Levi-Strauss: o velhinho gigante
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Levi-Strauss: o velhinho gigante
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Levi-Strauss: o velhinho gigante Fernando Santomauro A batida na cara Depois de tomar coragem para a ligação, me penteei, escovei os dentes, fechei as janelas do quarto de estudante apertado, e liguei. Atendeu uma mocinha super simpática, que parecia ser a ajudante dele (provavelmente quem leu primeiro o e-mail, que mandei para ele no site do College de France). Depois de me identificar como estudante de mestrado brasileiro que havia me comunicado com ele por e-mail (coisa que não estava acreditando até então), ela me passou a ligação. Ele, com a voz cansada, foi super simpático. Perguntou um pouco sobre a minha dissertação, os detalhes do tema, e disse que eu poderia visitá-lo a hora que eu quisesse, agora que ele tinha voltado de sua casa no campo, para passar o verão em Paris. Poderíamos nos encontrar na sua casa mesmo, na próxima terça, depois do feriado de segunda-feira, 8 de maio, (Fête de la Victoire de 1945). Até o momento tudo estava acontecendo melhor do que o esperado e a conversa fluía, apesar de toda minha reverência. O problema foi quando ele disse seu endereço pela primeira vez, e eu não entendi. Ele então, com a voz cansada pelo tempo, repetiu. As palavras me saíam incompletas pelo seu sotaque de francês original (até então conversava mais em francês com os estrangeiros que viviam aqui na Cité Universitaire de Paris, que tinham os mais variados temperos de sotaque), e minha compreensão também não era lá das melhores, já que mesmo depois de alguns meses, ainda percebia que as aulas no Brasil e somente ler em francês, não asseguravam minha fluência no idioma. Além disso, minha insegurança, a partir do momento de incompreensão entre eu e o Mito, fez com que eu concordasse com ele, sem mesmo entender direito o endereço de sua casa. Nos despedimos e desliguei o telefone. Depois disso dei um pulo pela conversa, e passados 3 minutos, notei que sem a certeza de seu endereço, não poderia encontrá-lo depois do feriado. Tinha entendido um nome, mas não conhecia a palavra dita por ele. E a minha primeira idéia foi ligar novamente para sua casa, e confirmar logo com sua assistente, que atenderia, e assim não precisaria passar pelo desgaste de nova incompreensão daquele gênio com as minhas fraquezas de mestrando no exterior. Tomei coragem, respirei fundo e liguei. Ele atendeu prontamente com sua voz mais cansada. Desliguei na sua cara, covardemente. O encontro Pareceu sonho o que me aconteceu naquela terça-feira, e até então estava mesmo encarando o fato como se não fosse verdade. 17 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Poderia ser sonho mesmo, porque tudo estava bem surreal para mim. Estava semi-acordado depois de uma noite de três horas de sono somente, (razão de um pneu furado na estrada de Roterdam à Paris), na madrugada anterior, e plantado na frente de um simpático prédio na Rue des Marroniers, 2, bem ao lado da Maison de la Radio, de onde o Reali Junior dá a temperatura parisiense para os ouvintes brasileiros todas as manhas, desde que me lembro como gente. Cheguei 5 minutos antes do combinado e fiquei esperando vendo o vidro do fusquinha da frente, molhado pela garoa que refrescava o tempo abafado dos últimos dias. E uma música não me saía da cabeça. Na verdade só a introdução estranha da música "O estrangeiro”, do Caetano. Bom, depois de olhar no relógio a cada 20 segundos, achei que me anunciar com 3 minutos de antecedência era polido. 9h57 me dirigi ao portão do prédio, e uma espécie de porteira/faxineira do prédio me perguntou onde ia, expliquei o meu "rendez-vous" e ela me deixou subir. O velhinho em si Bom, subi o elevador novo do prédio nem tão novo assim, e nem precisei apertar a campainha que ele mesmo veio me receber na porta, com um simpático "Bonjour Monsieur Santomauro"! Estava bem curvadinho, do alto dos seus 95 anos. Apertamos a mão, ele me convidou para entrar na sua casa, me levando até o seu escritório, e eu o agradecia a cada passo que nós dávamos. A ficha decididamente tinha caído. Sentei no sofá de couro de seu escritório e ele fechou a porta e sentou-se a meu lado. Disse-me que esperava ser útil à minha pesquisa. Então eu lhe expliquei um pouco o motivo pelo qual estava lá (já tinha mais ou menos o feito por e-mail, que ele tinha me respondido e imprimido, em cima da sua escrivaninha, feita de um tronco de madeira escura e curvada de tão gasta pelo tempo e horas de estudo). Seu escritório era o que imaginava. Cheirando a guardado de tanto estudar. As paredes todas repletas de prateleiras, com enciclopédias e milhares de livros, e outras coisas à la explorador europeu do século XIX - algumas estátuas exóticas, e coisinhas que iam de potinhos indígenas, pequenos cocares, a uma pequenina estátua de Buda. Também me chamou atenção uma espécie de cinzeiro em forma de casca de coco marronzinho, em cima da mesa de centro. Depois disso lhe pedi para gravar nossa conversa e ele disse não. Fiz-me de desentendido e fui tirando o bloquinho com minhas anotações e questões, e lhe mostrei o gravador. Disse-lhe que queria registrar tudo para me lembrar mais tarde. E ele me falou que aquilo deveria