas próprios da cultura ocidental. Bibliografia LIMA, M. S. Educação Indígena Tupinikim e Guarani. 20 Experiências de Gestão Pública e Cidadania. Hélio Batista Barboza e Peter Spink (orgs.), 2002. JANUÁRIO, E.R.S. Terceiro Grau Indígena: cursos de licenciatura específicos para a formação de professores indígenas. Educação Escolar Indígena, Marilda Almeida Marfan (org.). 2002, Vol. 4. GREF: Grupo de Reelaboração do Ensino de Física. Física 1: Mecânica. EDUSP, 1990. GREF: Grupo de Reelaboração do Ensino de Física. Física 2: Física Térmica e Óptica. EDUSP, 1990. GREF: Grupo de Reelaboração do Ensino de Física. Física 3: Eletromagnetismo. EDUSP, 1990. HAMBURGER, E.W. Telecurso 2000: Física. Volumes 1 e 2. Editora Gráfica e Editora Posigraf S.A., 2004. GASPAR, A. Física. vol. 1, 2 e 3. Editora Ática, 2001. 118 Corpo Humano e Saúde: uma Experiência na Formação de Professores Indígenas Larissa Maria Scalon Lemos* Hébia Tiago de Paula** Que significado e importância tem o corpo humano para seu povo? Essa é uma daquelas muitas questões que nos parecem tão óbvias, mas às quais encontramos dificuldades na formulação de uma resposta rápida e concisa. Foi com esta pergunta que iniciamos os trabalhos da IV Etapa de Estudos Presenciais do Terceiro Grau Indígena, em julho de 2006. Iríamos trabalhar com 100 acadêmicos indígenas, o conteúdo de Ciências: O Corpo Humano. Os livros didáticos atuais abordam o conteúdo no aspecto anatômico-fisiológico, obviamente, em nível de conhecimento correspondente com a série em que é trabalhado. Trazem ainda, uma abordagem voltada à saúde, aos possíveis distúrbios e problemas de cada um dos sistemas orgânicos, suas causas e modo de prevenção, subsidiando o trabalho de educação em saúde na formação dos alunos. E esse foi também o enfoque do nosso trabalho nesta etapa. O corpo é inerente à nossa existência, e a partir dele nos relacionamos com o mundo exterior. Ele tem sua importância biológica, Especialista em Farmacologia, professora do Depto. de Enfermagem da UNEMAT - campus de Cáceres. Docente na área de Ciências Matemáticas e da Natureza no PROESI. * ** Bióloga, Assessora Pedagógia da área de Ciências Matemáticas e da Natureza no PROESI. 119 Cadernos de Educação Escolar Indígena em termos de sobrevivência, mas possui também uma importância cultural incontestável, em todos os povos, em especial para os povos indígenas. A cultura dos povos indígenas se manifesta de formas diversas. O modo com que trabalham os materiais da natureza como: penas, sementes, madeiras, fibras, etc, na manufatura de adornos, utensílios, moradias, flechas e tantos outros, reflete os costumes de cada comunidade, de cada etnia. Mas o ápice da manifestação cultural indígena está, inegavelmente, relacionado ao corpo, que é escarificado, pintado, perfurado e marcado, sem contar a forte presença das danças e rituais onde o corpo é um dos elementos de linguagem. O antropólogo Darcy Ribeiro escreveu que o corpo humano é “a tela onde os índios mais pintam e aquela que pintam com mais primor”. Há registro na história de um diálogo real que teria acontecido no século XVIII: “Por quê você pinta seu corpo?” - perguntou um missionário europeu a um índio. “E você ? Por quê não se pinta ? Quer se parecer com os bichos ?” - respondeu o índio. Seja para demarcar sua identidade na sociedade, demonstrar sentimentos de pesar ou alegria, combates e rituais, ou simplesmente para embelezar-se ou diferenciarse dos demais seres da natureza, o fato é que o corpo está intrinsecamente ligado à cultura indígena. Nessa perspectiva, esperávamos uma riqueza de diversidade nas respostas dos acadêmicos à nossa pergunta inicial: Que significado e importância tem o corpo humano para seu povo? Mas o que pudemos perceber é que a maioria expressiva destas respostas não abordava nem o aspecto cultural, nem o religioso da relação com o corpo. Talvez, inconscientemente influenciados pelo fato de estarem numa aula de Biologia, os acadêmicos abordaram quase exclusivamente os aspectos biológicos do corpo humano: os movimentos, a reprodução, a percepção, o raciocínio. “O nosso corpo é muito importante para fazer o trabalho no dia-a-dia. Como por exemplo, os nossos braços servem para abraçar as pessoas, nossas mãos servem para mexer as coisas, nossas pernas servem para andar no trabalho ou para outro lugar no mundo, nossas línguas servem para falar e cantar, os nossos olhos servem para olhar as coisas, nossas cabeças servem para pensar e servem para fazer o 120 Corpo humano e saúde... plano de seu trabalho, o nariz serve para respirar e nosso coração serve para funcionar o nosso corpo em geral. Tudo isso faz parte do corpo que temos e é muito importante para nós.” (João Wéréhité Rãirãté - Xavante) Um outro aspecto bastante presente nos textos foi a consciência de que o cuidado com o corpo na prevenção da saúde é fator primordial quando se fala de corpo humano, e algumas vezes vem acompanhado de uma crítica quanto a mudança dos costumes, principalmente em relação à alimentação, o que vem acarretando aumento na incidência de doenças entre os povos indígenas. “Antes do contato com o homem branco, alimentávamos de alimentos naturais, não comíamos sal, óleo, açúcar, etc. Hoje em dia já consumimos comidas industrializadas da cidade e com isso passamos a ter problemas de saúde, tais como: obesidade, diabetes, perda precoce de dentes e outras doenças. Muitos povos adquiriram vícios que hoje prejudicam a saúde indígena, como o álcoolismo e o tabagismo.” (Loike Kalapalo) O resultado dessa atividade, para nós inesperado, foi na verdade bastante positivo, considerando que o objetivo a que nos propúnhamos, era trabalhar os aspectos anatômico-fisiológicos e a educação em saúde, enfoque correspondente ao colocado por eles nos textos. Pudemos também perceber, com a atividade seguinte, desenhar a constituição interna do corpo humano com base apenas no seu conhecimento, sem nenhum tipo de consulta, que os acadêmicos possuíam boas noções do arranjo anatômico dos órgãos e do esqueleto humanos, bem como da sua fisiologia, o que facilitou sobremaneira os trabalhos. Não só em virtude das questões colocadas no seu projeto inicial, mas também pela necessidade evidenciada pelos acadêmicos, o 3º Grau Indígena sempre norteou os trabalhos dos docentes no sentido de incorporar nos cursos o conhecimento étnico, garantindo a vivência da interculturalidade, como também o enfoque na instrumentalização didática aos futuros professores, para que sejam capazes de executar seus trabalhos nas escolas indígenas, alicerçados na sua própria realidade, ampliando, assim, os horizontes do conhecimento dos seus alunos, mas, sobretudo, respeitando sua cultura. 