Entrar-no-filme: alguns diálogos entre cinema e

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Entrar-no-filme: alguns diálogos entre cinema e
Entrar-no-filme: alguns diálogos entre cinema e games
Renata Gomes
Pesquisadora Independente, Brasil
Abstract
The paper investigates the influence of canonic cinema's narrative, language, genres and
business model in contemporary video games. First, we propose that a large universe of
games tries to enable the player to "enter the film", that is, these games construct themselves
as films turned into interactive 3D space the player can enter and where she/he can
experience narrative implicated 'physically' and narratively as one of its characters. To pursue
that agenda, however, due in large part to the particular place they occupy in the
entertainment industry, video games also seem to be suffering a restrictive influence of film.
The paper will cast a light onto four of these limiting influences: narrative structure,
audiovisual and genre conventions and business model.
Keywords: Videogames, Cinema, Narrative, Genre, Intellectual Property.
Introdução
O diálogo entre cinema e videogames tem se tornado cada vez mais claro nesses 20 anos
1
que nos separam do lançamento de Myst e Doom , em 1993. Antes disso, a maior parte dos
games tinha baixa narratividade e, fixando-se em imagens bidimensionais sem maior
pretensão realista, não apresentava parentesco mais claro com a o cinema. Myst e Doom
inauguraram uma espécie de devir cinema no universo dos games. Cada um a sua maneira,
estabeleceram o que talvez possamos chamar de marco zero de um universo de games
como experiência motivada narrativamente num ambiente tridimensional, no qual o jogador
adentra como personagem, narrativa e fisicamente implicado. Visualmente, esses jogos
tendem a se apresentar como “planos-sequência”, produzindo a presença do jogador a partir
de um ponto de vista – herdeiro da “câmera subjetiva” do cinema – ou de um avatar, seguido
por uma “câmera virtual”. Essas seções jogáveis são entrecortadas por pequenos trechos de
animação, herdeiros do cinema em linguagem, formato narrativo, convenções de gênero,
entre outros.
Nesses vinte anos, portanto, um enorme universo de games – a que propomos chamar de
“jogos de personagem” (Gomes 2006) – vem se construindo como uma oportunidade de
fazer o jogador realizar o desejo de “entrar no filme”. É como se, partindo daquilo que a
tradição do cinema canônico (Bordwell et al, 1998) construiu ao longo de muitas décadas,
esses jogos transformassem filmes, às vezes gêneros cinematográficos inteiros, em
“mundos”, os quais o jogador penetra na tentativa de viver a história ele mesmo. Ou seja, em
vez de apenas seguir cognitivamente o percurso narrativo dos personagens de um filme,
recompondo intelectual e afetivamente a cadeia de causa e efeito, agora o espectador,
agenciado como jogador/personagem, percorre o espaço da narrativa, criando ele mesmo a
trilha de causas e efeitos e, assim, vivendo “diretamente” as emoções relacionadas à
história. Nisso, os games se inserem num percurso do qual o cinema canônico parece ter
sido a forma até hoje melhor sistematizada, a saber, o das narrativas imersivas
“transparentes” (Xavier, 2005), que buscam inserir seu leitor (no sentido amplo do termo) no
mundo da história da forma mais imediata possível.
Como já expusemos anteriormente (Gomes 2005; Gomes 2011; Gomes 2012), a inovação
desse universo de games em relação ao cinema está em sua estratégia de agenciamento,
no que Darley (2000) chamou de “atuação cinestésica” do jogador, sua experiência “física”
de movimento pelo espaço do jogo, que abre a possibilidade para uma sensação de
“identificação encarnada” (Santaella, 2004), muito mais relevantes na fruição narrativa do
game do que apenas as animações que conectam segmentos jogáveis e contextualizam o
pano de fundo narrativo. Embora tais animações tenham uma conexão muito mais óbvia com
o cinema – de fato, são cinema stricto sensu (Machado, 1997) – acreditamos que está nessa
experiência narrativa que os segmentos jogáveis proporcionam a realização de um certo
1
Um dos primeiros autores a chamar atenção para esse marco foi Lev Manovich, em seu The
Language of New Media.
devir cinema, a perpetuação de um desejo de narrativa audiovisual imersiva, agora ancorada
numa mídia com outras possibilidades.
