711 - Rede de Pesquisas em Favelas
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711 - Rede de Pesquisas em Favelas
Corpos no ringue Encontros de discursos e práticas, representações e imagens na experiência de participação em um “projeto social” entre jovens moradores da Maré (RJ) Cristina Pedroza de Faria 2005 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA Corpos no ringue: Encontros de discursos e práticas, representações e imagens na experiência de participação em um projeto social, entre jovens moradores da Maré (RJ) Cristina Pedroza de Faria Rio de Janeiro 2005 3 Corpos no ringue: Encontros de discursos e práticas, representações e imagens na experiência de participação em um projeto social, entre jovens moradores da Maré (RJ) Dissertação de Mestrado em Sociologia e Antropologia apresentada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Sociologia e Antropologia. Orientadora: Profª. Drª. Regina Célia Reyes Novaes Banca examinadora: Profª.___________________________________ Regina Célia Reyes Novaes (orientadora) - UFRJ Drª. Universidade de São Paulo - USP Profª. __________________________________ Márcia Leite Drª. Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Prof. __________________________________ Luiz Antônio Machado da Silva Ph.D. Rutgers University Prof. __________________________________ Rosilene Alvim (suplente) Prof. ___________________________________ Patrícia Birman (suplente) 4 FICHA CATALOGRÁFICA FARIA, Cristina Pedroza de Corpos no ringue: Encontros de discursos e práticas, representações e imagens na experiência de participação em um “projeto social”, entre jovens moradores da Maré (RJ). PPGSA/IFCS/UFRJ, 2005, p. 175 Tese: Mestre em Ciências (Sociologia e Antropologia) 1. Juventude 2. Favela 3. Corpo e boxe 4. Antropologia e imagem 5. Participação social 6. Tese I. Universidade Federal do Rio de Janeiro - IFCS II.Título 5 Ao Bruno, com todo o meu amor. Por fazer parte da minha história, compartilhando presente, passado e futuro em um processo de crescimento mútuo. A Rivan e Juca (In memorian). 6 Agradecimentos Desde os primeiros contatos com moradores do Parque União (Maré), em 2001, até a aproximação maior do cotidiano de jovens praticantes de boxe da academia Luta Pela Paz (então situada na mesma localidade), durante os quatro anos seguintes, muitas pessoas foram importantes na caminhada que agora resulta neste trabalho. À Regina Novaes, sou grata pela preciosa orientação, tanto em momentos de entusiasmo quanto de angústia, pelo incentivo ao estudo junto aos jovens da Maré, mesmo antes de iniciar o curso do PPGSA, e, finalmente, pela compreensão durante o processo de elaboração desta dissertação. Sempre serei profundamente agradecida a dezenas de jovens residentes da Nova Holanda, Rubens Vaz, Parque União e adjacências, a maioria freqüentadores da academia LPP que colaboraram direta e/ou indiretamente para a construção de um olhar diferenciado sobre favelas, juventudes, participação em projetos sociais e prática de boxe. Vitor, Rivan, Daniel, Luciano, Rafael, Rafaela, Carol, Manuela, Tamires, Juliana, Daiana, Sinval, Ninho, Adailton, Waldir, Bruno, Roberto, Juca e tantos outros formam os pilares desta pesquisa. Entre os moradores locais com os quais mantive diálogos intermináveis sobre a Maré de hoje e de tempos passados, não poderia deixar de citar a contribuição valiosa de Bira e de Seu Amaro, ambos da Nova Holanda. Com formas próprias de atuação na vida comunitária, conhecem a Maré como poucos. Não poderia deixar de agradecer também a toda a equipe do Centro Esportivo e Educacional Luta Pela Paz, por quem fui acolhida, sempre com generosidade, desde o primeiro dia em que fui apresentada, por seu coordenador, ao grupo de jovens participantes dos treinos de boxe. Agradeço aos seus integrantes e, em especial, àqueles com quem tive maior contato, por poder acompanhar o dia a dia de suas atividades e pelas reflexões conjuntas: Luke Dowdney, Leriana Figueiredo, Luiz Otávio, e D. Miriam. Agradeço, ainda, ao Viva Rio e a Rubem César Fernandes pelo aprendizado adquirido em diálogos francos e abertos, pela liberdade de acessos e de atuação em projetos da instituição; também colaborou Marcelo, da área de estatística do Viva Rio e ISER. Além deles, não posso deixar de lembrar de todos da equipe do projeto Viva Favela, de quem precisei me distanciar, para me dedicar a este trabalho. 7 À valiosa amiga Patrícia Rivero, agradeço pela escuta sempre atenciosa e interessada, pela interlocução freqüente, ajudando-me a compreender melhor o “olhar sociológico”, e pelo companheirismo - das aulas de boxe às caminhadas pela Maré. À Chris Vital queria expressar meu reconhecimento pelo afeto, pela pronta disposição à ajuda desde o início do curso e pela possibilidade de compartilhar experiências relacionadas ao trabalho de campo. Sou grata também à Marilena Cunha, pela cuidadosa e competente condução dos grupos focais, pelo interesse e atenção destinados a este trabalho. À Claudinha Linhares pela grande força e estímulo. Aos companheiros do mestrado, pelas idéias compartilhadas e o aprendizado conjunto; em especial, as conversas com Carla renderam inspirações, ousadias, incansáveis questionamentos e inquietações; com Jonas, o contato foi sempre importante pela afinidade temática. A todos os professores do PPGSA e, principalmente, a Luiz Antonio Machado e Márcia Leite (UERJ) agradeço muito pelas preciosas observações que ajudaram a conduzir os parâmetros deste trabalho. À Ana Quiroga, agradeço pelo incentivo e carinho desde os passos iniciais da pesquisa de campo; a Milton Guran pelos ensinamentos no campo dos estudos da imagem na antropologia e pela escuta generosa e esclarecimento de minhas dúvidas, além de compartilhar a paixão pela fotografia. À minha mãe, querida, serei sempre agradecida pelo apoio permanente que incluiu, literalmente, casa e comida durante o percurso do mestrado. À irmã Silvia e ao pai Jorge, pelo incentivo, mesmo que à distância. À querida Ingrid, pela cumplicidade, por compartilhar dúvidas e compreensões durante o curso; à Gisela pela preocupação e afeto; aos amigos (mesmo os não citados) de quem me distanciei no decorrer deste trabalho, mas estiveram e estarão sempre presentes em minhas lembranças. Finalmente, agradeço a Claudia e Denise, da secretaria do PPGSA, e à Capes pelo financiamento desta pesquisa. 8 Resumo Jovens moradores de favelas situadas na área da Maré, zona norte do Rio de Janeiro, aprendem a praticar boxe e se tornam lutadores (amadores) desta modalidade esportiva. O presente trabalho aborda motivações que levaram alguns destes adolescentes a optar pelo boxe e identifica significados adquiridos pelo esporte no contexto de um espaço específico de treinos, o Centro Esportivo e Educacional Luta Pela Paz, que integra os programas sociais da organização não governamental Viva Rio. O foco central do estudo se volta para o encontro entre dois universos: um constituído pela experiência de vida - fundamentada em formas de pensar, representações e práticas próprias - de jovens moradores locais; outro caracterizado pela experiência coletiva construída quando estes jovens passam a freqüentar o ambiente da academia de boxe LPP. A partir deste encontro, ocorrem interações entre propostas de “mediadores externos” (no caso, objetivadas no discurso que acompanha a prática de esportes na mesma academia) e representações de jovens participantes dos treinos, estimulando a (re) elaboração de noções sobre temas que vão além da esfera esportiva, como juventude, violência, programas sociais e favela. No contexto estudado, o corpo é lugar onde a intersecção entre os dois universos citados se torna possível. Esta perspectiva leva em conta, por um lado, o fato de a adolescência ser um período de intensas transformações corporais e, por outro, o fato de a prática do boxe também provocar, inevitavelmente, modificações físicas inerentes à tal atividade esportiva. Tomada como espaço de sociabilidade, a academia onde se realizou a pesquisa de campo é também um local onde os participantes constroem diferentes formas de classificação para as expressões “luta” e “briga”. Tais categorias indicam, no contexto, possibilidades como a de obtenção de prestígio social, porém, ao mesmo tempo, demonstram a existência de posições não consensuais em relação à questão do controle da violência. A análise deste estudo se fundamenta em dados qualitativos, a saber, em representações de jovens lutadores de boxe da academia LPP, articuladas com observações de campo e pontos de vista de outros atores presentes no ambiente de pesquisa. Junto aos registros textuais, a imagem fotográfica se constituiu em um rico instrumento de pesquisa, facilitando o acesso ao contexto estudado e se tornando uma ferramenta de análise metodológica complementar. 9 Abstract Young people, residents of favelas located in the Maré region (a low-income neighbourhood at north of Rio de Janeiro), are introduced in boxing and some of them become amateur boxers. This work aims at approaching motivations which led those adolescents to choose boxing; it also identifies meanings acquired by the sport considering the context of a particular boxing club called Fight for Peace, that is part of the non-governmental organization Viva Rio social programs. Therefore, this study is focused on the encounter between two aspects: on one hand, life experiences of those local youth, based in ways of thinking, representations and practices of their own; on another hand, the colective experience built up after the same boys and girls joined the boxing club. The encounter mentioned brings the possibility of interaction between “external mediator’s” proposals (which, in this case, gets the form of the non local based NGO social proposal related to sports practice) and representations of young people who participate in boxing trannings, stimulating the elaboration of notions about themes such as youth, violence, “project” and favela. In the context studied, the body is where these aspects converge. This perspective considers that adolescence is a period of intense body modifications and the fact that boxing also brings fisical changes. Considered as a sociability space, the boxing club where the field research was made is also a place where participants develop diferent forms of classification for words like “fight”/”struggle” and ”boxing match”. In the context studied, these categories are related with social prestige but also show that there are no consensual opinions on the issue of violence control. The work analisys is based on qualitative data, field observation and view points of other people envolved with the field research. Photographic image was also used as a research method, complementing other instruments of collecting data. 10 SUMÁRIO ___________________________________________________________ INTRODUÇÃO P. 13 PARTE I CAPÍTULO 1 - METODOLOGIAS. UMA ACADEMIA DE BOXE: 1.1 SOBRE O RECORTE DO CAMPO DE PESQUISA 1.2 PROXIMIDADES E DISTÂNCIAS P. P. PORTA DE ENTRADA NA PARTICIPANTE 1.6 O EMPÍRICOS P. - P.25 28 ENTREVISTAS, HISTÓRIAS DE VIDA, GRUPOS FOCAIS, IMAGENS E OBSERVAÇÃO 29 USO DE FOTOGRAFIAS COMO RECURSO “PARA DESCOBRIR E PARA CONTAR” P. CAPÍTULO 2 - MARÉ: UMA “CIDADE” PARTICULAR 2.1 A MARÉ POR DENTRO: a) “VIVER UM POUCO ALÉM DO OLHAR PASSAGEIRO P. NA COMUNIDADE” E “MORRER 38 P.45 47 NA FAVELA”: NOTAS SOBRE USOS E SENTIDOS DOS TERMOS COMUNIDADE E FAVELA NO CONTEXTO DE PESQUISA b) O 21 23 BOXE E IDÉIAS PRÉ-CONCEBIDAS P. 1.5 SUPORTES P. 21 1.3 PERCURSOS: DO VISOR DA CÂMERA À CONSTRUÇÃO DE UM OBJETO 1.4 O MARÉ P. NÃO IR E O NÃO VIR: DESAFIOS DO CRUZAMENTO DE 68 “FRONTEIRAS” E REPRESENTAÇÕES DE TRÁFICO DE DROGAS E VIOLÊNCIA SOB A ÓTICA DE JOVENS ENTREVISTADOS P. 73 CAPÍTULO 3 – BOXE E PROJETO SOCIAL: O CENTRO ESPORTIVO E EDUCACIONAL LUTA PELA PAZ P. 82 3.1 LUTA PELA PAZ: ENCONTRO DE REPRESENTAÇÕES 3.2 PROJETOS SOCIAIS E ESPORTE P. 89 3.3 ETNOGRAFIA DE UMA ACADEMIA P. 99 O TREINO P. 103 P. 88 11 PARTE II CAPÍTULO 4 – CORPOS EM LUTA P. 111 4.1 O CORPO COMO MEDIADOR DE RELAÇÕES SOCIAIS P. 116 a) CORPO NO BOXE E AUTO-CONHECIMENTO P 116 b) CORPO NO BOXE E RELAÇÕES SOCIAIS P. 117 c) SENSAÇÕES P. 119 4.2 LUTADORES DE CARNE E OSSO P. 122 CAPÍTULO 5 – SOCIABILIDADE E SIGNIFICADOS DA PRÁTICA DE BOXE P. 128 5.1 A ACADEMIA DE BOXE COMO ESPAÇO DE SOCIABILIDADE P. 128 5.2 LUTA NO RINGUE X BRIGA NA RUA P. 137 a) LUTA NO RINGUE - O BOXE COMO FORMA DE OBTENÇÃO DE PRESTIGIO E DISTINÇÃO SOCIAL P. 138 i. SOBRE OS SIGNIFICADOS DE UMA “LUTA NA COMUNIDADE” ii. SOBRE OS SIGNIFICADOS DE LUTAS NO “PALCO OFICIAL” DO BOXE 5.2.1 BRIGA NA RUA - CLASSIFICAÇÕES DE BRIGA P. 150 COMENTÁRIOS FINAIS P. 153 BIBLIOGRAFIA P. 157 ANEXO 1 - DOCUMENTO DE METODOLOGIA DO LUTA PELA PAZ (TRECHOS) P. 162 ANEXO 2 - DADOS SOBRE ENTREVISTAS INDIVIDUAIS P. 164 ANEXO 3 - DADOS SOBRE OS GRUPOS FOCAIS P. 165 ANEXO 4 – CRONOLOGIA DO TRABALHO DE CAMPO P. 170 ANEXO 5 – GÍRIAS P. 171 ANEXO 6 – GLOSSÁRIO BÁSICO DO BOXE P. 172 ANEXO 7 – QUADRO DE MORTES POR ARMA DE FOGO POR BAIRRO NO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO P. 173 12 SIGLAS ADA – Amigos dos Amigos CBB – Confederação Brasileira de Boxe CEASM – Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré CV – Comando Vermelho FBERJ – Federação de Boxe do Estado do Rio de Janeiro LBERJ - Liga de Boxe do Estado do Rio de Janeiro LPP – Luta Pela Paz NH – Nova Holanda PU – Parque União ONG – Organização Não Governamental RV – Rubens Vaz TC – Terceiro Comando 13 INTRODUÇÃO Este trabalho se baseia em narrativas de adolescentes cariocas de classes populares que decidiram “entrar para o boxe” e tem o intuito de analisar o contato entre experiências, práticas e representações vivenciadas no espaço de um centro esportivo, que constitui simultaneamente um “projeto social” 1, localizado na região de favelas da Maré (30ª Região Administrativa, zona norte do Rio de Janeiro, na área conhecida como zona da Leopoldina). O estudo deste contato, ao qual nos referimos como encontro, permitiu refletir sobre elementos presentes no universo de pesquisa, que fazem parte do debate contemporâneo sobre juventudes, favelas, o campo de atuação das chamadas organizações não governamentais, a idéia de esporte vinculada ao controle social da violência e a proposta de articular tais universos através de um programa social fundamentado em discurso sócio-educativo. Realizada entre 2001 e 2005, a pesquisa de campo que originou este estudo se restringe ao contexto de uma academia de boxe, com características particulares. Como mencionado, trata-se de um programa social, desenvolvido pela organização não governamental Viva Rio a partir do início de 20002. Batizada de Luta Pela Paz por seus fundadores e, inicialmente, direcionada apenas para a prática de boxe, a academia começou a funcionar em uma pequena sala da Associação de Moradores do Parque União, favela que foi um dos primeiros núcleos de habitação na Maré (originado na década de 1950), hoje situada entre a Avenida Brasil e a Linha Vermelha, importantes vias de acesso rodoviário à cidade. 1 Projeto, ou programa, social é um termo de uso corrente no campo caracterizado pela atuação de instituições de caráter privado e sem fins lucrativos, além de ser já amplamente adotado pela imprensa brasileira. Trata-se de uma categoria coletiva de linguagem que se tornou mais conhecida a partir da década de 1980, época em que se iniciou uma fase de grande expansão e diversificação das ações das chamadas ONGs por todo o país. Os “projetos sociais” são formas de intervenção no meio social (seja ele urbano ou rural) por meio de ações, em geral, propostas por organizações, formalmente, desvinculadas de instâncias governamentais e voltadas para áreas e públicos diversos. Esta expressão faz parte de um vocabulário amplo originado no campo de atuação das ONGs, difundido por outros setores da sociedade, influenciando formas de pensar, condutas e práticas voltadas para a ação social. 2 Fundado em 1993, o Viva Rio se define como uma organização não governamental, sem fins lucrativos e apartidária. Desenvolve projetos diversas em regiões de baixa renda na área metropolitana do estado do Rio de Janeiro, formando parcerias com entidades locais (associações de moradores, rádios comunitárias, igrejas, escolas etc) e, em alguns casos, convênios com instâncias governamentais. A ONG aciona o conceito de “Segurança Humana” para fundamentar suas ações, organizadas em torno de três áreas principais: Inclusão Social, Segurança e Direitos e Comunicação. O projeto Luta Pela Paz integra a área de Segurança e Direitos, como parte do programa do “COAV” (Children in organizaed armed violence, ou Crianças em situação de violência armada organizada). Fonte: site www.vivario.org.br e Viva Rio/ Relatório - 2004. 14 Segundo seus realizadores, a iniciativa do projeto esportivo em questão se baseia na proposta de aliar a prática de esportes a uma dimensão social, a qual tem o objetivo de contribuir para a prevenção do envolvimento de jovens, na faixa etária entre 13 e 24 anos, em atividades criminosas e violentas. Para tanto, buscam-se criar condições para que a prática de boxe3 - junto a outras atividades incorporadas ao programa posteriormente – venha a se configurar como ‘atrativo’ para jovens de baixa renda, residentes nas proximidades desta academia, visando afastá-los de escolhas que os levem a integrar carreiras criminosas em uma área urbana de forte presença da estrutura organizada do comércio de drogas ilícitas4. A pesquisa de campo do presente trabalho foi desenvolvida no ambiente desta academia de boxe e no seu entorno, onde iniciei a construção de um objeto de pesquisa. Compreender, simplesmente, o que motivava jovens residentes em uma área pobre e de características singulares da cidade a optar pela prática de boxe e, ainda, por participar de competições amadoras desta modalidade de esporte - que passaram a ser inseridas no calendário de lutas do pugilismo carioca e brasileiro5 - foram as primeiras indagações levantadas na origem deste estudo. A partir daí, intensificou-se o interesse por investigar como os adolescentes6 vivenciavam a experiência do contato com essa modalidade esportiva específica e como se dava a interação com o discurso do “projeto” LPP. Uma das particularidades da rede de relações no mais amplo onde a academia se insere, são as tensões trazidas, de um lado, pela presença de integrantes de facções do crime organizado que disputam o controle do mercado de varejo do narcotráfico em favelas da Maré; de outro, a presença da polícia, a qual, segundo dados desta pesquisa é objeto dos maiores medos expressos nas narrativas de jovens moradores locais. Outro 3 Durante os três primeiros anos de funcionamento da academia Luta Pela Paz, o boxe era a única modalidade esportiva ali existente. A partir de outubro de 2003, aulas de capoeira, maculelê e luta livre também passaram a ser oferecidas pelo mesmo projeto. Entretanto, o boxe continuou a desempenhar um papel central na rotina da academia, concentrando o maior número de jovens em relação a outras atividades. Esta pesquisa está voltada, especificamente, para o universo de jovens que escolheram se dedicar aos treinos de boxe da Luta Pela Paz, em algum momento de suas vidas. 4 Em seu estudo “Crianças do tráfico”, DOWDNEY (2003) aponta pelo menos quinze funções, remuneradas, dentro da estrutura interna das facções que dominam o comércio da droga em favelas do Rio de Janeiro. 5 No Brasil, a prática de boxe amador e profissional é regulamentada pela Confederação Brasileira de Boxe, entidade majoritária do esporte no país. No Rio de Janeiro, as competições de boxe são, via de regra, organizadas por uma das instituições locais legalmente reconhecidas - a Liga de Boxe do Estado do Rio de Janeiro ou a Federação de Boxe do Estado do Rio de Janeiro - em conjunto com as academias. O termo pugilismo, a rigor, designa a prática de lutas em geral em todo o ocidente. 6 Neste estudo de caso, é importante lembrar o fato de existirem jovens que participam de lutas e outros que apenas treinam, mas não competem. Portanto, para ser lutador é necessário estar praticando boxe assiduamente, porém, nem todos os que praticam participam de competições. 15 elemento importante percebido durante o período de campo, é que uma infinidade de fatores marca, de maneira diversificada, o cotidiano de milhares de moradores que vivem no interior da Maré, em localidades cujo perfil não se restringe à descrição de um cenário homogêneo. A geografia própria de cada favela, os usos criativos dos ambientes públicos pelos habitantes, as adaptações para lidar com problemas crônicos ou passageiros, as distintas formas de moradia existentes, os serviços (públicos ou não) disponíveis, a organização das atividades comerciais (a maioria informais) e as formas de lazer inventadas que estruturam as múltiplas rotinas de vida dos habitantes são alguns dos fatores que conferem a este universo de cerca de vinte favelas um caráter essencialmente diversificado. No entanto, as favelas reunidas neste grande recorte do tecido urbano do Rio de Janeiro, do qual fazem parte cerca de 130.000 habitantes, configuram-se como objeto de representações frequentemente fundamentadas em um imaginário social que projeta a representação de violência para classificar tudo o que se refere a este ambiente da cidade. A existência de concepções contrastantes, assim como de disputas em torno da criação de parâmetros para definir e classificar a Maré, encontra espaço no presente trabalho a partir de uma breve apresentação comparativa de referenciais externos (aqui exemplificados através de reportagens veiculadas na imprensa carioca sobre o lugar) e internos (nas vozes de jovens e antigos moradores da área) de percepção desta região particular. Para analisar os principais elementos relacionados aos encontros entre representações, práticas e experiências no âmbito do “projeto” Luta Pela Paz, foi importante estabelecer um diálogo com temas já desenvolvidos pela literatura na área de Ciências Sociais. Estudos sobre favelas, violências e a atuação de instituições chamadas não governamentais, assim como análises sobre juventudes e esporte, constituíram fontes de reflexão teórica, junto aos dados etnográficos reunidos a partir do campo pesquisado. Dada a amplitude e complexidade de alguns dos temas abordados nesta dissertação, direta ou indiretamente relacionados ao universo de estudo, este trabalho buscou apenas mapear um campo de investigação temático que pode ser retomado em pesquisas futuras. Nas falas de alguns dos lutadores, foram identificadas referências a formas de sociabilidade presentes no seu dia a dia, assim como representações que os freqüentadores deste centro esportivo constroem sobre seu passado, presente e futuro acionando identidades e pertencimentos ao lugar onde residem e à academia à qual 16 estavam vinculados. Portanto, buscou-se analisar, a partir destas representações, experiências relativas à prática de boxe, através da percepção que os jovens constroem de si mesmos em suas inter-relações com o contexto social no qual estão inseridos. Para melhor situar o objeto de estudo deste trabalho, apresento, a seguir, algumas características dos atores presentes neste cenário social, assim como o contexto da academia em questão.7 Em fevereiro de 2001, Deco, Rivan e seu irmão, Renivaldo, estrearam no “mundo do boxe”. Os jovens tinham entre 15 e 16 anos de idade e passaram grande parte da adolescência juntos, compartilhando amizades, trocando experiências e perambulando pelas ruas e becos nas imediações das “comunidades”8 onde foram criados, ou seja, Nova Holanda, Rubens Vaz, Parque União e adjacências, localizadas na porção territorial da Maré mais afastada do centro da cidade, nas proximidades do aeroporto internacional e do Fundão (campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro). A partir da entrada para os treinos de boxe, um novo ambiente de convívio social foi acrescentado às rotinas de vida desses e de outros jovens moradores da região. O evento esportivo que reuniu, pela primeira vez, os três rapazes em um torneio de boxe olímpico9 ocorreu em outro extremo da cidade – mais precisamente no morro do Cantagalo, situado na zona sul – distante dos principais eixos de circulação cotidiana destes jovens. O forte calor daquela noite de sábado não abateu os lutadores baianos Rivan e Renivaldo e menos ainda o carioca Deco, acostumados ao verão do Rio de Janeiro, que leva moradores da Maré a buscarem soluções criativas para suportar os dias mais abafados, como instalar chuveiros improvisados à beira das ruas de asfalto pelando. Todos vestiam o uniforme da mesma academia, pela qual lutaram e onde iniciaram a aprendizagem do boxe. Alguns meses antes, esta academia havia começado a funcionar no Parque União, a poucos minutos de caminhada das casas de Deco, Rivan e Juca (apelido de Renivaldo), e, durante os quatro anos seguintes, viria a se consolidar como ponto de encontro de um número crescente de jovens da região. Naquela ocasião 7 As identidades dos jovens foram preservadas. Apenas os nomes de pessoas publicamente conhecidas, ou que já faleceram, foram mantidos. 8 Os usos dos termos ‘comunidade’ e ‘favela’ foram objeto de escuta e registros durante o desenvolvimento da pesquisa. Embora não sejam temas centrais em relação ao estudo aqui proposto, ambos são referentes ao local de moradia dos jovens aqui enfocados e freqüentemente citados em suas falas. Portanto, busquei perceber, no capítulo 2, os principais contextos de emprego destas expressões, assim como as representações sobre elas presentes nos discursos destes jovens. Por ora, é importante apenas salientar que se trata de duas categorias, de uso coletivo, histórica e socialmente construídas (MACHADO, 2004:104). Neste trabalho, procuro utilizar tais termos buscando uma aproximação com a escuta do campo. 9 Atualmente, a denominação “olímpico”, substitui a categoria esportiva mais conhecida como “amador”. 17 de estréias, o saldo dos “combates” (jargão usado no meio do boxe) foi positivo para a academia da Maré: apesar da derrota de Deco, Juca e Rivan venceram, no ringue, as lutas contra seus oponentes. Em agosto de 2004, mais uma vez juntos, os irmãos perderam as vidas, em circunstâncias ainda pouco esclarecidas10, próximo ao lugar onde moraram e passaram grande parte da infância e da adolescência. A mesma academia levou aos ringues de competição de boxe amador dezenas de outros jovens residentes na Maré e, em 2005, já havia ampliado o número de atividades esportivas oferecidas. A partir da observação de grande parte destas competições, da dinâmica característica das lutas de boxe (percebendo, por exemplo, quem eram os torcedores, quando compareciam, comportamentos e reações diante dos desempenhos dos lutadores), de incontáveis ‘conversas’ no ambiente da academia e, inclusive, da participação nos treinos, percebi que as trajetórias individuais dos participantes da Luta Pela Paz, longe de seguirem caminhos lineares, tomavam rumos diversos dentro de um campo de possibilidades socialmente determinado11. Freqüentemente marcadas por períodos de instabilidade, algumas trajetórias se distanciavam dos objetivos esperados pelos organizadores do “projeto” (nos planos esportivo e sócio-educativo), porém, também se tornavam notórios casos de dedicação extrema ao boxe e, ainda, de jovens que, embora participassem ativamente de eventos e atividades não diretamente vinculadas ao boxe promovidos pela equipe da academia como a articulação de redes de comunicação juvenis, afastavam-se da prática esportiva propriamente dita. Outra reflexão introduzida neste trabalho é sobre o emprego da categoria “de risco”, freqüentemente acionada em discursos da imprensa, de “projetos sociais”, ONGs e outras instâncias formadoras de opinião, as quais vêm desempenhando um papel de crescente importância na elaboração de políticas públicas no Brasil, sobretudo, voltadas para o universo juvenil. Afinal, quem são estes jovens que figuram como público alvo de inúmeros e diversificados projetos, ou programas, sócio-educativos desenvolvidos em todo o país? O que é ser jovem em situação “de risco”? Algumas características que contribuem para a construção desta noção, no caso estudado, serão abordadas. É importante salientar que esta é uma forma não consensual de classificação de determinados segmentos da população, onde as críticas ao uso de tal terminologia apontam para a identificação destes com uma imagem estereotipada de “perigo” para a 10 Sobre o jovem Rivan, ver capítulo 4. Sobre a noção de campo de possibilidades, ver Gilberto Velho (1994), Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. 11 18 sociedade, podendo contribuir para a construção de um novo rótulo acusatório, que enquadra nele os que se inserem em uma condição de “suscetibilidade” ao envolvimento com o crime e a violência. Esta pesquisa analisa relatos e contextos de vida de alguns jovens que escolheram participar de uma proposta singular, sem a intenção de generalizar os resultados aqui encontrados para outros contextos. De acordo com a idéia da existência de juventudes, no plural (Novaes, 2003) - segundo a qual é preciso reconhecer variações de interesses, estilos de vida, classe social, expectativas, maneiras de lidar com o corpo, enfim, formas de estar no mundo, que tornam a concepção de juventude cada vez mais distante de uma definição acabada e presa a rótulos reducionistas -, acreditamos ser prioritário escutar estes jovens para melhor conhecê-los e saber como se auto-definem. O interesse pelo estudo das relações sociais que se demarcavam a partir do ambiente da academia de boxe começou a surgir em 2001, quando tive oportunidade de fotografar as primeiras lutas promovidas pela academia, entre elas, a única realizada na Maré, local de origem dos lutadores. Esta foi a terceira participação em lutas de boxe nas histórias dos adolescentes Rivan, Deco e Juca, apresentados acima. Tão apreensivos com o fato de estarem competindo ao lado de suas casas, quanto seus vizinhos e familiares presentes, os lutadores subiram no ringue, montado em praça pública, ouvindo seus nomes pronunciados pela pequena multidão que compareceu ao Parque União naquela noite. A liberdade de poder acompanhar a rotina de treinos e lutas com participantes da LPP - devido a um conjunto de fatores, explicitados ao longo deste trabalho - contribuiu decisivamente para que o foco desta dissertação se voltasse para o recorte específico da academia de boxe citada e do contexto social no qual ela se insere. A necessidade de uma inserção cautelosa, lenta e respeitosa dos limites colocados pelos informantes determinou a escolha pelo ambiente esportivo de um único local da cidade. Além disso, também se optou por um só universo de pesquisa, buscando um maior aprofundamento na percepção de espaços de sociabilidade no entorno da academia. As trajetórias dos freqüentadores do centro esportivo, com ênfase nas representações - percepções, classificações, símbolos - que informam as práticas sociais locais e se fazem presentes em suas falas, foram elementos que tornaram possível uma melhor compreensão do objeto deste estudo. Além disso, a eventual ampliação do campo de pesquisa para uma abrangência maior, tanto no que se refere ao meio do boxe, quanto de programas sociais 19 voltados para esta e outras atividades esportivas, exigiria prazos mais longos e um novo planejamento de trabalho. Registros fotográficos produzidos durante o período de inserção no campo de pesquisa (e descritos no capítulo 1) foram incorporados à metodologia deste trabalho, de modo a complementar a reflexão sobre o universo de estudo. Além de constituírem um “corpus fotográfico” (GURAN, 1997) importante em relação à temática da pesquisa, documentando boa parte da história da academia, as imagens produzidas entre 2001 e 2005 foram usadas como suportes de conteúdo, introduzindo discussões em dois grupos focais realizados com praticantes de boxe. Utilizada como ferramenta de pesquisa nas ciências sociais, a fotografia se coloca como fonte complementar de coleta e análise de dados qualitativos; portanto, este instrumento metodológico não busca contraposição ou substituição à linguagem textual e sim o diálogo com essa e outras fontes de obtenção de informações nos campos da antropologia e da sociologia. As percepções iniciais do universo de pesquisa, registradas em diário de campo, junto às primeiras histórias de vida relatadas pelos jovens e ao material fotográfico produzido pela pesquisadora durante o acompanhamento das atividades da academia deram origem, em 2002, à monografia de conclusão do curso de Pós-Graduação Fotografia Como Instrumento de Pesquisa nas Ciências Sociais (Universidade Cândido Mendes), intitulada Documentário Fotográfico: Luta Pela Paz no Parque União. Neste trabalho, foram sistematizados alguns relatos que expressavam representações dos jovens boxeadores sobre temas como violência, luta, briga, boxe e esporte. Uma primeira aproximação analítica deste conteúdo demonstrou que estas e outras classificações adquiriam significados diferentes dependendo do contexto em que eram empregadas (a rua, a favela, a casa, a escola, o ringue etc). Com o objetivo de dar seqüência a este trabalho e aprofundar o conhecimento sobre as experiências dos jovens lutadores, esta temática foi retomada no Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ, em 2003. Durante o curso de mestrado, também tive oportunidade de realizar alguns trabalhos enfocando o universo dos jovens boxeadores. Entre eles, o trabalho final da disciplina ‘Noções de corpo e pessoa na literatura antropológica’ trouxe elementos para a abordagem dos usos do corpo, a partir do estudo de caso dos lutadores de boxe, considerando especificamente a noção de corpo como meio de representação social. A temática da ‘corporalidade’ só recentemente vem recebendo maior atenção, deixando de ser considerada uma questão superficial nos campos da antropologia e sociologia, no 20 que se refere a fenômenos sociais que caracterizam as sociedades contemporâneas12. No caso estudado, a atenção ao uso social do corpo ganhou importância uma vez que o boxe é um tipo de atividade onde a atuação corporal, na forma singular deste esporte, é imprescindível. O presente estudo está dividido em duas partes. A primeira parte diz respeito aos os procedimentos metodológicos sobre os quais o trabalho se estruturou e à contextualização do campo e do objeto de pesquisa: no capítulo 1, estão descritos os limites e acessos que compuseram o recorte específico do quadro social pesquisado; além dos suportes empíricos utilizados, incluindo a fotografia como instrumento de coleta de dados; no capítulo 2, apresento a Maré e os contrastes entre representações existentes sobre o local, lançando mão de uma perspectiva histórica, além de memórias de antigos moradores, pontos de vista de jovens residentes e de instituições locais, fontes da imprensa e dados da prefeitura; no capítulo 3, descrevo a academia de boxe Luta Pela Paz, incluindo notas etnográficas e trechos do diário de campo referentes a treinos e lutas, além de abordar dados gerais sobre a composição do campo de atuação de ONGs e de projetos sociais no Brasil. Na segunda parte, desenvolvo uma análise sobre o encontro, propriamente dito, entre experiências, discursos e práticas presentes no espaço de sociabilidade da academia de boxe; no capítulo 4, abordo a interação entre representações e vivências no ambiente desta academia de boxe, dando ênfase à temática do corpo a partir do recorte da adolescência e da função de mediação de relações no meio social; alguns perfis de jovens envolvidos nesta pesquisa também são apresentados neste capítulo. Regras e conceitos que dão especificidade à academia como espaço de sociabilidade são abordados no capítulo 5, assim como significados adquiridos pelo boxe e pelas categorias “luta” e “briga” neste contexto particular, sob o ponto de vista de jovens participantes da rotina de treinos, competições e demais atividades da LPP. 12 Em relação ao tema dos estudos sobre o corpo, formas corporais de expressão simbólica e outros assuntos correlatos, é importante lembrar a existência de um vasto campo de estudos já instituído na antropologia, no que tange especialmente à etnologia, onde um grande número de autores já se debruçou sobre a problemática da representação corporal. Este trabalho leva em conta a perspectiva de padrões de uso do corpo, em um meio urbano, no contexto da sociedade ocidental contemporânea. 21 Parte I Capítulo 1 METODOLOGIAS UMA ACADEMIA DE BOXE: PORTA DE ENTRADA PARA A MARÉ 1.1 Sobre o recorte do campo de pesquisa Lugar de convívio de uma parcela da população jovem da área da Maré (uma das maiores e mais populosas regiões de favelas do Rio de Janeiro), o centro esportivo - ou simplesmente “a academia” como é reconhecida por seus freqüentadores13 - onde foi realizada a pesquisa de campo deste trabalho, está inserido em um quadro amplo e complexo de relações estabelecidas historicamente entre os diversos atores sociais influentes na composição cultural do cotidiano de cada localidade integrante do todo conhecido como Maré ou “Complexo da Maré”. Instalada desde 2000 nesta região, a academia de boxe Luta Pela Paz, que já nasceu vinculada à proposta de ação social abordada neste trabalho, constituiu-se no contexto específico de realização do trabalho de campo e, portanto, tornou-se, para a pesquisadora, o ponto de contato inicial com o ambiente no seu entorno. Neste sentido, a academia pode ser considerada como ‘porta de entrada’ deste estudo no imenso e heterogêneo universo formado por sub-localidades que dão nome e feição à Maré, já oficialmente incorporada à divisão administrativa da cidade, classificada como 30ª R.A. (região administrativa). E, dentro deste recorte, foram jovens moradores locais os mediadores, de fato, entre a pesquisadora e a população de lugares como Parque União e Nova Holanda (integrantes da Maré), possibilitando a interação e convivência nestes ambientes. Diante das muitas estruturas sociais que se apresentam no universo da Maré, por um lado, e no campo de atuação formado por instituições da “sociedade civil organizada”, por outro, aqui nos deteremos apenas naquelas que dizem respeito ao objeto de estudo e à sua inserção no contexto deste trabalho. O foco da questão aqui 13 Pelo fato de estar inserida simultaneamente no meio esportivo (promovendo competições junto a entidades como a Federação e a Liga de Boxe do Rio de Janeiro) e no meio de atuação das ONGs, a Luta Pela Paz é ora referida como academia de boxe e ora como “projeto social”. Ambas as denominações estão presentes no campo de pesquisa. 22 analisada se volta para o encontro entre experiências e pontos de vista de jovens locais e experiências e perspectivas trazidas no âmbito do “projeto” Luta Pela Paz. Esta troca de idéias e ações se realiza, em grande parte, a partir do eixo central da prática de boxe. No espaço de treinos, entram em contato propostas de atuação de mediadores externos14 relacionadas, por exemplo, ao que se consideram direitos humanos, cidadania, e violência - e a recepção destas propostas (levando em conta a sua apropriação e / ou resignificação) por jovens da Maré, participantes deste “projeto”. Para compreender tais encontros é preciso conhecer, em maior profundidade, além das narrativas dos freqüentadores dos treinos de boxe, pontos de vista de fundadores do projeto LPP, assim como da equipe de trabalho da academia (treinadores, assistentes sociais e jovens que passaram a integrar o Conselho Gestor do centro esportivo), através de seus discursos e representações. As razões que determinaram a escolha por este objeto de pesquisa basicamente se traduzem no interesse em conhecer como se dá a experiência de participação de jovens de classes populares no que comumente é referido como “projeto social”, sob o ponto de vista destes jovens. Já que eles são o “alvo” de programas sociais inseridos em uma imensa gama de ações no âmbito das políticas públicas para a criança e o adolescente no Brasil, compreende-se que seja importante escutá-los frequentemente, conhecendo cada vez melhor seus múltiplos universos. Ao acompanhar experiências como as citadas acima durante alguns anos, ter tido oportunidade de participar da implantação e da dinâmica de trabalho de outras iniciativas no campo da ação social, deparei-me com a necessidade de se formular reflexões críticas, fundamentadas em trabalhos científicos de pesquisa, que possam dar suporte a estas iniciativas. Além disso, considerando o caso específico estudado, buscou-se compreender particularidades relacionadas à prática de boxe, considerando esse contexto especifico. 14 O centro de esportes LPP se constitui em uma das ações do Viva Rio na Maré. Tanto o centro quanto a instituição a qual está vinculado serão considerados neste estudo como mediadores externos levando em conta alguns aspectos: suas ações foram implantadas de fora para dentro das favelas e não foram concebidas por moradores locais; a mediação se dá na medida em que proporcionam formas de comunicação com ambientes e idéias provenientes de outros locais (sem entrar no mérito de sua eficácia). A mesma terminologia também se refere a outros atores sociais neste contexto, sejam eles provenientes da iniciativa pública ou privada, desde que observadas as características anteriores. 23 1.2 Proximidades e distâncias Como ocorre, possivelmente, na maioria das pesquisas em ciências sociais, a forma de entrada em campo traz conseqüências, vantagens e desvantagens. O fato de ter me aproximado do campo de pesquisa através de um contato inicial com a equipe da academia de boxe e, posteriormente, com jovens locais e com o ambiente de favelas onde moravam fez com que, tanto os acessos quanto os limites do trabalho, tivessem sido influenciados, em maior ou menor grau, por esta característica específica. Por um lado, ser identificada como “alguém que desenvolve algum tipo de trabalho para a ONG Viva Rio” e, portanto, ser alguém “de fora” da Maré, pode ter trazido limitações (por exemplo, eventuais receios por parte de participantes da Luta Pela Paz em fazer críticas à entidade que dá suporte ao projeto); por outro lado, esta mesma posição trouxe acessos sem os quais outras dificuldades poderiam ter surgido no caminho de aproximação da pesquisadora com os jovens lutadores e com as favelas onde vivem. Outro viés de aproximação com o universo de algumas favelas da Maré se deu a partir da participação em outra iniciativa desenvolvida pela ONG Viva Rio, a saber, o portal Viva Favela15. Tratava-se de um veículo de comunicação na Internet voltado para classes baixas, com notícias produzidas por moradores de favelas cariocas. Durante dois anos, desempenhei a função de editora de fotografia deste meio de comunicação, acessando diariamente imagens, histórias e memórias destes lugares da cidade, trazidas por pessoas que ali residiam e transportadas para um público maior por meio da tecnologia digital. Entre os contatos estabelecidos com o campo, realizei reportagens para o Viva Favela na Nova Holanda e, no mesmo local, orientei o trabalho da fotógrafa responsável pela cobertura da Maré. No mesmo período, e nos anos seguintes, também tive oportunidade de freqüentar favelas em diferentes regiões da cidade, criando uma rede própria de contatos. Fazer parte de uma instituição que atuava no local pelo menos desde 1998 (com iniciativas voltadas para educação, assistência jurídica gratuita, concessão de crédito e, mais recentemente, para informática, comunicação e esportes), facilitou o acesso a uma rede já constituída de contatos, os quais, com o passar do tempo, desdobraram-se em outras relações distintas menos influenciadas pelo vínculo original que proporcionou a entrada no campo. Mas, se em relação à Maré, a pesquisadora ocupava o lugar de 15 Mais detalhes em www.vivafavela.com.br . 24 “estrangeira”16, o fato de ser alguém ‘de dentro’ do ‘campo de intervenção das ONGs’ permitiu conhecer esta outra área mais a fundo, particularmente, no que diz respeito à percepção de diferentes formas de atuação da chamada sociedade civil organizada junto ao público jovem. Portanto, ocupar simultaneamente lugares de “dentro” e “de fora”, dependendo do referencial, exigiu duplo cuidado com a relação de ética e confiança construída com cada grupo. O envolvimento com os dois lados (o universo dos jovens participantes da pesquisa e da ONG Viva Rio) foi intenso e, certamente, influenciado pela grande generosidade com que fui recebida em ambos os casos. Portanto, o quadro (ou o contexto) sobre o qual se estabeleceu a estrutura de trabalho da pesquisa foi delimitado, em parte, por relações sociais formadas a partir da academia de boxe (considerando a articulação prévia da entidade responsável pelo projeto LPP com a região da Maré) e estendidas para um universo maior de favelas circunvizinhas ao espaço de treinos, através da atuação dos jovens freqüentadores das atividades deste centro esportivo. Sendo assim, tais adolescentes passaram a ocupar uma posição de intersecção entre o contexto micro do projeto e o contexto macro das favelas onde moram, desempenhando um papel de mediadores na interação entre os universos citados. Esta mediação caracterizou a aproximação da pesquisadora junto a algumas favelas específicas da Maré, levando em conta o acesso a espaços públicos e privados de convivência entre esses jovens. Durante a pesquisa, os deslocamentos no campo não cobriram toda a extensão da área da Maré, composta por cerca de dezesseis localidades17. A pesquisadora se deixou guiar, basicamente, por trajetos feitos pelos jovens em suas rotinas de vida, visitando suas casas e percorrendo caminhos que levavam ao Projeto LPP. A partir deste recorte, as favelas onde se concentraram as observações foram Parque União, Rubens Vaz e Nova Holanda. Além de serem locais de moradia da grande maioria dos jovens freqüentadores do boxe, os dois primeiros foram, ainda, onde a academia Luta Pela Paz manteve sua sede durante o período de realização deste trabalho (entre 2000 e 2003, a LPP esteve situada no Parque União; no fim de 2003, mudou-se para a Nova Holanda). Incursões por outras localidades como Parque Maré, Baixa do Sapateiro, Morro do Timbau e Ramos embora fossem freqüentes, não fizeram parte de uma observação mais 16 Expressão usada literalmente pela mãe de um dos participantes dos treinos de boxe, ao indagar se a pesquisadora era “estrangeira”? 17 Fonte: Censo Maré-2000 (www.ceasm.org.br). 