121 Cadernos de Educação Escolar Indígena Com essas diretrizes, norteamos nosso trabalho. Apesar de toda a carga cultural presente na relação com o corpo humano, abordaríamos o aspecto biológico, mas sempre suscitando outras conotações a partir dos próprios acadêmicos. Tínhamos o objetivo de que eles conseguissem vincular o conteúdo discutido à sua realidade, forma pela qual acreditamos que o conhecimento é realmente construído. Sucederam-se momentos de exposição de conteúdo, atividades práticas, lúdicas, pesquisa bibliográfica e apresentação de aula simulada pelos alunos. O interesse dos acadêmicos pelo assunto “corpo humano” foi muito grande, como já fora observado em turmas anteriores, o que não foi diferente nessa atual. Mostraram-se participativos, com questionamentos e colocações constantes, o que gerou um trabalho interessante e enriquecedor, considerando a diversidade etnocultural presente. “A pedagogia indígena deve ser resultado da vivência, da reflexão dos próprios professores, da troca de experiências, da construção coletiva, da presença de anciãos e das relações socioculturais presentes em cada etnia” (JANUÁRIO, 2004). Trabalhando nessa perspectiva foi que alcançamos os objetivos propostos. Cabe aqui um destaque ao sistema reprodutor humano, fonte de dúvidas e perguntas intermináveis, não fosse o som da campainha sinalizando o final das atividades. Talvez por abranger a sexualidade, a geração de descendentes, as doenças sexualmente transmissíveis de incidência crescente entre as comunidades indígenas; o fato é que esse tema é, visivelmente, o ápice do interesse em se tratando de corpo humano. As dúvidas mais freqüentes são relacionadas à menstruação e gravidez múltipla. Surgiram também questões sobre clones e células tronco, temas em evidência na mídia na atualidade e ainda tão controversos no aspecto ético-científico para os não-índios. A sexualidade humana é uma construção cultural, ao contrário dos animais onde é determinada apenas pelo instinto. Os seres masculino e feminino diferem muito entre as diferentes culturas, podendo até mesmo se modificar ao longo do tempo dentro de uma mesma cultura. Apesar da idéia de que os povos indígenas são livres quanto a sua sexualidade, grande parte pela influência da forma como a história da colonização aborda, ou mesmo pelo fato de andarem nus 122 Corpo humano e saúde... ou seminus, o que se vê na realidade, é que cada cultura impõe regras rígidas ao aspecto sexual. Nessa perspectiva, gerou-se discussões bastante interessantes, principalmente quando o assunto abordado foi a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. As DSTs são um problema relativamente recente nas comunidades indígenas e que possuem métodos preventivos que muitas vezes vão de encontro aos costumes enraizados de uma cultura, gerando conflitos. Ao se referir à saúde das populações indígenas, Conklin (1994), diz: “O grau de receptividade à medicina ocidental depende destes conceitos e das práticas estranhas não serem antagônicas às noções sobre o corpo humano, sobre causa e prevenção das doenças e às relações sociais que cercam a doença. O fornecimento de serviços médicos será insuficiente para garantir um sistema de saúde eficaz caso não sejam equacionados os conflitos e equívocos existentes entre os conceitos ocidentais e indígenas de saúde e doença.” A troca de experiências entre os acadêmicos, nesse sentido, foi de grande riqueza, proporcionando momentos reflexivos quanto às mudanças dos costumes e suas implicações na saúde das comunidades indígenas. Todo trabalho onde a diversidade cultural se faz presente, traz resultados engrandecedores, desde que se deixem à margem os conflitos e o etnocentrismo, desde que haja uma abertura ao diferente, um respeito à crença alheia. Não importa se estamos ali como aluno ou como professor, o aprendizado é bilateral, como diz Bazin (2005). “Ser professor é saber aprender descobrindo junto com os outros professores não é para trazer coisas de fora; é para ajudar a mergulhar, conscientemente, dentro da cultura da comunidade, registrá-la e reforçá-la.” Apesar de tantas outras vezes ter trabalhado o tema corpo humano, essa IV Etapa do 3º Grau Indígena proporcionou um resultado marcante, pela interculturalidade, pelas riqueza das discussões que acabam por nos levar à reflexão das nossas próprias crenças, das nossas condutas e das implicações na vida da nossa sociedade. Só a leitura e correção dos textos elaborados pelos acadêmicos já nos permite mergulhar na riqueza cultural dos povos indígenas. 123 Cadernos de Educação Escolar Indígena “O meu corpo é uma criação divina. Fui formado com muita atenção e dedicação. Cada membro com um trabalho a executar. Não fui formado por coincidência, mas com tal precisão, que o homem ainda não conseguiu imitar. Somente com corpo, sem auxílio do espírito, seria impossível alcançarmos a harmonia entre nós mesmos para com a natureza. Somos parte da natureza; nascemos, crescemos, vivemos e morremos. Nós vivemos para a natureza, a natureza vive pra nós. E assim, geração vem, geração vai, tudo volta ao começo.” (Antonino Reginaldo Jorge – Terena) Bibliografia BAZIN, M. Ensinar Matemática e Ciências Indígenas. Instituto de Investigação e Desenvolvimento em Política Lingüística, Florianópolis, 2005. Disponível em: http://www.ipol.org.br/ler.php?cod=240. Acesso em 15/10/2006. Iandé Arte com História. Grafismos Indígenas . Disponível em: http:// www.iande.art.br. Acesso em 14/10/2006 INSTITUTO SÓCIO AMBIENTAL. Povos Indígenas no Brasil. Artes. Disponível em: http://socioambiental.org/pib/english/portugues/ comovivem/artes.shtm. Acesso em 14/10/2006. JANUÁRIO, E. R. S. A construção do currículo no 3º Grau Indígena: a etapa de estudo presencial. Cadernos de Educação Escolar Indígena – 3º Grau Indígena. Barra do Bugres: Unemat, 2004. v. 3, n. 1. p 51. PAULA, E.D. A interculturalidade no cotidiano de uma escola indígena. Caderno CEDES, Campinas, v. 19, n. 49, 1999. