Artigos - Cadernos Saúde Coletiva
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; \ \ Artigos ABORDAGENS SÓCIO-ANTROPOLÓGICAS NA COMPREENSÃO DO USO DOS MEDICAMENTOS Jussara Calmon Reis de SOUZll Soares Farmacêutica do Núcleo de Estudos de Saúde Coletiva - NESCIUFRJ, Doutoranda em Saúde Coletiva no Instituto de Medicina Social - IMSIUERJ. Endereço: (NESC) - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). SOCIO-ANTHROPOLOGICAL APPROACHES ON TOE UNDERSTENDING OF DRUG USE RESUMO: Com base em diversas perspectivas de análise dos aspectos sócio-culturais que condicionam e influenciam o uso de medicamentos pelos vários atores envolvidos, nas mais diversas sociedades, busca-se discutir, ABSTRACT: In this paper lhe mains contributions of various approaches on the socio-cultural aspects which condition and influence lhe use of medicines, by the different actors involved in this process, are presented. The importance for the understanding of the arnbivalences found in drug by patients and heallh professionais are discussed. This understanding is considered assential for lhe development of effective and feasible guidelines for a drug policy oriented towards the reflective and use of medicines. The need for a criticai evalution of the methodologies and approaches used is emphasized, an anthropological perspective which integrates micro and macro dimensions in its analysis of the use of medicines is proposed. nesse artigo. as principais contribuições e analisar a sua importância para a compreensão das ambivalências encontradas no uso de medicamentos, tanto por pacientes como por profissionais de saúde. Esta compreensão é entendida como fundamental para o estabelecimento de diretrizes eficazes e viáveis para uma poUtica de medicamentos que busque o seu uso reflexivo e ativo. Ressalta-se a necessidade de avaliação crítica das metodologias e enfoques utilizados, apontando-se uma perspectiva teóricometodológica que integre dimensões micro e macro de análise antropológica. tendo como tema o uso de medicamentos. Palavras-chave: medicamentos e cultura, antropologia farmacêutica, uso de medicamentos, política de Keywords: medicines and culture, pharmaceutical anthropology, drug use, drug policy. medicamentos 5 Cad. Saúde Colet. 5 (1). 1997 INTRODUÇÃO interessa o uso racional? Investigações sobre este e outros temas podem trazer grandes contribuições das ciências sociais ao campo da saúde. Como os medicamentos não existem em si mesmos, assumindo papéis que são social, cultural e historicamente determinados, seus significados devem ser analisados em termos da sua dinâmica nos processos sociais. Os medicamentos têm uma natureza dinâmica, complexa, multidimensional e tomam-se cada vez mais indispensáveis na prática médica moderna, onde passaram a ser a ferramenta mais usada entre as tecnologias do chamado complexo médicoindustrial. Hoje é impossível falar em atenção médica sem incluir os medicamentos; eles já são, inclusive, pane integrante das representações de saúde das populações em diversas sociedades. Faz parte do senso comum considerar que um fluxo livre de medicamentos em uma determinada sociedade representa a qualidade de um sistema de saúde; no Brasil, por exemplo, a demanda por medicamentos nas instituições públicas de saúde está sempre presente entre as reivindicações tanto de movimentos populares organizados. quanto nas lutas dos profissionais de saúde por melhores condições de trabalho. É inegável hoje o valor positivo e a popularidade que os medicamentos têm entre os mais diversos segmentos da sociedade, nos mais variados contextos sócio-culturais. O incessante aumento no consumo de medicamentos, observado praticamente em todo o mundo, implica muitas vezes em ENFOQUES TEÓRICOS ACERCA DOS SIGNIF1CADOS DOS MEDICAMENTOS Diversas perspectivas teóricometodológicas dentro das ciências sociais vêm sendo utilizadas na tentativa de compreensão do uso dos medicamentos e, em particular, em relação à evidenciação e análise dos aspectos simbólicos, sociais e culturais a( envolvidos, entre os quais podemos citar, por exemplo, Dupuy & Karsenty (1979), Mapes (1980), Svarstad (1981), Blum et ai. (1981), v.d.Geest & Whyte (1988; 1989), Haaijer-Ruskamp & Hemminki (1993). No Brasil, apesar de ainda ser relativamente pequena a produção acadêmica neste campo, podemos destacar autores como Pacheco (1968; 1978; 1983), que analisou as estratégias das indústrias farmacêuticas, em particular as transnacionais; Frenkel et a!. (1978), que estudaram a evolução dos diversos estágios tecnológicos da indústria farmacêutica no país. Giovanni (1980)e Cordeiro (1980) buscaram evidenciar