25 cautelosa, já que a intenção do estudo era elaborar uma percepção mais apurada sobre as favelas mais próximas à academia de boxe. 1.3 Percursos: do visor da câmera à construção de um objeto Meu interesse sobre o universo do boxe surgiu quando fui fotografar, pela primeira vez, um torneio de boxe amador, no morro do Cantagalo, zona sul do Rio de Janeiro. Minha inserção naquele contexto aconteceu devido à intenção de colaborar, através do trabalho como fotógrafa, com o “projeto” Luta Pela Paz, voltado para a prática de boxe, o qual havia iniciado suas atividades, poucos meses antes, no Parque União, uma das favelas da Maré. Era a primeira competição promovida pela academia LPP e, conseqüentemente, o evento de estréia de alguns adolescentes, que tinham aprendido a lutar na Luta Pela Paz. Portanto, neste caso específico, a fotografia intermediou os primeiros contatos com uma modalidade esportiva pouco popular no Brasil em tempos atuais. Durante aqueles momentos, passei a indagar: quem seriam aqueles “meninos” em cima do ringue, observados através do visor, um tanto assustados, magros e com músculos apenas delineados, não “inflados” - bem distantes do estereótipo de lutador de boxe “poderoso” ou “imbatível”, cujo símbolo da força se imprime na aparência de sua massa corporal opulenta? Quais motivações os levavam a estar ali? Pensando em retrospectiva, uma outra percepção da atividade começou a se formar naquelas ocasiões: como seria possível buscar um sentido na prática de boxe (assim como em outras práticas da vida social) sem conhecer quem havia optado por ela e os fatores que haviam contribuído para esta escolha? Para chegar a elaborar algum tipo de pensamento menos superficial sobre o boxe naquele contexto específico, seria preciso, portanto, acrescentar um elemento novo, quase óbvio, a este “ofício do corpo” (WACQUANT: 2002), a saber, o elemento humano. Em um estudo que busca compreender especificamente o que é “o oficio do boxeador”, no sentido de ocupação, de estado social, mas também “de mister e de mistério ‘no corpo’ ”(2002:15), Loïc Wacquant destaca a riqueza de uma abordagem sociológica que traz para o primeiro plano “a dimensão carnal da existência”, encontrando formas expressivas adequadas para transmitir sensações intensas, próprias da vida social, e freqüentemente no limiar entre ação e emoção. No caso do universo do 26 pugilismo, a interpretação de um aprendizado cotidiano que se dá através do corpo se torna ainda mais importante. O autor ressalta: (...) a fecundidade de uma abordagem que leva a sério, tanto no plano teórico quanto metodológico e retórico, o fato de que o agente social é, antes de mais nada, um ser de carne de nervos, e de sentidos (no duplo sentido de sensual e de significante), ‘um ser que sofre’ (... ) e que participa do universo que o faz e que, em contrapartida, ele contribui para fazer, com todas as fibras de seu corpo e de seu coração. (2002:11) De volta aos jovens da academia LPP, perceber aqueles lutadores como pessoas detentoras de trajetórias singulares passou a significar uma forma de acessar a prática do boxe por outro viés, a saber, o das histórias de vida (dando ênfase à “dimensão carnal da existência”). Foi movida pela vontade inicial de conhecê-las que comecei a freqüentar a academia Luta Pela Paz, com autorização da sua equipe de coordenação. Aos poucos, desenvolvi uma relação de confiança e amizade com alguns aprendizes de boxe, a partir da qual se tornou viável a proposta de documentação fotográfica do ambiente de treinos e das lutas das quais participavam. Com o passar do tempo, a convivência com os jovens lutadores tornou possível perceber semelhanças e diferenças entre eles; para quem não conhecia suas histórias, os adolescentes daquele universo tinham em comum apenas o local de moradia, a faixa etária, determinados aspectos de cunho sócioeconômico e o fato de terem escolhido “entrar para o boxe”. Estas são, em linhas gerais, algumas das características que os aproximam, porém, além dos aspectos citados, muitos outros se sobressaíram a partir da análise de suas representações sobre si próprios, suas práticas e experiências. Na academia, logo conheci Deco e Rivan, ambos com 16 anos, moradores da Nova Holanda e da Rubens Vaz, localidades vizinhas situadas na Maré (zona norte do Rio de Janeiro), próximas ao Parque União, onde ficava a sede do projeto LPP. Jovens, residentes nesta área de baixa renda – denominada de “Faixa de Gaza” carioca18 em reportagens de televisão de projeção nacional e nos principais jornais da imprensa local, que classificam toda a região, indistintamente, como uma zona de guerra - eles se conheceram nos treinos de boxe, onde se tornaram amigos. A relação que se estabeleceu entre ambos na academia foi descrita da seguinte forma: 18 Exemplos de reportagens: “Na Maré, a Faixa de Gaza carioca” (Jornal do Brasil, 31 de agosto 2001); “Violência de volta à Faixa de Gaza (O Globo, 25 de maio de 2005). 27 O Rivan, conheci ele no ringue; a gente foi ganhando intimidade fazendo luva, um batendo no outro. (...) A gente fazia brincando e foi pegando amizade através do boxe. (Deco, 16 anos) Chegava lá, fazia uma luva com o Deco; me amarrava em fazer luva com ele, porque eu fecho com ele e pensava “não vou deixar ele me bater não”. Aí ele pensava que não ia me deixar bater. Ficava aquela disputa: eu dava soco, ele dava risada, eu ficava fazendo careta pra ele e o treinador nem se ligava. (Rivan, 16 anos) Formalmente, a pesquisa ainda não havia se iniciado e ambos viriam a se tornar importantes interlocutores, assim como suas histórias de vida inspiradoras de questões que se colocam neste trabalho. Na noite de suas estréias no boxe, fotografei a vitória de Rivan e a derrota de Deco. O objetivo da produção das imagens era, em primeiro lugar, desenvolver um projeto de documentação fotográfica sobre trajetórias de vida de jovens como Rivan e Deco, movida por interesse pessoal em me aproximar, como moradora do Rio de Janeiro, de um lugar da cidade que seguramente tinha nuances e uma riqueza de situações que ia muito além do senso comum e de rotulações que chegam, principalmente pelo canal da mídia, aos cariocas, visitantes e residentes, em geral, desta mesma cidade. Já tendo realizado trabalhos de documentação fotográfica – área à qual tenho me dedicado com maior freqüência - sobre outros temas (tais como: modos de vida de moradores às margens do Rio São Francisco; memórias de imigrantes que se estabeleceram desde as primeiras décadas do século XX em áreas específicas do centro do Rio de Janeiro; refugiados em busca de asilo político no Reino Unido), percebi que a fotografia, mais do que uma técnica de registro por si só, constituía-se em uma forma de estabelecer relação com a alteridade. E, como tal, os princípios fundamentais norteadores desta relação com o outro deveriam incluir o respeito e a confiança. A partir deles, iniciei a aproximação do campo de pesquisa. Em troca, ofereci aos jovens e à academia a possibilidade de uso das imagens, fosse para colocar em álbuns de família ou para divulgar as atividades da Luta Pela Paz. Inúmeras vezes, presenteei os jovens com suas próprias imagens em situações de competição ou de lazer. Esta prática passou a ser muito valorizada por eles, principalmente no caso dos vencedores de lutas, que solicitavam insistentemente seus retratos no momento da vitória. Colocadas em porta retratos ou em pequenas molduras, tais fotografias passaram a ocupar lugar de destaque 28 nas casas dos jovens, fato corriqueiramente relatado na academia por colegas de treinos que freqüentavam mutuamente seus ambientes familiares. Lenta e gradual, a aproximação do universo dos jovens foi se delineando a partir da convivência no espaço de treinos de boxe. Passei a visitar a academia uma vez por semana, após obter autorização da coordenação da LPP. As primeiras fotografias eram de longe, “gerais”, enquadrando todo o grupo durante o treino, e realizadas somente após pedir permissão para os fotografados, ou seja, as imagens nunca eram ‘roubadas’ ou tiradas sem consentimento; só passei a fazer fotografias individuais dos jovens e à curta distância depois de cerca de dois meses, período em que a maioria deles já tinha tomado conhecimento dos meus objetivos. Com o tempo, acabei por me tornar a “fotógrafa da academia”, para os alunos, papel que de fato acabei desempenhando por cerca de três anos, regularmente, já que fotografava todas as competições e as imagens produzidas também eram utilizadas para divulgar o projeto Luta Pela Paz junto à imprensa nacional e internacional. 1.4 O boxe e idéias pré-concebidas Até março de 2001, o contato da pesquisadora com o ‘mundo do boxe’ era quase nulo. A visão sobre esta prática não ia além da perspectiva de senso comum incapaz de reconhecer algum sentido coerente em uma atividade centrada no combate físico entre dois indivíduos visando, cada qual, sobrepor-se ao outro por meio da força dos próprios punhos, buscando a vitória em um pequeno espaço delimitado por quatro cordas. Como se não bastasse este ‘vazio de sentido’ ao ver um oponente ter como alvo primordial de seus golpes a cabeça do adversário (com o objetivo de bater até derrotá-lo), os maiores momentos de glória para as torcidas que acompanhavam estes enfrentamentos eram os mais dramáticos, sob o mesmo ponto de vista: lutadores atingidos por golpes certeiros desabando, de uma só vez, inertes no chão (no caso, na lona) ou, então, massacrados, aos poucos, até terem a expressão facial desfigurada pelos ferimentos abertos por batidas insistentes. Tal concepção, digamos, negativa da prática esportiva do boxe vem sendo compartilhada historicamente por uma parcela significativa da sociedade ocidental, desde o surgimento da atividade que, nas arenas de lutas greco-romanas, deu origem à forma como o boxe é praticado atualmente pelo mundo. Já fizeram parte deste 29 posicionamento protestos e proibições contra confrontos bárbaros realizados, à época, sem nenhum tipo de limite onde, não raro, o fim era decretado pela morte de um dos participantes. Muitos desdobramentos ocorreram até se chegar a um formato padronizado de regras, hoje reconhecido como esporte, com adeptos por todo o mundo, e regulamentado por entidades nos níveis regional, nacional e internacional. Atendo-nos aqui à sociedade contemporânea, se percebemos que o boxe desperta sentimento de reprovação, é preciso reconhecer também a existência do reverso da moeda. Ou seja, junto àquele olhar marcadamente preconceituoso convive o olhar entusiasta dos que lotam os grandes “shows de boxe” (nos locais onde há investimento financeiro e, entre outros aspectos, promoção do esporte junto à mídia) e dos aficionados que comparecem mesmo aos menores eventos, sempre na esperança de poder apreciar uma “boa luta”. Neste sentido, basta lembrar, ainda, alguns nomes de lutadores célebres – como George Foreman, Muhammed Ali, Mike Tyson, e, para o público brasileiro, Éder Jofre, Maguila e Popó, em tempos mais recentes - transformados em heróis nacionais ou mundiais após conquistarem títulos de campeões de boxe. Por ora, importa perceber que esses olhares representam duas posições bem demarcadas e contrastantes em relação à temática anterior. Diante destas perspectivas dicotômicas - reprovação ou adoração, ódio ou amor –, a proposta aqui colocada é buscar ir além de visões extremas, evitando as oposições e dicotomias geralmente acionadas para expressar posicionamentos a respeito da prática do boxe. Para tanto, um dos principais aspectos deste trabalho se volta para o ponto de vista de jovens lutadores da Maré sobre a prática de boxe na academia onde aprenderam a lutar. 1.5 Suportes empíricos - observação participante, histórias de vida, entrevistas, grupos focais e interpretação de imagens 19 A pesquisa de campo que deu origem ao estudo junto aos praticantes de boxe utilizou diferentes formas de obtenção de dados, tendo como eixo principal de análise narrativas de jovens praticantes de boxe da academia LPP. A opção pelo uso das técnicas que compuseram a metodologia deste trabalho se pautou na busca por articulação e complementaridade entre fontes de dados que foram sendo constituídas ao 19 Dados sobre o roteiro de trabalho aplicado aos grupos focais e sobre as entrevistas individuais em anexo. 30 longo do processo de pesquisa. Como nos mostra Howard Becker, citado por GOLDENBERG (2003)20, ressaltando a vantagem da utilização de fontes de informações complementares, “cada peça acrescentada num mosaico contribui para a compreensão do quadro como um todo”. Outro aspecto relevante em relação à coleta de dados junto aos jovens neste trabalho foi o fato de que, tanto quanto o objeto de pesquisa, os procedimentos metodológicos foram sendo construídos aos poucos, de acordo com a aceitação, a adequação e os limites colocados pela situação do campo. Um exemplo claro disso foi o silêncio instalado entre a maioria dos entrevistados após a morte de Rivan (junto ao irmão), um dos principais ‘informantes’ e o primeiro a relatar, com riqueza de detalhes, sua história de vida para esta pesquisa. Passaram-se o enterro, as missas e os meses, sem que as poucas e desencontradas versões existentes para os motivos e as circunstâncias do episódio, ocorrido em 05 de agosto de 2004, fossem abordadas no campo de pesquisa. As condições foram respeitadas pela pesquisadora. Alguns meses após o ocorrido, ao buscar saber a versão “oficial” sobre o assunto fora do campo, consultando o boletim de ocorrência policial, a pesquisadora foi “aconselhada” na delegacia a não “mexer no caso”, já que havia envolvimento de policiais. Mais uma vez o silêncio se impôs e o significado do ‘não dito’ se tornou suficientemente claro: havia fortes “razões” para que o órgão competente não tivesse interesse em esclarecer o caso, ainda em aberto. Não fui adiante. Portanto, a difícil tarefa de perceber e buscar adaptação aos limites do campo esteve sempre presente, assim como a de buscar métodos de pesquisa complementares, que pudessem contribuir para a análise final. Já a partir de 2001, ano seguinte ao da inauguração da Luta Pela Paz, treinos de boxe e competições promovidas por este centro esportivo passaram a ser acompanhados, com regularidade. Com as visitas semanais à academia em horários de treino (sextas à noite), estabeleceu-se uma rotina de observação de campo em que as anotações de campo eram complementadas pelo trabalho de documentação fotográfica; registros de histórias de vida de jovens que participavam daquele ambiente. Junto a isso, somou-se a observação de campo participante, realizada, em períodos intermitentes, entre 2001 e 2005.21 Neste trabalho, foram incluídos trechos do diário e imagens utilizadas no contexto dos grupos focais (abordados adianto). 20 GOLDENBERG, Miriam. A arte de pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. Rio e Janeiro: Record, 2003. 21 Detalhes sobre a freqüência ao campo de pesquisa em anexo. 31 Após o primeiro ano de pesquisa de campo, iniciou-se uma reflexão sobre categorias e formas de classificação utilizadas pelos jovens no cotidiano das favelas onde moravam. As representações - percepções, classificações, símbolos - que informavam as práticas sociais e se faziam presentes nas falas, gestos e corpos destes jovens, constituíram-se em importantes suportes empíricos neste trabalho. Das narrativas dos alunos sobressaíam, em particular, interpretações sobre a prática do boxe, vínculos afetivos estabelecidos no espaço da academia, resultados de lutas e sensações experimentadas durante treinos e competições, dificuldades e prazeres da vida de adolescente onde residiam, o ambiente familiar, o contato com o narcotráfico e com a polícia e, ainda, expressões acerca do que entendiam como favela, comunidade, briga e luta. Além das histórias de vida de jovens da LPP, foram feitas entrevistas individuais com diferentes atores sociais presentes no campo de pesquisa e no meio do boxe carioca, somando um total de 28 depoimentos. Estruturadas em formato aberto e com roteiro pré-definido, as entrevistas da pesquisa foram estendidas a diferentes vozes presentes no campo, com o intuito de ampliar, na medida do possível, o espectro de percepção do contexto para níveis mais abrangentes de sociabilidade local – partindo do ambiente de treinos (treinador e equipe da academia), para o ambiente familiar dos jovens, situações de interação em espaços públicos das favelas Parque União, Nova Holanda e Rubens Vaz etc. Para melhor compreender o panorama regional do boxe amador foram feitas entrevistas com profissionais deste meio esportivo; por outro lado, dirigentes de ONGs que desenvolvem “projetos sociais” relacionados à prática de esportes também foram entrevistados. Já no período final do trabalho de campo, em dezembro de 2004, propus aos praticantes de boxe da LPP a realização da técnica de grupo focal. Prioritariamente, a intenção que motivou o convite foi abordar temas específicos, como a experiência da prática de boxe, pouco explorados em algumas das narrativas de histórias de vida. Divididos em ‘novatos’ (com menos de um ano de prática de boxe) e ‘veteranos’ (com mais de um ano), dois grupos foram conduzidos separadamente, tendo como eixo de discussão o mesmo roteiro de trabalho pré-definido (em anexo). Sobre a relevância da variável do tempo de participação na academia, a premissa levantada foi a de que alunos com mais de um ano de prática de boxe teriam um acúmulo de experiência neste ‘oficio’, que proporcionaria diferentes percepções desta prática em relação aos novatos, com poucos meses de boxe. Conhecer ambas as representações foi importante para 32 compreender diferentes parâmetros e critérios de escolha pelo boxe, fornecer elementos de comparação entre os pontos de vista de adolescentes que estavam começando a aprender esta atividade corporal e as visões de jovens já ‘experientes’ no boxe sobre os mesmos aspectos. A participação total foi de 12 jovens freqüentadores da academia, sendo cinco ‘novatos’ e sete ‘veteranos’, respectivamente. A condução dos grupos focais levou em conta aspectos observados no cotidiano na Maré, na rotina da academia e das competições de boxe – a exemplo, por um lado, do reconhecimento no meio social da favela trazido pelas vitórias em lutas, e por outro, das dificuldades enfrentadas pelos jovens para obterem bons desempenhos no dia a dia da disciplina dos treinos de boxe. Como técnica de pesquisa qualitativa, nas Ciências Sociais os grupos focais tiveram origem com os trabalhos de Merton e Kendall (MORGAN, 1988) e já vem sendo utilizados amplamente nas Ciências Sociais. Seu objetivo não é chegar a uma “média” das opiniões, nem tampouco a uma opinião representativa de determinado grupo, mas detectar sentimentos, contradições, dúvidas, diferenças, controvérsias e consensos sobre a experiência de participação em um projeto social (cuja peculiaridade é o fato de se voltar para a prática de boxe), que dificilmente seriam apreendidos através da aplicação de questionários ou entrevistas individuais em profundidade. Os grupos focais evidenciam percepções dos indivíduos em um processo reflexivo e discursivo conjunto, sendo assim, o mais importante nesta técnica é a interação estabelecida entre os participantes. Como ressalta Nahyda von der Weid (2000:5), “a técnica dos grupos focais oferece uma fonte para a percepção das questões mobilizadoras, dos consensos, dos conflitos e do poder de argumentação da população envolvida”. A interpretação da dinâmica que se estabelece em torno de discordâncias, acordos e contradições traz elementos que podem subsidiar pesquisas qualitativas, além de também buscar dados mais objetivos sobre determinadas situações. Observando-se estes elementos, nos dois grupos focais foram estimuladas discussões entre os jovens direcionadas para algumas questões centrais. São elas: conhecer expressões de seus próprios vocabulários usadas para explicar a experiência da prática de boxe e da participação no centro esportivo Luta Pela Paz (aproximando o debate do objeto de pesquisa); perceber o lugar que o esporte e o projeto passaram a ocupar em suas histórias individuais e em formas de sociabilidade presentes em seu cotidiano (haveria desdobramentos em outros aspectos da vida social?); motivações e expectativas em relação à opção por esta atividade. 33 A partir deste foco temático principal, buscou-se identificar, nas falas, significados conferidos pelos participantes dos grupos focais ao boxe, levando em conta discursos e práticas existentes no ambiente específico onde praticam este esporte. As questões secundárias apresentadas para o debate incluíram a vivência da prática do boxe propriamente dita - as primeiras impressões, os primeiros “socos na cara”, a vingança ou a “canalização da agressividade”, razões para abandonar e continuar, sensações durante lutas e treinos (medo, dor, raiva etc) e estratégias para lidar com eles, a descoberta de potencialidades e fragilidades, além de representações sobre temas como juventude, favela e oportunidades. A verbalização de sensações e sentimentos experimentados durante a rotina de treinos e lutas ajudou-os a refletir, por exemplo, sobre suas escolhas, sobre a influência do boxe nas expectativas de reconhecimento pessoal de cada jovem e sobre a imagem criada por pessoas de seus círculos sociais em relação a “ser lutador de boxe”. As narrativas dos jovens resultantes destes debates estão expressas no corpo deste estudo. Algumas temáticas foram mais frutíferas em um grupo do que no outro, em função dos vínculos mais estreitos ou frouxos estabelecidos com a academia. Por exemplo, assuntos como as “regras de conduta” da academia e a experiência de participação em lutas foram mais desenvolvidos pelos participantes mais antigos da academia; já entre os novatos, as relações com a família, com os vizinhos, a convivência em outros espaços das favelas onde moram e a participação em cursos extra curriculares ganharam maior destaque do que atividades promovidas pela academia. Entre os aspectos que sobressaíram da discussão do grupo focal dos alunos mais antigos, pode-se destacar uma possível relação de identidade construída com o projeto/academia Luta Pela Paz no decorrer do tempo de permanência dos jovens em suas atividades. Um ponto que leva a crer nesta hipótese advém da forma como os participantes se apresentaram no início do trabalho; convidados pela coordenadora a falarem o que achassem conveniente sobre si, as apresentações de todos seguiram um padrão, apenas com nome, idade e tempo de academia; nenhuma outra característica pessoal (como estudo, família, ocupação ou trabalho) foi citada, apesar do estímulo da coordenadora do grupo. Junto aos novatos, duas características em relação à vida pessoal se manifestaram claramente em suas auto-apresentações: o estudo - todos os participantes, exceto um, citaram o fato de estarem estudando e o nível de escolaridade e a prática de esportes – três, dos cinco, citaram o gosto por outras modalidades de esporte que também estavam praticando. Outro ponto é o fato de, para os mais antigos, 34 o desempenho no ringue não ser tão valorizado quanto para os novatos; entre os primeiros, dos sete jovens, apenas um participava de competições; os demais ressaltaram outros pontos que os aproximavam da academia como as amizades, as comemorações de aniversários que os faziam se sentir “lembrados”, a busca por relações de afeto pouco manifestadas no ambiente familiar etc. Já o grupo dos novatos demonstrou entusiasmo com a perspectiva de competir, mesmo em torneios internos, quando estivessem aptos, conseguissem se adaptar à disciplina de treinos e às exigências do instrutor; ao invés das amizades na academia, entre estes, foram ressaltadas as rivalidades. Ou seja, o vínculo estabelecido entre os mais antigos com o projeto vai além do interesse pela atividade esportiva. As relações afetivas (namoros, casamentos e filhos) também contribuem para a manutenção desse vínculo. Outro viés da observação de campo, que incluiu registros textuais e visuais, foi a participação, durante cerca de quatro meses, nos treinos femininos de boxe da LPP. Este procedimento não se baseou em qualquer expectativa (equivocada) de me colocar na posição do outro para entrar em contato com sensações pretensamente análogas às dos jovens moradores da Maré. Acredito não ser necessário estender explicações acerca do fato de que cada indivíduo experimenta sensações e práticas com toda a carga de um histórico de vida pessoal e coletivo particular, tornando a passagem de cada jovem pela academia de boxe uma experiência única. O intuito de participar dos treinos surgiu, na verdade, a partir de um movimento individual muito simples: senti-me francamente atraída pelo aprendizado do boxe. Além disso, considerei a participação nos treinos uma boa “desculpa” para acompanhar de forma mais eficiente as experiências dos jovens nos exercícios práticos, no ringue etc. A partir de um certo momento de convivência no campo, senti necessidade de encontrar algo diferente que justificasse minha presença ali. Colocar-me sempre na posição de observadora das atividades, causou certo incômodo particularmente a mim, principalmente em relação aos novatos, os quais, por vezes, desconcentravam-se puxando assunto, prejudicando o treino. Ciente de problemas que poderiam decorrer desta ‘aproximação radical’, compartilhei com o instrutor, que conhece os alunos como ninguém, outros membros da equipe da academia e mesmo com alguns jovens, minha vontade de participar das aulas. Todos me incentivaram. No período em que freqüentei os treinos, pude identificar algumas alterações corporais decorrentes da prática deste esporte. Dentre as principais, poderia citar o aumento da rapidez de movimentos de reflexo (respostas corporais imediatas a estímulos externos), enrijecimento dos músculos dos braços (que, conseqüentemente, 35 ganharam mais força), além da sensação de maior fôlego e disposição física. Descrevi meu primeiro dia de treino no diário de campo e reproduzo um trecho a seguir. 36 Diário de campo - 19/05/2004 Subo a escada que leva à academia, ao lado da entrada do mercado Barateiro. O centro esportivo se localiza no andar de cima, ou na laje, deste pequeno mercado na Rua Teixeira Ribeiro (Nova Holanda - Maré). Os exaustores do andar de baixo jogam o calor diretamente para a sala de treino. Passo pela sala de musculação em meio aos aparelhos e observo a mesma cena que sempre encontro na entrada do ambiente de exercícios esportivos: junto a uma pequena mesa, D. Miriam confere as presenças e ausências dos alunos inscritos no boxe. Ali todos se detêm: jovens que participam dos treinos, curiosos que chegam só para olhar ou pedir informação, ex-alunos que saíram por algum motivo, mas continuam a freqüentar o espaço. Quem já é conhecido, cumprimenta D. Miriam, quem não é se apresenta e diz ao que veio. ‘Finalmente consegui chegar a tempo para treinar com as meninas’, já vou dizendo ao ver que todas estão a postos para começar. Ela sorri e me apressa para entrar. Dirijo-me a Luiz, treinador da academia, que também já está preparado para a aula. Discretamente, digo que vim para treinar, já pensando no que enfrentaria naquele meu primeiro dia de prática de boxe. Ele também sorri e diz logo “Já é!” Entro no pequeno banheiro para trocar de roupa e lá de dentro ouço Luiz avisar às outras meninas que vou participar do treino. Neste momento, uma delas pergunta quem exatamente ele está esperando, pois todas se conhecem e muitas também me conheciam. Ele diz, “é a Kita” e ela se surpreende: “Ué, mas ela veio treinar também?”. Fico atenta para escutar a reação; ela responde “Poxa, legal”. Saio e já encontro dois colchonetes, um em cima do outro, e dois pesinhos de meio kg no chão para mim. Luiz puxa pesos e colchões para frente e diz para eu ficar ali, num lugar bem central, à frente das alunas antigas. Digo que sou iniciante e pergunto se não seria melhor alguma das outras meninas mais experientes ficarem ali. Ele titubeia e eu puxo os colchões um pouco mais para trás, abrindo espaço para as outras. Elas logo ocupam seus lugares à frente e o treino começa. Somos oito mulheres; as meninas têm entre 14 e 17 anos (eu, certamente sou a mais velha ali). Juliana, Carol, Tamires e Rafaela são as alunas com mais tempo de academia – uma média de 9 meses; as outras duas haviam entrado há pouco tempo. Madalena, esposa de Deco, também é da turma, mas tem treinado mais tarde com os meninos por problemas com o horário das 16 hs. Descalças, a maioria das meninas treina com roupas bem simples, que parecem seguir um certo padrão. A combinação short jeans do tipo colante, com lycra, e top sem manga é adotada por quase todas no treino. Entre elas, praticamente não há roupas de marcas conhecidas. A sala é ampla e, por sermos poucas, sobra espaço entre nós, ao contrário da atual situação dos treinos masculinos, bem mais cheios, como pude perceber na 37 aula após a nossa. Treinamos no chão, ao lado do ringue que ocupa um terço da área total. Não há música, só as instruções do treinador. Cada dia da semana tem uma estrutura de treino um pouco diferente, sendo a primeira parte sempre composta por exercícios aeróbicos e de musculação ‘não técnicos’ e a segunda variando entre a prática de golpes no saco, treinos individuais de golpes, treino com adversário e luva no ringue para os mais adiantados. Começamos fazendo exercícios para esquentar: rodando os braços, depois a cabeça. Em seguida, passamos para os exercícios aeróbicos. Uma seqüência de pulos, polichinelos e outros. Começo a me cansar. Passamos para flexões e abdominais. Atrás de mim há duas outras meninas também iniciantes; as mais antigas – Carol, Tamires, Juliana, Rafaela e mais uma que não sei o nome – reclamam um pouco, mas com bom humor, principalmente das flexões. Tamires se dirige à Juliana (ambas participaram de uma apresentação de boxe feminino na última rodada de lutas promovida pela academia em outubro do ano passado), comentando sobre sua barriga, em tom de brincadeira, ou ‘sacanagem’, dizendo que ela deveria se esforçar para perder a barriga e voltar a ficar em forma. Todas riem, inclusive Luiz, que aproveita a deixa para exigir mais das alunas. Continuo firme e forte, mas também dou minhas paradinhas durante os exercícios. Noto que alguns meninos observam o treino. Lembro que o meu lugar habitual nos treinos era aquele, de observadora, e me surpreendo olhando para mim no espelho treinando. Não sinto constrangimento, mas uma sensação estranha, mas natural para quem passa a ocupar um lugar diferente do que está acostumado. Em seguida, passamos para os exercícios com os pesos nas mãos. Os primeiros são típicos de musculação (de pé, flexionando os braços para frente, para trás e para os lados, de modo a exercitar os músculos bíceps e tríceps), logo depois passamos para os movimentos específicos do boxe. Partimos de uma posição de base para todos os golpes, onde o pé esquerdo está um pouco à frente do direito, os braços flexionados para cima, os cotovelos perto do umbigo e as mãos fechadas na altura dos olhos, “fechando a guarda”, no jargão do esporte, que significa proteger o rosto dos golpes do adversário. Sinto o desconforto de quem nunca experimentou aquela posição; custo a encontrar a forma correta de posicionar os punhos e esqueço de proteger o rosto quando retorno a mão depois de ensaiar um soco e sou corrigida várias vezes por Luiz... O primeiro golpe a exercitar é o jab: para os destros, é dado com a mão esquerda para frente, não com intuito de acertar o adversário, mas de medir a distância certa em relação a este, para desferir, imediatamente após, com a outra mão, o direto (a tradicional “direita” ou a menos comum “esquerda”, no caso dos canhotos, que tanto ouvimos durante as narrações das lutas), este sim para acertar o oponente em cheio. O jab é uma preparação para o golpe pra valer que vem rapidamente em seguida. O corpo oscila como um pêndulo para um lado e para o outro, tendo sempre o equilíbrio no centro de gravidade. Começo a tentar meus 38 primeiros jabs e, aí sim, percebo que não tenho a menor intimidade com aqueles movimentos, ou melhor, que é preciso mesmo muita prática, preparo físico e coordenação motora para aprender a dar um golpe. Nada que já não tenha escutado antes em minhas entrevistas e, em particular, quando conversei com Luke, mas tive a sensação corporal disso. Senti que minhas mãos não tinham força nem firmeza suficientes para descarregar toda a energia no ponto culminante que parece se concentrar na ponta da mão. Aos poucos, os movimentos foram sendo encaixados uns nos outros sob o comando do treinador. Jabs, diretos, giros de corpo e passos para frente e para trás eram encadeados por nós, todas de pé, em frente ao espelho. Da metade do treino para o final, Luiz passou a dar exercícios diferentes para as alunas mais antigas, acrescentando outros tipos de golpes à movimentação do corpo. Uma das outras meninas iniciantes teve ainda mais dificuldade de concatenar movimentos como giros de corpo e golpes quase simultâneos. Dava pra notar que as mais adiantadas realmente davam ‘um banho’ de técnica em relação a nós. Como foi salientado anteriormente, o diálogo estabelecido entre os instrumentos de captação de dados qualitativos teve o intuito de agregar novas possibilidades de obtenção e de interpretação de informações a este trabalho. O mesmo raciocínio pode ser invocado para pensar o tipo de articulação que se procurou estabelecer entre imagens e texto neste trabalho. Tal perspectiva está presente no item a seguir. 1.6 O uso da fotografia como recurso "para descobrir e para contar"22 A contribuição mais importante que a fotografia pode trazer à pesquisa e ao discurso antropológico, a meu ver, reside no fato de que, pela sua própria natureza, ela obriga a uma percepção do mundo diferente daquela exigida pelos outros métodos de pesquisa, dando assim acesso a informações que dificilmente poderiam ser obtidas por outros meios. Estas informações – definidas por Maresca (1996:113) como “as trocas que passam pelo silêncio, pelos olhares, expressões faciais, mímicas, gestos, distância, etc” - podem ser úteis mesmo quando não nos é possível enquadrá-las no contexto lógico do discurso científico. Milton Guran (1997) 22 Guran, Milton. Fotografar para descobrir, fotografar para contar. Tema de palestra apresentada na II Reunião de Antropologia do Mercosul, Uruguai, 1997. 39 No campo da antropologia, a linguagem visual não só tem sido crescentemente utilizada, como também passou a constituir um objeto de reflexão com características próprias. A imagem, independentemente de seu formato de captação (seja ele em vídeo, cinema, fotografia e outras meios visuais), é fruto da extensão do olhar de quem a produz sobre determinada situação e, portanto, de escolhas visuais como o enquadramento, o foco, o momento etc. Trata-se de uma construção, a partir de um recorte preciso do mundo observável e, como tal, deve fazer parte do processo de análise no âmbito de uma pesquisa antropológica, caso a intenção do uso de imagens vá além do seu aspecto ilustrativo. Também participam deste processo de construção social de significados, além do fotógrafo, os interesses de quem utiliza as imagens e a interpretação dos observadores. Por ora, é necessário ater-nos apenas aos registros fotográficos que foram feitos partindo do ponto de vista da pesquisadora sobre o universo da academia de boxe Luta Pela Paz. Neste caso, optou-se por trabalhar com uma entre muitas possibilidades de uso da fotografia como ferramenta metodológica. Como observa, ainda, Milton Guran (1997), a fotografia como instrumento de pesquisa pode ter duas funções específicas, ou seja, enquanto fonte de “descobertas” em relação ao objeto de estudo e como suporte de narrativas de suas características, complementando as informações textuais e observações de campo. Um primeiro momento da pesquisa foi caracterizado pelo uso da fotografia na fase de familiarização com os jovens praticantes de boxe, constituindo uma forma de descoberta das particularidades do ambiente do projeto Luta Pela Paz. Cada tipo de fotografia tem uma especificidade dependendo do seu contexto de produção; como as imagens que compõem o corpus fotográfico desta pesquisa foram produzidas pela pesquisadora, o ponto de vista é de um observador de fora do contexto analisado. Esta natureza “etique” do olhar, ou seja, a partir de uma perspectiva externa, tem suas implicações e limitações. Se tivessem sido produzidas por uma perspectiva de dentro do contexto (um morador local, por exemplo), constituir-se-iam em representações de um grupo sobre si mesmo, pressupondo a possibilidade de identificação social com aquela imagem. No caso de um olhar externo, em geral, é necessário submeter a imagem à interpretação do grupo retratado (ou representado) para aprender com ele sobre sua própria cultura e realidade. Este foi o procedimento adotado no presente trabalho. 40 Partindo das séries de fotografias de autoria da pesquisadora, algumas imagens foram incorporadas à metodologia de pesquisa, na medida em que um conjunto de fotografias foi levado aos participantes dos grupos focais para que fossem interpretadas por eles. Tal procedimento trouxe a peculiaridade de transformar a imagem em “gatilho mental” para a discussão de temas que se pretendia abordar. Essa característica pode ser apontada como uma das vantagens de uso da fotografia neste trabalho, já que se buscavam maneiras de evitar, na medida do possível, o direcionamento de argumentos e falas dos jovens. As imagens escolhidas para serem comentadas pelos jovens foram inseridas ao longo do texto e integradas às temáticas levantadas por eles23. Desta maneira, colocaram-se também como recurso para construir a narrativa do trabalho. Outro intuito importante do uso das fotos nos grupos focais foi de buscar a reconstrução de significados visuais, a partir dos diferentes pontos de vista dos jovens lutadores sobre imagens de treinos e lutas - produzidas pela pesquisadora –, onde os sujeitos das imagens eram os próprios jovens e seus colegas de academia. A importância desse procedimento é explicada pelo mesmo autor: As entrevistas feitas com fotografias permitem, por exemplo, que aspectos apenas percebidos ou intuídos pelo pesquisador sejam vistos - e se transformem em dados - a partir dos comentários do informante sobre a imagem (Guran, 1997). Como as seqüências de imagens tiradas ao longo dos últimos anos já constituem uma leitura visual de diversos momentos da história da academia, sentimentos de nostalgia, recordação e emoção ao reconhecer amigos que abandonaram a academia ou morreram vieram à tona. A identificação dos jovens com uma parte de suas histórias pessoais e coletivas foi estimulada pela visualização das imagens. As informações provenientes da análise do discurso visual não substituem a palavra oral e escrita, apenas agregam outras informações, baseadas na apreensão do processo de significação que a imagem traz em si. A proposta de incorporar uma narrativa a partir de imagens fotográficas a este trabalho tem como objetivo acrescentar o recurso da interpretação visual às representações sociais que se fazem presentes no 23 As imagens que constam neste estudo e não são acompanhadas por um memorial descritivo, composto pela narrativa de um jovem freqüentador do projeto LPP e a análise desta narrativa, possuem caráter apenas ilustrativo. 41 campo de pesquisa, criando um ponto de vista particular sobre as mesmas. Esta abordagem se insere na perspectiva exposta por Márcia Pereira Leite (1997), segundo a qual é colocada a possibilidade de se utilizar/analisar a imagem pressupondo a sua “construção interna”, capaz de produzir sentidos diferentes de acordo com os contextos e as formas com que se apresentam.24 Esta construção interna leva em conta a existência de elementos que expressam códigos culturais e simbologias retratando a “(in)visibilidade de representações sociais” (LEITE: 1997). Quanto ao uso da fotografia durante a experiência de campo, algumas observações sobre a receptividade a esta atividade demonstram significados adquiridos pela câmera e pelo ato de fotografar, conseqüentemente, no ambiente de pesquisa. Nesse caso especifico, o ato fotográfico assume uma condição ambígua: é instrumento de valorização e reconhecimento, em alguns momentos, e representação de ameaça em outros (situações descritas a seguir). Uma “regra” local comentada por moradores da Nova Holanda e favelas próximas era de que os objetivos de quem portasse algum tipo de câmera pelas ruas deveriam ser conhecidos pelo grupo de integrantes do narcotráfico presente no lugar. Durante cerca de quatro anos fotografei as atividades da academia, sem qualquer problema, porém, evitando tirar fotos em ambientes externos - quando o fiz foi em companhia de fotógrafos cujos trabalhos já eram localmente conhecidos. A seguir, um trecho do diário de campo. Diário de campo - 13/05/2004 Fui à academia com o objetivo de encontrar o aluno Adalberto, 16 anos, para conhecer sua casa e fazer um retrato junto à sua família. Já era noite quando saí com o adolescente da academia de boxe, na Nova Holanda, em direção à sua casa no Parque União. Pela primeira vez, traficantes locais pediram para eu parar de fotografar enquanto caminhávamos pela região. Foi na volta do trajeto. Na ida, por volta de 17h30, andamos uns dez minutos, passando pela rua Principal (que corta algumas favelas), depois pegamos atalhos por vielas e ruas escuras até chegar à casa de Adalberto, no Parque União. Algumas lojas, mercados e a maioria dos bares ainda estavam abertos. No caminho, também vi crianças jogando videogame em pequenas casas de jogos eletrônicos, barbeiros cortando cabelo, gente nas calçadas conversando, vários tipos de barraquinhas nas ruas - de churrasco, de venda de CDs etc. Na casa de Adalberto, fui muito 24 A autora analisou a multiplicidade de sentidos e representações expressas em discursos imagéticos, gerados por ocasião da mobilização “Reage Rio”, em 1995, no Rio de Janeiro. 42 bem recebida por seus parentes, considerando o fato de que a família não havia sido avisada previamente pelo jovem sobre a visita. Mãe, um irmão e uma irmã, de 14 anos e grávida, moram em uma pequena casa de alvenaria de dois andares. Todos foram literalmente pegos de surpresa com a nossa entrada, o que não impediu que o irmão de Adalberto, viesse nos receber com um sorriso, ainda com uniforme de escola. Passado o pequeno susto inicial, a mãe e a irmã vieram falar conosco. Expliquei o motivo da minha visita, os objetivos da pesquisa e pedi permissão para fazer fotos. D. Marta pareceu orgulhosa do filho, disse amavelmente que não se importava em tirar fotos, fez elogios ao projeto Luta Pela Paz, mas não escondeu que, no início, não gostou muito “daquela história de o filho fazer boxe”. Adalberto sorriu (ele estava com camisa da academia e uma atadura no braço). O tom da conversa era bastante informal e continuou da mesma forma quando D. Marta narrou histórias tristes de sua vida (espontaneamente), como o fato de o marido tê-la abandonado e não dar nenhum tipo de ajuda para criar os filhos. Num momento de pausa, Adalberto perguntou se eu não queria tirar as fotos. Concordei e chamamos os outros irmãos para se sentarem na sala. Fotografei a família – todos se abraçaram sem que eu pedisse; antes eu já havia fotografado Adalberto sozinho no mesmo local. Pedi para fotografá-los também na fachada da casa. Como estava tudo escuro, perguntei se havia luz. D. Marta prontamente foi acender. Fiz mais algumas fotos de Adalberto junto com a mãe e o irmão. Todos nos despedimos, entrei para pegar minha mochila e a irmã veio mostrar um filhote de cachorro que nascera fazia pouco tempo. D. Marta me pediu para fotografar e o fiz. Muito gentil, ela chamou para tomar um café. Depois disso tudo, já na saída, a mãe do jovem perguntou, com simpatia: “Você é estrangeira?” Fiquei meio surpresa, mas nem tanto, pois era a segunda vez que me faziam a mesma pergunta na Maré. Respondi que não, que era carioca mesmo e quis saber porque eu parecia estrangeira. “Não sei, pelo seu jeito de falar, sei lá”, disse ela. Depois fomos até a esquina onde Adalberto comeu um churrasco no espeto. Pedi para fotografá-lo ali já que estávamos bem próximos a sua casa. Autorização concedida, fiz a foto e fomos caminhando de volta. A poucos metros dali tirei mais uma foto de Adalberto caminhando. Neste momento, uma voz surgiu de longe, em tom de imposição, vinda de um grupo de homens que estava numa esquina próxima: “foto aqui não”. Logo abaixei a máquina acatando o ‘pedido’ e continuamos o nosso caminho. Em seguida, Adalberto começou a falar sobre o ocorrido. Adalberto - Eles não gostam mesmo que tire foto. Pesquisadora - Eu achava que, mais dia menos dia, isso poderia acontecer. 43 Adalberto – Não precisa se preocupar, eu conheço eles, tenho um amigo que já foi envolvido... (silêncio) Pesquisadora – Na verdade, não estou preocupada por mim, mas por você. Será que eles vão vir tirar satisfação com você depois? Adalberto – Não, eles não me importunam. Se a gente não mexe com eles, eles não mexem com a gente. Você ficou com medo? Pesquisadora – Um pouco; sei que vou ter que pensar em algum tipo de atitude para lidar com isso de agora em diante, pois gostaria de fotografar um pouco mais do lado de fora da academia. Há três anos ando por aqui, mas fotografo só no interior da academia, justamente por saber que fazer isso na rua é um passo difícil. Durante todo esse tempo respeitei a “regra” de que o tráfico não gosta que tirem fotos. O que eu queria mesmo era saber o que vocês pensam disso, sugestões de como devo agir. Talvez seja o caso de avisar a eles o que estou fazendo. Adalberto – É, talvez eles tenham que ficar sabendo, porque se não é pra denunciar nada, não tem problema. Eles sabem que nós da comunidade não estamos nem aí pra isso. Pesquisadora – Esse é exatamente o meu problema: eu sou de fora e eles não sabem as minhas intenções; talvez seja melhor que eles fiquem sabendo. Mas precisamos conversar sobre isso com calma. Adalberto – Pode me procurar a hora que você quiser. Pesquisadora – Valeu. A partir deste trecho do diário de campo, evidencia-se a necessidade de tornar claras as intenções da pesquisadora, em certas ocasiões, não só para os entrevistados e para aqueles diretamente envolvidos com a academia de boxe, mas também para outros atores sociais importantes no contexto de pesquisa. O conhecimento apenas tácito de que o grupo de traficantes local estabelece regras - e, como detentores de poder, autoriza ou não atividades que julgam convenientes em sua área de atuação -, ganhou contornos explícitos por ocasião de uma incursão fotográfica ao Parque União. É importante lembrar que em nenhum outro momento houve qualquer interferência na atividade de pesquisa. Por outro lado, a pesquisadora acabou por experimentar um dilema também presente no cotidiano de “projetos” atuantes no local: como proceder em relação ao poder do narcotráfico na área? Entrar em contato direto para esclarecer suas intenções; fazer chegar a eles (de alguma forma) informações sobre sua atividade; ou simplesmente desempenhar sua atividade, correndo o risco de uma abordagem “para tirar satisfação”, mas valendo-se de outras relações sociais que possam advogar a seu 44 favor em conversas e comentários na localidade. A última hipótese entre as que se apresentavam no campo, pareceu ser a mais adequada (e segura), portanto, foi o procedimento adotado nesta pesquisa.25 Como enfatizado anteriormente, os instrumentos metodológicos adotados nesta pesquisa tiveram a intenção de acrescentar e articular informações sobre o contexto de estudo. Uma entrevista pode ser lida de forma diversa quando complementada por um trecho do diário de campo, por exemplo. No que se refere especificamente às análises qualitativas, as várias aproximações permitem uma visão do caso estudado sob diferentes ângulos, além de revelar com maior clareza a posição do pesquisador, dos riscos de bias nos quais pode incorrer e contribuir para minimizá-los. Sobre esta questão, BECKER (1999) acredita que a melhor forma de evitar a tomada de partido inconscientemente de um ou outro lado envolvido na pesquisa é tornar conhecidos todos os passos da pesquisa. O autor acrescenta: “Na medida em que sabemos o que estamos fazendo, em vez de fazê-lo ao acaso, podemos dizer que temos como evitar o problema.” Portanto, a forma como me inseri no campo trouxe vantagens como o livre acesso à academia de boxe e sua equipe, a permissão para fotografar e realizar entrevistas com os freqüentadores etc; entre as desvantagens, poderia citar o risco de “contaminação” pelo ponto de vista do “projeto” LPP, o que busquei neutralizar a partir do “mergulho” no universo dos jovens e da organização dos grupos focais, onde se torna mais difícil controlar as narrativas ou apresentar discursos “prontos”. Não há dúvidas quanto ao fato de que a aproximação do contexto de pesquisa poderia ter se dado de outra forma, porém, acredito que os ganhos obtidos a forma de acesso obtida tenham sido compensatórios. 