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010132621999000200007&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 16/10/2006. PY-DANIEL, V. & SOUZA, F. S. O Sistema Brasileiro de Atendimento à Saúde Indígena e algumas de suas Implicações na Cultura Yanomami. Disponível em: http:// nerua.inpa.gov.br/NERUA/23.htm. Acesso em 15/10/2006. 124 Formação de Professores Indígenas: uma Experiência de Acompanhamento Pedagógico nas Aldeias Adailton A. da Silva* Hébia T. de Paula** Jurandina B. Sales*** Lucimar L. Ferreira**** Marinez S. Nazzari***** Introdução A Formação de Professores Indígenas oferecida por meio de cursos de licenciatura nas áreas de Línguas, Artes e Literaturas; Ciências Sociais e Ciências Matemática e da Natureza, da UNEMAT Universidade do Estado de Mato Grosso, Campus de Barra do Bugres, é uma experiência fruto de um longo processo de mobilização/ reivindicação dos povos indígenas de Mato Grosso que se tornou Coordenador Pedagógico do Programa de Educação Superior Indígena Intercultural. Mestre em Educação Matemática. * Assessora Pedagógica do Programa de Educação Superior Indígena Intercultural. Graduada em Biologia. ** Professora de Matemática no Ensino Médio. Docente do Programa de Educação Superior Indígena Intercultural. Especialista em História da Matemática. *** Assessora Pedagógica do Programa de Educação Superior Indígena Intercultural. Mestre em Lingüística. **** ***** Assessora Pedagógica do Programa de Educação Superior Indígena Intercultural. Mestre em Lingüística. 125 Cadernos de Educação Escolar Indígena realidade em 2001. O Projeto de Formação de Professores, conhecido como 3° Grau Indígena, que a partir de setembro de 2007 passou para a condição de Programa1, já disponibilizou trezentas (300) vagas para formação de professores indígenas de quarenta e quatro (44) etnias, sendo trinta (30) do Estado de Mato Grosso e quatorze (14) de outros Estados do país e prevê para o final de 2007 a abertura de mais uma turma, com a seleção de 50 professores indígenas do estado de Mato Grosso. Em 2006 o Projeto formou a primeira turma, 186 professores, dos 200 ingressantes em 2001 e para 2009 está prevista a formatura de mais cem (100) professores que iniciaram o curso em 2005. Os cursos têm como objetivo principal a formação em serviço e continuada de professores indígenas, oferecendo-lhes condições necessárias para condução do processo político-pedagógico das escolas indígenas nas aldeias. Em conformidade com o Art. 6° da Resolução CEB n°. 03, de 10 de novembro de 1999, que garante: Art. 6º A formação dos professores das escolas indígenas será específica, orientar-se-á pelas Diretrizes Curriculares Nacionais e será desenvolvida no âmbito das instituições formadoras de professores. Parágrafo único. Será garantida aos professores indígenas a sua formação em serviço e, quando for o caso, concomitantemente com a sua própria escolarização. Considerando essa especificidade, os cursos são estruturados em duas modalidades letivas: Etapa de Estudos Presenciais (Etapa Intensiva), que acontece nos meses de janeiro/fevereiro e julho/agosto; e Etapa de Estudos Cooperados de Ensino e Pesquisa (Etapa Intermediária), realizada nos períodos de março a junho e de setembro a dezembro. A Etapa Intermediária2 é o período em que, concomitantemente ao seu trabalho docente nas escolas das aldeias, os professores/ 1 Programa de Educação Superior Indígena Intercultural - PROESI. Cf. JANUÁRIO, Elias. Formação de Professores Indígenas em serviço: a Etapa de Estudos Cooperados de Ensino e Pesquisa – Intermediária. In: Cadernos de Educação Escolar Indígena. Projeto de Formação de Professores Indígenas/ 3º Grau Indígena, Barra do Bugres – MT: UNEMAT, 2003. p. 56-65. v. 2, nº. 1. 2 126 Formação de professores indígenas... acadêmicos fazem reflexões, estudos, leituras, relatos e desenvolvem pesquisas, buscando ampliar a sua compreensão sobre assuntos que envolvem conhecimentos acadêmicos e conhecimentos particulares das culturas. Nesse período de retomada dos conteúdos vistos na Etapa Intensiva, execução do Estágio e realização das pesquisas do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), os alunos recebem acompanhamento docente da equipe pedagógica do Projeto 3, atendimento este que busca articular as atividades de formação com a realidade de cada escola e comunidade. Nessa perspectiva, os encontros nas aldeias, durante a Etapa Intermediária, assume um papel muito importante dentro do processo de formação, pois além de possibilitar à equipe docente detectar especificidades de cada escola e dificuldades de cada professor, possibilita a definição do perfil pedagógico das Etapas Intensivas subseqüentes. O nosso trabalho trata-se de uma experiência de acompanhamento pedagógico nas aldeias, desenvolvida com a turma 2005/1, na V Etapa de Estudos Cooperados de Ensino e Pesquisa (Etapa Intermediária), no primeiro semestre de 2007. A experiência, que tinha como objetivo geral a formação político-pedagógica dos acadêmicos/professores, foi realizada em forma de oficinas, em diferentes regiões do Mato Grosso. Cinco pólos foram formados para a execução do trabalho: Aldeia Itxalá4, Aldeia Pakuera5, Aldeia Umutina6, Aldeia Sangradouro7 e Aldeia São Marcos8, A equipe é composta por três Assessoras Pedagógicas (uma para cada área de conhecimento) e um Coordenador Pedagógico. 3 A aldeia Itxalá (Karajá) está localizada no município de Santa Terezinha-MT. Nesse Pólo foram atendidos os acadêmico(a)s das etnias Tapirapé e Karajá 4 A aldeia Pakuera (Bakairi) está localizada no município de Paranatinga-MT. Nesse Pólo foram atendidos os acadêmicos das etnias Bakairi e Xavante. 5 A aldeia Umutina (vários povos) está localizada no município de Barra do Bugres-MT. Nesse Pólo foram atendidos os acadêmico(a)s das etnias Umutina, Zoró, Panará, Paresi, Bororo, Irantxe, Chiquitano, Rikbaktsa, Terêna. 6 7 A aldeia Sangradouro (Xavante) está localizada no município de Primavera do Leste-MT. Nesse Pólo foram atendidos os acadêmicos da etnia Xavante. A aldeia São Marco (Xavante) está localizada nos municípios de General CarneiroMT e Barra do Garças-MT. Nesse Pólo foram atendidos os acadêmicos da etnia Xavante. 