as articulações entre a produção e a circulação de medicamentos, a prática médica e as políticas estatais do setor, que teriam determinado as condições das práticas de consumo de medicamentos no Brasil. Estes autores mostraram como as políticas governamentais vêm atendendo aos interesses das indústrias fannacêuticas, de ampliação do mercado consumidor. Barros (ver, por exemplo, 1982; 1983; 1995) vem enfocando basicamente o processo de medicalização e as estratégias de marketing da indústria farmacêutica. Temporão (1986) tomou como objeto a propaganda de medicamentos, particulannente nos meios de comunicação de massa. Soares (1989) gastos altíssimos para os governos. Junte-se a isso, uma conscientização crescente acerca das graves conseqüências desse uso, que vem se caracterizando como abusivo e muitas vezes inadeqüado, levando an aumento de doenças iatrogênicas, an mascaramento da causação social de doenças e an crescente processo de medicalização. Assim, cresce a defesa do uso racional de medicamentos como diretriz fundamental para políticas nacionais de medicamentos, na qual a OMS tem tido participação ativa e importante. O estímulo ao uso racional tomou-se hoje praticamente uma questão consensual entre os mais diversos agentes e instituições envolvidos com política de medicamentos, ainda que por interesses e concepções muitas vezes divergentes e até conflitantes. O que se entende por uso raciooal de medicamentos? De que racionalidade se trata? A quem Cad. Saúlk ColeI. 5 (I), 1997 6 ( • ..• ... buscou avaliar as consequencias da inexistência de uma efetiva definição e implementação de uma política de medicamentos e assistência farmacêutica no Brasil. Bermudez (1992; 1995) vem analisando a polftica industrial para o setor e defendendo a produção nacional de medicamentos. Esses estudos enfatizam o macronível de análise, ou seja, buscam nos processos ao nível da sociedade e até mesmo em processos e fatores globais , os determinantes e condicionantes do uso de medicamentos. Uma contribuição importante deste tipo de abordagem é mostrar o impacto e a influência de interesses políticos e econÔmicos na prática médica, incluindo a prescrição medicamentosa e O seu uso pejos pacientes e pela população em geral. As indústrias farmacêuticas precisam entre outros. Além disso, os produtores de medicamentos atuam na di vulgação e fortalecimento do paradigma médico hegemônico, no qual a doença é vista como o resultado da ação de agentes específicos em locais específicos do organismo podendo, portanto, ser curada pelas "balas mágicas" (as "magic bullets", de Ehrlich) desenvolvidas pela tecnociência moderna. dentro de rigorosos parâmetros científicos e racionais . A defesa e o reforço do modelo biomédico orientado para a cura, de caráter individualista e intervencionisla, se articula às exigências do processo de industrialização, assim como aos interesses profissionais das instituições médicas e acadêmicas. Também a influência dos diferentes backgrounds culturais sobre a prática médica foram analisados no nível macro. Payer (1988), em interessante ensaio embora não-acadêmico - desmistifica o discurso científico da prática médica, ao comparar como esta se dá na Inglaterra, Estados Unidos, França e Alemanha, apontando o quanto de crenças, valores culturais, percepções sobre corpo, saúde e doença, permeiarn e influenciam essas práticas, que se pretendem puramente científicas, objetivas e neutras. Entre as desvantagens de perspectivas macro de análise está a tendência à ênfase excessiva sobre a importância dos fatores estruturais, negligenciando-se ou subestimando-se outros fatores que, indubitavelmente também, influenciam o uso de medicamentos. Assim, as ambivalências que podem ser vistas no nível micro são freqüentemente desconsideradas. Análises da relação médico-paciente dentro de uma perspectiva macro, por exemplo, limitam-se às forças políticas, sociais e econÔmicas que controlam a sociedade; a relação é vista como um processo social, como realmente o é; porém, o fato de que é também e ao mesmo tempo uma relação interpessoal, subjetiva, é completamente ignorado. Os eventos são explicados através de princípios organizacionais gerais e globalizantes, sendo freqüentemente estudos teóricos que não "descem" ao nível da vida e prática cotidiana dos sujeitos envolvidos . estar constantemente criando novas demandas e necessidades de medicamentos a fim de sobreviver e gerar lucros; o mercado deve ser constantemente expandido e renovado. A generalização de uma dita ideologia consurnista é fundamental para que as necessidades da produção capitalista tomem-se parte das