25 Moradores locais desenvolvem maneiras de lidar com a presença do narcotráfico no cotidiano, o que não significa conivência com esta atividade criminosa. Manter distância é uma das formas mais comuns, traduzida na seguinte afirmação proveniente dos grupos focais: “Se você não mexe com eles, eles não mexem com você”. Este é um tema amplo (não abordado especificamente neste trabalho), objeto de polêmicas e debates, além de ter ocupado o noticiário da imprensa em 2004, sob o enfoque das controversas relações entre associações de moradores e o tráfico de drogas. 45 Capítulo 2 MARÉ: UMA ‘CIDADE’ PARTICULAR “Estudar uma favela carioca, hoje,é sobretudo combater certo senso comum que já possui longa história e um pensamento acadêmico que apenas reproduz parte das imagens, idéias e práticas correntes que lhe dizem respeito. É, até certo ponto, mapear as etapas de elaboração de uma mitologia urbana. É também tentar mostrar, por exemplo, que a favela não é o mundo da desordem, que a idéia de carência (“comunidades carentes”), de falta, é insuficiente para entendê-la. É, sobretudo, mostrar que a favela não é periferia, nem está à margem.” (Alba Zaluar, 1999:21) Neste capítulo, apresento um olhar sobre a Maré, lançando mão de algumas fontes de análise quantitativas e qualitativas sobre esta região da cidade. Concebido nesse estudo sob a perspectiva da heterogeneidade (em sintonia com alguns autores que realizaram estudos na mesma localidade26), o conjunto de favelas da Maré será descrito de modo a apontar alguns dos principais significados produzidos e reproduzidos socialmente sobre este universo de favelas do Rio. Sendo assim, serão contempladas representações construídas pela mídia e por moradores locais, dados estatísticos do Censo Maré – 2000, do Censo 2000 do IBGE, da Secretaria Municipal de Urbanismo e da Secretaria Municipal de Saúde para melhor contextualizar o panorama da região. Uma breve perspectiva histórica será entrecortada por narrativas de jovens residentes locais, que concederam entrevistas à pesquisa, e pelo ponto de vista de um 26 Para mais detalhes, consultar SILVA (2001) e publicações do CEASM. 46 antigo morador. Desta forma, procuro estabelecer um diálogo entre dois tipos de vivências diferentes, que se realizam no mesmo recorte do meio urbano carioca, porém, de maneiras distintas e em tempos que passaram a se encontrar a somente a partir das últimas duas décadas. Como foi descrito na introdução deste trabalho, a participação no campo de pesquisa permitiu a ampliação da escuta a vozes de moradores da Maré de perfis e faixas etárias distintas. Dessa forma, narrativas de personagens que residem nesse ambiente há mais tempo cumprem, em relação ao caso analisado, o papel de permitir a compreensão de aspectos sociais que contribuíram para fazer do contexto da Maré o que é hoje em dia. No que diz respeito ao objeto de estudo, as distintas representações sobre a Maré constituem o pano de fundo do encontro entre experiências que se constroem coletivamente no âmbito do projeto esportivo Luta Pela Paz, a partir dos momentos em que jovens locais passam a freqüentar este lugar. As trocas que acontecem neste ambiente de sociabilidade ocorrem em meio a um fluxo de vida social, sempre contínuo, onde as pessoas que dele fazem parte nunca são ‘vazios sociais’, trazendo consigo, inevitavelmente, suas histórias pregressas e origens diversificadas. 47 2.1 A Maré por dentro: um pouco além do olhar passageiro “Já despenquei lá na Maré, por isso não quero sair. Tudo o que eu consegui foi lá, tá ligado?” (Rivan, 16 anos em 2000; morador da Maré entre 1995 e 2004) Quando vim removido pra Maré, eu nem sabia, porque eu não tava no Rio. Quando cheguei, fui procurar a minha casa e não existia mais. Já tava tudo derrubado. Aí no dia seguinte falaram comigo: “Olha, agora tá na Nova Holanda”. “Mas onde é essa Nova Holanda?” “É pros lados da Baixa do Sapateiro”. Aí falei: “Baixa do Sapateiro eu conheço”. Aí vim pra cá, pra morar na Nova Holanda e tô morando até hoje. (Sr. Amaro, 73 anos. Morador da Maré desde 1962) Situado na zona norte do Rio de Janeiro27, o grande conjunto de moradias da Maré se espalha ao longo das maiores vias de acesso rodoviário ao município (Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela), as quais também interligam as principais regiões da cidade. A bordo de milhares de automóveis que trafegam, em alta velocidade, diariamente por essas rotas, passageiros e motoristas apressados dificilmente enxergam mais do que partes de um todo que forma o mosaico visual de habitações da Maré. 27 Alguns autores situam a Maré na zona da Leopoldina e não na zona norte. Ambas as formas de fazer referência ao local, atualmente, não são reconhecidas dentro da divisão oficial do território da cidade. Segundo consta no Plano Diretor Decenal da Cidade de Rio de Janeiro, (Secretaria Municipal do Rio de Janeiro), a divisão administrativa do território municipal está organizada em: Áreas de Planejamento (AP); Regiões Administrativas (RA); Unidades Espaciais de Planejamento (UEP) e bairros. Nesta divisão, a Maré se localiza na XXX RA, na AP 3. Sendo assim, o sistema de divisão por zonas (norte, sul, leste e oeste e outras) não é reconhecido oficialmente, embora seja o mais usado pela população em geral. 48 Atualmente, os limites de toda a sua área territorial se estendem até os bairros do Caju, Bonsucesso, Penha e Ilha do Governador, ocupando cerca de 800 mil m2. O aeroporto internacional e a baía de Guanabara também são outros importantes acessos à cidade situados bem próximos ao local. Para os observadores ‘de fora’ (em geral, moradores de outras localidades da cidade que precisam utilizar as vias expressas nos trajetos diários de ida e volta do trabalho ou do local de estudo), é predominante a impressão de homogeneidade em relação a este recorte do tecido social carioca, próximo ao Fundão, principal campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Se, de longe, a totalidade da Maré parece indistinta, de perto, descobre-se que as ‘peças’ desta imensa área de solo urbano - ou seja, as favelas que aí vieram a se instalar - têm histórias diferentes, marcadas por aspectos políticos e socioeconômicos que guardam fortes conexões com as formas variadas de ocupação populacional de toda a região ao longo de, pelo menos, cinqüenta anos e ganham expressões concretas nas distintas rotinas de vida existentes nestes locais. Em relação ao universo total da cidade do Rio de Janeiro, a área territorial da Maré é superior a da Rocinha, do conjunto de favelas do Alemão, da Mangueira, da Cidade de Deus, de Vigário Geral e de Parada de Lucas, entre muitas outras localidades. Classificada como bairro pela prefeitura do Rio de Janeiro em 1994, a Maré está situada na 30ª Região Administrativa do município. Segundo números do Censo Maré-200028, sua população é superior a de nove municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro, contabilizando o total de 132.176 pessoas, sendo quase um terço de seus habitantes composto por crianças e pré-adolescentes. Atualmente, este é o local de maior concentração de população de baixa renda do município do Rio de Janeiro, representando 2,26% da população total da cidade. Dados do Censo 2000, do IBGE, registram para a mesma localidade o número de 113.807 habitantes. 29 No ranking populacional de bairros do Rio de Janeiro, o bairro Maré aparece em sétimo lugar na escala de maior número de pessoas residentes, num universo total de 159 bairros. 28 Esta base de dados é produto de um levantamento de dados específico sobre a região da Maré, reunindo informações sobre população, domicílios, economia, cultura e educação, além de mapear as instituições existentes no local. É produto de iniciativa do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), com apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) e da Prefeitura do Rio de Janeiro. Mais informações em www.ceasm.org.br. 29 A disparidade entre ambas as fontes de dados do IBGE e do Censo Maré-2000 contabiliza a diferença de 18.359 pessoas. Entretanto, tal tipo de variação numérica não se restringe ao caso da Maré, como observam PANDOLFI e GRYNSPAN (2203:15), visto que as disputas envolvendo dados estatísticos relacionados a favelas demonstram a existência de “questões políticas” e divergências quanto aos limites de cada uma delas. 49 Segundo o sistema de classificação usado internamente por seus moradores, toda a região é constituída por um conjunto de sub-localidades, cujo número varia entre 16 e 19 “comunidades”.30 O Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM)31 e o Censo Maré-2000 registram, como integrantes desse mesmo conjunto dezesseis “comunidades”, especificadas a seguir, por ordem de data de fundação: Morro do Timbau (1940), Baixa do Sapateiro (1947), Conjunto Marcílio Dias (1948), Parque Maré (1953), Parque Roquete Pinto (1955), Parque Rubens Vaz (1961), Parque União (1961), Nova Holanda (1962), Praia de Ramos (1962), Conjunto Esperança (1982), Vila do João (1982), Vila do Pinheiro (1989), Conjunto dos Pinheiros (1989), Conjunto Bento Ribeiro Dantas (1992), Conjunto Nova Maré (1996) e Salsa e Merengue (2000). Ainda, segundo o Censo Maré-2000, o Parque União, com 17.796 habitantes, é a localidade mais populosa da Maré e o Conjunto Bento Ribeiro Dantas, onde vivem 2.199 pessoas, tem o menor número de habitantes (Quadro 1). 30 Os moradores que indicam a existência de outras comunidades, além destas, referem-se a áreas habitadas recentemente como a chamada “Sem Teto”, junto ao Parque União. 31 Criada por moradores da Maré em 1997, o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) é uma organização não governamental com sede na Maré e atuação específica voltada para esta região. Atualmente mantém projetos principalmente nas áreas de educação, cultura, geração de renda e desenvolvimento socioeconômico. 50 Localização da Maré e das favelas em seu interior onde foi realizada a pesquisa de campo (Parque União, Rubens Vaz e Nova Holanda): 51 Quadro 1 - Distribuição da população da Maré por favela Localidades População Parque União 17.796 Vila Pinheiros 15.485 Parque Maré 15.399 Baixa do Sapateiro 11.467 Nova Holanda 11.295 Vila do João 10.651 Rubens Vaz 7.996 Marcílio Dias 7.179 Timbau 6.031 Conjunto Esperança 5.728 Salsa e Merengue 5.309 Praia de Ramos 4.794 Conjunto Pinheiros 4.767 Nova Maré 3.142 Roquete Pinto 2.514 Bento Ribeiro Dantas 2.199 32 Mandacaru Maré 424 132.176 Fonte: Censo Maré – 2000 Já a Secretaria Municipal de Urbanismo da prefeitura do Rio de Janeiro33, identifica a existência de onze unidades territoriais em seu interior consideradas como áreas de favela, deixando à margem da categoria reconhecida pelo IBGE34 como “favela” as áreas de conjuntos habitacionais, as quais, dessa maneira, tornam-se 32 Nota do Censo Maré-2000: “A Maré é constituída por 16 comunidades. O Censo Maré, a fim de melhor descrição da heterogeneidade local, considerou a comunidade de Mandacaru, localizada no território de Marcílio Dias, como uma comunidade específica, devido às suas condições peculiares.” 33 Dados fornecidos pelo Instituto Pereira Passos. 34 O IBGE criou alguns parâmetros para designar uma área como “favela”, chamada tecnicamente de “aglomerado subnormal”: “Para o IBGE, aglomerados subnormais são grupos de mais de 50 unidades habitacionais dispostas de modo “desordenado e denso”, sobre solo que pertence a terceiros, e “carente de serviços públicos essenciais”. Opõem-se aos setores normais que, por exclusão, constituem a cidade formal. Não podemos ver aí categorias de conteúdo sociológico. O IBGE utiliza essa divisão mais para efeitos de organização do trabalho de coleta de dados em campo.” 52 indistintas dentro do mapa do conjunto do bairro (ver mapas). As disparidades em torno de números, definições territoriais, classificações e categorias de linguagem usadas para denominar esse lugar da cidade revelam a ausência de consenso entre os diferentes agentes sociais que produzem informações sobre o mesmo local. Esta situação estimula uma reflexão sobre a Maré como ambiente sobre o qual são construídos, freqüentemente, sentidos e representações contrastantes. Em tempos atuais, nota-se que essa região da cidade tem sido objeto de disputas simbólicas dependendo do referencial e do contexto onde é citada. Para ilustrar a existência de tais disputas, podem-se citar exemplos que resumem alguns dos principais pontos de vista amplamente disseminados junto à chamada opinião pública no âmbito desta metrópole brasileira. A Maré segundo fontes da imprensa: Junto à opinião pública, o denominado “Complexo da Maré” ganhou notoriedade através de matérias veiculadas na grande imprensa, cuja cobertura se concentra, com freqüência, em episódios de conflitos armados ou de homicídios no lugar. O fato de figurar predominantemente no segmento policial de noticiários jornalísticos faz com que todo o conjunto de favelas seja identificado como lugar de violência no imaginário de uma grande parcela da população carioca e, conseqüentemente, a representação de violência se torna uma das mais presentes na sociedade. Sobre esta perspectiva, Silva (2001) ressalta: “O espaço da Maré, marcado pela heterogeneidade, permite o combate às representações homogeneizadoras, que caracterizam os olhares lançados sobre os espaços sociais favelados. Com efeito, o reconhecimento da diferença na homogeneidade me parece um caminho crucial para a análise dos agentes e dos espaços populares da cidade – em geral classificados e estereotipados sob uma lógica sociocêntrica, identificada com as referências e valores característicos dos setores sociais conservadores na cidade. A associação, por exemplo, entre espaços favelados e violência faz com que – de um modo que beira a morbidez, apenas mais sofisticada – o cotidiano dos moradores das comunidades populares seja, em geral, ignorado pelos moradores dos bairros da cidade.”... (2001:10) Esta simbologia da violência ganha dimensões ainda maiores na medida em que, não raro, vítimas de conflitos em favelas são classificadas como bandidos ou traficantes 53 em matérias jornalísticas, sem que haja uma apuração precisa de suas identidades (nem mesmo em momentos posteriores, quando se tratam de fatos mais críticos). Nestes casos, torna-se notório o fato de muitas reportagens adotarem como fonte privilegiada versões apresentadas pela polícia – ou seja, somente um dos lados envolvidos nos conflitos - omitindo ou deixando em segundo plano relatos de moradores locais, os quais, dessa forma, dificilmente chegam ao conhecimento público. Vejamos alguns exemplos publicados em jornais da imprensa carioca em maio de 2005: O jornal O Globo publicou matéria de página inteira em 25 de maio de 2005, onde se refere à área da Maré e locais próximos como “Faixa de Gaza”. O principal fato relatado é a interdição momentânea de importantes rodovias da cidade por causa de “confrontos” violentos envolvendo a polícia, moradores do “Complexo da Maré” e traficantes de drogas. Houve duas vítimas nesta situação específica: um homem, de 22 anos, morto, e uma criança, de 4 anos, baleada. Sob a manchete “Violência de volta à Faixa de Gaza”, o texto se inicia: “Confrontos entre policiais, moradores do Complexo da Maré e traficantes fecharam parcialmente, ontem à tarde, três das principais vias da cidade: a Avenida Brasil e as linhas Amarela e Vermelha. (...)”. Não há depoimentos de moradores da Maré na matéria e não é possível saber ao certo os motivos que iniciaram as trocas de tiros. Segundo a narrativa do texto, tudo começou com uma “operação” da polícia na Vila Pinheiros, onde ocorreu um tiroteio. O episódio da criança que acabou sendo “baleada” – não se sabe por quem, pois não há informação sobre o autor dos disparos - revolta a população local, que tenta protestar, interrompendo o tráfego de automóveis nas vias expressas, levando ao “pânico” motoristas que passavam pelo local. A população das favelas é, portanto, tratada como vilã da história, pois pára o trânsito atrapalhando o caminho de uma via expressa que, para ser construída, modificou traçados de ruas dessas e de outras favelas, desalojou moradores e se instalou diante de suas portas e janelas. No interior da reportagem, um pequeno boxe explicativo sob o título “Uma região esquecida” expõe as razões para o uso da denominação “Faixa de Gaza carioca” pelo jornal. A representação do ambiente, exclusivamente, como lugar de violência se torna ainda mais explícita: “A violência levou uma grande área da cidade – que vai do Caju à Pavuna, incluindo as linhas Vermelha e Amarela, um trecho da Avenida Brasil e as favelas do 54 Jacarezinho e dos Complexos da Maré e do Alemão – a ficar conhecida como a Faixa de Gaza carioca, numa referência à região onde há confrontos freqüentes entre palestinos e israelenses. É uma área de 95 quilômetros, onde os cerca de um milhão de moradores de 33 bairros vivem sob o domínio de bandidos (...).” (jornal O Globo, 25 de maio de 2005) O jornal O Dia publicou, também no dia 25 de maio de 2005, a matéria “Inferno nas vias expressas” sobre o mesmo incidente que provocou o fechamento das três vias cariocas. O texto localiza o fato ocorrido na Vila dos Pinheiros (integrante do conjunto da Maré), “no bairro de Bonsucesso”, como é possível verificar no subtítulo da reportagem: “Troca de tiros entre policiais e bandidos na Vila dos Pinheiros, em Bonsucesso, fecha linhas Vermelha e Amarela e Avenida Brasil.” Em toda a matéria de mais de meia página, a única fonte de informação citada foi a policia: “De acordo com os PMs, os bandidos fizeram disparos em direção à Linha Vermelha, enquanto eles tentavam impedir que manifestantes fechassem a via. Houve outra troca de tiros na favela e Lauro Souto Pereira, 22, foi morto. De acordo com a polícia, foi apreendido com ele um revólver calibre 32 e 44 sacolés de cocaína, além de um radio transmissor”. (jornal O Dia, 25 de maio de 2005) Há menção a reações de “pânico” de motoristas que trafegavam sobre a Linha Vermelha e de pessoas que ficaram “refugiadas” na Fundação Oswaldo Cruz e no Fundão, campus da UFRJ. Entretanto, o único entrevistado da matéria inteira é o prefeito do Fundão, cuja fala diz que, apesar das dificuldades no trânsito para chegar à universidade por causa da paralisação das vias de acesso ao Fundão, “as aulas não foram interrompidas”. Como no texto do jornal O Globo, não há declarações de moradores da favela citada, que encarna o foco do medo e da “confusão”, causando prejuízos às vidas daqueles que trafegam pelas vias da cidade. Por fim, as fotografias que acompanham o texto mostram: 1. Policiais posicionados atrás de uma das muretas de contenção da Linha Vermelha apontando suas armas em direção às favelas 2. Pessoas, que parecem ter saído de seus veículos em razão da paralisação no trânsito, recostadas na mureta da Linha Vermelha. As expressões dos rostos aparentam um misto de estado de alerta com cansaço; uma mulher parece cochilar deitada no colo de um homem 3. Uma visão geral da Linha Vermelha, 55 onde se vêem alguns carros parados em primeiro plano. Fora de seus automóveis, motoristas conversam, caminham, abrem as malas dos carros. Em resumo, à exceção da imagem dos policiais com a pontaria direcionada para as favelas, pressupondo uma situação de tensão, nenhum outro dado preciso confirma a situação de “pânico” descrita na matéria e, muito menos, justifica a conotação aterrorizante sugerida na manchete “Inferno nas vias expressas”. Apesar disso, o sentido de caos urbano - construído por palavras fortes e de efeito sensacionalista, associadas a fotos e textos-legenda selecionados com o mesmo objetivo - é o que prevalece para o leitor. Os casos das duas reportagens citadas se referem a um ponto de vista predominante na maioria dos veículos da imprensa carioca: a visão exterior em relação à favela. Tomados isoladamente, destacados do contexto diferenciado de cada favela, índices como o de homicídio e outros indicadores podem contribuir para que todo o conjunto da Maré, em seus múltiplos aspectos, seja identificado predominantemente com a representação de violência, descontrole e falência social e, ainda, para que todos os seus moradores sejam relacionados, indistintamente, com algum tipo de agência que colabora para a existência desta situação. Tal imagem pejorativa, porém, não foi gerada em tempos atuais. Segundo Alba Zaluar (1999), a idéia de favela, como lugar essencialmente de problemas, caos e desordem social, vem sendo construída desde o momento em que surgem os primeiros núcleos de habitação em morros da cidade. Analisando as representações de favela no Rio de Janeiro ao longo do século XX, a autora observa que a imagem de morros e favelas da cidade vinculadas à noção de perigo e crime é antiga: “(...) já no início deste século os morros da cidade eram vistos pela polícia e alguns setores da população como locais perigosos e refúgios de criminosos”. O raciocínio prossegue com a constatação de que um exame mais cuidadoso das estatísticas criminais da época não sustentava a noção anterior, já que, citando BRETAS, a idéia é concluída: “nas diversas regiões da capital federal de então, a distribuição de crimes e contravenções é semelhante“35. De acordo com ZALUAR (1999), tal representação era veiculada em jornais da então capital federal, assim como a “utilização da favela como um espelho invertido na construção de uma identidade urbana civilizada”: 35 Apud BRETAS, Marcos. A guerra das ruas: povo e policia na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1997. 56 Ao longo deste século, a favela foi representada como um dos fantasmas prediletos do imaginário urbano: como foco de doenças, gerador de mortais epidemias; como sítio por excelência de malandros e ociosos, negros inimigos do trabalho duro e honesto; como amontoado promíscuo de populações sem moral. Com a chegada de levas de nordestinos, que traziam outra bagagem cultural, a favela também passou a ser vista como reduto anacrônico de migrantes de origem rural mal adaptados às excelências da vida urbana, ignorando-se os conflitos que advieram da convivência forçada num espaço cada vez menor entre negros cariocas (“de raiz”) e migrantes nordestinos. (1999: 21) A análise anterior das matérias publicadas em dois grandes jornais da imprensa carioca em 2005, junto à literatura citada, leva a crer que a representação de favelas como lugar onde se concentram os malefícios sociais (perturbação da ordem, traficantes, confrontos armados, violência etc) ainda é fortemente presente. O fato de o local ser identificado desta forma por grande parte da sociedade dificulta a possibilidade de dissociação de uma imagem negativa de outros aspectos do dia a dia das favelas. Conseqüências decorrentes deste tipo de representação generalizante puderam ser identificadas em falas e atitudes de jovens participantes do projeto LPP: Em suas narrativas, foi relatado um tipo de tratamento diferenciado, a saber discriminatório, por parte de residentes de outras áreas da cidade, em relação a moradores na Maré. Tal aspecto foi detectado em conversas com jovens da Maré durante o período de pesquisa de campo, além de também ter sido evidenciado por participantes do LPP em duas ocasiões específicas: durante a realização dos grupos focais e em uma série de debates que reuniu jovens do projeto Luta Pela Paz e alunos de uma escola de classe média-alta do Rio de Janeiro em 2004. 36 No evento intitulado “Luta pela paz no dia a dia”, uma participante dos treinos femininos de boxe feminino relatou omitir, com freqüência, a referência à Maré quando precisava declarar formalmente seu endereço de residência. O motivo colocado por ela foi o fato de já ter sofrido (e ter medo de sofrer) discriminação por ser moradora desta área. Nos cartões de identificação dos grupos focais, em um universo total de doze participantes, apenas três declararam a Maré como local de moradia; o restante escreveu nomes de favelas (Nova Holanda, Rubens Vaz e Parque União) e de ruas locais na ficha 36 Organizado pela equipe do projeto LPP sob o título ‘Luta pela paz no dia a dia’, o encontro citado ocorreu em agosto de 2004, com o apoio da Rede ANDI (Agencia de Notícias dos Direitos da Infância) Para Projetos de Comunicação. 57 onde foram solicitadas informações relacionadas ao perfil do jovem (preservando suas identidades). Nenhum deles citou a palavra favela; alguns colocaram “bairro Bonsucesso” e um pôs apenas “comunidade”. Na discussão sobre o que pensavam em relação ao seu local de moradia, um jovem expressou sua preocupação com a generalização sobre a região da Maré: É que nem passou ontem no Cidade Alerta37 o nome daquele cara que está sendo caçado; [no programa de TV] eles falam assim: ‘O Complexo da Maré tem mais de dez favelas’, mas se eles não explicam, os outros pensam que no Complexo da Maré todo tem aquele tiroteio. A Maré sob a ótica de um antigo morador: As primeiras gerações de habitantes da Maré guardam lembranças que lhes permitem elaborar noções singulares sobre as transformações sociais ocorridas nesta região da cidade. O registro de memórias de moradores que construíram suas vidas em favelas cariocas atualmente constitui uma das formas de produção de conhecimento sobre o tema das favelas, o qual nesta abordagem, ganha contornos a partir de um lugar “de dentro”.38 Nesta perspectiva, situa-se a fala de Amaro Domingues, de 73 anos, removido junto com a família para a Nova Holanda (Maré) no início da década de 1960, onde construiu uma longa história de participação na vida comunitária. “Seu Amaro”, como é conhecido, chegou à Maré quando ainda se tomava banho de mar onde hoje se encontra a Linha Vermelha. Era Maré, tudo Maré porque tudo isso aqui era mar. A única comunidade que era em cima de ponta de pau, que chamavam de palafita, era a Baixa do Sapateiro. Naquele 37 Programa jornalístico de televisão que enfatiza a cobertura sensacionalista de casos de violência no Rio de Janeiro. 38 Abordada por diversos autores e objeto de polêmica, a produção de conhecimento sobre favelas é, de acordo com Novaes (2004), uma arena onde se tornou difícil enxergar limites precisos entre os diversos argumentos produzidos, sejam eles “de fora” ou “de dentro”. No texto de abertura da publicação “A Memória das Favelas”, a autora acrescenta: “Em um tempo de questionamento de paradigmas iluministas e positivistas, mais do que nunca é preciso refletir sobre certas fronteiras entre tipos de conhecimento historicamente estabelecidos. E assim surge a (...) pergunta: a quem cabe construir a ‘memória das favelas’? O que se sabe hoje é que nenhum campo de conhecimento por si representa a possibilidade de fazer com que se instaure ‘a verdade dos fatos’. A história, a memória coletiva e o jornalismo têm métodos e objetivos distintos que devem ser reconhecidos, mas todos são campos de conhecimento em que se expressam sentimentos, versões, interesses e disputas.” (2004:11) 58 pedacinho da Baixa do Sapateiro e na Nova Maré, esse pedacinho que existia, andavam por cima de tábua. Depois o Lacerda aterrou uma parte, que era a Nova Holanda, e construiu umas casas ali. Aí foi quando eu fui morar ali, mas isso aqui onde nós estamos, era tudo mar. Eu vinha tomar banho de mar aqui. Ali onde é a coisa do boxe, era parada de barco de pesca. Embora não tenha feito parte da primeira leva de residentes (décadas de 1940 e 50), este morador da Nova Holanda descreve o processo de ocupação da área, que, segundo seu ponto de vista, relaciona-se com o movimento comunitário e, mais precisamente, com o surgimento das associações de moradores; a primeira delas nasceu no Morro do Timbáu, onde se instalaram os primeiros habitantes da região: O Morro do Timbau foi o primeiro, porque é o único lugar alto e ali embaixo, onde você passa quando vem pra cá, Linha Amarela e tudo mais, ali era um estaleiro, o estaleiro de Inhaúma. Se você passar ali por baixo da ponte ainda vai ver pedaço de barco jogado ali. Então, o Timbau teve uma das primeiras associações do Complexo da Maré. Teve uma briga muito grande: o Timbau com o exército; os militares queriam tomar a tiro, então teve uma luta muito grande deles, os pescadores. Mas isso foi em 1930, mil novecentos e pouco, daí pra cá... 39 O Morro do Timbáu (nome proveniente do tupi guarani, thybau, ou seja, “entre as águas”) começou a ser ocupado na década de 1940. No início do século, grande parte do entorno, situado em área de manguezal, já havia sido loteado e começava a ser aterrado por empresas, como a Empresa de Melhoramentos da Baixada Fluminense, para dar lugar a projetos de saneamento da Baixada. Próximo dali, a enseada de Inhaúma, de águas limpas e calmas, recebia constantemente pedaços de pau e madeira, desprendidos da vegetação que se estendia ao seu redor, de acordo com o ritmo da maré. Daí a origem do nome da região. Fazendo uso destes materiais, os primeiros 39 O fato ao qual Seu Amaro se refere como “uma briga muito grande” entre moradores do morro do Timbáu e o exército aconteceu, em 1947, por ocasião da transferência do Primeiro Regimento de Carros de Combate da área onde seria construído o estádio do Maracanã para um terreno em frente ao morro. Tal fato é assim descrito em levantamento histórico feito pelo CEASM: “O 1º RCC instalou-se defronte ao Morro do Timbáu e, sob a justificativa de impedir a ocupação de terrenos que lhe pertenciam (o que mais tarde se vai verificar não ser verdade), passou a exercer um controle sistemático sobre a comunidade com a derrubada de barracos, o controle da entrada de moradores através da colocação de cercas de arame farpado, e a cobrança, por parte de alguns militares de ‘taxas de ocupação’.” 59 moradores construíram suas casas no morro, exemplo posteriormente seguido por pessoas vindas de outras partes da cidade, predominantemente de baixa renda.40 Nas palavras de Seu Amaro sobre os focos iniciais de habitação na Maré, aparece fortemente o vínculo entre os processos de ocupação da região e a luta constante dos moradores por melhores condições de vida. Tal vinculação chama atenção para a participação dos residentes nas questões que envolvem benefícios comuns como traço freqüente na história local. Daí o importante papel adquirido pelas associações de moradores, transformadas em instrumentos de reivindicações (em níveis e momentos diferentes), a exemplo do que ocorreu em várias outras favelas da cidade. Transferido de uma favela em Maguinhos para a Nova Holanda, o carioca Amaro Domingues integra a parcela da população da Maré proveniente da política de remoções de favelas de outras localidades do município, realizada durante o mandato de Carlos Lacerda (1961-65) à frente do governo estadual do Rio de Janeiro.41 Seu Amaro “Seu Amaro”, como é conhecido, tem extensa trajetória de participação no movimento comunitário em lugares onde morou e, especialmente na Maré. Nascido em 1932, só tirou certidão de nascimento em 1938. Natural de Campos, município do estado do Rio de Janeiro, foi criado “na roça”, onde “não tinha escola, ninguém pra ensinar”, como define. “Não tive infância”, resume, lembrando os anos em que precisava cuidar dos irmãos, trabalhar com o gado e buscar água em lugares distantes. Participou das comemorações do fim da segunda guerra, em 1945, mesmo “sem saber direito o que tinha acontecido”, conseguiu realizar o sonho de servir na Força Aérea Brasileira (em 1955) e pôde firmar residência no Rio de Janeiro, junto com a família, permanecendo sempre na região periférica da cidade. Trabalhou como motorista no transporte de carga de caminhão, viajando por todo o Brasil, depois se tornou empregado da empresa de transportes CTC. Em 1962, sua casa foi transferida de Manguinhos para a Maré, em meio ao período de remoções de diversas favelas na década de 1960, cujos efeitos sociais vêm repercutindo até os dias hoje. “Quando eu cheguei que fui procurar a minha casa, não existia mais. Já tava tudo derrubado”, relembra. Tornou-se sindicalista e, na década de 1980, conseguiu centenas de vagas para jovens da 40 Fonte: www.ceasm.org.br. Praia do Pinto (Leblon), Catacumba (Lagoa), Esqueleto (Tijuca) e Morro do Pasmado (Botafogo) são exemplos de algumas das favelas removidas na década de 1960, em conseqüência de uma “política de remoções” amplamente noticiada em jornais da época, como o Correio da Manhã (mais detalhes em www.favelatemmemoria.com.br). 41 60 Maré, entre 14 e 17 anos, em uma escola profissionalizante da CTC. “Fiz pela minha vontade, eu não era parte de nada não. Cismei e falei ‘vou fazer’ ”. Depois disso, iniciou um período de “lutas” que chega aos dias atuais: presidiu a Associação de Moradores da Nova Holanda, gestão de 1994-95, e a UNIMAR (União das Associações de Moradores da Maré) entre 1996 e 1999. Atualmente, é presidente da Vila Olímpica da Maré, complexo poliesportivo inspirado no modelo da Vila Olímpica da Mangueira, que reúne dezenas de atividades esportivas, culturais, educacionais e de lazer, atendendo a mais de dez mil crianças da Maré e adjacências. Apesar de sua trajetória, quando indagado sobre a sua condição de líder comunitário, respondeu “eu não me considero líder.” A Maré começou a ganhar a feição atual após sucessivos aterramentos de áreas de mangue que beiravam a baía de Guanabara, sobre as quais veio a se estabelecer. Durante cerca de três décadas (dos anos 1940 aos 1970), as palafitas - habitações de madeira construídas sobre a lama e a água - dominaram grande parte do cenário da região, então caracterizada por terrenos alagadiços. Esta imagem de casas flutuantes, precárias, interligadas por pontes suspensas sobre a água, ainda sobrevive no imaginário da população carioca, mesmo depois de sua substituição quase completa por casas de alvenaria e conjuntos habitacionais. 42 Para as áreas aterradas foram transferidos habitantes de outras favelas removidas, assim como antigos moradores das palafitas, também retiradas para dar lugar à passagem de rodovias e novos acessos de áreas periféricas para o centro da cidade, aos aeroportos, à expansão industrial, enfim, a símbolos de um progresso urbano que não se instalou em todas as áreas da cidade de forma equilibrada e, no caso da Maré, transformou-se em moeda de barganha política em épocas eleitorais. Realizadas ao longo de pelo menos quarenta anos, as grandes obras na região fizeram parte do projeto de “modernização” da cidade, baseado em políticas de intervenção urbana como a de remoções de favelas da zona sul da cidade e de locais considerados “de risco”. A vinculação a plataformas políticas esteve presente desde a administração de Henrique Dodsworth (anos 1940), passando por mandatos de exgovernadores do estado do Rio de Janeiro, como Carlos Lacerda (1961-65) e Chagas 42 Tal representação está presente na letra de ‘Alagados’, música de autoria do grupo Paralamas do Sucesso, da década de 1980, que tem como refrão: “... Alagados, Trenchtown, Favela da Maré / A esperança não vem do mar, nem das antenas de TV / A arte de viver da fé, só não se sabe fé em quê ...”. 61 Freitas (1971-74 e 1979-82), pela intervenção do ex-ministro Mario Andreazza (fim da década de 1970) e da campanha eleitoral do ex-presidente João Figueiredo (início dos anos 1980), até a primeira gestão de César Maia à frente da prefeitura na década de 90. Entre as construções que modificaram drasticamente a geografia local estão: diversos aterros sanitários realizados ao longo de décadas, a Avenida Brasil (1946), a Cidade Universitária (fim dos anos 1940, inicio dos 50), a Refinaria de Manguinhos (anos 1940), os conjuntos habitacionais (décadas de 80 e 90) e as Linhas Vermelha e Amarela (anos 1990). Hoje em dia, os contornos desta grande área constituem, em sua quase totalidade, um imenso espaço urbano sobre área plana. À exceção do Morro do Timbau, praticamente toda a região é assentada sobre este tipo de terreno. A partir dos anos 1950, o contingente populacional passa a aumentar significativamente em vários loteamentos posteriormente reconhecidos como parte da Maré, atingindo grandes proporções nas décadas de 1960 e 70. A construção da Avenida Brasil, em 1946, foi o primeiro empreendimento de grande porte que proporcionou, além de maior facilidade de acesso ao local, condições para se construírem habitações nas áreas que iam sendo aterradas para a passagem da primeira estrada de ligação entre as regiões centrais e periféricas da cidade e também de comunicação viária intermunicipal e interestadual. Nas décadas seguintes, o fluxo migratório de cidades do norte e nordeste em direção ao sudeste do Brasil leva à Maré milhares de pessoas, muitas desempregadas, em busca de trabalho em grandes obras de engenharia urbana em curso naquele momento, como a construção de túneis e viadutos, ou em indústrias que se instalavam nas margens da Avenida Brasil. Sobre as origens da população da Maré, Seu Amaro observa: O que aconteceu no Complexo da Maré foi o que aconteceu no Complexo do Caju. O maior número de pessoas que começou a migrar para a Maré e para o Caju foi na construção do Túnel Santa Bárbara, porque quem estava aqui chamava as pessoas do norte para vir pra cá trabalhar no túnel Santa Bárbara. Emprego, trabalho, então, as pessoas vinham e ganhavam muito dinheiro, mas só que nem assinava carteira porque ali morria gente quase todo dia. Houve essa migração muito grande. Depois veio o túnel Rebouças, mais outra fonte de serviço, emprego e começou a vir essas migrações pra cá. Além dessas construções, Carlos Lacerda estava remodelando o Rio de Janeiro, transformando. Eu não gostava muito dele não, mas foi um governador que trabalhou muito pela cidade porque fazia coisas debaixo do chão, não pintava, não fazia aquela pose, aquela coisa. (...) Foi uma revolução muito grande, em termos de construção dentro do Rio de Janeiro. 62 Resultado de ocupação espontânea, de ações planejadas (caso dos Centros de Habitação Provisória, construídos para abrigarem temporariamente pessoas removidas de áreas “de risco”) ou sob a forma de conjuntos habitacionais, assim foram surgindo, uma a uma e, por vezes, quase simultaneamente, as favelas da Maré. Além delas, outros núcleos de habitação popular também foram criados em diferentes regiões da cidade. Seu Amaro acompanhou este movimento: A maioria aqui era tudo nordestino, agora é que diversificou um pouco, como no Caju também. Isso foi quando o sistema demográfico daqui começou a crescer. Aí o que aconteceu? O Carlos Lacerda, com esse movimento crescendo muito nas beiras de rio, nas abas de morro, nas áreas de perigo, risco de vida, essas coisas, ele começou a aterrar essas áreas e ir removendo essas pessoas pra cá, para daqui serem deslocadas para outros lugares. Como depois veio a construção de Cidade de Deus, da Vila Aliança, da Vila Kennedy, tudo isso eu vi construir, vi começar. (...) Isso foi na década de 57, 58 por aí assim. No que se refere ao perfil demográfico da Maré, a narrativa anterior identifica dois importantes aspectos de origem da população local, apontando, inclusive, para um cenário atual, mais “diversificado”: a proveniência, digamos, voluntária, de pessoas de outros estados do país (principalmente norte e nordeste) e a vinda compulsória de habitantes de outras favelas removidas dentro da cidade. Os familiares dos jovens entrevistados se enquadram em ambos os casos e vivenciaram estas experiências de formas distintas. Já Seu Amaro, veio removido de Manguinhos; sua fala apresenta apenas uma justificativa para as remoções promovidas durante o governo de Carlos Lacerda: a ameaça de enchentes, segundo ele, responsável pela falta de “condições” para a permanência de moradores em suas habitações, os quais acabaram transferidos de suas casas para conjuntos habitacionais, que, em sua maioria, também não apresentavam infra-estrutura adequada para receber esta população. Como parte da mesma política de remoções, o governo estadual optou pela construção de “habitações provisórias” no inicio dos anos 1960, para onde foram remanejadas moradores de construções consideradas em perigo de desabamento. Com esta finalidade, surgiram os Centros de Habitação Provisória (CHPs), projetados para serem lugares de passagem, como parte da política de habitação do governo estadual na época. Dali as famílias seriam ainda deslocadas para suas residências definitivas, o que, efetivamente, não ocorreu. 63 Planejada para ser um CHP, a Nova Holanda (assim como outros locais na cidade) foi erguida também sobre uma grande área aterrada da baía de Guanabara, próximo à Avenida Brasil. Finalizada nos primeiros anos da década de 1960, a NH passou a receber famílias das favelas do Esqueleto (Tijuca), Praia do Pinto (Leblon), Morro da Formiga (Tijuca), Morro do Querosene (Tijuca), desabrigados de regiões próximas e, por último, já na década de 70, chegaram moradores retirados da favela Macedo Sobrinho (Botafogo). Com o traçado de ruas planejado e construções padronizadas compatíveis com o objetivo de serem temporárias, pouco a pouco as “condições” de habitação da N.H. foram se degradando, como testemunhou o mesmo morador: Começaram as construções de habitações provisórias por causa das enchentes, as ribeirinhas. Foi quando fizeram a Nova Holanda. Então eu vim de Manguinhos para a Nova Holanda e muitos vieram da Praia do Pinto, da favela do Esqueleto, removido, tudo remoção. Vieram pra aqui, pra Maré e ficamos aí, né? Era pra ser provisório. (...) Daqui seriamos deslocados para outros lugares. Só que o pessoal sofreu muito aqui, porque não se podia tirar uma tabua de barraco. Eles fizeram casas de madeira, tipo barracão; eram aqueles vagões, 50 metros quadrados pra cada um - era tudo vagão gêmeo - então fazia os vagão, depois ia dividindo: 50 metros quadrados pra cada um, com rua pavimentada... Tal depoimento coloca em pauta um tipo de tratamento destinado aos novos moradores que acaba por reproduzir problemas semelhantes aos que serviram como justificativas apresentadas para promover as remoções. Sobre problemas decorrentes da transformação de uma situação que era para ser provisória em definitiva, levantamento realizado pelo CEASM sobre a história da Maré, avalia: Tal situação acabou por gerar sérios problemas para os moradores, uma vez que o CHP continuava sob a administração da Fundação Leão XIII, e com o passar dos anos e em decorrência do material empregado na construção dos CHPs, as casas, cuja reforma era proibida pela Fundação, tornavam-se cada vez mais precárias e mais semelhantes aos barracos comuns das favelas. O mesmo levantamento apresenta outro ponto de vista sobre a política das remoções, segundo o qual, esta iniciativa se destinava mais a retirar favelas e moradias populares de “áreas nobres da cidade, do que a resolver o problema habitacional.” Com 64 o tempo de permanência, os próprios moradores foram criando soluções para se adaptar aos problemas, modificando as construções, habituando-se à relativa proximidade com locais de trabalho, enfim, criando ‘raízes’. Quando chegavam novas propostas de remoção, preferiam se recusar a sair e lutar por melhorias a começar a vida de novo em locais ainda mais distantes do “serviço” e da nova organização social que aos poucos se criava. Sem dúvida, os tempos recentes são de novas referências para a população mais jovem. Fala-se em regras, divisão de territórios e fronteiras instaurados pela atuação do narcotráfico nas favelas. Este agente social vem conquistando cada vez mais espaço no quadro de relações de poder local. De fato, na Maré (assim como em outros locais da cidade), a disputa pelo controle do comércio de drogas impôs uma configuração particular dos espaços geográficos, baseados no domínio de facções do crime organizado e abrindo caminho para a ocorrência de conflitos armados, cujas vítimas se concentram entre jovens do sexo masculino. Os reflexos na vida diária da população local são imensos e uma das formas de se constatar suas conseqüências é a partir de estatísticas que evidenciam altos índices de óbito por arma fogo nesta região da cidade. 43 Informações como essa são acionadas por agentes externos à localidade, como políticos, governos, imprensa, pesquisadores e ONGs. Internamente, outros efeitos do poder exercido pelo tráfico de drogas e da atuação de policiais diante dessa situação são vividos em uma esfera micro de interação, aqui evidenciados a partir das narrativas de jovens locais. No contexto multifacetado das favelas da Maré, inserem-se jovens participantes da Luta Pela Paz. Eles vieram ainda pequenos do norte ou nordeste, mudaram-se de outras favelas e bairros da cidade ou provêm de novas células familiares formadas já na Maré, cujos filhos e netos permanecem morando onde nasceram. A Maré sob a ótica de jovens moradores: Aos 20 anos de idade, José, um dos participantes mais antigos da LPP, morador da Nova Holanda (favela onde a academia se localiza), resumiria, na seguinte afirmação, sua descrição do lugar para um visitante estrangeiro: “Não tem senso de 43 Índice de mortes por arma de fogo por bairros da cidade em anexo. 