ser só uma conversa, e não uma entrevista. Não insisti, e coloquei o gravador de volta na minha maletinha; A conversa Depois até entendi a sua resistência ao gravador, pois era a primeira vez que me via, 18 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 mas eu o sentia como um velho conhecido. Logo no comecinho lhe disse isso, pois já tinha levado muitas manhas e madrugadas da minha vida, nos meus anos de Ciências Sociais, lendo e quebrando a cabeça com os seus livros. Pra mim ele era um grande conhecido. Só que nunca tinha imaginado vêlo na minha frente. Também lhe expliquei que não estava lá como estudante de Ciências Sociais, e não pretendia discutir sua obra a fundo, ou suas teorias, mas queria conversar com ele mais como historiador, e queria saber mais sobre a sua importância como ator histórico da época que estou estudando. Ele evitou entrar em muitos detalhes sobre a sua convocação e a orientação de Georges Dumas, psicólogo positivista francês que teve central participação na elaboração de uma política cultural francesa na América Latina, desde 1909 até 1937- e que tinha sido seu professor de filosofia. Além disso, Dumas era o coordenador da política das missões universitárias francesas, que entre outras coisas, criou a Universidade de São Paulo, da qual ele foi, se não o mais, um dos mais destacados professores. Me disse que não teve contato com Dumas durante todo o tempo que esteve no Brasil (1935-39). Mas me deu algumas dicas boas. Falou que a criação da USP, é claro, teve diretamente as mãos francesas, que queriam manter a influência sobre a elite intelectual e política brasileira, mas também foi apoiada principalmente pela elite paulistana da época, que tinha acabado de perder a revolução constitucionalista e queria retomar hegemonia nacional através da criação de uma nova elite- intelectual- que seria formada pela USP. Citou como ator e patrocinador importante nesse jogo, Júlio de Mesquita, dono do Estado de S.Paulo. Também falou de como os professores franceses do entre guerras, se sentiam acima de tudo, funcionários a serviço do Governo francês, e que depois desse momento histórico importante de luta ideológica contra o nazismo (que tinha algumas raízes nas colônias alemãs no Sul e no governo Vargas), desejavam voltar aos seus afazeres na França. Também me deu a dica de procurar um pouco sobre Jean Marx, que foi sucessor de Dumas no comando do Service des Oeuvres Françaises a l'Étranger (o que já tinha listado como prioridade), e achou minha hipótese interessante de ser estudada. Falou que realmente existe uma política cultural como instrumento de poder, e como exemplo disso disse que a França daquela época não buscava vantagens econômicas no Brasil, e sim sempre buscou influenciar o Cone sul culturalmente, desde o século XIX. Ele exemplificou que apesar da colônia francesa ser infinitamente menor que a italiana e a japonesa no Brasil naquela época, e que a influência econômica ficar na mão da Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha, a França era que tinha maior presença nas elites políticas e intelectual do Brasil (falou que nos seus cinco anos no Brasil nunca precisou aprender português, porque todas as pessoas falavam francês), e que isso era sim resultado de uma estratégia elaborada pelo governo francês. 19 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 12 - Nº 36 / 2º Semestre 2012 Depois ele falou de seu tempo em Nova York, durante e depois da 2a Guerra, e não quis entrar muito em detalhes de como foi seu papel de Adido Cultural da França nos Estados Unidos (ao mesmo tempo em que chefiava a New School of Social Research, com bolsa americana). Admitiu mesmo que, depois de 1945 os Estados Unidos tiveram uma política cultural poderosa na América Latina e na própria Europa, que substitui os meios muito mais modestos da influência francesa. Enfim, me recomendou procurar mesmo os documentos nos arquivos do Ministério das Relações Exteriores daqui (a permissão chegou, depois de complicado processo), já que sua memória não poderia me dar maiores detalhes sobre essas coisas e me desejou boa sorte. Ao final, pedi licença para ter um momento de admirador, e lhe pedi para assinar o "Tristes Tropiques" em francês, que com certeza irei guardar para o resto da vida no lugar mais especial da minha estante. E ele, com as mãos trêmulas, conseguiu com certo esforço destampar a caneta tinteiro preta, se dirigiu à sua mesa gasta e curva, e escreveu: "Pour Fernando Santomauro, un souvenir de notre rencontre. Cordialement, Claude Lévi-Strauss". PS: As fotos não são minhas, mas de uma entrevista que ele fez em 1998. Eu já o vi um pouco mais velhinho do que essa foto, e menos chique, já que ele estava em casa. Até levei a máquina, mas não achei que tinha clima pra tirar. Eu com ele, sozinhos no escritório, não me senti à vontade. Mas essas são muito boas também. "PS2: As fotos usadas aqui, na verdade, foram tiradas por Eric Brochu em 1998, autoria descoberta só agora quando desta publicação por um grande amigo em comum, Jean Tible. Presentes de encontros que ainda hoje se fazem presentes. Fernando Santomauro é Doutorando em Relações Internacionais do Programa San Tiago Dantas, professor da FASM e Coordenador de Relações Internacionais da Prefeitura-de-Guarulhos. 20