8 127 Cadernos de Educação Escolar Indígena considerando a distribuição geográfica das etnias atendidas pelos cursos. Nessas oficinas, que tiveram a duração de uma semana, fezse o acompanhamento das pesquisas e atividades das disciplinas (Literatura, Políticas Lingüísticas, Física, Metodologia de Pesquisas e Sociologia) encaminhadas para Etapa Intermediária, um estudo sobre fundamentos legais da educação escolar indígena, reflexões sobre a prática na sala de aula nas escolas das aldeias, incluindo o Estágio e a orientação dos TCCs (Trabalhos de Conclusão de Curso). Oficinas pedagógicas O bloco de atividades planejadas para a Etapa Intermediária, com uma seqüência didática de acordo com as necessidades do grupo a ser atendido, é que denominamos de Oficinas Pedagógicas. Essas Oficinas (atendimentos nos grupos organizados por pólos) foram pensadas e propostas a partir das características e das condições geográficas e logísticas da realização das atividades pedagógicas dentro do Programa de formação. O trabalho desenvolvido em pólos foi proposto, buscando aproximar o trabalho acadêmico da Universidade com a realidade das comunidades nas aldeias, garantindo a participação da comunidade e melhor aproveitamento tanto dos cursistas quanto da equipe docente que acompanha pedagogicamente os cursos. Atividades desenvolvidas nas oficinas Embora o trabalho em cada pólo tenha sido realizado respeitando as particularidades e a rotina das escolas e das comunidades, as atividades propostas foram comuns, tendo em vista o objetivo geral da Etapa Intermediária. Em todos os grupos, as Oficinas foram iniciadas com uma apresentação da proposta de trabalho planejada pela equipe e uma conversa com os acadêmicos sobre a organização do atendimento pedagógico em pólos. Nessas conversas 128 Formação de professores indígenas... foram expostos os objetivos e os principais encaminhamentos do trabalho. Acompanhamento das pesquisas e atividades da Etapa Intermediária Organizados como estão, os cursos têm uma concentração de conteúdos das diferentes disciplinas nas Etapas Intensivas e um espaço de tempo maior na Intermediária para a revisão e a ampliação dos assuntos tratados. Os trabalhos são encaminhados pelos respectivos professores das áreas e orientados pelos docentes da equipe pedagógica. Como estratégia de orientação das tarefas das diferentes disciplinas, realizou-se a leitura das atividades propostas pelos professores das respectivas áreas. Dessa forma, foi possível tirar as dúvidas daqueles alunos que ainda não tinham iniciado os trabalhos. Nas leituras das atividades das disciplinas que envolviam pesquisas/entrevistas com os mais velhos surgiram questionamentos a respeito de como elas devem ser encaminhadas. Discutiu-se no grupo que ao realizar uma entrevista os acadêmicos devem ter a sensibilidade de transpor os questionamentos de acordo com a linguagem e o conhecimento/realidade de cada povo, uma vez que os questionários trazem uma linguagem acadêmica que muitas vezes não é compreendida pelos entrevistados (anciãos, pajés, caciques, etc.). Dentre as atividades discutidas algumas delas foram realizadas em sala, retomando conceitos e estabelecendo etapas de desenvolvimento. Fundamentos legais da educação escolar indígena Com relação aos fundamentos legais da educação escolar indígena, foram trabalhados dois textos: um do RCNEI “Fundamentos Gerais da Educação Escolar Indígena” e a “Resolução 03/99 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação”. 129 Cadernos de Educação Escolar Indígena Como o objetivo era discutir os textos legais, propiciando reflexão sobre pensar a inter-relação entre as leis que amparam a educação escolar indígena, o funcionamento administrativo das escolas indígenas e o fazer pedagógico do professor nas escolas, a metodologia de trabalho adotada foi a leitura oral no grande grupo e a discussões dos pontos principais. No texto do RCNEI (Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas) foram discutidos os conceitos: multiculturalidade, pluralidade, diversidade, autodeterminação, comunidade educativa indígena, educação e conhecimentos indígenas e educação intercultural, comunitária, específica e diferenciada. Durante a leitura do texto surgiram dúvidas no que diz respeito à educação específica e diferenciada. Ao esclarecer essas dúvidas os professores de equipe pedagógica ressaltaram a importância da participação da comunidade no planejamento pedagógico da escola. Na leitura da Resolução 03/99 a reflexão foi também sobre o conceito de escola indígena, os critérios para que seja assim considerada e goze deste status; os aspectos diferenciados e específicos dessa instituição; o papel da comunidade na educação escolar indígena; o processo de formação dos professores incluindo estruturação da sua carreira; as competências para legislar sobre esse segmento da educação e a manutenção e administração da educação escolar indígena. Toda a leitura foi permeada por discussões sobre o que garante a legislação e o que de fato vem sendo implementado pela Secretaria de Estado de Educação de MT e pelos municípios onde as aldeias estão localizadas. Acompanhamento do Estágio Como os cursos de Licenciatura trabalham com acadêmicos que já são professores, o Estágio é realizado no dia-a-dia da sala de aula e registrado em forma de memória. Esses registros são lidos e usados pelos professores da equipe pedagógica para a preparação das atividades e intervenções pedagógicas realizadas no processo de formação. 130 Formação de professores indígenas... No acompanhamento do Estágio nestas Oficinas da V Etapa Intermediária, foi proposta uma estratégia de sorteio de três alunos em cada pólo, a fim de que cada um fizesse uma exposição oral de uma aula registrada no caderno de estágio. A proposta era apresentar a aula (simulando-a ou relatando-a) para que a turma pudesse fazer uma reflexão sobre o fazer pedagógico do professor, considerando a sua prática, postura e encaminhamentos didáticos. Apesar de ter sido sugerida a estratégia do sorteio, vários alunos se dispuseram a fazer a apresentação, alegando a vantagem de aprender mais com as sugestões e, com isso, melhorar a sua segurança no trabalho docente. No desenrolar da atividade, pudemos perceber que os acadêmicos que apresentaram as suas aulas tiveram rendimentos muito diferenciados e os assuntos tratados foram vários: cuidado com o lixo, alimentação e saúde, preservação ambiental, data comemorativa “Dia da árvore”, variação lingüística, produção de textos (verbal e não-verbal), ensino de língua materna (neste caso língua indígena), ensino de operações matemáticas fundamentais e trigonometria, sistema de numeração, movimento dos astros. Foi importante também a discussão que se estabeleceu (suscitada