Formato assim tão rico chega mesmo a influenciar direta e indiretamente o cinema, uma
mídia que lhe antecede, mas é por vezes também sufocado por ele, engessado na tentativa
de repetir num universo de affordances totalmente diferentes os mesmos modelos narrativos,
convenções de gênero e formas de negócio. Assim, aqui, tentamos analisar êxitos e
fracassos de alguns games para tentar enxergar como justamente a estreita relação com o
cinema canônico pode estar ameaçando o devir cinema dos games, no que isso pode ter de
mais inovador e potente.
A dor e a delícia de entrar no filme
O estado da arte dos games narrativos pode ser representado pelo jogo Red Dead
Redemption (2010). Nele, estão presentes os melhores esforços da indústria na criação de
uma história ao mesmo tempo imersiva e interativa, na tradução intersemiótica das
convenções do gênero cinematográfico e a jogabilidade envolvente, característica dos
games da Rockstar. Pelo viés dos games, é preciso ver Red Dead Redemption como ponto
mais recente de uma linhagem que nos remete à série Grand Theft Auto (GTA). Pelo viés do
cinema, o game se coloca explicitamente como “implosão” do gênero do Western,
transformando suas convenções de narrativa e linguagem em “mundo” a ser habitado pelo
jogador. Mas só é possível compreender o jogo a partir da forma como essas duas matrizes
obtêm êxito e falham em se mesclar organicamente.
A principal característica dos jogos da empresa Rockstar – desenvolvedora e publisher da
série GTA e de Red Dead Redemption – é o formato sandbox (ou de “mundos abertos”). Em
contraste com a estrutura excessivamente linear dos jogos de aventura até então, os
designers criaram, a partir de GTA III (2001), um mundo espacialmente extenso, contínuo e
complexo, numa clara tentativa de ancorar o jogador num universo que, como o real, persiste
(Santaella 1992, 192), à revelia da significação que o jogador queira lhe impor. Em outras
palavras, no lugar de um mundo fragmentário, que existe apenas em torno das ações do
jogador (literalmente!), temos agora um mundo plenamente habitado por outros
personagens, ocupado por edificações e objetos, que continua em “funcionamento”, mesmo
2
quando o jogador não está ali . Nessas cidades, os dias passam, as pessoas seguem suas
vidas, como se tivessem existência própria. É possível – e, de fato, qualquer pessoa que
jogou um desses jogos já deve ter experimentado fazê-lo – simplesmente sair passeando
pelo mundo de GTA ou Red Dead Redemption, escolhendo o caminho que lhe aprouver,
entrando e saindo de casas, edifícios, comércios, interagindo com as pessoas, testando
possibilidades de interação que podem incluir o roubo de carros, assalto a mão armada – ou,
no caso de Red Dead Redemption, roubo de cavalos, caça de animais selvagens e muitas
outras coisas.
Para organizar de forma mais significativa a experiência do jogador nesses “mundos
abertos”, contudo, também é oferecida uma estrutura narrativa, por meio da realização de
“missões”, desafios dispostos linearmente, os quais o jogador deve vencer para poder fazer
prosseguir a história. Essas missões são a principal interface para avançar aquilo que
podemos chamar de “narrativa de progressão” (Ryan, 2006) (Juul, 2005) do jogo, um enredo
fixo, predominantemente linear, construído de antemão, que o jogador atualiza sobretudo
através das cenas editadas, nas quais perde o poder de interação. Após escolher realizar
uma missão, o jogador volta à posição interativa e, a partir de suas ações, vive o que
podemos chamar de experiência narrativa, contando com um certo grau de liberdade para
vencer o desafio proposto. Esse grau de liberdade, no entanto, de modo geral não interfere
no arco narrativo mais amplo.
