um símbolo fálico de aço entre as pernas !
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um símbolo fálico de aço entre as pernas !
‘ 8 1 BEATBRASILIS um símbolo fálico de aço entre asREVISTA pernas ! REVISTA 2 BEATBRASILIS EDITORIAL Certamente só com sol, sem esse vento a ventilar a nossa tarde, menos agradável seria essa nossa caminhada. Todas as coisas nascem de convenientes carinhos improváveis, de alianças mesmo que incertas, de curvas depois das retas. Nossos ombros assim, lado a lado, me dão vontade de lhes contar em cartas dos desatinos de todos os loucos que nascem das letras. São os insanos paridos nas ruas, filhos bastardos dos cordões das calçadas, herdeiros de tudo que a maioria esqueceu, guardiões do motivo da angústia daquilo que pensa e respira. Somos árvores e é Verão. E verão vocês que o que segue agora são os frutos estranhos que brotaram de nossos irados braços cansados. Fabrício Busnello REVISTA 3 BEATBRASILIS Beatbrasilis #Número 8 (Maio de 2012) Colaboraram nesta Edição: Cícero Bezerra; Daniele Negreiros; Fabrício Busnello; Fernando Ursáries; Jim Duran; Marcus Vinicius Marcelini; Mateus Marcelini; Mauro Cassane; Sânzio Barreto; Vitor Souza Conselho Editorial: Fabrício Busnello; Gerald Iensen; Guilherme Rocha; Jim Duran; Leandro Durazzo; Mauro Cass; Vitor Souza Diagramação: Taly Procópio e Vitor Souza Sobre: Beatbrasilis é um coletivo cultural. Revista Beatbrasilis é uma publicação on-line e quase sazonal. Contato: [email protected] http://beatbrasilis.wordpress.com Reprodução: Ainda não decidimos sobre que licença usar. Portanto, caso queira reproduzir qualquer texto ou parte desta edição, favor contatar o Coletivo pelo e-mail acima. REVISTA 4 BEATBRASILIS ENTREVISTA POR JIM DURAN* Cláudio Willer tem importância na cultura beat brazuca porque foi tradutor de “Uivo, Kaddish e outros poemas” de Allen Ginsberg, além de ser o autor de “Geração Beat” um estudo profundo da geração e suas obras, os dois livros lançado pela L&PM POCKET. É também poeta e militante da literatura. Ao lado de Roberto Piva e outros amigos, movimentou a vida cultural paulista com ações que beiravam a insanidade juvenil. Tive o prazer de ter sido avaliado por Willer na edição do Mapa Cultural Paulista no biênio 2007/2008, guardo as anotações dele sobre meu poema como um prêmio. A entrevista, feita por e-mail, flui conforme os espaços na agenda desse atarefado escritor, membro e ex-presidente da UBE (União Brasileira de Escritores). Beatbrasilis: De que forma a literatura beat surgiu em sua vida? Claudio Willer: Conforme já relatei em ‘Geração Beat’, o episódio marcante foi Roberto Piva haver conseguido fazer que viesse aquela pilha de edições da City Lights em 1961 – Ginsberg, REVISTA 5 BEATBRASILIS Ferlinghetti, Lamantia, Corso etc. Mas a beat já era um tema que interessava e atraia e eu já havia lido On the Road. Beatbrasilis: Porque traduzir Howl? Claudio Willer: Porque o poema é maravilhoso e importante. Howl , Kaddish e vários outros poemas de Ginsberg. Traduzi em 1967, para uma encenação teatral sobre a beat. Ampliei e revisei em 1983, para a L&PM – que publicou por sugestão minha. Beatbrasilis: Como foi o processo de tradução? Claudio Willer: Deu trabalho — a importância da prosódia e a variação, a heteroglossia, do erudito aos socioletos, resultaram em problemas de tradução — foi fascinante resolvê-los, encontrar correlatos em português. Fiz consultas. Beatbrasilis: Como foi o contato com Allen Ginsberg? Claudio Willer: Breve, objetivo, relativo à tradução — deu opiniões e sugestões — depois, passou a enviar-me ou fazer que eu recebesse suas novas edições. Beatbrasilis: Qual seu poema preferido de Ginsberg? Claudio Willer: Uivo? Kaddish? América? Fragmento 1956? No túmulo de Apollinaire? Todos esses, por diferentes motivos. REVISTA06 6 BEATBRASILIS REVISTA BEATBRASILIS substância filosófica. Corso, poeta paradoxal, complexo. Philip Lamantia, o beat-surreal, menos lido, grande poeta. Beatbrasilis: Você assistiu ao filme “Howl”? O que achou? Claudio Willer: Mediano. Ator não se parece com Ginsberg. Cenas de animação / fantasia são algo arbitrárias — não coadunam com poética de Ginsberg, que era objetivista Escreveu-me ser contra ‘associações demasiado subjetivas’, pois relatava fatos nesse poema. Não gostei nem um pouco de responsáveis pela exibição aqui usarem toda a minha tradução de Uivo sem falarem comigo ou com editor e sem creditarem — tem gente que acha que direito autoral não existe. Ensaio da peça 'Geração Beat', em 1967 — Foto de Decio Bar Beatbrasilis: Há algum ponto de “encontro” entre a beat e a literatura marginal brasileira? Beatbrasilis: Em sua opinião porque a beat generation ainda é interessante 55 anos depois de ter surgido? Claudio Willer: Porque literatura de qualidade interessa, independentemente de quando saiu. Pelo impacto e consequências — contracultura e rebeliões juvenis, resultando em abertura maior nas sociedades modernas. Pelo gosto de provocar os poetas inteligentes e críticos idem, os quais acham que obras da beat são literatura menor ou sem valor... Beatbrasilis: Qual é o seu autor beat preferido? Claudio Willer: Tenho relação especial com Ginsberg. Kerouac é grande, reli ou li tudo, obra enorme, riquíssima, prosa poética maravilhosa e Claudio Willer: Depende. Poesia marginal brasileira é muita coisa. Em Piva, há muito intertexto beat — Ginsberg, Corso, Lamantia, a poesia de Kerouac. Tropicália, marginais, etc, são parte de um contexto ou momento histórico que deve muito à beat e contracultura. Beatbrasilis: Durante quantos anos vocês mantiveram contato? Claudio Willer: Eu e Ginsberg? Algumas semanas por carta, eu diria — depois, contato indireto, ele me mandava livros. Beatbrasilis: Como ele via o interesse dos leitores brasileiros sobre seus escritos? REVISTA07 7 BEATBRASILIS REVISTA BEATBRASILIS REVISTA 8 BEATBRASILIS Claudio Willer: Nunca me disse, nunca perguntei — deve ter gostado, em 1996 recomendou que Shamballah Books falasse comigo sobre edição brasileira de ‘The Beat Book’. Beatbrasilis: Como foi viver na São Paulo dos anos 50? Claudio Willer: São Paulo, na passagem dos anos 1950 para 1960, já era uma bela bagunça — suja, poluída, trânsito bagunçado, burguesia espaçosa e folgada demais, pobres jogados por aí — mesma coisa. Vantagem que o não-São Paulo ficava mais perto, em alguns minutos de carro estava-se fora da cidade. Era mais fechada, careta, burguesia anacrônica (ainda tem, mas hoje é menos majoritária). Atualmente, tem agenda cultural incomparavelmente mais interessante, teatro, lançamentos, apresentações, récitas de poesia, etc, e com maior profissionalização. Beatbrasilis: Dos seus livros, qual você diria ter sido o mais subestimado? Claudio Willer: Os dois primeiros, ‘Anotações para um apocalipse’ e ‘Dias circulares’, tiveram recepção bem demorada. Beatbrasilis: Recentemente foi lançado o livro “Os Dentes da Memória — Piva, Willer, Franchesci, Bicelli e uma trajetória paulista de poesia” das jornalistas Camila Hungria e Renata D´Elia (Azougue Editorial) que conta um pouco de sua história e de outros poetas como o Roberto Piva, Roberto Bicelli e