pelas dúvidas dos alunos) sobre a melhor forma de se organizar os registros no caderno de estágio. Ressaltou-se que o registro deve ser reflexivo, qualitativo e que não é necessário anotar todos os exercícios desenvolvidos nas aulas. Estudo e reflexão sobre a prática na sala de aula Buscando provocar uma reflexão sobre as práticas pedagógicas dos acadêmicos, foi proposta uma atividade de leitura de matérias da “Revista Nova Escola”, discussão em duplas e apresentação em plenária. A proposta era que cada dupla lesse um texto e tentasse fazer relações com a sua própria prática, imaginando formas variadas de tratar os assuntos, sem desconsiderar a realidade das escolas indígenas, o contexto das comunidades e os conhecimentos culturais de cada povo. Surpreendeu a equipe a aceitação da atividade e o afinco com que os acadêmicos a desenvolveram, demonstrando a necessidade de ampliação da discussão dos assuntos pedagógicos nos cursos de 131 Cadernos de Educação Escolar Indígena licenciatura. Essa atividade despertou também o interesse dos acadêmicos pela leitura das revistas “Nova Escola”, pois consideraram o material muito rico para ser explorado em sala de aula, o que não acontecia anteriormente, mesmo os professores/ cursistas tendo assinatura da revista nas suas escolas. Nessa atividade, os assuntos discutidos também foram variados: planejamento, investigação das dificuldades encontradas em sala de aula, multidisciplinaridade, ensino de leitura, produção de texto, ensino de geografia, discussão e reflexão sobre a educação, ensino de ciências, educação ambiental. Orientação do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) Os acadêmicos das três licenciaturas desenvolvem na etapa específica dos cursos uma investigação TCC (Trabalho de Conclusão de Curso). Nessa V Etapa Intermediária, os professores iniciaram a elaboração dos seus pré-projetos de pesquisa e, diante disso, foi proposta uma orientação individualizada a partir das primeiras idéias do projeto. As orientações ocorreram no sentido de auxiliá-los na escolha de um tema correspondente à área de formação escolhida9 e de acordo com as necessidades e interesses de sua comunidade. Como se percebe, essa fase da formação pode ser entendida como um momento de negociação10. Negociação no sentido de considerar tudo que o acadêmico já construiu até o momento através de leituras e discussão sobre exeqüibilidade da pesquisa, buscando A escolha de uma das três áreas oferecidas no programa ocorre em função do interesse do acadêmico, das necessidades da comunidade e da orientação da equipe pedagógica do Programa. Para isso é discutido entre os acadêmicos e comunidade quem se especializará em cada uma dessas áreas, pois sabem que para criar, autorizar e reconhecer uma escola estadual ou municipal é necessário pelo menos um professor com formação específica nas áreas de Línguas, Artes e Literatura; Ciências Matemática e da Natureza; e Ciências Sociais. 9 O acadêmico ao ingressar no Programa de Educação Superior Indígena e Intercultural cursará três anos de formação geral e, somente nos últimos dois anos da formação cursará a parte específica da área escolhida. Concluindo essas duas partes, estarão habilitados a ministrarem disciplinas do 6º ao 9º ano do ensino fundamental e as disciplinas do ensino médio da sua área de formação. 10 132 Formação de professores indígenas... ampliar os conhecimentos na sua área de formação através do acesso a bibliografias específicas. Durante a orientação individualizada foi possível também diagnosticar o estágio de desenvolvimento da pesquisa de cada acadêmico, facilitando assim, a indicação de bibliografias para fundamentar o trabalho. Particularidades das oficinas nos diferentes pólos Mesmo tendo um encaminhamento comum, cada Oficina teve um andamento particular, conforme as peculiaridades de cada grupo. Na aldeia Pakuera a participação de cem por cento dos acadêmicos em todas as atividades desenvolvidas, a presença constante de egressos do programa na busca de informações sobre aspectos pedagógicos e profissionais, a visita das lideranças locais, acompanhando a Oficina, demonstrou o entrosamento da comunidade com a escola e a preocupação desta com a formação dos professores. Apesar da Oficina ser realizada em um único local, na aldeia Pakuera houve uma participação das aldeias vizinhas solicitando a presença da equipe para discutir questões relacionadas à escola, como por exemplo, o conceito de Escola Indígena encontrado nos textos da legislação da Educação Escolar Indígena. O motivo da solicitação se deu pela circunstância de ser um assunto que carecia de esclarecimentos para fundamentar a reivindicação de tais direitos junto à Secretaria Municipal de Educação de Paranatinga - MT. Já no pólo de Itxalá questões como o acúmulo de lixo nas proximidades da escola e as dificuldades dos professores em alguns conteúdos de matemática e ciências (demonstrados na apresentação de Estágio e práticas de ensino) fizeram com que a equipe pedagógica desenvolvesse atividades e discussões relacionadas à educação ambiental e reflexões sobre os conteúdos nos quais os professores demonstraram dificuldades. Diante das expectativas do grupo e da preocupação da equipe com relação a sensibilização da comunidade com o acúmulo lixo, o problema foi abordado através de uma palestra 133 Cadernos de Educação Escolar Indígena seguida de discussão/reflexão de como cada comunidade, representada pelos acadêmicos, tem encarado esta problemática. A partir das reflexões foram sugeridas diferentes formas de manejo do lixo adequadas a cada realidade. Na aldeia Umutina, que foi reunido um maior número de etnias, a comunidade, através da escola e suas lideranças, fez apresentações culturais na abertura e no fechamento da Oficina. Ao término das atividades a comunidade serviu chicha11 aos acadêmicos, professores e visitantes, demonstrando o contentamento com a troca de experiências e a realização do trabalho. Durante a Oficina desse pólo, o que despertou maior interesse dos acadêmicos foram as discussões sobre temas relacionados à legislação da Educação Escolar Indígena, já que para muitos, os direitos conquistados e expressos na legislação ainda não são totalmente conhecidos, como por exemplo, o que está garantindo na Resolução 03/99. No Pólo de São Marcos o aspecto da participação das lideranças também foi marcante e de uma forma bem