2
Aqui, cabe uma distinção entre os mundos abertos de GTA e afins e os “mundos persistentes” de
jogos online como World of Warfare ou o ambiente virtual Second Life. A “vida” em GTA é contínua e
os dias seguem-se uns após os outros, contudo, tudo isso para quando o jogo é pausado ou desligado.
Nos mundos persistentes, ao contrário, a vida segue mesmo após o jogador sair do jogo, pois esses
universos sao habitados por outros jogadores e suas ações continuam a impactar o mundo do jogo. A
ontologia desses dois universos é bastante distinta.
No começo de Red Dead Redemption, por exemplo, é colocada a nós/nosso personagem, o
cowboy John Marston, a missão de ajudar o xerife na captura de um bando de “foras da lei”.
Uma cena não-interativa mostra um ajudante do xerife chegando à delegacia e informando-o
da existência de um grupo que sequestrou um habitante da cidade. O xerife, por sua vez,
com poucos ajudantes à disposição, pede ao nosso personagem que o ajude, em troca de
apoio futuro. Finda a cena, retornamos ao modo jogável e, se quisermos tentar cumprir a
missão (única opção para fazer seguir adiante na narrativa), atendemos ao chamado do
xerife para montar no cavalo e segui-los até uma parte de um desfiladeiro, onde poderemos
escolher acompanhar o xerife ou seus ajudantes, na tentativa de eliminar os bandidos. A
partir daí, entramos no modo jogável mais pleno e teremos uma experiência narrativa até
certo ponto emergente, embebida, como tudo mais no jogo, no cânon do Western: um tiroteio
muito bem desenhado como experiência, onde John Marston, a partir das regras e
affordances (Gomes 2005) do jogo, precisa ajudar seus companheiros da lei a eliminar os
bandidos para libertar o sequestrado e chegar ao fim da missão.
Quantos bandidos Marston vai conseguir matar (ganhando, assim, mais “pontos de
reputação”), com quantas balas, em quanto tempo, tudo isso emerge na sessão de jogo, de
uma combinação orgânica das escolhas e habilidades do jogador na “pele” do personagem e
das possibilidades que isso abre à ação dos personagens controlados pelo computador. A
forma como essa interação é construída dá espaço, por exemplo, para comentários irônicos
do xerife em relação às limitações do jogador/Marston e, no limite, para o fracasso na
missão, se o jogador se deixar atingir demais pelas balas de seus oponentes. Caso morra, o
jogador/personagem é transportado novamente para o começo da missão, tendo a opção de
reinicia-la até cumpri-la a contento – ajudando a matar todos os bandidos e libertar o preso.
Ao cumprir a missão, o jogador será apresentado a uma nova cena não-interativa, que trará
a continuação da narrativa pré-determinada, de modo geral inalterada pelas pequenas
variações da experiência narrativa que o jogador viveu para realizar a missão.
Na impossibilidade de ser apenas narrativa emergente, portanto, o devir cinema de Red
Dead Redemption consiste em criar uma mescla ótima de cinema stricto senso e jogo
narrativamente contextualizado, que proporcione ao jogador, quando nas seções plenamente
interativas do game, “entrar no filme” e identificar-se encarnadamente com o personagem do
cowboy, de modo a viver as emoções que, no cinema, apenas poderia acompanhar
cognitivamente. O melhor exemplo desse devir cinema está nos eventos aleatórios que
podem ou não acontecer enquanto passeamos pelo mundo do jogo, dentro ou fora de uma
missão. Tais eventos – como o pedido de socorro de uma donzela necessitada, que depois
se mostra uma emboscada de ladrões – surgem em certas áreas do mapa do jogo, em
momentos diferentes, sendo possível apenas acha-los, mas nunca procura-los. Em sua
natureza randômica, ganham o sabor de acaso, enraizando fortemente o nosso estar-nomundo do game como uma experiência de emergente, na qual a nossa presença e ação são
essenciais, bem mais do que apenas meros desencadeadores de um roteiro prédeterminado. A urgência desses eventos, a percepção de que acontecem ali e a nós, de que
estão realmente abertos a nossas escolhas – inclusive a de se negar a participar deles – e a
constatação posterior de que geram consequências persistentes no mundo dão à
experiência um caráter mais orgânico e, portanto, um envolvimento emocional maior, onde o
game devém cinema, da maneira mais plena possível.