Antônio Franceschi. Como foi esse contato com as autoras e também relembrar tantas aventuras e desventuras? REVISTA08 9 BEATBRASILIS REVISTA BEATBRASILIS Claudio Willer: Já conhecia Renata d’Elia. Acho bom esse livro estar sendo tão bem recebido. Mas há outras entrevistas em que relembro — inclusive aquela que Piva fez comigo em 1997, tem disponível na internet, e o filme de Ugo Giorgetti, ‘Uma outra cidade’, de 2000. Em matéria de aventuras e perturbações, o que está relatado é uma pequena parcela do que houve... Beatbrasilis: Como você vê hoje o espaço para a poesia no Brasil? Essa geração X conseguiu um lugar de destaque? Claudio Willer: Espaço para poesia, em publicações e apresentações, cresceu. Faltam críticos e espaço para a crítica, para dar conta da renovação. “Geração X”? Não conheço — mas conheço muitos poetas novos de qualidade. Beatbrasilis: Como você vê essa profusão de blogs literários? Claudio Willer: Tem de tudo... Complementam publicações em outros meios. Páginas, sites, tem maior relevância. Meu blog, uso para divulgação de palestras e lançamentos, e um ou outro texto de opinião. Facebook é engraçado. Beatbrasilis: Hoje é mais fácil publicar poemas do que quando vocês começaram? Claudio Willer: Não sei... Muitos conseguem publicar. Dei sorte, por causa do Massao Ohno. Allen Ginsberg declamando “Uivo” — Gravura de João Pinheiro REVISTA 10 BEATBRASILIS Beatbrasilis: Qual a importância de Massao Ohno (editor, artista gráfico e agitador cultural brasileiro. Foi considerado por especialistas, como o bibliófilo José Mindlin, como um dos principais artistas gráficos brasileiros do livro, tendo inovado em formatos, uso de papéis e cortes especiais, em trabalho meticuloso e artesanal. Foi um dos modernizadores da edição gráfica no país, que até então tinha um aspecto um tanto acadêmico. Produziu até 2010, ano de sua morte) na vida literária brasileira? não venha a tornar-se determinante da recepção e circulação de autores — seria uma distorção — se é que isso já não está ocorrendo. Mas a culpa não é dos festivais, porém da mídia, que às vezes confunde pautas literárias e o velho colunismo social. Claudio Willer: Enorme... ! Decisiva. Ele fez uma geração literária — e muito mais. Artista da edição. Amigo. Beatbrasilis: O que te leva à escrita? Claudio Willer: Vontade de escrever, ora essa... Inspiração e entusiasmo (faz tempo, desde Platão) na criação poética. Pedidos ou encomendas que interessam, nas traduções, artigos e ensaios. Beatbrasilis: A militância do escritor hoje tornou-se um deslocar-se por feiras literárias? Como é esse contato direto com o leitor? Claudio Willer: Compareço, atendo a convites, se tiver agenda livre eu dou palestras e vou a festivais e outros eventos, mas desde que haja organização e profissionalismo — se não, é perda de tempo. Mas espero que presença em FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty — no ano que vem será entre os dias 4 e 8 de julho) e outros eventos badalados REVISTA 11 BEATBRASILIS *Jim Duran é pseudônimo e surgiu em Salvador/BA em 2003 e marca uma guinada na vida e carreira do escritor e ator paulista Eduardo Duran. Enquanto um é baiano o outro é paulista. A escrita de Jim é sonora e feita para ser lida em voz alta com uma dose de uísque e um cachimbo por perto. Jim Duran é formado em Letras. FABRÍCIO BUSNELLO* “Tenhamos um mundo de homens e mulheres com dínamos entre as pernas, um mundo de fúria natural, de paixão, ação, drama, sonhos, loucura, um mundo que produza êxtase e não peidos secos” Henry Miller Uma boa definição que penso para Henry Miller é a dele ser um soldado escandaloso numa cruzada contra a hipocrisia, sendo sua bandeira a sexualidade desenfreada num círculo social frio, sujo e solitário para a libertação espiritual do ser humano. Porém, e isso é que é o mais incrível em sua obra, esse material brutal — e para muitos repulsivo — nos é apresentado de uma forma absurdamente bela, quase mística. REVISTA 12 BEATBRASILIS REVISTA 13 BEATBRASILIS M iller nasceu em Nova York, em 26 de Dezembro de 1891, e morreu em Los Angeles em 07 de junho de 1980. Mudou-se para Paris no ano de 1930, deixando para trás sua esposa June Edith. Na Cidade Luz conheceu a escritora Anaïs Nin, uma das pessoas responsáveis por ajudá-lo a sobreviver na Capital francesa, onde vivia em condições precárias. Além disso, Anaïs se tornaria sua amante e financiaria, em 1934, a publicação da primeira edição do livro Trópico de Câncer. para ele. E é daí que brota a absurda aura das Mulheres de Miller: Santas Fêmeas cujo máximo de pudor a que se permitiam era dar o cu de olhos fechados! “Alguns pressentem a chuva”, disse esse cara uma vez, “outros contentamse em molhar-se”. Sua obra possui um caráter de diário autobiográfico com matizes altamente pornográficas, sendo possível classificá-lo como uma espécie de fundador de um estilo posteriormente seguido por Charles Bukowski e pelo poeta inglês Lawrence Durrel, entre outros. O diferencial de Miller, no entanto, é que em meio à narrativa de fatos cotidianos e trepadas antológicas, se descortinam trechos de pura genialidade filosófica que chegam tão inusitadamente ao leitor que podem tranquilamente lhe deixar sem fôlego ou com lágrimas nos olhos. São essas enxurradas imprevisíveis de filosofia e de humanismo — de desespero frente à condição humana e de espiritualidade iluminada — que devem servir de referência quando se pensa em Henry Miller. Muito mais do que o rótulo não equivocado de um autor tarado que passava mais horas do dia de pau duro que o contrário. O choque que ele provocava com a descrição explícita era simplesmente para que pudéssemos encarar o Corpo com total desprendimento, restando nada mais que a dimensão espiritual pra se analisar. Era isso o que as prostitutas sagradamente representavam REVISTA 14 BEATBRASILIS *Fabrício não voa alto porque não precisa, pois as coisas que mais ama estão aqui embaixo. Vivo desde 1976, foi aprendendo desde cedo a amar a estradas, passando com a família pouco tempo em muitas cidades. Colorado, Gaúcho e Brasileiro, acabou por formar-se em Turismo por pura conveniência. Nasceu mestre em Vagabundagem, e tenta aprimorar esta vocação enquanto ronca em ônibus que rodem pelo sítio que mais ama nesse mundo: a América Latina! “Você saindo de dentro de um temporal com o sorriso mais bonito do mundo” — Mário Bortolotto Ela tira da bolsa um Bukowski. Eu tremo. E depois, um gole em seco. Não há como fugir. Por que nos mandam seguir os malditos caminhos se sabem que não existem caminhos? As árvores da floresta há muito foram decepadas e todo o xilema e floema estão agora dando o troco aos que mancam na escuridão. Tem vezes que eu não consigo diferenciar o dia da noite, me perco nas transições bruscas. O girar da Terra parece rápido demais aos olhos dos que se movimentam freneticamente, tem horas que tomo consciência de que a estaticidade se aproxima muito de mantras budistas que não tenho a habilidade nem de ouvir, de repente seja pela eterna peregrinação mental entre diversas estações e transições de invernos e primaveras e dias e noites. Eu tenho uma lembrança sua muito antes da