necessidades de saúde individuais e coletivas. No Brasil, por exemplo, Giovanni (1980) e Cordeiro (1980) mostraram como o sistema de atenção roédicase organizou articuladamente com os interesses do chamado complexo médico-industrial, onde se inclui a indústria farmacêutica É do interesse da indústria fannacêutica "vender" a idéia de que os medicamentos significam a própria saúde, para ter impacto sobre políticas de saúde e a prática médica: assim, os significados positivos dos medicamentos e da terapêutica roédico-<:ientífica (alopática) são valorizados e enfatizados, tendendo-se a minimizar ou omitir os lados negativos ( ver, por ex., Hemminki & Pesonen, 1977; Silvermann et aI. , 1982; Hemminki, 1988; Tomson & Weerasuriya, 1990); assim, são diversas as estratégias mercadológicas em que os significados simbólicos dos medicamentos e da moderna terapêutica são manipulados; nesta linha de análise podemos citar Goldman & Montagne (1986), Kleinman & Cohen (1991), Riska& Hagglund(I99I), . 7 Cad. Saúde Coleto5 (1). 1997 POR QUE UMA ANTROPOLOGIA FARMACÊUTICA? seu dia-a-dia, que tipo de orientação procuram e recebem, quais as suas demandas e necessidades, a partir dos significados que são construídos historica, social e culturalmente. São esses, a grosso modo, os temas que vêm sendo investigados pela Antropologia Farmacêutica - vertente que vem se desenvolvendo dentro!a partir da antropologia médica - e que vêm subsidiando a reflexão acerca de estratégias e diretrizes para políticas de medicamentos mais enraizadas em práticas sociais concretas. Entre as contribuições deste tipo de abordagem está a descrição detalhada do uso real de medicamentos observado in loco. E também o fato de que os indivíduos são considerados e suas percepções, crenças e representações, valorizadas. Assim, a influência de características pessoais no uso de medicamentos é avaliada, assim como as estratégias de negociação usadas tanto por pacientes como pelos profissionais ao interagirem na prática Como limitações de algumas destas análises, podem ser citados o caráter puramente descritivo de muitos desses estudos e uma reflexão restrita quando buscam ir além da descrição acerca da articulação absolutamente necessária com o quadro mais amplo do contexto social, histórico e cultural em que estes eventos se dão. Estudos acerca de percepções e representações sociais indicam que os medicamentos são vistos como substâncias seguras, mas também perigosas. Eles foram considerados um meio eficaz para voltar à normalidade por alguns pacientes epiléticos, enquanto outros se sentiram totalmente viciados e dependentes deles (Rhodes, 1984). Há medicamentos que são considerados como substâncias liberadoras, no sentido em que permitem maior autonomia dos pacientes em relação às doenças e aos profissionais de saúde ou curadores (Oeest & Whyte, 1989). Porém, outros vêem essas substãocias como um fator de dependência aos profissionais (Trostle, 1988) e às drogas propriamente ditas (Rhodes, 1984). Como dissemos, alguns estudos mostram a importância dos medicamentos na normalização das vidas das pessoas, na Entre antropólogos, é relativamente recente o interesse por temas mais contemporâneos e da cultura ocidental moderna, em contraste com as investigações de populações e culturas exóticas, que constituiram a tradição antropológica Como apontou Oeest (1988), o modelo biomédico ocidental era raramente estudado por antropólogos em suas investigações no campo da antropologia médica. Até aproximadamente meados dos anos 70, estas eram praticamente todas orientadas para os fenômenos da medicina tradicional e muito se analisou, por exemplo, sobre suas relações com a religião e sistemas de crença Apenas mais recentemente a antropologia médica se voltou para a medicina científica moderna (ocidental) - a biomedicina - como objeto de pesquisa cultural, quer seja em sociedades ocidentais ou não. Os estudos sobre a biomedicina fora do contexto europeu ocidental geralmente lidam com temas como o pluralismo médico, escolhas terapêuticas e a hegemonia do modelo biomédico. Aos poucos, dentro da antropologia médica, foi se fazendo necessário aprofundar questões que incluem desde como se dá a produção, distribuição e a comercialização de medicamentos; os papéis da indústria farmacêutica. dos "propagandistas". médicos. farmacêuticos, balconistas e consumidores nos padrões de consumo; as transações e uso que se dão fora do controle do sistema de saúde; a compra de medicamentos como fator de viabilização da individualização da terapia; até as implicações do pluralismo farmacêutico para as mudanças nas percepções de populações acerca dos medicamentos tradicionais; os significados dos medicamentos para pacientes, profissionais e para a população em geral e suas relações com conceitos de saúde/doença e de cura; a percepção sobre eficácia e riscos de medicamentos. Enfim. através de perspectivas bottom up' e de variadas técnicas metodológicas qualitativas, busca-se enfatizar como as pessoas selecionam e utilizam os medicamentos no Cod. Saúde ColeI. 