65 comunidade, um não ajuda o outro”. Sua visão do local contrasta com o fato de o termo “comunidade” ser, freqüentemente, usado em sua fala para denominar esse mesmo lugar. “Do meu ponto de vista, a comunidade onde eu moro tem muitos baixos e poucos altos”. Os pontos altos são identificados com o que é externo ou com o que vem de fora: “Eu não apresentaria minha comunidade igual à Copacabana, um lugar bonito, tipo: ‘tem um jardim, um parque pra criança brincar’. Se você for andar pela comunidade todinha vai achar poucos lugares de lazer. Você tem que sair daqui pra fora pra arrumar um lugar de lazer”, afirma. José passou quase toda a vida em apenas uma localidade dentro da Maré, mais precisamente na Baixa do Sapateiro (Rua Ivanildo Alves), na “divisa” com a Nova Holanda. A mudança, há um ano, para outra rua não muito distante dali, porém já no interior da NH, não foi bem aceita por ele: “Lá onde eu estou morando é um lugar que eu não moraria; não moraria mesmo, tô morando só por causa da minha mãe. É um lugar extremamente pesado, eu não gosto.” As razões da insatisfação estão ligadas a um trecho específico da rua onde tem “traficante 24 horas”: É um lugar que tem boca de fumo, traficante 24 horas, toda hora tá batendo polícia por ali, eu não me sinto bem. As pessoas geralmente olham de rabo de olho, tipo desconfiado. (...) As pessoas podem até me conhecer, mas eu não converso com ninguém daquela rua ali, não daquela parte, não puxo assunto, não gosto de dar liberdade da minha vida; se estiver em casa, fico dentro de casa, não converso com vizinho; eu gosto de ter minha ... como eu posso dizer, minha privacidade. Sua narrativa se concentra no tempo presente, evitando abordar o período da própria infância, como no trecho descrito adiante: Não me lembro muito da minha infância, mas a parte que eu me lembro, dos meus amigos, as crianças hoje não têm a infância que eu tive e que o pessoal que tem 20, 25 anos teve. De jogar bola, bola de gude, pião, subir em laje, correr de um lado pro outro soltando pipa de brincadeira, acho que as crianças hoje não têm. (...) Hoje em dia, a pessoa não tem tempo nem pra ver a própria vida, quanto mais a dos outros, aí fica preocupada se o filho da vizinha é envolvido, coisa que antigamente a gente não se preocupava tanto - se era traficante ou não. Ricardo, 17 anos, define o local onde mora a partir de uma oposição entre favela e comunidade. Morador de uma área de divisa, entre Nova Holanda e Baixa do 66 Sapateiro, para ele, “aqui não é uma favela, é uma comunidade”. A diferença entre as duas denominações é acompanhada por um juízo de valor; negativo em relação à favela e positivo em relação à comunidade: “Isso aqui é uma comunidade muito boa, até demais, sem botar esse negócio de guerra. Todo mundo gosta daqui porque é um lugar animado, tem uma feira de roupas, um palco que tem show direto”, explica. “Pra mim, favela é onde tem aqueles barraquinhos caindo”. Se a favela, na narrativa do jovem, é um lugar onde “rola muita morte” e há “gatos” imensos nos postes, a comunidade é um lugar onde a “pessoa pode ficar mais tranqüila” pois quem detém o poder - “os caras do movimento, que tem moral mesmo” - evita que aconteçam brigas constantemente e, ainda, que estas brigas resultem em mortes por motivos banais (a briga conjugal é citada como exemplo de desentendimento por razão banal). A perspectiva de outro rapaz, que freqüentou os treinos de boxe, sobre seu local de moradia contrasta com a de José, onde é predominante a referencia a aspectos como falta de solidariedade e de cuidado com bens comuns, e se aproxima da de Ricardo, em sua concepção de comunidade. A fala de Rivan, 16 anos, expressa um sentimento de apego e pertencimento ao lugar que foi seu primeiro destino na cidade, quando chegou do nordeste na década de 1990. “Já despenquei lá na Maré, por isso não quero sair. Tudo o que eu consegui foi lá, tá ligado?”, afirmou quando indagado sobre sua opinião em relação ao local que sua família havia elegido para morar. Nesta narrativa, a Maré ganha significado de lugar de conquistas, onde, a partir do campo de possibilidades que se configura na trajetória deste jovem, ele obteve “tudo o que conseguiu” na vida. Ao contrário do discurso de José, sua narrativa demonstra o estabelecimento de vínculos mais profundos com este ambiente, onde passou a maior parte da infância e da adolescência; ali construiu uma representação positiva, de um lugar que trouxe melhorias para a pequena família de migrantes que em seu local de origem “um dia comia bem outro mal” e, depois da vinda para o Rio, passou a ter uma “condição melhor”, já morando na casa alugada na Rubens Vaz, onde “mal ou bem, de vez em quando tinha um dinheirinho pra sair”. Neste ambiente, desenvolveram-se relações de reciprocidade e, aparentemente, era preciso retribuir ganhos obtidos. Rivan estudou em escolas particulares e pretendia retribuir os esforços dos pais para custear os estudos, tentando passar para “a universidade”. Em 91 eu vim pela primeira vez, gostei, já quis ficar, porque eu sempre me amarrei muito no meu pai, nunca fui assim com minha mãe não, nós temos umas 67 diferenças. Ele conversou comigo, a gente se entendeu; ele disse: é melhor você ficar aqui, vai ter mais oportunidade de estudar, arrumar até uma forma de escolaridade que lá não vai ter, não vai ter o afeto que tem aqui. Aí falei: já é, e quis ficar. Hoje em dia, é possível afirmar que as favelas da Maré estão de fato se modificando; não nas mesmas proporções do passado, mas em ritmos próprios, incorporando adaptações a novas condições sociais, quase sempre (re) inventadas pelos moradores. Estes movimentos em escala micro, são perceptíveis apenas sob perspectivas mais próximas ao dia a dia, que permitem conhecer histórias como, por exemplo, a de um ex-integrante do tráfico de drogas que pediu emprego em determinado estabelecimento local, decidido a deixar a única atividade que aprendeu a desempenhar em toda a sua vida caso fosse concedida a chance de ter um trabalho lícito; morador de uma das favelas da área, o rapaz, já quase na faixa dos 30 anos, conseguiu ser aceito e se esforça dia após dia para viver do pequeno salário e quebrar os vínculos com a rede de relações formada anteriormente. O fluxo efêmero e “frenético” (como na gíria usada por jovens) da vida local também está nas feiras livres de sábado, nas centenas de pequenas bancas de comércio ambulante espalhadas por ruas de maior circulação de pessoas, nas crianças uniformizadas a caminho da escola, no pré-vestibular para ingressar na faculdade, nos muros pichados e nas paredes cuidadosamente pintadas; na convivência entre angolanos, coreanos, nordestinos e cariocas44, nas faixas penduradas nas ruas chamando para cultos evangélicos, nas missas católicas, nas crenças não declaradas publicamente, no burburinho incessante formado pela reunião de sons de cada birosca com música própria, no ensaio do Gato de Bonsucesso, nas ruas e casas cobertas por propaganda de políticos de todos os partidos em dia de eleição; na presença constante de crianças nas ruas, nas pipas pairando no céu, no banho de sol na laje, na brincadeira de esconder; nas fofocas das vizinhas, na paquera no portão, nos bailes que varam a madrugada de sábado, no corte de cabelo no fim de semana, nas disputadas partidas de futebol, no andar apressado para o trabalho pela manhã e cansado na volta para casa à noite; nas reuniões de jovens em esquinas à noite pra zoar, nas adolescentes grávidas, nas motos cortando caminho por ruas estreitas, nas bocas de fumo, na tristeza de perder um amigo 44 Na Maré está situada uma das maiores concentrações de imigrantes angolanos de todo o Brasil; nos últimos anos, também aumentou o número de imigrantes coreanos que estabeleceram negócios no local. 68 ou parente atingido por um tiro que encontra sua vítima, na alegria de ver nascer um sobrinho, um irmão, o filho de um conhecido ou o próprio filho. a) “Viver na comunidade” e “morrer na favela”: notas sobre usos e representações dos termos comunidade e favela no universo de pesquisa Para falar de amor e, também para falar de favela, em uma época de inocência perdida, é preciso entrar em um certo jogo social. Um jogo consciente no qual se fazem presentes estratégias e táticas de apresentação social e de sobrevivência nesta cidade tão marcada pela violência. Um jogo no qual diferentes participantes, para além das controvérsias, compartilham indagações. (Regina Novaes, 2004: 9) Delimitar o espaço urbano que aos poucos foi se configurando como contexto desta pesquisa e adotar critérios para (re) apresentá-lo, constituíram-se nos primeiros desafios referentes à construção etnográfica do universo analisado. As principais dificuldades foram de ordem prática e conceitual: em primeiro lugar, tornou-se necessário encontrar os limites de localização de um objeto de estudo que demonstrou ser extremamente dinâmico; num momento seguinte, a tarefa passou a ser descrever este contexto de forma a contemplar (ou, mais coerentemente, chamar atenção para a existência de) múltiplas possibilidades de denominação e representação – cada qual carregando consigo diferentes formas de leitura – de rotinas singulares de vida tão próximas e tão distantes ao mesmo. Diante desse panorama, colocaram-se necessidades iniciais de definição das escolhas que norteariam linguagem e formas utilizadas para falar sobre a disposição do ambiente urbano, denominar as sub-localidades que fazem parte deste universo, além de fazer referência aos ‘marcos’ limítrofes (ou o que se reconhece como fronteiras) entre elas, às construções e outros elementos presentes na disposição deste ambiente urbano. A começar pelo nome do lugar que, de formas particulares, é referência de moradia para 69 os jovens participantes da pesquisa, a primeira escolha se impôs: como denominar Maré ou Complexo da Maré? E, ainda, como classificar, não só esta grande área de solo urbano, como as unidades que compõem o seu interior: Favelas? Comunidades? Bairros? Fazia-se necessário adotar alguns destes termos, mas quais seriam os critérios para utilizá-los? Por outro lado, perceber essas denominações como categorias de linguagem cujos sentidos são construídos coletivamente ao logo do tempo, leva-nos a buscar os significados que estes termos carregam no caso estudado. Tratando da questão especifica dos termos comunidade e favela, MACHADO (2004) observa que as duas expressões vêm sofrendo manipulações, tornando-se objeto de luta, rejeições e de reapropriações há muitos anos. “(...) ambos os termos têm sido objeto de luta, de um duro jogo político, de confronto entre quem rotula e quem, aceitando o rótulo, transforma-o em ponto de partida para reivindicações”. Como categorias de uso coletivo, fazem parte do entendimento que a sociedade cria sobre elas e sobre a vida social. Neste trabalho, as opções pelo uso de terminologias para descrever o ambiente de pesquisa tiveram como base escutas de vozes variadas: do próprio campo de observação, dos entrevistados, de moradores de outras “favelas” e “comunidades” cariocas, referências existentes na literatura sobre o tema, além de fontes como a imprensa, instituições vinculadas a órgãos do governo e as chamadas não governamentais. Não se buscou aqui incorporar discursos, mas compreender variações no interior dos mesmos. Optou-se pelo uso da palavra favela (obviamente sob uma perspectiva externa), buscando uma revalorização do termo. A compreensão desta terminologia, aqui, não parte de uma generalização de espaços da cidade dentro de uma única denominação, mas do entendimento de que existem favelas, no plural, e de que uma nunca é igual à outra. Todas nasceram e se desenvolveram de maneiras distintas. Portanto, os ambientes das favelas são aqui concebidos como lugares de convivência na diversidade – dos inúmeros tipos de construções habitacionais ao desenvolvimento de elementos culturais variados como a forte presença de instituições religiosas, de práticas artísticas, e do trabalho informal -, e na adversidade, pois, aí também estão presentes diferentes formas de mazelas sociais, em menor ou maior grau. O debate conceitual que há muito se trava em torno de usos de termos como favela e comunidade é amplo e não diz respeito, diretamente, ao objeto específico desta pesquisa. Entretanto, optou-se por incluir representações de jovens participantes deste estudo sobre “favela” e “comunidade” por serem termos recorrentes em suas narrativas 70 e formas utilizadas por eles para se referirem aos seus locais de moradia, onde desenvolvem ações e práticas cotidianas. Ambos os termos estão presentes nas falas de moradores da Maré, em geral, e são usados, por vezes, segundo uma lógica que pode variar de acordo com momentos e contextos, acionando contradições e ambigüidades. Um morador, por exemplo, com mais de cinqüenta anos de Maré inicia a conversa sobre semelhanças e diferenças entre favela e comunidade afirmando categoricamente que, para ele, não há diferença: “Pra mim, comunidade e favela são a mesma coisa”, resume. Entretanto, quando dá prosseguimento ao mesmo raciocínio, aparecem contradições que expressam conotação pejorativa em relação ao termo favela e, ao mesmo tempo, uma forma de reconhecimento que passa pela alteridade, já que, ele explica, “colocar ‘favela’ no endereço” do destinatário de uma correspondência é ter certeza de que a carta não vai chegar. “Eu, por exemplo, não boto ‘favela’. Boto ‘comunidade’, ‘complexo’, ‘bairro’, às vezes nem boto complexo, boto já ‘bairro Maré’, CEP e tal, pronto, acabou. É assim que você vai conseguir localizar as pessoas aqui, mandar uma carta, um telegrama. Só assim. Porque se botar favela ... não chega carta”, explica, já impaciente com os questionamentos que parecem ser de pouca utilidade. Logo depois, repensa as duas denominações e surgem as diferenças: O que é favela? Um aglomerado de muitas casas juntas, sem uma organização, sem uma diretriz, uma formação geométrica; é uma coisa amorfa, sem planejamento, sei lá, é um amontoado, um grupo de pessoas, tudo junto; então chama-se favela. (...) E o que é comunidade? É onde a pessoa reside, onde a pessoa trabalha: comunidade. Comunidade, como eu entendo é nesse formato. Então, onde eu moro? Eu moro numa comunidade; qual comunidade? Favela tal. É complicado! Sendo assim, para este morador, a expressão favela carrega o estigma da falta - de organização, de forma, de planejamento etc - , enquanto comunidade é lugar de residência e de trabalho e, conseqüentemente, de uma vida digna. No entanto, no final da fala, torna-se claro que estes significados também não estão sedimentados. A conversa termina com uma recomendação, que indica uma nova denominação: Na sua pesquisa, você faz o seguinte: bota ‘bairro Maré’, tá me entendendo? Se você quiser, pode botar Complexo da Maré, que é mais conhecido, porque é 71 internacionalmente conhecido; Complexo da Maré, bairro Maré, comunidade ... aí você bota: comunidade tal, comunidade tal ... Identificar descontinuidades nos parâmetros de representação e de identidade do morador em relação ao lugar onde passou a maior parte de sua vida permite reconhecer a existência de uma lógica no movimento de alternância no uso dos termos. Uma lógica que busca adequação a contextos e objetivos. Segundo Leite (2004:63), “Estes termos estão associados a todo um conjunto de representações, a uma maneira de se olhar esses territórios, como também a uma maneira de falar deles.” A autora aponta a existência de “uma forte carga de estigma no termo favela”, complementando que sua substituição pelo termo comunidade implica em “evitar desconstruir este estigma”. Desta forma, o não consenso sobre estas afirmações entre moradores de favelas é uma forma de tornar mais claro o ambiente de favela criado pelo morador para si próprio. Como afirma, ainda, Leite: “o emprego dessas categorias - favela ou comunidade - depende de quem fala e do que quer afirmar a respeito das favelas, de como o morador de favelas está construindo o lugar de onde fala”. No caso dos jovens praticantes de boxe, as palavras favela e comunidade fazem parte do vocabulário de uso corrente. A análise de falas de adolescentes que participaram de grupos focais para esta pesquisa demonstrou que o termo favela foi utilizado predominantemente em situações onde se falava de aspectos negativos em relação ao local de moradia, como é possível notar nos trechos a seguir: - Na verdade, tenho vontade de mudar, morar fora e poder continuar a curtir aqui, mas morando bem, não ver meu filho crescer no meio de tóxico. Na favela é o que mais tem, na esquina você vê neguinho usando. - Uma vez eu chutei a bola e amassou a porta da mulher lá. Ela foi lá na minha mãe e disse ‘O seu garoto não tem educação’, brigando com a minha mãe, xingando que eu não tinha educação, que era um favelado. - Na sociedade, neguinho pensa assim: ‘tu baixa a porrada se a polícia não pegar’; na favela, ninguém está nem sabendo o que acontece. - Quando nós chegamos lá na favela, os caras estavam com as armas, não sei como, tudo nova... 72 - (...) na favela, é muito difícil tu ver briga, porque se brigar vai para o desenrolo; não é brigar e acabou não, o desenrolo é com o cara, que é o vagabundo. Para os jovens entrevistados, favela é lugar de tóxico, de garoto sem educação, “do que ninguém fica sabendo”, das armas e do “desenrolo” com o “vagabundo”. Nos casos em que a palavra comunidade foi empregada, houve uma predominância de situações positivas como comemorações e prática de esportes; além disso, também foi possível perceber sentimentos de pertencimento e identidade em relação à “comunidade” expressos em referências feitas à “minha comunidade”, como se pode observar na fala de um dos jovens: “Já que o Luta pela Paz tem uma conexão com o Viva Rio, eu tô lá diariamente, tá na minha comunidade, eu vou lá, converso com o pessoal, vejo o que está acontecendo.” O mesmo não ocorre em relação ao uso do termo favela, com o qual, na maioria das falas, não há identificação. A seguir alguns exemplos de uso do termo comunidade: - Comemoração de aniversário na academia motiva os jovens, eles se sentem mais integrados à comunidade, a rapaziada já sente que ali é a família deles. - Os esportes começam mais assim, nas comunidades. - As coisas boas da comunidade ninguém fala. - A vida do jovem não está limitada somente ali dentro da comunidade. Sob o ponto de vista dos jovens, a representação de comunidade passa pelas idéias de vida e de “coisas boas” (apesar de desconhecidas). Enquanto a palavra favela assume a forma de adjetivo pejorativo - “não tinha educação, era um favelado” -, a comunidade é lugar de comemorações e de festas, eventos que os tornam “mais integrados” ao ambiente de moradia. 73 b) O não ir e o não vir: desafios do cruzamento de “fronteiras” e representações de tráfico de drogras e violência sob a ótica de jovens entrevistados 45 Área de “divisa”, “fronteira”, “neurose”. Estas expressões definem os limites entre áreas de atuação de diferentes grupos, inscritos no mapa do crime da cidade, que controlam pontos de venda de drogas ilícitas em diversos locais. Nesse contexto, ruas, “valões”, praças e avenidas acabam se transformando em marcos geográficos, identificando onde termina a liberdade de atuação de um grupo de traficantes e onde começa a do outro. Tal configuração territorial ganha contornos próprios em algumas favelas da Maré. Elas estão inseridas na história de disputas de poder entre facções do narcotráfico no ambiente urbano, a qual, segundo ZALUAR (1997:15), sofre grande transformação a partir dos anos 1980, impulsionada pela inserção maciça de uma nova substância que passa a ser supervalorizada no comércio de drogas, a cocaína46, e pelo acesso facilitado ao uso de armas de fogo. As ações de traficantes se tornam mais explícitas em diversos locais da cidade, não sendo, absolutamente, uma prerrogativa do contexto aqui enfocado. Interessa-nos, após fazer uma breve descrição de um ponto específico apontado como uma zona de conflitos entre comandos do tráfico próxima ao local de moradia de vários jovens lutadores de boxe, perceber as representações destes adolescentes sobre essa presença e sobre a sua interferência em seus processos de escolha. Atualmente, a Maré é área de atuação das principais facções presentes na cidade - Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos dos Amigos (ADA) - além de haver indícios da existência de denominações menos expressivas como o Comando Vermelho Jovem (CVJ)47. Cada uma delas controla a estrutura de vendas a varejo das “bocas de fumo” em determinadas localidades e, para obter maiores lucros, seguindo uma lógica aparentemente condizente com a de práticas da economia de mercado formal, busca 45 A discussão sobre domínios do narcotráfico é ampla, exige pesquisa aprofundada e cuidados específicos. O panorama aqui apresentado está dentro das possibilidades e limites desta pesquisa. Como um retrato, é um instantâneo, reunindo elementos disponíveis no campo de observação, preservando a identidade das pessoas que se dispuseram a contar suas experiências. O dinamismo marca a atuação de grupos ligados ao narcotráfico, assim como a formação de redes de relações sociais neste contexto específico. 46 Cada favela e bairro da cidade tem uma história particular. Entretanto, é no início dos anos 1980 que a cocaína passa a ser comercializada em larga escala, movimentando o mercado de drogas ilícitas em toda a cidade e acirrando disputas de poder entre facções em favelas 47 DOWDNEY (2003:49) aponta que a CVJ parece ter sido reabsorvida pelo CV. As iniciais “CVJ” ainda são vistas em ruas da Rubens Vaz e da Nova Holanda, controlada pelo CV. 74 estender seus “negócios”, aumentando seu “domínio territorial”, porém, sem tolerar a presença do concorrente. A sua exclusão é garantida pelo uso da força que, por sua vez, sustenta o poder local. De acordo com fontes desta pesquisa, o Comando Vermelho controla o comércio ilícito de drogas no Parque União, Nova Holanda, Rubens Vaz e em algumas áreas do Parque Maré - localidades próximas ao aeroporto internacional e mais distantes do centro da cidade, em relação às outras favelas de todo o conjunto da Maré. A parte desta região que se estende até as cercanias da área central da cidade (compreendendo Baixa do Sapateiro, Conjunto Bento Ribeiro Dantas, Conjunto Pinheiros, Vila dos Pinheiros, Vila do João, Conjunto Esperança e Salsa e Merengue) “pertence” ao TC; segundo fontes locais, o Morro do Timbau é território da ADA. Uma das “fronteiras” entre territórios se situa na intersecção entre Nova Holanda, Parque Maré e Baixa do Sapateiro; o trecho é apelidado por um morador do Parque União de “território livre” ou, ainda, “comunidade indecisa” já que, segundo ele, nesta área limítrofe ocorrem conflitos armados envolvendo todas as facções. Neste local, apenas uma rua - conhecida como “rua do valão” (continuação da rua Ivanildo Alves, na Nova Holanda) ou “fronteira da Tatajuba” - corta três favelas, separando os espaços de atuação de dos comandos rivais. Esta configuração territorial deixa marcas visíveis em alguns quarteirões que se situam na linha direta de tiro entre os dois lados: centenas de buracos de bala de tamanhos diferentes cobrem paredes e janelas de casas, portas de lojas fechadas e a torre de uma igreja católica, que abriga uma creche. Nas visitas feitas ao local, sempre no meio do dia, caminhei por essas ruas especificas junto a um dos jovens moradores participantes da pesquisa, observando a rotina de vida que transcorria como em outras favelas não muito distantes dali: crianças andavam de bicicleta, homens e mulheres caminhavam sem atropelos; borracharias, pequenos bares, lanchonetes e lojas de conserto de eletrodomésticos funcionavam normalmente. As diferenças ficavam por conta dos inúmeros cartazes pregados em portas fechadas, anunciando “vende-se”, e das marcas no entorno, não deixando esquecer que aqueles curtos espaços de “fronteira” eram lugares diretamente penalizados em tempos de confronto entre facções rivais. Neste cenário, um aspecto chamava maior atenção: buracos de tiro de grosso calibre localizados na torre da igreja, a cerca de cinco a sete metros do chão, sendo que não havia lugares suficientemente altos de onde estes disparos pudessem ter sido efetuados - o morro do Timbau (o único nas proximidades) se localiza do lado oposto e a maioria das casas em volta não passa de dois andares. Diante da minha interrogação, 75 meu interlocutor explicou que a direção e o tamanho das marcas nos lugares mais altos indicavam armas de grosso calibre nas mãos de pessoas inexperientes. “Quem não tem costume de atirar com arma pesada, não segura o tranco do impacto, que joga a pessoa para trás e o tiro sai pra cima”, detalhou. Em 2002, foi construído, na Nova Holanda, o 22º Batalhão de Polícia (ao lado da maior igreja católica da Maré) durante a gestão do ex-governador e ex-secretário de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, Antony Garotinho. A instalação do batalhão foi, e ainda é, fruto de grande controvérsia e insatisfações entre moradores em razão da sua localização. Os moradores reivindicavam a instalação deste grande Batalhão próximo a uma das áreas de fronteira entre facções, para inibir as ações do tráfico, mas não foram atendidos; o Batalhão acabou sendo instalado em território de “domínio” de uma das facções, com sua parte frontal voltada para a Linha Vermelha, portanto de costas para a Nova Holanda, garantindo visibilidade a partir de uma perspectiva externa. Apesar de existirem divergências de opinião entre os moradores da vizinhança, envolvendo o tema do Batalhão, todos são unânimes em afirmar que a presença da polícia não inibe as ações de traficantes, que continuaram a manter o negócio da venda de drogas nas bocas de fumo locais. Referências tanto à polícia quanto ao “movimento” do narcotráfico se fazem presentes na rotina de vida do lugar onde a academia de boxe está situada (atualmente, sua sede se localiza há poucos metros do referido batalhão, ao lado da igreja católica Sagrada Família). Na percepção de jovens participantes dos grupos focais desta pesquisa, as características citadas anteriormente encontram formas específicas de expressão. Tiroteios, por exemplo, não são freqüentes na visão dos alunos novatos da academia de boxe: “É muito difícil ter tiroteio, tem de vez em quando.” Por outro lado, tiros para o alto para testar armas que chegam são usuais: “Quando chega carregamento de armas e eles estão testando as armas, geralmente dão tiro pro alto.” Formas de classificar e diferenças entre tipos de tiros são descritas de forma detalhada: “Tem a maior diferença: a pistola você escuta só um tiro, aquele eco; se for um fuzil, você escuta vários tiros juntos; se for uma doze já é um estouro maior.” No caso de troca de tiros, mesmo quando não se houve o barulho, o canal da fofoca é usado para divulgar a notícia, que rapidamente se espalha pelas favelas: “Alguém passa lá perto e vê, um vai falando para o outro e vai passando. É que nem aquelas vizinhas, tudo fofoqueira (sic), que se reúne para contar as novidades.” Já os maiores medos e revoltas se referem à atuação da polícia, como se nota adiante: 76 Se tem tiro no meio da rua, em frente à tua casa, todo mundo sai pra olhar. Lá, os moradores só entram [para as casas], quando a polícia tá na rua; aí eles entram porque sabe que a polícia não respeita nem morador, então, geral entra pra casa. Quando matam policiais, eles falam que vão entrar na favela e não querem nem saber: se tiver no meio da rua depois de uma certa hora, vai ser considerado como bandido. Sabe por que tem vezes que encoberta (sic) [a ação de bandidos]? Não é nem por causa de medo. É porque todo mundo sabe que tem policial que é pior do que bandido. É assim: um cara está devendo ali dentro da favela; o bandido mata uma pessoa e a policia está atrás, chega e fala pro outro cara assim: “Ou você fala que foi você que matou ou eu vou matar a tua família todinha, tua mulher, tuas crianças”. O policial ameaça, aí o cara vai lá e fala: “Fui eu que matei”, com medo de os caras quererem matar a família dele. Aconteceu isso com meu primo. A opção de “virar bandido” está presente nas narrativas dos jovens, os quais apresentam justificativas que podem levar a essa escolha. “Ter moral”, ou a possibilidade de obtenção de prestígio social é uma delas: “Tem muitos jovens na comunidade lá que querem virar bandido porque não tem muito estudo, aí pensa: eu vou virar bandido pra ter moral lá com as pessoas”. Nesse contexto, a rua encarna o lugar ambíguo, da possibilidade de liberdade, mas ao mesmo tempo do “mal” e da perdição: Pergunta: é a maioria dos meninos que vai para o tráfico? “Não”. Pergunta: Tem projetos que dizem que querem tirar os jovens do tráfico; não é um pouco de contradição, já que não é a maioria que vai? Vocês acham que é a maioria ou não é a maioria? “A rua oferece a liberdade, mas muitos falam assim: não vou pra escola, não quero nem saber, vou virar bandido mesmo, não vou passar mais [de ano], vou ficar na rua. Muitos são assim, mas tem outros que a mãe ou o pai sempre tá em cima e fala: ‘meu filho você vai ser uma pessoa direita, vai ter seus ideais, vai poder crescer e até sair daqui, arrumar um lugar melhor pra você e sua familia’; muitos tem apoio, mas esses que não têm apoio da familia ... 77 No entanto, contrariando a afirmação, já parte do senso comum, de que é preciso oferecer “oportunidades” para evitar o ingresso de jovens em atividades criminosas, participantes de um dos grupos focais não reconhecem a existência de falta de oportunidades em seu local de moradia (Nova Holanda). Oportunidades existem, mas na visão destes jovens são desconsideradas por aqueles que se engajam no crime e no tráfico de drogas, ou “entram para a vida fácil”. A maioria dos jovens de lá, acha que a única oportunidade que eles têm é entrar pra bandidagem. Mas se a gente for olhar, lá na Nova Holanda mesmo, tem muitas opções de vida para você ir. Tem um montão de cursos, até de graça mesmo: informática, curso de línguas ... Mas a pessoa não vê, ela só pensa em entrar para vida fácil, entende? Às vezes, a oportunidade está assim na nossa frente e a gente é que não aceita; se a gente pegar um jovem comum da comunidade e pergunta: O que você acha da comunidade?, vai falar: ‘ah é tiro todo dia, é bandido andando por aí, alta violência’; todo mundo só pensa assim, mas as coisas boas da comunidade ninguém fala. A entrada em um “projeto social” surge como contraponto a esta possibilidade existente no universo de escolhas de jovens locais e o esporte é enfatizado neste contexto. “Geralmente, a gente se apega a alguma coisa que faça bem à gente. No caso, tem vários projetos lá [na Maré]. Aí a gente vai e sempre entra num projeto desses. É sempre envolvido no esporte...”. O tipo de convivência no meio familiar e o trauma pelo contato direto com a experiência, são também citados como diferenciais para afastar ou aproximar da carreira do crime. Histórias pessoais reforçam suas narrativas: Aconteceu algum tempo comigo, eu tava brigado com meu pai, brigava direto, agora que eu to me acalmando; então eu tava com esse pensamento: “eu vou sair pra roubar” Pensando assim, fui um dia, aí no outro dia eu já não quis ir mais, eu vi do jeito que é. Sabe por que quê eu tenho esse pensamento? Quando eu estudava no CA, no primeiro dia de aula, eu tinha sete anos. Lá tem um valão e geralmente quando eles matam o cara, eles jogam no valão. O que minha mãe fez? Minha mãe me chamou e me levou até lá, tinha um cara morto no valão e minha mãe me falou ‘se você entrar nessa vida, você pode acabar nisso ai’.” 78 VELHO (1994) aponta as noções de projeto e de campo de possibilidades para ajudar a compreender as escolhas de indivíduos, considerando as influências de trajetórias de vida e do meio social. “Os projetos individuais sempre interagem com outros dentro de um campo de possibilidades [grifos do autor]. Não operam num vácuo, mas sim a partir de premissas e paradigmas culturais compartilhados por universos específicos. Por isso mesmo são complexos e os indivíduos, em principio, podem ser portadores de projetos diferentes, até contraditórios. Suas pertinência e relevância serão definidas contextualmente.” (VELHO, 1994:46) Já Silva (2001), em seu estudo “Por que uns e não outros?” - realizado entre estudantes da Maré, sobre as razões que levam pessoas com traços sociais semelhantes a construírem trajetórias distintas - acredita que as tomadas de decisão estejam relacionadas ao habitus individual, o qual interfere na “utilização de diferentes estratégias, e de acordo com suas inserções em determinados campos sociais.” A crescente estratificação social entre as camadas populares se reflete em condições de vida também diferenciadas entre moradores de favelas. No Parque União, por exemplo, ruas asfaltadas com iluminação pública, casas de alvenaria de dois ou mais andares, com água encanada e luz constituem um padrão habitacional, diferente de outros espaços na Maré. Entretanto, frequentemente, não é a percepção do universo micro de favelas e de regiões de baixa renda da cidade que informa a sociedade e a opinião publica sobre estes locais. Dados quantitativos - igualmente importantes, mas nem sempre complementados por uma noção apurada de cada contexto particular assumem, em geral, maior peso junto aos meios de comunicação e às instâncias governamentais, responsáveis pela formulação de políticas para lidar com a questão da “violência urbana”. Definida, por MACHADO da SILVA, como “uma categoria do entendimento de senso comum que consolida e confere sentido à experiência vivida nas cidades, bem como orienta instrumental e moralmente os cursos de ação que moradores e moradoras (...) consideram mais convenientes nas diversas situações em que atuam”, a representação de “violência urbana” pode assumir diferentes significados dependendo do ponto de vista e do contexto específico. Pretendo abordar essa categoria a partir do contexto de pesquisa, salientando que, nas narrativas dos jovens, e em especial nos 79 grupos focais, tal expressão raramente esteve presente. Uma circunstancia em que apareceu a palavra “violência” foi durante os grupos focais, quando os jovens abordaram o discurso do Luta Pela Paz, sob seus pontos de vista. O que leva a crer que há uma incorporação da representação de violência passada pelo projeto. Na interpretação dos jovens a partir da interação com a narrativa do projeto, há uma resignificação do espaço da rua, que passa a ser visto como o lugar da violência e dos males: Quando eu escutei logo pela primeira vez, pensei assim: dever ser algum projeto assim para tirar a violência da rua e canalizar a violência num só lugar, ou seja, pra cima do ringue. Nem sempre o nome da academia acarreta o que ela é de fato. Luta pela paz, é um exemplo de projetos sociais, que foca essa parte de violência. Canalizar a violência dos jovens, no caso, para o lado bom. No âmbito de estudos da temática urbana, Gilberto Velho (2000:11) chama atenção para a permeabilidade do tecido social por manifestações de violência, porém, nem sempre de forma explícita ou associada ao uso de força física. Segundo o autor, “a vida social, em todas as formas que conhecemos na espécie humana, não está imune ao que se denomina, no senso comum, de violência, isto é, o uso agressivo da força física de indivíduos ou grupos contra outros. Violência não se limita ao uso da força física, mas a possibilidade ou ameaça de usá-la constitui dimensão fundamental de sua natureza. Vê-se que, de início, associa-se a uma idéia de poder, quando se enfatiza a possibilidade de imposição de vontade, desejo ou projeto de um ator sobre o outro.” Esta idéia pode ser útil para mostrar que as formas de violência verificadas na Maré (caso especifico analisado) não passam apenas por aspectos mensuráveis, como índices de mortos e feridos, mas podem ser analisadas levando-se em conta a existência de múltiplas relações construídas na dinâmica da interação entre indivíduos e destes com esferas coletivas. Neste sentido, torna-se importante compreender as redes de relações estabelecidas entre os jovens e a equipe do Projeto Luta Paz para melhor conhecer os atores sociais presentes nestes ambientes e a lógica das relações entre eles. Não se trata de negar os resultados estatísticos dos conflitos violentos, mas de buscar a especificidade de suas relações com universos menores como o proposto neste projeto de pesquisa. Dados como os expostos no levantamento Nem Guerra Nem Paz 80 (Dowdney, 2004), e no estudo Impacto da arma de fogo na saúde da população no Brasil 48 colocam a população jovem brasileira no centro de uma questão que se articula com uma série de demandas – por emprego, educação, saúde, segurança etc: O Brasil é o pais onde se tem o maior número de mortes por arma de fogo no mundo. Em 2002, morreram 38.088 pessoas vítimas de armas de fogo, seja por homicídio, suicídio ou por condições acidentais. Em número absoluto, supera tanto países tradicionalmente violentos, como é o caso da Colômbia, de El Salvador e da África do Sul, como os Estados Unidos, um país conhecido por suas regulamentações pouco restritas em relação ao acesso às armas. (PHEBO, 2004)49 Entre os jovens lutadores entrevistados, formas de falar de medos, inseguranças e de situações do cotidiano onde é imposto o uso da força de um ator social sobre o outro se dão através de referências como “tiroteio” (em resposta à pergunta “o que poderia estar impedindo vocês de saírem e voltar tarde da noite?”) ou de descrições detalhadas de casos: “Igual o dono que tinha lá, que morreu faz pouco tempo; o irmão dele fez uma coisa qualquer que acertou um tiro numa moça, assim de brincadeira; sabe o que aconteceu? O próprio irmão foi lá e matou o outro”. A participação em atividades que motivam o cruzamento de “fronteiras”, por exemplo, é uma das formas citadas pelos jovens locais para romper o medo de atravessar divisões de territórios dominados pelo tráfico de drogas. Um exemplo presente nas falas dos jovens é a participação nos “projetos” esportivos Vila Olímpica da Maré e Luta Pela Paz: “Na segunda feira, tem boxe, na terça tem a natação e o vôlei. Eu vou para o vôlei por causa de desculpa para namorar.” Outro jovem complementa dizendo que “Futebol, natação ... é tudo na Vila Olímpica”. Situada em um grande terreno junto à Linha Vermelha, a Vila Olímpica se encontra em um local próximo aos domínios das três facções rivais. Para participarem de diversas modalidades esportivas neste ambiente, muitos freqüentadores precisam passar por um dos lados rivais. Desta forma, a prática de esportes se transforma em uma espécie de ‘passaporte de circulação’ por algumas favelas; a Vila Olímpica da Maré, por exemplo, passou a ser vista como um ‘bem’ de interesse comum, respeitado inclusive por integrantes do tráfico, já que é o 48 49 Fonte: ISER; autoria do estudo de Luciana Phebo (www.iser.com.br). Detalhes sobre índices de mortes por arma de fogo por bairros do Rio de Janeiro no anexo 7. 81 único complexo esportivo de grande porte na região.50 No que diz respeito à academia LPP (situada próxima à Vila Olímpica), a prática do boxe também pode ser lida a partir de uma idéia semelhante. Como ‘facilitadora’ do trânsito de moradores locais entre favelas e outros lugares da cidade, ao participarem de competições e eventos em diferentes bairros e estados, confere aos lutadores possibilidades de romperem diferentes tipos de fronteiras simbólicas. Um dos lutadores já se apresentou, inclusive, em uma luta de boxe na Inglaterra; outras formas participativas de jovens através do “projeto”, além do âmbito esportivo, incluem seminários e palestras (no Brasil e no exterior) em contextos educativos e políticos voltados para a área da infância e da adolescência. 50 Diversas outras atividades complementam a prática de esportes na Vila Olímpica da Maré, como foi abordado na fala de Sr. Amaro (neste capítulo), presidente da instituição. 82 Capítulo 3 BOXE E PROJETO SOCIAL: O CENTRO ESPORTIVO E EDUCACIONAL LUTA PELA PAZ Na realidade, o espaço social é um espaço multidimensional, conjunto aberto de campos relativamente autônomos, quer dizer, subordinados quanto ao seu funcionamento e às suas transformações, de modo mais ou menos firme e mais ou menos direto ao campo da produção econômica; no interior de cada um dos subespaços, os ocupantes das posições dominantes e os ocupantes das posições dominadas estão ininterruptamente envolvidos em lutas de diferentes formas (sem por isso se constituírem necessariamente em grupos antagonistas). Bourdieu (2004: 153) O Centro Esportivo e Educacional Luta Pela Paz (desenvolvido pela organização Viva Rio) está inserido em um campo de intervenção na sociedade brasileira consolidado a partir do surgimento de formas alternativas de agência social -, que teve origem em torno dos anos 1970 (LANDIM,1993:8) e registrou grandes índices de crescimento na década de 1990, impulsionado pela atuação de um de seus maiores segmentos, ou seja, das chamadas organizações não governamentais (ONGs).51 Em linhas gerais, a partir de meados da década 1980, o Brasil deixou para trás um longo e traumático período de repressão política - de supressão de garantia de direitos relativos a diversos aspectos da vida social e de perda de liberdades individuais e coletivas - o qual caracterizou a época da ditadura. Crises econômicas haviam agravado o quadro de desigualdades sociais, atingindo diretamente camadas médias da população e aumentando as já alargadas distâncias em relação aos poderes aquisitivos de pobres e ricos. O fim dos ciclos de repressão, de 1964-1984, tornou possível a gradual abertura política e o vislumbre de novas formas de participação da sociedade fora do eixo tradicional de ação dos níveis de governo (ALVES, M. 2005). O processo de redemocratização do país, que teve como marco a Constituição de 1988, favoreceu a 51 Em sua análise sobre a história da produção da categoria ONG, Landim localiza o surgimento de instituições que passam a se reconhecer e denominar como “ONG” a partir do início dos anos 1990, quando “essas organizações consagraram-se, no país, enquanto entidades de marcas específicas e originais. E fizeram, aí sim, um nome coletivo, através do qual se reconhecem, produzem e reafirmam essa identidade: ‘ONG’.” 83 criação de mecanismos legais para a construção de novos modelos institucionais e, conseqüentemente, de novas formas de parceria entre Estado e sociedade. Ao mesmo tempo, nos grandes centros urbanos e, no Rio de Janeiro em particular, o cenário sócio-econômico era de degradação de índices de qualidade de vida, sobretudo, entre as classes populares. Como apontado no capítulo anterior, contínuos modelos de administração pública baseados em políticas de remoção da população de baixa renda para locais afastados e com infra-estrutura inadequada elevaram os níveis de marginalização relativos à essa parcela da população carioca. Uma série de fatores de naturezas diferentes contribuiu para que outro aspecto, a “violência urbana”52, também se tornasse uma das maiores preocupações contemporâneas de cariocas. Paralelamente, tomava corpo a idéia de que os mecanismos estatais demonstravam ser insuficientes para dar conta desta situação e ganhavam cada vez mais expressão novas formas de agência social, no sentido de intervir para atenuar estes problemas. Segundo estudo realizado pelo IBGE e IPEA, atualmente, existem cerca de 276 mil “Fundações privadas e associações sem fins lucrativos” 53 em todo o Brasil, onde se incluem as instituições popularmente conhecidas como ONGs (as quais assumem tipos diferenciados de figura jurídica). Em termos de classificação de natureza jurídica, ganhou existência a categoria “Entidade sem fins lucrativos”, englobando associações já existentes e abrindo caminho para o surgimento de outras entidades que, além de terem em comum o perfil baseado em um critério de classificação econômico, passam a desempenhar, de maneira mais sistemática, um papel social de cooperação no processo de elaboração de propostas de políticas públicas, assim como, de implementação das mesmas. Dados colhidos pelo levantamento citado contabilizam a criação de 32 mil entidades de perfil semelhante entre 1971 e 1980; em torno de 60 mil, de 1981 a 1990 e o surgimento de quase 140 mil novas entidades durante a década de 1990. Os objetivos 52 Sobre a categoria “violência urbana”, referir a MACHADO DA SILVA (2003). As fundações privadas e associações sem fins lucrativos no Brasil - 2002, estudo realizado pelo IBGE e IPEA, com apoio do GIFE e ABONG, em 2004. Quanto aos critérios de definição e classificação das instituições incluídas na categoria “fundações privadas e sem fins lucrativos”, a primeira grande seleção partiu do Cadastro Central de Empresas do IBGE (CEMPRE), que cobre o universo das organizações inscritas no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ). Na base de dados do CEMPRE foram selecionadas as entidades sem fins lucrativos e, entre estas, as associações incluídas no estudo deveriam se enquadrar em cinco critérios: 1. de cunho privado; 2. sem fins de lucro; 3. legalizadas; 4. autoadministradas e 5. atividade livremente decidida por seus fundadores. Para conferir maiores detalhes, referir ao estudo. 53 84 destas entidades variam de acordo com suas áreas de atuação, divididas em: habitação, saúde, cultura e recreação (onde estão incluídos esportes e artes), educação e pesquisa, assistência social, religião, associações patronais e profissionais, meio ambiente e proteção animal, desenvolvimento e defesa de direitos. Religião e defesa de direitos concentram o maior número de entidades e as de habitação e saúde, o menor número; a denominação cultura e recreação aparece em quarto lugar, com 37.539 entidades registradas. Entre estas se encontra a categoria mais específica Esportes e Recreação, concentrando aproximadamente 27 mil entidades, sendo que a quantidade de instituições vem aumentando significativamente com o passar do tempo: na década de 1970, surgiram 5.619; nos anos 1980, mais 8.397 e nos anos 1990, outras 9.454. Este panorama permite conhecer, em linhas gerais, o universo institucional de atuação do Viva Rio, organização responsável pelo “projeto” Luta Pela Paz. Fundado em 1993, o Viva Rio desenvolveu, inicialmente, propostas voltadas para a área de segurança pública, acionando o conceito de mediação entre diferentes segmentos e interesses da sociedade. Segundo o diretor executivo da entidade e um de seus fundadores, o antropólogo Rubem César Fernandes, buscava-se colaborar com um processo mais amplo de integração entre moradores e regiões da cidade. Nesta perspectiva, a idéia de uma cidade marcada pela metáfora da dualidade, de mundos separados e excludentes que convivem no mesmo espaço urbano, fundamentava a prática das ações da instituição: O Viva Rio se orientou no sentido de ser um mediador e, sendo assim, em vários níveis: entre favela e asfalto, entre classe media e classe pobre, entre diferentes facções, correntes, tendências territoriais dentro do mundo de favela, entre (a partir da área da comunicação) o que se faz na favela e o que se faz fora. Na época, dois crimes, cujas acusações pesavam fortemente sobre policiais militares, tiveram grande repercussão pública (nacional e internacional) trazendo à tona, de forma contundente, o problema da violência na cidade do Rio de Janeiro. Conhecidos como “chacina da Candelária” e “chacina de Vigário Geral”, os episódios ocorreram naquele mesmo ano, separados por um período de pouco mais de um mês. No primeiro, oito adolescentes que viviam nas ruas da cidade foram mortos enquanto dormiam próximos à igreja da Candelária, na região central do Rio. Dos oito policiais militares acusados, apenas quatro foram condenados até setembro de 2005. No segundo caso, 21 85 moradores da favela de Vigário Geral, na zona norte do Rio, foram assassinados, sendo que nenhuma das vítimas tinha antecedentes criminais. Dos 52 policiais acusados do crime, apenas seis foram condenados depois de passados mais de dez anos. De acordo com a perspectiva do antropólogo, no período inicial de trabalho da instituição, os maiores esforços se voltaram para a consolidação de um espaço próprio de atuação social de instâncias não vinculadas a órgãos do governo, com o objetivo de procurar soluções, em conjunto, para problemas como o da violência. Algumas propostas visavam o aprimoramento e maior humanização das ações policiais, por exemplo. Mas se à época, havia uma mentalidade definida por Fernandes como “triunfalista”, que se materializava em grandes manifestações populares como o “Reage Rio” (que mobilizou milhares de pessoas no Rio, em torno do apelo de “paz para a cidade”, mas também deu margens a críticas de outros setores da sociedade54), atualmente, o desafio seria no sentido de aperfeiçoar os “projetos”, que já teriam ultrapassado um período experimental, para que possam dar origem à elaboração de políticas públicas. A noção de limite de atuação do Viva Rio diante de um contexto, onde o requinte da violência chega a um nível “anárquico”, também está presente nas palavras de Rubem César: O Viva Rio é uma organização particular, limitada, então nunca vai ter capacidade de estar resolvendo os problemas. E não tem escala pra isso, não tem essa vocação, não tem esse sentido. (...) Houve um agravamento do nível de violência, não tanto nos números da violência, mas uma deterioração, digamos, na qualidade da violência, ficou mais violento, mais cruel, mais anárquico, mais descontrolado na ponta, Hoje, a estrutura de trabalho do Viva Rio se concentra em três áreas - “inclusão social”, “segurança pública e direitos humanos”, além da área de comunicação. As duas primeiras se propõem a lidar com o problema da violência, ou melhor, “de superação da 54 Críticos da atuação do Viva Rio questionam a utilidade e a eficácia de uma das formas de ação social da entidade, a saber, a mobilização popular através de passeatas e caminhadas pela paz. De acordo com esse de ponto de vista, tais mobilizações passaram a acontecer quando crimes violentos atingiram, de forma mais sistemática, camadas sociais mais elevadas, fazendo-se presentes em bairros mais “nobres” da cidade; segundo a crítica, tal situação há muito já ocorria em outras áreas na região metropolitana do Rio de Janeiro, põem não ganhava visibilidade. Este posicionamento, por sua vez, é rebatido pela entidade citada, argumentando que protestos contra a violência não se tratam de uma questão territorial, visto que crimes em lugares como Vigário Geral (favela na zona norte carioca) também motivaram manifestações, com participação da população de baixa renda. 