gente se conhecer. Eu também lembro de você. Num daqueles campeonatos marciais, você sentada com trancinhas no cabelo. Eu tinha quinze anos. Faz tempo. REVISTA 15 BEATBRASILIS Você olhava pro nada. É, eu ainda faço isso. Você faz parte de um outro mundo, baby. Um mundo que eu criei como um refúgio, uma Pasargada que teima em permanecer como uma miragem saariana nas noites de vício. Queria poder te tomar pela mão e mostrar os corredores branco e pretos (e vermelhos) e as casas esfumaçadas com cheiro de ópio, os cães-focinhos molhados curando nossos corações quando dobramos uma esquina, caminhar oblíquo e mente torta, esperando passar o ônibus do além. Não sei se você ia aguentar, baby. Aqui não há morros. Não há montanhas que guardam nosso nome escrito em cercas de madeira que nem lembramos mais aonde. E não há como fugir. Eu não quero ir. Pode ficar, meu bem. Enxugue essas lágrimas. Eu não choro. Nem eu. (Olhos vermelhos) Ela tira da bolsa um Bukowski. Eu tremo. E depois, um gole em seco. Não há como fugir. Por que ainda tentam nos empurrar a questão de que há um caminho a se escolher? Provavelmente eles não escolheram isso. Ela não escolheu me olhar com aqueles olhos de dúvida. Eu vendi minha máquina de escrever. Estou trabalhando em um personagem em terceira pessoa pensando em passar mais tempo jogando cartas com a minha avó. Sentado na casa de veraneio do meu tio que na verdade é a casa do dia-a-dia dele, transformar a vida numa casa de veraneio. Sempre que elas tiram um livro da bolsa tudo acaba oblíquo. Imagens de um caleidoscópio são as lembranças mais nítidas. Você dançando na banheira e eu tentando roubar um índio de madeira. Queria lembrar das noites frenéticas com a mesma nitidez dos dias de chuva. Talvez assim não gastaria tantos comprimidos para dormir. Não ficaria tanto tempo na rua procurando respostas. (Da última vez eu dormi. Fingi coisas que nunca imaginaria acontecerem. Ela disse que escreveu um conto. Talvez devesse ter dado minha máquina de escrever pra ela. Tem certas músicas que se repetem de propósito, certos trompetes que tocam desenfreados enquanto elas continuam a tomar suas anfetaminas. Tem certos ventos que batem na hora certa e atormentam a cabeça. As revoluções estranhas podem não ter a ver com nada, podem não mudar nada, e continuar sendo revoluções. A revolução do silêncio. — Espere um pouco. Esqueci o seu cheiro, volte aqui. Amacie meu cabelo, eu não vou conseguir dormir essa noite. Meu relógio não tem ponteiros, minha cama não tem cabeceira. O que? Quer dizer que eu sempre durmo de ponta cabeças? — Escreva seu conto. Eu REVISTA 16 BEATBRASILIS fico com os poemas, tortos, trôpegos. Sempre volto vendo o dia nascer, subimos o morro, cansados, mas sabendo que estamos fazendo a coisa certa. Atravessando madrugadas. Poucos dias nascem felizes e são esses poucos que mais precisamos do sol batendo na cara, abraçando os amigos, caídos, ao som de algo velho, bem velho. Uma borboleta velha, é a mesma, uma bota velha nos pés, um velho recriminando-nos pela janela, velhos amigos, um morro velho com inscrições de uma amizade que demorará pra sair da madeira. Surge uma imagem na nuvem, dizem que são os olhos da cantora muda, logo se desfaz. Alguém viu? Deitar no chão olhando o céu é estar nas nuvens, deitado, olhando o chão. Afinal quem sabe mesmo o que é chão e o que é céu? Há muito tempo eu perambulo nessa ponte chão-céu esperando cair.) Eu te avisei. Sua sabedoria é mais clara que minha mente transtornada, baby. Não seria real se não fosse. Quem disse que é real? Eu. De novo. Minha mente transtornada me diz o contrário. Para. REVISTA 17 BEATBRASILIS Eu prometo que não volto. Que deixo você continuar seu noivado. Que deixo você se casar. Que finjo que você não se casou por minha culpa e fujo pra fingir que é tudo real como você diz. Não venha me dizer que está mal acostumada. Eu não acredito. Minhas crenças estão na rua, na noite, na sarjeta. Não me faça arrancar com o carro, eu não gosto de perturbar o sono de Deus. Ela finge que me olha, mas na verdade vira o rosto. Sorri para a noite porque sabe que eu vou demorar a voltar, mas que vou continuar na mesma. Ela sabe que a rua não me trará respostas e que eu vou continuar em busca delas. E sorri. Porque o sorriso sincero não tem nada a ver com alegria. Minha ausência é medo e morre em mim mesmo, perdido, vago, observando a noite de lua através deste periscópio estranho que chamam de retina. A lua não te diz nada? Não. (Não entregue agora) Talvez não seja você. É... talvez não. (Segurando firme) Vira pra cá, me olha nos olhos. Não. (Eu não posso me entregar) Vira. ... (Eu viro) O que você vê? Seus olhos. E como eles são? Vem morar comigo. *Marcus Vinícius Marcelini escreve contos e poemas no www.informarteblog.wordpress.com e ideias que surgem nas madrugadas no www.garrafavazia.tumblr.com. Canta e grita poesias na banda "Pé no saco" e estuda os percalços da mente humana durante o dia. Para ele, a estrada é longa, mas podemos ir juntos. Beatbrasilis. REVISTA 18 BEATBRASILIS REVISTA 19 BEATBRASILIS O que é São Paulo senão mais uma capital suja do terceiro mundo que já me roubou muitas namoradas? Um campo de basebol que arremessa as bolas sempre pra fora. Eu amo ela. E é o amor que está atravessando a madrugada nesse banco de ônibus. No meio da guerra, a paz. O centro de São Paulo, as vísceras da besta. Os punks se remoendo. Johni morto. Neonazi com armas. Mas o acampamento continua. Há oito dias, desde o dia 15 de outubro ou 15-O, o novo quilombo foi erguido em baixo do viaduto do chá. Vale do Anhangabaú. Em frente a uma enorme bandeira nacional, o acampamento de primavera clama a paz. Uma primavera estranha. Uma paz estranha. “Hoje é dia de festa” grita alguém no megafone. Mas a festa é treta. Hoje é dia 22 de outubro, ou, melhor dizendo, hoje é sábado. E as grades estão sendo arrancadas, as barracas sendo levantadas e os megafones… bem, você sabe sobre os megafones, passando de mão em mão. Um professor da USP veio dar uma aula aqui hoje, ontem veio um da PUC, tem uns caras com violão, bikes, moradores de rua, moleques novos, garotas lindas. Tomando decisões, erguendo cartazes em letras garrafais, resolvendo as diferenças e se amando de um jeito bom, é assim que a resistência continua. Isso tudo tem a ver. Chama-se querer viver ao invés de apenas sobreviver. Coisa difícil para os 99%. E aqui no acampamento tudo continua, ele tem quase uma vida própria, e as ideias vão crescendo, tomando forma, uma co- REVISTA 20 BEATBRASILIS REVISTA 21 BEATBRASILIS explicar, e se tem algo que se perpetua nesse sol, nessas palavras, nos gritos do megafone pelo acampamento, é o sentir. O amor. #Para saber mais sobre o movimento: zinha, uma biblioteca, mesas, cadeiras, um campinho de futebol, um gerador e, obviamente, barracas, muitas barracas. Eu atravessei a madrugada por causa de um amor. Torto e estranho, mas um amor. Quando cheguei por aqui, fui ver o que estava acontecendo. E melhor do que ver o que está acontecendo, é ver que está acontecendo. A impressão que fica é um Dejavú, de que tudo isso já aconteceu, mas que agora os pontinhos estão se fincando em todo o mapa e colorindo todo o planeta. Eu atravessei a madrugada por causa de um amor e acabei deitado sob o sol, escrevendo palavras desconexas. Porque sentir é mais que manifesto: http://15osp.org/nosso-manifesto site official: http://15osp.org twitter: https://twitter.com/#!