particular. Respeitando a pedagogia Xavante12, as lideranças chegaram à sala de aula sem chamar muita atenção e depois de um determinado tempo em silêncio se manifestaram, solicitando a palavra. Esse fato foi muito importante nesse pólo, pois fez com que a participação e assiduidade dos alunos melhorassem significativamente. Já com relação aos temas discutidos, em São Marcos, o que foi solicitado e contou com maior dedicação dos acadêmicos, foi a discussão sobre os passos da elaboração de um projeto de pesquisa e a conversa sobre TCC. Nesse pólo, o trabalho com as revistas “Nova Escola” também foi uma atividade que despertou o interesse dos 11 Bebida típica do povo Umutina. Na pedagogia Xavante, na maioria dos casos, a aprendizagem acontece através da observação e do silêncio. As pessoas mais novas aprendem a ser Xavante entre os Xavante observando, em silencio, os mais velhos no seu dia-a-dia. O ensino também pode ocorrer através do silêncio ou do discurso formal. Esse discurso que é pronunciado do centro do círculo, conforme a sua maneira de ver e/ou conceber os diferentes assuntos, no nosso caso, a importância de todos participarem das oficinas com muita dedicação. 12 134 Formação de professores indígenas... alunos, chegando a ponto de alguns transcreverem atividades que lhes interessavam para trabalhar em suas respectivas salas de aula. Em Sangradouro, as atividades de discussão pedagógica e trabalho na sala de aula foram as que mais chamaram a atenção dos acadêmicos. Durante essas atividades os acadêmicos demonstraram bastante interesse pelo o planejamento de suas atividades como professores e perceberam a importância da utilização de materiais pedagógicos, além do livro didático, para o planejamento e desenvolvimento de suas aulas. Um ponto marcante foi a participação das mulheres que tradicionalmente e por influência cultural se expõe menos nos debates e apresentações em sala de aula. Na atividade realizada com a revista “Nova Escola”, elas foram dinâmicas na apresentação de suas reportagens, na transposição dos temas tratados pelas matérias para a realidade em sala de aula. Por fim, um aspecto que ficou notório em todos os pólos foi a expectativa da comunidade com a realização aos trabalhos. Todos esperaram com grande entusiasmo e curiosidade a chegada da equipe nas áreas. De acordo com esse fato, percebe-se que a realização das Oficinas nas aldeias, além de ser importante no processo de formação dos acadêmicos, é também um fator que proporciona fortalecimento político da Universidade, das comunidades anfitriãs e de todos os envolvidos. Avaliação O Programa de Educação Superior Indígena Intercultural – PROESI - prevê três níveis de avaliação, sendo: o primeiro nível a avaliação do Programa no âmbito da formação (avaliação externa), o segundo nível, a avaliação dos cursos no âmbito da escola, impacto dos cursos no cotidiano escolar e, por último, o terceiro nível, avaliação dos cursistas no âmbito do curso e da sua formação como professor. Considerando o terceiro nível, o das avaliações dos acadêmicos, a realização das Oficinas Pedagógicas em pólos proporcionou uma experiência enriquecedora, considerando o 135 Cadernos de Educação Escolar Indígena contexto da aldeia e a proximidade professor/aluno. Ao final de cada Oficina, foi solicitada aos acadêmicos uma avaliação escrita sobre o encontro. Eles deveriam falar sobre suas expectativas, desenvolvimento pessoal e alcance de objetivos. Nesse aspecto, deveria falar também sobre a forma como as atividades foram conduzidas e, por fim, fazer críticas e sugestões ao trabalho da equipe. Foi pedido ainda que avaliassem a importância da Oficina dentro do curso. Diante do que se pretende nas licenciaturas, uma avaliação como essa, feita pelos acadêmicos, é fundamental para o aprimoramento das atividades oferecidas, uma vez que a estrutura curricular dos cursos possibilita mobilidade para as adequações, tendo em vista o êxito no processo de ensino-aprendizagem dos professores em formação. Pelo que foi observado no desenvolvimento das atividades, participação dos acadêmicos e avaliações escritas, o trabalho alcançou a sua meta principal que era, além de desenvolver as atividades de ensino-aprendizagem, possibilitar reflexões sobre a construção da escola indígena, considerando as particularidades e a abrangência das questões pedagógicas, culturais, legais e políticas envolvidas. Considerações finais A partir do trabalho desenvolvido, observamos que o acompanhamento individual dos acadêmicos, a participação das lideranças, a realidade das escolas das aldeias e o desenvolvimento da pesquisa são alguns pontos que merecem ser ressaltados. Com essa experiência de acompanhamento dos acadêmicos nas suas respectivas comunidade e/ou escolas, pode-se dizer que conhecer cada aluno indígena matriculado nos cursos de licenciatura específicos para formação de professores indígenas no seu contexto social/político é fundamental, pois, às vezes, o fato do aluno se manifestar pouco durante as aulas da Etapa Intensiva não significa que o mesmo não esteja acompanhando o processo, mas sim, pode estar tendo dificuldades de se expressar em público ou até mesmo, pode estar respeitando alguma norma interna da sua cultura. Esse 136 Formação de professores indígenas... aspecto muitas vezes só é percebido quando os alunos estão na sua comunidade ou em pequenos grupos durante as Oficinas Pedagógicas desenvolvidas em suas respectivas áreas. Se isso não for considerado, a condução do processo pedagógico dos cursos oferecidos pode ser prejudicada. Nessa mesma perspectiva, podemos destacar ainda nessa experiência, a importância das lideranças no desenvolvimento do trabalho, tanto com relação ao apoio logístico quanto nos aspectos pedagógicos/disciplinares. Isso porque a simples presença de um líder nas oficinas, transforma o ambiente e fortalece ainda mais o espaço de ensino/aprendizagem quando essas pessoas expõem aos acadêmicos as suas experiências ou até mesmo dificuldades encontradas em tempos passados com relação à formação de professores indígenas. A consciência desse histórico de dificuldades da Educação Escolar, na maioria dos casos, desencadeia nos acadêmicos uma atitude de responsabilidade com relação ao processo de educação atual e isso é primordial para o andamento dos trabalhos. Além de tudo, nesse convívio é possível perceber as dificuldades que os professores