86 violência”, e estão voltadas, sobretudo para jovens, ainda na fala de Rubem César. Neste ambiente institucional, está inserido o projeto Luta Pela Paz, o qual também faz parte de outro universo, em uma área específica da Maré, onde se tornou conhecido por grande parte de seus freqüentadores apenas como uma “academia de boxe”. Na linguagem do campo de intervenção das ONGs e de outros tipos de entidades sem fins lucrativos, uma das formas de ação social se materializa por meio de “projetos”, os quais assumem grande importância em dois níveis: 1. no nível institucional, na medida em que são instrumentos de obtenção de recursos financeiros para realizar as ações 2. nos locais onde são implantados, ou seja, em contextos específicos, onde passam a desempenhar um papel situado no limiar entre as posições de mediador e de ator social. Na visão de Rubem César, esta ambigüidade está presente no contexto de ação dos projetos: No plano local [de atuação social], você tem essa posição de ambigüidade, que é de fato: o projeto vira um ator, entre outros. E aí é toda uma série de problemas, onde a se deixa de ser um mediador para ser um concorrente, para ser um entre outros; às vezes soma, às vezes divide. Passa a fazer parte de um campo de atores em que a disposição tem outra lógica. Se, por um lado, o centro esportivo LPP integra uma esfera macro, dentro de um campo de atuação mais abrangente constituído pelas ONGs, por outro, participa do ambiente micro de relações sociais no local onde se tornou espaço de sociabilidade (inclusive com suas regras especificas), de encontros e desencontros de representações e de troca de experiências. A lógica do “plano local”, invocada por Rubem César, leva em conta sua composição institucional, entre outros aspectos. Em toda a região da Maré, o quadro institucional atual é marcado por uma forte presença religiosa, em termos quantitativos, como leva a crer o levantamento Instituições do bairro Maré: dados gerais (CEASM). De acordo com este levantamento numérico de instituições locais, somam-se 68 templos religiosos, entre igrejas evangélicas (predominantes), católicas e centros espíritas, considerando todo o conjunto de favelas. Já as instituições de ensino, juntas, ocupam o segundo lugar em escala numérica decrescente, com 26 unidades, incluindo escolas municipais e estaduais (16) e creches (10). A terceira maior concentração de entidades é referente às associações comunitárias (18), presentes em praticamente todas as favelas locais; as organizações de cunho não governamental aparecem em quarto lugar, chegando a um total de dez e posicionando-se à frente das 87 instituições governamentais, cuja presença é a menos expressiva. Apenas nove unidades de serviços públicos (incluindo agências prestadores de serviços de infra-estrutura, como CEDAE e COMLURB, e de assistência social) foram contabilizadas em toda a área, que tem em torno de 130 mil habitantes.55 No que diz respeito às não governamentais, o espectro de ações desenvolvidas por estas associações é variado. Entre elas há semelhanças e diferenças. Procedência, formas de atuação, tempo de existência e localização são alguns dos fatores que as aproximam, mas também as distanciam. Um ponto em comum é o fato de a maioria enfocar o público jovem em suas atividades em áreas como esportes e recreação, educação, informática, comunicação, cultura, comércio, cursos profissionalizantes e outras. A mais antiga - a Ação Comunitária do Brasil - chegou à região há mais de vinte anos (em 1993), onde passou a oferecer cursos profissionalizantes e hoje incorporou outras atividades. Entre as que chegaram em tempos mais recentes, está a Médico sem fronteiras, que oferece atendimento clínico para um público diversificado. Tanto a primeira quanto a segunda são entidades de procedência externa, enquanto o CEASM e a Vila Olímpica, por exemplo, tiveram ampla participação de moradores locais em sua formação. Na área de esportes, a Vila Olímpica da Maré é referencia para muitos moradores; a entidade oferece, no total, 28 atividades entre esportivas, recreativas e outras. Na mesma área, também atuam outras instituições, entre elas está o Viva Rio, com o projeto Luta Pela Paz. Nos grupos focais, foi possível perceber visões dos jovens sobre projeto social e o que os aproxima de algumas de suas atividades. O esporte se destaca na preferência dos entrevistados: “... geralmente, a gente se apega a alguma coisa que faça bem à gente. No caso, tem vários projetos lá; tem Vila Olímpica, essas coisas todas. Aí a gente vai e sempre entra num projeto desses. É sempre envolvido no esporte...”. A questão do estímulo (da família, de um amigo, ou da própria equipe do projeto) aparece como fator importante para a participação em projetos. Porque depende mesmo de interesse e de apoio, apoio tanto na família quanto das pessoas que vão falar como vai ser o curso e tal. Porque geralmente eles não dão 55 De acordo com o levantamento citado, realizado em 2004, o setor público se faz presente na Maré com as seguintes instituições: Agência de Desenvolvimento Local Da Maré (ADL), Centro Comunitário de Defesa Da Cidadania (CCDC), Centro de Referencia Das Mulheres Da Maré, Centro Municipal de Atendimento Integrado (CEMASI), CEDAE, COMLURB, Corpo de bombeiros (situado em Ramos, não atende a chamados de emergência; oferece os cursos de guarda vidas e de guardião de piscina), Fundação Leão XIII e Fundação Municipal Lar Francisco de Paula. 88 apoio tipo: “vai ser maneiro, tu pode ir lá, se tu tiver algum problema de chegar mais tarde, pode falar com o professor”. É importante poder falar das tuas coisas. O incentivo da família ganha destaque nas falas, onde a possibilidade de virar bandido está presente: Pergunta: Tem que ter alguém para incentivar? “É, porque a maioria dos jovens que vira bandido ou alguma coisa assim, é porque não tem o apoio do pai ou da mãe assim, a maioria do pai e da mãe, assim, são separados; a criança cresce sem o apoio do pai e da mãe, as vezes mora só com o tio ou avô, ai cresce sem apoio”. A questão das oportunidades também foi abordada, no que diz respeito à visão sobre as favelas onde os jovens residem, remetendo à idéia de que as chances para os jovens não são escassas: “Tem muitas oportunidades; é que os jovens, é a maioria, não tem interesse de querer participar ou tem vergonha”. Quando indagados se faltam oportunidades para eles, a resposta leva a crer que esta é uma idéia de senso comum que não necessariamente corresponde ao contexto em que vivem. É que às vezes as oportunidades estão assim na nossa frente e a gente é que não aceita. Se a gente pegar um jovem comum da comunidade e perguntar - ‘o que você acha da comunidade?’, aí vão falar - ‘ah, é tiro todo dia, é bandido andando por ai, alta violência’, todo mundo só pensa assim, mas as coisas boas da comunidade ninguém fala. 3.1 Luta Pela Paz: encontro de representações A idéia de criar “um clube de boxe em uma favela no Rio de Janeiro” foi apresentada à organização não governamental Viva Rio por um jovem, ex-lutador e pesquisador, de nacionalidade britânica. Luke Dowdney56 praticou boxe durante a 56 Luke Dowdney, 32 anos, é mestre em antropologia pela universidade de Edimburgo. Realizou pesquisa de campo em Recife e escreveu sua dissertação sobre violência e crianças em situação de rua nesta cidade brasileira. Trabalha no campo de violência em meios urbanos e juventude no Brasil desde 1995. Trabalha no Viva Rio desde 1997. Desenvolveu e coordena o Centro Esportivo e Educacional Luta Pela Paz, do qual faz parte uma equipe de trabalho sob a administração técnica da cientista social Leriana Figueiredo. Pesquisas desenvolvidas por Dowdney: ‘Crianças do Tráfico: um estudo de caso de crianças em violência armada organizada no Rio de Janeiro’ (2003) Realização: ISER e Viva Rio; ‘Nem guerra nem paz’, no 89 adolescência no Reino Unido, dedicando-se ao esporte durante oito anos na categoria amadora (hoje denominada olímpica); participou de torneios na Europa, em países como Índia, Nepal e Japão e deixou os ringues após sofrer uma lesão. Em 2000, a proposta da academia de boxe foi acolhida pela ONG, que já desenvolvia ações em muitas regiões de baixa renda da cidade, inclusive voltadas para a área de esportes. Entre os principais critérios que contribuíram para a escolha do lugar onde foi instalado o centro esportivo, segundo Dowdney, estavam: a situação de “conflito” em que se encontrava a região na época (em função da atividade do tráfico de drogas), a rede de contatos anterior estabelecida pela instituição com o lugar onde o projeto foi instalado e a receptividade de lideranças comunitárias e moradores que participaram do processo de implantação da academia. A equipe de trabalho foi composta com a participação de moradores locais e a divulgação das aulas de boxe foi feita através de anúncios na rádio comunitária local, cartazes afixados em locais como igrejas e centros comunitários da região e do chamado “boca a boca” nas ruas. Outros projetos centralizados em propostas de atividades esportivas já se espalhavam por diferentes regiões de baixa renda da cidade, como é o caso das Vilas Olímpicas (criadas em meados da década de 1990), onde se inclui a Vila Olímpica da Maré, fundada em 1999. Entretanto, a união entre prática de boxe e uma proposta explícita de ação sócia parecia ser novidade no Rio de Janeiro e no Brasil, onde o boxe está longe de ser uma modalidade esportiva praticada em larga escala. 3.2 “Projetos sociais” e esporte No artigo Futebol se joga na alma: um novo caminho para o esporte social, Célio Turino, Secretário de Programas e Projetos Culturais no Ministério da Cultura desde 2004, analisa o futebol brasileiro e debate rumos e conceitos acionados por projetos sociais de cunho esportivo. De acordo com sua análise, qualquer modalidade esportiva, independentemente da padronização dos sistemas de regras, “carregam a representação de seus povos”, daí a necessidade de abordar este tema como uma forma especifica de manifestação, e de interação social, de uma cultura. Para explicar o âmbito do COAV (Crianças e jovens em violência armada organizada em nível internacional, 2004). Realização: Viva Rio. 90 conceito de “esporte social”, Turino lança mão da idéia de que por si só um esporte não é “inclusivo” e que “reflete os valores da sociedade onde está inserido”. O esporte social não é o esporte destinado aos pobres, como o senso comum nos levaria a entender; ou então uma simples prática esportiva para ocupar o tempo, combater o ócio (morada do demônio?) e dar alguma assistência a crianças e jovens que há muito foram abandonadas pela sociedade a que pertencem (ou deveriam pertencer). O esporte social pressupõe qualidade e acompanhamento, a busca conjunta de novos caminhos em um contínuo processo de construção de novos valores e de uma nova prática, mais solidária e colaborativa. Na visão dos jovens praticantes de boxe da Maré sobre a prática de atividades esportivas, há vários “projetos” na Maré e alguns deles oferecem este tipo de atividade: “No caso, tem vários projetos lá, tem Vila Olímpica, essas coisas todas. A gente vai e sempre entra num projeto desses”. Alguns adolescentes chegam a praticar três ou quatro modalidades: “... segunda tem boxe, na terça feira tem a natação, o vôlei. Eu vou para o vôlei por causa de desculpa para namorar.” Para estes jovens, a idéia da inserção em uma atividade esportiva está relacionada às redes de relações afetivas construídas nestes espaços de sociabilidade, a motivações e objetivos diferentes que levam em conta, também, a camada social do praticante. Para Josias, “os esportes começam mais assim, nas comunidades”. A idéia de que crianças e adolescentes de camadas mais baixas da sociedade são os que se dedicam mais seriamente a construir carreira no esporte foi unanimidade nos grupos focais. Afirmações como “... a gente se dedica mais pra poder crescer no esporte” e “... rico não quer ralar, quer tudo na mão”, expressam esse tipo de pensamento. As justificativas tendem a depreciar os jovens de classe média e alta, ou “filhos de rico”: O lutador nascido na periferia já é acostumado a fazer as coisas, a ter ralação. Agora, o filhinho de rico, não. Ele já está acostumado a ter tudo na mão, tudo o que ele quer do bom e do melhor, aí não vai precisar ralar para chegar lá. Mas nunca vai chegar lá ... É porque o pobre trabalha para conseguir o que ele quer; o filho de rico, não; o pai dele já ganha um dinheiro e ele já compra sem o esforço. O pobre gosta de trabalhar para ter o que quer honestamente. O filho de rico não, ele já tem tudo na mão, o pai que já dá.. 91 Do ponto de vista do fundador da academia Luta Pela Paz, Dowdney, os ensinamentos da prática de boxe ultrapassam os limites do esporte, até mesmo no caso de academias comuns, dissociadas de qualquer objetivo que não esteja ligado apenas ao aprendizado da técnica esportiva. A idéia de “justiça no ringue” é também enfatizada: O que o Luta Pela Paz tenta ensinar é que o boxe é mais focado nisso: tem que aprender técnicas para sobreviver no ringue e lá fora. Não é pra dar soco lá fora; se você consegue auto-estima, dedicação, perseverança, o pensamento de que nunca vai desistir e levar todas essas coisas metafóricas pra fora do ringue, tu ganha na vida. (...) Esse tipo de objetivo pode existir fora de uma academia como a Luta Pela Paz quando o professor é uma pessoa mais responsável e madura. O que o nosso projeto fez foi colocar essa filosofia na frente, de forma explícita. Nós temos um projeto social. Mas temos que ter muito cuidado para não sufocar os jovens com tantas palestras sobre comportamento e essas coisas. Uma coisa que sempre gostei é que quando subia no ringue com alguém, não tinha mentira entre nós. A gente tá num nível que quem for melhor ganha. Ele pode me respeitar se eu ganhar e vice versa. Você vê os lutadores no final se agarrando, beijando depois de se estapearem. Isso é a primeira coisa: a justiça que entra no ringue de boxe é 100%. No que diz respeito às representações dos lutadores sobre “o projeto”, alternam-se elementos de valorização da proposta social do projeto e de demarcação de uma identidade “da comunidade” que não quer se confundir com ele, ou não se sente representada por ele, nas falas dos jovens escutados. O contexto de uso termos “projeto” e “academia”, fornece pistas deste movimento: (...) Se o pessoal comentar: ‘Representa a Luta pela paz’? Não represento a Luta pela Paz, não represento o Viva Rio e já que o Luta pela Paz tem uma conexão com o Viva Rio, eu tô lá diariamente, tá na minha comunidade, eu vou lá, converso com o pessoal, vejo o que está acontecendo. Aí pergunta: ‘você faz parte de quê atualmente?’ Faço parte da [rede] Sou de Atitude, mas não por isso que eu não faço parte do Luta pela paz. Na narrativa anterior, onde há uma clara demarcação de diferenciação entre Luta pela paz e a “comunidade”, o jovem José enfatiza o sentimento de pertencimento e identidade com a comunidade (“minha comunidade”) e a forma de participação social não é excludente, pois participa simultaneamente da Rede Sou de Atitude e do Luta Pela Paz; na fala, não aparecem as expressões “projeto” nem “academia”. Já quando 92 são abordados os objetivos sociais, leituras sobre a proposta da LPP, seu discurso e o reconhecimento de benefícios trazidos, aparece a palavra “projeto”. Ao responder à indagação “o que pensam da expressão ‘Luta Pela Paz’”, Mario fala em “ideais”: “O projeto não pensa só nos ideais de quem está lá dentro, pensa nos ideais de todas as pessoas que estão fora do projeto”. Outro jovem, Ricardo, usa a expressão projeto para se referir a modificações trazidas pelo LPP à sua vida. Ao mencionar uma luta de boxe, emprega a palavra academia: O projeto Luta Pela Paz está modificando muito a minha vida, não estou naquela destruição que eu tava. Eu não tinha desenvolvimento por causa das drogas que eu usava. Minha vida foi só destruição, agora minha vida mudou bastante. Descobri o projeto por um amigo, que me falou: ‘está tendo uma luta de boxe no Parque União, vai lá conhecer a academia’. A expressão “academia” é empregada por Deco para definir espaços físicos onde já funcionaram os treinos de boxe. A mudança do espaço do Parque União para uma sala na laje de um pequeno mercado na Nova Holanda trouxe vantagens, a seu ver. Não precisaram mais dividir o local com outra “galera que malhava”; a academia passou a ser “a nossa academia”, o que supõe pertencimento ao espaço da academia. Uma coisa que mudou para melhor foi o espaço físico da academia; (...) aquele outro tinha aquela galera que malhava, que botava o som alto e a gente pedia para baixar o som para o momento de reflexão; aqui, se tiver atrapalhando, a gente pode chegar lá e dizer ‘abaixa o volume’, é a nossa academia. Lá a gente tinha que pedir permissão a outras pessoas. A gente achava que estava invadindo o espaço de outras pessoas, ai passava os caras lá malhando, fazendo barulho e a gente não se concentrava. Nas falas de outros freqüentadores dos treinos, é possível notar, também, a incorporação de elementos do discurso apresentado pela equipe da LPP, de forma mais ou menos crítica: O projeto está querendo chamar as pessoas para ter uma nova, como é que se diz? Ter uma nova rotina, para aprender coisas diferentes, não é só o que tem lá pra mostrar. (...) quando você só tem uma academia de boxe em si, você pode pegar qualquer pessoa e botar para pagar uma mensalidade de dez reais por mês e você dá aula para o cara e o cara briga, briga, briga e, quando chegar na rua e espancar alguém, 93 você não tem responsabilidade sobre ele. Ele está pagando e eu estou treinando ele; agora, aqui é diferente, treinam o jovem para ser um individuo integrado à sociedade, de fato, e ter um esporte, ter um momento de treino. Quanto às representações sobre o nome do projeto, aparece a idéia de oposição à “briga na rua” (portanto, de desvalorização do ambiente da rua) e, ao mesmo tempo, a primeira impressão trouxe dúvidas, desconfianças e curiosidades. É uma luta, mas pela paz e não pelo mau das pessoas; não é uma luta para rua, não é uma luta assim: só porque ele mexeu comigo, eu saio metendo a porrada nele. Quando eu escutei logo pela primeira vez eu pensei assim: dever ser algum projeto assim para tirar a violência da rua e canalizar a violência num só lugar, ou seja, pra cima do ringue. Quando eu vi o nome “Luta Pela Paz” lá na Teixeira, eu pensei: “Luta Pela Paz; boxe, porrada” e pensei logo depois: “Pela Paz”, ai eu tive curiosidade de ir lá conhecer; subi lá e comecei a ver, só que com aquela desconfiança. Pô, Luta Pela Paz? E me fez pensar. No inicio, teve uma duvida. Principalmente naquela época, que tava a guerra, tinha muita guerra, tiroteio, e ai eu vi lá Luta Pela Paz. 94 A imagem: Jovens em círculo, no começo de um treino de boxe (na fase inicial do projeto); de cabeça baixa, todos fazem um minuto de silêncio antes de iniciar o treino (prática estimulada pelo treinador que era freqüente, mas não ocorre mais). Narrativa do jovem sobre a fotografia (outros jovens participantes do grupo também fazem interferências sobre os assuntos comentados): Eu escolhi a foto que representa a academia e os jovens. No caso aqui, estão fazendo um minuto de silêncio; sempre tinha um momento de reflexão. A gente parava um ou dois minutos para reflexão para ver as coisas boas que aconteceram com a gente: “vamos parar um pouco para pensar nas coisas boas, nas coisas que estão acontecendo nas nossas vidas”. Antes tinha, acho que hoje ainda devia ter essas coisas. Pergunta: Hoje em dia não tem? Jovem: Não, tinha. Diziam: “olha, você que não quer pensar, fica ali, fecha os olhos, não atrapalha o seu amigo ao lado e faz um minuto de silencio” e tal, “se tem alguma coisa para falar, pode falar...”. Outro jovem: Isso foi uma regra que foi abandonada na academia, sempre antes do treino tinha que fazer um minuto de silêncio. Jovem: Eu acho que isso é que é importante: voltar às nossas raízes antigas, que é uma coisa boa, juntar a galera reunida antes do treino, pensar os nossos assuntos, o que a gente fez hoje de manhã, o que nós vamos fazer amanhã. A minha visão nessa foto é esse momento, um momento de reflexão; olhar o pessoal novo, os mais antigos e a grande galera que hoje em dia não está mais aqui. Dessa galera toda que tá aqui na foto (eu tô aqui atrás), tem muita gente que não está mais no projeto e bate saudade da galera antiga. Análise da narrativa da imagem: Antigo freqüentador da academia, o rapaz tomou o cuidado de escolher, no grupo de fotografias apresentado, aquela que para ele representava o seu ponto de vista sobre “a academia e os jovens”. Em suas palavras, a síntese entre ambos se expressa nos momentos em que os jovens praticantes de boxe eram estimulados a refletir sobre si mesmos, ou seja, “pensar nas coisas que estão acontecendo nas nossas vidas“. Abandonado em tempos mais recentes, o antigo costume de fazer um minuto de silêncio antes de iniciar o treino foi instaurado pelo coordenador da academia na época em que ainda ministrava os treinos de boxe. A memória do jovem sobre este tempo se refere ao estímulo que era feito ao pensamento nas “coisas boas” que haviam acontecido com os jovens. A imagem remete a uma nostalgia que trás consigo a idéia de que ali naquele espaço foram criadas “raízes”. Palavra que remete à idéia de algum tipo de identificação com o projeto. Uma idéia forte que também sobressai nesta fala é a de consciência da própria história e de concepção de futuro: “pensar os nossos assuntos; o que a gente fez hoje de manhã, o que nós vamos fazer amanhã”. 95 Entretanto, a reflexão sobre o tempo presente não é mencionada. Finalmente, os antigos companheiros, “a grande galera que hoje em dia não está mais aqui”, são lembrados com pesar, expressando o estreitamento das relações e o vinculo criado entre os jovens participantes do projeto. Nos documentos de descrição de metodologia e objetivos do Centro Esportivo e Educacional Luta Pela Paz, vigentes em 2005, o projeto é definido da seguinte forma: O Luta Pela Paz é um projeto piloto de prevenção e reinserção social que oferece aos jovens alternativas reais ao envolvimento no crime, violência armada e à participação nas facções organizadas do tráfico de drogas que dominam o local em que o projeto atua. Com esta perspectiva, o projeto é voltado para a reinserção social de menores de idade e jovens já envolvidos neste cenário, como também à prevenção do envolvimento de jovens que estão em “alto risco” de participarem destas atividades ilícitas. Apesar de ser uma estratégia fundamental para reduzir o número de menores nessa situação a nível local, a proposta deste projeto não é a de solucionar os problemas mais abrangentes associados ao tráfico de drogas e à violência armada que afeta todos os moradores de centros urbanos no Brasil e em várias partes do mundo, tanto os das favelas quanto os do asfalto. Portanto, esta proposta deve ser vista como um componente fundamental de estratégias multissetorais e de políticas públicas integradas que procuram enfrentar a violência armada sob uma perspectiva mais ampla. 57 No que diz respeito à diretriz de atuação voltada para a população jovem, a visão dos coordenadores do projeto LPP está em sintonia com os parâmetros de trabalho da entidade da qual faz parte. Segundo o diretor da instituição, um aspecto assumiu importância, em tempos recentes, em relação à sistematização de temáticas e ações de trabalho do Viva Rio: o de incentivar a criação de uma “agenda” para este público específico e, neste universo, enfocar um segmento específico, a saber, o de jovens que abandonam a escola e não trabalham: “O Estado não tem como chegar no jovem que está fora da escola; geralmente chega nas crianças, na juventude do país, através da rede educacional. Então, se esse cara está fora, não tem quem fale com ele.” O conceito de “jovem em situação de risco” adotado pela mesma instituição leva em conta tal característica, como afirma seu diretor: 57 Documento Projeto Luta Pela Paz: Metodologia de trabalho (trecho em anexo). 96 Como é que você define risco? A gente foi até mais especifico: juventude no risco é a que não estuda e não trabalha. E aí isso dá pra quantificar, dá pra dizer o número de jovens que estão na situação de risco social: não só para a violência, mas para a ociosidade, criação de famílias que não estão estruturadas, não se sustentam etc. Estão na informalidade. Isso foi um diálogo criado junto com estatísticas, estudos; mas foi também uma visão qualitativa, de que quem está dentro da escola, ainda está numa estratégia individual de crescer por dentro, de fazer uma carreira por dentro. Quem saiu da escola antes de terminar a oitava série é uma pessoa que claramente não tem perspectivas de crescimento dentro do mercado formal. A representação de ‘jovem’ acionada no discurso do projeto, portanto, é a de jovem em situação de “alto risco” de envolvimento em atividades ilícitas, o qual, além de não estar na escola, também não participa do mercado de trabalho. De acordo com pesquisas da entidade este jovem estaria mais suscetível a se engajar em atividades criminosas. Este é o perfil de jovem que, na prática, estaria freqüentando a academia de boxe (ou o Centro Esportivo e Educacional) LPP. Entre os participantes dos grupos focais realizados para esta pesquisa (12 jovens, no total), os dados recolhidos são os seguintes: todos, com exceção de um jovem (do grupo de alunos antigos), estudam; a média de nível escolar oscila entre a sexta série do ensino fundamental e o segundo ano do ensino médio, num universo de faixa etária entre 13 e 25 anos; três jovens entre 19 e 25 anos, trabalham. 58 Sem a pretensão de ser uma amostra representativa do grupo total de participantes do projeto (universo que girava em torno de 150 jovens, em meados de 2005, sendo, entre estes, cerca de 60 praticantes de boxe), esta breve e restrita visão do conjunto de jovens que participou de uma das atividades metodológicas realizadas no âmbito deste estudo forneceu dados qualitativos apenas sobre estes jovens. Em resumo, a análise das informações aponta para existência de perfis e trajetórias de vida variados, o que pode ser reflexo das próprias características da estrutura socioeconômica da população de favelas como Nova Holanda e Parque União.59 Um dos instrumentos amplamente utilizados para retratar a situação socioeconômica contemporânea, o Relatório de Desenvolvimento Humano, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), aponta indicadores que traduzem a grande diversidade e as diferenças sociais 58 59 Dados referentes aos grupos focais em anexo. No capitulo 2 deste estudo, apresentou uma perspectiva histórica e social da Maré. 97 que compõem o quadro de desigualdades de condições de vida no Rio de Janeiro. De acordo com esse estudo, quanto à estratificação social, os dados indicam que a distância entre pobres e ricos já não se revela tão extrema, porém, demonstram que o município apresenta diferenças claras também entre os pobres, de acordo com a região geográfica. O trabalho escrito por Maria Aparecida Gomes França, Magda Dimenstein e Maria Helena Zamora,60 (2002) sobre a gênese do conceito de risco elabora um mapeamento da trajetória do uso deste conceito em diferentes campos de conhecimento detendo-se, em especial, nas áreas de ciências sociais e da saúde. A proposta central do estudo se volta para a observação de implicações políticas que podem decorrer do emprego da noção de risco, da forma como tem sido utilizada contemporaneamente, no que diz respeito à elaboração de políticas públicas e de outros setores da sociedade voltados para a área da infância e da juventude. Segundo esta perspectiva, a idéia de risco carrega consigo o significado, construído coletivamente, de perigo; ou seja, no imaginário social, as chances de alguém que corre o risco de se envolver em determinadas situações ou, mesmo, de adquirir algum tipo de enfermidade são muito maiores do que a hipótese contrária. A naturalização desta idéia associada a adolescentes e crianças pode trazer uma visão limitada, já que passa a identificá-los levando em conta apenas algumas das características de seu desenvolvimento. De acordo com as autoras: Risco se configura, hoje, como um signo importante para compreendermos o homem. Focalizar os discursos e situar a concepção de risco em relação a tantos outros signos construídos na modernidade - por exemplo, infância, trabalho precoce, subjetividade, saúde, pobreza - possibilita a reflexão sobre as transformações que ocorrem no mundo atual, as quais incidem nos sujeitos, em particular, e na sociedade em geral, de forma dialética. As críticas do estudo se direcionam para os prejuízos que a classificação de risco pode trazer para aqueles que nela forem enquadrados, independente dos métodos usados para chegar aos diferentes conteúdos que dão sustentação a cada acepção deste termo. 60 DIMESNTEIN, Magda; FRANÇA, Maria Aparecida Gomes; ZAMORA, Maria Helena. Resignificando o conceito de risco nas pesquisas e práticas voltadas à infância contemporânea. In: O Social em Questão. Revista do Programa de Mestrado em Serviço Social da PUC-Rio. 98 Considerando também trabalhos de outros autores que vêm se debruçando sobre a mesma questão, no Brasil e no exterior, o artigo afirma: (...) ainda que originalmente a formulação possa ter sido bem intencionada, o conceito de risco (mais precisamente at risk) é um diagnóstico e um rótulo que diminui as expectativas em relação a certas crianças e acaba por segregá-las.(...) A caracterização de indivíduos e/ou famílias que compõem um subgrupo visto como voltado para o fracasso e para o risco não contribui para a superação do preconceito e do estigma social. Ao contrário, acaba por reforçar noções banalizadas e até fundamentadas a partir de uma perspectiva especifica, mas que não se afigura como uma verdade inquestionável. Ao mudarmos o foco de risco para as potencialidades, isto é, para as qualidades promissoras de cada individuo e dos coletivos, isso nos permitirá criar as barreiras conceituais que delimitam lugares sociais (...). O estudo é concluído com algumas indagações, que questionam, por exemplo, por que todas as crianças no universo diversificado de uma favela, muitas vezes com famílias estáveis, saudáveis, são descritas como em situação de risco? E, ainda, será que não se deve atentar para o fato de que a maioria das pessoas que passam a fazer parte desta classificação são pobres, negros e moradores de favelas? Tais questionamentos permanecem em aberto. Seguramente, a situação descrita aqui sobre a noção de “risco” atrelada a discursos de projetos voltados para a ação social, não se restringe ao caso específico abordado neste estudo. Ao contrário, faz parte não só de inúmeros programas criados por instituições não governamentais, como são naturalizadas em narrativas de setores governamentais e do próprio senso comum. É possível perceber, a partir do que foi colocado anteriormente, que as práticas no campo da ação social nem sempre são acompanhadas por uma reflexão sobre a realidade na qual se propõe a intervir e sobre suas variadas repercussões no meio onde se insere. No que diz respeito às considerações sobre a idéia de risco social, a própria ampliação das formas de participação juvenil, e da compreensão da enorme diversidade que caracteriza a juventude como categoria socialmente construída, atualmente já se nota uma certa desnaturalização da visão em torno do assunto, observada objetivamente em uma mudança de vocabulário na ‘linguagem’ dos projetos. Expressões que enfatizam, por exemplo, a visão do jovem como “sujeito de direitos” começam a adquirir maior valor e outras, como a do “risco” se tornam enfraquecidas. 99 3.3 Etnografia de uma academia Em junho de 2000, uma pequena sala no andar térreo da Associação de Moradores do Parque União (na Maré) foi adaptada para receber equipamentos para a prática de boxe. Sacos de areia foram pendurados em vigas no teto, o piso coberto com material emborrachado e um ringue amador instalado permanentemente em uma das laterais da pequena sala; colchonetes, pesos, cordas, luvas de treino e protetores foram disponibilizados para pôr em prática o aprendizado de um esporte que ganhou adeptos entre os jovens residentes próximos ao lugar. O nome da academia não aparecia em nenhum letreiro, mas já buscava explicitar, à sua maneira, a proposta que pretendia realizar: Luta Pela Paz. Tratava-se de um “projeto social”, tendo como foco inicial a oferta de treinos gratuitos de boxe para jovens, homens, de 13 a 21 anos, somado a um acompanhamento dos jovens por assistentes sociais e posteriormente por psicólogos. Tal acompanhamento ganhou a denominação de “aula de cidadania” e consistia em um programa de discussões de temas como sexualidade, drogas, educação, violência e direitos. Além disso, o estímulo à participação em torneios esportivos, o incentivo à volta à escola e o encaminhamento a estágios remunerados em empresas também se integravam à metodologia de trabalho da academia. Os critérios básicos para a entrada na academia eram: dedicação aos treinos, participação nas “aulas de cidadania”, comprometimento com as regras da academia e não aplicar as técnicas do boxe em situações externas ao contexto esportivo. Depois de alguns meses, a academia passou para o último andar do mesmo prédio, ou para a “laje”, como são conhecidos os novos pavimentos construídos em casas de favelas no Rio de Janeiro. Transferido para a localidade vizinha, Nova Holanda, em 200361, o projeto passou por algumas mudanças: incluiu aulas gratuitas de outras modalidades de luta como capoeira e luta livre, mas o boxe permaneceu como a modalidade esportiva de referência da Luta Pela Paz entre os moradores da área, atraindo mais jovens do que as outras lutas oferecidas pela academia; a faixa etária dos freqüentadores foi estendida 61 A Rua Teixeira Ribeiro, para onde a academia foi transferida em 2003, faz parte do traçado urbano do Parque Maré, no entanto, o fato de estar localizada “na divisa” com a Nova Holanda faz com que toda a sua extensão seja coletivamente reconhecida como pertencente a esta última favela. Um grande número de moradores identifica esta rua pertencente à NH. Por isso, no presente trabalho, também é adotada a mesma referência geográfica. 100 para 24 anos e foram abertos treinos de boxe também para o público feminino; além disso, a prática de musculação foi colocada à disposição do público geral do local, mediante pagamento de uma pequena mensalidade. Em agosto de 2005, foi concluída a construção de uma nova sede, em um terreno na mesma favela, onde a LPP passou a funcionar. O centro esportivo em questão se integrou ao cotidiano de residentes e freqüentadores de uma determinada área da Maré, tornando–se parte de uma rede micro, de relações sociais. Para compreensão deste local de características particulares enquanto lugar onde se dá a intercessão entre diferentes experiências de vida de jovens que lá chegam é importante perceber aspectos que dão a ele uma feição própria. Alguns destes aspectos podem ser notados na narrativa de um jovem freqüentador da academia de boxe sobre uma fotografia que despertou sua memória em relação à forma como “entrou para o boxe”. Outros também estão presentes na descrição da pesquisadora de um treino de boxe, na primeira sede do Projeto LPP, então instalado “na laje” da Associação de Moradores do Parque União. Os treinos eram ministrados três vezes por semana, sempre no mesmo horário, entre 19 e 21 horas. A orientação predominante para os jovens praticantes era seguir, o máximo possível, as instruções passadas pelo treinador voltado para o preparo técnico, ditando o estilo de luta a ser adotado pelos alunos (à época, era o próprio coordenador do projeto e ex-boxeador Luke Downdney) e pelo treinador-assistente, encarregado de passar exercícios de condicionamento físico, estimular o empenho dos praticantes e manter a disciplina, evitando conversas e dispersão durante o treino. 101 A imagem - Parque União: ao fundo, vê-se o prédio onde funcionou a academia Luta Pela Paz durante os primeiros três anos de funcionamento, junto à sede da Associação de Moradores do Parque União (AMPU). O foco de luz azulado, redondo e frontal, no alto da imagem, vem da sala da academia. A fotografia foi tirada em torno das 20hs, enquanto acontecia o treino de boxe da escola C (alunos mais adiantados) que havia se iniciado às 19hs. Em primeiro plano, um trailer de venda de lanches na calçada oposta à entrada do prédio, onde os freqüentadores da academia costumavam comprar “um salgado” antes ou depois do treino. Data: 12/04/2001. Narrativa do jovem sobre a fotografia (outros jovens participantes do grupo focal e a coordenadora da atividade fazem interferências sobre os assuntos comentados): - O que tem aqui é a associação. - A associação de onde? - ... dos moradores do Parque União; aqui, a tia Lu do salgado, onde todo mundo comprava antes de ir pra academia. - Eu escolhi essa foto aqui porque quando eu entrei na academia, pensei assim: mudou a minha vida, na minha forma de ver. Mudou minha visão da vida; uma coisa que eu fico pensando, às vezes, que foi até estranha. Um cara que eu nem conhecia (eu esqueci até o nome dele) um parrudinho, acho que vc até conhece... - O Brás. - É, o Brás, que ficava ali no Pedro da locadora. Ele chegou para mim e falou “pô, você não quer fazer boxe não? Eu falei “aonde cara?” e ele respondeu “Lá no Parque União; vai lá falar com o seu Vicente”. Era até o seu Vicente antigamente. Fomos lá, tava Vitor, tava todo mundo; desde esse dia fui e fiquei ficando (sic). Ele nem fala mais comigo, nem lembra mais de mim. - Quem? - Esse homem aí. - Também, tu tá com maior carcação, malhando, tomando... bomba energética. - Você quer falar um pouco mais o que mudou? - Mudou muita coisa, antigamente a comunidade entrava no boxe com a intenção de brigar, tipo aprender a brigar, fazer boxe para arrumar briga na rua e saber me defender, mas conforme vai passando o tempo vai vendo que não é isso, que o projeto não ensina essas 102 coisas, ensina uma defesa, mas não para ser usada como briga de rua, é uma coisa para se defender e para competir. Eu tenho uma política que desde que eu entrei, nunca briguei com ninguém. - Mas eu não to falando disso não, eu to falando de tumulto mesmo, de nego arrumar tumulto e você não vai ficar nessa de ‘só bato no saco’ e tal; bato logo um soco no meio da cara mesmo e acabou logo o cão: ‘até amanhã, quer mais?’ Então já é. - Tem que ter consciência de sair de certas situações para evitar, porque no caso, se tu for preso, malandro, tu não tem nem como dizer “ah, porque eu sou lutador de boxe”, não tem jeito, não tem defesa. - Pelo contrário, pode dizer ‘Sou lutador de boxe, tava aqui parado na minha disciplina, o cara tava arrumando tumulto, as testemunhas tão tudo ai’, quer mais motivo? E as meninas também? - Não, eu tento levar na conversa, mas se eles partirem para agressão, aí... - Elas metem direto no nariz, teve uma lá na comunidade, elas conhecem que estourou o nariz do moleque, sangrou a mil. - Vocês fazem luta de rua? - Mais ou menos, mais ou menos. - É só um aquecimento. - Antes eu ficava na rua assim, não fazia nada, ficava em casa, na rua, não tinha o que fazer, procurava ocupar o tempo assim, mas não sabia como ocupar meu tempo e foi nessa que entrei para o boxe; ia para a escola e da escola para o boxe e até hoje eu tô na boa. - Só o boxe? - Só o boxe. - Não tem outras atividades? Não joga bola? Você é bom no boxe? - É, tô tentando ... Ainda não sou muito bom de boxe. Análise da narrativa da imagem: A foto da fachada da academia desperta no jovem participante a lembrança do seu início no boxe, da pessoa que o abordou na rua alguns anos atrás e convidou: “pô, você não quer fazer boxe, não?”. O “convite” tem semelhanças com a forma usada por integrantes de igrejas evangélicas locais para chamar pessoas para assistir cultos, abordando moradores na rua e fazendo “convite” para uma visita, como relatou um dos jovens em outra entrevista. O senhor que o chamou desapareceu, segundo o menino, mas o jovem continuou “no boxe”. Em outro momento da narrativa, a fala de um companheiro de treino revela algo novo em sua vida: transformações no corpo, mais “malhado”, o maior “carcação”. Este assunto faz surgir o comentário sobre tomar “bomba energética”. O silêncio de todos após essa fala deixa no ar uma questão que parece ser tabu. Diante da pergunta “o que mais mudou?” surge fortemente o tema briga. Apontada como estímulo para entrar no boxe com o objetivo de “fazer boxe para arrumar briga na rua e saber me defender”, a briga aparece no tempo passado e é tratada no sentido coletivo, como o jovem cita: “antigamente, a comunidade entrava no boxe com a intenção de brigar “. Esta fala traz também uma representação de pertencimento à comunidade e à academia. O passar deste tempo vai trazendo uma mudança, um novo olhar sobre a prática do boxe e aparece a palavra “projeto”, como algo que não desfaz a sua idéia anterior de aprender boxe com a intenção de se defender, mas passa a ser uma “defesa” não para ser usada como “briga de rua”, mas para “competir”. Em resumo, logo no inicio da narrativa, o jovem relata “...quando eu entrei nela, pensei assim: mudou a minha vida”, completando em seguida, “Mudou minha visão da vida”, o que demonstra que a entrada para a academia representa um tipo mudança, pelo que é dito, na forma de pensar. 103 O treino “Tem um jovenzinho aqui [na fotografia], que tava até treinando outro dia desses, colocando a atadura para mais um dia de treino e escolhendo o objetivo dele: tentar ser um vencedor. Se ele não conseguisse aqui [na academia] ele ia tentar na vida lá fora”. (Jovem participante do grupo focal formado por alunos ‘veteranos’ da academia) Em um galpão iluminado por poucas lâmpadas frias, no último pavimento de um pequeno prédio de três andares, um jovem, descalço, sentado no ringue encostado na parede no fundo da sala, aguarda o início do treino. De cabeça baixa, ele desenrola devagar um pequeno novelo de atadura encardida retirado do bolso e, cuidadosamente, começa a envolver cada uma das mãos, preparando-se para iniciar mais uma sessão de treino de boxe. O olhar fixo do jovem percorre o caminho em linha reta formado pela da tira de pano, desde a ponta com a qual começa a envolver a mão direita, até o outro extremo do novelo estendido no centro da sala. Lentamente, ele vai enfaixando a mão, observando a bandagem correr entre os dedos do pé que a mantêm presa e esticada, na medida em que os ossos do punho vão sendo preparados para receber a luva. Atento ao movimento das repetidas voltas em torno do seu corpo, o garoto acompanha o próprio ato, já automatizado, até seu olhar se perder no meio do espaço de treino e seu pensamento, aparentemente, distanciar-se dali; o novelo vai diminuindo à sua frente e, quando termina, a mesma operação é refeita sobre a mão esquerda. “A bandagem serve para proteger as mãos do lutador, não o rosto do adversário”, como explicou a juíza e árbitra de boxe Márcia Lomardo, participante da equipe técnica de inúmeros “combates” (como se diz no jargão esportivo do boxe) em que estiveram presentes lutadores da academia LPP. 104 Outros jovens chegam para o treino, repetindo os mesmos gestos, cada um à sua maneira. Eles têm entre 13 e 20 anos, são brancos, negros e mestiços, a maioria bem magros, de estatura mediana para baixa e têm os músculos dos braços bem definidos. A julgar por sua constituição física, percebe-se logo que diferem bastante dos “marombeiros”, que suam do outro lado da sala (onde funciona uma pequena academia de musculação), erguendo pesados alteres para delinear os músculos inflados, de frente para o espelho. Com as mãos já enfaixadas, os participantes do boxe seguem para a primeira parte do treino, composta por exercícios de condicionamento físico, ao lado do ringue localizado no centro do galpão. Depois de meia hora de “malhação”, segue-se a etapa de treino técnico, onde são ensinados os golpes e a sua sincronia com a movimentação de pernas. Logo após, todos partem para o treino nos sacos onde aprendem a controlar a força, intensidade e direção dos golpes. Cerca de uma hora e meia depois, os mais adiantados (que já sabem dominar minimamente as técnicas do esporte) vestem as luvas e o capacete próprio para treinos e sobem ao ringue para a prática de “luva”, ou seja, para o combate propriamente dito com o adversário. Sob o olhar fixo do treinador, os jovens recebem as orientações seguidas à risca. As duplas de lutadores se alternam de acordo com o soar do gongo que marca o tempo dos assaltos (ou rounds). No final, eles descem do ringue com o corpo pingando de suor, esgotados, retiram as bandagens e calçam suas sandálias havaianas, guardadas sob ringue. É o fim do treino. Esta é a rotina que se repete toda semana na academia de boxe Luta Pela Paz. Durante os últimos cinco anos, dezenas de jovens moradores locais e de outras áreas vizinhas participaram destes treinos e os que mais se destacavam eram escalados para torneios de boxe amador, em geral, promovidos pela LPP (junto à Federação ou à Liga de Boxe local), mas também por outras academias do Estado. Nos três primeiros anos de funcionamento, a LPP permaneceu no Parque União, ocupando uma sala na sede da associação de moradores local. Tão logo iniciou suas atividades, a academia se tornou ‘federada’, como se diz no jargão esportivo, ou seja, oficialmente reconhecida pela Federação de Boxe do Rio de Janeiro. Em outubro de 2003, alguns fatores motivaram a mudança do projeto para a localidade vizinha Nova Holanda, entre eles, a necessidade de encontrar um lugar maior para atender à demanda crescente por vagas nos treinos. Ainda em 2003, foram abertas turmas de boxe feminino e a faixa etária dos participantes estendida até 24 anos. Em 2005, o número de freqüentadores dos treinos de boxe passou de cerca de vinte alunos no período inicial, 105 para uma média de sessenta inscritos (cerca de 40 homens e 20 mulheres), segundo os registros de presença dos alunos. Com a introdução de outras atividades como musculação62, capoeira e luta livre, o total de inscritos chegou a cerca de 150 participantes. Neste ambiente, não é comum a participação de jovens em mais de uma modalidade de esporte (como ocorre em outras academias da cidade), nem a migração de uma atividade para outra, o que pressupõe a existência de grupos com interesses e práticas diferentes que não se misturam. Ou seja, praticantes de musculação não costumam fazer boxe e vice-versa. Os alunos do boxe são distribuídos em três turmas (A, B e C) de acordo com o nível técnico de aprendizado. Na turma C, estão os avançados, que já participam de competições e, na A, os iniciantes. Hoje em dia, todos os treinos são ministrados pelo antigo treinador assistente, Leandro, também responsável por outra academia de boxe, situada no morro do Dendê (na Ilha do Governador). Esta e outras mudanças foram resultado da expansão das atividades da LPP que provocou modificações em sua equipe de trabalho, como a incorporação da atual coordenadora técnica, a socióloga Leriana Figueiredo, e o afastamento de Downdney da rotina diária de treinos da academia, o qual permaneceu como coordenador geral do Projeto, dedicando maior tempo a atividades de gestão de pesquisa. 