O oposto completo disso se dá quando a narrativa pré-determinada se opõe às nossas
decisões no jogo, indo de encontro às potencialidades narrativas do meio. Em alguns casos,
é construída toda uma tensão narrativa, mas é tirada do jogador a possibilidade de levar a
cabo o desdobramento disso, substituindo sua ação por uma cena não-interativa, que, por
definição, traz em si um destino pré-fabricado para o enredo. Como descreve Diogo
Rodrigues (2011, 70),
um exemplo disso é o segundo quest do xerife. Marston acompanha-o e a
seus homens para duas localidades nas redondezas, procurando bandidos
que assassinaram famílias. Começamos seguindo pistas no local de um
dos assassinatos, e depois vamos para a fazenda de uma família. O xerife
alerta os integrantes que estão chegando, gerando ainda mais tensão para
os acontecimentos, pois algo grande parece aguardar o jogador. A fazenda
se encontra vazia. O grupo se espalha para verificar se existe alguma
atividade em diferentes lugares do local. Marston vai sozinho para um
deles. Nada é encontrado. O xerife reúne o grupo no celeiro, pois ele está
trancado por fora. Todos os homens ficam em posição de combate
esperando algo de dentro do lugar. O jogador é escolhido para atirar nas
madeiras que bloqueiam a entrada. Quando ele atira na última madeira e a
expectativa está em um nível alto para o que quer que esteja dentro do
celeiro, o jogo corta para uma cut scene que mostra os homens abrindo a
porta. Todos os cavalos estão mortos e um homem está enforcado. Uma
mulher aparece pedindo ajuda e que não atirem nela. Volta para o [modo]
jogável e bandidos saem das casas. O grupo parte então para um tiroteio
com eles, encerrando essa parte do quest com as mulheres da casa
indignadas com a segurança do local e o trabalho do xerife, em cut scene
obviamente .
Em casos como esse, a narrativa de progressão, escrita previamente a partir da fortuna
narrativa do cinema, sobrepuja a experiência do jogador. Toda a expectativa construída pela
contextualização narrativa é esvaziada, na medida em que, justamente quando o jogador se
via na possibilidade de agir, essa agência lhe é retirada, frustrando sua potência de ação. O
que vemos aí é um caso típico em que, no trânsito entre duas modalidades narrativas,
prevalece aquela que, mesmo falha, atende o universo de expectativas culturalmente
gestado pelo cinema. O grande desafio desse universo de games tem sido criar um balanço
ótimo entre os dois paradigmas narrativos – pré-determinado e emergente – para conseguir
organizar a experiência do jogador, sem constragê-la e esvaziá-la. Na prática, contudo, esse
3
balanço tem sido muito difícil de ser encontrado em todo e qualquer videogame narrativo e o
fracasso nessa seara tem sido escondido por outras estratégias.
Assim, para transformar games como Red Dead Redemption em uma experiência imersiva,
que disfarce as falhas da narrativa muitas vezes engessada pelo enredo pré-determinado,
além da jogabilidade muito bem desenhada, uma das estratégias principais é tradução
intersemiótica das mais óbvias convenções do gênero do Western. Da trilha e do desenho
sonoro à direção de fotografia, passando pelo universo temático e perfil de personagens
tornados célebres pelo gênero, Red Dead Redemption é um duplo empobrecido – porém
interativo – do Western cinematográfico. Transformando-se num “genérico” do gênero,
implode suas referências em pastiches com o maior grau de redundância possível, que
calam ruídos para poderem ser reapropriados como experiência pela gama mais vasta de
público. Assim, nosso protagonista é um “cavaleiro solitário”, que cavalga rumo ao por do sol,
ao som de uma trilha musical que achata Ennio Morricone, numa história que gira em torno
dos temas como vingança, justiçamento, busca e proteção da família, com personagens que
incluem, como já exposto, representantes da lei, bandidos e foragidos, rebeldes, donzelas
necessitadas de proteção, bêbados de saloon, entre outras marcas do gênero.