enfrentam na realização das suas atividades dentro das escolas em suas comunidades e, a partir daí, pode-se sugerir e montar estratégias pedagógicas mais adequadas para atendê-los nos diferentes contextos. De maneira geral podemos dizer que essa experiência nos permitiu perceber muitas particularidades da temática “formação dos professores indígenas”. Dentre estas, alguns aspectos que ainda precisam de um maior destaque dentro da proposta de trabalho do próprio curso, tais como: a importância do planejamento das atividades escolares e a adequação da prática de ensino à realidade da clientela. Devido ao fato de que só recentemente a legislação brasileira possibilitou a autonomia dos povos indígenas na condução de suas escolas, a prática pedagógica é ainda algo novo para muitos, planejar ainda parece ser desnecessário. Mas essa falta de planejamento, de certa forma, tem reflexo no desempenho do processo de ensino/ aprendizagem. A adequação da prática pedagógica com a realidade de cada escola, cada turma, é um fator que precisa ser melhor trabalhado com os acadêmicos, pois nem sempre o que eles aprenderam na sua vida 137 Cadernos de Educação Escolar Indígena de estudante universitário, é compatível com a forma de ensino/ aprendizagem estabelecida culturalmente. Ou seja, a forma que se ensina e se aprende na cultura fica muito distante daquela maneira que estão aprendendo na escola formal. Mas tudo isso, talvez possa ser contemplado se levarmos em consideração o ensino-aprendizagem na perspectiva da pesquisa. Podemos perceber que numa modalidade de curso como essa, a pesquisa precisa ser proposta e conduzida, ou seja, exercitada, pois acreditamos que a perspectiva da investigação seja a trilha a ser percorrida na formação de professores, sejam licenciaturas específicas ou não. Sendo assim, acreditamos que discutir/refletir as questões da investigação possa oferecer condições para desenvolver os trabalhos nas comunidades de forma mais adequada e crítica. Bibliografia CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA – Projeto de Formação de Professores Indígenas / 3º Grau Indígena, Barra do Bugres: UNEMAT, v. 3, nº 1, 2004. CADERNOS de planejamento: que escola que queremos? In: Revista Nova escola. São Paulo: Editora Abril, nº 158, p. 35-45, dezembro de 2002. GRUPIONI, Luiz Donisete B. (Org.) Formação de Professores Indígenas: repensando trajetórias.Ministério da Educação, Secretaria da Educação Continuada,Alfabetização e Diversidade.Brasília, 2006 MINISTÉRIO da educação. Programa Parâmetros em ação: as leis e a educação escolar indígena. Brasília: Mec, 2002. MINISTÉRIO da educação. Programa Parâmetros em ação: quem são, quantos são, onde estão os povos indígenas e suas escolas no Brasil. Brasília: Mec, 2002. SECRETARIA de Educação Fundamental. Referenciais Para a Formação de professores Indígenas. Brasília: Mec, 2002. 138 Formação de professores indígenas... SECRETARIA DE Ensino Fundamental. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas – RCNEI. Brasília: Mec/SEF, 1998. SILVA, Araci Lopes da & FERREIRA, Marina K. Leal. Práticas Pedagógicas na Escola indígena. São Paulo: Editora Global, 2001. SILVA, Araci Lopes da. A Questão Indígena na Sala de Aula: subsídios para professores de 1º e 2º graus. São Paulo: Brasiliense, 1987. 139 En tre vista com a estudan te Maria Entre trevista estudante Síria Rupê Elias Januário* Maria Síria Rupê** Elias Januário: Maria Síria, onde você nasceu e como foi a sua infância? Maria Síria: Vou me apresentar. Meu nome é Maria Síria Rupê, moro na aldeia Fazendinha, sou da etnia Chiquitano. Os Chiquitano possuem duas aldeias, Acorizal e Fazendinha, eu nasci na Fazendinha, fiquei lá até os treze anos, onde estudei do primário até a quarta série, na Escola General Ozório, no quartel, que seguia o regime militar. As crianças daquela época iam para a escola aos sete anos, eram obrigadas, se não fossem os pais eram castigados, por isso os pais levavam a gente. Tinha aula de manhã e à tarde. À tarde a gente sempre fazia aula de educação física, e sempre os professores eram só os militares ou suas esposas, que alfabetizavam e educavam a gente, dali começou a minha perda de tudo, da minha língua, de tudo porque a gente não podia falar a língua, a partir do momento que entravamos no quartel já era regime de branco, não podia mais falar na língua, dançar, tudo era cortado, era um regime sério, a gente estudava desde pequeno, era senhor, senhora. Éramos tratados como militares, limpávamos o pátio, tinha as horas de recreação, cantar o hino nacional. A minha infância então foi passada entre o quartel e a aldeia. * Dr. em Educação pela UFSCar, Docente do Deptº. de História e do PPGCA da UNEMAT. Coordenador Geral do PROESI. ** Professora Chiquitano na aldeia Fazendinha, município de Porto Esperidião. Estudante dos Cursos de Licenciatura do PROESI. 141 Cadernos de Educação Escolar Indígena Elias Januário: Onde você fez os seus estudos secundários? Maria Síria: Até os treze anos, como eu disse, estudei lá no quartel, assim que terminei fui para a cidade, porque meu pai sempre achou que a gente tinha que estudar, mas não sabia como que tinha que ser. A minha irmã já tinha ido pra cidade e casado com um policial, aí eu fui pra lá, estudei na escola em Cáceres, na Escola Esperidião Marques, onde fiz o Ensino Fundamental e depois o Ensino Médio na Escola Milton Marquês Curvo, onde terminei todo o meu estudo. Elias Januário: Gostaria que você falasse um pouco da questão dos Chiquitano no Brasil? Maria Síria: Bom, a questão dos Chiquitano no Brasil iniciou em 2004, quando o povo começou a lutar pela terra, porque antes a gente não sabia se éramos índios. Estou falando do Portal do Encantado, que é a nossa terra, onde está na demarcação, que fica no município de Porto Esperidião, mas os Chiquitano no Brasil vem desde Cuiabá, passa pela região de Vila Bela e continua mais pra frente. A nossa luta, no Brasil, agora que teve visibilidade por causa da terra, aí que fizeram o estudo da terra, porque eles queriam mandar meus pais embora, toda a minha família, cobravam o pasto e as casas, não deixavam mais eles fazerem as casas, não deixavam mais eles plantarem, chegou ao ponto que os Chiquitano que criavam animais estavam pagando por cabeça de gado, cobravam um real. Você imagina a pessoa que não tem, que já trabalha para sustentar a família, ainda ter que pagar aluguel do