/AcampaSampa facebook: http://www.facebook.com/pages/acampasampa/207112696021793 livestream: http://www.livestream.com/anonymousbr O #AcamapaSampa faz parte de uma rede mundial que reivindica mudanças estruturais no modelo de democracia representativa, por entender não só que os governantes não têm os mesmos interesses do povo e que, portanto, não nos representam, como que o próprio modelo representativo do estado funciona de modo que uma minoria decide os rumos de toda a população. Trata-se de um grito de basta ao sistema capitalista. Um grito que, por motivos óbvios, está sendo abafado pela grande mídia. O sentimento geral é de indignação, a corrupção, o novo código florestal, a usina de Belo Monte. No acampamento as decisões são tomadas por consenso, decidindo o futuro do movimento e do Brasil. Pacifico, anticapitalista e horizontal. REVISTA 22 BEATBRASILIS capa MAURO CASSANE* REVISTA 23 BEATBRASILIS P oucos destas tribos leram o clássico do Hunter Thompson, "Hells Angels", mas quase todos se adornam à maneira dos desajustados integrantes daquela velha gangue americana de motociclistas. E, evidentemente, não há nem um sequer que não conheça quem foram estes foras-da-lei que aterrorizaram os bons costumes dos cidadãos dos Estados Unidos nos anos 1960 e 1970. Depois foram pacificados pelo meio, apaziguados com uma boa overdose de propaganda, mais tarde esculhambados pela mídia até, enfim, virarem piada no cinema. Mas muitos deles resistem e guardam na alma o estilo de vida estradeiro marginal que nada tem a ver com bandidagem. Enfim, devemos a eles a existência, mundo afora, de milhares de motos clubes. É preciso entender um pouco sobre esta gente com um símbolo fálico móvel de aço entre as pernas. Há toda uma liturgia para se viver assim. É uma verdadeira, pura mesmo, contemplação entre o lirismo e uma boa dose de fanatismo religioso a uma espécie de santidade, uma legenda representada por uma águia cujo nome Harley Davidson, bem mais do que uma marca, se transformou num jeito de ser. Não, a despeito do motor aglomerar uma cavalaria de mais de mil garanhões em força bruta, não tem nada a ver com as velozes motos japonesas ou italianas. Nada de Ducati ou Suzuki ou Honda ou Kawazaki. As Harleys não foram construídas para correr, mas para ser um colossal petardo na estrada. Algo pesado, robusto, brilhante e letal como uma Colt 45. No motor são cavalos brutos, selvagens, não tem nada a ver com os puros-sangues ágeis, domados e doutrinados, das marcas japonesas, alemãs ou italianas. Os cavalos de força das Harley relincham e rosnam, como jegues zombeteiros, em contrapartida aos árabes equinos das outras marcas, que são obedientes, adestrados e muito mais capazes de desenvolver altas velocidades. REVISTA 24 BEATBRASILIS com a luz do dia. Não se atreve a pilotar a noite quando, tecnicamente, fica cego. Beberrão inveterado, anda em silêncio, mas com a cabeça sempre nos velhos clássicos dos The Doors e Rollings Stones, suas bandas preferidas. Este é meu velho amigo Dinão, com sua inseparável Harley Davidson Heritage Classic carburada, safra 1996. Uma máquina e tanto, de respeito, adornada com caveiras cintilantes por todos os lados. Oras, mas quem, exceto um tolo exibicionista, quer velocidade? Os brutos querem força, a virilidade está ali, naquela engenhosa obra-prima de ferro e aço com muitos cromados. As Hayabusa e as CBR 1100 passam pela gente a mais de 200 quilômetros por hora com aquele ronco de fórmula um. E estamos nós com as velhas Harley pesadonas, paleozóicas, orgulhosos, com o velocímetro oscilando nos 100 ou 120 km/h. Eles aceleram, exibidos, quando passam pela gente. Meu amigo ergue o braço direito e faz o sinal da cruz. Ele não enxerga muito bem mesmo, é quase cego, é acometido desde pequeno por uma fabulosa miopia de 32 graus. Enxerga mais ou menos A minha é quase uma década mais nova, ano 2004, mas o modelo é o mesmo. E a Harley Davidson não mudou nada no modelo. O que serve para automóveis e motos de outras marcas, não funciona com os harleyros. Ninguém quer um modelo novo. Até compram uma nova Harley mas querem ela do mesmo jeito, com os mesmo acessórios e a mesma cara das antigas. Quem tem uma Harley, por fim, tem, no sangue e no espírito, alguma coisa de Hells Angels. Alguns pouco, outros muito, mas alguma coisa daqueles doidos anjos do inferno todos têm. Sem sombra de dúvida. E bons executivos da Harley sabem disso. Os ruins não sabem, e fazem merda. A Harley Davidson, fábrica, deveria exigir como currículo obrigatório de todos seus executivos a leitura de "Hells Angels" do Thompson! Obrigatório. Mas tem os picaretas almofadinhas viados que trabalham lá. E estes desprezíveis seres tentam sempre estragar a legenda secular. Ok, não desviemos do assunto. Isso não é um artigo de gestão empresarial. Voltemos à estrada de onde nem deveríamos ter saído. Estava, então, eu e o Dinão, com nossas Harley, rasgando a velha RioSantos. Partimos de Sampa ao amanhecer. Seguimos deslizando estrada abaixo pela Rodovia dos Imigrantes até a planície santista. De lá pegamos estrada que vai a Guarujá e, antes de chegar, viramos a esquerda para pegar REVISTA 25 BEATBRASILIS a mínima para sua situação financeira, social ou se você é o mais bonito ou o mais feio de todos. a antológica estrada dos hippies até Paraty, nosso destino primeiro, lugar que nem sequer chegamos, pois o melhor de se viajar de moto é mesmo contar com as delícias do inesperado. Estava acima falando de motos clubes. Parece legal participar quando você tem uma moto custom, e mais legal ainda, ou melhor, perfeito, quando você está montado em uma Harley. Eles te querem. Querem colocar um estandarte em sua jaqueta de couro ou num colete surrado jeans. Acho bem legal todas estas gangues que não são compostas por criminosos, mas por uma gente que ama verdadeiramente percorrer o mundo sobre duas rodas. Os nomes são bacanas: Mulambos, Abutres, Dinossauros e outros tantos que agora não me recordo. Se reúnem em um determinado dia, num local que chamam de sede, bebem cerveja, ouvem bom rock´n roll e falam sempre dos três Ms: motores, motos e mulheres. Outra coisa que me agrada muito nestas turmas: não há distinção alguma entre eles. Ali se reúnem imberbes e anciões com suas barbas amareladas. Gordos e magros. Feios e bonitos. Ricos e pobres. Ninguém dá Este espírito tem muito a ver com a vagabundagem iluminada que Kerouac pregava em sua literatura beatificada. Por diversas vezes considerei a ideia de fazer parte de um destes grupos. Juro que até tentei. Mas sou um pária por natureza. E meu velho amigo Dinão, ainda pior que eu, além de tudo é sujeito pouco afeito às relações sociais. Resumidamente somos bem-vindos a qualquer um destes grupos, pois nos identificamos com eles na alma, na pele e, principalmente, nas máquinas, mas não conseguimos ter um comportamento condizente com