Não que não haja nisso tudo algo de gênio: “habitar” um gênero que está no nosso
imaginário é uma experiência estética forte, mesmo que pudesse ser ainda muito melhor
construída. Mesmo assim, é preciso reconhecer que não há, em Red Dead Redemption,
quase nenhuma criação narrativa ou audiovisual: tudo é a transposição reduzida de
convenções de imagem e som já tornadas célebres pelo cinema, previamente conhecidas e
esperadas pelo público. Cada signo em Red Dead Redemption, portanto, cumpre a função
de conectar aquela experiência com o imaginário pré-construído, como se fossem índices
desse universo semiótico anterior, quando, na verdade, são ícones empobrecidos,
detalhadamente calculados para poupar o objeto do jogo em si de iniciar novas semioses. A
dor e a delícia da experiência de Red Dead Redemption estão justamente na criação desse
template carregado previamente de significados narrativos, que servirão de contexto para a
experiência do jogador, realizando assim, talvez possamos dizer, o sonho de finalmente “ir
morar” no gênero que ajudou a construir como espectador. Na realização desse template,
contudo, o jogo nos mostra, em dois expedientes, um grande êxito e um grande fracasso.
3
É emblemático o caso de Mass Effect 3 (2012), que gerou a revolta de milhares de jogadores, por
criar um sofisticado sistema de decisões narrativas que, ao final, de nada valiam para a conclusão da
história.
Quando devém cinema, Red Dead Redemption nos brinda com a experiência narrativa
realmente inovadora e emergente, usando as affordances específicas da forma game para
realizar, noutra chave, a experiência narrativa que o cinema apenas indicava; quando quer
repetir o cinema canônico avant la lettre, contudo, engessa e esvazia ambos.
Indústria Cultural 2.0
A única forma de compreender essa relação hoje perversa entre os games de personagem e
o cinema canônico é entendendo os dois como parte orgânica de uma indústria do
entretenimento que, na era do capitalismo cognitivo, se torna ainda mais castradora do que a
indústria cultural das comunicações de massa. O engessamento que acabamos de
descrever não se deve estritamente as más escolhas criativas dos game designers, nem
mesmo à nostalgia em relação ao cinema, mas a decisões bem pensadas para otimizar o
game como parte de uma ecologia permeada pelo conceito de “propriedade intelectual” e
vendida a partir da sedutora ideia de transmídia. Cinema e videogames são dobras de um
maquinário de venda de experiências de entretenimento, que se retroalimentam de modo a
gerar benefício mútuo. Contudo, aqui também a reapropriação pelos games do paradigma de
comércio criado pelo cinema se mostra mais perversa do que o original e, hoje, a Hollywood
do silício funciona sob um modelo no qual as brechas criativas se tornam cada vez mais
raras e a ocasional inventividade é capturada e morta antes mesmo de dizer a que veio.
Ainda que não assumidamente, por exemplo, a justificativa da indústria para a ousadia
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poética/estética calculada, na melhor das hipóteses, em games com Red Dead Redemption
está ancorada no aporte financeiro necessário para se desenvolver e produzir esses
blockbusters: cifras que, extraoficialmente, dizem-se girar em torno de mais de 100 milhões
de dólares. Para que o retorno desse investimento seja o maior possível, constroem-se
estratégias para achatar o público num estrato que comporte expectativas homogêneas,
reduzindo-se o escopo de temas, mundos, personagens e linguagem possíveis a um nicho
ainda mais restrito do que o cinema hollywoodiano. Qualquer dissonância pode repercutir
nas vendas e fazer o negócio ir por água abaixo. Cada vez mais claramente, a indústria dos
games, mais ainda do que a do cinema, reza pelo seguinte credo: “in recent years,
bellwethers like Electronic Arts have come to treat the process of game making as a virtual
factory: X dollars invested in graphics technology combined with Y dollars in marketing
resources should yield Z returno n investment” (Schiesel apud Dyer-Witheford e de Peuter
2009, 48). O caso de Red Dead Redemption e da Rockstar em geral certamente não é tão
evidente quando o (des)caso da EA, mas sua ousadia calculada ainda faz parte do mesmo
cenário.