62 A prática de musculação não se inclui no programa social da academia, portanto não é gratuita, ao contrario das outras atividades do Projeto; o preço da mensalidade girava em torno de R$ 5,00 na época da pesquisa. 106 A imagem - Jovem se prepara para começar o treino de boxe na academia LPP (sede do Parque União, Maré) da turma A, dos alunos novatos. Um dos primeiros a chegar, ele inicia a colocação da bandagem (ou “atadura”), que serve para proteger as mãos do lutador. A ação é lenta, cuidadosa e compenetrada. Data: 2001. Narrativa do jovem sobre a fotografia (outros jovens participantes do grupo focal e a coordenadora da atividade fazem interferências sobre os assuntos comentados): Como todo mundo pode ver, aqui tem o ringue, onde nós treinávamos quando era na Associação do Parque União e agora está desmontado. Eu escolhi essa foto porque tem um jovenzinho aqui, que tava até treinando outro dia desses (mas agora não vejo mais) parado aqui, sentado concentrado, colocando a atadura para mais um dia de treino e escolhendo o objetivo dele: tentar ser um vencedor. Ele tava aqui sentado mas se não conseguisse aqui, ia tentar na vida lá fora. Então, eu me inspirei nessa vida. Nós todos aqui já estivemos sentados nesse mesmo ringue, parados e refletindo na vida lá fora, igual ele está aqui parado e talvez refletindo na vida lá fora, colocando a atadura. Mas não está pensando só ali não; está pensando em outros problemas, ‘mas agora vou me dedicar aqui que é a hora do meu treino e depois eu resolvo os problemas lá fora’. Pergunta: Quando entra no treino se esquece dos problemas lá de fora? Jovem: Ajuda até, dependendo de qual problema, porque tem problema que não tem como, só lá fora mesmo, mas se for coisa boba que pode resolver, a gente chega ali, dá uma treinada, desgasta, vai para casa leve e espera pra resolver. Pergunta: Vocês ficaram amigos a partir da Academia? Jovem: Foi. Jovem: A grande maioria é amigo, se vê, se fala: ‘e aí tudo bom, como é que está’. 107 Jovem: Já se arruma namorada na academia; já saiu namoro, noivado e até casamento na academia. Análise da narrativa da imagem: A foto suscitou os seguintes temas que vêm à cabeça daqueles que treinam boxe, segundo o jovem que escolheu a imagem: 1. A expectativa de “tentar ser um vencedor”; 2. Refletir sobre “os problemas lá de fora” durante os treinos. A imagem de um menino sentado no ringue, de cabeça baixa, colocando a atadura (gesto praticado pelos jovens já familiarizados com o esporte) trouxe à mente do jovem que escolheu a foto os possíveis pensamentos do menino naquele momento e uma alusão com os seus próprios. O objetivo de ser vencedor e a reflexão sobre os problemas “lá de fora”, que são portanto trazidos “para dentro” da academia durante a prática do boxe, são os primeiros exemplos citados pelo participante do grupo focal. Para ele a representação maior de quem busca a academia de boxe (“o objetivo”) se traduz, então, no desejo de ser vencedor. O ambiente de treino sugere um duplo movimento - a reflexão solitária em problemas “de fora” durante preparação para atividade física e a tentativa de afastamento destes mesmos pensamentos na hora do treino. A dinâmica estabelecida seria a de: Trazer problemas ‘de fora’ para ‘dentro’ (da academia) X Tentativa de preservar o lado ‘de dentro’ (da academia) dos problemas ‘de fora’. O tipo de problema passível de ser esquecido ou resolvido a partir da vivência dentro da academia de boxe seriam “os banais”. De acordo com a fala do jovem, os outros só se resolvem “lá fora”. Formam-se amizades / rede de relações sociais a partir da academia de boxe, que se estendem para fora, como é o caso dos namoros, noivados e casamentos surgidos a partir de dentro da academia. 108 A imagem - Mão envolta em atadura, em primeiro plano, sobreposta a um bolo de aniversário. Academia LPP, sede do Parque União, Maré. Data: 2001. Narrativa do jovem sobre a fotografia (outros jovens participantes do grupo focal e a coordenadora da atividade fazem interferências sobre os assuntos comentados): Eu peguei uma foto da aula de cidadania da academia. O bom lá também é que todo mês, fim do mês, eles compram bolo, fazem torta para comemorar o aniversário dos jovens e adolescentes - muitos que os parentes não têm possibilidade de fazer nada em casa. Reúnem todo mundo, canta parabéns, para motivar. Outro jovem: Eles se sentem como? Mais integrados à comunidade, a rapaziada já sente que ali é a família deles. Outro jovem: Já mostra que não esqueceram dele; sabe que o dia está lá escrito. Pergunta: E o que é a aula de cidadania? Outro jovem: Só entra no boxe quem faz aula de cidadania, só pode treinar quem faz. Pergunta: E o que se dá na aula de cidadania? 109 Outro jovem: são vários temas, meio ambiente, saúde, tudo o que acontece no nosso país; sobre violência, sobre em casa, na rua, higiene, sobre tudo (...) Outro jovem: antigamente as pessoas tinham a mania de ir para o boxe e achava chato falar de cidadania, "que negocio chato ficar lá escrevendo” e tal. Hoje em dia, está mais equilibrado, tem galera que curte mais a aula de cidadania do que o boxe; eu mesmo curto mais a cidadania, mesmo numa academia de boxe, eu curto cidadania. Outro jovem: porque muitos jovens que entram com uma cabeça num ritmo de brigar e disso e daquilo, sai de lá muito mudado, mais calmo. Pergunta: vocês viram mudanças nas pessoas? Outra jovem: eu sou uma que mudei. Outra pessoa: a maioria que está aqui está muito mudada (...) Outro jovem: É regra da academia: a gente não pode brigar, porque se brigar, leva suspensão. Outro jovem: A academia tem várias regras; as regras que tem fomos nós da academia mesmo, que treinamos, que fizemos. Se é para treinar, tem que assistir aula de cidadania para depois poder treinar; não pode brigar na rua; ser pontual; tem varias regras que têm que ser respeitada. Pergunta: Como foi que vocês criaram essas regras? Outro jovem: quando começou, a academia não tinha regra nenhuma e foi tendo problema, foi tendo problema; aí nós mesmos fomos vendo que tinha que fazer alguma coisa para isso. A [assistente social] deu essa idéia: Pergunta: O que vocês acham que mudou com essas aulas de cidadania? Outra pessoa: A aula da cidadania faz isso, abre a tua mente para ser um criador de política; eu hoje tenho um senso de critica de olhar uma matéria no jornal e falar “será que isso é verdade, será que essa matéria é verídica?”. Pergunta: Vocês concordam? Outro jovem: É isso mesmo: não acreditar só naquilo que está vendo ali na telinha da Globo, naquele caixotinho; o que a Globo mostra, aquilo tudo ali, não é tudo verdade, tem muita mentira e a vida também não é só aquilo que a Globo mostra na televisão não. Outro jovem: Tem muito mais coisas para a gente aprender (...) Outro jovem: A maioria dos jovens que estão [sic] lá agora não estão participando do projeto, como nós que já participa, que já tem uma noção, que já teve várias aulas de cidadania; a gente já sabe que nós temos o nosso direito de chegar num lugar, fazer isso e fazer aquilo e eles tem que receber a gente bem. Os outros jovens se sentem acanhados porque não têm entendimento, não conhecem; então, a aula de cidadania abre a mente dos jovens também para isso: “olha vocês têm o direito de chegar num museu, chegar não sei onde e se apresentar; eles têm que respeitar você, independente da classe de renda que você tem. Outro jovem: Na verdade, a cidadania, antes de eu entrar na academia, eu nem sabia o que era isso; depois que eu entrei na academia é que comecei a saber o que era isso (...) 110 Outra Jovem [mulher]: Muitas jovens que estão entrando estão entrando com essa intenção, porque apanhou e então diz: “vou entrar no boxe pra aprender a bater, pra bater nela”. Pergunta: Mas se é obrigatória a aula de cidadania, então, vão entrar com a intenção da briga e como fica? Outra Jovem [mulher]: Eu acredito que é por isso que muitas pessoas desistem. Tem muitas garotas que entraram, no primeiro dia achou chato e não voltou mais. Pergunta: E porque vocês acham que tem esse movimento [DE ENTRAR E SAIR]? Outro jovem: Porque às vezes a pessoa vai lá pensando que vai aprender o boxe tranqüilo e, quando vai ver, também é maior ralação, tem que passar por uma serie de trabalhos e então não tem saco para aturar isso; aí pega e mete o pé. Outro jovem: Mas tem aqueles que já estão lá, certinho, a gente sabe que é a deles; mas também saem; outros desistem, precisam trabalhar, fazer outras coisas e não podem permanecer no projeto. Pergunta: Lá tem muitos projetos, não tem? Outro jovem: É um vinculo, depois de determinado tempo ... 111 Parte II Capítulo 4 CORPOS EM LUTA Este capítulo se volta para o foco central deste estudo, ou seja, o encontro entre dois universos: um constituído por uma experiência de vida e de estar no mundo anterior à entrada dos jovens para a academia Luta Pela Paz; outro posterior à iniciação no boxe, construído a partir da interação no ambiente específico desta academia e do aprendizado desta luta. A intersecção entre estas duas categorias transitivas é caracterizada pelo contato entre o discurso do projeto LPP sobre temas como esporte, regras, cidadania, violência e juventude e as representações de jovens, integrantes do centro esportivo em questão, sobre temas correlatos. O boxe - enquanto atividade em torno da qual se articulam propostas do projeto LPP - traz para o centro da temática de trabalho a perspectiva do corpo como um lugar onde se realizam variadas trocas objetivadas por meio de relações sociais, por exemplo, entre aprendiz (de boxe)/instrutor, aprendiz/aprendiz, lutador/lutador e, mais raramente, aprendiz/lutador. Portanto a resignificação de práticas, como a briga e a competição, e os diferentes entendimentos sobre elas, são expressos em novos discursos e impressos em técnicas corporais socialmente aprendidas (no âmbito do boxe). As representações que nascem deste contato são aqui examinadas sob o ponto de vista de jovens que tiveram contato com o aprendizado de boxe no contexto descrito nos capítulos anteriores. Tomando como ponto de partida o objeto descrito acima, passamos a explorar a potencialização do corpo nas relações sociais que se estabelecem na academia. Não um corpo desprovido de contexto, de simbologias e de práticas coletivas socialmente compartilhadas; mas um corpo em uma sociedade onde manifestações de emoções, como ódio e paixão, e formas de relacionamento com o outro encontram na dimensão corporal um locus privilegiado de manisfestação, como demonstra a fala de um dos jovens que treinava na academia LPP: “A minha raiva eu já deixei ali na cara dele: já destruí a cara dele, tá bom pra mim”. É preciso lembrar que outros elementos também fazem parte da interação diária entre jovens locais e mediadores externos no contexto da academia à qual nos referimos, 112 a exemplo da proposta educacional63 desenvolvida nas “aulas de cidadania” (obrigatórias para quem faz boxe). Tais atividades, juntamente com os discursos, expectativas e ideologias presentes, estão associadas à dimensão de aprendizado e aperfeiçoamento das atividades físicas oferecidas neste centro esportivo. O ‘suporte conceitual’ paralelo à prática esportiva – definido em sua metodologia de trabalho64 - é o diferencial desta academia para outra qualquer. Espécie de ‘fio da navalha’, tal diferencial acaba por se tornar também o paradoxo deste e de outros projetos com formas de atuação semelhantes: a oferta do aprendizado de uma luta por si só, sem a integração do jovem em uma série de outras atividades definidas como educativas, não é o que o projeto LPP pretende; ao mesmo tempo, o discurso educativo puro e simples, sem a associação à prática de esportes (no caso, que envolvam, especialmente, modalidades de luta), também não contempla a proposta do projeto definida em seus documentos como: “A missão do Luta Pela Paz é oferecer aos jovens em situação de risco alternativas ao crime e ao emprego no tráfico de drogas através da inclusão social pelo esporte, educação, atuação social, promoção da cultura de paz e acesso ao mercado de trabalho”. Ou seja, o que se conclui daí é que o sucesso do jovem no Luta Pela Paz está relacionado à sua adequação, tanto a um discurso quanto a uma prática e, sendo assim, passa pela dimensão do aprendizado corporal. 65 Tal premissa pode parecer trivial ou simples, mas a observação e o acompanhamento periódico da rotina de treinos, competições e demais atividades da academia demonstraram não ser. De modo genérico, parece ser pertinente transferir estas reflexões para outras tantas iniciativas de ação social centralizadas na prática de esportes que vêm se multiplicando no Rio de Janeiro (para ficar só no nível regional). No entanto, as especificidades do meio social onde estejam implantadas, da(s) modalidade(s) esportiva(s) oferecidas e, principalmente, a forma diferente como cada jovem vivencia determinada prática e recebe o discurso associado a ela confere um caráter único 63 Para mais detalhes sobre a metodologia de trabalho do projeto LPP, referir aos documentos em anexo. Anexo 1. 65 A figura do jovem mais antigo no projeto que, por algum motivo pára de treinar mas não corta os vínculos com a academia, existe. As modificações mais recentes introduzidas no projeto, como salas de aula, cursos de computação e uma rádio comunitária, também contribuem para a presença de jovens não associados à prática de esportes no local. O próprio nome do projeto foi modificado (de ‘Projeto Luta Pela Paz’ para ‘Centro Esportivo e Educacional Luta Pela Paz’), passando a buscar mais visibilidade para a proposta de cunho educacional. Entretanto, a grande maioria dos freqüentadores, principalmente os mais novos, estão integrados às atividades esportivas (apenas lutas: boxe, luta livre e capoeira), as quais ainda constituem o foco do centro esportivo. 64 113 também à experiência de cada programa social. Aqui, interessa-nos perceber quais são estas singularidades e o que trazem no caso estudado. A sociedade ocidental contemporânea é caracterizada por uma infinidade de usos e formas de apresentação do corpo que vêm se tornando objeto de crescente interesse e análise no campo das ciências sociais. No entanto, são diversos os contextos sociais e as épocas históricas onde práticas de elaboração simbólica tiveram (e continuam a ter) o corpo como veículo de expressão privilegiada. O fato de estar diante de um objeto de estudo onde o boxe se configura como atividade física predominante, conforme descrito anteriormente, é um convite ao desafio de dar início à reflexão sobre o papel que a dimensão corporal assume no universo específico de alguns jovens praticantes deste esporte. Na literatura antropológica, Marcel Mauss (1974) foi um dos primeiros a pensar os significados trazidos pelo corpo em diferentes contextos sociais. O autor elaborou o conceito de “técnicas corporais”, definidas como “as maneiras pelas quais as pessoas, em diversas sociedades, servem-se de seus corpos”. Dando seguimento a esta idéia, Mauss parte do princípio de que movimentos corporais, como o nado e o modo de andar, por exemplo, envolvem sempre algum tipo de “aprendizado”, trazendo as características da sociedade onde se inserem, além de estarem também sujeitos a influências de épocas específicas e da interação com meios sociais diferentes. Dentro desse raciocínio, ganha importância a idéia de que a aquisição das “técnicas corporais” ocorre de fora para dentro, uma vez que o seu aprendizado se dá a partir da imitação de atos externos, internalizados segundo a consideração de valores e de “prestígio” a que possam estar associados. Junto a esta noção de “imitação prestigiosa”, as modificações corporais seriam compreendidas, ainda, como parte do habitus66 estando, portanto, integradas a uma natureza social associada a modos de ser e de agir, sujeitos a variações provenientes do meio e de convenções sociais (da educação, da moda, do status e do prestígio adquiridos socialmente), entre outros fatores. De certa forma em consonância com o pensamento de Mauss, para Pierre Bourdieu (2004), o capital físico do indivíduo (incluindo sua postura, condicionamento físico etc) seria influenciado pelo meio social através de fatores como hábitos alimentares e a prática de esportes. Ou seja, mesmo os movimentos corporais mais simples revelariam princípios e valores construídos socialmente. De acordo com esta reflexão, a motivação intencional e o pensamento estratégico dos indivíduos no 66 Mauss fez uso do termo habitus, no sentido de conhecimento adquirido; posteriormente a mesma expressão seria amplamente explorada por Bourdieu. 114 desempenho de seus atos também devem ser destacados. Portanto, os atos em si seriam acompanhados por simbologias que permeiam a vida coletiva. Esse ponto de vista pode ajudar a compreender a própria idéia de socialização no contexto de uma academia de boxe. Vale lembrar que Bourdieu usa, em determinado momento, uma analogia com a luta de boxe para explicar sua teoria. Esta luta seria compreendida dentro da perspectiva de “interação estendida entre dois atores inteligentes, onde cada movimento provoca um contra-movimento e cada parte do corpo se torna um sinal, carregado de significados”. O trabalho de Fátima Cecchetto (2004) Violência e estilos de masculinidade, onde a autora destaca a temática do corpo em relação à construção de estilos de masculinidade, ressalta as contribuições de Bourdieu para idéia de introjeção de “padrões culturais” e da “experiência do mundo” através do corpo de maneira “não-reflexiva”. Citando o sociólogo, a autora observa que a incorporação de estruturas objetivas se dá em práticas cotidianas, como no processo de educação onde o aprendizado cognitivo se associa a estruturas sociais, tornando-se “invisível e não questionado”. Um conceito acionado para compreender a incorporação de experiências de forma que, por vezes, aparentam ser inatas é o conceito de habitus, explorado por Bourdieu (2004). “Conjunto de disposições duráveis e transponíveis”, segundo o qual o indivíduo regula suas práticas, pensamentos e percepções, o habitus é referência para o desempenho de ações e motivações, inclusive no que diz respeito à capacidade criadora. Definido como “conhecimento adquirido” e “um capital”, o conceito é remetido pelo autor diretamente às atitudes corporais, ao dizer que “a noção [de habitus] serve para referir o funcionamento sistemático do corpo socializado” (2004:62). No caso analisado, a temática da corporalidade leva em conta o fato de a adolescência ser um período de importantes transformações corporais e de a prática do boxe, por sua vez, provocar, inevitavelmente, modificações e adaptações do corpo a essa atividade esportiva. Por outro lado, a questão do corpo no período da adolescência remete a uma dentre as várias imagens de juventude67 com as quais convivemos, ou seja, a de valorização extrema da saúde, da aparência, através do culto ao corpo. No caso do Brasil e do Rio de Janeiro, em especial, a grande quantidade de academias de ginástica e de diversos outros tipos de atividades físicas reforçam esta imagem de beleza associada à determinada fase da vida, assim como a mídia em geral. Neste sentido, o 67 Novaes, 1998. 115 corpo se torna um veículo simbólico importante de expressão e comunicação de significados na vida cotidiana. De acordo com este raciocínio, PAIS (1993:61) observa que os significados culturais são criados por meio de símbolos e, chama atenção para a fase biológica do desenvolvimento corporal como um momento singular de construção de identidade para o jovem: Em termos de ciclo de vida [a juventude] implica um momento de construção de si e do mundo, no qual o recurso, investimento e exploração do corpo humano tem muita relevância subjetiva. Ao ser convocado como suporte da construção do self, enquanto espaço-fronteira de definição de si próprio e de reconhecimento da idiossincrasia perante o outro, concede ao jovem um sentido de individualidade e o reconhecimento social como pessoa autônoma que poucos suportes identitários proporcionam. (Pais & Cabral – orgs.: 2003) A partir da idéia do boxe como uma prática corporal simbólica que carrega significados, buscou-se perceber, neste trabalho, os significados desta prática esportiva para os lutadores da academia LPP, através da compreensão do uso que estes jovens fazem do corpo como meio de representação social. Para caracterizar o encontro - tema central deste estudo que também pressupõe contrastes - entre experiências no âmbito desta academia de boxe, apresentamos descrições de sensações durante a prática deste esporte por parte do ex-lutador, extreinador e fundador do projeto. A idéia de que a prática deste esporte estimula a produção de adrenalina no corpo humano foi enfocada pelo coordenador da LPP, em sua entrevista: Boxe é uma coisa que não tem muito sentido para quem nunca foi lá e lutou, sentiu, deu um golpe na cara e levou um golpe na cara. É uma coisa que entra no sangue e só quando você tem um amor pelo esporte vai entender. A gente vicia nessa coisa. A adrenalina sobe muito na hora que se está lutando e treinando e ficamos muito acostumados com aquela adrenalina. E você está também se testando. Para analisar sensações durante a prática de boxe, sob perspectivas de jovens lutadores, lançaremos mão do conceito de mediação apresentado a seguir. 116 4.1 O corpo como mediador nas relações sociais Nas narrativas dos jovens participantes da pesquisa, alguns elementos indicam que o corpo desempenha uma função de mediação nas relações sociais no que diz respeito à academia de boxe. Das amizades construídas entre os pares “em cima do ringue”, até uma dimensão maior de interação do praticante de boxe com a “comunidade”, o corpo do lutador de boxe assume uma função simbólica que repercute nas relações sociais, seja como instrumento de obtenção de vitórias - as quais adquirem significados para além dos ringues, como veremos adiante - ou de descoberta de forças e fragilidades, permitindo maior possibilidade de auto-conhecimento. a) Corpo no boxe e auto-conhecimento A simbologia do corpo para os jovens entrevistados se expressa através de representações de si e remete a assuntos como diferenças entre classes sociais. Nas falas sobre o tema, a dimensão corporal se associa às idéias de força e poder, porém, também à descoberta de fragilidades e medos. Se por um lado, o boxe traz a consciência de que “você não é de ferro”, como afirmou um lutador que participou de um dos grupos focais, por outro, serve “para manter a força”. A seguir, algumas narrativas relativas às noções de força e fragilidade: Corpo forte - “Tá com maior carcação, malhando, tomando bomba energética”. - “Eu faço boxe, para manter a minha força bem, corporalmente e mentalmente, e praticar um esporte. - “Eu gosto do treino, porque dá um preparo físico melhor...” - “Antigamente, quando o Eduardo chegava, não levantava a camisa por nada; hoje em dia fica tirando a maior onda, levantando a camisa...” Corpo frágil - “Tem o medo psicológico da pessoa, quando eu ia lutar, dava um frio na barriga assim.” - “...quando você sobe no ringue, você tem medo de se machucar e de machucar a outra pessoa,(...) sei lá tirar sangue” 117 - “Um amigo passou mal no treino. A pressão dele baixou, ficou branco lá. Ele falou: ‘Não tô vendo mais nada, minha vista escureceu’. Aí, eu botei ele lá sentado. Deram água, passou um tempinho, ele foi para casa. (...) Depois falou; ‘Nunca mais eu vou pro treino sem comer nada’.” No que se refere ainda a um plano identitário, duas adolescentes participantes do treino feminino, notaram mudanças de comportamento depois que passaram a freqüentar a academia; mudanças também referentes à atitude corporal: “Não é porque a gente é menina que nós somos mais comportadas; eu cheguei lá [na academia], comecei a ter mais comportamento, a conversar mais com as pessoas coisa que eu não fazia, eu tinha mais era aquele negócio de socar a cara.” “Eu também era barraqueira, eu queria arrumar confusão com todo mundo, não podia olhar para a minha cara que eu perguntava logo ‘o que foi, tá olhando o quê? ’. Eu era um nojo, hoje eu estou mais calma.” b) Corpo no boxe e relações sociais As relações sociais, aos poucos, começam a se estabelecer ou sofrem modificações no espaço da academia, muitas vezes durante a interação corporal. Um dos desdobramentos desta forma de interação, no caso estudado, são as relações de cumplicidade construídas entre lutadores, como no caso de Rivan e Deco, que, embora vizinhos, tiveram seus primeiros contatos “fazendo luva” e tornaram-se amigos. Me amarrava em fazer luva com o Deco, porque eu fecho com ele e pensava ‘não vou deixar ele me bater não’ aí ele pensava que não ia me deixar bater não. Ficava aquela disputa: eu dava soco, ele dava risada, eu ficava fazendo careta pra ele e o treinador nem se ligava, o Deco já vinha cheio de ódio pra me bater também, quer dizer, o bagulho morria ali; quando saía de lá tava tranquilão. 118 Além das amizades, também houve casos relatados de rivalidades, como descreve Leandro: “Devagarzinho fui fazendo luva com ele, apanhando, batendo, aí foi subindo à cabeça”. Uma dessas situações culminou com um pedido para não treinar com determinada pessoa, quando a mediação corporal não resultou em uma boa convivência fora do ringue: Subi no ringue com meu irmão e vi que não dava certo: os dois eram nervosos, moravam na mesma casa, não ia ficar maneiro. Se ele me der um soco, sei que vou ficar bolado, quando chegar em casa, vou revidar. Não vou fazer luva com ele. Desenrolei na academia: ‘não vou fazer mais luva com meu irmão, nós não nos damos bem nesse bagulho’, já cortaram de nós fazermos luva. Outro aspecto, o da percepção de diferenças de classe em relação à prática de boxe, também remeteu à questão do corpo nas falas dos jovens. Entre os participantes do grupo focal que reuniu alunos novatos da academia, um ponto consensual foi a idéia de que os jovens de classes sociais mais altas não costumam praticar boxe, pois não se sujeitam a “machucar” o corpo em uma luta “de verdade” como o boxe: “Esse pessoal da classe mais alta já pensa, ‘vou ficar machucando meu corpo’?”. Para os lutadores da LPP, o boxe é uma luta nobre, enquanto a luta livre e o jiu-jitsu são apenas meios encontrados pelos “playboys” para “dar uma de brigão” e afirmar uma imagem de virilidade e força. A fala de Moacir, “Playboy quer dar uma de brigão pra dizer que é forte”, foi complementada por outros jovens: “Playboy, quer pegar o corpo pra dizer que é forte” e ainda “Eles querem ficar bem fortes pra aparecer nas boates.” Na mesma discussão, outro ponto consensual foi quanto à frase “É muito difícil um lutador de boxe ter nascido em berço de ouro”, retirada de uma das entrevistas individuais com jovens da academia. Para os cinco participantes do grupo, quem tem uma “condição melhor”, não escolhe o boxe: “Quem tem condição de ter dinheiro, vai fazer o quê? Vai virar um advogado, vai virar um doutor, não vai querer pagar uma academia pra se profissionalizar”, resumiu um dos adolescentes. Para eles, quem tem mais dinheiro apenas treina, não se sujeita a competir. É importante ressaltar que diversos fatores estão sempre em conexão com a questão da corporalidade, levando em conta o fato de o boxe se constituir em um esporte de confronto eminentemente corporal, o que torna ainda mais desafiante, inclusive, a sua análise. A lógica aqui privilegiada é a lógica de abordagem e associação dos temas feita pelos jovens. Apenas 119 para facilitar a sistematização dos dados empíricos, optou-se por tratar de algumas questões que também remetem ao corpo, como a descrição mais detalhada de competições, junto à percepção destes momentos pelos lutadores, incluídos na última parte deste estudo. c) Sensações Sensações experimentadas durante momentos de prática do boxe foram relatadas no trabalho com os dois grupos focais, em entrevistas abertas com alunos da academia de perfis variados e observadas durante o período de campo (entre 2001 e 2005, com períodos de interrupção). A análise destas sensações corporais permitiu conhecer alguns motivos que levam à permanência ou à desistência da prática de boxe e, com isso, enfatizaram a percepção de que o corpo se torna um elemento importante na mediação das relações sociais dentro deste contexto. Dificuldades e superações de limites no nível físico se alternam nos treinos. Em alguns casos, evidencia-se a falta de familiaridade com uma atividade específica, que requer disciplina e regularidade, como demonstra um trecho da história de vida de Rivan, em que narra seus primeiros treinos de boxe: Comecei a treinar naquele migué, eles mandavam fazer os bagulhos, eu fazia metade, faltava aula, bebia água, sempre fui molenga. O tempo foi passando e comecei a subir no ringue, via os moleques subindo, tudo fazendo luva, falei: ‘também quero fazer; os moleque fazem e não são diferentes de mim, por que não vou fazer?’ Aí comecei a me dedicar mais. Subi pro ringue a primeira vez, tomei o maior socão, estourou o meu nariz, falei ‘vou parar de treinar, nem subi no ringue direito e quase quebrei o nariz’. Medem-se forças no ringue, mas também fora dele. O bom desempenho dos companheiros de treino despertava a vontade de buscar equiparar-se ao oponente na prática de luva, ou pelo menos “tirar o prejuízo”, mas também se tornava motivo para querer “aparecer” mais do que outros. O mesmo lutador acrescenta: ‘Agora que eu tomei um soco, vou tirar meu prejuízo pelo menos’. Aí subi no ringue de novo, já com outro moleque que me bateu mais ainda. Comecei a tomar raiva. Às vezes ia uma reportagem ou outra, os moleques sempre apareciam. ‘Fulano de tal, tá neurótico, batendo pra c...’, eu só escutava o comentário. E pensava: ‘Já tô o maior tempão, com um mês e tal, não faço nada. Ah não! Vou começar a treinar sério’. Não 120 perdi um treino, comecei a ir em (sic) psicólogo, em tudo. Na moral, dois prejuízos eu já tinha ganhado! Entre as sensações relatadas pelos jovens durante a rotina do boxe (em treinos e em competições), o medo e a dor se sobressaem em vários casos, como se percebe na afirmação de uma jovem: “... quando você sobe no ringue, você tem medo de se machucar e de machucar a outra pessoa, sei lá, tirar sangue”. Outro jovem, que já participara de muitas competições, consegue relativizar esta sensação, dizendo que o medo depende do desenrolar da luta: “Depois que você tá no ringue, conforme é a luta, o medo vai embora ou tu fica com mais medo ainda ...”. Encontrar formas de lidar com essa sensação é fundamental para prosseguir na prática do boxe. Enquanto, para alguns, o medo paralisa - “O que vocês fazem com esse medo? Pára tudo”, - para outros, transforma-se em estimulo para reação e auto-superação: “Você vai estar lá em cima, eu vou estar te batendo; você não vai querer ficar parada, você vai querer também reagir, vai querer me bater.” Aprender a atacar (ou “bater”) como forma de se defender é um passo que, embora pareça óbvio no aprendizado de uma luta, é experimentado de formas diferentes, pois, na concepção de outro jovem, “Tem muitas vezes que você não é acostumado a tomar porrada e tal, aí toma um soco e pensa: “puxa machucou”, e já desiste. Aprender a superar o medo é também fruto de um aprendizado, como é possível notar na fala de uma jovem lutadora: No dia que o treinador levou uma outra garota da academia dele lá na nossa, eu fiquei no maior medo de fazer luva com ela. Mas agora eu faço com qualquer pessoa, se eu tiver apanhando ou batendo, porque ela me batendo, eu me defendo e bato também. Para quem consegue ultrapassar a barreira do medo de subir no ringue, segue-se o desafio de saber lidar com a dor. Ao descrever sua primeira luta, Joel ressaltou: Eu fui lutar e tava cheio de medo; ia no ônibus, mas pensando: ‘caramba, mané, essa luta aí, é a primeira vez que eu vou lutar’. Fomos lá. O moleque que ia lutar comigo era sinistro. Entrou em cena e eu tô lá parado, porque eu já estava cansado e pensando: ‘ainda vou lutar’. Aí fui só defendendo o moleque, batendo a vera, mas, puxa, eu tava com o sangue quente, até cortei a boca e não percebi. Ganhei a luta, mas só no outro dia, quando eu acordei, vi que tava tudo doendo. 121 As formas de lidar com a dor são vivenciadas de maneiras diferentes. Para alguns, o “sangue quente” pode anestesiar o impacto das pancadas no momento da luta, apesar de dizerem que “depois que o sangue esfriar, tu vai sentir”. De acordo com estes, acostumar-se à dor passa a ser inevitável. O sentimento de conformidade com esta sensação está presente: “Não dói, a porrada?” “Às vezes dói.” “Não vamos passar o verniz não, galera, fala sério!” “Me perguntaram se doía e eu falei que não, porque eu já estava acostumada.” “Conforme vai tomando soco, vai se acostumando.” Ao mesmo tempo, na fala de outro jovem, no lugar de se acostumar à dor, a reação é de enfrentamento, impulsionada pelo sentimento de raiva, como descrito na fala de Rivan. Nesse caso, o momento da dor provocada pelos golpes é quando a dicotomia corpo x mente se torna mais presente: Tomei um golpe na barriga, meu Deus, foi um desespero. Fiquei sem ar, já vim pra traz, com vontade de querer arriar, mas pensando ‘ não posso, não posso’. É o corpo contra a mente: ‘não vou descer não, vou ficar em pé’. Encostei na corda do canto do córner, fiquei lá, ele batendo, eu defendendo. Já saí meio avermelhado, depois fui ficando mais normal, botei uns jabs, já fui saindo, botei uns diretos, ele também já deu uma cambaleada pra traz, também sentiu, aí já descansei. Soou o gongo, eu falei ‘aleluia’, sentei no banquinho, fiquei relaxando e pensando ‘se pegar outro desse, f...’. Entre as conclusões que se pode tirar a partir das narrativas das sensações, está a de que os limites corporais são constantemente desafiados durante a prática do boxe. Para os lutadores da Maré, a percepção de corpo e mente traz ambigüidades: a separação entre ambas as dimensões aparece, na medida em que, a razão entra em choque com emoção, na busca da superação dos medos e da dor. Entretanto, estas mesmas dimensões também precisam estar integradas a serviço da técnica deste esporte, para tornar concreta a possibilidade de vitória nas competições. Finalmente, a consciência em relação às seqüelas que o esporte pode provocar, em longo prazo, também se fez presente entre os jovens: “Ainda mais quando fala do Mohamed Ali, que ficou em cadeira de rodas depois de todas as lutas dele ...”, lembrou um dos jovens. 122 Apesar de não ser consenso entre os lutadores entrevistados o fato de ter sido o boxe o próprio causador dos problemas que vieram a afastar o campeão dos ringues, os danos ao corpo são considerados um elemento que pode levar ao abandono da prática do esporte: “Isso é que faz diferença.” 4.2 Lutadores de “carne e osso” A seguir, apresentaremos alguns dos jovens que optaram por se dedicar ao boxe, modalidade esportiva que aprenderam a praticar na academia LPP. Como retratos instantâneos, os perfis descritos se baseiam na linguagem, na forma e nos aspectos acentuados pelos jovens nas narrativas de suas histórias de vida. Rivan e Deco: duas trajetórias de vida Rivan Bispo dos Santos O baiano Rivan chegou à Maré em 1995, quando tinha por volta de cinco anos de idade. Na época, os pais do adolescente já haviam fixado residência na Rubens Vaz, uma das favelas da Maré, em busca de “uma forma de melhorar a vida”. Ele, o irmão, a mãe e o pai vieram em um momento posterior a períodos de maior intensidade de migrações de estados do norte e nordeste do país para o Rio de Janeiro (décadas de 1960, 70 e 80) e não tinham parentes no lugar escolhido para viver. Aos dezesseis anos, Rivan Bispo dos Santos só tinha visto lutas de boxe pela televisão. O jovem foi convencido pelo irmão a assistir a alguns treinos do esporte que este começava a freqüentar. Sua atenção fora atraída por um cartaz afixado numa igreja próxima, anunciando uma nova atividade na favela: a prática de boxe. Naquela época, a impressão de Rivan sobre o esporte se cristalizava nas cenas de impacto da TV, então narradas por ele: “Só socão, neguinho desmaiava, perdia dente, isso não é pra mim não”. Apesar da resistência inicial, o jovem se inscreveu nos treinos da academia Luta Pela Paz, então freqüentadas por alguns de seus melhores amigos. Segundo seus relatos, a adaptação à rotina pesada dos exercícios físicos não foi fácil, nem as primeiras vezes em que subiu no ringue e saiu com o nariz sangrando. Mas isso não chegou a abalar a força de vontade que aos poucos foi transformando Rivan em espelho, ou “exemplo”, 123 como afirmou em sua entrevista, para outros freqüentadores da academia e meninos da vizinhança. Além de acumular um número expressivo de vitórias (nove) entre os lutadores da LPP, aos 16 anos, o jovem cursava o primeiro ano do ensino médio e trabalhava como auxiliar de escritório. Em 2003, decidiu sair da LPP alegando não ter tempo suficiente para trabalhar e se dedicar ao esporte; logo após, voltou a treinar e competir, porém, por outras academias. No dia 4 de agosto de 2004 - poucos dias depois de lutar mais uma vez “em casa” (no Clube São Cristóvão) e ver a torcida invadir o ringue para comemorar mais uma de suas vitórias, carregando a faixa da Luta Pela Paz (apesar de não estar mais ligado à academia) - Rivan morreu, junto com o irmão, Renivaldo, em um conflito com a polícia sobre o qual pouco se fala abertamente dentro e fora do campo de pesquisa. Segundo reportagem do jornal O Globo que noticiou o fato, sob o título “PM mata quatro bandidos que furaram blitz”, os irmãos estavam em um carro roubado que não parou em uma barreira policial na Avenida Brasil; houve troca de tiros, o veículo bateu em Bonsucesso, na altura da entrada do Parque União e todos os ocupantes morreram. Já segundo a nota intitulada “Boxe está de luto” veiculada em um periódico do meio do boxe carioca (o Jornal do Boxe, editado pela Federação de Boxe do Estado do Rio de Janeiro), “o jovem peso-leve Rivan Bispo dos Santos”, e seu irmão, foram “vítimas da violência urbana”. Ainda de acordo com este periódico, Rivan vinha se destacando por suas vitórias. No enterro, em um cemitério na Ilha do Governador, além dos pais e de poucos parentes, estiveram presentes companheiros de treinos e lutas, seus ex-treinadores e participantes da equipe da academia Luta Pela Paz. Uma luva de boxe foi colocada sobre cada um dos caixões enquanto um de seus ex-treinadores pronunciava palavras de despedida. Posteriormente, as mesmas luvas foram penduradas em academias onde Rivan treinou após deixar a LPP. Deco Deco entrou para a academia de boxe Luta Pela Paz logo que começaram os treinos no fim de 1999. Com 16 anos em 2001, já tinha dois filhos, os dois com um ano de idade e “de mães diferentes”, como relatou. Mora na Nova Holanda, próximo à atual sede da academia de boxe, com a mãe e a esposa Joana. (mãe de um dos filhos), que também ingressou na Luta Pela Paz quando se iniciaram os treinos femininos há cerca de dois anos. Joana se tornou rapidamente uma das melhores lutadoras da academia. 124 O pai de Deco foi preso quando ele tinha três anos de idade e cumpre pena por assalto no complexo penal de Bangu até hoje. Depois de seis meses inscrito na academia de boxe, Deco foi atropelado após participar de uma tentativa de assalto. Um ferimento profundo na cabeça o deixou inconsciente e precisou passar por uma cirurgia, afastando-se dos treinos. Durante o período de recuperação, ele ia aos treinos apenas para observar, já que seu estado clínico não permitia a prática do boxe. Colocava uma cadeira em frente ao ringue para ver seus amigos fazendo luva. Alguns meses depois, foi reincorporado à academia, participando de todas as suas atividades, competições, aula de cidadania etc, e passou a ser ‘capacitado’ para se apresentar em palestras como porta-voz da academia. Voltou a estudar (ainda não completou o ensino médio) e trabalhava até recentemente como ajudante de carpintaria por indicação do projeto Luta Pela Paz. Participou de várias lutas promovidas pela academia em conjunto com a Federação de Boxe do Estado do Rio de Janeiro (FEBERJ), na categoria peso leve (até 60 kg), acumulando vitórias e derrotas em seu currículo de lutas. Foi despedido do emprego na área de carpintaria, abandonou o projeto LPP e viveu um período de descontrole emocional. Em seguida, retornou ao Projeto, aos treinos de boxe e ao estudo supletivo. Após ser derrotado na última luta em que participou, em 2004, abandonou os treinos mais uma vez, porém passou a trabalhar no Projeto como “educador social”, acompanhando o desempenho de crianças inscritas nas aulas de capoeira e luta livre, buscando estimular o envolvimento de seus familiares nas atividades dos filhos, e faz parte, ainda, do Conselho Jovem criado para discutir os rumos do Projeto LPP. Pequenos perfis de jovens lutadores José, 20 anos: O jovem é um dos mais antigos na Luta Pela Paz, lugar referido por ele como “o projeto”. Começou a freqüentá-lo há cerca de três anos e atualmente não freqüenta mais os treinos, apesar de se considerar ainda vinculado ao projeto, participando de outras atividades como as aulas de cidadania. Cursa o primeiro ano do ensino médio e está desempregado. Sua prioridade é encontrar um trabalho para sustentar a primeira filha, que nasceu em meados de 2005. José nasceu na casa da mãe, na Nova Holanda. “Praticamente minha vida se resume aqui, no Complexo da Maré. Eu nasci onde atualmente eu tô morando, na casa da minha tia, onde agora é casa da minha mãe.”, define. Quando indagado sobre suas origens, limita-se a dizer que a mãe trabalha como 125 “auxiliar de serviços gerais”, é pernambucana e veio para o Rio por intermédio da irmã, tia de José, que já morava na Maré. Não conhece o pai, de quem a mãe “nunca falou”, mas diz não ter curiosidade de saber quem é a figura paterna. Não conheço meu pai, minha mãe nunca me falou quem era o meu pai. Eu considero minha mãe como meu pai e minha mãe... não sei como era a vida dela antes de conhecer o meu pai; ela falou que o pai do meu irmão é um pai diferente e de uma outra irmã minha, que chegou logo no começo da história e foi uma das primeiras filhas dela; minha mãe não tinha condição de criar e deixou com a patroa dela. (...) Anderson, 17 anos: O carioca Anderson, também mora na Maré desde que nasceu. Paraibana, sua mãe, Marlene, chegou ao Rio de Janeiro com dez anos de idade, trazida pelo irmão, que trabalhava como porteiro em um prédio na zona sul, para cuidar das filhas pequenas dele; aos onze anos, Marlene já tinha se tornado babá e trabalhava para outras famílias. Aos 15 anos, engravidou pela primeira vez; Leonardo (irmão mais velho de Anderson) nasceu na década de 1980. O pai do menino morreu atropelado antes do nascimento do bebê. Já trabalhando “em casa de família” Marlene, conheceu o pai de Anderson, eletricista carioca, que freqüentava a mesma igreja evangélica; casou-se com ele e foram morar na Maré, no Parque Rubens Vaz, no início da década de 1990, em uma casa que ganharam de presente dos pais do marido. Mudaram-se para o Parque União e nasceram mais três filhos: Anderson e um casal de irmãos menores. Anderson entrou para a academia de boxe LPP em 2003 e está no primeiro ano do ensino médio. Participa de outras atividades da ONG Viva Rio como voluntário e, ainda, de encontros e redes de jovens de diferentes regiões do país que usam a Internet como ferramenta para se comunicar, interagir, trocar informações sobre direitos e leis, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, e conhecer outros modos de vida. Ricardo, 17 anos: Ricardo entrou “no projeto” há cerca de um ano. Mora na Nova Holanda, em uma casa geminada, com os avós paternos, tios, sobrinhos e quatro de cinco irmãos por parte de mãe. Nasceu no Rio, assim como o pai e a mãe. Não vê o pai desde os sete anos e a mãe mora no Méier. Ainda criança, fugiu de casa: “Quando eu tinha uns 12 anos, minha mãe falou que se eu não arranjasse uma escola ou um trabalho, alguma coisa pra 126 fazer, eu tinha que ralar de casa. Ela ficava brigando com meu pai direto, me batia muito, fugi de casa pra não ficar apanhando, fui pela minha vontade mesmo”. Quando morou na rua, conheceu um fotógrafo lambe-lambe que passou a ajudá-lo; ficou fascinado com a quantidade infinita de retratos 3x4 que via sair da “capa preta”. Foi internado no Instituto Padre Severino dos 13 aos 14 anos, por praticar furtos. De lá, foi para outros abrigos, depois voltou a morar com os avós na Maré. Está cursando a 5ª série do ensino fundamental e trabalha na academia de boxe na área de limpeza. Já participou do tráfico “pra fortalecer em casa”, consumia drogas e, hoje, diz não estar mais envolvido. “Depois que entrei no projeto minha vida mudou mesmo”, afirma. “Foi mais por causa dos amigos que tinha lá. Com as aulas de cidadania passei a gostar mais ainda, sempre tinha uma sabedoria pra cada uma das pessoas”, acrescenta. A pequena rua onde mora está localizada junto à Linha Vermelha, próximo à fronteiras da NH (área do CV) com Baixa do Sapateiro (TC). Por ser um ponto de contato entre rivais, conseqüentemente, trata-se de uma área de conflito em potencial, porém, de acordo com a explicação do jovem, os tiroteios não são freqüentes. Seu sonho é se tornar fotógrafo e se pudesse escolher um assunto para se dedicar neste ofício, escolheria “tirar foto de paisagem”. Cadu, 32 anos: Morador da Nova Holanda desde a adolescência, Cadu desenvolveu laços afetivos com a “comunidade”, onde se tornou uma figura conhecida. Ex-residente da zona central da cidade, não gostava da Maré quando teve que se mudar para lá. A participação de Cadu na Luta Pela Paz tem uma particularidade: o boxe é um dos esportes que passou a praticar alguns anos após ter sido atingido por um tiro, perdendo os movimentos das pernas. Hoje percorre diversas localidades da Maré em sua cadeira de rodas, portando uma câmera fotográfica da qual raramente se separa. Participou de cursos de fotografia na Maré, tornou-se fotógrafo e pratica diferentes modalidades esportivas na Vila Olímpica. Juca, 16 anos: Irmão de Rivan, morava com a família e foi um dos primeiros a entrar para o boxe. Convenceu também o irmão a ingressar nos treinos, mas ele mesmo não manteve um ritmo regular nas aulas: abandonou a academia em várias ocasiões, porém, 127 conseguiu manter a forma física para participar de algumas disputas na categoria médioligeiro (com 71kg). Chegou à marca de quatro vitórias e duas derrotas no ano passado. Participou de um programa de estágio remunerado em uma empresa estrangeira, com sede no Brasil, trabalhando como entregador de correspondência, através de uma parceria em vigor entre esta empresa e o projeto Luta Pela Paz. Permaneceu na academia após a saída de Rivan, em 2003, vencendo algumas lutas presenciadas por seus pais, torcedores assíduos dos filhos. Morreu junto com o irmão, em circunstâncias não esclarecidas, em agosto de 2004. 