5 (l), /997 8 • • •• • • ~ caracterizados por seus elementos racionais e científicos, os aspectos mágicos, místicos e religiosos relacionados à ingestão de drogas (quer sejam substâncias naturais ou sintéticas), ao hábito e desejo universal de tomar algo para contrapor à doença, persistem. Esses são apenas alguns exemplos encontrados na literatura científica que medida em que permitem a retomada de suas atividades normais, cotidianas. Mas, por outro lado, o uso de medicamentos pode atuar no sentido de legitimar a doença e o doente, apresentando-se como a prova concreta de que determinado indivíduo é incapaz de trabalhar ou de ser normal. Os medicamentos simbolizam a saúde, concretizada em comprimidos, ampolas, etc, mas também significam a falta de saúde. Podem tanto representar a atenção e preocupação dos pais e médicos como serem considerados uma alternativa para a falta daquele cuidado, conforme apontado em alguns estudos sobre o comportamento de crianças em relação aos medicamentos (Bush & lannotti, 1988; Bush & Hardon, 1990; Trakas, 1990; Sachs, 1990). Eles são compreendidos tanto como meios de comunicação (p.ex., Sachs, 1989), quanto como indicadores de não-comunicação (p.ex., Michel, 1985). Podem ser considerados o resultado de um dado ilustram como as percepções sobre medicamentos podem variar enonnemente, de acordo com o contexto e as circunstâncias em que são analisados . É óbvio que percepções diversas estão relacionadas com atitudes diferentes frente aos medicamentos, tendo implicações para a saúde, não somente do ponto de vista do indivíduo como da saúde coleti va. Porém. a perspectiva e a metodologia de análise utilizadas também levam a resultados bastante diversos. Um problema em muitos estudos parece ser uma análise restrita dos significados dos medicamentos, que deveriam ser entendidos em toda a sua complexidade: os medicamentos podem ser seguros e perigosos, podem dar autonomia e tirá-la, e assim por diante. Ambivalências são inerentes aos medicamentos por conta de sua natureza complexa e multidimensional: eles são simultaneamente substâncias químicas. mercadorias e símbolos. Portanto, não parece ser relevante analisar se os medicamentos têm conotação positiva ou negativa; as ambigüidades devem ser o ponto de partida de pesquisas orientadas para a compreensão da popularidade dos medicamentos, com O objetivo de intervir no sentido da busca de um uso otimizado, visando a promoção da saúde. Ou seja, o foco deve estar nas contradições, nos conflitos resultantes das diferentes percepções, representações de saúde/doença, de corpo, de tratamentos e de medicamentos e, conseqüentemente, nos diferentes usos que serão feitos por pacientes. profissionais e por leigos nas interações do cotidiano. seja no interior dos sistemas de cura ou fora deles (Soares & HaaijerRuskamp, 1991). A análise antropológica pode permitir isto. O enfoque microanalitico, evidencia, por exemplo, como as demandas dos pacientes por medicamentos influenciam conhecimento, Le., a prova concreta de uma certeza quanto ao diagnóstico, daf a seleção de um certo medicamento. Porém, também podem ser vistos como indicativo de nãoconhecimento: o medicamento está sendo prescrito como uma tentativa de ensaio e erro, uma vez que a causa do problema é desconhecida. Considerando, então, a dimensão simbólico-ideológica que envolve os medicamentos alopáticos modernos pode-se afirmar, por um lado, que seu forte poder e apelo está no fato de que eles simbolizam a saúde e o poder da moderna tecnologia científica (ver, por ex., Pellegrino, 1976; Giovanni, 1980; Cordeiro, 1980; Montagne, 1988;Geest&Whyte, 1989;Lerevre, 1991); por outro lado, porém, como apontado por Pellegrino (op.ci!.), também deve ser considerado que substâncias medicamentosas vêm sendo usadas ao longo de milhares de anos, em todas as épocas e sociedades, tendo sempre ocupado um lugar importante em práticas curativas . As demandas de leigos por substâncias que atuem em seu organismo são universais e estão entre as mais antigas e simbólicas experiências humanas. Apesar dos produtos farmacêuticos modernos serem geralmente 9 Cad. SaM. Colet. 5 (I). 