as mínimas regras por eles estabelecidas de convivência. Há o lado desagradável que tem a ver com hierarquia. Tem que ter, por lá, um macho alfa. E isso, para mim, embora aceitável na vida corporativa ou militar, é incongruente com o legítimo espírito estradeiro. Por esta razão tomamos a sábia decisão de andarmos livres e solitariamente, feito lobos desgarrados da matilha. Este parágrafo, como um longo preâmbulo, foi apenas para explicar que curto, mas não me adapto a moto clube algum. Uma pena. Zunindo pela Rio-Santos me lembro do livro "Zen e a Arte de Manutenção da Motocicleta". Penso no fantasma Fredo e seus assombros, reflito também sobre o jeito zen que temos que lidar com as dificuldades mecânicas das motocicletas de grande porte estradeiras, especialmente as antigas. Eu sou um fracasso neste quesito. Tenho sérias dificuldades mecânicas. Consigo perfeitamente entender os mecanismos que operam a funcionalidade da moto, mas é um mistério insondável a mim como lidar com eventuais panes. É uma frustração e tanto. Se quebrar a moto, não sei como fazer para botá-la novamente em funcionamento. REVISTA 26 BEATBRASILIS REVISTA 27 BEATBRASILIS REVISTA 28 BEATBRASILIS Acelero com estas coisas em mente, faço orações aos deuses para que nada quebre, penso em Nossa Senhora Aparecida, minha mente passeia com imagens ilustradas dos fora-da-lei e suas Harleys percorrendo as autoestradas norte-americanas dos livros que li, dos filmes que vi. Acelero um pouco mais, enrolo o cabo na mão direita, sinto a vibração dos pistões balançando toda a moto, o ronco destes cavalos toscos é fabuloso, como um retumbante grito de nossos guerreiros ancestrais. Vejo minha própria imagem distorcida e cômica refletida no cromado do farol dianteiro e me sinto bem. Logo adiante, rodando uns trinta quilômetros por esta via litorânea, avistamos a primeira praia. Boracéia. É uma praia imensa onde há um grande condomínio de classe média logo no começo e, no final, após seis quilômetros de reta, ficam amontoados uns índios esfarrapados vendendo bugigangas. Eles têm uma reserva ao pé da serra e ficam por ali, na beira da estrada, beira mar, vendendo seus artesanatos. Passamos por eles, pelas garotas com seus biquínis sensuais, pelas crianças ruidosas, mulheres zelosas, famílias inteiras afoitas, acelerando, vencendo os automóveis abarrotados de tralhas para praia, contornamos a esquerda na grande curva cotovelo deitando as máquinas e acelerando um tanto mais zigue-zagueando pela estrada. Esta é a diferença mais gritante entre carros e motos. A gente curte este momento estradeiro, nem tanto o destino final, que pouco importa onde seja. Emparelhamos as duas motos. É uma maneira de compartilhar a sensação de felicidade momentânea. Outro torpedo sobre duas rodas passa pela gente a uma velocidade impressionante, lançando aquele som estapafúrdio de insanidade. Penso comigo: "este sujeito aprecia unicamente a velocidade, não é possível sentir a estrada, curtir as matas, as pessoas, as curvas, tampouco refletir tocando uma moto a mais de 150 km/h". Dinão faz REVISTA 29 BEATBRASILIS novamente o sinal da cruz como um sacerdote que compreende a insensatez alheia, benzendo o potencial suicida. Nunca perguntei por que ele repete este gesto cada vez que somos ultrapassados por uma furiosa máquina japonesa, mas imagino a simbologia. Paramos um instante na beira da estrada para apreciar algumas ostras frescas vendidas em barracas de caiçaras. Comemos umas, tomamos cada um uma lata de cerveja bem gelada. Comento que não se deve beber álcoólicos. Ele concorda comigo. Brindamos. Sentamos por um tempo na beira de um rio cujo nome não me recordo, tampouco importa, e conversamos sobre o prazer de estar ali, daquela maneira, naquelas condições. Passa das dez da manhã. O sol está tímido atrás de nuvens grossas. Mas o clima é agradável e tranquilo. Saímos às 7h de São Paulo. Três horas para rodar pouco mais de 150 quilômetros. Esta era nossa terceira parada. Sem pressa alguma. Uma hora depois seguimos viagem. "Neste ritmo vamos levar o dia todo para chegar a Paraty", comento. "Vamos parar apenas quando eu não enxergar, seja onde for", ele responde. E seguimos. um Velho Joe. Cigarro de palha combina com este clima. "Quer saber, vou dar um mergulho", eu digo. Estou de sunga por baixo. Tiro botas, camiseta, calça. E vou caminhando até o mar. A água está quente. Mergulho. De longe avisto o Dinão que compra mais duas cervejas. As moças estão passando de volta. Elas olham para ele, não para mim. Ele acena. Elas acenam de volta. Sortudo dos infernos. O mar está muito bom e aconchegante. São mais 200 quilômetros até Paraty. Resolvemos ficar por ali mesmo. Cem quilômetros adiante paramos, bateu fome. Praia de Boiçucanga. Encostamos as motos num pequeno restaurante de beira de estrada. Comemos arroz, feijão, purê e peixe frito. Tomamos mais duas cervejas. A praia em frente, brilhante, convidativa. As ondas vinham com força, explodiam espetacularmente na beirada. O sol estava mais vibrante. Deixamos as motos ali, caminhamos de botas e as pesadas jaquetas penduradas na cintura por um trecho da areia. Uma boa brisa. Dinão acende um cigarro de palha. Umas mulheres lindas andam pela praia. Receio que duas amigas olharam pra gente. Talvez acharam estranho, ou ridículo, dois sujeitos andando de botas e jaquetas pela praia num dia quente. Sentamonos à gentil sombra de uma árvore. Silêncio. Não fumo, mas resolvi acender REVISTA 30 BEATBRASILIS *Mauro Cass é jornalista, sonha ser escritor, e há anos viaja o quanto pode, mesmo quando não pode, especialmente com sua velha Harley. Já fez poesias para conquistar garotas pelas quais se apaixonou perdidamente e depois escreveu contos infames sobre suas relações escandalosas e viagens solitárias. Tem em seus cachorros seus mais íntimos amigos e faz a eles, só a eles, todas as suas confidências. CURTINDO A TARDE VERDE FERNANDO URSARIES Deixa o sol entrar no rosto por uma fresta na janela... Querias a inspiração? Uma pedra aquecida regozija, lagarteando à deriva, na umidade do mato. Pelos olhos da estátua fiquei sabendo de um segredo: Como é saboroso desfrutar um dia... após o outro... Ver a dança das mãos e a criatura infinita; Experimentar a estranha e natural lentidão do presente; Deitar a paz no gosto e a cada lua morrer um pouco é coisa de lobo marinho em cochilo milenar... Deixa entrar o sol por uma fresta no teu rosto... E que farfalhe uma vez mais a tua verdade de floresta. E que uma cor de cigarra velha acompanhe teu passeio. REVISTA 31 BEATBRASILIS Fernando Ursáries está na balsa, singrando o deserto, e a cada dia acredita mais nas miragens, penetrando-as para ver aonde o levam. como estou, Doutor? tem que vigiar a pressão. muito cuidado com os amores fortes, margarinas com sal, principalmente as com propagandas felizes, evite o álcool em excesso, a não ser que já se tenha entregado aos amores fortes. uma boa taça de vinho ao final da noite é essencial, mas que seja um vinho tinto argentino, por favor. ouvir músicas suaves também vale, blues da década de 30, tango, Brahms ou bossa nova, quando muito um samba antigo. evite o sexo sem