128 Capítulo 5 SOCIABILIDADE E SIGNIFICADOS DA PRÁTICA DE BOXE A compreensão de pressupostos teóricos elaborados por alguns autores - considerando, em especial, Georg Simmel e Norbert Elias - sobre a idéia de sociabilidade na sociedade contemporânea pode trazer contribuições para a reflexão acerca dos sentidos assumidos pela prática de boxe e pelas experiências vividas no projeto luta Pela Paz sob a perspectiva dos lutadores da Maré. Como lugar onde se concretizam encontros entre práticas e discursos analisados no espectro desta pesquisa, a academia pode ser considerada um espaço de sociabilidade, com regras e uma dinâmica própria de funcionamento que foi se estabelecendo, desde a fundação do centro esportivo em 2000, a partir da lógica de convivência entre jovens, tendo como foco central o aprendizado do boxe. 5.1 Uma academia de boxe como espaço de sociabilidade No discurso dos praticantes de boxe, a academia é vista como lugar onde se constroem relações sociais e afetivas. Como demonstram algumas falas, quando se rompem, os laços deixam saudade. Evidência ainda da intensidade destas relações criadas a partir da academia está no relato do jovem (ao interpretar uma fotografia reproduzida no capítulo 3) que identifica como parte de suas “raízes”, antigas atividades no local que não existem mais, como o hábito de fazer um minuto de silencio antes do treino. Além da dimensão meramente esportiva das atividades oferecidas, a academia se tornou ponto de encontro entre garotos e garotas inscritos nos treinos, ex-alunos, jovens que se configuram como uma espécie de público flutuante (alternando períodos de ausências e presenças nas aulas), curiosos que chegam para assistir e freqüentadores de outras atividades, como musculação e capoeira. Não raro, acontecimentos que começam na rua se estendem até o interior da academia, onde ocorrem desdobramentos. Há exemplos, como as paqueras que, tanto podem vir da rua e se transformar em namoro durante a convivência dos treinos, quanto fazer o caminho inverso, iniciando-se na 129 academia e ganhando continuidade fora dela. “Já se arruma namorada na academia; lá já saiu namoro, noivado e até casamento”, comentou Deco, um dos jovens mais antigos no projeto, que passou a trabalhar em sua equipe na função de “agente de integração”. O ambiente dos treinos se transformou em lugar de convívio intenso particularmente entre jovens residentes em três localidades específicas da Maré, a saber, Parque União (onde a academia manteve sua sede durante os três primeiros anos de funcionamento), Nova Holanda (onde está situada atualmente) e Major Rubens Vaz. As três localidades vizinhas possuem alguns pontos em comum, entre eles, o fato de estarem situadas em áreas de domínio da mesma facção criminosa, que detém o controle das atividades ligadas ao comércio de drogas em determinadas áreas da Maré; portanto essas favelas estão sob as ordens do mesmo “cara”68, ou seja, a autoridade maior nestes “territórios” cujo poder conquistado e mantido pelo uso da força garante o controle das “bocas de fumo” e, conseqüentemente, a administração do seu lucro. Como resume um dos jovens locais, “os juízes lá é os caras”, responsáveis pela vigência da “regra da comunidade”. Tais elementos fazem parte dos limites constitutivos da rede de sociabilidade composta por freqüentadores dos treinos; limites estes pré-existentes à chegada da academia e presentes nas rotinas de vida dos moradores de algumas regiões da cidade. O seu efeito prático se traduz no fato de a grande maioria do seu público se restringir a jovens moradores de áreas submetidas ao domínio dos mesmos grupos de criminosos. Esta situação acontece a despeito de os treinos serem abertos à participação da população jovem em geral - como demonstra a afirmação: “O projeto é aberto a todos os jovens da comunidade que procuram se matricular”, retirada do documento sobre a metodologia de trabalho da LPP. Como foi possível constatar durante o período de observação de campo, a restrição dos trajetos de circulação é um elemento que caracteriza o cotidiano dos moradores dos lugares que fazem parte do espectro da pesquisa.69 Mesmo sem “fechar com os caras” (ou seja, ser ligado a um dos grupos de traficantes) o medo de sofrer retaliações por passar por território de uma “facção rival” está presente. 68 O cara, ou o dono, ocupa o posto mais alto na hierarquia da estrutura do narcotráfico local (Dowdney, 2003). 69 Outros elementos sobre esta temática “cruzamento de fronteiras”, foram abordados no item O não ir e o não vir: desafios do cruzamento de fronteiras, no capítulo 2 deste trabalho. 130 Simmel caracteriza sociabilidade como a “forma-jogo da associação”. De acordo com este autor, o conceito de sociabilidade é definido da seguinte forma: A sociabilidade é própria de um mundo artificial, composto de indivíduos que não têm outro desejo senão o de criar uma pura interação com os demais. Não se entra na sociabilidade como homens completos, mas como homens despojados de fins, metas e intenções. Na sociedade primitiva, os homens não tinham que livrar-se de tantas pretensões objetivas. A forma pareceria mais clara em contraste com a existência pessoal. Como abstração da associação através da arte e do jogo, a sociabilidade é a classe mais pura de interação. (Martindale, D.A. La teoria sociológica. Madrid, Aguilar,1971. p.282)70 Se considerarmos essa linha de raciocínio, é possível perceber que a sociabilidade se traduz em formas de interação entre indivíduos onde não há intencionalidades para além do encontro entre eles por si só. A arte e o jogo, portanto, se colocam como exemplos privilegiados no âmbito dessa teoria. Nestes casos, ambos reproduzem formas “originalmente desenvolvidas pela realidade da vida e criaram esferas que preservam sua autonomia em face destas realidades”. Ou seja, estão presentes em um “mundo artificial”, sentimentos, sensações, desejos e até atitudes análogas às experimentadas em situações cotidianas, sejam elas agradáveis ou não. Neste sentido, o mesmo autor acrescenta: “Quando esvaziados de vida [atividades como arte e jogo], tornam-se um artifício e um ‘jogo vazio’. No entanto, sua importância e sua verdadeira natureza derivam dessa mudança fundamental, através do que as formas engendradas pelos materiais da vida separam-se deles e tornam-se, elas mesmas, a finalidade e a matéria de sua própria existência”. (SIMMEL, 1983: 168). A existência de regras conhecidas e acatadas por quem participa desse tipo de interação e de um sentido simbólico que marca o distanciamento entre emoções genuinamente provocadas e artificialmente produzidas também integram o conjunto de aspectos que caracterizam a sociabilidade. Como assinala ALVES, A. (2004), em um estudo que aborda o contexto de bailes de dança de salão na cidade do Rio de Janeiro como espaços de sociabilidade: “Essas regras funcionam como guias das relações individuais nesses espaços, permitem às pessoas saberem o que se espera delas. E representam, de forma estilizada, um padrão de comportamento vigente na estrutura social mais abrangente, na própria vida cotidiana” (2004:50). No caso da academia Luta 70 Apud Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. 131 Pela Paz, o não envolvimento em brigas - no sentido de confronto físico - é uma regra básica de conduta, a qual pressupõe não aplicar o aprendizado técnico do boxe fora do ambiente de treinos e de competições esportivas, assim como não trazer brigas para cima do ringue. A grande maioria dos jovens cita este preceito, presente em praticamente todas as falas analisadas sobre a questão das regras, como mostram alguns exemplos a seguir: “Regra da academia: a gente não pode brigar porque, se brigar, leva suspensão.” “Teve a luta. Assim que autorizou, já saiu batendo, aí o treinador falou: ‘isso aqui é boxe, não é briga’ e ele foi eliminado; saiu e tirou ele.” “(...) O projeto [Luta Pela Paz] não ensina essas coisas; ensina uma defesa, mas não pra ser usada como briga de rua, é uma coisa para se defender e para competir.” “Regras: não pode brigar na rua, ser pontual, tem varias regras que tem que ser respeitadas. Se caso um jovem da academia vai brigar lá fora, ele pode ficar expulso da academia ou pode ficar punido uns dois meses sem treinar ou mais tempo também.” Como afirmou um dos jovens já ‘veteranos’ da academia, as demais normas de conduta foram criadas pelos próprios participantes dos treinos. “Quando começou a academia, não tinha regra nenhuma e foi tendo problema; aí nós mesmos fomos vendo que tinha que fazer alguma coisa pra mudar isso (...)”. Além disso, os próprios alunos também se sentem responsáveis pelo cumprimento destas regras. De acordo com Simmel (1983), “Todo espaço de sociabilidade é permeado por regras de conduta”. No salão de treino de boxe, estão expostas as seguintes normas: - respeitar o próximo; - ser disciplinado; - ser responsável; - treinar com seriedade; - ter responsabilidade com o material; - ter humildade; - ser honesto; - ser pacífico; - receber pessoas de fora da academia com respeito e gentileza. 132 A imagem - Sala de treino da antiga sede do projeto LPP, no Parque União. Regras de conduta criadas com a participação dos jovens freqüentadores dos treinos de boxe. Data: agosto / 2002. Narrativa do jovem sobre a fotografia (outros jovens participantes do grupo focal e a coordenadora da atividade fazem interferências sobre os assuntos comentados): Eu escolhi essa foto por que as normas da academia estão aqui. Aí eu pensei assim: teve uma situação que foi quando eu comecei a treinar; era para eu brigar com um moleque, aí eu me lembrei de uma regra que tem aqui, que é: ‘Ser passivo fora do ringue’. Aí o que eu fiz: deixei ele falar, ele até achou que eu estava debochando da cara dele, botei a mão no bolso e fiquei olhando para a cara dele. Eu escolhi essa foto porque ela tocou nesse ponto; ajudou com essas normas. Como a gente é unido, de vez em quando fica brincando assim, de dar um soco... Aí o garoto ficou do lado e chegou dizendo: ‘Esses moleques acham que, porque estão fazendo boxe, são os tais’. Aí eu me lembrei: se a regra no boxe fala para eu ser passivo, vou ser passivo. Ainda mais, que eu sou da igreja, ainda tenho que ser mais passivo ainda. Aí deixei ele falar sozinho. 133 Outro jovem: Acho engraçado, se você não enfrentar, falar que está fazendo boxe, é molenga. Se você enfrentar, é só porque está fazendo boxe. É sempre uma desculpa que arranjam. Coordenadora: Agora, deve ser dureza também, porque vocês ficam sem saber o que fazer com a raiva, não é? E a raiva faz parte da vida... Outro jovem: Chega um momento que não tem condição não. Eu sou assim: a pessoa pode me xingar; agora, encostou a mão em mim, já era. Análise da narrativa da imagem: O jovem participante do grupo focal dos alunos mais novos da LPP, que escolheu a imagem da inscrição das regras de conduta da academia, não estava presente quando foram criadas (no período inicial de funcionamento da Luta Pela Paz). Entre todas os nove itens, o único citado ‘Ser passivo fora do ringue’ – remete a situações que extrapolam os limites da academia. Independente da veracidade do caso relatado, a dúvida entre brigar ou não parece fazer parte das considerações do jovem. No meio social a prática do boxe aparece ora como prática valorizada, ora como motivo de provocação para a briga. A narrativa é complementada pela fala de outro jovem sobre a questão da raiva: a reação de revidar a tolerância a violência física é colocada como a única possível e inevitável. Para nos atermos ao caso aqui estudado, a conexão entre os pensamentos de Simmel e Elias pode ser feita a partir da concepção deste último sobre sociabilidade como um dos elementos constitutivos das atividades de lazer - entre as quais o esporte (ou o “desporto”) é incluído na categoria classificada como “mimética”71. A idéia de mímesis, nesse caso, relaciona-se à reprodução de sensações descoladas de situações da realidade - como o medo de ser massacrado pelo adversário em uma competição esportiva ou a idéia de catarse, na tese de Aristóteles, segundo a qual entrar em contato com sentimentos através de formas de representação dos mesmos traz a possibilidade de lidar com eles, aprender a moderá-los, como no princípio do antídoto para a medicina. A possibilidade de suspensão da relação entre sensações efetivamente experimentadas (ganhar, perder, vingar-se, sentir-se poderoso ou frágil etc) e os fatos da vida comum que os trazem à existência é considerada pelos autores citados, no desenvolvimento de suas teorias. Para Elias, o lazer traz essa possibilidade de experimentar tensões e 71 Uma das esferas do conceito elaborado por Elias para explicar a idéia de ‘tempo livre’, as atividades miméticas são aquelas que possuem o caráter de lazer, ou seja, não relacionadas a formas de ganhar a vida, e caracterizadas pela possibilidade de expressar livremente as emoções, normalmente reprimidas em situações de não lazer (trabalho e outras formas de tempo livre, como administração da vida familiar etc). 134 sentimentos intensos, como o medo e a paixão, em toda a sua plenitude, reproduzidos em atividades como o teatro e os esportes, desvinculados de situações concretas de perigo sobre as quais não se pode exercer nenhum tipo de controle. Nas sociedades contemporâneas, onde se verificam movimentos de restrição da exteriorização de emoções, entusiasmos e excitações, Elias entende que as atividades de lazer desempenham uma função de libertação de sentimentos geralmente contidos ou expressos em situações de âmbito privado72. Em “A busca da excitação” (ELIAS, DUNNING, 1992), é proposta uma análise sociológica do “desporto” a partir de uma perspectiva histórica em que um crescente controle da “excitação individual” seria resultante de uma conjunção de fatores que vem constituindo o “processo civilizador” no ocidente a partir do século XVI. A gradual interiorização de mecanismos de controle social (antes realizados em esferas externas, coletivas) pelos indivíduos, seria uma característica marcante deste processo ainda em curso. “A organização social do controle da excitação individual, no sentido de conter excitações apaixonas em público, e até em privado, tornou-se mais forte, mais efetiva”, afirma, acrescentando que raramente se vê “homens e mulheres adultos agitarem-se em lágrimas e abandonarem-se às suas amargas tristezas”. No que diz respeito à esfera dos esportes, portanto, a busca por vivenciar livremente a tensão e não por atenuá-la é uma chave para entender a lógica de motivação para o envolvimento com este tipo de atividade. A questão do controle da violência e da força também se insere nesta discussão. Com o aumento do auto-controle individual, segundo Elias, “na Europa Ocidental, ocorreu, em termos de longa duração, um declínio quanto à tendência de as pessoas obterem prazer a partir do seu envolvimento direto em atos de violência e de os testemunharem.” (1992:332) O uso da violência foi, então, cada vez mais, transferido para situações onde poderia ser calculada e controlada. No caso especifico da Inglaterra, o uso da palavra na arena política substituiu paulatinamente guerras sangrentas que marcaram as tradicionais disputas entre nobres e puritanos. Instituiu-se o sistema parlamentarista, onde o êxito social “dependia da capacidade de lutar, não com punhais ou espadas, mas com o poder do 72 É preciso ressaltar que Elias faz questão de diferenciar a libertação de sentimentos auto-controlados da liberação de tensão, geralmente colocada como função de atividades de lazer pelo senso comum. Sobre este assunto, ele afirma: “De uma maneira simples ou complexa, a um nível baixo ou a nível elevado, as atividades de lazer proporcionam, por um breve tempo, a erupção de sentimentos de agradáveis fortes que, com freqüência, estão ausentes nas rotinas habituais da vida. A sua função não é simplesmente, como muitas vezes se pensa, uma libertação das tensões, mas a renovação dessa medida de tensão, que é um ingrediente essencial de saúde mental”. (Elias, 1992: 137-138) 135 argumento, a habilidade da persuasão, a arte do compromisso”. (1992:64) No mesmo contexto, a organização das práticas esportivas seguiu caminho semelhante, verificandose um declínio na tolerância à violência, que passou a ser reprimida através do estabelecimento de regras rígidas, amplas reformulações de antigas práticas como o boxe e da regulamentação das mesmas por entidades responsáveis pela manutenção deste controle. Observadas as devidas distâncias entre as sociedades brasileira e britânica, a questão do controle da violência está presente nas atividades esportivas em geral, apesar das formas absolutamente diversas de se exercer este controle em cada contexto cultural e em cada modalidade de esporte. Sobre os confrontos desportivos modernos, DUNNING (1992) afirma que aqueles que assumem o formato da representação de combates, como as lutas, trazem a violência para o centro da cena, tornando-se seu foco principal: Todos os desportos são, por natureza, competitivos e, por isso, possibilitam a emergência da agressão. Sob condições especificas, essa agressão pode transbordar em formas de violência manifesta que são contrárias às regras. Contudo, em alguns desportos - o rugby, o futebol e o boxe são exemplos -, a violência, na forma de ‘representação de luta’ ou de ‘confronto simulado’ entre dois indivíduos ou grupos, é um ingrediente central e legítimo”. (1992:394) A idéia de controle da violência também é acionada no discurso sobre luta entre os fundadores da academia: este conceito é apontado como foco do projeto Luta Pela Paz pelo diretor do Viva Rio, o antropólogo Rubem César Fernandes: “A idéia de dominar a violência por dentro, de disciplina, controlando a violência”. De forma resumida, a teoria de Elias leva a crer que as emoções tenham sofrido modificações na maneira como são expressadas ao longo da história, de modo a serem adaptadas a condições do meio social; por sua vez, a violência seria socialmente aprendida, levando em conta as diversas formas de conflito e de relações de poder existentes entre os grupos. Os aspectos teóricos aqui levantados podem ser úteis na medida em que auxiliam na reflexão do caso estudado. Como foi mencionado, um dado relacionado ao termo violência verificado nos grupos focais, é que esta expressão raramente apareceu durante as discussões. Já ‘bandido’, ‘policia’, ’arma’, ‘tiro’, ‘facção’ e ‘guerra’ são palavras muito presentes no vocabulário dos jovens quando os assuntos estimulados são 136 tiroteios e tráfico (ou “vida fácil”). Estes são indícios que enfatizam a idéia de violência como categoria construída socialmente. Como observa Cecchetto (2004:39), o tema da violência está longe de ser consensual seja nas análises dos cientistas sociais ou nas diversas áreas do conhecimento que se propõem a tratar do assunto. Sendo assim, a autora propõe que os significados do termo sejam investigados de acordo com contextos específicos: (..) parece mais adequado à análise contemporânea das violências, buscar captar, através dos exercícios relativizadores que a imaginação sociológica for capaz de alcançar, os sentidos e os valores que a “violência” recebe nas experiências dos diversos grupos sociais, reconhecendo singularidades, diferenças e especificidades que se apresentam nas diversas configurações sociais. A questão do controle do uso da força e da agressividade, no caso específico do boxe, também foi objeto de discussão nos grupos focais. A frase “Praticar boxe é uma forma de canalizar a agressividade” foi apresentada para estimular o debate, tendo como base trechos de textos de apresentação do projeto LPP, como: “O projeto canaliza a agressividade positivamente através do esporte”. 73 Na visão de alguns jovens, a afirmação faz sentido: Você vê o boxe como um esporte agressivo, mas quando tu ta dentro do boxe, cara, aí tu vê que não é isso; quando tu vai lutar tem as leis e tem as regras que não é para ser tão violento e tal; canalizar é assim, tu tá no momento de se concentrar, então se concentra e canaliza tuas forças dentro de tu mas para agredir de repente o saco, para até no esporte mesmo, na luta, aprender a pensar. Entretanto, o assunto também trouxe a associação com o fato de que, para a unanimidade dos participantes dos grupos focais, a motivação para a entrada no boxe foi agregar habilidades para “brigar melhor”: 73 Na elaboração do roteiro dos grupos focais, levou-se em conta o cuidado em não fazer associações entre termos que pudessem direcionar as falas. Este aspecto foi observado especialmente no que diz respeito aos termos violência e boxe. As análises aqui apresentadas se atém à forma como os assuntos foram abordados pelos participantes e à lógica de pensamento e encadeamento de idéias presente em suas narrativas. 137 Tem muitas pessoas que só entram na academia para aprender a brigar, ‘para bater naquele cara que me agrediu’ (...) canaliza a agressividade do cara: ao invés do cara bater em outras pessoas, bate no saco, faz luva e outras coisas assim. Jovens que permaneceram nos treinos por mais de um ano relataram que houve modificações neste pensamento, ao longo do processo da aprendizagem do boxe e do conhecimento das regras da academia. “Muitos jovens que entram com uma cabeça num ritmo de brigar (...) saem de lá [da academia de boxe] muito mudados, mais calmos.” A idéia de comunidade e boxe como instâncias independentes, separadas, no espaço social, aparece fortemente em uma das falas, do grupo de participantes antigos da academia, também a respeito das expectativas iniciais com a entrada no boxe: Antigamente, a comunidade entrava no boxe com a intenção de brigar; fazer boxe para arrumar briga na rua e saber se defender; mas, conforme vai passando o tempo, vai vendo que não é isso, que o projeto não ensina essas coisas; ensina uma defesa, mas não para ser usada como briga de rua, é para se defender e para competir. Por outro lado, outros jovens deixaram a academia por não estarem de acordo com a regra da proibição de briga na rua. Em outros casos, ainda, lutadores se envolveram em conflitos, usaram golpes do boxe “na rua”, foram suspensos, depois voltaram freqüentar os treinos. Como relatou um jovem, alguns lutadores tiveram que dar satisfações aos “donos” de uma das favelas, pois um dos companheiros havia aplicado um golpe em outro jovem na rua. Teve um da academia que agrediu o outro moleque no meio da rua. Chegou perto do moleque e pá!, jogou um direto. Foi suspenso da academia e nós fomos todos para o desenrolo com os caras do Parque União, que chamaram nós: ‘O que foi que fizeram com o moleque aí? Isso não é maneiro não. Vocês fazem boxe e fazem isso no nariz do moleque; é como se fosse nós, vagabundos, dando tiro por aí em vocês. Isso é maneiro?’, Aí nós: ‘Isso acontece’, tentando dialogar. 5.2 Luta no ringue x briga na rua Os termos luta e briga surgiram de forma recorrente no trabalho com os grupos focais e em muitas situações no campo de pesquisa, como nas competições e em dias de 138 treino de boxe. Portanto, mereceram destaque como categorias específicas de análise que exercem papel importante na lógica de pensamento dos jovens sobre a prática de boxe. a) Luta no ringue – O boxe como forma de obtenção de prestigio e distinção social “Luta na comunidade, meu Deus do céu! Na época foi um estouro, a sensação, todo mundo falando de boxe. Montaram o ringue lá na praça. Fui lá mais cedo, olhei e pensei: daqui a duas horas isso aqui vai tá cheio de gente e, em oito minutos, vou perder ou vou ganhar. Ia lutar nós três, os que tavam mais falados, mais guerreiros lá da academia, contra gente de fora. (...) A minha luta foi a última da noite, tava todo mundo lá aguardando, já gritando meu nome”. Rivan Bispo dos Santos, ex-lutador de boxe. Morador da Maré entre 1991 e 2004. As teorias apresentadas anteriormente apontam para a importância de descobrir o que esta modalidade de luta, com suas especificidades, representa no caso estudado. O interesse específico se volta, então, para narrativas lutadores da LPP sobre a experiência de participar em competições de boxe, buscando compreender os sentido que as lutas assumem para estes jovens. Para tanto, examinaremos, em maior profundidade, duas situações de competição - “luta em casa” e “luta no palco oficial”. Em ambas as situações está presente a expectativa de obtenção de prestigio social através do boxe, a qual assume formas diferentes em relação aos contextos de luta. 139 i. Sobre os significados de uma “luta na comunidade” Data: 28 / 03 / 2001 Local: Parque União / Maré No início da noite de 28 março de 2001, a praça central do Parque União estava sendo preparada para uma atividade que prometia atrair a população local e de áreas próximas, acostumadas a freqüentar o local em busca de diversão em meio a um cotidiano de escassos investimentos públicos em laser e cultura. Entretanto, na ocasião, os moradores saíram de casa para assistir a uma atividade inédita na região. Para quem vinha de outros lugares, da Avenida Brasil (uma das principais vias de acesso a toda a área da Maré), já era possível enxergar o brilho das luzes dos holofotes direcionados para o mesmo ponto: um ringue montado no meio da praça principal. Naquela noite, assistiu-se, pela primeira e única vez, a lutas de boxe em praça pública na “comunidade”, as quais ficaram gravadas nas memórias dos lutadores que participaram do torneio. As lembranças destes jovens sobre a ocasião trazem elementos que ajudam a refletir acerca de suas motivações para a escolha dessa modalidade esportiva.74 Tanto as lutas quanto os treinos e demais elementos cotidianos do projeto LPP são importantes 74 Entrevista realizada com Vitor em 31 de outubro de 2001 e com Rivan em 07 de fevereiro de 2002. 140 referenciais para os significados que tal atividade foi adquirindo, aos poucos, durante o processo de participação dos jovens. O evento foi descrito com entusiasmo por Rivan, um dos lutadores que subiu ao ringue naquela noite de 2001, como é possível perceber na citação acima e em outros trechos do seu relato de história de vida. O ponto central de sua narrativa relacionada ao evento, que cobre desde os momentos que antecederam as lutas até os meses posteriores àquela vitória, concentra-se na repercussão junto aos moradores locais, portanto, uma repercussão para dentro da “comunidade”. “Ser lutador” e, mais ainda, “ser vencedor” se torna uma forma de obter prestigio e, quando este é alcançado - já que nem todos os jovens da academia têm sucesso na prática do boxe -, transforma-se em capital adquirido, parte do habitus do lutador, na acepção de Bourdieu; passa a identificá-lo entre vizinhos e conhecidos, distinguindo-o de uma imagem anterior de “moleque vagabundo”, que ficava “pela rua sem fazer nada”. No caso estudado, tratando-se de uma atividade do meio do pugilismo, o corpo é instrumento de luta e meio de obtenção de vitórias. Talvez a diferença para outros esportes esteja na representação coletiva criada historicamente pela sociedade ocidental em torno da figura do campeão mundial de boxe, valorizando figuras emblemáticas como a de Mohamed Alli, possivelmente mais conhecido do que o “rei do futebol”, Pelé. O acesso ao fator de distinção conferido pelo boxe foi abordado no estudo etnográfico realizado por Loïc Wacquant em um clube de boxe, localizado num gueto negro da cidade de Chicago. Segundo Wacquant, embora a academia de boxe se volte para o único, simples e claro, objetivo de “transmitir uma competência esportiva”, este espaço acaba por desempenhar outros papéis sociais, entre os quais, isolar da rua e das pressões cotidianas; estimular a aquisição de qualidades como disciplina, respeito ao outro e autonomia de vontade e conferir a possibilidade de obter destaque no bairro e na sociedade: ... o salão de boxe é o vetor de uma desbanalização da vida cotidiana, porque ele faz da rotina e da remodelagem corporais o meio de acesso a um universo distintivo, em que se misturam aventura, honra masculina e prestígio. O caráter monástico, senão penitencial, do “programa de vida” do pugilismo faz do individuo sua própria arena de desafio e convida-o a descobrir a si mesmo, ou melhor, a produzir a si mesmo. O pertencimento ao gym é a marca tangível da aceitação de uma confraria viril que permite que a pessoa se destaque do anonimato da massa, e portanto, atraia a admiração e a aprovação da sociedade. 141 O significado de prestígio social associado ao boxe pôde ser percebido em vários momentos nas falas de lutadores. A narrativa de Rivan se inicia com a apreensão que tomou conta de sua mente durante todo o dia até a hora de sua primeira luta no Parque União (favela vizinha àquela onde morava), a qual foi interrompida “por São Pedro” que inundou a favela com uma forte chuva. A preocupação em não decepcionar o público “em casa” está presente. As expectativas de derrotar o adversário se tornam explícitas através de um jogo de provocações estabelecido entre ambas as partes, fora do ringue, antes das lutas: A gente foi pra praça. Olhei o ringue, fui pra academia, me pesei, já vimos os adversários e, então, foi como? Antes da luta tem aquilo: aquela troca de palavras, a gente fala umas besteiras pra eles, eles falam umas besteiras pra nós. Simplesmente falei: ‘boa sorte, espero que tu pelo menos consiga ficar em pé’. Aí ele já manda: ‘Espero que tu não fique muito machucado também’. ‘Então, já é, vamos ver lá em cima’. (...) Lutei com um cara da Nobre Arte, do Cantagalo; Deco e meu irmão lutaram com uns caras da academia Flash Team, que não sei nem de onde é. Só sei que a gente lutou contra eles; ganhamos, perdemos, mas tenho pra mim que a nossa academia é a melhor. Aí veio a primeira luta, foi a do Deco. Ele subiu no ringue, de certa forma esculachou: ganhou na comunidade e ganhou na moral! Aí todo mundo já falou: ‘o moleque é bom’ e tal. Veio a vez do meu irmão, que lutou bem, mas deu um mole, tomou um soco no nariz, sangrou, o juiz parou a luta e foi aquela revolta; podia botar um algodão e voltar a lutar mas não deixaram. A minha luta foi a última da noite; eu já empolgado, querendo quebrar a cara do adversário. Pô, afinal eu tava em casa e ele já meio assustado, a praça cheia. Começou o primeiro round, lá e cá, lá e cá. Quando acabou o primeiro, o segundo ia começar, caiu aquela chuva braba que inundou o Parque União todo, acabou com o evento. (...) No caso, essa luta deram pra mim porque no primeiro round eu tava ganhando. Assim como a expectativa de derrota do adversário se torna uma questão de honra mesmo fora do ringue, a vitória também ultrapassa o momento da luta, transformando-se em moeda de reconhecimento público na “comunidade”. A luta na Maré, somada a outras vitórias que o lutador foi conquistando no boxe, trouxe repercussões em termos de fama e reconhecimento, mudando a forma como era tratado em seu meio social e também fora dele: 142 A amizade muda, né? Até na primeira luta que eu ganhei, não foi na comunidade, mas todo mundo comentou sobre essa luta. Na moral da história: quem era amigo mais ou menos já quis ser amigo de fé mesmo, quem não andava comigo já queria andar junto. Eu continuo mantendo as mesmas amizades de antes; se não falava comigo porque quer falar agora? Aí depois dessa luta no Parque, se eram 50 pessoas querendo falar comigo, agora é 100, 150. Eles me reconhecem, a menorzada fala comigo, às vezes uma senhora de idade fala ‘oi’, eu nunca vi na minha vida, falo ‘oi’ também; ás vezes tô num baile fora da favela, na Alta [conjunto habitacional Cidade Alta], vem um moleque e fala: ‘E aí, cara, tá tranqüilo?’ Falo ‘Tranqüilo’, mas nem sei, não entro em detalhe porque nunca vi mais gordo. No ônibus, às vezes também sou reconhecido por alguém que também luta. Aí já não sou reconhecido só na comunidade: se eu for no Cantagalo, já tem gente que me conhece, se eu for em outra academia vai ter gente que vai saber falar meu nome. E é aquilo também: a falsidade rodeando assim em volta... Além de Rivan, também lutaram pela LPP, no Parque União, Juca (irmão de Rivan) e Deco. Moradores das favelas próximas Nova Holanda e Rubens Vaz, os adolescentes estavam diante dos olhares apreensivos de uma platéia da qual faziam parte amigos, familiares, vizinhos e conhecidos, que os veriam lutar pela primeira vez. A sensação de “estar em casa” foi um elemento marcante nas falas dos jovens sobre a ocasião e, ainda, sobre a repercussão dos resultados num momento posterior. Na hora, “estar em casa” estimulou a vontade de vencer; depois, transformou-se em possibilidade de reconhecimento e ganho de prestigio na localidade. Como demonstra a narrativa abaixo, a imagem de “rueiros”, “garotos que não valem nada”, não raro confundidos com bandidos, vai sendo desfeita e eles passam a ser motivo de orgulho diante dos olhares atentos da vizinhança. Ganhei uma luta, fui ganhando mais e as vizinhas que falavam mal começavam a dizer ‘aquele garoto ali é lutador’ e ia gravação lá em casa, emissora de TV, e o pessoal dizia ‘já tá ficando famoso’. Pensei ‘já melhorou no lado da aparência, neguinho não tá mais pensando o que pensava de mim’. (...) Mudou a visão da rua: eu era um miserável e agora não: ‘aquele é o garoto que faz boxe’, passaram a respeitar. Vira e mexe tem luta, vem gente apertar a minha mão.” Quanto aos resultados do primeiro combate “na comunidade”, Deco, então com 16 anos (57kg, categoria pena), lutou primeiro e venceu; Juca, 15 anos (71kg, categoria médio-ligeiro), teve um sangramento no nariz e a luta foi suspensa sem contagem de 143 resultados; já Rivan, o último lutador da rodada, 16 anos (60kg, categoria leve) teve a luta interrompida por uma forte chuva que inundou o Parque União naquela noite, provocando o encerramento do evento, mas foi proclamado vencedor pelos pontos que tinha acumulado no primeiro round. O mesmo “combate” foi repetido dali a poucos dias no Cantagalo, com nova vitória do lutador da LPP, o qual teve uma carreira ascendente no boxe amador, somando o maior número de vitórias já obtidas por um só integrante desta academia. Ao relembrar o evento, Deco, ressalta o fato de sua mãe “começar a aceitar o boxe” a partir da vitória do lutador naquela ocasião: Minha mãe não fechava muito com esse negócio de boxe também, quando ela me viu ganhando aqui no Parque União - a minha primeira vitória, segunda luta – ela já começou a aceitar mais, ainda não totalmente. A iniciativa de promover o evento de boxe no Parque União partira da academia Luta Pela Paz, porém, as lutas na praça foram inviabilizadas em razão da possibilidade de chuva. Os boxeadores preparados pela LPP já haviam participado de dois torneios em outro local, o morro do Cantagalo, onde as competições organizadas pela academia passaram a ocorrer a cada dois meses. Promover lutas, em conjunto com entidades do meio do boxe - no caso, com a Federação de Boxe do Estado do Rio de Janeiro (FBERJ) ou a Liga de Boxe o Rio de Janeiro - foi uma das formas encontradas pela academia para incentivar os alunos a praticar o esporte. As lutas públicas são inseridas no calendário dos torneios regionais de boxe olímpico (nova denominação da categoria também conhecida como amadora).75 O “hall dos elevadores” do Cantagalo oferecia boa infra-estrutura para a realização das competições (em ambiente fechado) e, no mesmo prédio, localiza-se a academia Nobre Arte, centro de treinamento de boxe conhecido em todo o país76. Lá foram realizadas grande parte das competições promovidas pela LPP entre 2001 e 2003. 75 Desacordos marcam as relações entre as duas instituições de pugilismo existentes no estado do Rio de Janeiro (a Liga e a Federação de boxe). Processos semelhantes de disputas entre membros de federações acontecem em relação a outras modalidades esportivas em todo o Brasil, dando origem à criação de Ligas Esportivas relacionadas a diversas modalidades de esporte, as quais atuam também na organização de competições. 76 Situada em uma área economicamente valorizada do Rio, uma característica não usual desta academia, em relação à maioria das outras existentes no Rio de Janeiro, é o fato de que lá treinam jovens de camadas sociais média e alta, ao lado de moradores de favelas, devido à localização do clube de boxe (no morro do Cantagalo, entre os bairros considerados de classe média-alta de Copacabana e Ipanema). É importante enfatizar, no entanto, que a presença de lutadores provenientes de locais de baixa renda da cidade é 144 ii. Sobre os significados de lutas no “palco oficial” do boxe Data: agosto / 2003 Local: Morro do Cantagalo Batizado por um dos lutadores da academia Luta Pela Paz de “palco oficial”, o morro do Cantagalo, situado entre os bairros de Copacabana e Ipanema, zona sul da cidade se tornou um dos cenários mais recorrentes de competições para os participantes desta academia durante os três primeiros anos de existência da LPP. A reprodução do trecho seguinte do diário de campo, referente à descrição de alguns momentos de duas competições, na mesma noite, tem o objetivo de apresentar o lugar, buscando refletir sobre o sentido adquirido pelas lutas (ou “combates”, como dizem os locutores das competições), em um ambiente longe “de casa”, para os jovens entrevistados. O local se tornou referencia no meio do boxe carioca, pois além de abrigar a academia Nobre Arte, ali são realizados cursos e exames de qualificação para formar treinadores, árbitros e juízes de boxe. Para os meninos da LPP, o Cantagalo também passou a acumular a simbologia de um lugar onde a vitória (assim como a derrota) adquire sentido para um predominante nas competições de boxe amador da cidade, como foi possível constatar na observação de inúmeros torneios. 145 ‘mundo de fora’, diferente de vencer “na comunidade” onde se ganha status para o ‘mundo de dentro’ da favela. Se neste último, ser reconhecido se torna moeda de reciprocidade em relações sociais próximas, ganhar uma competição em um bairro nobre da cidade era a chance de mostrar que na favela também tem gente que pode “vencer na vida”. Sobre a sensação de lutar no “Galo”, um dos lutadores da LPP fez a seguinte afirmação: “Maior responsabilidade. E ainda tinha uma televisão de fora gravando as imagens. Se eu ganhasse não ia engrandecer só o meu nome mas também o nome da academia que ia ser passado lá fora, mostrando o cotidiano de um jovem do lugar; isso no fundo é bom pra mostrar pra outras pessoas que na favela também tem muita gente que pode mudar de vida, melhorar.” Data: março / 2002 Local: Morro do Cantagalo A relação entre status e masculinidade, articulados através do boxe, foi destacada pelo coordenador da LPP, em um balanço que fez sobre objetivos e especificidades do projeto desenvolvido na Maré. Seguindo seu ponto de vista, o prestigio social que um jovem obtém ao entrar para o tráfico poderia ser equivalente a outra forma de obtenção de reconhecimento, ou seja, pelo capital social adquirido como lutador de boxe. 146 “Agora tem cartazes espalhados pela favela com fotos deles, dizendo que eles são isso e aquilo. Esse é mesmo um objetivo nosso. Por exemplo: o cartaz que a gente fez foi pra que eles andassem na rua e fossem reconhecidos: Outros meninos metem mão em arma para conseguir isso e serem respeitados. De repente, vai existir um grupo de jovens que tem esse último canal aberto para eles mas estão escolhendo outro, o que é positivo. Pode ser que no começo ele esteja ganhando menos dinheiro do que em outras coisas mas é com uma coisa boa para a sociedade. Até o próprio traficante vai dizer pra ele “Se cuida hein? Vai pra casa e dorme pra se preparar pra luta”. Aí o menino ganha respeito de todos os lados. Isso é a beleza do Luta Pela Paz: o menino ganha respeito no mundo machão e ao mesmo tempo tem também acesso a uma forma de educação e vai abrindo a cabeça. Um machão não vai poder chegar e dizer “você não é macho porque não mete a mão numa arma”, ele tá no ringue arriscando a própria vida.” No trecho seguinte do diário de campo, onde são narrados alguns rounds de duas lutas de participantes da LPP, é possível perceber a atmosfera do ambiente, inscrita nos gritos ensurdecedores da torcida que várias vezes se deslocou da Maré para uma favela na zona sul para acompanhar os lutadores, na alegria de uma vitória e no desânimo de uma derrota. Físicos e mentais, os esforços dos lutadores se misturam em meio a toda a parafernália do “evento” de boxe, onde dezenas de jovens se encontram para travar combates dentro de si e com os outros. Em filas para a pesagem, sentados no chão ainda descalços e colocando suas bandagens, não parecerem lutadores. Quando sobem ao ringue e são enquadrados pelos olhares fixos do público, em geral, pouco numeroso mas atento, e pelo visor da câmera fotográfica, incorporam suas poses, esquecem quem são por alguns instantes e se preparam apenas para vencer. Diário de campo - Noite de lutas de participantes da LPP no Cantagalo: uma vitória e uma derrota. 2002 A academia LPP levou dois lutadores para a competirem no Cantagalo: Joaquim (o Quim), e Rivan. Faço os registros das duas competições a partir do último round da luta de Joaquim no Cantagalo. A platéia espera ansiosa a etapa final da luta. “Segundos fora”, diz o locutor (Sr. Mauricio, presidente da Federação de Boxe do Rio de Janeiro) ao microfone; soa o gongo e, em seguida, ouve-se o anúncio: “quarto e último round”. Imediatamente após, os gritos da torcida incentivando Joaquim tomam conta do ambiente: “Vai Quim! Vai na pressão, vaaaai Joaquim!”, as vozes se misturam num zumbido ensurdecedor cujas palavras vão se tornando indecifráveis. A maioria dos gritos vem de jovens da Maré, que vieram torcer pelos lutadores da academia Luta 147 Pela Paz. Embora o número de torcedores presentes não fosse muito expressivo (cerca de 20 jovens), o forte eco no ambiente fechado (o hall de elevadores do Ciep do Cantagalo) e o entusiasmo da galera que compareceu davam a impressão de uma torcida mais numerosa. Durante cerca de um minuto, assobios, berros e gritos prosseguem, quase sem possibilidade de distinção do que está sendo dito. As vozes se calam em um breve segundo de tensão, para depois recomeçarem, como uma injeção de ânimo direcionada ao lutador da LPP, posicionado no córner azul do ringue a espera do sinal para o início do último assalto: “Pega ele! Acorda Ninho!”, incentivam os jovens, todos amigos ou companheiros de treinos de João. “Manda um cruzado nos córneo dele!” Os gritos aumentam na medida em que os golpes atingem o adversário, o barulho atinge seu ápice até que alguém puxa o refrão “È o João, é o João”, intercalado por palmas curtas e rápidas, aumentando a tensão no ambiente. Os golpes se intensificam, o som das batidas das luvas sobre o corpo dos lutadores também se tornam mais audíveis, provocando reações ainda mais extremadas de alguns jovens que passam a se esgoelar acompanhando os movimentos da luta. Em meio ao clima de entusiasmo crescente, é possível distinguir a voz do treinador de João, também gritando “Vai João!”, enquanto outros torcedores berram instruções de golpes a serem desferidos. Soa o gongo final, os gritos cessam e predomina um burburinho de vozes comentando o desempenho de João e momentos marcantes da luta. Cerca de um minuto depois - tempo em que os juízes entregam suas papeletas de pontuação para a mesa diretora e esta faz a contagem final -, o presidente da Federação de Boxe anuncia o resultado; antes de fazê-lo, porém, chama pelo microfone o diretor executivo do Viva Rio Rubem César Fernandes para subir ao ringue e entregar a medalha: “Presidente do Viva Rio, Rui César!”, diz, trocando tanto o cargo quanto o nome do diretor. Ouvem-se aplausos. “E atenção para o resultado da segunda luta”, continua. “Pela contagem das papeletas dos jurados, por dois votos a um, é declarado vencedor ... (a pausa causa suspense e ansiedade no ambiente) o representante da Luta Pela Paz ...”, imediatamente a torcida explode de euforia em comemoração à vitória do lutador da Maré, abafando com seus urros e assobios o pronunciamento do nome de João Batista, logo substituído por gritos de seu apelido “Ninho! Ninho! Ninho!”, vindos do público composto por outros jovens, vizinhos, amigos e companheiros de academia. Sala onde o próximo lutador da LPP, Rivan Bispo dos Santos, está preparando para entrar em cena: dentro de alguns minutos ele vai ser chamado para lutar. O treinador, Luke, passa algumas instruções e incentiva: “Você vai ser cem por cento”. Começam os golpes de aquecimento: “Jab, jab direto”, diz Luke. “Agora um cruzado, aqui; vem” e ouve-se o som dos golpes precisos. Quando os golpes cessam, Rivan não pára de se mexer, pulando, fazendo movimentação de pernas e sombra. A respiração do atleta é forte e cadenciada. Lá fora, o evento prossegue 148 com lutas entre competidores de outras academias - Nobre Arte (localizada ali mesmo no Cantagalo) e KNS (localizada no Centro da cidade) etc. A luta segue sem a gritaria que caracterizou a anterior. Ouvem-se, predominantemente, vozes de treinadores incentivado seus lutadores. Quando volto a prestar atenção em Rivan, de repente o lutador termina o aquecimento e, rapidamente, sai da sala com as mãos apoiadas nos ombros do treinador, em direção ao ringue, para iniciar o combate. Acompanho os dois até a arena de luta, fotografando. Enquanto nos aproximamos, ouvimos o nome de Rivan anunciado pelo locutor: “Representante da academia Luta Pela Paz, “Rivan Bispo dos Santos. A torcida comemora e o locutor prossegue: “...e seu adversário, o representante da academia Nobre Arte, Celso ...”, neste exato momento, entra uma música altíssima de fundo: trata-se da música tema do clássico do cinema “Rocky, o lutador” (estrelado por Robert De Niro, no papel do lutador Rocky) Neste momento, percebe-se que o lutador “da casa” estava entrando em cena. Situada em um espaço no interior do mesmo prédio (no Ciep do Cantagalo) onde estavam ocorrendo as lutas naquela noite (e onde, freqüentemente, acontecem eventos de boxe), a Nobre Arte se configura como favorita não só por ter o “mando de campo”, mas também por ser uma das academias mais reconhecidas e atuantes no meio do esporte há muitos anos. A música prossegue em volume altíssimo enquanto ambos lutadores tomam suas posições nos córners opostos, o árbitro faz a conferência de seus uniformes e equipamentos de rotina (apalpa as luvas, verifica a presença de coquilha e protetor de boca, confere o capacete). Todo o procedimento faz parte da rotina de torneios de boxe amador. A música termina e o locutor aproveita para anunciar que a noite ainda teria outras atrações, citando um lutador de São Paulo”. Perto do córner de Rivan, alguém fala, da platéia, com intimidade: “Esfria a mente, Rivan”. Quase ao mesmo tempo, ouve-se o chamado para o início da luta: “Segundos fora”, soa o gongo, “primeiro round”, convoca o locutor. A luta começa. As torcidas parecem estar medindo forças, calmas nos primeiros instantes, porém, ouve-se algumas frases de incentivo a Rivan: “Pega ele, Rivan”. Os golpes começam, as vozes dizem a Rivan: “Tranqüilidade, tranqüilidade”. Segue o combate, torcidas silenciosas. Um golpe de Rivan acerta o adversário, a torcida da Maré comemora. A luta se equilibra, começam as provocações entre ambos lados: “Tu vai apanhar, ceguinhooo (em alusão ao apelido do lutador, Celsinho)”, diz um jovem da Maré ao lutador da Nobre Arte. O outro lado responde: “Celsinho, Celsinho”, incentivando-o. Outro golpe de Rivan acerta o adversário e a torcida grita ”É nós, já ganhou, é nós, é nós”. A luta continua, as torcidas se calam. Soa o apito do fim do assalto. “Segundos fora, segundo round”. Começa o segundo round. Logo no início, um golpe forte de Celso, a torcida da Nobre Arte comemora com palmas, sem dizer, porém, o nome do lutador. Vozes femininas, pela primeira vez, gritam: “Eeeeh”. Os 149 jovens da Maré respondem: “Uh, só socão, o Rivan, disposição.” Outro golpe de Celso e mais palmas. Ouve-se um dos lados ”Pega ele, vai cair”. A luta prossegue, os gritos se tornam indistintos. Fim do segundo round. Soa o gongo e o terceiro round se inicia. Nos primeiros segundos, um dos lutadores atinge o outro (não dá pra saber quem), estimulando a torcida. “Boa Celsinho”, diz uma voz feminina, seguida por palmas. A torcida de Rivan revida: ”Toma Serginho, toma Serginho” (em alusão à letra de um funk, notabilizado por ....). A luta segue durante mais cerca de dez segundos até que Celsinho inicia uma seqüência de golpes, encurralando Rivan em um córner do ringue, praticamente imobilizando-o, terminando por machucar seu nariz, que começa a sangrar. A torcida de Celsinho comemora com apitos e urros. As fotos estavam sendo tiradas deste mesmo córner, de frente para o adversário do lutador da LPP, assistindo ao seu ataque, há poucos centímetros de ambos. Finalmente, quando o protetor de boca de Rivan, arrancado com a força dos golpes, cai ensangüentado no chão, o árbitro chega perto e, percebendo o ferimento em Rivan, abre contagem protetora. Rivan levanta os braços em sinal de que está bem e de que não pretende abandonar a luta. Jovens da Maré gritam “Rivan, Rivan”, demonstrando solidariedade ao lutador que, em seguida, recebe cuidados do médico de plantão, tendo o sangue do nariz estancado momentaneamente. A vantagem que parecia estar com o lutador da LPP até o momento anterior agora passa para o adversário da Nobre Arte. Os dois voltam para o combate. Rivan tenta atingir o adversário, sem sucesso. Celsinho parte pra cima, iniciando uma nova série de golpes, provocando de novo o sangramento do nariz de Rivan. A luta é paralisada pelo árbitro definitivamente. Os lutadores descem do ringue e a mesa diretora se reúne para deliberar o resultado. Alguns minutos depois, o locutor anuncia: “Atenção para o resultado da quarta luta. Por RSCW, a 1 minuto e 45 segundos do terceiro round, é proclamado vencedor, o representante da Nobre Arte, Celso ....”