Assim, enquanto o cinema construiu pelo menos uma nova sintaxe audiovisual para o
melodrama burguês (Xavier 2003), os games, excessivamente atrelados, de um lado, ao
formato narrativo do cinema e, de outro, à necessidade massacrante de lucros, nem isso
conseguem fazer com a mesma potência. Nessa indústria, rarissimamente se pode ousar
fora dos gêneros de aventura pseudo-histórica, ficção científica pouco complexa, “terror de
sobrevivência” ou homenagens explícitas a gêneros do cinema – como é o caso de Red
Dead Redemption ou L.A. Noire, uma criação também da Rockstar a partir do policial noir
(mas que por vezes parece mesmo ter sido inspirada diretamente por um único filme, L.A.
Confidential, de 1997). As exceções que confirmam o quadro geral cada vez mais emergem
da periferia da indústria, no sentido comercial e/ou geográfico do termo.
Não a toa, a dominação do mercado de games pelo sistema de franquias sequer parece
visível ao grande público ou mesmo à “mídia especializada”. Na verdade, não apenas esse
modelo não é criticado, como se tornou algo aguardado e até exigido por uma parcela de
público e jornalistas da área. No momento em que escrevemos este artigo, por exemplo, os
lançamentos mais aguardados são parte de franquias e/ou acordos de licenciamento: no
cinema, o filme Man of Steel – a mais nova atualização do personagem Superman, ele
mesmo já uma adaptação dos quadrinhos – e, nos games, Grand Theft Auto V, o qual, ao
4
É preciso notar que Red Dead Redemption e GTA são justamente alguns dos games mais inovadores
dentre os mais caros da indústria. Ou seja: se nossas críticas se aplicam a eles, aplicam-se ainda com
mais justiça a games ainda menos ousados.
contrário do que o nome indica, é nada menos do que a 15ª parte da franquia GTA (2013). E
se, no cinema, a diversidade estética, narrativa e política ainda é razoavelmente grande nas
cinematografias não-americanas, representadas parcialmente em alguns festivais, nos
games, mesmo as manifestações da indústria ainda se encontram excessivamente pautadas
por esta.
O que se quer dizer aqui é que as implicações desse sistema dominado por estratégias de
franquia e licenciamento de conteúdo entre produtoras vão muito além de um modelo de
negócios que tende a sabotar a si mesmo com o tempo – como demonstram a eterna briga
da indústria do entretenimento com as diversas estratégias de compartilhamento não
autorizado de games e filmes (chamadas todas, tendenciosamente e sem critério, de
“pirataria”). As implicações passam pela construção de uma matriz poética/estética, que,
fincada excessivamente na exploração da “propriedade intelectual”, torna-se cada vez mais
homogênea e restringe cada vez mais o universo criativo de conteúdo e forma. Essa
restrição, uma “estratégia explícita e planejada de falta de originalidade”, um método de
“aversão ao risco”, que prefere “clones à experimentação” (Dyer-Witheford e de Peuter 2009,
45), é mais visível nos games menos narrativos, sobretudo nas franquias de esporte, mas é
cada vez mais visível também nos games de personagem.