camisinha, mas abuse da putaria com preservativo. é muito bom pra aliviar o stress, e posso lhe indicar boas casas de putas com preços promocionais para clientes meus, e clubes noturnos, com universitárias sedentas, posso te dar algumas entradas grátis. chame alguns amigos. e uma mulher pra estar sempre ao seu lado, pra te dar a mão quando a noite é fria e que lhe beije os cabelos. mas não se preocupe muito, jovem, por enquanto é apenas uma disritmia. SISTÓLICA 220 MATEUS MARCELINI *Mateus Marcelini, REVISTA 32 BEATBRASILIS mineiro universal, cidadão do mundo, quase humano, síntese de tudo o que é passado neste aqui presente. Errando por aí, sem saber como veio parar e não parou. Metade vício, metade ócio. E já não mais, um pouco mais, daqui a pouco, um outro, o mesmo, mas sempre ele, intransferível. O ADEUS CICERO BEZERRA Ele olha os monstros a sua volta A velar-te, a armar-te uma escolta Eles não o compreendem e nem procuram compreender E tudo o que lhe resta é essa agonia fazendo-te padecer Todos os dias, cada vez mais forte E ele anseia pela própria morte Anseia pela vida já sem sentido Já pensou em abandonar tudo e ser mendigo Talvez fosse menos infeliz, talvez Tendo apenas a lua como companhia As ruas, os botequins, as putas, a doce e até amarga boêmia A única saída sensata para si todas às vezes Em que se encontra abandonado, atormentado Sem aquela paz de espírito, sem nenhuma iluminação Se não as luzes da própria casa, oh, que desolação Procura nos bolsos um trocado e encontra-o amassado Cicero Bezerra, aspirante a escritor, cearense, mora em Guarulhos desde 2007. Adora beber cerveja com os amigos e ler sobre os beatniks: "Estou indo encontrar a verdade no fim do caminho. Ela esta lá e é para todos nós,só temos que seguir a estrada, o nosso destino." Vai até o primeiro botequim mais próximo de casa Para comprar uma cerveja e tem uma surpresa Um amigo toca-o no ombro e convida-o para sentar-se Junto a outros companheiros numa mesa e embriaga-se Aquilo lhe tocou o coração e ele decidiu então Jamais deixar o botequim onde encontrou a salvação Encontrou também atenção e uma palavra de compreensão E deu adeus ao tédio, deu adeus aos monstros e a solidão REVISTA 33 BEATBRASILIS PASSAGEM ATEMPORAL DANIELE NEGREIROS Muitas histórias cabem num cruzamento Moedas sob os pós Dos pés da gente... Mil viagens Passadas incessantemente... Nos servindo de troco Pelo tragar do tempo Pétalas feridas sob os cascalhos ... Já esquecidas pelo passear do vento... Sempre fica alguma coisa Há algo que não passa E que nunca há de passar Pois ficou preso ao relento Onde se pôde firmar Para cruzar sozinho A esquina fria Do atalho pro firmamento... E ali, a seguir um passo à diante Do mar do esquecimento Resiste a duas quadras Vendo tudo passar lento. Daniele Negreiros, 32 anos, pessoa metafísica que sobrevive a vida real. Mãe e mulher sem gênero, amiga de quem se compadece e poeta para quem se serve. E vem repentinamente A vontade de voltar... Cruzar o sonho perdido, E brindar com um abraço O que poderia ter sido... REVISTA 34 BEATBRASILIS SOLANGE FABRÍCIO BUSNELLO eu gritei: "solange, olha a rua!!". mas antes disso eu abria a porta do meu prédio pra ela ir embora as 7 e 15 da matina, me despedindo com um beijo quente, lambuzado e com gosto do álcool da madrugada passada. e mais cedo um pouco eu preparava um café forte, ainda bêbado, enquanto ela se duchava pra tirar o cheiro de sexo que não deveria chegar até o nariz do maridão. uma noite inocente com as amigas não pode cheirar a sexo (ou pode, eu bem sei que pode). e antes então trepávamos desavergonhadamente, falantes, loucos, malignamente iluminados naquela solitária noite fria na qual havíamos nos encontrado. e o que precedeu a trepada foi o bar, a mesa onde eu entornava cerveja atrás de cerveja sem nenhum outro objetivo que não o de ficar bêbado ao ponto de no dia seguinte não lembrar, e não lembrando pensava ser possível ficar até mesmo sem ressaca. mas ai ela chegou com sua cara e seu sorriso de solange e sentou-se ali comigo, fazendo-me pensar em sexo. e naqueles momentos eu jamais conseguiria me imaginar as 7 e 15 da manhã, parado na frente do meu prédio com a porta semi-aberta e vestindo apenas uma calça de abrigo e gritando ao ver o audi-sei-la-o-que encaminhando-se pra atropelar aquela maldita puta distraída. "solange!!!, olha a rua!!!". 3 costelas quebradas e a tíbia esquerda com uma graciosa fratura exposta. e lá se ia minha tranqüila manhã de domingo. "porra, solange... te liga, caralho!!". REVISTA 35 BEATBRASILIS ENTREVISTA COMIGO MESMO SÂNZIO BARRETO* REVISTA 36 BEATBRASILIS ninguém. E... a vida dá voltas, tem gente que era pra ser nota de rodapé e acabou virando título de capítulo. Eu: E aí? Sânzio: Beleza? Eu: Se você fosse dividir sua vida em capítulos, quais seriam eles e que títulos receberiam? Sânzio: Medo: De quando eu passei a ter consciência até mais ou menos os doze anos, eu tinha medo de tudo, tinha pavor de escuro, de monstro, tinha monstro por todos os lados, tinha o índio, o soldado, a velha que aparecia com um vaso de flor seca, que depois eu descobri que era a matinta-pereira, e as provas, e o medo de não passar de ano, e a areia do rio que causava mutações, de me perder no centro, de tomar o ônibus errado, da Kombi esquecer de me pegar na escola e eu ter que dormir lá, e de ter que encontrar com a loira do banheiro à noite. Manda outra que essa foi fácil demais. Eu: Conta aí como é essa história de que você é um canalha. Sânzio: Isso quem está dizendo é você. Não vou questionar. Não tenho autoridade pra isso. De repente foi alguém que não gostou da minha atitude Mentira: Entre os doze e os dezoito eu acreditava em tudo que me diziam. Foi a fase da mentira. Depois de muito tempo percebi que algumas coisas se contradiziam. Nas outras acredito até hoje. Fiz faculdade, casei, fui pai, etc. Ilusionismo: numa época em que eu precisava viver entre outras pessoas, precisava fazer trabalho de escola em grupo, precisa trabalhar, precisava namorar, etc, tive que inventar um personagem que é esse que eu uso até hoje com pequenas alterações conforme o roteiro. Eu ia colocar o nome de cada pessoa que marcou uma fase da minha vida, mas isso seria dar cartaz demais a quem não vale uma ficha de jukebox. Além do mais, seriam muitos capítulos e eu não quero ser injusto com REVISTA 37 BEATBRASILIS em determinado momento. Admito que as vezes eu piso na bola, mas é sempre por uma boa causa. Só não sei qual, mas isso só o futuro dirá. Eu: Como é isso de escrever pra você? Sânzio: Começou como um exorcismo. Eu precisava ficar sozinho com os meus fantasmas na época do capítulo Medo. Descobri que eles liam o que eu escrevia e, a medida que liam, ficavam aprisionados nas linhas. Foi assim que acertei as contas com o cara que trabalhava na cantina da escola e que me perseguia com um sorriso pavoroso. Foi assim que me vinguei da professora de música. Meu primeiro livro se chamava memórias de um paletó e foi um sucesso na escola. Todo mundo coloca essas figuras nos personagens. Descobri um prazer imenso em manipular a emoção das pessoas, em comovê-la ou levá-las ao ódio, de