1997 as decisões dos médicos no momento da prescrição, assim como as atitudes dos médicos influenciam seu uso pelos pacientes. Como bem analisou Loyola (\984: 141), a própria" (... )avaliação dos medicamentos sofre a influência da relação - boa ou má - A maioria dessas pesquisas vem sendo realizada na Ásia e África No Brasil, os estudos antropológicos acerca dos medicamentos ainda são muito escassos. Podemos destacar o pioneirismo de trabalbos como os de Loyola (op.cit.) e Duarte (1986), que apesar de abordarem indiretamente a que tiveram com o médico, e que contribui, por sua vez, para consolidar ou destruir esta questão dos medicamentos, evidenciam, no caso de Loyola. as mútuas influências exercidas entre médicos e pacientes no momento da prescrição, como citado acima relação". A desconsideração de fatos como estes pode comprometer seriamente a política de medicamentos. Porém, é necessário articular abordagens micro e macro, no sentido da ampliação da perspectiva Duarte (op.cit) , ao discutir a "doença de nervos" nas classes trabalbadoras urbanas, coloca a terapêutica como um dos grandes temas da configuração do "nervoso". Já Haak (1988; 1989), Letevre (1991) e Rozemberg (\994) são alguns dos autores que investigam teórica, possibilitando a emergência dos múltiplos significados presentes nos medicamentos. É preciso trabalbar o objeto em toda sua riqueza e complexidade. No campo da Antropologia Médica, os defensores de uma perspectiva percepções e representações acerca dos medicamentos entre determinadas crítica propõem uma síntese, na qual os populações brasileiras. aspectos interpessoais, as percepções e atitudes individuais em suas experiências cotidianas, o significado dos medicamentos em suas vidas e nas suas estratégias de negociação com os profissionais de saúde são consideradas dimensões importantes para a Assim, esta parece ser uma vertente reflexão e compreensão da questão dos medicamentos. Porém, ao mesmo tempo, os indivíduos não podem ser entendidos como se fossem independentes do coletivo, da sociedade à qual pertencem. Os atores envolvidos somente podem ser compreendidos como parte ativa de um J a reflexão acerca dos significados que os • medicamentos vêm ocupando na relação médico/paciente e na ampliação do processo de medicalização no Brasil, como também complexo processo social, histórico e cultural, como apontam Singer, 1989; Singer, Baer & Lazarus, 1990; Press, \990, para citar alguns autores. A maior parte da produção acadêmica dentro de uma perspectiva antropológica critica é, entretanto, te6rico-conceitual. Na Antropologia Farmacêutica propõe-se também uma compreensão mais ampla das percepções, demandas e usos de medicamentos pela população, através da ênfase no contexto sócio-cultural em que essas substâncias são produzidas, distribuídas, comercializadas e consumidas (Geest & Whyte, 1988). É o que buscam, por exemplo, Geest (\988), Bledsoe & Goubaud (1988), Ferguson (\988), Wolffers (\988), Haak & Hardon (\988), Trakas (\99\) e Senah (1991), que integram fatores micro e macro em suas análises. Cad. Saúde Colei. 5 (1 ),1997 de análise com grandes perspectivas no Brasil, tanto pelos temas em si, fundamentais para a produção antropológica no campo da saúde/doença, como pelas questões teóricometodológicas que surgem ao se buscar uma visão critica, que seja mais adequada para a compreensão da complexidade dos fatos enfrentados hoje pelos analistas das sociedades contemporâneas. É fundamental dos diferentes usos que são feitos por pacientes. profissionais e por leigos nas interações do cotidiano, seja no interior dos sistemas de cura (oficiais e/ou alternativos) ou fora deles. Contribuições resultantes de estudos com essa perspectiva podem subsidiar propostas de estratégias de otimização do uso de medicamentos no sentido de um uso critico e ativo, tanto por parte dos consumidores de medicamentos como dos profissionais de saúde, bem como a elaboração de diretrizes para uma política de medicamentos e de saúde que rompa com a racionalidade hoje hegemônica. que levou a um modelo altamente mercantilista e medica1izador, para orientar-se no sentido da promoção da saúde da população. 10 , \ • \ ,• \ .. I • ~ ..\ t . ~ , • ~ • t REFERÊNCIAS BffiLlOGRÁFICAS: BARROS,J.A.C., 1982. A medicalização da clientela previdenciária. Dissertação de Mestrado, São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo . BARROS,J.A.C., 1983. Estratégias mercadológicas da indústria farmacêutica e o consumo de medicamentos. Revista de Saúde Pública, São Paulo, 17:377-386. BARROS,J.A.C., 1995. Propaganda de medicamentos: atentada d saúde? São Paulo, HUCITECSOBRAVlME. 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