mato, pagar o lugar onde for fazer a roça, ter que pagar tanta coisa com o salário miserável que os fazendeiros pagavam pra eles, que paga até hoje, você imagina a diária que são dez reais, trabalhar para pagar tudo isso. Dessa forma, começou a luta do povo Chiquitano em requerer a sua terra. Procuramos a FUNAI, antes disso meu pai mandou uma carta para Brasília, por meio de um funcionário da FUNAI, que esteve antes lá. Foi a partir do momento que eles tiveram necessidade, no momento que falaram que nós iríamos ser despejados, que começou o conflito dos Chiquitano no Brasil, que hoje está sendo reconhecido, mas com muito preconceito dos fazendeiros, eu mesma sofri muito preconceito no quartel, foi até boa essa questão do quartel querer 142 Entrevista com a acadêmica Maria Síria Rupê pressionar os índios de lá. Isso ajudou para que a gente fosse reconhecido no Brasil, até aquele momento a gente era conhecido como Bugre que eles falavam, e eu não gosto de ser chamada de Bugre, porque Bugre é uma pessoa sem identidade. Falavam que eu era Bugre. Até na escola quando estudava em Cáceres, as pessoas ficavam falando se eu era índia, japonesa, o que eu era, ficavam falando que eu era Boliviana. Diziam que Boliviana eu não era porque tinha nascido no Brasil, com essa demarcação, com tudo isso que foi acontecendo, hoje fico feliz em saber quem eu sou e sei da minha identidade, e assim os Chiquitano também, todos estão lutando para ter o reconhecimento da identidade do nosso povo no Brasil, infelizmente tem muitos que têm vergonha de dizer que é um Chiquitano, têm medo dos fazendeiros. Elias Januário: Como você mesma falou, existem pessoas que ainda têm vergonha de dizer que é um Chiquitano, de dizer que é índio, então gostaria de saber quais os preconceitos e as dificuldades enfrentadas nesta busca da afirmação da identidade por vocês e principalmente por você? Maria Síria: Pra mim a dificuldade ainda é muito grande, principalmente quando vou na cidade, agora tenho muita dificuldade de entrar nos lugares onde eu entrava, por que as pessoas já sabem dos Chiquitano, e começam a falar que a gente está nessa luta, sem saber realmente o que é Chiquitano. As pessoas ficam querendo manipular, querendo comprar a gente. Lá no município teve um vereador que chegou a me perguntar se eu iria voltar a andar pelada novamente, se iria cozinhar no chão, dormir no chão. São pessoas que não têm conhecimento da cultura indígena, o que é uma língua indígena, então têm muito preconceito. Dizem que índio tem que andar fantasiado, cadê seu cocar? Cadê a sua pintura? Que índio tem que andar só assim. Isso nos humilha e ofende. Essas pessoas que falam não tem conhecimento da cultura indígena, qual a importância da cultura. Isso dificulta os demais Chiquitano a estar assumindo como índio, de dizer que é índio, que a sua identidade é essa. Eles têm dificuldades de enfrentar as pessoas que falam que a gente só come bicho, mato e raízes. Lá no município os fazendeiros e os vereadores atormentam muito os jovens, dizendo que isso que eles estão fazendo não vai ter futuro nenhum, eles falam que ensino diferenciado é esse? 143 Cadernos de Educação Escolar Indígena Que eles não conhecem nenhum ensino diferenciado indígena, então para a juventude fica muito difícil e para os mais velhos também, porque tem os mais velhos que ainda não se aceitam, sabe fazer os potes, as panelas, fala na língua, mas perante a sociedade não-índia eles falam que não são índios, ficam se escondendo para não serem perturbados, para não serem discriminados. Elias Januário: No início você falou da sua educação, da sua infância, onde você nasceu, falou da sua escola que era em regime militar, e hoje, como é a escola na sua aldeia? Maria Síria: A escola na minha aldeia é do Estado e tem ensino diferenciado. Antes quando eu estudava o regime era do quartel, eles que implantaram a escola e éramos educados da maneira deles, agora é do município, a escola é totalmente diferente. Avaliamos que com o ensino diferenciado está bem melhor do que antes, agora só os índios estão trabalhando. Estamos valorizando tudo que foi perdido. A cultura, a música e o artesanato os jovens estão aprendendo novamente, estamos orientando que não podemos ter vergonha do que somos. É uma escola que tem liberdade pra tudo, tudo que eu não tive, tem liberdade pra falar, tem a liberdade de falar com o professor, tem a liberdade de perguntar, coisa que na minha educação eu tinha que acatar tudo que era dito pelo professor, “sim senhor e sim senhora”, e se não falasse a tabuada, por exemplo, levava palmatória, ficava de castigo. Hoje na escola indígena é mais tranqüilo e feliz. Aprendemos de verdade. Elias Januário: Estão trabalhado a questão da identidade na escola? Maria Síria: Trabalhamos, na nossa escola principalmente, neste momento a questão da identidade é assunto em todas as disciplinas, estamos trabalhando justamente aquilo que lhe falei, que eles têm vergonha, têm dificuldade de ir ao mercado, que as pessoas começam a falar, a gente vai orientando como eles devem responder a essas pessoas que estão humilhando, para que eles possam sair e não ficar chateados. No começo da escola, em 2004, eles tinham vergonha, ficavam acanhados de dizer que eram índios. A pedido da comunidade 144 Entrevista com a acadêmica Maria Síria Rupê começamos a trabalhar nessa orientação, para não ter desavença entre eles, porque lá já tem essa mistura de branco com índio. Elias Januário: Sabendo que você nasceu na aldeia, foi alfabetizada num regime militar, na cidade concluiu o ensino fundamental e médio, o que significa hoje para você estar cursando o 3º Grau Indígena na UNEMAT? Maria Síria: É muito importante pra mim, porque eu deixei tudo que tinha na cidade, larguei casa, marido que não quis vir comigo, ele é branco, não quis ir para a aldeia, porque ele não ia deixar seu serviço pra ir para a aldeia. Eu fui pra lá justamente porque o povo Chiquitano precisava ter esta escola na aldeia, e entre as pessoas que foram indicadas eu fui uma das escolhidas. Estar cursando o 3º Grau Indígena contribui para ampliar meus conhecimentos e incentivar a minha carreira de educadora. Elias Januário: Muito obrigado Maria Síria e boa sorte na sua luta e na sua formação acadêmica. Maria Síria: Fico feliz pela oportunidade de falar e divulgar a nossa luta, a trajetória do povo Chiquitano no Brasil. Obrigada também. 145