me amar ou ter pena de mim. Mas eu confesso que só me interessa quando essa manipulação é passageira e é sempre dirigida a emoção. Não tenho a pretensão de mudar o pensamento de ninguém, talvez acrescentar algo, mas nunca mudar. Gosto de ver a reação das pessoas. O importante é que ela vire a página e a emoção passe. Tudo na vida devia ser assim. Nada dessa coisa da gente ficar se martirizando anos a fio. Quando amei uma vez, o que escrevia era como um fio de mel que derramava na corda para prender a pessoa amada. Ela se deixava encantar pelas palavras a ponto de acreditar que era tudo verdade. Nunca mais repeti a dose. REVISTA 38 BEATBRASILIS Aguardo o momento de escrever alguma coisa mais consistente. Algo que toque o coração das pessoas mais jovens. Algo doce e amargo ao mesmo tempo. Eu: Tem uma bebida que é assim. Sânzio: É verdade. No momento trabalho nisso. Tenho reencontrado muitas pessoas que conviveram comigo quando eu tinha vinte anos. Lembramos muito aquele momento de efervescência política misturada aos idílios de adolescente. Foi a última época em que fui feliz. O livro vai ser sobre isso. Uma alerta, um antídoto contra a canalhice que grassa por aí. Eu: Muito apego ao passado? Sânzio: Eu prefiro o agora. Quando o agora é um lixo, a gente se abriga no passado ou se imagina mais a frente. Mas passou tá passado. Não gostaria de reviver certas coisas. Eu: É mais fácil falar do cotidiano ou da história? Sânzio: É sempre mais fácil falar de si e daquilo que se conhece bem, profundamente. Ficar tentando escrever ficção sobre sua viagem a China, sem nunca ter ido lá, sem saber sobre o que está dizendo, vai redundar em grave ofensa ao povo chinês e à si mesmo. Recomendo a quem quer escrever que viva, viva muito e intensamente, todo tipo de experiência. Eu: Que tipo de experiência? Sânzio: Das que marcam. Tem gente que acha que vai ser escritor porque enche a cara todo final de semana. Não é isso. Cada qual tem que descobrir onde é tocado e se desenvolver, ter sua própria linha de autenticidade. O homem é meio nômade até hoje. Fica o conselho, quer inspiração? Continue andando. Eu: Que tipo de coisas? Sânzio: Deixa prá lá. Passou tá passado. Eu: Existe perdão? Sânzio: A minha vida inteira, sempre que eu encontrava um sábio, fazia essa pergunta a ele. Não tenho a resposta. Além do mais, estou longe de ser um sábio. Embora eu possa afirmar que não existe perdão. Existe amnésia, mas o período deletado tem desdobramentos e consequências que você percebe. REVISTA 39 BEATBRASILIS Eu: Já ouvi isso em algum lugar... Sânzio: As maiores experiências da minha vida aconteceram no trajeto entre uma coisa e outra e nunca na coisa propriamente dita. Tirar a barraca das costas depois de cinco quilômetros foi mais marcante do que o acampamento em si. Eu: Dá pra ser escritor trabalhando em repartição pública? Sânzio: Existem vários. Pessoas sensíveis que captaram com antenas enormes os mínimos sinais de vida que chegavam perto. Eu: Qual é a grande missão do escritor? Sânzio: É ensinar que é possível transcender. Que existe um universo em nós mesmos que pode ser instrumento de libertação. É ensinar que, mesmo encarcerado, o homem sonha e sonha bonito. Eu: Pra quando é o livro? Sânzio: Junho de 2012. *Sânzio Barreto é psicólogo, tem 39 e trabalha com pais separados há uns cinco anos. Desde adolescente escreve e guarda suas impressões sobre as pessoas e seus relacionamentos. Muito do que viveu está na sua obra em forma de rebuscadas tramas, às vezes sem sentido, mas que guardam um profundo entendimento da alma humana, dos seus conflitos e de suas possibilidades. Não leva nada a sério, tanto é que namora com a pintura, a fotografia, o teatro, a escultura e algumas malucas. Nunca colou na escola, nunca traiu, nunca processou ninguém, que isso é coisa de viado ou filho da puta. Mente e cozinha como ninguém. REVISTA 40 BEATBRASILIS CAPTAIN MY CAPTAIN VÉIO CHINA Captain my Captain! Era assim que ele gostava de chamar a si. A certeza de falar unicamente aos botões parecia revestir o termo "Captain my Captain" de toda poesia que necessitava a solitude dos seus dias. alento; Nadie, um cognome carinhoso dado por ele a Nadine, uma majestosa orca que circundara o seu barco num dia de sol a pino e jamais o abandonou. Há muito nada trazia interesse ou coisa que importasse. Deixados para trás como nuvens de tempo ficaram os homens e suas tolas hipocrisias. Ao final, cansado do escárnio das fraudes, despiu-se das humanidades e foi para o mar. Talvez fosse esse o seu legado; unicamente a água e um horizonte infindo a apaziguar as entranhas. E os anos decorriam e era comum às pessoas das grandes embarcações avistá-lo ao longe, obsessivo aos movimentos de sua Nadine. Naqueles momentos, Captain my Captain gritava palavras de incentivo a cada salto da baleia como se ela fosse a sua cadela de estimação. E diante à exuberância do seu animal ele apenas ria e ria; Nem ele sabia se havia enlouquecido ou se transmutado num peixe; Um peixe de feições humanas; Um homem-peixe que sobrevivia daquilo que o mar lhe dava. O tempo veio e com ele tornou-se sentinela dos mares. Nas ondas bravias o pequeno barco era apenas tonalidade esmaecida emergida à sucessão de fúrias. Há tempos ele se esquecera do espírito humano ao ganhar um novo REVISTA 41 BEATBRASILIS Navegando os mares, sem destino e relegado a própria sorte, era justo questionar a Deus se ele o houvera esquecido ali ou apenas se divertia ao vê-lo digladiar com a ira das águas. Era difícil saber. Contudo, num dia de mar agitado e céu cinzento, a trégua veio. Nadine se manteve quieta, serena, apenas emitia lamentosos assobios. Naquela manhã a baleia não irrompera em saltos fantásticos e nem espanara a cauda na fragilidade da embarcação à espera dos xingamentos do velho comandante. Captain my Captain não acordara com a aurora e nem tocara por três vezes o bastão no madeiramento para chamar a atenção da velha amiga. Nada disso aconteceu. Ao contrário; supõe-se que Deus tornou-se tanto mais melancólico ao abrir mão do seu destemido guerreiro. Ao fim daquela tarde, cravado entre as pedras costeiras, o barco de Captain my Captain foi resgatado. Um pouco distante dali Nadine mergulhava incansavelmente, voltando à tona , rodopiando a imensidão no ar como se fosse ela a única estrela dum show aquático. No barco, ao lado oposto do leme e entre os enrijecidos dedos de Captain my Captain, um papel de amarelado tempo foi encontrado. Nele, uma poesia ainda legível; Era de sua autoria. Captain my Captain Perversa, num quebranto além mar a tempestade avassala o que resta No horizonte vislumbro coisas que me desordenam Seria o arco-íris ou as visões das minhas quimeras? Desorientado, dobro-me às terminações nervosas sangrando lamentos nas interseções do meu tempo Qual a finalidade de mim nessa vastidão azul? Desconhecendo, amaldiçoo aquilo que me fez sobrevivido É assim, sem saber quem sou, que deixo-me levar pelas ondas; Talvez eu seja apenas a deriva dum velho barco solitário que singrou todos os mares, mas que jamais resgatou a consciência perdida do sujeito que um dia fui Por algum tempo os estalidos de Nadine