. Data: outubro / 2002 Local: Morro do Cantagalo 150 Após um período de cerca de dois anos de lutas no Cantagalo, os eventos de boxe da academia retornaram para perto da casa dos lutadores, passando a se realizar na Sede Náutica do Clube São Cristóvão, localizado na Avenida Brasil, vizinho à comunidade Parque União. Lá, as “noitadas de boxe” se tornaram freqüentes a partir de 2003 e acontecem até os dias de hoje. 5.2.1 Briga na rua - classificações de briga Como foi dito anteriormente, a principal regra de conduta da academia de boxe onde foi realizada a pesquisa de campo é a condição de “não brigar”. Por outro lado, a briga aparece como elemento de estímulo à iniciação no boxe quase unânime nas narrativas dos jovens entrevistados. A possibilidade de “aprender a brigar melhor” traz um ganho de status “na rua”, como no caso do moleque que tira onda por causa da habilidade de brigar: “Muitas vezes a pessoa pensa: ‘aquele moleque ali é cheio de marra só porque sabe brigar’ ”. Na academia como na rua, a categoria da briga é referência acionada para narrar relações sociais, assim como para definir, por oposição, a prática do boxe. “Briga é assim: a pessoa usa o pé, dá tapa na cara, dá soco, enfia o dedo no olho para trazer a bola do olho, dá um mordidão, tudo liberado, mas o boxe não, o boxe tem a regra de como bater e onde se bater.” Quando tu vai lutar tem as leis e tem as regras que não é para ser tão violento; canalizar é assim, tu ta no momento de se concentrar, então se concentra e canaliza tuas forças dentro de tu, mas para agredir de repente o saco, para de repente até no esporte mesmo, na luta, aprender a pensar. Mas se, por um lado, “briga não tem regra”, na favela (segundo descrição dos jovens entrevistados) também existe um sistema rígido de regras, assim como no boxe, sendo que, no contexto do campo de pesquisa, “as leis da favela” prevalecem. Influenciado pelo poder dos chefes do tráfico de drogas locais, através do uso da força, o sistema de regras da favela entra em contradição com a definição de “briga na rua”, apresentada pelos jovens, segundo a qual não há regras. Levantado no grupo focal pelos jovens mais antigos da academia, este tema provocou grande polêmica e dissensos. 151 Discordâncias se manifestaram em torno do questionamento se “na favela”, pode ou não haver briga. - Pode brigar na favela? -“Não pode brigar...” -“Pode.” - “Depende”. -“Não pode!” -“Se fosse lá na comunidade, o cara já botava logo dois tirão...” - “Por que não acontece briga na rua? Porque tem a regra da comunidade. Então, todo mundo tem isso no pensamento.” - “Depende. Tem que pedir autorização para quem manda lá dentro. Se pedir e eles autorizarem a briga, eles brigam normalmente.” - “...na favela, não pode brigar, mas acontece briga. Nesse caso, a briga também não tem limite, mas tu sabe que se tu matar, vai morrer porque os cara vai vir atrás de tu”. Alguns consensos se estabeleceram entre os jovens quando todos começam a reconhecer as mesmas regras vigentes “na favela”. Para começo de conversa, os participantes do grupo de alunos mais antigos abordam a noção de briga, a partir de um sistema coletivo, local, de classificações sociais. Entre as suas características principais, em primeiro lugar, há brigas em que os traficantes “se metem” e outras em que não tomam parte. Na primeira categoria, encontram-se “briga na rua”, “briga de bar”, “briga no baile” e “briga de campo” (em jogos de futebol); na segunda categoria, estão inseridas as “brigas de família” e “brigas dentro de casa”. Ou seja, via de regra, os conflitos onde o controle da violência é exercido pelos donos do lugar são as brigas em espaço público; os desentendimentos em espaço privado são preservados, a não ser que integrantes do tráfico sejam chamados para intervir (o que não é raro). “Quando é briga de família ninguém se mete não”, um dos jovens explica. Outro complementa: “Briga na rua... num baile, já é mais sinistro. Se tu brigou num baile, o bagulho já fica doido mesmo.” Detendo-nos na primeira categoria - conflitos em espaço público - que é a que nos interessa, em particular, os donos são referidos como “juízes” locais, que instauram e fiscalizam as leis; quem não cumpre as normas vai para o “desenrolo” com o “juiz”: 152 “Desenrolo é uma conversa. É conversar do ‘por que’ brigou. E o desenrolo é com esses caras, que são os vagabundos, os bandidos”, explica uma jovem. “Não acho ruim não”, opinam outros jovens. Algumas situações são descritas: - “Às vezes, duas pessoas estão conversando e, de repente, sai uma confusão. Os dois saem se pegando um ao outro; o cara vem e quer saber a versão dos dois - a razão da briga. Aí, vai desenrolar para poder brigar os dois de frente...”. - “Então um fala: ‘eu estava distraído, ele veio, me bateu’. [O cara diz:] ‘Meia hora, então, de briga. Vai brigar aí’. Fica lá meia hora, o cara vem de novo e diz: ‘Acabou. Quem apanhou, apanhou, quem não apanhou [gesto de desdém] ... Não quero ver mais briga’. E cada um vai pro seu lado.” 153 COMENTÁRIOS FINAIS A temática deste estudo se volta para as múltiplas experiências de participação em um programa social, direcionado à parcela da população brasileira identificada com idéias socialmente construídas de adolescência e juventude. Dentro deste universo que permite inúmeras possibilidades de abordagens analíticas, e admitindo sua amplitude, o tema foi tratado a partir de um recorte delimitado pelo espaço de sociabilidade do Centro Esportivo e Educacional Luta Pela Paz, enfocando em especial o contato entre a proposta de ação social adotada por este Centro e representações dos jovens que decidem ingressar nas atividades oferecidas por ele. Como principal atividade que fundamentou a criação do projeto em questão, a prática do boxe foi examinada em maior profundidade, aproximando do centro da temática de pesquisa a perspectiva do corpo como lugar de realização do encontro entre experiências de participação no “projeto” LPP. As narrativas de jovens que ingressaram nos treinos de boxe constituíram o principal suporte empírico deste estudo que reuniu diferentes instrumentos metodológicos, como a observação de campo participante, grupos focais e o uso da imagem buscando, através da complementaridade entre distintas fontes de coleta de dados, obter maior riqueza de informações sobre o universo de estudo. O caso da academia de boxe Luta Pela Paz (ora referida pelos jovens participantes como “academia”, ora como “projeto”) é um caso “bom para pensar” juventudes em favelas e, sobretudo, os jovens que optam pelo engajamento em um “projeto social”. Além de estarem entre os principais instrumentos contemporâneos de mobilização social no Brasil, no que diz respeito ao campo de atuação de ONGs e instituições sem fins lucrativos, neste trabalho foi perceber que um projeto pode vir a se tornar um ator social, interferindo na rede de relações institucionais e sociais da localidade onde se instala. Portanto, não se restringe ao papel de mediador social (entre classes sociais ou entre regiões da cidade, por exemplo, como não raro é possível verificar em suas propostas). Dividido em duas partes, o estudo trouxe esclarecimentos sobre as metodologias de pesquisa utilizadas, buscando elucidar vantagens e desvantagens da forma de inserção no campo de pesquisa, com o intuito de trazer à luz, concomitantemente, a posição ocupada pela pesquisadora em relação ao quadro de relações sociais que 154 delimitaram o recorte do assunto. Quanto ao uso da imagem, optou-se por esclarecer procedimentos ainda não muito corriqueiros na área de ciências sociais para oferecer ao leitor a máxima possibilidade de ganhos a partir da idéia de integração, e não subordinação, entre texto e fotografias. A escolha criteriosa e não aleatória das imagens, privilegiando a clareza da informação no conjunto do trabalho, implicou, inclusive, na opção pela inserção de um número reduzido de fotos, dentro de um universo amplo e rico de imagens documentais de mais de 2.000 fotogramas. Certamente, a preocupação em abarcar as características dos principais elementos que estabelecem contato com o objeto de estudo, refletiu-se na extensão das páginas desta dissertação, na variedade de dados coletados e no período de realização da pesquisa de campo e conclusão da dissertação. Tentou-se restringir o campo de análise a um ou outro aspecto isolado da rede imbricada, complexa, de relações sociais que envolvem formas contemporâneas de intervenção social – objetivadas, grosso modo, nas múltiplas feições de “projetos” que se espalham por favelas da cidade –, tomando o caso do Centro Esportivo e Educacional Luta Pela Paz como universo especifico de análise. Entretanto, ao longo do percurso de trabalho surgiram questões do tipo: como abordar um estudo no contexto de um projeto que se diz sócio-educativo sem falar do teor de sua proposta? Como enfocar a prática de boxe sem considerar a questão corporal? Como propor um estudo a partir de trajetórias de vida de jovens participantes de um projeto social sem contextualizar as favelas heterogêneas que são os seus locais de moradia? Como preservar os personagens envolvidos no campo de pesquisa? E, ainda, como não explicitar a posição da pesquisadora, seus acessos e limitações? Estas e outras indagações estiveram presentes no processo de construção do objeto em torno da interação entre discursos e práticas no espaço do projeto / academia de boxe. Optou-se por tornar explícita a existência dos elementos apontados acima dando ênfase, porém, às narrativas dos jovens praticantes de boxe sobre suas experiências de participação neste ambiente. A partir da análise destas falas, percebeuse, por exemplo, como se dava a interação com o discurso do “projeto” LPP. Da interação entre formas de pensar de jovens integrantes do projeto e a proposta do Luta Pela Paz, surgem novos significados: o espaço da rua, por exemplo, é enfatizado como lugar de violência e perigo. Por outro lado, o ambiente da academia, colocado na proposta do projeto como lugar de disciplina, de “prevenção à violência”, é permeado pelas vivências dos jovens e reapropriado por eles em seus termos. Lá estabelecem relações de namoro, casamento, tornam-se mães e pais, criam suas próprias formas de 155 participação social. Portanto, a academia, ao mesmo tempo em que integra e isola “da destruição” (como afirmou o jovem Ricardo), é permeada por trajetórias como a de Deco e Rivan, as quais trazem para o mesmo contexto duas virtuais possibilidades de inserção no mundo a partir de escolhas de vida. Desta forma, as histórias de vida de ambos os jovens que freqüentaram a LPP e participaram intensamente do convívio na academia, dedicando-se ao boxe durante alguns anos, nos informam que o projeto Luta Pela Paz é um espaço onde se (re) produzem virtualidades diferentes e continuam presentes forças antagônicas como a inclusão e a exclusão de uma vida “cidadã”. Ilustram também a idéia de que os processos de escolhas individuais são influenciados por uma combinação de elementos que integram tanto universos locais de relações sociais, quanto estruturas mais amplas de organização de formas de sociabilidade presentes nas favelas onde se conheceram. As fronteiras fluidas entre os espaços da academia e da rua também se representam nas narrativas dos jovens freqüentadores dos treinos através da identificação que mantém com “a comunidade”. Sendo assim, mutatis mutandi, o caso da academia Luta Pela Paz remete à idéia, lançada por Loïc Wacquant (2002: 35) em seu estudo sobre uma academia de boxe em um gueto de Chicago (o Woodlawn Boys Club), segundo a qual a academia de boxe se define a partir de uma “dupla relação de simbiose e de oposição com referencia ao bairro e às duras realidades do gueto”. Guardadas as devidas distâncias de contextos sociais (e diferenças entre guetos e favelas), pode-se dizer que há um diálogo entre a estrutura de oportunidades oferecida em nível local, no contexto da Maré, e a decisão de ingressar na academia Luta Pela Paz. Buscou-se, neste trabalho, dar minimamente visibilidade à estrutura social de localidades que fazem parte da Maré, aos dilemas enfrentados pelos jovens traduzidos, em seus termos, na dicotomia “virar bandido” ou ingressar em “projeto”. Na Parte I da dissertação, lançamos um olhar sobre políticas de governo e características do desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro que se refletiram sobre a composição social das favelas da área da Maré; apresentamos diferentes perspectivas existentes sobre o local, privilegiando olhares “de dentro”. Depois de enfocar o cenário social onde o estudo se localizou, passamos ao projeto Luta Pela Paz, contextualizando brevemente o campo de atuação de instituições não governamentais. Os trechos do diário de campo cumpriram o papel de fornecer descrições detalhadas do ambiente da academia de boxe e das lutas de boxe, contextos específicos 156 sobre os quais se desenvolveu a pesquisa. Entre os impasses que surgiram durante o trabalho, pode-se citar a articulação dos dados coletados com experiências de outras academias e experiências de lutadores. Foram realizadas entrevistas com dirigentes do esporte, uma juíza e um lutador de boxe de classe média, porém, uma comparação entre diferentes academias e perfis de lutadores demandaria outro tipo de direcionamento da pesquisa. Na Parte II, abordamos a forma como os adolescentes, praticantes de boxe, vivenciam a experiência do contato com essa modalidade esportiva específica. Tornouse clara a expectativa inicial de querer “aprender a brigar” e as dificuldades que se colocam em termos de adequação aos exercícios físicos e, ao treinamento técnico, e aos golpes. Subir no “no ringue”, não é para muitos: os que se adaptam à rotina, enfrentam o medo, aprendem a controlar a raiva e a força, estão aptos a se vencer. Ou perder. No jogo de interações no espaço de sociabilidade da academia, o corpo, em sua dimensão simbólica, é a materialização da vitória e da derrota. Além disso, é mediador de relações sociais construídas dando e levando “soco na cara”. Amizades e rivalidades. O corpo do adolescente, em transformação, é um corpo que quer se colocar no espaço, demarcar seu lugar, ganhar identidade. A temática da construção social das juventudes, perpassa o estudo. Tratando-se de um tema que congrega aspectos tão amplos quanto desigualdades sociais e representações de violência, a preocupação com os jovens, como enfatizam NOVAES e VITAL (2005), “evoca a preocupação com o futuro da sociedade, com seus rumos e alternativas de desenvolvimento”. Com efeito, abordou-se neste estudo, ainda, a utilização da categoria socialmente construída de “risco social”, expressão de uso corrente em discursos que fundamentam a prática de projetos sociais nas mais variadas áreas e contextos regionais do país. Através de informações colhidas em campo, percebeu-se a existência de uma diversidade de perfis e de estruturas sociais de vida de jovens participantes do projeto Luta Pela Paz, sugerindo a necessidade de revisão da categoria “jovem em situação de risco” acionada como “alvo” para o qual se voltam suas ações e propostas sócio-educativas. O conjunto destas reflexões convida a lançar um olhar sociológico, mais amplo, sobre os efeitos sociais da participação juvenil em projetos sociais, articulando reflexões sobre teorias, conceitos e dados utilizados para fundamentar tais programas e as realidades e culturas locais onde são implantados. O material recolhido não se esgota nesta dissertação, tornando-se disponível para aproximações analíticas futuras, além de constituírem em um mapeamento importante para pesquisas futuras. 157 BIBLIOGRAFIA ALVES, Andréa Moraes. A dama e o cavalheiro: um estudo antropológico sobre envelhecimento, gênero e sociabilidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. 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Gangues, galeras e quadrilhas: globalização, juventude e violência. In Galeras cariocas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. _____________. As imagens de e na cidade: a superação da obscuridade. Rio de Janeiro; Cadernos de Antropologia e Imagem Nº4 - UERJ/NAI, 1995. _____________; ALVITO, Marcos. (Orgs) Um século de favela. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. WACQUANT, Loïc. Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. 162 Anexo 1 DOCUMENTO DE METODOLOGIA DO LUTA PELA PAZ77 Luta Pela Paz O Centro Esportivo e Educacional Luta Pela Paz (CEELPP) é um projeto social onde cerca de 150 crianças e jovens de ambos os sexos, moradores do Complexo da Maré, participam de atividades esportivas. O projeto, que teve início em 2000 com uma academia de boxe, conta hoje com as modalidades Luta Livre e Capoeira. Além de treinamento esportivo, os jovens têm aulas semanais de cidadania e resolução pacífica de conflitos. O projeto canaliza a agressividade positivamente através do esporte e cria oportunidades para jovens de baixa renda em busca um futuro melhor. A missão do Luta Pela Paz é oferecer aos jovens em situação de risco alternativas ao crime e ao emprego no tráfico de drogas através da inclusão social pelo esporte, educação, atuação social, promoção da cultura de paz e acesso ao mercado de trabalho. Além das atividades gratuitas para crianças e jovens, o CEELPP mantém uma academia de ginástica e musculação privada com mensalidades acessíveis para a comunidade, promovendo a integração entre os jovens do projeto e os demais moradores e possibilitando uma sustentabilidade financeira parcial. O CEELPP é um projeto do Viva Rio com apoio de: Laureus Sports for Good Foundation, Embaixada Britânica, Embaixada do Canadá, Stuart and Hillary Williams Foundation, Scott Wood, Gery e Anne Juleff, Ivanovich Family e Dreams Can Be. Objetivos Atualmente, os jovens estão envolvidos na violência tanto como agressores quanto como vítimas. A violência, principalmente por armas de fogo, é responsável por 59% das mortes de jovens de 14 a 19 anos no Rio de Janeiro. Durante o ano 2000, no estado do Rio, 6.218 pessoas com menos de 25 anos de idade foram mortas por armas de fogo. Deste total, 609 jovens tinham menos de 17 anos. Com foco na prevenção do envolvimento de jovens na violência urbana, o CEELPP pretende enfrentar esse problema seguindo dois objetivos principais: • Criar campeões no esporte através de treinamento com a melhor estrutura esportiva; • Criar campeões na vida pelo investimento nos jovens fora da academia. Metodologia O projeto tem as seguintes linhas interativas de atuação: - Esporte como estilo de vida : canaliza a agressividade através do treinamento esportivo, transformando-a em energia positiva pelo trabalho em equipe, respeito às regras, disciplina, autoconfiança, competição e dedicação ao esporte. O acesso ao esporte tira as crianças das ruas e dá a elas um sentimento de auto-estima além de ser um forte incentivo para não usar drogas. - Educação para o futuro : encoraja as crianças e jovens a se manter ou retornar à escola, 77 Trechos do documento de metodologia do projeto que constam no endereço www.lutapelapaz.org.br . 163 como uma das formas de aumentar as possibilidades em suas vidas. O projeto oferece aulas de reforço escolar e estabelece parcerias com escolas locais e programas educacionais do Viva Rio, como o Telecurso Comunidade e o Estação Futuro (inclusão digital). - Atuação Social – cultura de paz : a cultura de não violência é intrínseca a todos os aspectos do projeto. Aulas de cidadania são ministradas para discutir temas como educação sexual, direitos humanos, família, cultura, violência, entre outros. Os jovens também aprendem que não podem instigar, participar ou encorajar a violência na rua. - Acesso ao mercado de trabalho : para oferecer alternativas e perspectivas financeiras concretas, o projeto busca vagas em empresas, órgãos públicos e organizações nãogovernamentais para os jovens participantes. - capacitação de líderes jovens : oficinas de formação desenvolvem as habilidades de discurso, trabalho em equipe, organização e ação pró-ativa nos jovens, incentivando a sua atuação como protagonistas e multiplicadores, tornando-os representantes do grupo em seminários, eventos e encontros com outros projetos e atores sociais. Conduta Os jovens entendem que, fora do treino, situações de conflito potencial tem que ser resolvidas pela mediação e sem violência. As regras de conduta foram escolhidas pelos próprios jovens integrantes do projeto, e todos concordam em praticá-las: - respeitar o próximo; - ser disciplinado; - ser responsável; - treinar com seriedade; - ter responsabilidade com o material; - ter humildade; - ser honesto; - ser pacífico; - receber pessoas de fora da academia com respeito e gentileza. 164 Anexo 2 GÍRIAS USADAS NO CAMPO DE PESQUISA Os caras = Chefes do tráfico de drogas; similar: os donos. Migué = Tapear, enganar alguém (semelhante a caô). “Migué é, tipo assim: quem não quer fazer nada”; “fazer corpo mole”. Bagulho = Palavra usada em alusão a algo dito anteriormente para abreviar uma situação (ex.: o bagulho do boxe = a prática de boxe) Caô = 1. Coisa (semelhante a bagulho); 2. “Estar de caô” = estar enganando alguém, mentindo, omitindo algo, “vacilando”. Já é = De acordo, ciente. Gíria usada para encerrar um assunto, colocar um ponto final (“Até amanhã, quê mais? Então já é.”) ou confirmar algo que já se sabe. É nós = Em lutas de boxe, “é nós” é usado em comemoração a uma boa performance do lutador, significa “somos os vencedores”, deixando implícita uma relação de identidade entre torcida e lutador; quando este vence, os torcedores compartilham o sentimento de vitória. Barraqueira (o) = Pessoa que arruma confusão com todo mundo: “Eu também era barraqueira (...) não podia olhar para a minha cara que eu perguntava logo: o que foi, tá olhando o quê?”. Meter o pé = Sair, ir embora Ralar = Sair, ir embora (semelhante a meter o pé) Marra (ser cheio de marra) = considerar-se superior, ser arrogante, tirar onda Passar o verniz = amenizar, subestimar o efeito de algo. Neurótico = 1. Estar neurótico é sinônimo de se destacar em alguma coisa, desempenhar bem alguma tarefa. Exemplo: “Fulano de tal está neurótico no boxe, treinando pra caramba”. 2.Perigoso. Sinistro = Algo ou alguém que impõe respeito e, em algumas situações, medo: “A primeira vez que eu fui lutar, mané, caramba. Fomos lá, aí o moleque de lá: como? Sinistro”. A vera = muito, bastante: “eu só fui defendendo o moleque, batendo a vera”. Desenrolar = resolver uma situação; ir para o desenrolo: dar satisfação de um problema para alguém: “(...) na favela, é muito difícil tu vê briga, porque, na verdade, se brigar vai para o desenrolo”. Geral = Expressão que remete ao adjetivo ‘todo’, usado, no contexto, para se referir à totalidade; que não deixa nada de fora. “Sabe que a polícia não respeita nem morador lá, aí geral entra pra casa”. 165 Anexo 3 GRUPOS FOCAIS ESTRUTURA DE TRABALHO DOS GRUPOS FOCAIS 1. CONFIGURAÇÃO DOS GRUPOS 1.1 Participantes - grupos 1.2 perfis individuais 2. ROTEIRO DE TRABALHO Equipe de trabalho Moderadora: Marilena Cunha Assistentes: Patrícia Rivero e Cristina Pedroza Data: 14 de dezembro de 2004 Local: ISER 1. CONFIGURAÇÃO DOS GRUPOS 1.1 Participantes Grupos: Grupo 1 Jovens vinculados ao projeto Esportivo e Educacional Luta Pela Paz Grupo 2 Jovens vinculados ao projeto Esportivo e Educacional Luta Pela Paz Total 1.2 Perfis individuais: Número participantes de 7 Número participantes de Gênero Tempo de projeto 4 homens / 3 mulheres Superior a 1 ano Gênero Tempo de projeto 5 5 homens Inferior a 1 ano 12 9 homens mulheres / 3 166 Grupo 1 Jovem Idade Sexo Tempo de Luta Pela Paz 1 ano + 8 meses Local de moradia Estudo / Trabalho Ocupação dos pais 3 palavras que definem sua vida 1 16 anos feminino “Bonsucesso, Rubens Vaz” Estudo: 2° ano / ensino médio 1. “amor” 2. “paz” 3. “humildade” feminino 1 ano + dez meses “Parque União” Estudo: 8ª série / ensino fund. 17 anos masculino 3 anos + 6 meses “Nova Holanda” Estudo: 8ª série / ensino fund. Mãe: “doméstica” Pai: “falecido” Mãe: “dona do lar” Pai: “falecido” Mãe: “faxineira, limpeza” Pai: (em branco) 2 17 anos 3 4 19 anos masculino 1 ano + 7 meses “Nova Holanda” Mãe: (em branco) Pai: “serviços gerais” 1. “paz” 2. “justiça” 3. “liberdade” 5 19 anos masculino 4 anos “Nova Holanda” Estudo: 8ª série / ensino fund. Trabalho: “na academia de boxe luta pela paz” Estudo: (em branco) Trabalho: “no luta pela paz” Mãe: (em branco) Pai: (em branco) 1. “luta” 2. “amor” 3. “vida” 6 20 anos masculino 4 anos “Rua Ivanildo Alves, n°10” Estudo: “ensino médio” 1. “participativo” 2. “articulado” 3. “inspirado” 7 25 anos masculino 3 anos “Nova Holanda” Estudo: 1° ano / ensino médio Trabalho: “agente de integração” Mãe: “auxiliar de serviços gerais” Pai: “não declarado” Mãe: “doméstica” Pai: “eletricista” 1. “ser feliz” 2. “humildade” 3. ”amorosa” 1. “paz” 2. “humildade” 3. “amor ao próximo” 1. “pai” 2.”responsabilidade ” 3. “perseverança” 167 Grupo 2 Jovem Idade Sexo masculino Tempo de Projeto 2 meses Local de moradia “Nova Holanda” Estudo / Trabalho Estudo: 7ª série / ensino fund. Trabalho: feirante Ocupação dos pais Mãe: “auxiliar de creche” Pai: (em branco) 3 palavras que definem sua vida 1. “esporte” 2.”estudar” 3.”fazer curso” 1 13 anos 2 14 anos masculino 8 meses “Maré” Estudo: 7ª série / ensino fund. Mãe: (em branco) Pai: “porteiro” 1. “dedicação” 2. “família” 3. “trabalho” 3 15 anos masculino 2 meses “e 4 dias” “Comunida de” Estudo: 6ª série / ensino fund. 1. “esporte” 2. “estudar” 3. “ser feliz” 4 15 anos masculino + ou - 6 meses “Maré”, “Nova Holanda” Estudo: 1° ano / ensino médio 5 17 anos masculino 2 meses “Maré” Estudo: 8ª série / ensino fund. Mãe: (em branco) Pai: “aposentado ” Mãe: “dona de casa” Pai: “trabalha na Record” Mãe: “dona de casa” Pai: “aposentado ” 1. “esperança” 2. “sonho” 3. “paz” 1. “boxe” 2. “estudar” 3. “namorar” Critérios para a escolha de participantes dos grupos – O vínculo com o projeto esportivo Luta Pela Paz e com a prática de boxe foram os primeiros fatores considerados na composição dos grupos focais para esta pesquisa. Os jovens deveriam estar integrados às atividades da academia participando de treinos de boxe e, eventualmente, competindo (lutando) nesta modalidade de esporte. O segundo ponto considerado para a composição dos grupos focais foi o tempo de participação dos jovens na academia de boxe (e, conseqüentemente, no projeto Luta Pela Paz). Desta maneira, os participantes foram divididos em dois grupos, sendo, o primeiro, formado por jovens cujo vinculo com a academia ultrapassava o período de um ano, e o segundo, por jovens com menos de um ano de participação na mesma academia. A participação nos grupos focais foi feita de forma inteiramente voluntária e buscou-se um local ‘neutro’ para a sua realização ou, ao menos, 168 evitar lugares (como a academia LPP e o Viva Rio) que pudessem constranger ou acentuar os relatos sobre os temas em questão. Sendo assim, foram chamadas cerca de oito pessoas, entre homens e mulheres praticantes de boxe, para fazer parte de cada grupo, realizados no ISER78. A não vinculação entre os objetivos e métodos da presente pesquisa e o projeto LPP também foi enfatizada, visto que outras iniciativas de dinâmicas de grupo já haviam sido aplicadas junto a participantes da LPP. 2. ROTEIRO (igual para os dois grupos): 1. Atividade com fotografias – interpretação de imagens A atividade: Um conjunto de fotografias foi apresentado aos participantes para que cada um escolhesse uma imagem, justificasse a escolha e apresentasse uma narrativa sobre ela; as falas deveriam ser feitas de forma livre, atendendo apenas à observação de dizer o que sentiam ao olhar as imagens. O objetivo: usar as imagens como ‘gatilho mental’, para estimular, numa linha não diretiva, interpretações dos jovens sobre a participação deles em treinos de boxe e em competições do esporte, além de falar sobre como é viver no lugar onde moram. O conteúdo das imagens: o ambiente dos treinos de boxe, (a atividade esportiva propriamente dita, incluindo preparativos, condicionamento físico e técnico; eventos sociais, comemorações e interações entre os jovens em geral); cenas do cotidiano no entorno da academia e nas favelas próximas; lutas de boxe “olímpico” com a presença de participantes da academia (preparativos, golpes, adversários, vitórias, derrotas, a torcida etc). 2. Bloco – Boxe Debate sobre as frases: 78 Sobre a questão de gênero, nos grupos focais buscamos um equilíbrio entre homens e mulheres já que atualmente a academia LPP abriu uma turma de boxe para o público feminino. No entanto, a média de participação na academia maior entre os homens (há cerca de 50 jovens nos treinos masculinos e 20 no feminino) se refletiu na composição dos grupos, que teve predominância masculina. Optamos por não incluir neste estudo análises específicas em relação à questão de gênero, por entender que se trata de um tema amplo que mereceria maior aprofundamento. 169 1 - “Praticar boxe é uma forma de canalizar a agressividade” (fala de um integrante da equipe da academia LPP). 2 - “É muito difícil um lutador ter nascido em berço de ouro” (fala de um instrutor de boxe). 3 - “Ganhei uma luta, fui ganhando outras e as vizinhas que falavam mal de mim começaram a dizer ‘aquele garoto ali é lutador’ ” (fala de um jovem lutador da academia LPP). 3. Bloco – Projetos sociais e Luta Pela Paz a. Dramatização: criação e recepção de um projeto social Dividir os participantes em dois grupos. Um grupo fará o papel dos idealizadores de um projeto que quer se instalar em um local da cidade. O outro fará o papel dos jovens que recebem a proposta do projeto e reagem, dizendo o que pensam. Depois da representação, todos vão debater o resultado, dizendo se concordaram ou não com as interpretações dos dois papéis. [Objetivo: compreender expectativas e representações sobre projetos sociais] Observação: o grupo 1 não realizou a dinâmica pois as mesmas questões acabaram sendo abordadas pelos participantes em outros momentos do debate.] b. Sobre a participação no Luta Pela Paz Questões para debate: - O que vem (veio) à cabeça quando ouvem a expressão ‘luta pela paz’? (o que incomoda ou gosta) / O que pensaram quando viram o nome ‘Luta pela paz’ pela primeira vez? - O que atraiu vocês para a academia de boxe / O que manteve vocês na academia [objetivo: saber fatores que contaram para a escolha do boxe - por que este e não outro esporte] - Amizades e outras formas de relação social na academia / Passaram a conviver com outros jovens da academia fora do local dos treinos? [objetivo: conhecer formas de sociabilidade dentro e a partir da academia] - Sensações: O que sentem nos treinos? (dificuldades, facilidades) O que sentiram na primeira luta? / E hoje, como se sentem durante as lutas? (gostam, não gostam de competir) / Tem ou já teve lesões? [objetivos: perceber como vivenciam as etapas da prática do esporte] 4. Bloco - Ser jovem - O que é ser jovem para vocês? (pontos positivos e negativos) - Lista de gírias 170 Anexo 4 ENTREVISTAS INDIVIDUAIS - total: 28 entrevistas Tipos de entrevistas realizadas TIPO 1 - HISTÓRIAS DE VIDA Entrevistados: Jovens participantes do projeto Luta Pela Paz e familiares Formato: aberto, individual Total: 10 Nomes: Deco, Rivan, Welington, Buiú, Mariana, Cadu, Ricardo, José, Anderson e Madalena. Critérios para a escolha dos relatos de histórias de vida: Participação nos treinos de boxe da academia Luta Pela Paz e motivação para narrar e compartilhar experiências de vida. Os primeiros jovens que me contaram suas histórias e permitiram que fossem gravadas foram Rivan e Deco, em razão da aproximação que se estabeleceu com eles desde o período inicial de funcionamento da academia de boxe. Como os dois eram os lutadores que estavam em maior evidencia na academia e passamos a nos encontrar freqüentemente em competições, este foi outro motivo que contribuiu para a proximidade. Quanto aos outros jovens, todos os que consultei aceitaram contar suas histórias. TIPO 2 - TEMÁTICAS : 2.1 Tema: religião Entrevistados: Jovens participantes do projeto Luta Pela Paz Formato: aberto, em grupo Total: 09 2.2 Tema: Propostas e metodologias do projeto Luta Pela Paz; boxe, esporte e histórias pessoais com ênfase na prática de esportes. Entrevistados: Participantes da equipe do projeto Luta Pela Paz Formato: aberto, individual Total: 03 Nomes: Miriam (educadora), Luiz Otávio (treinador de boxe), Luke Dowdney (coordenador geral do projeto LPP) 2.3 Prática de boxe amador (fundamentos técnicos, o envolvimento com o esporte, o meio competitivo); o boxe no Rio de Janeiro (academias, lutas e perfis de lutadores) Entrevistados: Praticantes de boxe e profissionais do meio do esporte Formato: aberto, individual Total: 04 Nomes: Márcia Lomardo (juíza e árbitra de boxe, instrutora e praticante de lutas), Leandro (ex-praticante de boxe, 16 anos, morador da Zona Sul do Rio), Daniel Fucs (vice-presidente Confederação Brasileira de Boxe) e Luiz Otávio (treinador de boxe) 2.4 Forma de atuação de instituições da sociedade civil; cenário social do Rio de Janeiro, favelas, jovens e projetos sociais Entrevistados: Diretores de Ongs, líderes comunitários Formato: aberto, individual Total: 02 Nomes: Rubem César Fernandes (Diretor executivo do Viva Rio), Sr. Amaro Domingues (Coordenador da Vila Olímpica da Maré) Critérios para a escolha de entrevistados: os entrevistados foram selecionados na medida em que agregavam maior conhecimento sobre o contexto de pesquisa e na medida em que apresentavam narrativas que fundamentavam práticas referentes ao projeto social em questão e às experiências dos jovens inseridos no universo de pesquisa. 171 Anexo 5 CRONOLOGIA DO TRABALHO DE CAMPO • Março / 2001: Primeiro contato - assisti e fotografei a primeira luta promovida pela academia na praça principal da comunidade Parque União. • Período março/2001 a dez/2002: Atividades – 1) Freqüência periódica à academia – visitas semanais e fotografias dos treinos 2) Entrevistas - 4 alunos da academia e 3 integrantes do projeto Luta Pela Paz. Formato: histórias de vida. 3) Diários de campo – Os relatos escritos não cobrem a totalidade de visitas, mas descrevem boa parte do convívio no lugar. 4) Competições (lutas) – Assisti e fotografei praticamente todas as lutas promovidas pela academia, portanto, quase todas as competições dos alunos. • Período março/2003 a outubro/2003 Freqüência – Interrupção Entrevistas – Interrupção Diários de campo – Relatos se restringiram a algumas lutas Competições – Continuei a assistir e fotografar as lutas • Período novembro/2003 a maio/2004 Freqüência – Voltei a freqüentar a academia em fevereiro de 2004 Entrevistas – Realizei novas entrevistas Diários de campo – Passei a descrever todas as idas à academia Competições – A academia não promoveu lutas até o dia 29 abril de 2004, quando realizou a primeira luta do ano. Observação participante – Comecei a treinar boxe em março. • Janeiro a março 2005 – Observação de campo e complemento de entrevistas 172 Anexo 6 HOMICÍDIOS NO RIO DE JANEIRO Mortes por arma de fogo por bairros do Município do Rio de Janeiro, 2003 Bairro Mortes por PAF População residente Taxa por100.000 hab H15-24 H15-24 H15-24 População População População Bonsucesso 21 55 3.091 19.298 679,4 285,0 Estácio 15 20 3.788 20.632 396,0 96,9 Acari 16 28 5.223 24.650 306,3 113,6 Penha 32 48 12.255 72.692 261,1 66,0 Manguinhos 15 22 6.109 31.059 245,5 70,8 Mangueira 6 15 2.669 13.594 224,8 110,3 Madureira 19 30 8.564 51.410 221,9 58,4 Cidade de Deus 13 21 6.904 38.016 188,3 55,2 Centro 9 17 5.843 39.135 154,0 43,4 Parada de Lucas 6 9 4.152 23.269 144,5 38,7 Vigário Geral 9 17 7.100 39.563 126,8 43,0 Bangu 56 116 45.183 244.518 123,9 47,4 Vila Isabel 16 30 13.174 81.858 121,5 36,6 Maré 23 47 22.578 113.807 101,9 41,3 Caju 3 5 3.348 17.679 89,6 28,3 Grajaú 5 11 6.080 38.296 82,2 28,7 Alto da Boa Vista 1 1 1.373 8.254 72,8 12,1 12 31 25.392 163.636 47,3 18,9 Rocinha 5 11 12.261 56.338 40,8 19,5 Ipanema 2 2 6.666 46.808 30,0 4,3 Leblon 2 4 6.892 46.670 29,0 8,6 Botafogo 2 4 11.769 78.259 17,0 5,1 Copacabana 2 11 20.181 147.021 9,9 7,5 Alemão 1 3 12.994 65.026 7,7 4,6 Barra da Tijuca 1 14 16.275 92.233 6,1 15,2 1.197 3.244 117,0 54,3 Tijuca Complexo Rio de Janeiro do Fonte: SMS-RJ, elaborado pelo ISER 1.022.824 5.974.081 173 Anexo 7 GLOSSÁRIO BÁSICO DO BOXE BOXE A palavra "boxe" foi formada a partir do verbo inglês "to box". O significado original era "bater", mas, lá pelo ano 1 500 dC, passou a denotar "bater com os punhos" e seu atual uso substantivado significa "luta com os punhos, principalmente em prática desportiva". É de se chamar a atenção para o fato que, ao contrário do que muitos brasileiros acham, nos países de língua inglesa o boxe não é chamado de boxe, mas de boxing. Em latim, a palavra "pugillus" indica o punho fechado, em forma de soco. A partir disso, foi criada a palavra PUGILLATUS, que traduzimos como pugilato, para indicar o antigo boxe romano. Assim que: • PUGILISMO • PUGILISMO: rigorosamente falando, é o antigo boxe romano; nos tempos atuais, na prática, o termo pugilismo indica qualquer luta onde se usa principalmente os punhos, como o boxe inglês, o savate, o pugmachia, o mala-yudha, etc. Os especialistas na História do Boxe são mais radicais: usam a palavra boxe apenas quando se referem ao boxe inglês praticado a partir das Regras de Broughton ( criadas em 1743 ) e usam a palavra pugilismo para denotar qualquer "boxe" anterior a esse período. PUGILISTA: rigorosamente falando, indica o praticante do boxe romano; nos tempos atuais, na prática, o termo indica o praticante de qualquer luta onde se usa principalmente os punhos. A partir desses termos foram criados vários outros que refletem características da luta ou qualidades dos lutadores de boxe, como: PUGNA ( para indicar uma disputa, uma altercação ), PUGNACIDADE ( para indicar alta combatividade e determinação de uma pessoa ), etc. SPARRING SHADOW BOXING OU BOXE SOMBRA Originalmente, "sparring" era a palavra inglesa que se referia ao ataque do galo usando seus esporões. Como o boxe adotou várias práticas e termos das rinhas, ficou a tradição de usarmos o verbo "spar", ou seu gerúndio "sparring", quando lutamos mais com sentido de treino, exibição ou mesmo puro divertimento, e usamos o verbo "boxear" quando lutamos pra valer. No Brasil, prefere-se usar a expressão "fazer luvas" como sinônimo do verbo sparring. Desse velho costume, se originou o substantivo sparring para denominar um colega que tenha estilo semelhante ao do nosso próximo adversário e que se dispõe a ajudar nosso preparo fazendo lutas de treinamento ( "luvas" ) conosco. "Shadow" é uma palavra inglesa que significa sombra. Originalmente, nos séculos XVII e XVIII, usava-se a expressão "shadow boxing" para indicar o treinamento que o boxeador fazia ao lutar com a própria sombra, produzida na parede pela projeção da luz de uma vela que ele colocava nas proximidades. Atualmente, se faz o boxe sombra lutando com nossa imagem d id lh d d 174 Trata-se de exercício muito útil pois que nos permite aprender a frear o braço e assim evitar dolorosas distensões, em caso de golpe errado ou esquivado pelo adversário. Outra grande utilidade desse exercício é o desenvolvimento da capacidade de aplicarmos "combinações": sequências planejadas de vários socos. SEGUNDOS Considera-se os lutadores como os primeiros ou principais elementos da luta e seus auxiliares ( técnico, preparador físico e qualquer outro membro de sua equipe de apoio ) os segundos elementos da luta. Assim, por exemplo, a clássica expressão "segundos fora" é um comando para que os auxiliares dos lutadores se retirem imediatamente do ring a fim de que a luta, ou um novo round, inicie. Esse termo é feito de duas palavras inglêsas: knock ( derrubar ) e out ( fora ). Frequentemente é usada sua abreviação: KO. KO KNOCKOUT NOCAUTE A palavra knockout foi inventada, em 1882, por um jornalista ao descrever o resultado de uma das lutas mais importantes de todos os tempos: John Sullivan versus Ryan, vencida pelo primeiro no oitavo round. O significado original era: "derrota pela inconsciência provocada por golpe". Foi, inclusive, com esse significado que o termo passou a ser usado em assuntos que nada tem a ver com o boxe, sempre que queremos dizer que algo "foi tornado inoperante". No boxe atual, contudo, o termo knockout é usado apenas no boxe profissional e num sentido mais preciso: "derrota por golpe que provocou inconsciência ou severo atordoamento durando dez segundos ou mais". Insistimos: os termos nocaute, knockout e KO estão banidos do boxe amador! Esse termo é feito de duas palavras inglêsas: knock ( derrubar ) e down ( abaixo ). KNOCKDOWN NOCAUTE TÉCNICO TECHNICAL KNOCKOUT TKO decisões POR PONTOS no boxe profissional: - unanimous decision - majority decision - split decision - majority draw E' empregado quando um soco "derruba" um dos lutadores, mas esse consegue se levantar em menos de dez segundos. É necessário que se acrescente que esse "derruba" significa "tirar da posição em pé", o que pode ocorrer se tocando o chão com qualquer parte do corpo que não seja os pés, ou mesmo ficando dependurado nas cordas do ringue ou tendo sido jogado fora dele. Termo de uso exclusivo no boxe profissional e denota término de luta pelo fato de o árbitro ter considerado um dos lutadores sem condições de continuar a pelejar. Um modo de isso ocorrer é a sucessão de três knockdowns num mesmo round. - decisão unânime: todos os três juízes indicaram o mesmo vencedor - decisão da maioria: dois juízes escolheram um lutador e o terceiro juíz considerou a luta empatada - decisão dividida: dois juízes escolheram um lutador e o terceiro juiz escolheu o outro lutador - empate pela maioria: d i j í id l t t d t i h 175 vencedor RSC Referee Stoped Contest RSCO ou RSC-OS Referee Stoped Contest - OUTSCORED RSCH Referee Contest - HEAD Stoped Termo de uso exclusivo no boxe amador e denota luta terminada pelo árbitro por medida de precaução, por ter considerado um dos lutadores ser flagrantemente inferior a seu oponente ou de estar sem condições de continuar a pelejar. Termo de uso exclusivo no boxe amador e uma variante do RSC. Denota término de luta pelo fato de um dos boxeadores ter conseguido um grande diferencial de pontos em relação a seu adversário. Até 2002, esse diferencial era de 20 pontos. A partir de 01/01/2003 será adotado: os tradicionais 20 pontos nas categorias senior e juvenil, e 15 pontos na cadete e feminino. Ainda a partir de 01/01/2003, o RSCO não pode ser decretado no último round da luta . Termo de uso exclusivo no boxe amador e uma variante do RSC. Denota término de luta pelo fato do árbitro ter considerado que um dos lutadores sofreu um excesso de socos na cabeça. WO Abreviação da expressão inglesa: "walk over" e que significa que o lutador adversário ou não compareceu, ou foi impedido de lutar ( por decisão médica, por não ter conseguido "fazer o peso", por não trazer equipamento de luta regulamentar, etc ), ou se retirou do ringue antes do início da luta. CARTEL No sentido mais geral, indica o curriculum de um boxeador: lutas que realizou, títulos que conquistou, etc. Pode ser usada em sentido mais particular, como o da relação de lutas que um promotor ou empresário organiza para um boxeador que contratou. CORNER Palavra inglesa que significa "canto" e refere-se a cada um dos quatro cantos do ring. Em rings oficiais, um corner é pintado de azul e seu oposto de vermelho, sendo que é nesses dois corners que os lutadores e suas equipes de apoio tem de permanecer antes da luta e durante os intervalos dos rounds; os outros dois corners tem cor branca e são considerados neutros, sendo que é para um deles que o boxeador tem de se dirigir quando o árbitro estiver fazendo contagem de tempo para o adversário ou quando tiver de ser examinado pelo médico de ring. Fonte:Termos retirados do Glossário básico de boxe, elaborado pela Federação Rio-Grandense de Pugilismo, 2001.