Os games, portanto, aos se apropriaram de uma série de restrições criadas por Hollywood –
dos gêneros à commoditização dos efeitos visuais – acabaram por criar um sistema
draconiano, que produz ainda mais distorções do que aquele que existia no cinema. Um
ponto fundamental a ser analisado diz respeito à fortuna criativa que está embutida tanto no
licenciamento de mundos narrativos, quando na tecnologia que gera os games. A vontade de
adaptar para a grande tela universos ficcionais previamente existentes não é estranha
sequer aos primórdios de Hollywood, mas quando deixa de ser exceção e passa a se tornar
regra, o que vemos é um ciclo que, a cada volta, torna menor o universo total de
possibilidades temáticas, que passam a se auto-referenciar cada vez mais. Um lugar onde
isso está cada vez mais claro é no desdobramento televisivo mais contemporâneo de uma
tradição que começa no cinema, nomeadamente as séries de TV. Atravessando um universo
que vem sendo indiscriminadamente louvado por sua “ousadia” e “complexidade narrativa”, o
que vemos é a suspeita superpopulação de temáticas que envolvem o fantástico, de
vampiros e zumbis a ilhas ontologicamente inexplicadas. Em paralelo a isso, a identidade
das séries vem atrelada não mais a artistas, essencialmente, mas aos produtores, os quais
detêm não mais os procedimentos criativos geradores de histórias e linguagem, mas o
controle do trabalho imaterial capaz de inventá-lo ou, no mais das vezes, repeti-lo.
Quando saímos do nicho dos filmes e séries para o nicho específico dos games, o controle
daquilo que Vercellone (apud Dyer-Witheford e de Peuter 2009) chama de “saber morto” se
dá também pela propriedade de determinadas engines, software complexo fora do qual a
criação de determinados games se torna ou impossível ou bem mais difícil de ser realizada.
Desta maneira, o que explica a semelhança – e mesmo as diferenças – entre a série GTA,
Red Dead Redemption, L.A. Noire e Max Payne, por exemplo, todos games da
desenvolvedora Rockstar, está nas possibilidades intrínsecas à engine (e software
correlatos) criada para o desenvolvimento de GTA IV e incrementada desde então. A
transição entre os games da sub-série GTA III para o GTA IV e Red Dead Redemption é
perceptível, não apenas no que diz respeito aos gráficos e à física dos elementos do jogo,
mas em todo o “ruído” que parece ter sido controlado quando a desenvolvedora criou sua
própria engine – a R.A.G.E – e pôde moldá-la exclusivamente às suas necessidades. Assim,
talvez não seja à toa que, embora mais extensos e complexos, os mundos de GTA IV e Red
Dead Redemption pareçam também mais “domesticados” pelas narrativas pré-determinadas
do que os games anteriores da Rockstar.
Nada mais representativo do “saber morto” do que todo o “saber vivo” capturado de
singularidades criativas e materializado num software, que se torna propriedade de uma
empresa, enquanto as pessoas que o criaram e aquelas que o manipulam e incrementam
podem ir e vir quase no anonimato. Contudo, enquanto o ruído que está presente mesmo no
gesto menos criativo e ousado de um ser humano, o software tende à repetição de padrões,
o que, como dissemos, explica parcialmente a redundância perceptível entre games
diferentes de uma mesma franquia e mesmo o estado da arte dos games narrativos em
geral.
Conclusão
Apesar de todo o desenvolvimento tecnológico dos games nesses últimos 20 anos, o que se
pode perceber cada vez mais é a reiteração de um modelo narrativo e de linguagem que,
mesmo nos casos de maior êxito – como Red Dead Redemption e alguns outros – deixa
entrever um inegável esvaziamento de forma e de conteúdo. Nascido de forma potente de
um desejo de devir cinema, os games narrativos têm se tornado uma espécie de clichê que
nem sequer se importa com a renovação, sem também ter em seu fora a mesma fagulha
criativa que o cinema independente e as cinematografias não americanas tiveram até hoje.
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Sim, o aguardado Grand Theft Auto V alega trazer algumas grandes inovações em relação a
seus predecessores, como a possibilidade de mudança de experiência narrativa entre três
personagens/avatares diferentes durante o mesmo jogo e a eliminação das cenas editadas,
mas, ao vermos o trailer do game – outro expediente emprestado do cinema e tornado mais
importante agora – temos a sensação incômoda de estar diante de mais um duplo
empobrecido de uma arte que, apesar de tecnologicamente sistematizada, ainda se renova
cotidianamente e, nisso, consegue gerar ruído em seu cânone. Parece-nos que, sob
qualquer aspecto, a sobrevivência do game como devir cinema só poderá vir,
paradoxalmente, de seu distanciamento do legado que nem o cinema, em sua plenitude,
quer mais.
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