foram ouvidos por todo aquele pedaço de costa, até que num dia de ondas mansas e dum sol tórrido que abrasava rochedos e queimava a pele dos pescadores, foi que algo mudou. Naquele meio de tarde sob a exuberância dum céu de nuvens densas que raptavam a beleza do firmamento foi que numa última vez a baleia foi vista; Talvez Nadine descobrira que nada mais havia ali. Véio China: Um contista? Poeta? Talvez REVISTA 42 BEATBRASILIS nem um nem outro. Talvez os dois. violentos, mas há de transparecer, em cada rosto vivo, um fiel indício desta unidade invisível, pulsante em todas as coisas. Demasiadamente ausente, busco algo inominável. O sussurro do tempo me orienta. Aponta, na vastidão das incertezas comprovadas, um porto seguro, um retiro, onde posso deitar com suavidade minhas cansadas espáduas e sonhar com a possibilidade do sono almejado. FERNANDO URSÁRIES Bebo de um vinho solitário. Contemplo as volutas da cigarrilha como se um pedaço de mim evolasse rumo ao impossível. A madrugada fria, de fina e silenciosa chuva, talvez sugerisse tristeza, não fosse tristeza apenas uma palavra nomeando um sentimento de serena perplexidade diante da amplidão da vida. Admiro a escuridão da noite como um velho ancião a passear pelo bosque perfumado. Um som ecoa no horizonte... e por alguns instantes posso até tocar o entendimento. Sinto seu aroma indefinido passeando pelo espaço e minha consciência se dissolve, recompondo-se no pensamento seguinte, e abraçando os restos de uma suposta sabedoria. Talvez a sina da grande verdade seja permanecer eternamente escondida, revelando-se sutilmente em minúsculos fragmentos, compondo um quebracabeça infindável, em que a resposta definitiva somente será dada aos que aceitarem as circunstâncias, abrindo despretensiosamente os olhos do sentir. Deuses dançam sobre as nuvens e fornecem o alimento necessário, prolongando diariamente existências aparentemente sem sentido. É bem provável que algumas rotas tenham sido desviadas, provocando acidentes Neste leito ouço cantos. Aves multiformes desenvolvem pelo éter canções reconfortantes, como se a história toda fosse novamente recontada, em lentos e iluminados quadros, exalando, em cada paisagem descoberta, uma intrigante migalha da razão universal. Gritaria eu, como um doido abandonado ao hospício? Ou suportaria o impulso, como asceta peregrino? Escolho deslizar entre os extremos da inconsciência, tateando esta estranha matéria a qual me encontro enclausurado. Respiro cada dia como se fosse o último, e cada gole que bebo alimenta minha sede insaciável. Amanso meus mestres e demônios interiores com um simulacro de satisfação. Um embuste claramente aceito por todos na certeza da inexistência de algo melhor – ao menos por enquanto. Acaricio minha parcela ingênua com vãs filosofias e eventuais deslumbramentos, sabendo sempre que o brilho transcendental habita as mais remotas paragens do coração humano. O bafo do tempo ainda há de cantar. REVISTA 43 BEATBRASILIS FLOCON 260 VITOR SOUZA* REVISTA 44 BEATBRASILIS N o galpão do lixo, gosto de me sentar sobre a pilha de tijolos térmicos a fim de aliviar a renite. Há vento naquele ponto, embora este esteja sempre carregado pelos vapores de toda sorte de despejo industrial. Castor chega puxando seu carrinho empilhado de galões e sacos plásticos coloridos. Senta ao meu lado e começa a contar uma história sobre os tempos em que plantava roçados de milho no meio do mato que crescia em pequenas propriedades rurais interditadas pela Justiça. Eu pouco presto atenção. Estou de olho mesmo no cemitério de metal que cresce no pátio à minha esquerda. Muitas máquinas apodrecem por ali, cobertas de ferrugens e outras cracas. Fico a pensar em quanto me pagariam por tudo aquilo num ferro velho qualquer. O camarada de macacão verde continua sua verborragia, que eu interrompo perguntando a hora. Ele responde e lembra que está na hora de almoçar. Pega sua marmita cuidadosamente embrulhada atrás de uma bombona de cloreto férrico e sai. Eu também saio. Volto ao calor e fedor da pequena estação de tratamento de esgoto que opero. Há muito material particulado por aqueles ares também, o que me faz espirrar sem parar. Visto minhas luvas de polietileno, meus óculos de plástico, firmo o capacete contra minha cabeça suada e levanto a pesada tampa de ferro. O nível do óleo está bastante alto e fico a me perguntar, por que esses caras andam produzindo tanta poluição no último dia do ano? Vou ter que forçar a estação ao máximo se quiser ir embora mais cedo. Giro o registro umas oito vezes e o jato do líquido esverdeado fica com o dobro da força. Aumento a dosagem de polímero aniônico e sento para ler um livro. Mas os espirros voltam, então tenho que parar. Olho o horizonte e consigo avistar o Maciço das Pedrinhas. Lembro o dia em que caminhei aos pés daquela inusitada elevação granítica, carregando minha mochila e um caderno de campo. Lembro de promessas que fiz a mim mesmo e nunca consegui cumprir. A bomba dosadora emite um ruído diferente do convencional. Eu rezo pra não ter entrado ar na mangueira. Mas interrompo a reza para acariciar Orelha. Depois chega a “mulher de Orelha”. O casal de cães vira-latas cheira minhas botas e depois se coloca a beber água numa poça suja de óleo. Estão acostumados. O protetor auricular começa a incomodar pra valer, então eu o arranco só para lembrar que o barulho da fábrica é mesmo ensurdecedor. Um operário passa carregando um pedaço de papelão encardido. Depois se enfia debaixo de um caminhão de dez toneladas para fazer sua sesta. Eu também tenho vontade de fazer uma sesta, mas lembro que não almocei. Estou com preguiça de comer. As tampas de concreto lá da frente são mais pesadas do que eu, mas parei de arrastá-las no dia em que as deixei ligeiramente afastadas e improvisei uma ferramenta que me permite colher material do fosso sem ter que fazer força. Não sou homem de fazer força! Força só para defecar e olhe lá. Por falar em defecar, um pedaço de material fecal carregado pela corrente penetra com precisão em minha pequena caçamba. Fui premiado. Terei que recolher o recipiente, lavá-lo e fazer toda a coleta novamente. Uma moça de olhos verdes passa e me vê naquela situação. Uma patricinha, que acredita ter motivos para sentir pena de mim. “Ei, cara do meio ambiente”, viro-me. É o guarda da guarita principal, aproximandose com o meu crachá na mão. “Obrigado, estava procurando por ele”, digo. Nos desejamos “bom ano novo” e seguimos em direções opostas. Hora de ir para casa, tomar anti-histamínicos e tentar relaxar o corpo para a festa de logo mais. Esquecer um pouco toda essa rotina se fará providencial no restante desse dia. Só não sei se vou conseguir. No final, somos só nós mesmos lutando para sermos outra coisa. *Vitor Souza é autor do blog Cachorro Surtado, membro do Coletivo TEMA e diagramador final da Revista REVISTA 45 BEATBRASILIS Beatbrasilis. Curte Permacultura, Metareciclagem, Creative Commons, Linux e chá de camomila. REVISTA 46 BEATBRASILIS “baba” by Daniel Confortin REVISTA 47 BEATBRASILIS Clique nos ícones e acesse os espaços virtuais do Coletivo Beatbrasilis REVISTA 48 BEATBRASILIS