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A MIDIATIZAÇÃO DO PROCESSO PENAL.
Em julho de 2011, o Jornal inglês News of the World foi fechado após 168 anos de
atividade, não resistindo à descoberta dos crimes praticados por seus integrantes que,
no interesse de atrair o maior número de leitores, corrompiam policiais para obterem
informações privilegiadas. A partir desse fato, foi reaceso na Inglaterra o debate sobre
da liberdade irrestrita que a imprensa até então vinha ostentando.
E o que isso tem haver com a nossa realidade?
No Brasil, há algum tempo, evidencia-se uma crescente exploração midiática da
criminalidade, basta notar pelos rumorosos casos divulgados diariamente.
Atualmente vivemos numa sociedade movida pelo consumo, inclusive de
informações. A informação passou a ter um grande valor social, sobretudo a partir da
Internet, que permitiu a troca de informações em tempo real, fazendo com que a notícia
pudesse chegar quase que instantaneamente a um incalculável número de pessoas.
Com isso, a notícia e as empresas de comunicação passaram a influenciar sobremaneira
na formação da “opinião pública”.
Como é de conhecimento de todos, após a Constituição Federal de 1988 a
liberdade de expressão foi erigida à condição de um dos vetores da democracia
brasileira, porquanto vinculada a interesses de ordem social. Sucede que, por outro
lado, numa economia neoliberal, pautada sob o ideal do lucro, não é difícil imaginar
que haja manipulações tendentes a distorcer o papel social da mídia.
Sabe-se que nenhum sistema é perfeito, estando sempre sujeito a deformidades
causadas por fatores internos e externos, não sendo diferente com o plexo de normas
jurídicas criadas para confortar a atividade de comunicação, haja vista os muitos
excessos e arbítrios cometidos pelos seus interlocutores, que se protegem através das
garantias que tutelam esta atividade.
Não se quer aqui condenar o exercício da atividade de comunicação enquanto
atividade econômica, tampouco o direito subjetivo de cada cidadão de informar e ser
informado, porém, o que não é possível admitir é a exploração econômica de um
determinado fato de maneira oportunista, a partir de distorções da realidade, da
inobservância de garantias constitucionais asseguradas ao indivíduo criminalizado, o
que resulta num desempenho anacrônico dessa função.
Com efeito, o livre exercício da liberdade de expressão não pode jamais servir
de sustentáculo para o exercício arbitrário de um direito, isso porque, em última análise,
o exercício de tal prerrogativa deve corresponder ao interesse da coletividade, que
muitas vezes é preterido em prol dos interesses particulares daqueles que detém o
domínio sobre a notícia.
A propósito, cumpre destacar os lúcidos esclarecimentos da autora Ana Lúcia
Menezes Vieira1 acerca desta realidade:
“Com as grandes empresas de comunicação a informação se tornou uma
mercadoria, sem qualquer valor relacionado à função social e à verdade.
‘Enquanto a mercadoria – ressalta Ignacio Ramonet – ela está em grande
parte sujeita às leis do mercado, da oferta e da demanda, em vez de estar
sujeita a outras regras, cívicas e ética, de modo especial, que deveriam,
estas sim, ser as suas.’”
Além disso, é evidente que a midiatização do processo penal interessa a outros
setores da sociedade, como por exemplo: aos Governos, que através disso demonstram
uma “pseudo eficácia” no combate à criminalidade; e às instituições responsáveis pela
persecução criminal, que vêm nisso uma valiosa ferramenta de apoio dentro do “jogo”
jurídico-processual.
1
VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo Penal e Mídia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 44;
Entretanto, é preciso que se tenha consciência da força estigmatizante que a
mídia exerce no processo penal, criando “verdades” que muitas vezes passam a se tornar
incontestáveis, quase que absolutas, capazes de rotular e etiquetar os cidadãos
criminalizados para sempre, a semelhança do que se fazia na Idade Média, nos
chamados “pelourinhos”.
Convém ressaltar que, no sistema jurídico vigente, o sujeito exposto à
persecução criminal preserva todas as prerrogativas que possuía antes da prática do
suposto crime, sendo esta uma regra de tratamento de caráter absoluto até o trânsito em
julgado do processo judicial.
Contudo, invariavelmente inúmeras ilegalidades são cometidas, sobretudo no
curso das investigações policiais.
Destaque-se que, é no curso da investigação policial que o princípio da nãoculpabilidade encontra sua maior ressonância, pois sequer existe uma acusação formal
contra o cidadão, logo, não é razoável que o indivíduo já tenha contra si uma das piores
consequências da condenação, qual seja, a pecha de criminoso.
Além do mais, não há no inquérito policial a produção de prova, o que só é
possível de perquirir através do efetivo contraditório, que pelo sistema processual
vigente, fica postergado para a fase judicial. No mais, nessa fase, são coletados apenas
indícios, incapazes de lastrear qualquer juízo de convicção, por mais verossímeis que
possam parecer. Portanto, se não há espaço na fase policial para a formação de uma
convicção jurídica, não é crível que tais elementos da investigação possam ser utilizados
para desmoralizar a honra e a imagem dos cidadãos, já que são eles presumidamente
inocentes por força do art. 5º, inciso LVII, CF.
Apesar das críticas à mídia que estigmatiza o indivíduo por meio do discurso
alarmista, devemos separá-la do jornalismo informativo, que aborda as questões da
criminalidade que possuem interesse social, sem, contudo, adentrar no campo da
banalização e da espetacularização da notícia.
A respeito desta distinção, vale ressaltar a lição de Ana Lúcia Menezes Vieira2:
“O jornalismo informativo, que tem como principal característica buscar
o fato despido de valorações, adjetivações ou da opinião pessoal do
jornalista,
cede
espaço
à
mensagem
dramática,
narrada
descompromissadamente, num discurso fragmentado, ‘engendrado
numa fala emotiva, envolvente, morna e difusa, onde o cotidiano dos
marginais é posto como uma ficção sedutora’.”
A autora destaca ainda que, nos dias atuais, há uma evidente sobreposição do
interesse individual do empresário sobre o interesse social acerca da notícia, confira:
“Não há o pluralismo necessário na impressa democrática, o que há é a
imposição autoritária, tirana, da notícia que, independentemente de ser
verdadeira, na visão do empresário deve ser interessante, isto é, atrativa,
que pretende se assegurar ao leitor ou telespectador, consumidor da
mensagem.”
Portanto, como quase tudo que se desenvolve dentro de uma sociedade
neoliberal, há sempre uma espécie de “precificação” das coisas, e a midiatização do
processo penal é só um reflexo disso, servindo de mecanismo para obtenção de lucros e
vantagens de toda natureza, conforme exemplificado por meio do Jornal britânico News
of the World.
Hélio Azevedo
Advogado Criminalista
[email protected]
2
Idem, p. 55;
*Este artigo é uma síntese da dissertação (“Os reflexos da
midiatização do processo penal no inquérito policial”) apresentada
como requisito para obtenção do título de Pós-graduação em
Direito Público, que fora agraciada pela banca examinadora
com a nota máxima.